Biblio "SEBO"
Aos chekistas
Uma tarefa de grandiosa responsabilidade
Foi-te conferida por Lênin.
O rosto do chekista é marcado por inquietações
Que ninguém mais consegue compreender.
No rosto do chekista se estampa a coragem.
Ele está pronto a lutar, mesmo hoje,
Pelo bem e felicidade de todos.
Ele luta pelos trabalhadores.
Muitos tombaram em batalha,
E surgiram tantos túmulos de irmãos nossos.
Mas ainda restam muitos
Combatentes honrados e vigorosos.
Tremei, inimigos, tremei!
Logo, logo, vosso fim chegará!
Tu, chekista, estás sempre de guarda,
E em batalha liderarás no tropel.
Mikhail Panchenko, inspetor no sistema prisional soviético;
o poema foi conservado no mesmo dossiê que descreve a
expulsão de Panchenko do Partido e da NKVD.[1]
Por estranho que possa parecer, nem todas as normas dos campos eram escritas pelos comandantes. Havia também regras tácitas - sobre como obter status, ganhar privilégios, viver um pouco melhor que os outros -, bem como uma hierarquia extra-oficial. Quem seguia essas regras e aprendia a subir na hierarquia descobria ser muito mais fácil sobreviver assim.
No topo, estavam os comandantes, os supervisores, os carcereiros e os guardas. Usei de propósito a expressão "no topo", em vez de "acima ou "para além" da hierarquia, porque no Gulag os administradores e guardas não constituíam uma casta à parte, distanciada dos presos. Ao contrário dos guardas da SS nos campos nazistas, não eram considerados imutável e racialmente superiores aos prisioneiros, de cuja etnia eles com freqüência partilhavam. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, havia centenas de milhares de presos ucranianos nos campos, assim como um número extraordinário de guardas da mesma nacionalidade.[2]
Tampouco guardas e presos habitavam esferas sociais inteiramente distintas. Alguns guardas e administradores faziam complexas negociatas de mercado negro com os presos. Alguns se embriagavam com eles. Muitos "co-habitavam" - o eufemismo do Gulag para relações sexuais.[3] De modo mais relevante, muitos eram ex-presos. No começo dos anos 1930, considerava-se perfeitamente normal que detentos de boa conduta se "qualificassem" como guardas - e às vezes como elementos de posto ainda mais alto na hierarquia.[4] A carreira de Naftaly Frenkel talvez represente a transformação mais extraordinária, mas havia outros indivíduos com histórico parecido.
A trajetória de Yakov Kuperman, por exemplo, mostrou-se menos augusta que a de Frenkel, mas foi mais típica. Kuperman - que depois doaria suas memórias, não-publicadas, à Sociedade Memorial de Moscou - foi detido na década de 1930 e condenado a sete anos. Cumpriu pena em Kem (a prisão onde se ficava em trânsito antes de seguir definitivamente para Solovetsky) e depois foi trabalhar na divisão de planejamento das obras do Canal do Mar Branco. Em 1932, o caso de Kuperman foi revisto, e sua situação legal se modificou: ele passou de preso para degredado. Acabou obtendo soltura e assumiu um cargo na ferrovia Baikal-Amur (o Bamlag), experiência que recordaria "com satisfação" até o fim da vida.[5] Sua biografia não era incomum. Em 1938, mais de metade dos administradores e quase metade dos guardas armados do Belbaltlag (o campo que construiu o Canal do Mar Branco) eram antigos ou atuais presos.[6]
No entanto, podia-se tanto perder quanto ganhar status. Assim como era relativamente fácil para o prisioneiro tornar-se carcereiro, também era relativamente fácil para o carcereiro tornar-se prisioneiro. Administradores e comandantes de campo do Gulag estavam entre os milhares de homens da NKVD detidos nos expurgos de 1937 e 1938. Em anos posteriores, funcionários e guardas graduados do Gulag seriam freqüentemente presos por colegas suspeitosos. Nos lagpunkts isolados, a fofoca e a maledicência eram comuns: dossiês inteiros dos arquivos do Gulag se dedicam a denúncias e refutações, cartas furiosas sobre deficiências dos campos, queixas de falta de apoio da liderança central e de más condições de trabalho - e subseqüentes solicitações de que os culpados, ou desafetos, fossem encarcerados.[7]
Administradores e guardas armados eram volta e meia aprisionados por deserção, bebedeira, furto, perda das armas e até maus-tratos aos detentos.[8] Os registros do campo de trânsito do porto de Vanino, por exemplo, contêm descrições dos casos de V N. Sadovnikov, guarda armado que matou uma enfermeira do campo (ele pretendera mesmo era matar a esposa); de I. M. Soboleev, que afanou 300 rublos de um grupo de presos, embebedou-se e deixou sumir a carteirinha do Partido; de V. D. Suvorov, que organizou uma bebedeira e depois arrumou briga com um grupo de oficiais; e de outros que "beberam até desmaiar", ou que estavam embriagados demais para exercer suas funções.[9] Na papelada pessoal de Georgi Malenkov, um dos lugar-tenentes de Stalin, inclui-se o relatório do caso de dois administradores de campo que, durante uma bebedeira, assassinaram dois colegas, entre eles uma médica com dois filhos pequenos.[10] Em carta a Moscou, um administrador de campo se queixou de que a vida nos postos mais longínquos era tão enfadonha que a falta de entretenimento levava "muitos dos rapazes a desertar, desrespeitar a disciplina, embebedar-se e se meter com o carteado - atitudes que com freqüência acabam levando à prisão".[11]
Para alguns, era possível, e até comum, cumprir o ciclo completo: oficiais da NKVD tornavam-se prisioneiros e depois de novo carcereiros, iniciando sua segunda carreira na administração do Gulag. Muitos ex-presos escrevem da rapidez com que oficiais da NKVD caídos em desgraça se reerguiam nos campos e obtinham posições de real poder. Lev Razgon, em suas memórias, narra o encontro com certo Korabelnikov, funcionário de baixo escalão da NKVD que ele conheceu durante a viagem de Moscou para o campo de concentração. Korabelnikov lhe contou que fora detido porque tagarelara com o melhor amigo sobre uma das amantes dos chefes, pegando "cinco anos como Elemento Socialmente Perigoso - e sendo transportado para o campo junto com o resto". Mas Korabelnikov não era exatamente como o resto. Alguns meses depois, Razgon voltou a encontrá-lo. Dessa vez, Korabelnikov envergava um uniforme do campo, limpo e bem cortado. Usara de astúcia para arrumar uma "boa" ocupação, administrando o lagpunkt punitivo do Ustvymlag.[12]
A narrativa de Razgon reflete uma realidade que os arquivos registram. De fato, um número enorme de administradores e guardas do Gulag tinha ficha criminal. Aliás, parece que, na NKVD, o Gulag funcionava explicitamente como local de exílio, a derradeira chance do secreta degradado.[13] Depois de mandados para os limites mais longínquos do império do Gulag, esses homens raramente podiam voltar a qualquer outro departamento da NKVD, para nem falarmos de Moscou. Em sinal de sua situação diferenciada, os funcionários do Gulag usavam uniformes também diferentes e tinham um sistema ligeiramente diverso de insígnias e postos hierárquicos.[14] Nas conferências do Partido, os oficiais do Gulag se queixavam de seu status inferior. "O Gulag é visto como uma administração da qual se pode exigir tudo e não dar nada em troca", reclamava um oficial. "Esse modo de pensar excessivamente simplório - a idéia de que somos piores que todo o mundo - está errado e possibilita que se perpetuem injustiças em termos de soldo, habitação etc."[15] Posteriormente, em 1946, quando a NKVD foi dividida e de novo rebatizada, o Gulag passou para o controle do Ministério do Interior (MVD), e quase todas as outras funções mais interessantes, em especial a espionagem e contra-espionagem, foram para o Ministério da Segurança do Estado (MGB, depois KGB), mais prestigioso. O MVD, que administraria o sistema prisional até o funda URSS, continuaria sendo uma burocracia menos influente.[16]
Desde o início, aliás, os comandantes de campo tinham status relativamente baixo. Numa carta que se conseguiu fazer sair às escondidas de Solovetsky no começo dos anos 1920, um preso escreveu que a administração do campo se compunha inteiramente de chekistas caídos em desgraça, que tinham sido "condenados por especulação, extorsão, agressão ou algum outro delito especificado no Código Penal Ordinário".[17] Nas década de 1930 e 40, o Gulag se transformou no destino final de autoridades da NKVD cujo currículo não correspondia aos pré-requisitos: aqueles cuja proveniência social não era proletária o bastante, ou cuja condição de judeus, poloneses ou baltas os tornava suspeitos em períodos nos quais esses grupos étnicos estavam sendo reprimidos com vigor. O Gulag também constituía o último refúgio daqueles que simplesmente eram néscios, incompetentes ou beberrões. Em 1937, Izrail Pliner, então chefe do Gulag, queixou-se:
Deixam-nos as sobras das outras seções; mandam-nos gente com base no princípio de que "Vocês podem ficar com aquilo de que não precisamos". A nata dessa turma são os bêbados incorrigíveis; tão logo um homem dá para beber, é despejado no Gulag. [...] Do ponto de vista do aparato da NKVD, se alguém comete um delito, o maior castigo possível é mandá-lo trabalhar num dos campos.[18]
Em 1939, outra autoridade do Gulag descreveu os guardas dos campos como "gente não de segunda, mas de quarta classe, o próprio rebotalho".[19] Em 1945,Vasily Chernyshev, na época o chefe do Gulag, enviou memorando a todos os comandantes de campo e diretores regionais da NKVD para manifestar seu horror ante a baixa qualidade dos guardas armados dos campos, entre os quais se haviam constatado elevados índices de "suicídio, deserção, perda e furto de armamento, embriaguez e outros atos amorais", assim como freqüente "desrespeito às leis revolucionárias".[20] Já em 1952, quando se descobriu corrupção nos escalões mais altos da polícia secreta, a primeira reação de Stalin foi "exilar" um dos principais transgressores, que de imediato se tornou vice-comandante do campo de Bazhenovsky, nos Urais.[21]
Os próprios arquivos do Gulag também confirmam a crença, expressa por um ex-preso, de que tanto administradores quanto guardas eram, "no mais das vezes, pessoas muito limitadas".[22] Por exemplo, dos onze homens que, entre 1930 e 1960, detiveram o título de "comandante do Gulag" (o chefe de todo o sistema de campos), apenas cinco possuíam algum tipo de educação superior; três não tinham ido além do primário. E raramente os que ocupavam aquele cargo o mantinham por muito tempo: num período de trinta anos, só dois homens - Matvei Berman e Viktor Nasedkin - ficaram mais de cinco anos na posição. Izrail Pliner durou apenas um ano (1937-8); Gleb Filaretov, três meses (1938-9).[23]
No ponto mais baixo da hierarquia da NKVD, os registros pessoais dos funcionários do serviço prisional mostram, a partir da década de 1940, que até os carcereiros mais graduados - membros ou aspirantes à condição de membros do Partido - vinham quase inteiramente de famílias camponesas, possuindo instrução mínima. Poucos tinham cinco anos de escolaridade, e alguns haviam completado apenas três.[24] Em abril de 1945, perto de 75% dos administradores do Gulag não tinham nenhuma instrução além do primário, uma porcentagem quase duas vezes maior que no resto da NKVD.[25]
Os guardas armados dos campos - os voenizirovannaya okhrana, termo cujo acrônimo, Vokhr, dava nome à corporação deles, seguindo o hábito soviético - eram ainda menos instruídos. Esses eram os homens que patrulhavam o perímetro dos campos, que faziam os presos marchar para o trabalho, que guardavam os trens de traslado, freqüentemente tendo apenas uma vaga idéia dos motivos de suas funções. Conforme um relatório sobre o Kargopollag, "parece que os guardas não sabem os nomes de membros do Politburo, nem de líderes do Partido".[26] Outro relatório lista uma série de incidentes envolvendo guardas que haviam usado armamento de modo impróprio. Um desses indivíduos feriu três presos "em conseqüência de não saber como sua arma funcionava". Outro, "embriagado em serviço, feriu o cidadão Timofeev".[27]
Em reuniões, comandantes de divisão se queixavam de que
Os guardas não sabem lubrificar, limpar nem manter suas armas. [...] Uma mulher que serve como guarda cumpriu turno tendo um trapo enfiado no cano da arma. [...] Alguns guardas pegam os fuzis de outros, deixando os seus em casa porque são demasiado preguiçosos para limpá-los sempre.[28]
Constantes cartas de Moscou instavam os comandantes locais a passarem mais tempo entre os guardas, em "trabalho cultural e educacional".[29]
No entanto, até as "sobras" e os "bêbados incorrigíveis" de outros departamentos da NKVD conseguiam atender aos pré-requisitos de trabalho no Gulag. A maioria das instituições soviéticas se ressentia da falta crônica de pessoal, e o Gulag sofria em especial. Nem mesmo a NKVD foi capaz de arranjar número suficiente de delinqüentes para, transformando-os em funcionários, suprir o aumento de 1.800% nos efetivos entre 1930 e 1939, ou fornecer o contingente de 150 mil pessoas que foi preciso contratar em 1939-41, ou atender à enorme expansão do pós-guerra. Em 1947, com 157 mil indivíduos servindo apenas nas unidades de vigilância armada dos campos, o Gulag ainda achava que precisava de mais 40 mil guardas.[30]
Até a dissolução final do sistema, esse dilema nunca deixou de atormentar a administração do Gulag. Excetuados os cargos de máximo escalão, o trabalho nos campos de concentração não era considerado prestigioso nem atraente, e as condições de vida estavam longe de ser confortáveis, sobretudo nos locais mais acanhados e isolados do extremo norte. A escassez generalizada de alimentos fazia que guardas e administradores recebessem víveres racionados, em quantidades atribuídas de acordo com o posto hierárquico.[31] Retornando de uma viagem de inspeção aos campos setentrionais da região de Vorkuta, certo inspetor do Gulag reclamou da má qualidade de vida dos guardas armados, os quais trabalhavam de catorze a dezesseis horas por dia nas "difíceis condições climáticas do norte", muitas vezes não tinham indumentária nem calçado adequados e habitavam casernas imundas. Alguns, tal qual os presos, sofriam de escorbuto, pelagra e demais doenças causadas pela deficiência vitamínica.[32] Outro inspetor escreveu que, no Kargopollag, 26 membros da Vokhr tinham sido processados e condenados como criminosos, muitos deles por terem adormecido em serviço. No verão, cumpriam turnos de treze horas - e, quando estavam de folga, não dispunham de nenhum entretenimento. Quem tinha família ficava em situação particularmente difícil, pois muitas vezes não contava com acomodações próprias e era obrigado a morar na caserna.[33]
Quem queria dar baixa descobria que isso não era fácil, nem mesmo nos escalões mais altos. Os arquivos da NKVD contêm a carta lastimosa do promotor público de Norilsk, o qual implorava que o tirassem da "região ártica", pois estava estafado e tinha saúde ruim: "Se não for possível transferir-me para o cargo de promotor em outro campo de trabalho correcional, eu gostaria de ser colocado num cargo de retaguarda ou ser dispensado da promotoria". Em resposta, ofereceram-lhe uma transferência para Krasnoyarsk, o que ele recusou, já que as condições ali (Krasnoyarsk, embora se localize ao sul de Norilsk, ainda fica na Sibéria setentrional) eram quase as mesmas.[34]
Após a morte de Stalin, ex-autoridades dos campos freqüentemente defenderam seu ganha-pão anterior descrevendo as dificuldades daquele trabalho. Quando conheci Olga Vasileevna - antiga inspetora de campos na divisão de obras viárias do Gulag -, ela me regalou com histórias da vida dura dos funcionários do sistema. Durante nossa conversa (no apartamento moscovita com que um Partido agradecido a presenteou), Olga me contou que uma vez, quando visitava um campo distante, foi convidada a dormir na casa do comandante, na cama que era do filho dele. A noite, sentiu calor e coceiras. Achando que talvez estivesse doente, acendeu a luz. "O cobertor militar cinzento parecia vivo, estando infestado de piolhos. Não eram só os presos que tinham piolhos. As chefias também." Por via de regra, quando voltava para casa de uma viagem de inspeção, Olga tirava toda a roupa antes de entrar, para deixar os parasitas do lado de fora.
Na visão de Olga Vasileevna, o trabalho de comandante de campo era dificílimo. "Não era brincadeira. Ficava-se encarregado de centenas, milhares de presos. Havia reincidentes e assassinos, os condenados por crimes graves, pessoas das quais se podia esperar tudo. Com isso, era preciso estar em guarda o tempo todo." Os comandantes, embora pressionados a trabalhar tão eficientemente quanto possível, descobriam que também precisavam resolver todo tipo de problema:
Chefe de um projeto de construção, era igualmente chefe do campo e passava pelo menos 60% do tempo não nas obras, tomando decisões de engenharia, mas no campo, lidando com dificuldades. Alguém adoecia, uma epidemia podia ter irrompido ou um acidente acontecia e aí alguém tinha de ser levado para o hospital, e alguém precisava de um carro, cavalo ou carroça.
Olga também disse que os "patrões" não necessariamente comiam bem em Moscou, sobretudo durante a guerra. No refeitório da sede do Gulag, serviam-se repolho, sopa e kasha. "Não me lembro de haver carne. Nunca vi nenhuma." Enquanto Stalin viveu, os funcionários do Gulag na capital soviética trabalhavam das nove da manhã às duas ou três da madrugada, todos os dias. Olga só via o filho aos domingos. Todavia, após a morte de Stalin, as coisas melhoraram. S. N. Kruglov, então chefe da NKVD, emitiu ordem que concedia uma hora de almoço aos funcionários comuns da direção geral. Em 1963, Olga e o marido também receberam um apartamento muito grande no centro de Moscou, o mesmo onde ela morava em 1998, quando a conheci.[35]
Enquanto Stalin era vivo, porém, o trabalho no Gulag era menos recompensado, cabendo à direção geral resolver de diferentes maneiras o problema da falta de atrativos do emprego. Em 1930, quando o sistema ainda era visto como parte da expansão econômica daquela época, a OGPU realizava campanhas de publicidade interna, solicitando entusiastas para atuar no que então eram os novos campos do extremo norte:
A dedicação e a energia dos chekistas criaram e fortaleceram os campos de Solovetsky, desempenhando papel amplo e positivo no desenvolvimento industrial e cultural do setentrião europeu de nosso território. Os novos campos, assim como Solovetsky, devem exercer função reformadora na economia e na cultura das regiões mais longínquas. Para tal responsabilidade [...], necessitamos de chekistas especialmente rijos, voluntários à cata de trabalho duro.
A eles se ofereciam, dentre outras coisas, salário até 50% maior, férias anuais de dois meses e, após três anos, um abono correspondente a três meses de salário, mais três meses de férias. Além disso, os administradores do primeiro escalão receberiam rações mensais gratuitas e teriam acesso a "rádio e instalações esportivas e culturais".[36]
Posteriormente, quando desapareceu de vez o entusiasmo sincero (se é que este algum dia existira), os incentivos se tornaram mais sistemáticos. Os campos eram classificados de acordo com a distância e o rigor das condições locais. Quanto mais longínquos e mais duros eles eram, mais se pagava aos elementos da NKVD para trabalhar lá. Alguns campos se preocupavam em organizar esportes e outras atividades recreativas para seus funcionários. A NKVD também construiu spas especiais na região do mar Negro (em Sochi e Kislovodsk), de modo que os oficiais de maior patente pudessem passar suas longas férias com conforto, ao sol.[37]
A direção geral criou ainda escolas onde os oficiais do Gulag pudessem aprimorar suas qualificações, para assim subir na hierarquia. À guisa de exemplo, uma delas, estabelecida em Kharkov, dava cursos não só de "História do Partido" e "História da NKVD" (disciplinas obrigatórias), mas também de direito penal, normas e técnicas de administração dos campos, contabilidade e assuntos militares.[38] Quem se dispunha a trabalhar para a Dalstroi, na distante Kolyma, podia até ter a prole reclassificada como "filhos de trabalhadores", o que lhes garantia tratamento preferencial na admissão aos estabelecimentos de ensino superior; esse se revelou um estímulo popularíssimo.[39]
O dinheiro e os benefícios decerto bastavam para atrair alguns funcionários também nos escalões mais baixos. Muitos consideravam o Gulag simplesmente a menos ruim das escolhas possíveis. Na URSS de Stalin (uma terra de guerra e fome), o emprego de carcereiro ou guarda prisional podia significar imensurável ascensão social. Susanna Pechora, prisioneira no começo dos anos 1950, se recordaria de ter conhecido uma carcereira que trabalhava no campo de concentração porque era a única maneira de fugir à penúria extrema da fazenda coletiva onde nascera. "Com o salário, alimentava os sete irmãos e irmãs."[40] Outro memorialista conta a história de Maria Ivanova, moça que viera trabalhar voluntariamente num campo em 1948. Esperando dessa maneira escapar à vida numa fazenda coletiva e, mais ainda, arrumar marido, Maria tornou-se, isto sim, amante de uma série de autoridades de posto hierárquico sempre mais baixo. Acabou morando num quartinho com a mãe e os dois filhos ilegítimos.[41]
Mas nem sempre a perspectiva de salário elevado, férias longas e ascensão social bastava para trazer trabalhadores para o sistema, em especial nos escalões mais baixos. Em épocas de muita escassez de pessoal, as comissões soviéticas de mão-de-obra simplesmente despachavam trabalhadores para onde eram requisitados, sem necessariamente informá-los de onde iam. Zoya Eremenko, ex-enfermeira do Gulag, foi mandada direto do curso profissionalizante para um emprego que, disseram-lhe, seria num canteiro de obras. Quando chegou, descobriu que se tratava de um campo prisional, o Krasnoyarsk 26. "Ficamos surpresas e assustadas, mas, quando nos familiarizamos com o local, constatamos que ali as pessoas e o trabalho clínico eram os mesmos que nossos estudos nos haviam levado a esperar."[42]
Particularmente trágicos eram os casos das pessoas obrigadas a trabalhar nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial. Milhares de ex-soldados do Exército Vermelho que haviam combatido no avanço para a Alemanha -assim como civis que, na condição de deportados ou refugiados, tinham "morado no exterior" durante a guerra - foram detidos ao retornar para a URSS e confinados a "campos de triagem", onde seriam minuciosamente interrogados para ver se caíam em contradição. Às vezes, os que não eram presos acabavam sendo enviados de imediato para trabalhar no serviço de guarda prisional. No começo de 1946, havia 31 mil pessoas nessa última situação, e em alguns campos elas correspondiam a 80% dos guardas.[43] Tampouco podiam ir-se embora com facilidade. Muitas haviam sido privadas de sua documentação (passaporte, licença de moradia, certificado de reservista). Sem ela, não tinham como deixar os campos, nem como procurar emprego. Entre trezentos e quatrocentos desses indivíduos se suicidavam a cada ano. Um que tentou fazê-lo explicou o motivo: "Já estou no serviço há muito tempo, ainda não me deram a licença de moradia, quase todo dia chega um polícia com ordem de sairmos do apartamento, e todo santo dia isso causa brigas lá em casa".[44]
Outros simplesmente se degeneravam. Karlo Stajner, comunista iugoslavo que esteve preso em Norilsk durante e após a guerra, recordaria que tais guardas eram "extraordinariamente diferentes daqueles que não haviam lutado no conflito":
Para começo de conversa, mostravam sinais claros de desmoralização. Podia-se ver isso na disposição a serem subornados pelas prisioneiras, tornarem-se clientes das mais bonitinhas ou permitirem que criminosos saíssem das turmas de trabalho para invadir alguma moradia e depois dividir com eles o produto do furto. Esses guardas não temiam a severa punição que sofreriam caso seus superiores descobrissem tais delitos.[45]
Uns poucos, muito poucos, protestavam. Os arquivos registram, por exemplo, o caso de certo Danilyuk, recruta refratário, que se negou terminantemente a ir para a guarda prisional armada, alegando o seguinte: "De jeito nenhum quero servir nos órgãos do Ministério do Interior". Não arredou pé dessa posição, apesar daquilo que os arquivos denominam "sessões de tratamento", que por certo eram longos períodos de intimidação e talvez incluíssem até espancamentos. Danilyuk acabou sendo dispensado. Pelo menos no caso dele, premiou-se a recusa sistemática e persistente em trabalhar para o Gulag.[46]
Entretanto, no final das contas, o sistema realmente gratificava seus membros mais afortunados e leais, alguns dos quais obtinham mais do que melhores rações ou mera ascensão social: quem fazia seus trabalhadores cativos renderem grandes quantidades de ouro ou madeira para o Estado seria mesmo recompensado ao fim e ao cabo. E, embora a média dos lagpunkts mineiros ou madeireiros nunca oferecesse boas condições de vida (nem mesmo para os que os dirigiam), as sedes de alguns dos campos maiores se tornaram de fato muito confortáveis com o passar do tempo.
Nos anos 1940, as cidades que ficavam no centro dos complexos maiores (Magadan,Vorkuta, Norilsk, Ukhta) já eram grandes e movimentadas, tendo lojas, cinemas, teatros e parques. Desde a fase pioneira do Gulag, as oportunidades para desfrutar a vida haviam se ampliado bastante. Nos campos maiores, o primeiro escalão recebia salários mais elevados, abonos e benefícios melhores e férias mais longas que no mundo do trabalho comum. Também tinham mais acesso a comestíveis e bens de consumo que estavam em falta nos demais lugares. "Em Norilsk, a vida era melhor que em qualquer outro lugar da União Soviética", lembraria Andrei Cheburkin, capataz e depois burocrata ali:
Em primeiro lugar, todos os chefes dispunham de empregadas - prisioneiras. Em segundo lugar, a comida era impressionante. Havia peixes de todo tipo. Podia-se sair para apanhá-los nos lagos. E, se no resto da União Soviética havia cartões de racionamento, aqui vivíamos praticamente sem eles. Carne. Manteiga. Caso se quisesse champanhe, por que não pegar também siri? Havia tanto! Caviar? Eram barris cheios. Estou falando dos chefes, claro, não dos trabalhadores. Mas, também, os trabalhadores eram prisioneiros. [...]
O dinheiro era bom. [...] Quando se era brigadeiro [na hierarquia dos oficiais], podia-se receber 6 mil, 8 mil rublos. Na Rússia central, não se conseguia mais que 1.200. Vim para Norilsk para trabalhar como supervisor de trabalho num departamento especial da NKVD que prospectava urânio. Deram-me salário de supervisor: primeiro recebia 2.100 rublos; depois, a cada seis meses, tinha aumento de 10%; era cerca de cinco vezes mais do que ganhava na vida civil normal.[47]
O primeiro argumento de Cheburkin ("todos os chefes dispunham de empregadas") é fundamental, pois, na realidade, aplicava-se não só às chefias, mas a todo o mundo. Estritamente falando, era proibido usar presos como domésticos. Mas a prática estava disseminada, conforme as autoridades bem sabiam; e, apesar das freqüentes tentativas de eliminá-la, ela persistiu.[48] Em Vorkuta, Konstantin Rokossovsky (oficial do Exército Vermelho que se tornaria general, depois marechal e depois ministro da Defesa da Polônia stalinista) serviu de criado para um "carcereiro boçal chamado Buchko, e suas funções consistiam em trazer as refeições do sujeito, arrumar e aquecer o chalé dele, e assim por diante".[49] Em Magadan, Evgeniya Ginzburg trabalhou durante algum tempo como lavadeira para a mulher de um administrador do campo.[50]
Em Kolyma, Thomas Sgovio também foi criado pessoal de um guarda graduado, preparando-lhe a comida e tentando providenciar bebida alcoólica para ele. O homem passou a confiar em Sgovio. "Thomas, meu garoto", ele dizia, "lembre-se de uma única coisa: cuide da minha carteirinha do Partido. Quando eu ficar bêbado, certifique-se de que eu não a perca. Você é meu criado - e, se eu vier a perdê-la, terei de matá-lo como a um cão... e não quero fazer isso."[51]
Para os verdadeiros maiorais, a criadagem era só o começo. Ivan Nikishov, que se tornou chefe da Dalstroi em 1939, após os expurgos, e se manteve no cargo até 1948, ficou tristemente célebre por ter acumulado riqueza em meio à pobreza extrema. Pertencia a uma geração diferente daquela de seu predecessor, Berzin; a de Nikishov já estava muito distante dos tempos da Revolução e da Guerra Civil - que tinham sido anos de muita escassez e, contudo, de mais ardor. Talvez como resultado disso, Nikishov não tinha pruridos de usar sua posição para viver bem. Dotou-se de "um grande contingente de seguranças, mais automóveis de luxo, gabinetes amplos e uma magnífica dacha com vista para o Pacífico".[52] Segundo relatos de presos, essa última teria tapetes orientais, peles de urso e candelabros de cristal. Consta que, na luxuosa sala de jantar, ele e a segunda mulher (Gridasova, jovem e ambiciosa comandante de campo) consumiam carne de urso, vinho do Cáucaso, frutas trazidas do sul por via aérea, tomates e pepinos frescos cultivados em estufas particulares.[53]
Nikishov não era o único a usufruir uma vida de luxos. Lev Razgon, em sua inesquecível descrição do coronel Tarasyuk (comandante do Ustvymlag durante a guerra), registra excessos semelhantes:
Ele vivia como um romano que houvesse sido designado governador de alguma província bárbara recém-conquistada. Hortaliças, frutas e flores bastante estranhas ao norte eram cultivadas para ele em estufas especiais. Para fazer sua mobília, procuraram-se os melhores marceneiros. Os mais famosos costureiros do passado recente vestiam sua esposa, extravagante e voluntariosa. Quando não se sentia bem, ele não era examinado por nenhum doutorzinho que, como profissional livre, se vendera ao Gulag [...]. Não, senhor: Tarasyuk era tratado por catedráticos que haviam dirigido as maiores clínicas de Moscou e agora cumpriam longas penas nas enfermarias de remotos campos na floresta.[54]
Com freqüência, exigia-se dos presos que ajudassem a satisfazer tais caprichos. Isaac Vogelfanger, médico prisioneiro de campo de concentração, via-se constantemente sem álcool medicinal porque seu farmacêutico o usava para fazer bebida. O comandante do campo então a servia a dignitários em visita: "Quanto mais álcool consomem, melhor conceito têm do trabalho no Sevurallag". Vogelfanger também viu um cozinheiro do campo preparar um "banquete" para visitantes, usando coisas que economizara para a ocasião: "caviar, enguia defumada, pãezinhos quentes feitos com massa francesa e cogumelo, salmão ártico com galantina de limão, ganso e leitão assados".[55]
Foi também nesse período, os anos 1940, que chefes como Nikishov principiaram a considerar-se mais que simples carcereiros. Alguns até começaram a competir entre si, numa versão grotesca das disputas de prestígio entre vizinhos. Almejavam ter os melhores grupos teatrais de presos, as melhores orquestras de presos, as melhores obras artísticas de presos. Lev Kopelev estava no Unzhlag em 1946, época em que o comandante selecionava, tão logo os presos chegavam nos trens, "os atores, músicos e artistas mais gabaritados, aos quais dava os melhores serviços, de faxineiros e zeladores no hospital". O campo ficou conhecido como "refúgio de artistas".[56] A Dalstroi também possuía uma trupe de detentos, o Sewostlag Club, que se apresentava em Magadan e alguns dos campos periféricos da região mineira, beneficiando-se dos muitos cantores e dançarinos famosos encarcerados em Kolyma.[57] Lev Razgon descreve ainda o comandante do Ukhtizhemlag, que "mantinha uma verdadeira companhia de ópera em Ukhta", dirigida por um célebre ator soviético. "Empregava" igualmente uma famosa bailarina do Bolshoi, assim como cantores e músicos conhecidos:
Às vezes, o chefe do Ukhtizhemlag fazia uma visita a seus colegas da vizinhança. Embora o propósito oficial fosse "trocar experiências", essa descrição chã esconde os complexos preparativos e protocolo, que mais se assemelhavam à visita de um chefe de Estado estrangeiro. Os chefes vinham acompanhados de amplo entourage de diretores de seção; preparavam-se acomodações especiais de hotel para eles; os percursos eram minuciosamente planejados; e traziam-se presentes. [...] O chefe do Ukhtizhemlag também trazia consigo seus melhores artistas, de modo que os anfitriões pudessem ver que lá a cultura florescia tanto quanto ali, se não mais.[58]
Até hoje, o velho teatro do Ukhtizhemlag - uma vasta construção branca e colunar, com símbolos cênicos no frontão - é um dos edifícios mais notáveis da cidade de Ukhta. Dele, pode-se ir a pé para a antiga residência do comandante do campo, uma espaçosa casa de madeira à beira de um parque.
Entretanto, não só aqueles com gostos artísticos procuravam satisfazer caprichos próprios. Quem preferia os esportes tinha igualmente a oportunidade de fundar times de futebol, que competiam uns com os outros de modo bastante renhido. Nikolai Starostin, o craque que fora encarcerado porque sua equipe tivera o azar de ganhar daquela pela qual torcia Beria, também foi mandado para Ukhta, onde o aguardavam já na estação. Foi levado para conhecer o técnico do time local, que o tratou com polidez e lhe disse que o chefe do campo solicitara especialmente a presença dele, Starostin: "o coração do general está no futebol. Foi ele quem trouxe você para cá". Starostin passaria grande parte de sua carreira no Gulag servindo de técnico de times para a NKVD, indo de campo em campo para atender às solicitações dos comandantes que o queriam como treinador.[59]
Muito de vez em quando, a notícia de tais excessos despertava alarme, ou no mínimo interesse, de Moscou. Em certa ocasião, Beria, talvez respondendo a queixas, ordenou um inquérito secreto sobre o suntuoso estilo de vida de Nikishov. O relatório resultante confirma, entre outras coisas, que em determinada vez Nikishov gastou 15 mil rublos (na época uma quantia imensa) num banquete para comemorar a visita da Companhia de Opereta de Khabarovsk.[60] O relatório também condena a "atmosfera de servilismo" em torno de Nikishov e da esposa, Gridasova: "A influência de Gridasova é tão grande que até os auxiliares imediatos de Nikishov atestam que só conseguirão exercer suas funções enquanto ela os vir com bons olhos".[61] Entretanto, não se tomou nenhuma medida. Gridasova e Nikishov continuaram a reinar em paz.
Nos últimos anos, virou moda assinalar que, ao contrário do alegado por eles após a guerra, poucos alemães eram forçados a atuar nos campos de concentração ou nos esquadrões de extermínio. Há pouco tempo, um estudioso afirmou que a maioria o fizera voluntariamente - conclusão que despertou certa controvérsia.[62] No caso da Rússia e dos outros Estados pós-soviéticos, a questão precisa ser examinada de maneira diversa. Com muita freqüência, os funcionários dos campos, bem como a maior parte dos outros cidadãos soviéticos, tinham pouca escolha. Uma comissão de mão-de-obra simplesmente lhes designava um local de trabalho, e eles eram obrigados a ir para lá. A falta de opção estava embutida no próprio sistema econômico soviético.
Todavia, não é exato dizer, como tentaram alguns, que os oficiais e guardas armados da NKVD "não estavam melhor que os presos que eles comandavam", ou que eram vítimas do mesmo sistema. Pois, embora talvez houvessem preferido trabalhar em outro lugar, os funcionários do Gulag, tão logo ingressavam no sistema, realmente tinham opções, muito mais do que seus equivalentes nazistas, cujas atribuições eram definidas de modo mais rígido. No Gulag, podiam escolher entre a brutalidade e a bondade. Podiam escolher entre fazer os presos trabalharem até a morte e manter tantos deles vivos quanto fosse possível. Podiam escolher entre demonstrar compaixão pelos presos, de cuja sina talvez já houvessem partilhado, e aproveitar-se de uma maré temporária de sorte e oprimir seus antigos e futuros companheiros de sofrimento.
No histórico pregresso desses indivíduos, nada necessariamente indicava qual opção fariam, pois tanto os administradores quanto os guardas comuns provinham de etnias e ambientes os mais diversos, tal qual os presos. Aliás, quando lhes pedem que descrevam o caráter dos guardas, os sobreviventes do Gulag sempre respondem que ele variava bastante. Solicitei a mesma coisa a Galina Smirnova, a qual lembrou que "eles, assim como todo mundo, eram diferentes uns dos outros".[63] Anna Andreevna me contou que "havia sádicos doentios e pessoas absolutamente boas e normais". Anna também recordou o dia, logo após a morte de Stalin, em que o contador-chefe do campo correu de repente para o escritório de contabilidade em que presas trabalhavam, deu vivas, abraçou-as e, gritando, deu a entender que elas recuperariam a liberdade.[64]
Irena Arginskaya me disse que seus guardas não apenas eram "pessoas de tipos muitos diferentes", mas também mudavam com o passar do tempo. Os soldados conscritos, em especial, portavam-se "como animais" quando eram novos no serviço, pois haviam sido intoxicados pela propaganda; contudo, "depois de algum tempo, eles -não todos, mas grande parte - começavam a entender as coisas e freqüentemente mudavam".[65]
É bem verdade que as autoridades soviéticas exerciam alguma pressão tanto sobre os administradores quanto sobre os guardas, desencorajando-os de demonstrar bondade para com os presos. O arquivo da inspetoria-geral do Gulag registra o caso do chefe da divisão de suprimentos do Dmitlag, Levin, que em 1937 sofreu vigorosa investigação por causa de sua leniência. O crime de Levin foi ter permitido que um preso se encontrasse com o irmão, também preso - no sistema prisional, os parentes eram normalmente mantidos bem longe uns dos outros. Levin também foi acusado de ser demasiado amistoso com os zeks em geral, e com um grupo de supostos mencheviques em especial. Levin (ele próprio ex-prisioneiro no Canal do Mar Branco) contra-argumentou que não sabia que eram mencheviques. Dado que o ano era 1937, Levin foi condenado assim mesmo.[66]
No entanto, tais imposições não eram aplicadas com rigor. Aliás, vários comandantes até ficaram famosos pela brandura para com os presos. O historiador e publicista dissidente Roy Medvedev, em Que a história julgue (seu ataque ao stalinismo), descreve um comandante de campo, VA. Kundush, que levou muito a sério as exigências de aumento de produção durante a guerra. Kundush colocou os presos mais instruídos em funções administrativas e passou a tratar bem os detentos, até providenciando a soltura antecipada para alguns deles. Na época, o empreendimento que ele dirigia recebeu o "Estandarte Vermelho da Boa Gestão". Mas, quando a guerra acabou, Kundush também foi aprisionado, talvez por causa da mesma atitude humana que tanto expandira a produção em seu campo.[67]
Lev Razgon fala da prisão transitória incomum pela qual ele e a mulher, Rika, passaram em Georgievsk:
As celas eram não apenas varridas, mas também lavadas, o piso tanto quanto as tábuas dos leitos. A comida era tão substanciosa que saciava até a fome constante dos prisioneiros em trânsito. Podíamos realmente ficar limpos na casa de banhos. Havia até um recinto especial, completamente equipado, onde as mulheres podiam empetecar-se (e isso, mais do que qualquer outra coisa, espantou Rika).[68]
Existiam outros administradores assim. Em certa altura de sua vida no Gulag, Genrikh Gorchakov, judeu russo aprisionado em 1945, foi designado para um campo de inválidos no complexo do Siblag. Fazia pouco tempo, a direção do campo fora assumida por um novo comandante, um ex-oficial de linha de frente que não conseguira arrumar nenhum outro emprego após a guerra. Levando o cargo a sério, ele construiu novos alojamentos, cuidou para que os presos tivessem colchões e até lençóis e reorganizou o sistema de trabalho, transformando o campo por completo.[69]
Outro ex-zek, Aleksei Pryadilov, encarcerado aos dezesseis anos, foi enviado para um campo agrícola nos montes Altai. Ali, o comandante "administrava o campo como uma organização econômica e tratava os presos não como criminosos e inimigos que precisava 'reabilitar', mas como trabalhadores. Ele estava convencido de que não havia lógica em tentar fazer que gente faminta produzisse trabalho decente".[70] Por vezes, até os inspetores do Gulag descobriam bons comandantes. Em 1942, um fiscal visitou o Birlag e constatou que "os presos dessa fábrica faziam excelente trabalho porque as condições deles também eram excelentes". Os alojamentos eram limpos, e todos os presos tinham lençóis e cobertores próprios, além de boas roupas e calçados.[71]
Havia também formas mais diretas de bondade. A memorialista Galina Levinson se recordaria de um comandante de campo que dissuadiu uma prisioneira de abortar. "Quando você sair do campo, estará sozinha", ele lhe disse. "Pense no quanto será bom ter um filho." A mulher lhe seria grata até o fim da vida.[72] Anatolii Zhigulin também escreveria sobre o "bom" comandante de campo que "salvou centenas da morte", chamava aqueles a seu cargo de "camaradas prisioneiros", desafiando as ordens, e mandava o cozinheiro alimentá-los melhor. Segundo Zhigulin, era óbvio que "ele ainda não conhecia as normas". Mariya Sandratskaya, encarcerada por ser esposa de um "inimigo do povo", também conta de um comandante que dava especial atenção às mulheres com filhos, assegurando-se de que a creche fosse bem administrada, as lactantes recebessem comida suficiente e as mães não trabalhassem demais.[73]
Na realidade, a bondade era possível. Em todos os níveis, sempre havia uns poucos que resistiam à propaganda que tachava todos os presos de inimigos; sempre havia uns poucos que compreendiam a verdadeira situação. E um número surpreendente de memorialistas registra algum episódio de benevolência de um guarda. "Não duvido", escreveu Evgenii Gnedin, "de que no enorme exército de administradores dos campos houvesse trabalhadores íntegros que ficassem angustiados com seu papel de feitores de pessoas completamente inocentes".[74] Mas, ao mesmo tempo, a maioria dos memorialistas também se admira de quanto tal compreensão era fora do comum. Isso porque, apesar de uns poucos exemplos do contrário, prisões limpas não eram a regra; a vida em muitos campos equivalia a uma sentença de morte; e, sobretudo, a maior parte dos guardas tratava os detentos com indiferença, na melhor das hipóteses, ou rematada crueldade, na pior.
Repito: em lugar algum se exigia crueldade. Ao contrário: quando proposital, esta era oficialmente desaprovada pela liderança central. Guardas e administradores que se mostravam desnecessariamente severos com os presos podiam ser punidos, e muitas vezes o eram. Os arquivos do Vyatlag contêm informes sobre guardas castigados por "espancarem sistematicamente zeks", furtar pertences dos detentos e estuprar prisioneiras.[75] Os arquivos do Dmitlag assinalam as condenações penais impostas a administradores que haviam sido acusados de, estando embriagados, terem surrado presos. Os arquivos centrais do Gulag também registram punições a comandantes de campo que espancavam presos, os torturavam durante investigações ou os trasladavam sem indumentária de inverno adequada.[76]
Contudo a crueldade persistia. Por vezes, era verdadeiramente sádica. Viktor Bulgakov, prisioneiro nos anos 1950, se recordaria de um guarda, um cazaque analfabeto, que parecia ter prazer em obrigar os presos a ficar parados, congelando aos poucos, na neve; e de outro que gostava de "exibir força e surrar detentos" sem nenhum motivo.[77] Os arquivos do Gulag também trazem, entre muitos outros registros semelhantes, o relato sobre o camarada Reshetov, chefe de um dos lagpunkts da Volgostroi o qual punia zeks colocando-os em celas geladas e mandava presos enfermos trabalharem a temperaturas baixíssimas, o que causava a morte de muitos em serviço.[78]
Com maior freqüência, a crueldade não se devia tanto ao sadismo quanto ao egoísmo. Guardas que atiravam em presos fujões recebiam gratificação financeira e podiam até ganhar férias em casa. Por isso, ficavam tentados a estimular tais "fugas". Zhigulin descreve o resultado:
O guarda gritava para alguém na coluna: "Você aí, traga-me aquela tábua!"
"Mas está do outro lado da cerca!"
"Não interessa - vá buscar!"
O preso ia e era abatido por uma rajada de metralhadora.[79]
Esses episódios eram comuns - conforme os arquivos mostram. Em 1938, quatro guardas da Vokhr que trabalhavam no Vyatlag foram condenados pelo homicídio de dois presos que eles tinham "incitado" a fugir. Na seqüência, descobriu-se que o comandante da divisão e seu assistente também haviam se apossado de pertences dos presos.[80] O escritor Boris Dyakov, em suas memórias "pró-soviéticas" do Gulag (publicadas na URSS em 1964), menciona igualmente a prática de provocar fugas.[81]
Assim como nos trens de traslado, a crueldade nos campos parecia derivar da raiva ou do tédio de precisar realizar uma atividade servil. Quando trabalhava como enfermeira num hospital de Kolyma, a comunista holandesa Elinor Lippe passou uma noite à cabeceira de um paciente que estava com pleurisia e febre alta. Além disso, um carbúnculo que ele tinha nas costas estourara por causa do guarda que o trouxera ao hospital:
Com voz entrecortada e dolorida, contou-me que o guarda quisera concluir aquela marcha inconveniente o quanto antes. Por isso, durante horas, usara de pauladas para forçar o preso, enfermo e febril, a seguir adiante. No final da marcha, ameaçara quebrar-lhe todos os ossos se dissesse no hospital que o guarda o espancara.
Apavorado até o fim, o homem se negou a repetir a história na presença de não-prisioneiros. "Nós o deixamos morrer em paz", escreveria Elinor, "e o guarda continuou a surrar presos sem ser incomodado."[82]
Na maioria das vezes, porém, a crueldade dos guardas de campo soviéticos era irrefletida, néscia e preguiçosa, do tipo que se poderia demonstrar para com bois ou ovelhas. Se não se ordenava explicitamente aos guardas que maltratassem os prisioneiros, eles tampouco eram instruídos a considerá-los plenamente humanos, em especial no caso dos presos políticos. Pelo contrário: envidavam-se grandes esforços para cultivar o ódio pelos detentos, sempre descritos como "criminosos perigosos", "espiões e sabotadores que tentavam destruir o povo soviético". Tal propaganda tinha enorme efeito sobre pessoas que já estavam amarguradas pelo infortúnio, pelo emprego indesejado, pelas más condições de vida.[83] Também moldava a visão dos empregados livres do Gulag - os moradores locais que trabalhavam nos campos e não eram funcionários da NKVD - tanto quanto dos guardas, como recordaria um preso:
Em geral, éramos separados dos trabalhadores livres por um muro de desconfiança mútua. [...] Para eles, nossos vultos cinzentos, conduzidos em turmas e às vezes guardados por cães, provavelmente constituíam algo muito desagradável, em que era melhor não pensar.[84]
Isso já era verdade nos anos 1920, quando os guardas de Solovetsky faziam prisioneiros enregelados pular de pontes. As coisas ficaram piores, é claro, no final da década de 30, com a redução dos presos políticos a "inimigos do povo" e o endurecimento do regime prisional nos campos. Em 1937, ao saber que um grande contingente de trotskistas estava a caminho de Kolyma, o chefe do campo, Eduard Berzin, disse a um grupo de colegas que, "se esses cachorros [...] cometeram sabotagem por lá, vamos garantir que aqui eles trabalhem pela União Soviética; temos meios de fazê-los trabalhar".[85]
Mesmo depois de terminado o Grande Terror, a propaganda nunca chegou a arrefecer. Durante toda a década de 1940 e parte da década de 50, os presos eram regularmente descritos como colaboracionistas e criminosos de guerra, traidores e espiões. Dentre os diferentes epitetos para aqueles nacionalistas ucranianos que começaram a derramar-se nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial, incluíam-se "cães servis e traiçoeiros dos sicários nazistas", "fascistas germano-ucranianos" e "agentes da espionagem estrangeira". Nikita Khrutchev, então líder soviético da Ucrânia, declarou numa plenária do Comitê Central que os nacionalistas ucranianos haviam se suicidado "ao tentar agradar a seu amo, Hitler, e pegar uma pequena parcela do butim por seus vis serviços".[86] Durante a guerra, os guardas chamavam quase todos os presos políticos de "fascistas", "hitleristas" ou "vlasovistas" (seguidores do general soviético Vlasov, que desertara do Exército Vermelho e apoiara Hitler).
Isso era especialmente doloroso para os judeus, para os veteranos que haviam combatido com bravura os alemães e para os comunistas estrangeiros que haviam fugido do fascismo em seus próprios países.[87] "Não somos fascistas; na maioria, somos ex-membros do Partido", disse indignado o iugoslavo Karlo Stajner a um grupo de detentos com ficha criminal, que, zombeteiros, tinham lançado o insulto "fascista" a uma turma de trabalho constituída de presos políticos.[88] Margarete Buber-Neumann, comunista alemã que foi transferida diretamente do Gulag para o campo de concentração nazista de Ravensbruck, também escreveu que antes sé referiam repetidamente a ela como "a fascista alemã".[89] E, quando o judeu Mikhail Shreider, oficial preso da NKVD, disse que não poderia ser acusado de colaborar com Hitler, seu interrogador retrucou que Shreider não era judeu, e sim "alemão disfarçado de judeu".[90]
Esses insultos não eram só uma atitude juvenil e despropositada. Ao definirem os presos como "inimigos" ou "subumanos", os guardas se reasseguravam da legitimidade dos próprios atos. Aliás, a "retórica dos inimigos" era apenas uma parte da ideologia dos quadros do Gulag. A outra parte - vamos denominá-la "retórica da submissão total ao Estado" - insistia o tempo todo na importância do trabalho e das cifras de produção sempre crescentes, as quais eram necessárias para a continuidade da URSS. Para sermos bem diretos: podia-se justificar tudo que proporcionasse resultados. Essa tese foi maravilhosamente sintetizada por Aleksei Loginov, diretor aposentado de produção e de campos prisionais de Norilsk, numa entrevista que deu a um documentarista britânico:
Desde o início, sabíamos perfeitamente que o mundo exterior nunca deixaria nossa Revolução Soviética em paz. Não era só Stalin que percebia isso - todo comunista comum, toda pessoa comum, todos nós percebíamos que precisávamos não apenas construir, mas construir sabendo plenamente que logo estaríamos em guerra. Assim, na minha área, a busca por todas as fontes de matéria-prima - cobre, níquel, alumínio, ferro etc. - era incrivelmente intensa. Sempre tínhamos estado cientes dos enormes recursos de Norilsk - mas como explorá-los no Ártico? Por isso, o empreendimento inteiro foi posto nas mãos da NKVD, o Ministério do Interior. Quem mais conseguiria fazer aquilo? Você já sabe quantas pessoas tinham ido para a prisão. E lá precisávamos de dezenas de milhares...[91]
Loginov falava em 1990, quase meio século depois que Norilsk deixara de ser um vasto complexo prisional. Mas as palavras dele ecoam as de Anna Zakharova, mulher de um comandante de campo, escrevendo em 1964 ao jornal governamental Izvestiya - a carta não foi publicada, mas depois seria veiculada pela imprensa clandestina. Anna, assim como Loginov, falava dos sacrifícios que o marido fizera para maior glória da pátria:
A saúde dele já se dilapidou pelo trabalho com criminosos, porque aqui toda essa atividade desgasta os nervos. Gostaríamos de mudar, pois meu marido já cumpriu seu tempo de serviço, mas não querem deixá-lo ir. Comunista e oficial, ele submete-se às exigências do dever.[92]
Opiniões semelhantes me foram apresentadas por uma administradora do Gulag que preferiu permanecer anônima. Com orgulho, falou-me do trabalho que seus presos tinham feito pela URSS durante a guerra: "Todos, absolutamente todos, pagavam suas expensas com o próprio trabalho e davam tudo o que podiam para a frente de combate".[93]
Nesse quadro mais amplo da lealdade para com a URSS e seus objetivos econômicos, a crueldade cometida em nome das cifras de produção parecia admirabilíssima a seus perpetradores. A verdadeira natureza da crueldade, assim como a verdadeira natureza dos campos, podia ocultar-se atrás do economês. Após ter entrevistado em 1991 um ex-administrador do Karlag, o jornalista americano Adam Hochschild se queixou:
Pela conversa do coronel, não se saberia que se tratava de uma prisão, porque ele falou quase exclusivamente do papel do Karlag na economia soviética. Ele parecia um orgulhoso chefe regional do partido. "Tínhamos nossa própria estação agrícola experimental. A pecuária também era avançada: criamos uma raça especial, a Estepe Vermelha, assim como o gado cazaque..."[94]
Nos escalões mais altos, os administradores freqüentemente descreviam os presos como se fossem máquinas ou ferramentas, necessárias para concluir o trabalho e nada mais. De maneira explícita, os prisioneiros eram considerados mão-de-obra barata e cômoda - um insumo, tal qual os suprimentos de aço ou cimento. Mais uma vez, é Loginov, o comandante de Norilsk, quem expressa isso melhor:
Se houvéssemos mandado civis [para Norilsk], primeiro teríamos precisado construir casas para eles. E como civis conseguiriam viver ali? Com os presos, é fácil - necessita-se apenas de um barracão e um fogão com chaminé, e eles se viram. Depois, talvez um lugar para comerem. Em resumo: nas circunstâncias daquela época, os presos eram as únicas pessoas que podíamos usar em escala tão grande. Se houvéssemos tido tempo, provavelmente não teríamos feito daquele jeito.[95]
Ao mesmo tempo, o economês tornava possível aos comandantes de campo justificarem qualquer coisa, mesmo a morte: tudo era pelo bem comum. Por vezes, esse argumento era levado a verdadeiros extremos. Lev Razgon, por exemplo, relata uma conversa entre o coronel Tarasyuk, então comandante do Ustvymlag, e um médico do campo, Kogan, que cometera o erro de gabar-se ao coronel de quantos pacientes "salvara das garras da pelagra", doença causada pela inanição e conseqüente falta de proteínas. Segundo Razgon, seguiu-se este diálogo:
Tarasyuk: O que estão dando a eles?
Kogan: Todos estão recebendo a ração antipelagra determinada pelo Departamento de Saúde e Saneamento do Gulag.
Então, Kogan especificou em calorias a quantidade de proteínas.
Tarasyuk: Quantos deles vão poder trabalhar na floresta? E quando será isso?
Kogan: Bem, está claro que nenhum deles vai poder trabalhar na floresta. Nunca mais. Mas agora vão sobreviver, e será possível usá-los para serviços leves no perímetro no campo.
Tarasyuk: Pare de lhes dar rações antipelagra. Pode anotar: essas rações são para aqueles que trabalham na floresta. Os outros presos devem receber rações de inválidos.
Kogan: Mas camarada coronel! E óbvio que eu não me expliquei direito. Essas pessoas só vão sobreviver se tiverem rações especiais. Um preso inválido recebe 400 gramas de pão. Com essa ração, vão morrer em dez dias. Não podemos fazer uma coisa dessas!
Tarasyuk olhou para o médico, que estava transtornado. Havia até certa expressão de curiosidade no rosto do coronel.
"Qual é o problema? A sua ética médica o impede de fazer isso?" "Mas é claro que impede..."
"Bem, eu não ligo a mínima para a sua ética", disse Tarasyuk, calmamente, sem dar nenhuma indicação de estar irado. "Você já anotou? Agora, tratemos dos outros assuntos..."
Passado um mês, todos os 246 enfermos já haviam morrido.[96]
Os registros mostram que conversas desse tipo não eram excepcionais nem apócrifas. Relatando as condições dos presos na Volgostroi durante a guerra, um inspetor reclamou de que a administração do campo estava "interessada exclusivamente em produzir madeira [...] e não demonstrava o mínimo interesse em alimentar e vestir os presos, mandando-os trabalhar sem considerar a aptidão física, jamais se preocupando em saber se estavam sadios, trajados e nutridos".[97] E, durante uma reunião de oficiais do Vyatlag em janeiro de 1943, o camarada Avrutsky, falando na linguagem absolutamente neutra da estatística, fez o seguinte comentário: "Dispomos de 100% de nossa força de trabalho, mas não podemos cumprir nosso programa, pois o grupo B continua a crescer. Mas, se a alimentação que destinamos ao grupo B fosse direcionada a outro contingente, já não teríamos grupo B e cumpriríamos a meta".[98] Naturalmente, a expressão "grupo B" se referia a presos mais fracos, que de fato deixariam de existir caso não recebessem alimento. Os comandantes de campo podiam dar-se ao luxo de tomar tais decisões a grande distância das pessoas que seriam afetadas por elas; entretanto, no caso daqueles que se encontravam mais abaixo na hierarquia, a proximidade não necessariamente despertava mais compaixão. O preso polonês Kasimierz Zarod estava numa coluna de presos que marchava para o local de um novo campo. Praticamente não tendo recebido comida, começaram a enfraquecer-se. Por fim, um deles caiu e não conseguiu mais se levantar. Um dos guardas apontou a arma para ele. Outro ameaçou atirar:
"Pelo amor de Deus", ouvi o homem gemer, "se vocês me deixarem descansar um pouco, eu consigo alcançá-los."
"Você ou anda, ou morre", respondeu o primeiro guarda...
Eu o vi erguer e apontar o fuzil - não pude acreditar que ele fosse atirar. Nesse momento, os homens na coluna atrás de mim já haviam se reagrupado, e minha visão do que acontecia foi obstruída. De repente, porém, ressoou um disparo, seguido de outro, e percebi que o homem morrera.
Contudo Zarod relata que nem todos os que desabavam durante a marcha eram fuzilados. Caso aqueles exaustos demais para continuar andando fossem jovens, eram apanhados e postos numa carroça, onde
jaziam tal qual sacas até se recuperarem. [...] Pelo que consegui entender, o raciocínio era que os jovens podiam recobrar-se e trabalhar, mas que os velhos não valia a pena salvar. Com certeza, aqueles jogados como trouxas de roupas velhas nas carroças de suprimentos não o eram por nenhuma razão humanitária. Os guardas, embora jovens, já haviam feito aquele caminho antes e aparentemente estavam desprovidos de qualquer sentimento humano.[99]
Ainda que não haja memórias para documentar isto, tal atitude certamente afetava até aqueles que ocupavam cargos no topo do sistema de campos. Nos capítulos anteriores, citei freqüentemente relatórios encontrados nos arquivos da inspetoria-geral do Gulag, que fazia parte da promotoria soviética. Esses relatórios, redigidos com grande precisão e regularidade, são extraordinários pela honestidade. Referem-se a epidemias de tifo, falta de alimentos, escassez de itens de vestuário. Denunciam campos onde a taxa de mortalidade é "demasiado alta". Irados, acusam certos comandantes de campo de criar más condições de vida para os prisioneiros. Calculam o número de homens/dia perdidos por conta de doenças, acidentes e óbitos. Lendo-os, não se tem nenhuma dúvida de que os maiorais do Gulag em Moscou sabiam - real e verdadeiramente - como era a vida nos campos de concentração. Estava tudo lá, numa linguagem não menos franca do que a utilizada por Alexander Soljenitsin e Variam Shalamov.[100]
E no entanto, embora às vezes se fizessem mudanças e se impusessem penas judiciais a comandantes, o que impressiona nos relatórios é a própria repetitividade: eles fazem lembrar a cultura absurda das inspeções fajutas que Gogol descreveu de maneira tão maravilhosa. Era como se respeitassem as formalidades, produzissem os relatórios, expressassem a ira que era de rigor - e não ligassem para os reais efeitos nos seres humanos. Comandantes viviam sendo repreendidos por não melhorarem as condições de vida nos campos, estas continuavam a não melhorar, e a conversava acabava por aí.
Ao fim e ao cabo, ninguém obrigava os guardas a salvar os jovens e assassinar os velhos. Ninguém obrigava os comandantes de campo a matar os enfermos. Ninguém obrigava a direção geral do Gulag, em Moscou, a não atentar para o que os relatórios dos inspetores indicavam. Ainda assim, tais decisões eram tomadas abertamente, todos os dias, por guardas e administradores que pareciam convencidos do direito de tomá-las.
Tampouco a ideologia da submissão total ao Estado era exclusiva dos amos do Gulag. Os presos também eram estimulados a cooperar -e alguns o faziam.
O homem é uma criatura que consegue acostumar-se a tudo,
e creio ser essa a melhor definição dele.
Dostoievski, Recordações da casa dos mortos.[101]
Urki: a bandidagem
Para o preso político inexperiente, para a jovem camponesa presa por ter roubado um pão, para o deportado polonês despreparado, o primeiro contato com os urki (a casta criminosa da URSS) era desnorteante e aterrador. Evgeniya Ginzburg topou pela primeira vez com criminosas quando embarcou no navio para Kolyma:
Eram a nata da bandidagem: assassinas, sádicas, versadas em todos os tipos de perversão sexual [...] sem perderem tempo, já foram aterrorizando e oprimindo as "senhoras" e ficavam encantadas em descobrir que as "inimigas do povo" eram seres ainda mais desprezados e marginalizados do que elas próprias [...]. Apossavam-se de nossos pedacinhos de pão, roubavam nossos últimos trapos e pertences, empurravam-nos dos lugares que tínhamos conseguido arranjar.[102]
Viajando pela mesma rota, Aleksander Gorbatov - o general Gorbatov, herói de guerra soviético, que dificilmente poderia ser considerado covarde - teve as botas roubadas quando estava no porão do vapor Dzhurma, atravessando o mar de Okhotsk:
Um deles me golpeou com força no peito e depois na cabeça e disse, desdenhoso: "Olhem para ele - me vendeu as botas já faz dias, pegou o dinheiro e não quis mais saber de entregar!" Foram-se com o produto do roubo, rindo-se o mais que podiam e só parando para bater em mim outra vez, quando, por puro e simples desespero, fui atrás deles e pedi as botas de volta.[103]
Dezenas de outros memorialistas descrevem cenas semelhantes. Os criminosos de carreira se lançavam sobre os outros presos com o que parecia ser uma fúria louca, atirando-os para fora dos beliches nos trens e alojamentos; roubando as roupas que lhes restavam; berrando, maldizendo e xingando. Para pessoas comuns, a aparência e o comportamento dos bandidos se afiguravam estranhíssimos. O preso polonês Antoni Ekart ficou horrorizado com a "absoluta falta de inibição da parte dos urki, que satisfaziam à vista de todos as suas necessidades naturais, aí incluído o onanismo. Isso os tornava extraordinariamente similares aos macacos, com os quais pareciam ter mais em comum que com os humanos"[104] Mariya Ioffe, mulher de um bolchevique famoso, também escreveu que os bandidos faziam sexo às claras, andavam nus pelos alojamentos e não tinham nenhum sentimento uns pelos outros: "Neles, só o corpo vivia".[105]
Apenas depois de semanas ou meses nos campos, os não-inicia-dos começavam a entender que o inundo da criminalidade não era uniforme, que ele tinha uma hierarquia própria e que, na realidade, havia muitos tipos diferentes de bandido. Lev Razgon explicou: "Eles se dividiam em castas e comunidades, cada uma com a própria disciplina férrea, tendo muitas regras e costumes. Casos estes fossem desrespeitados, o castigo era severo: na melhor das hipóteses, o indivíduo era expulso do grupo; na pior, assassinado".[106]
O preso polonês Karol Colonna-Czosnowski, que se viu na situação de ser o único preso político num campo madeireiro setentrional habitado por bandidos, também observou tais diferenças:
Naquele tempo, os criminosos russos tinham muita consciência de classe. Para eles, aliás, a classe era tudo. Em sua hierarquia, os peixes grandes, como os assaltantes de trem ou de banco, eram membros da classe alta. Grisha Tchorny, chefe da máfia do campo, era um desses. No extremo oposto da escala social, ficava a arraia-miúda, como os punguistas. Eram usados como criados e mensageiros pessoais pelos maiorais e tratados com muito pouco respeito. Todos os outros criminosos juntos compunham o grosso da classe média, mas mesmo ali havia distinções.
De muitas maneiras, essa estranha sociedade era uma réplica caricaturesca do mundo normal. Nela, podíamos localizar o equivalente de cada nuance de virtude ou defeito humano. Conseguíamos sem esforço identificar, por exemplo, o ambicioso em ascensão, o alpinista social, o embusteiro, assim como o íntegro e generoso.[107]
Bem no topo daquela hierarquia, dando ordens a todos os outros, estavam os chefões. Os criminosos profissionais russos, conhecidos como urki, blatoi ou, caso estivessem na elite mais exclusivista da bandidagem, vory v zakone - expressão que se poderia traduzir por "mafiosos" -, viviam segundo regras e costumes que precediam o Gulag e que durariam mais que ele. Esses indivíduos não tinham absolutamente nada que ver com a vasta maioria dos presos do Gulag, aqueles com condenações por "crimes" contra o socialismo. Os chamados "criminosos ordinários" - pessoas condenadas por pequenos furtos eventuais, infrações das normas de trabalho ou outros crimes não-políticos - odiavam os mafiosos com a mesma veemência com que odiavam os presos políticos.
E não era de admirar: os mafiosos possuíam cultura muito diversa daquela do cidadão soviético médio. Esse universo criminoso tinha raízes profundas na bandidagem da Rússia czarista, nas corporações de larápios e mendigos que, naquele tempo, controlavam os crimes de pouca monta.[108] No entanto, essa cultura se disseminou muitíssimo mais durante as primeiras décadas do regime soviético, graças às centenas de milhares de órfãos - vítimas diretas da Revolução, da Guerra Civil e da coletivização - que haviam sobrevivido primeiro como crianças de rua e depois como bandidos. No final da década de 1920, quando os campos começaram a expandir-se em escala maciça, os criminosos de carreira já haviam se tornado uma comunidade totalmente à parte, tendo até um rigoroso código de conduta que os proibia de manter toda e qualquer relação com o Estado soviético. O verdadeiro mafioso se recusava a trabalhar, possuir documentos e cooperar de que modo fosse com as autoridades, só o fazendo para explorá-las: os "aristocratas" da peça homônima de Nicolai Pogodin, de 1944, já eram identificáveis como "mafiosos" que, por princípio, se negavam a realizar qualquer trabalho.[109]
Aliás, os programas de doutrinação e reabilitação do começo dos anos 1930 estavam, na maior parte, voltados mais para os mafiosos que para os presos políticos. Presumia-se que os bandidos, sendo sotsialnoblizkii - "socialmente próximos", ao contrário dos presos políticos, que eram sotsialnoopasnyi, "socialmente perigosos" -, pudessem regenerar-se. Mas, no fim da década de 1930, as autoridades pareciam ter desistido da idéia de recuperar os criminosos de carreira. Em vez disso, resolveram usar os mafiosos para controlar e intimidar outros presos, em especial "contra-revolucionários", os quais os bandidos abominavam com muita naturalidade.[110]
Não se tratava de um desdobramento inteiramente novo. Um século antes, criminosos que cumpriam sentença na Sibéria já odiavam os presos políticos. Em Recordações da casa dos mortos, as memórias bastante romanceadas de seus cinco anos na prisão, Dostoievski relata as observações de outro detento: "Não, eles não gostam de detentos afidalgados, sobretudo dos presos políticos; bem gostariam de matá-los, o que não é de admirar. Para começo de conversa, vocês são um tipo diferente de pessoa, não são como eles".[111]
Na URSS, desde mais ou menos 1937 até o final da guerra, a administração dos campos começou a utilizar abertamente pequenos grupos de criminosos profissionais para controlar outros presos. Durante aquele período, os mafiosos de mais alto coturno não trabalhavam; em vez disso, asseguravam-se de que outros o fizessem.[112] Lev Razgon assim descreveu:
Não trabalhavam, mas recebiam ração completa; extorquiam um tributo em dinheiro de todos os "camponeses", ou seja, de quem realmente trabalhava; pegavam metade das remessas de alimento recebidas pelos detentos, mais metade do que estes compravam do empório do campo; e roubavam descaradamente os novos contingentes de presos, apossando-se de todas as melhores roupas dos recém-chegados. Em suma, eram extorsionários, gângsteres, membros de uma pequena máfia. Todos os "criminosos ordinários" do campo - e eles constituíam a maioria - os detestavam intensamente.[113]
Alguns presos políticos descobriam maneiras de dar-se bem com os mafiosos, em especial após a guerra. Certos chefões gostavam de ter presos políticos como mascotes ou sombras. Num campo onde os presos ficavam de passagem até o destino final, Alexander Dolgun ganhou o respeito de um chefão ao espancar um criminoso de menor posição.[114] Em parte porque também derrotara um criminoso numa briga de socos, Marlen Korallov (jovem preso político, depois um dos fundadores da Sociedade Memorial de Moscou) foi notado pelo manda-chuva dos criminosos do pampo, Nikola, o qual autorizou Korallov a pôr-se perto dele no alojamento. Essa decisão alterou o status de Korallov no campo, onde de imediato passou a ser considerado "protegido" de Nikola e obter muito mais vantagens na hora de arrumar lugar para dormir. "O campo entendeu: se eu era parte da tróica em torno de Nikola, então era parte da elite [...] todas as atitudes para comigo se modificaram na mesma hora."[115]
Na maior parte das vezes, porém, o domínio dos bandidos sobre os presos políticos era absoluto. O status superior dos criminosos ajudava a explicar por que eles, nas palavras de um criminologista, se sentiam "em casa" nos campos de concentração: passavam melhor que outros presos e desfrutavam um nível de poder real que não tinham fora dali.[116] Korallov explica, por exemplo, que Nikola ficava na "única cama de ferro" do alojamento, a qual havia sido ajeitada num canto Ninguém mais dormia nela, e um bando de asseclas a rondava para garantir que as coisas continuassem assim. Eles também faziam um cortinado de cobertores nos leitos ao redor, a fim de impedir que outros espiassem o que faziam. O acesso ao espaço em torno do líder era controlado com zelo. Tais presos até consideravam suas longas condenações com uma espécie de orgulho viril. Korallov observa que
havia alguns jovens que, para reforçar sua autoridade, procuravam escapar - uma tentativa inútil - e então recebiam mais 25 anos de pena, e talvez outros tantos por sabotagem. Aí, quando apareciam num novo campo e diziam às pessoas que tinham sido condenados a cem anos, isso, seguindo a moralidade dos campos, os transformava em figurões.[117]
O status mais elevado aumentava o atrativo da bandidagem para os presos mais jovens, que às vezes eram introduzidos na fraternidade mediante complexos rituais de iniciação. De acordo com relatos compilados por secretas e administradores prisionais nos anos 1950, os novos membros do clã tinham de fazer juramento, prometendo ser "bandidos de valor" e aceitar as normas severas daquela vida. Outros mafiosos então recomendavam o noviço, talvez elogiando-o por "ter desafiado a disciplina do campo" e dando-lhe um apelido. A notícia dessa "coroação" se disseminava por todo o sistema de campos, através da rede de contatos dos criminosos, de modo que, se o novo mafioso fosse transferido para outro lagpunkt, seu status se conservaria.[118]
Esse era o sistema que Nikolai Medvedev (o qual não tem nenhum parentesco com aqueles intelectuais de Moscou) encontrou em 1946. Aprisionado na adolescência por ter furtado cereal numa fazenda coletiva, Medvedev já. ficou debaixo da asa de um dos principais chefões mafiosos quando ainda estava em traslado; então, aos poucos, iniciaram-no na bandidagem. Ao chegarem a Magadan, Medvedev foi posto para trabalhar como os outros presos; viu-se encarregado de limpar o refeitório, o que não era uma tarefa muito árdua. Seu mentor, porém, gritou para que parasse. "E, assim, não trabalhei, da mesma maneira todos os outros bandidos." Outros presos é que se incumbiam do trabalho para ele.[119]
Conforme Medvedev, a administração do campo não se preocupava com o fato de certos detentos não trabalharem. "Para ela, só interessava uma coisa: que a mina produzisse ouro - tanto ouro quanto possível - e que o campo permanecesse em ordem." E, escreve ele de modo abonador, os bandidos realmente garantiam a ordem. O que os campos perdiam em homens/hora (pelos criminosos que deixavam de trabalhar) ganhavam em disciplina. Medvedev explica que, "se alguém ofendia alguém, levava-se a queixa às autoridades da bandidagem", não às do campo. Esse sistema, afirma Medvedev, mantinha baixo o nível de desavença e violência, o qual, do contrário, teria sido inconvenientemente elevado.[120]
A avaliação positiva que Nikolai Medvedev faz do domínio da bandidagem nos campos é incomum, em parte porque descreve de dentro o mundo dos mafiosos (muitos dos urki eram analfabetos, e quase nenhum escreveu memórias), mas sobretudo porque lança sobre eles uma luz favorável. A maioria dos cronistas "clássicos" do Gulag, testemunhas do terror, dos assaltos e dos estupros que os bandidos infligiam aos outros habitantes dos campos, os odiava com ardor. "Os criminosos não são humanos", escreveu Variam Shalamov, sem meias palavras. "Os atos de perversidade que cometeram nos campos são inumeráveis."[121] Soljenitsin escreveu que "era exatamente esse mundo universalmente humano, o nosso mundo, com sua moral, seus costumes e suas relações mútuas, o que se mostrava mais odioso e mais merecedor de desdém para os bandidos, pois se contrapunha da forma mais nítida possível a seu kubla (clã) anti-social e anticívico".[122] De modo vivido, Anatolii Zhigulin descreveu como de fato funcionava a ordem que os bandidos impunham. Certo dia, enquanto estava sentado num refeitório praticamente vazio, Zhigulin ouviu dois presos brigarem por causa de uma colher. De súbito, Dezemiya, o principal lugar-tenente do maior chefão do campo, irrompeu pela porta e perguntou:
"Que barulho é esse? Por que o bate-boca? Vocês não podem perturbar a paz no refeitório."
"Olhe, ele pegou a minha colher e a trocou. Eu lhe dei uma inteira, e ele me devolveu uma quebrada..."
"Vou castigar e reconciliar os dois", disse Dezemiya, rindo à socapa. Nisto, executou dois rápidos movimentos em direção aos brigões: rápido como um raio, furou um olho de cada um deles com seu picão.[123]
A influência dos bandidos sobre a vida dos campos era decerto profunda. Sua gíria, tão distinta do russo comum que quase se torna um idioma à parte, tornou-se o mais importante meio de comunicação no Gulag. Embora esse calão fosse célebre pelo enorme e complexo vocabulário de imprecações, uma lista de palavras compiladas nos anos 1980 - muitas das quais ainda eram as mesmas usadas nos 1940 -também abrange centenas de termos para objetos comuns (aí incluídos utensílios, vestimentas e partes do corpo) que são bem diversos das palavras russas usuais. Para objetos de particular interesse (dinheiro, prostitutas, bandidos e furto), há dúzias de sinônimos. E, assim como termos genéricos para "crime" - entre eles po muzike khodit, "dançar conforme a música" -, existem muitos termos específicos para "furto" e afins: derzhatsadku (furtar em estação ferroviária), marku derzhat (furtar em trem), idti na shalynuyu (furto não-planejado) denmik (furto à luz do dia) e klyusvennik (ladrão de igreja), entre outros.[124]
Aprender a falar blatnoe slovo - "língua de bandido", às vezes chamada blatnaya muzyka, "música de bandido" - era um ritual de iniciação a que muitos presos se submetiam, não necessariamente de boa vontade. Alguns nunca se acostumavam. Uma prisioneira política escreveria:
Em tais campos, o mais difícil de agüentar são os constantes vitupérios [...] os palavrões que as prisioneiras usam são tão obscenos que se tornam insuportáveis, e elas só parecem conseguir falar umas com as outras no linguajar mais reles e vulgar. Quando começavam com aqueles xingamentos e impropérios, ficávamos com tanta raiva que costumávamos dizer entre nós: "Se uma delas estivesse morrendo aqui do meu lado, eu não lhe daria nem uma gota de água".[125]
Outros tentavam analisar essa gíria. Já em 1925, um preso de Solovetsky especulava as origens daquele vocabulário num artigo que escreveu para a Solovetskie Ostrova (uma das revistas do campo). Observava que algumas das palavras simplesmente refletiam a moralidade dos bandidos: a linguagem a respeito das mulheres era em parte obscena, em parte melosamente sentimental. Algumas das palavras surgiam do contexto: os presos usavam stukat (bater) em vez de govorit (falar) porque batiam nas paredes para comunicar-se uns com os outros.[126] Outro ex-preso comentou o fato de que várias palavras, como shmon (para "busca"), musor (para "policial") e fraier (para "não-criminoso", podendo traduzir-se também por "otário"), pareciam originar-se do hebraico ou do iídiche.[127] Isso talvez seja evidência do papel que o porto de Odessa - uma cidade em grande parte judaica, outrora a capital do contrabando na Rússia - desempenhou no desenvolvimento da cultura da bandidagem. De tempos em tempos, a administração dos campos até procurava eliminar o calão. Em 1933, o comandante do Dmitlag ordenou a seus subordinados que "tomassem as devidas medidas" para fazer os presos, assim como os guardas e administradores, pararem de utilizar o linguajar criminoso, o qual agora era "de uso geral, mesmo em cartas e discursos oficiais".[128] Não há nenhum indício de que a medida tenha surtido efeito.
Os mafiosos de mais alta posição pareciam e soavam diferentes dos outros presos. A indumentária e a moda estranha, talvez até mais que o calão, os estabeleciam como casta identificável e distinta, o que reforçava ainda mais o poder de intimidação que exerciam sobre os demais prisioneiros. Nos anos 1940, segundo Shalamov, todos os chefões mafiosos de Kolyma usavam cruzes de alumínio ao pescoço, sem nenhuma conotação religiosa ("Era uma espécie de símbolo"). Mas as modas mudavam:
Na década de 1920, os mafiosos usavam bonés de operário; antes ainda, a voga eram os quepes de oficial. Nos anos 40, durante os invernos, usavam bonés de couro sem aba, dobravam o alto das botas de feltro e tinham ao pescoço um crucifixo. Este era em geral liso, mas, se houvesse algum artista à mão, eles o obrigavam a usar uma agulha para pintar na cruz os motivos mais diversos: um coração, cartas de baralho, uma crucificação, uma mulher nua.[129]
Georgii Feldgun, também prisioneiro nos campos na década de 1940, lembraria que os bandidos tinham um andar diferenciado, "de passadas curtas, com as pernas ligeiramente abertas"; nos dentes, ostentavam coroas de ouro ou prata, uma espécie de moda:
Normalmente, o vor de 1943 circulava num costume azul-marinho de três peças, com as calças enfiadas dentro das botas. A túnica ficava debaixo do colete, com a fralda para fora. Havia também o boné, cobrindo os olhos. E tatuagens, em geral sentimentais: "Nunca esquecerei minha querida mãezinha", "A vida desconhece a felicidade".[130]
Essas tatuagens, mencionadas por muitos outros, também ajudavam a distinguir os mafiosos dos outros criminosos e a identificar o papel de cada chefão no mundo da bandidagem. De acordo com um historiador dos campos, existiam diferentes tatuagens para homossexuais, viciados, condenados por estupro e condenados por homicídio.[131] Soljenitsin é mais explícito:
Cediam sua pele brônzea para a tatuagem e, dessa maneira, gradualmente satisfaziam suas necessidades artísticas, eróticas e até morais: nos peitos, barrigas e costas uns dos outros, podiam admirar águias poderosas que se empoleiravam em desfiladeiros ou cruzavam os céus; ou uma grande marreta; ou o sol, dardejando raios em todas as direções; ou homens e mulheres em cópula; ou os órgãos de seu desfrute sexual; e, bem de repente, Lênin, Stalin ou talvez ambos apareciam ao lado de seus corações [...]. Por vezes, riam com a figura do foguista galhofeiro que lhes jogava carvão no orifício traseiro, ou com um macaco que se masturbava. E, na pele uns dos outros, liam slogans que, mesmo se já familiares, eles adoravam repetir - "Vou f... todas as minas na boca!" [,..]. Ou, na barriga da namorada de um chefão, podia haver um "Eu morro por uma boa f...!".[132]
Sendo artista profissional, Thomas Sgovio logo foi tragado pelo ramo da tatuagem. Certa vez, pediram-lhe que desenhasse o rosto de Lênin no peito de alguém: entre os bandidos, havia a crença comum de que nenhum pelotão de fuzilamento dispararia num retrato de Lênin ou Stalin.[133]
Os mafiosos também se distinguiam de outros presos na maneira de se divertir. Complexos rituais cercavam seu carteado, o qual acarretava enorme risco, tanto do próprio jogo, em que as apostas eram altas, quanto das autoridades, que puniam todos os apanhados em jogatina.[134] Entretanto, o risco era provavelmente parte do atrativo para pessoas acostumadas ao perigo: Dmitrii Likhachev, o crítico literário encarcerado em Solovetsky, observou que muitos bandidos "comparam as emoções do carteado às da consecução de um crime".[135]
Aliás, os criminosos anularam todas as tentativas da NKVD de pôr fim ao carteado. Buscas e apreensões não adiantavam de nada. Entre os bandidos, "peritos" se especializavam em produzir baralhos, procedimento que, nos anos 1940, já se tornara extremamente sofisticado. Primeiro, o expert cortava quadrados de papel com lâmina de barbear. Para assegurar-se de que as cartas fossem rijas o bastante, ele sobrepunha cinco ou seis desses quadrados, usando a "cola" que se fazia esfregando pão molhado contra um lencinho. Depois, deixava as cartas amanhecerem debaixo dos beliches, para endurecê-las. Quando ficavam prontas, estampava as figuras e números, usando um carimbo que fora entalhado do fundo de uma caneca. Para as cartas pretas, utilizava cinzas escuras. Caso se dispusesse de estreptomicina - se o médico da cadeia ou do campo a tivesse e pudesse ser subornado ou ameaçado para entregar alguma -, podia também fazer as cartas vermelhas.[136]
Os rituais do carteado eram outra parte do terror que os bandidos impunham aos presos políticos. Quando os criminosos jogavam uns com os outros, apostava-se dinheiro, pão e indumentária. Se perdiam essas coisas, apostavam as de outros presos. Gustav Herling testemunhou pela primeira vez um desses episódios quando estava num vagão Stolypin rumo à Sibéria. Viajava com outro polonês, o coronel Shklovski. No mesmo vagão, três urki, entre eles "um gorila com cara achatada de mongol", jogavam cartas.
[...] de repente, o gorila largou as cartas com brusquidão, levantou-se do banco num salto e veio para cima de Shklovski.
"Me dá o casaco!", berrou. "Eu o perdi no jogo!"
Shklovski abriu os olhos e, sem se mexer do assento, deu de ombros.
"Me dá!", rugiu o gorila, furioso. "Me dá! Senão, glaza vykolu, eu arranco os teus olhos!"
O coronel se ergueu devagar e entregou o casaco.
Só depois, no campo de trabalhos forçados, compreendi o significado daquela cena esdrúxula. Apostar nas cartas os pertences de outros presos é uma das diversões prediletas dos urki, e o principal atrativo disso está no fato de que o perdedor é obrigado a tirar à força da vítima o item previamente acordado.[137]
Uma prisioneira estava num alojamento feminino que fora todo "perdido" num jogo de cartas. Após terem ficado sabendo da notícia, as mulheres passaram dias numa espera angustiada, "incrédulas". Até que, uma noite, ocorreu o ataque. "O alvoroço foi terrível: as mulheres berraram como loucas até que homens vieram em nosso socorro [...] ao fim e ao cabo, só roubaram algumas trouxas de roupas, e a starosta foi apunhalada."[138]
O carteado, porém, podia ser não menos perigoso para os próprios criminosos de carreira. Em Kolyma, o general Gorbatov encontrou um bandido que tinha apenas dois dedos na mão esquerda. O homem explicou:
Estava jogando cartas e perdi. Não tinha dinheiro e, por isso, apostei um terno de boa qualidade - não meu, é claro, mas de um [preso] político. Eu pretendia pegar o terno de noite, quando o preso, recém-chegado, o tivesse tirado para dormir. Eu precisava entregá-lo antes das oito da manhã, mas acabaram levando o político para outro campo naquele mesmo dia. Nosso conselho de chefes se reuniu para determinar meu castigo. A parte queixosa queria que me cortassem todos os dedos da mão esquerda. Os chefes propuseram dois. Pechincharam um pouco e fecharam em três. Assim, pus a mão na mesa, e o homem para o qual eu tinha perdido pegou um picão e, com cinco golpes, arrancou meus três dedos.
Quase com orgulho, o homem concluiu: "Também temos as nossas leis, só que mais duras que as de vocês. Quando se falha com os companheiros, é preciso responder por isso".[139] E os rituais judiciais dos mafiosos eram tão complexos quanto suas cerimônias de iniciação, demandando um "tribunal", um julgamento e uma sentença, a qual podia significar surra, humilhação ou até morte. Colonna-Czosnowski presenciou uma longa e renhida partida de cartas entre dois mafiosos de alto escalão, que só terminou quando um deles já perdera todos os seus pertences. Em vez de um braço ou perna, o ganhador exigiu como penalidade uma humilhação medonha: mandou o "artista" do alojamento tatuar na cara do perdedor um pênis enorme, apontado para a boca. Minutos depois de pronta a tatuagem, o perdedor pressionou um atiçador em brasa contra o próprio rosto, apagando-a e desfigurando-se pelo resto da vida.[140] Anton Antonov-Ovseenko, filho de um destacado bolchevique, também afirmaria ter conhecido nos campos um "surdo-mudo" que perdera nas cartas e, por isso, fora proibido de usar a voz durante três anos. Mesmo quando era transferido de campo, não se atrevia a violar a condenação, pois todos os urki locais estavam cientes dela. "O desrespeito ao acertado seria punido com a morte. Ninguém escapa à lei dos bandidos."[141]
As autoridades sabiam desses rituais e, de quando em quando, procuravam intervir, nem sempre com sucesso. Num episódio em 1951, um tribunal mafioso condenou à morte um bandido chamado Yurilkin. As autoridades do campo souberam da sentença e transferiram Yurilkin, primeiro para outro campo, depois para uma prisão transitória, em seguida para um terceiro campo, numa região completamente diferente do país. Ainda assim, dois mafiosos enfim localizaram o condenado e o mataram - passados quatro anos. Depois, foram julgados e executados por homicídio na Justiça soviética, mas nem mesmo tal castigo se mostrava necessariamente coibitivo. Em 1956, a promotoria-geral da URSS fez circular um memorando em que, com frustração, se queixava de que "essa formação criminosa existe em todos os campos de trabalho correcional, e com freqüência a decisão do grupo de matar este ou aquele preso que se encontra em outro campo é ali executada sem discussão".[142]
Os tribunais mafiosos também eram capazes de impor punições a quem não pertencia à bandidagem, o que talvez explique por que inspiravam tanto terror. Lev Finkelstein, preso político no começo dos anos 1950, recordaria um desses assassínios motivados pela vingança:
Pessoalmente, vi um só homicídio, mas esse foi bem espetacular. Sabe esses espetos de papel metálicos? Quando bem afiados, são uma arma extremamente mortífera. [...]
Tínhamos um naryadchik, o homem designado para distribuir tarefas aos presos - do que ele era culpado, disso não sei. Mas os mafiosos resolveram que devia ser morto. Aconteceu quando ele estava de pé na contagem dos presos, antes de irem para o trabalho. Cada turma estava em posição de sentido, separada das outras. O naryadchik se encontrava à frente. O nome dele era Kazakhov, um homem pesadão, com uma bela pança. Um dos bandidos saiu chispando da formação e enfiou o espeto na barriga dele. Provavelmente, era um assassino experiente. Foi pego de imediato - mas tinha 25 anos de pena. Eles o julgaram outra vez, é claro, e lhe deram outros 25. Assim, a sentença se prolongaria mais alguns anos - e quem se importava?[143]
Contudo era um tanto raro que os bandidos voltassem sua "justiça" contra quem administrava os campos. No geral, se não eram exatamente leais cidadãos soviéticos, pelos menos ficavam satisfeitos -satisfeitíssimos - em cooperar na única tarefa que as autoridades da URSS lhes destinavam: dominar os presos políticos, aqueles elementos que, para de novo citarmos Evgeniya Ginzburg, eram ainda mais desprezados e marginalizados do que eles.
KONTRIKI E BYTOVYE: OS PRESOS POLÍTICOS E OS PRESOS ORDINÁRIOS
Com seu calão especial, sua indumentária característica e sua cultura rígida, os criminosos de carreira eram fáceis de identificar e de descrever. Sobre o resto dos presos, que constituíam a mão-de-obra do Gulag, torna-se muito mais difícil fazer generalizações, pois eram pessoas oriundas de todos os estratos da sociedade soviética. Aliás, durante tempo demasiado longo, nossa compreensão de quem era exatamente a maioria dos prisioneiros nos campos se viu enviesada pela dependência forçada que tínhamos em relação às memórias escritas, sobretudo às publicadas fora da URSS. Seus autores eram em geral intelectuais, com freqüência estrangeiros e quase universalmente presos políticos.
Mas, desde a glasnost de Gorbatchev, disponibilizou-se uma variedade maior de material memorialístico, junto com alguns dados arquivais. Segundo esses últimos - que devem ser tratados com um bocado de cautela -, parece que a imensa maioria dos presos não era de modo algum composta de intelectuais. Ou seja, não eram pessoas da intelligentsia técnica e acadêmica da Rússia, a qual, na prática, formava uma classe social à parte, mas operários e camponeses. Alguns números referentes aos anos 1930, quando o grosso dos presos do Gulag eram kulaks, são particularmente reveladores. Em 1934, só 0,7% da população dos campos de concentração tinha instrução superior; já 39,1% possuíam apenas escolaridade primária. Na mesma época, 42,6% eram descritos como "semi-alfabetizados", e 12% eram totalmente analfabetos. Mesmo em 1938, o ano em que o Grande Terror assolou a intelectualidade de Moscou e Leningrado, quem tinha instrução superior ainda correspondia a apenas 1,1% da população do Gulag, ao passo que mais de metade do total fizera somente o primário e um terço era semi-alfabetizado.[144]
Estatísticas comparáveis sobre a proveniência social dos detentos não parecem estar disponíveis, mas vale a pena notar que, em 1948, menos de um quarto deles eram presos políticos - aqueles condenados por crimes "contra-revolucionários", conforme o artigo 58 do Código Penal. Isso seguia um padrão preexistente. Os presos políticos corresponderam a apenas 12%-18% da população prisional nos anos de terror de 1937 e 1938; ficaram em 30%-40% durante a guerra; subiram para quase 60% em 1946, em conseqüência da anistia concedida a presos criminais após a vitória; e então permaneceram numa porcentagem estável, entre um quarto e um terço de todos os presos, pelo restante do reinado de Stalin.[145] Dada a elevada rotatividade de presos não-polí-ticos - estes freqüentemente estavam condenados a penas mais curtas e tinham mais chance de atender aos requisitos para a liberação antecipada -, é seguro dizer que a grande maioria dos que passaram pelo sistema Gulag nas décadas de 1930 e 40 se constituía de pessoas com sentenças criminais e, portanto, com maior probabilidade de serem operários e camponeses.
No entanto, embora esses números possam ajudar a corrigir impressões anteriores, eles também enganam. Analisando o novo material memorialístico acumulado na Rússia desde o colapso da URSS, fica igualmente claro que muitos dos presos políticos não se enquadravam na definição que hoje damos ao termo. Nos anos 1920, os campos realmente continham membros dos partidos antibolchevique, indivíduos que de fato se designavam "presos políticos". Nos anos 30, também havia alguns verdadeiros trotskistas - pessoas que tinham mesmo apoiado Trotski contra Stalin. Nos anos 40, após as prisões em massa na Ucrânia, nos Estados bálticos e na Polônia, uma onda de guerrilheiros e ativistas verdadeiramente anti-soviéticos fluiu para o Gulag. E, no começo da década de 50, prendeu-se um punhado de estudantes anti-stalinistas.
Todavia, entre as centenas de milhares de pessoas que eram denominadas presos políticos nos campos, a imensa maioria se compunha não de dissidentes, nem de padres que diziam missa às escondidas, nem mesmo de maiorais do Partido. Era, isto sim, de pessoas comuns, levadas de roldão durante detenções em massa, não tendo necessariamente posições políticas fortes em nenhum sentido. Olga Adamova-Sliozberg, outrora funcionária de um dos ministérios industriais em Moscou, escreveria: "Antes de minha prisão, eu levava vida bastante comum, típica de uma profissional liberal soviética que não pertencesse ao Partido. Dava duro, mas não tinha nenhuma participação especial na política nem nas questões públicas. Meus verdadeiros interesses eram o lar e a família".[146]
Se os presos políticos não eram necessariamente políticos, a esmagadora maioria dos presos criminais tampouco era necessariamente de criminosos. No Gulag, embora houvesse alguns criminosos de carreira e, durante o conflito mundial, alguns verdadeiros colaboracionistas e criminosos de guerra, a maior parte dos demais fora condenada por crimes "ordinários" ou não-políticos que, em outras sociedades, nunca seriam considerados delitos. Por duas vezes, o pai do general e político russo Alexsander Lebed se atrasara dez minutos para o trabalho numa fábrica, pelo que o sentenciaram a cinco anos no Gulag.[147] No campo de Polyansky, situado perto do Krasnoyarsk 26 (local de um dos reatores nucleares da URSS) e habitado majoritariamente por criminosos, os arquivos registram um preso "criminal" que pegou seis anos pelo furto de um único pé de galocha numa feira; outro, dez anos pelo furto de dez pães; outro (caminhoneiro que criava sozinho os dois filhos), sete anos pelo furto de três garrafas do vinho que estava entregando; e outro, cinco anos por "especulação", significando que comprara cigarros num lugar e os vendera em outro.[148] Antoni Ekart conta a história de uma mulher que foi presa porque pegou um lápis do escritório onde trabalhava; era para o filho, que não podia fazer o dever de casa porque não tinha com o que escrever.[149]
No mundo às avessas do Gulag, a probabilidade de presos criminais serem de fato criminosos equivalia à de presos políticos serem mesmo opositores ativos do regime. Em outras palavras, os criminosos nem sempre eram gente que cometera crimes de verdade. E era ainda mais raro que um preso político houvesse cometido um delito de natureza política. Isso, porém, não impedia o sistema judiciário soviético de classificá-los zelosamente. Como grupo, os contra-revolucionários tinham status ainda mais baixo que os criminosos; como já dissemos, eram considerados "socialmente perigosos", menos compatíveis com a sociedade soviética que os criminosos, "socialmente próximos". Mas os presos políticos também se classificavam segundo o parágrafo do artigo 58 do Código Penal pelo qual houvessem sido condenados. Evgeniya Ginzburg observou que, dentre os presos políticos, era muitíssimo "melhor" ter sido condenado conforme o parágrafo 10, por "agitação anti-soviética" (ASA). Eram os "tagarelas": haviam contado alguma piada infeliz a respeito do Partido ou deixado escapar alguma crítica a Stalin ou ao chefe partidário local - ou então sido acusados disso por algum vizinho invejoso. Até as autoridades dos campos reconheciam tacitamente que os "tagarelas" não haviam cometido crime nenhum, e assim os condenados por ASA descobriam que, no caso deles, às vezes era mais fácil ser designado para trabalho mais leve.
Abaixo deles, estavam os condenados por "atividades contra-revolucionárias" (KDR). Mais abaixo ainda, havia os condenados por "atividades terroristas contra-revolucionárias" (KRTD). Em alguns campos, o T adicional podia significar que o preso estava proibido de realizar outro trabalho que não os "serviços gerais" mais pesados (cortar árvores, cavar nas minas, construir estradas), em especial se a KRTD acarretara pena de dez ou quinze anos ou mais.[150]
E era possível descer ainda mais. Abaixo da KRTD, havia outra categoria: as KRTTD, que eram não qualquer atividade terrorista, mas sim as "atividades terroristas trotskistas contra-revolucionárias". "Sei de casos", escreve Lev Razgon, "em que esse T extra aparecia na documentação do preso nos campos por causa de alguma discussão, durante a contagem dos prisioneiros, com o distribuidor de tarefas ou com o chefe desse serviço, ambos os quais eram criminosos."[151] Uma mudancinha como essa podia ser a diferença entre a vida e a morte, pois nenhum capataz designaria um preso KRTTD para outra coisa senão a labuta mais pesada.
Tais regras nem sempre eram nítidas. Na prática, os presos viviam sopesando o valor das diferentes sentenças judiciais, procurando calcular que influência elas teriam em suas vidas. Variam Shalamov relata que, após haver sido selecionado para fazer um curso de paramédico que lhe teria permitido tornar-se feldsher (assistente médico, um dos serviços mais prestigiosos e confortáveis no campo), ficou preocupado com o efeito que sua sentença teria em suas possibilidades de concluir o curso: "Será que aceitariam presos políticos condenados pelo artigo 58? Só os que o tivessem sido pelo parágrafo 10? E o homem que estava comigo na traseira do caminhão? Ele também era ASA, agitação anti-soviética".[152]
As sentenças oficiais, por si sós, não determinavam o lugar dos presos políticos na hierarquia dos campos. Embora não tivessem um código de conduta rígido como o dos bandidos, nem um linguajar uniformizador, eles realmente acabavam segregando-se em grupos. Esses clãs políticos se mantinham unidos pela camaradagem, pela necessidade de defender-se ou pela visão de mundo que compartilhavam. Não ficavam à parte - tinham elementos de contato uns com os outros e com os clãs de presos não-políticos -, nem existiam em todos os campos. Mas, nas circunstâncias certas, podiam ser cruciais para a sobrevivência do prisioneiro.
Dos clãs políticos, os mais fundamentais, e, no final das contas, mais poderosos, se constituíam em torno da nacionalidade ou do lugar de origem. Esses se tornaram mais importantes durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando o número de presos estrangeiros aumentou enormemente. Surgiam de modo bem natural: o novo prisioneiro chegava e de imediato procurava nos alojamentos seus patrícios estonianos, ucranianos ou (num número ínfimo de casos) americanos, por exemplo. Walter Warwick, um dos fino-americanos que acabaram no Gulag nos anos 1930, descreve, num manuscrito que elaborou para a família, como os falantes do finlandês em seu campo se aglutinavam especificamente para proteger-se dos roubos e abusos da bandidagem: "Chegamos à conclusão de que, se quiséssemos um pouco de sossego, precisaríamos formar uma gangue. Assim, organizamos nossa própria turma, para nos ajudarmos uns aos outros. Éramos seis: dois fino-americanos [...], dois finlandeses da própria Finlândia [...] e dois finlandeses da região de Leningrado".[153]
Nem todo clã baseado na nacionalidade exibia o mesmo caráter. Há opiniões discordantes, por exemplo, sobre se os prisioneiros judeus tinham mesmo uma rede própria ou se, ao contrário, fundiam-se na população geral russa - ou, no caso do grande número de judeus polacos, na grande população geral polonesa. Parece que a resposta variava conforme a época e que muito dependia das atitudes individuais. Muitos dos judeus aprisionados no final dos anos 1930, durante a repressão contra os primeiros escalões da nomenklatura e das Forças Armadas, parecem ter-se considerado primeiro comunistas e só depois judeus. Segundo um preso, nos campos "todo o mundo virava russo -fossem caucásios, fossem tártaros, fossem judeus".[154]
Posteriormente, à medida que mais judeus chegavam com os poloneses durante a guerra, eles parecem ter formado redes étnicas reconhecíveis. Ada Federolf - que escreveu memórias junto com Ariadna Efron, filha de Maria Tsvetaeva - descreveu um campo no qual a oficina de costura (pelos padrões locais, um lugar luxuoso para trabalhar) ficava a cargo de um homem chamado Lieberman. Sempre que chegava um contingente de prisioneiros, ele percorria a multidão, gritando: "Quem é judeu? Quem é judeu?" Quando os localizava, providenciava para que viessem trabalhar consigo na oficina, poupando-os do trabalho braçal na floresta. Lieberman também ideou planos engenhosos para salvar rabinos, os quais, por dever de ofício, precisavam rezar o dia todo. Construiu um cubículo especial para certo rabino, ocultando o religioso a fim de que ninguém soubesse que ele não estava trabalhando. Lieberman também inventou para outro rabino o cargo de "controlador de qualidade". Isso possibilitava que o homem percorresse o dia inteiro as fileiras de costureiras, sorrindo para elas e orando de mansinho.[155]
No começo dos anos 1950, quando o anti-semitismo oficial soviético começou a fortalecer-se - estimulado pela obsessão de Stalin com os médicos judeus que, achava ele, estavam tentando matá-lo -, voltou a ficar difícil ser judeu. Entretanto, mesmo dessa vez, o grau de anti-semitismo parecia variar de campo para campo. Ada Purizhinskaya, aprisionada no auge do "Complô dos Médicos" (o irmão fora julgado e executado por "ter conspirado para matar Stalin"), não se recordaria de "nenhum problema em especial por ser judia".[156] Mas Leonid Trus, outro judeu encarcerado na mesma época, pensaria de modo diferente. Certa vez, disse ele, um zek mais velho o salvou de um anti-semita furibundo, que fora aprisionado por comércio de ícones. (O zek mais velho gritou para o vendilhão que este, homem que "comprava e vendia imagens de Cristo", devia envergonhar-se.)
Trus, porém, não tentava esconder o fato de que era judeu. Pelo contrário: nas botas, pintou uma estrela-de-davi, em boa parte para impedir que as roubassem. Em seu campo, "os judeus, assim como os russos, não se organizam num grupo". Isso o deixava sem companhia evidente. "Para mim [...] o pior era a solidão, a sensação de ser judeu em meio a russos, o fato de que todos tinham amigos de sua terra, ao passo que eu estava completamente só."[157]
Por causa de seu pequeno número, os europeus-ocidentais e os norte-americanos que acabavam nos campos também tinham dificuldade para formar redes fortes. Dificilmente estavam em situação de ajudar-se uns aos outros: muitos estavam de todo desorientados pela vida no Gulag, não falavam russo e achavam o rancho incomível e as condições de vida insuportáveis. Após ter visto todo um grupo de alemãs morrer na prisão transitória de Vladivostok, apesar de autorizadas a beber água fervida, a prisioneira russa Nina Gagen-Torn escreveu, só em parte com ironia, que, "se os alojamentos estiverem repletos de cidadãos soviéticos, acostumados à comida, eles suportarão o peixe salgado mesmo se estragado; mas, quando chega um grande transporte de presos da Terceira Internacional, eles todos pegam disenteria do tipo mais grave".[158] Lev Razgon também se compadecia dos estrangeiros, lembrando que "não conseguiam nem entender nem se assimilar; não tentavam adaptar-se e sobreviver; apenas se juntavam instintivamente".[159]
Mas os ocidentais - grupo que englobava poloneses, tchecos e outros leste-europeus - também tinham algumas vantagens. Eram motivo de especial fascínio e interesse, o que às vezes lhes rendia contatos, dádivas de alimento, um tratamento mais gentil. Antoni Ekart, polonês educado na Suíça, conseguiu vaga no hospital graças a um enfermeiro chamado Ackerman, oriundo da Bessarábia. "O fato de que eu provinha do Ocidente simplificava as coisas": todos estavam interessados no ocidental e queriam salvá-lo.[160] A escocesa Flora Leipman, cujo padrasto (russo) convencera a família dela a mudar-se para a URSS, usava sua nacionalidade para entreter as companheiras de cativeiro:
Eu levantava a saia, para que parecesse um kilt, e baixava as meias, para que dessem a impressão de ir só até os joelhos. Jogava o cobertor sobre os ombros, como um manto escocês, e pendurava o chapéu na cintura, como um sporran. Minha voz se elevava orgulhosamente, cantando "Annie-Laurie" e "Ye banks and braes o'boonie Doon", sempre concluindo com o "God save the King" - sem traduzir a letra.[161]
Ekart também descreveria a sensação de ser "objeto de curiosidade" para os intelectuais russos:
Em encontros especialmente organizados e cuidadosamente ocultos que tive com alguns dos mais confiáveis entre eles, falei de minha vida em Zurique, Varsóvia, Viena e outras cidades do Ocidente. Meu paletó esporte de Genebra e minhas camisas de seda eram examinados com todo o zelo, pois eram a única prova concreta do alto padrão de vida existente fora do mundo comunista. Alguns se mostravam visivelmente incrédulos quando eu dizia que podia comprar todos aqueles artigos com meu salário mensal de engenheiro júnior numa fábrica de cimento.
"Quantos ternos você tem?", perguntou um dos agrônomos. "Seis ou sete."
"Você está mentindo!", protestou um homem de não mais que 25 anos. Depois, voltou-se para os outros e disse: "Por que é que temos de tolerar essas histórias absurdas? Para tudo há limite; não somos criancinhas".
Eu encontrava dificuldade para esclarecer que, no Ocidente, uma pessoa comum que se preocupasse um pouco com a aparência procuraria ter vários ternos, pois as roupas duram mais quando podemos tirá-las de tempos em tempos. Para um membro da intelligentsia russa, o qual raramente possuía mais de um terno, era difícil entender isso.[162]
John Noble, americano pego em Dresden, também se tornou um "VIP de Vorkuta" e regalava os companheiros de campo com histórias sobre a vida nos Estados Unidos, as quais eles consideravam inacreditáveis. "Johnny", disse-lhe um deles, "você vai querer nos fazer acreditar que os trabalhadores americanos têm carro próprio."[163]
Mas, embora esses estrangeiros despertassem admiração, isso também os impedia de estabelecer os contatos estreitos que sustinham tantos prisioneiros nos campos. Flora Leipman escreveria que "até minhas novas 'amigas' do campo tinham medo de mim, já que era estrangeira mesmo para elas".[164] Antoni Ekart, quando se viu como único preso não-russo num lagpunkt, sofreu porque os cidadãos soviéticos não gostavam dele e porque o sentimento era recíproco. "Estava envolto pelo cheiro de aversão, quando não de ódio [...] ressentiam-se do fato de que eu não era como eles. A cada momento, eu percebia a desconfiança, a estultice, a má vontade, a vulgaridade inata. Tive de ficar muitas noites sem dormir, para proteger a mim e a meus pertences."[165]
Mais uma vez, os sentimentos de Ekart evocam uma época anterior. A descrição de Dostoievski do relacionamento entre criminosos polacos e russos no século XIX faz pensar que os ancestrais de Ekart tinham vivenciado a mesma coisa:
Os poloneses (falo apenas dos presos políticos) tinham para com eles uma espécie de polidez refinada e insultante; eram extremamente fechados e não conseguiam de modo algum esconder dos condenados a repulsa que sentiam por eles; os condenados, por sua vez, percebiam isso muitíssimo bem e pagavam na mesma moeda.[166]
Em posição ainda mais delicada, estavam os muçulmanos e outros presos da Ásia central e de algumas das repúblicas do Cáucaso. Sofriam com o mesmo desnorteamento que os ocidentais, mas em geral não conseguiam entreter nem interessar os russos. Conhecidos como natsmeny - acrônimo do termo russo para "minorias nacionais" -, eram parte da vida no Gulag desde o final dos anos 1920. Grande número deles fora aprisionado durante a pacificação (e sovietização) da Ásia central e do Cáucaso setentrional e mandado para trabalhar no Canal do Mar Branco, onde um coetâneo escreveu que, "para eles, tudo é difícil de entender: as pessoas que os dirigem, o canal que estão construindo, a comida que estão consumindo".[167] A partir de 1933, muitos trabalharam também no Canal Moscou-Volga, onde os chefes do campo parecem ter-se compadecido deles. Em certa altura, ordenaram a seus subordinados que estabelecessem alojamentos e turmas de trabalho distintos para esses presos, de modo que pudessem pelo menos cercar-se de patrícios.[168] Posteriormente, Gustav Herling toparia com eles num campo madeireiro do norte. Lembrar-se-ia de vê-los toda noitinha na enfermaria do campo, esperando para ser atendidos pelo médico do campo:
Mesmo na sala de espera, ficavam segurando a barriga, com dor, e, tão logo iam para a consulta, irrompiam em lamúrios aflitos, nos quais os gemidos se misturavam de maneira indistinta com o precário e curioso russo que falavam. Não havia remédio para a doença deles [...] estavam simplesmente perecendo de fome, de frio, da monótona brancura da neve, das saudades da terra natal. Seus olhos repuxados, desacostumados à paisagem setentrional, estavam sempre lacrimejantes, e suas pestanas ficavam coladas uma à outra por uma pequena crosta amarela. Nos raros dias em que ficavam livres do trabalho, os uzbeques, turcomanos e quirguizes se juntavam num canto do alojamento e punham suas roupas de festa - longos e coloridos mantos de seda e barretes bordados. Era impossível adivinhar do que falavam com tanta animação e entusiasmo, gesticulando, berrando uns com os outros e balançando tristemente as cabeças, mas eu tinha certeza de que não era a respeito do campo.[169]
A vida não se mostrava muito melhor para os coreanos - em geral cidadãos soviéticos daquela origem -, nem para os japoneses -dos quais espantosos 600 mil chegaram ao Gulag e aos campos de prisioneiros de guerra no fim do conflito mundial. Os japoneses sofriam em especial com a comida, que lhes parecia não apenas escassa, mas também estranha e praticamente inconsumível. Em conseqüência, catavam e consumiam coisas que se assemelhavam igualmente incomestível aos outros presos: ervas silvestres, insetos, besouros, cobras e cogumelos que nem os russos comiam. De vez em quando, essas iniciativas acabavam mal: há registros de prisioneiros japoneses que morreram da ingestão de ervas ou capins venenosos.[170] Uma indicação de quão isolados eles se sentiam aparece nas memórias de um preso russo que, numa biblioteca de campo, encontrou um folheto em japonês -tratava-se de um discurso do bolchevique Zhdanov. O russo o levou a um japonês seu conhecido, prisioneiro de guerra. "Pela primeira vez, eu o vi feliz de verdade. Mais tarde, disse-me que lia o folheto todos os dias, apenas para ter contato com o idioma natal."[171]
Algumas das outras nacionalidades do Extremo Oriente se adaptavam com mais facilidade. Vários memorialistas mencionam a forte organização dos chineses. Destes, alguns eram "soviéticos", nascidos na URSS; outros, trabalhadores que haviam imigrado legalmente nos anos 1920; e outros ainda, desafortunados que, por acidente ou capricho, haviam atravessado a longa fronteira sino-soviética. Um preso se recordaria de que um chinês lhe contou que ele, assim como muitos outros, fora aprisionado porque atravessara o rio Amur a nado, atraído pela vista do lado soviético:
O verde e o dourado das árvores [e] as estepes pareciam tão belas! E, em nossa região, nenhum dos que cruzavam o rio jamais voltava. Pensávamos que isso só podia significar que a vida era boa do lado de cá e, assim, resolvíamos atravessar. No instante em que chegávamos, éramos detidos e acusados segundo o artigo 58, parágrafo 6º Espionagem. Pena de dez anos.[172]
Dmitri Panin - um dos companheiros de campo de Soljenitsin - lembraria que, no Gulag, os chineses "só se comunicavam entre si; à guisa de resposta a qualquer de nossas perguntas, faziam cara de incompreensão".[173] Karlo Stajner recordaria que eles eram ótimos na hora de arrumar bons trabalhos uns para os outros: "Em toda a Europa, os chineses são famosos malabaristas, mas, nos campos, eram usados na lavanderia. Não me lembro de ter visto algum trabalhador não-chinês nas lavanderias dos campos pelos quais passei".[174]
No Gulag, os grupos étnicos mais influentes eram, de longe, os baltas e os oeste-ucranianos que haviam sido varridos em massa para os campos de concentração durante e após a guerra (ver capítulo 20).
Menos numerosos, mas também influentes, eram os poloneses, sobretudo os guerrilheiros anticomunistas, que igualmente apareceram nos campos na segunda metade da década de 1940 - assim como os tchetchenos, os quais Soljenitsin descreveria como "a única nação que se recusava a desistir e a adquirir os hábitos mentais da submissão" e que, de diversas maneiras, sobressaía entre os outros caucásios.[175] A força desses grupos étnicos específicos estava nos números e na clara oposição à URSS, cuja invasão de seus respectivos países eles consideravam ilegal. Os poloneses, baltas e ucranianos do pós-guerra também tinham experiência militar e guerrilheira, e, em alguns casos, suas organizações de luta clandestina se mantiveram nos campos. Logo depois da guerra, o estado-maior geral do Exército Rebelde Ucraniano - UPA, um dos vários grupos que combatiam pelo controle da Ucrânia naquela época -, divulgou um comunicado a todos os compatriotas que haviam sido degredados ou mandados para o Gulag: "Onde quer que estejais, nas minas, nas florestas ou nos campos de concentração, sempre permanecei o que fostes, continuai sendo ucranianos fiéis e prossegui nossa luta".
Nos campos, ex-guerrilheiros se ajudavam conscientemente e cuidavam dos recém-chegados. Adam Galinski, que lutara no Exército da Pátria, a guerrilha anticomunista da Polônia, durante e após a guerra, escreveria: "Zelávamos especialmente pela mocidade do Exército da Pátria e mantínhamos seu moral, que era o mais elevado na degradante atmosfera de declínio espiritual que prevalecia entre os diversos grupos nacionais aprisionados em Vorkuta".[176]
Em anos posteriores, quando adquiririam mais poder para influenciar o andamento das coisas nos campos, os poloneses, baltas e ucranianos - assim como os georgianos, armênios e tchetchenos -, também formavam suas próprias turmas de trabalho, dormiam à parte em alojamentos dispostos conforme a etnia e organizavam comemorações de seus feriados nacionais. Às vezes, esses grupos poderosos cooperavam uns com os outros. O autor polonês Aleksander Wat escreveria que, nas prisões soviéticas, os polacos e ucranianos - inimigos figadais durante a guerra, quando seus movimentos guerrilheiros se confrontaram em cada centímetro do território da Ucrânia ocidental - se relacionavam "com reticência, mas com incrível lealdade. 'Somos inimigos, mas não aqui"'.[177]
De outras vezes, esses grupos étnicos competiam tanto entre si quanto com os russos. Lyudmila Khachatryan, aprisionada por ter-se apaixonado por um soldado iugoslavo, recordaria que os ucranianos de seu campo se recusavam a trabalhar com os russos.[178] Os movimentos nacionais de resistência, escreveria outro observador, "caracterizam-se, de um lado, pela hostilidade ao regime e, de outro, pela hostilidade aos russos". Edward Buca se lembraria de uma hostilidade mais generalizada - "era incomum um preso dar qualquer assistência a alguém de outra nacionalidade" -,[179] embora Pavel Negretov, o qual estava em Vorkuta à mesma época que Buca, achasse que a maioria das nacionalidades só não se dava bem quando sucumbia às "provocações" da administração - "por meio de seus informantes, ela tentava [...] fazer que brigássemos".[180]
No final dos anos 1940, quando os vários grupos étnicos assumiram o papel da bandidagem como policiais de facto nos campos, eles às vezes lutavam entre si pelo controle. Marlen Korallov recordaria que "começaram a disputar o poder, e este significava muito: controlar o refeitório, por exemplo, importava bastante, pois o cozinheiro trabalharia diretamente para quem fosse seu senhor". Naquele tempo, segundo Korallov, o equilíbrio entre os diversos grupos era delicadíssimo e podia ser abalado pela chegada de um novo contingente de presos. Quando, por exemplo, um grupo de tchetchenos veio para o lagpunkt de Korallov, eles entraram nos alojamentos, "jogaram suas coisas nos beliches mais próximos do chão [naquele campo, os leitos "aristocráticos" eram os mais baixos] e instalaram-se ali com todas as suas posses".[181]
No final dos anos 1940, Leonid Sitko - que ficara num campo de prisioneiros de guerra alemão e depois fora novamente preso quando voltou para a Rússia - testemunhou uma batalha muito mais séria entre tchetchenos, russos e ucranianos. A discussão começou com uma disputa pessoal entre "brigadeiros" e foi aumentando - "virou guerra, uma guerra total". Os tchetchenos organizaram um ataque a um alojamento russo, e muitos foram feridos. (Mais tarde, todos os cabeças acabaram indo para uma cela punitiva.) Sitko explicaria que, embora as disputas fossem por influência nos campos, elas tinham origem em sentimentos nacionais mais profundos: "Os baltas e os ucranianos achavam que russos e soviéticos eram a mesma coisa. Embora não faltassem russos no campo, isso não os impedia de ver esses últimos como invasores e ladrões".
Certa vez, o próprio Sitko foi abordado no meio da noite por um grupo de oeste-ucranianos:
"Seu nome é ucraniano", disseram-me. "Você é o quê? Algum traidor?"
Expliquei que fora criado no norte do Cáucaso, numa família que falava russo, e que não sabia por que tinha nome ucraniano. Ficaram um pouco e depois partiram. Podiam ter-me matado - estavam com uma faca.[182]
Uma prisioneira e recordaria de que as diferenças nacionais não eram "nada lá muito importantes", mas também brincaria comentando que isso só não se aplicava aos ucranianos, os quais simplesmente "odiavam todos os demais".[183]
Na maioria dos campos, por estranho que possa parecer, não havia nenhum clã para os russos, o grupo étnico que, segundo as próprias estatísticas do sistema, constituiu a clara maioria dos prisioneiros durante toda a existência do Gulag.[184] E bem verdade que os russos se associavam segundo a cidade ou região de que viessem. Moscovitas descobriam outros moscovitas; leningradenses, outros leningradenses; e assim por diante. Em certa altura, Vladimir Petrov foi ajudado por um médico que lhe perguntou:
"Antes você fazia o quê?" "Estudava em Leningrado."
"Ah, então somos conterrâneos - ótimo!", disse o médico, dando-me tapinhas nas costas.[185]
Com freqüência, os oriundos de Moscou eram particularmente poderosos e organizados. Leonid Trus, aprisionado quando ainda era estudante, recordaria que, no campo, os moscovitas mais velhos formavam uma rede forte, da qual ele ficou de fora. Em certa ocasião, quando quis pegar emprestado um livro da biblioteca do campo, precisou primeiro convencer o bibliotecário, membro daquele clã, de que podiam confiar-lhe o exemplar.[186]
No mais das vezes, porém, esses laços eram fracos, proporcionando ao preso não mais que a companhia de pessoas que se lembravam da rua em que morara ou da escola que freqüentara. Enquanto outros grupos étnicos formavam redes completas de auxílio mútuo - achando lugar para os recém-chegados nos alojamentos, ajudando-os a obter tarefas mais leves -, os russos não o faziam. Ariadna Éfron escreveria que, ao chegar a Turukhansk, para onde fora banida com outras prisioneiras quando terminou de cumprir sua pena no Gulag, outros degredados que já moravam ali vieram receber o trem:
Um judeu separou as judias em nosso grupo, deu-lhes pão, explicou como deviam portar-se e o que deviam fazer. Então, um grupo de georgianas foi recepcionada por um patrício... E, depois de algum tempo, só restávamos nós, as russas, talvez dez ou quinze. Ninguém veio até nós, ofereceu-nos pão nem nos aconselhou.[187]
Ainda assim, havia algumas distinções entre os detentos russos - distinções baseadas mais na ideologia que na etnia. Nina Gagen-Torn registraria que "a clara maioria das mulheres dos campos considerava aquela sina e aquele sofrimento um infortúnio acidental, sem procurar os motivos". Contudo, para as que "descobriam por si mesmas algum tipo de explicação para o que acontecia e passavam a acreditar nele, as coisas ficavam mais fáceis".[188] Entre as que tinham uma explicação, estavam principalmente as comunistas; ou seja, as prisioneiras que continuavam a alegar inocência, professar lealdade à URSS e acreditar, contra todos os indícios, que todas as demais eram de fato inimigas e deviam ser evitadas. Anna Andreevna se recordaria de que as comunistas se procuravam umas às outras. "Elas se localizavam mutuamente e se mantinham juntas. Eram gente limpa, soviética, e achavam que todas as restantes eram criminosas."[189] Chegando ao Minlag no começo dos anos 1950, Susanna Pechora conta que as viu "sentadas num canto e dizendo umas às outras: 'Somos boas soviéticas, viva Stalin, não somos culpadas, e nosso Estado nos livrará da companhia de todas essas inimigas"'.[190]
Tanto Susanna Pechora quanto Irena Arginskaya (prisioneira em Kengir na mesma época) lembram que a maioria das integrantes desse grupo pertencia ao mesmo segmento de membros de alto escalão do Partido presos em 1937 e 1938. Na maior parte, eram pessoas mais velhas; Irena lembra que eram freqüentemente agrupadas nos campos para inválidos, lugares que ainda continham muita gente aprisionada durante o Grande Terror. Anna Larina, mulher do líder soviético Nikolai Bukharin, foi desses indivíduos que, encarcerados naquela fase anterior, de início se mantiveram fiéis à Revolução. Quando ainda estava na detenção, escreveu um poema para comemorar o aniversário da Revolução de Outubro:
Embora esteja atrás das grades,
Sentindo a angústia dos condenados,
Ainda assim celebro este dia
Junto com minha feliz pátria.
Hoje tenho uma nova crença:
Retornarei à vida
E de novo marcharei com minha seção do Konsomol,
Ombro a ombro, pela praça Vermelha!
Posteriormente, Anna viria a considerar tais versos "os delírios de uma lunática". Na época, entretanto, ela os recitou para as esposas encarceradas dos velhos bolcheviques, e estas "reagiram com lágrimas e aplausos comovidos".[191]
Em Arquipélago Gulag, Soljenitsin dedica um capítulo aos comunistas, a quem denomina (de modo não muito generoso) "duplipensantes". O escritor se admirava com a capacidade desses indivíduos para explicar até a detenção, tortura e reclusão deles próprios como "obra muito astuciosa dos serviços estrangeiros de espionagem", "sabotagem em enorme escala", "complô da NKVD local" ou "traição". Alguns vinham com uma explicação ainda mais magistral: "Essa repressão é uma necessidade histórica no desenvolvimento de nossa sociedade".[192] Depois, alguns daqueles legalistas também escreveriam memórias, de bom grado publicadas pelo regime soviético. Em 1964, por exemplo, Uma história de sobrevivência, romance curto de Boris Dyakov, foi veiculado pelo periódico Oktyabr com a seguinte introdução: "A força da narrativa de Dyakov reside no fato de que trata de autênticos soviéticos, autênticos comunistas. Em circunstâncias difíceis, eles nunca perderam a humanidade, mantiveram-se fiéis a seus ideais do Partido e dedicaram-se à pátria". Todorsky, um dos heróis de Dyakov, conta como ajudou um tenente da NKVD a redigir um discurso sobre a história do Partido. Em outra ocasião, diz ao oficial de segurança do campo que, apesar de seu injusto encarceramento, ele se considera um verdadeiro comunista: "Não sou culpado de nenhum crime contra a autoridade soviética. Portanto sou, e permanecerei, comunista". O oficial, major Yakovlev, o aconselha a não fazer alarde: "Por que ficar berrando isso? Você acha que todo mundo aqui no campo adora os comunistas?".[193]
E de fato não adoravam: os abertamente comunistas eram muitas vezes suspeitos de trabalhar, às escondidas ou não, para as autoridades dos campos. Escrevendo sobre Dyakov, Soljenitsin observa que as memórias dele parecem deixar de fora algumas coisas. Em troca de quê, pergunta, o oficial de segurança Sokovikov concordava em postar secretamente as cartas de Dyakov, driblando o censor do campo? "Esse tipo de amizade... tinha origem em quê?"[194] Na realidade, os arquivos hoje mostram que Dyakov fora agente da polícia secreta a vida toda (com o codinome "Pica-pau") e continuara a ser informante no Gulag.[195]
O único grupo que superava os comunistas em matéria de fé absoluta eram os cristãos da Igreja Ortodoxa, assim como os seguidores das várias seitas protestantes que também sofriam perseguição política na URSS: batistas, testemunhas-de-jeová e variantes russas dessas doutrinas. Eram presença particularmente forte nos campos femininos, onde as conheciam pela expressão coloquial monashki (freiras). Anna Andreevna recordaria que, no final dos anos 1940, no campo feminino da Mordóvia, "a maioria das prisioneiras eram devotas" que se organizavam de modo que, "nos dias santos, as católicas trabalhassem para as ortodoxas, e vice-versa".[196]
Como já observamos, algumas dessas seitas se negavam totalmente a cooperar com o Satã soviético, e seus membros não trabalhavam nem assinavam nenhum documento oficial. Nina Gagen-Torn descreve uma devota que foi libertada por motivo de saúde, mas que se recusou a deixar os campos. "Não reconheço vossa autoridade", disse ao guarda que se prontificou a dar-lhe os documentos necessários e mandá-la para casa. "Vosso poder é ilegítimo, o anticristo aparece em vossos salvo-condutos [...] Se eu sair, vós me prendereis outra vez. Não há razão para partir.[197] A finlandesa Aino Kuusinen estava num campo com um grupo de prisioneiras que se recusavam a usar números de identificação nas roupas; em vista disso, "os números lhes eram marcados na própria pele", e essas mulheres eram obrigadas a comparecer nuas em pêlo às chamadas da manhã e da noite.[198]
Soljenitsin conta a história (repetida de variadas formas por outros) de um grupo de membros de uma seita que foram levados para Solovetsky em 1930. Rejeitavam tudo o que viesse do "anticristo", negando-se a usar o dinheiro ou os salvo-condutos soviéticos. Como punição, foram mandados para uma pequena ilha daquele arquipélago, onde lhes disseram que só receberiam alimento se concordassem em assinar a documentação necessária. Negaram-se a fazê-lo. Dali a dois meses, haviam todos morrido de inanição. Segundo uma testemunha ocular, o barco seguinte para a ilha "só encontrou cadáveres bicados pelos pássaros".[199]
Mesmo os devotos que trabalhavam não necessariamente se misturavam com os outros presos; às vezes, até se recusavam a falar o que fosse com eles. Aglutinavam-se nos alojamentos, observando absoluto silêncio ou então entoando suas preces e cânticos nos horários de rigor:
Fiquei atrás das grades
Lembrando como Cristo
Humilde e mansamente carregou Sua pesada Cruz,
Com penitência, até o Gólgota.[200]
Os mais extremados tendiam a despertar sentimentos conflitantes nos outros presos. De modo jocoso, Irena Arginskaya, prisioneira indiscutivelmente laica, lembraria que "todas as abominávamos", em especial aquelas que, por motivo religiosos, se negavam a tomar banho.[201] Segundo Nina Gagen-Torn, outras prisioneiras se queixavam daquelas que se recusavam a trabalhar: "A gente trabalha, e elas não! E comem o pão do mesmo jeito!"[202]
Num sentido, porém, os homens e mulheres que chegavam a um campo e na mesma hora se integravam num clã ou seita se mostravam afortunados. Para quem era membro, as gangues, as nacionalidades mais militantes, os comunistas fiéis e as seitas religiosas proporcionavam de imediato comunidades, redes de auxílio mútuo, companhia. Já a maior parte dos presos políticos, e a maior parte dos criminosos "ordinários" - a imensa maioria dos habitantes do Gulag -, não se ajustava tão facilmente a este ou aquele grupo. Então, constatava que assim era mais difícil aprender a sobreviver no campo, a lidar com a moralidade e a hierarquia dali. Sem forte rede de contatos, essas pessoas tinham de descobrir por si mesmas as regras para melhorar de situação.
A prisioneira que era a enfermeira do alojamento me saudou com um grito: "Corra para ver o que está debaixo do seu travesseiro!"
Meu coração deu um pulo: talvez eu enfim houvesse conseguido minha ração de pão!
Corri para a cama e afastei bruscamente o travesseiro. Debaixo dele, havia três cartas de casa - três cartas inteiras! Fazia seis meses que eu não recebia nenhuma correspondência.
Minha primeira reação foi de profundo desapontamento. E depois... de horror.
No que eu me transformara se agora um pedaço de pão era mais importante que cartas de minha mãe, meu pai, meus filhos?... Esqueci totalmente o pão e chorei.
Olga Adamova-Sliozberg, Minha jornada.[203]
Cumpriam as mesmas metas de produção e tomavam a mesma sopa aguada. Habitavam o mesmo tipo de alojamento e viajavam nos mesmos vagões de gado. Suas roupas eram quase idênticas, e seu calçado, igualmente inadequado. Sob interrogatório, não recebiam tratamento diferente. E no entanto... A experiência de homens e mulheres nos campos não era exatamente a mesma.
Por certo, muitas sobreviventes estão convencidas de que havia muitas vantagens em ser mulher no Gulag. As mulheres eram melhores quando se tratava de tomar cuidados consigo mesmas, de manter as roupas remendadas e o cabelo limpo. Pareciam mais capazes de subsistir com pouca quantidade de alimento e não sucumbiam tão facilmente à pelagra e a outras doenças da inanição.[204] Formavam amizades fortes e se ajudavam umas às outras de maneiras que os homens presos não conseguiam reproduzir. Margarete Buber-Neumann registra que uma das mulheres detidas com ela na prisão Butyrka viera usando um vestido leve de verão que logo ficou em farrapos. As outras detentas na cela resolveram confeccionar um novo:
Fizeram uma vaquinha e compraram meia dúzia de toalhas de linho russo cru. Mas como cortar o vestido sem tesouras? Um pouco de engenhosidade resolveu o problema. O molde foi marcado com pontas de fósforo queimado; o tecido foi dobrado seguindo as linhas assim marcadas; e um fósforo aceso foi rapidamente passado pelas dobras. Quando se desdobrou o tecido, o fogo já o cortara o suficiente nas dobras. Conseguiu-se algodão para linha tirando cuidadosamente fios soltos de outras roupas [...].
Esse vestido feito de toalha (ele se destinava a uma letã gorda) passou de mão em mão e ganhou maravilhosos bordados na gola, nas mangas e na barra. Quando enfim ficou pronto, foi umedecido e dobrado com esmero. Naquela noite, a feliz proprietária dormiu sobre ele [para "passá-lo"]. Acredite se quiser, mas, quando ela o mostrou de manhã, estava realmente lindo; não teria envergonhado a vitrine de uma loja da moda.[205]
Contudo, entre muitos ex-presos do sexo masculino, prevalece o ponto de vista oposto: moralmente, as mulheres decaíam mais depressa que os homens. Graças ao sexo, dispunham de oportunidades especiais para obter melhor classificação laborai, ganhando trabalho mais fácil e, com isso, status superior nos campos. Em conseqüência, desorientavam-se, perdendo o rumo no mundo áspero do Gulag. Gustav Herling escreve, por exemplo, sobre uma "cantora da Opera de Moscou, de cabelos negros", que foi presa por "espionagem". Dada a severidade da sentença, designaram-na para o trabalho na floresta tão logo chegou ao Kargopollag.
Infelizmente para ela, foi desejada por Vanya, o urka [mafioso] baixinho que estava encarregado de sua turma de trabalho. Foi posta para descascar troncos com um machado enorme, que ela mal conseguia levantar. À noite, tendo ficado muito atrás dos vigorosos lenhadores, chegou à zona prisional quase sem forças para arrastar-se até a cozinha e pegar sua "primeira caldeirada" [a ração de sopa mais fraca] [...] era óbvio que estava febril, mas o enfermeiro era amigo de Vanya e não quis liberá-la do trabalho.
Ela acabou cedendo, primeiro para Vanya e finalmente para "algum chefe do campo" que a "trouxe do monturo e a colocou atrás de uma escrivaninha no escritório da contabilidade".[206]
Havia sinas piores, como Herling também descreve. Ele fala, por exemplo, de uma moça polonesa à qual um "júri informal de urki" deu nota bem alta. De início,
ela saía para trabalhar de cabeça erguida c, com olhar dardejante de Cúria, repelia todo homem que se aventurasse perto dela. A noitinha, voltava mais humilde do trabalho, mas ainda intocável e recatadamente altiva. Ia direto da guarita de entrada para a cozinha, a fim de buscar sua porção de sopa, e não tornava a sair do alojamento das mulheres durante a noite. Por conseguinte, parecia que não seria logo vítima das caçadas noturnas na zona prisional.
Contudo, esse esforço inicial foi inútil. Após semanas de zelosa vigilância de seu supervisor, que a proibia de furtar uma cenoura ou batata podre que fosse no armazém onde ela trabalhava, a moça desistiu. Uma noite, o homem entrou n,o alojamento de Herling e, "sem dizer palavra, atirou em meu beliche uma calcinha rasgada". Foi o começo da transformação:
A partir daquele momento, a moça sofreu uma mudança completa. Já não se apressava para ir pegar a sopa na cozinha; após o retorno do trabalho, vagava pela zona prisional até tarde da noite, como uma gata no cio. Quem quisesse a possuía, no beliche, debaixo do beliche, nos cubículos à parte dos especialistas técnicos, no depósito de roupas. Sempre que topava comigo, ela olhava para o outro lado e franzia convulsivamente os lábios. Certa vez, ao entrar no depósito de batatas no centro do campo, eu a surpreendi numa pilha de batatas com o corcunda Levkovich, o mestiço que era chefe de turma da 56a; a moça teve um acesso de choro, e quando voltou para a zona prisional à noite estava segurando as lágrimas, com as mãozinhas crispadas.[207]
Essa é a versão de Herling para uma história contada com freqüência - uma história que, é preciso dizer, sempre parece um tanto diferente quando narrada do ponto de vista da mulher. Outra versão é contada, por exemplo, por Tamara Ruzhnevits, cujo "romance" no campo começou com uma carta -"uma carta-padrão de amor, uma carta tipicamente dos campos" -, de Sasha, jovem com o confortável trabalho de sapateiro, o que o transformava em parte da aristocracia do lugar. Era uma carta curta e direta: "Vamos morar juntos, e aí eu ajudo você". Alguns dias depois de enviá-la, Sasha puxou Tamara de lado, querendo saber a resposta. "Você vai ou não vai morar comigo?", perguntou. A reposta foi negativa. Ele a espancou com um bastão de metal. Depois, carregou-a para o hospital, onde o status especial de sapateiro lhe dava influência, e mandou a equipe médica cuidar bem de Tamara. Ela ficou ali vários dias, recuperando-se dos ferimentos. Ao receber alta, tendo tido bastante tempo para pensar no assunto, voltou para Sasha. Do contrário, ele a teria espancado de novo.
"Assim começou minha vida doméstica", escreveria Tamara. Os benefícios foram imediatos. "Ganhei saúde, passei a usar bons sapatos, já não precisava mais vestir sabe-se lá que trapos - tinha casaco novo, calças novas [...] até chapéu novo." Muitas décadas depois, descreveria Sasha como "meu primeiro verdadeiro amor". Infelizmente, ele logo foi mandado para outro campo, e Tamara nunca mais o viu. Pior: o homem responsável pela transferência de Sasha também desejava Tamara. Já que "não havia saída", ela começou a dormir com ele também. Embora não descreva nenhum sentimento amoroso pelo homem, Tamara recorda que esse arranjo tinha igualmente suas vantagens: ganhou passe para deslocar-se fora do campo sem guarda e teve um cavalo só para si.[208]
O relato de Tamara Ruzhnevits, da mesma maneira que o de Gustav Herling, pode ser considerado uma história de degradação moral. Ou, então, de sobrevivência.
Do ponto de vista dos administradores, nada disso devia acontecer. Em princípio, homens e mulheres nem podiam estar juntos no mesmo campo, e há presos que dizem não ter posto os olhos numa mulher durante anos e anos. Tampouco os comandantes de campo tinham alguma vontade especial de contar com prisioneiras. Fisicamente mais fracas, eram suscetíveis a tornar-se um peso morto quando se tratava de cumprir as metas produtivas, e, por isso, alguns comandantes tentavam rejeitá-las. Em certa altura, em fevereiro de 1941, a direção do Gulag até mandou carta a toda a liderança da NKVD e todos os comandantes de campo, instruindo-os severamente a aceitar comboios de prisioneiras e arrolando todas as atividades em que as mulheres poderiam atuar com proveito. A carta menciona a indústria leve e a indústria têxtil; a carpintaria e a metalurgia; certos tipos de serviço madeireiro; a carga e descarga de mercadorias.[209]
Talvez por causa das objeções dos comandantes dos campos, o número de mulheres que eram de fato enviadas para lá sempre permaneceu relativamente baixo (tal qual, aliás, o número de mulheres executadas durante os expurgos de 1937-8). Segundo as estatísticas oficiais, em 1942, por exemplo, só uns 13% da população do Gulag eram mulheres. Em 1945, essa proporção se elevou a 30%, em parte devido ao enorme contingente de presos do sexo masculino que foram convocados e mandados para a frente de batalha; e em parte devido às leis que proibiam os operários fabris de largar seus empregos - e que causaram a prisão de muitas jovens.[210] Em 1948, as mulheres eram 22%, tornando depois a cair, agora para 17%, em 1951 e 1952.[211] E mesmo esses números não refletem a verdadeira situação, pois as mulheres tinham muito mais probabilidade de cumprir pena nas "colônias" de trabalho leve. Nos grandes campos industriais do extremo norte, elas eram ainda menos numerosas, e sua presença, ainda mais rara.
No entanto, o número menor implicava que as mulheres - assim como o alimento, o vestuário e outros pertences - estavam quase sempre em falta. Por isso, embora talvez apresentassem pouco valor econômico para quem compilava as estatísticas de produção dos campos, elas tinham outro tipo de valor para os presos, os guardas e os trabalhadores livres do Gulag. Nos campos em que os contatos entre presos de ambos os sexos eram mais ou menos livres - ou nos lugares em que, na prática, certos homens tinham acesso aos campos femininos -, as mulheres com freqüência ouviam cantadas, sofriam abordagens atrevidas ou, mais comumente, recebiam propostas de alimento e trabalho fácil em troca de favores sexuais. Isso talvez não fosse característica exclusiva do Gulag. Em 1999, por exemplo, um relatório da Anistia Internacional sobre presidiárias americanas revelou casos de guardas e presos que estupravam detentas; de presos que subornavam guardas para ter acesso a elas; de mulheres que sofriam revistas íntimas de guardas do sexo masculino.[212] No entanto, as estranhas hierarquias sociais do Gulag levavam mulheres a ser estupradas e humilhadas num grau incomum até para o mundo das prisões.
Para começo de conversa, o destino da prisioneira dependia muito de seu status e posição nos vários clãs do campo. Dentre a bandidagem, as mulheres se submetiam a um sistema de normas e rituais complexos e eram tratadas com muito pouco respeito. Segundo Variam Shalamov, "o criminoso de terceira ou quarta geração aprende desde a infância a ver as mulheres com desprezo [...] a mulher, ser inferior, fora criada apenas para satisfazer o apetite animal do criminoso, para ser o alvo de piadas grosseiras e a vítima de surras públicas quando o bandido resolvesse 'agitar um pouco'". Na prática, as prostitutas "pertenciam" a chefões e podiam ser trocadas, mercadejadas e até herdadas por algum irmão ou amigo do criminoso, caso este fosse morto ou transferido para outro campo. Quando ocorria uma troca de donos, "em geral as partes interessadas não caíam no tapa, e a prostituta sujeitava-se a dormir com o novo amo. Na bandidagem, não havia nenhum ménage à trois em que dois homens compartilhassem a mesma mulher Tampouco era possível a uma bandida viver com alguém que não fosse criminoso".[213]
As mulheres não eram os únicos alvos. Entre os criminosos de carreira, o homossexualismo parece ter-se organizado segundo regras igualmente brutais. Na corte de alguns chefões, havia efebos, junto com as "esposas" que o criminoso possuía no campo, ou mesmo no lugar delas. Thomas Sgovio cita um chefe de turma de trabalho que tinha por "mulher" um rapaz que recebia comida extra em troca de seus favores.[214] Todavia, é difícil descrever as normas que regiam a homossexualidade masculina nos campos, já que os memorialistas só mencionam o tema muito raramente - talvez porque, na cultura russa, o homossexualismo continue em parte a ser tabu e as pessoas prefiram não escrever sobre ele. Ademais, no Gulag, o homossexualismo parece ter-se restringido sobretudo aos bandidos - e poucos destes nos legaram memórias.
Entretanto, sabemos que, nos anos 1970 e 80, os criminosos soviéticos desenvolveram complicadíssimas regras de etiqueta homossexual. Os "passivos" eram condenados ao ostracismo pelo resto da sociedade prisional, comendo em mesas separadas e não dirigindo a palavra aos outros homens.[215] Regras semelhantes, embora raras vezes descritas, parecem ter existido em alguns lugares já no final dos anos 30, quando PyotrYakir (então com quinze anos) testemunhou fenômeno análogo numa cela para menores delinqüentes. De início, ficou estarrecido ao ouvir os demais garotos falarem de suas experiências sexuais e achou que estivessem exagerando,
mas estava enganado. Um dos rapazes guardara a ração de pão até a noite, quando perguntou a Mashka (que não comera nada o dia todo): "Você quer uma mordida?"
"Quero", respondeu Mashka.
"Então abaixe as calças."
A coisa aconteceu num canto, o qual era difícil de enxergar pela vigia da porta, mas à vista de todos na cela. Ninguém se surpreendeu, e fingi não estranhar nada daquilo. Houve muitos outros episódios desse tipo enquanto estive ali; os passivos eram sempre os mesmos garotos. Eram tratados como párias; não podiam beber da caneca coletiva e constituíam alvo de humilhações.[216]
Nos campos, curiosamente, o lesbianismo era mais franco ou, pelo menos, mais amiúde citado. Entre as criminosas, também era muitíssimo ritualizado. As lésbicas eram designadas pelo pronome neutro (ono) e se dividiam entre as mais femininas ("éguas") e as mais masculinas ("maridos"). Segundo uma descrição, as primeiras eram às vezes "verdadeiras escravas", fazendo a limpeza para os "maridos" e cuidando deles, os quais adotavam apelidos masculinos e quase sempre fumavam.[217] Falavam abertamente do lesbianismo e até o cantavam:
Ah, obrigada, Stalin,
Você fez de mim uma baronesa.
Sou tanto vaca quanto touro,
Fêmea e macho.[218]
Também se identificavam pela indumentária e pelo comportamento. Uma polonesa escreveria:
Todo o mundo sabe de casais assim, e elas não fazem nenhuma tentativa de ocultar seus hábitos. Em geral, quem faz o papel de homem usa roupas masculinas, corta o cabelo bem curto e fica com as mãos nos bolsos. Quando um desses casais é repentinamente tomado pela paixão, as duas se levantam correndo de seus assentos, largam as máquinas de costura, correm uma atrás da outra e, em meio a beijos desvairados, jogam-se no chão.[219]
Valerii Frid menciona criminosas encarceradas que, vestidas de homem, faziam-se passar por hermafroditas. Uma "tinha cabelo curto, era bonitinha e usava calças de oficial"; outra parece ter mesmo tido uma deformação genital.[220] Outra prisioneira ainda descreveria o "estupro" lésbio: viu um casal perseguir uma "mocinha quieta e recatada" atrás dos beliches, onde lhe romperam o hímen.[221] Já nos círculos intelectuais, o lesbianismo parece ter sido visto com menos benevolência. Uma ex-prisioneira política o lembraria como "prática absolutamente revoltante".[222] Mas, embora costumasse ser mais disfarçado no ambiente das "políticas", também existia entre estas, freqüentemente entre mulheres que tinham maridos e filhos em liberdade. Susanna Pechora me contou que, no Minlag, campo predominantemente habitado por presos políticos, as relações lésbicas "ajudavam algumas pessoas a sobreviver".[223]
Voluntários ou forçados, homossexuais ou heterossexuais, os relacionamentos carnais nos campos compartilhavam, na maioria dos casos, o mesmo ambiente quase sempre brutal. Forçosamente, ocorriam com uma sem-cerimônia que muitos presos achavam escandalosa. Casais "arrastavam-se por baixo do arame farpado e faziam amor no chão, junto à latrina", disse um ex-prisioneiro.[224] "O beliche coletivo segregado das mulheres vizinhas por uma cortina de trapos era cena clássica nos campos", escreve Soljenitsin.[225] Uma vez, Isaak Filshtinskii acordou no meio da noite e deparou com uma mulher que dormia no leito ao lado do seu. Ela pulara o muro de fininho para ter relações com o cozinheiro do campo. "Afora eu, ninguém dormira naquela noite: tinham ficado ouvindo tudo com a maior atenção."[226] A prisioneira Hava Volovich conta que "coisas que uma pessoa em liberdade pensaria cem vezes antes de fazer aconteciam ali com a mesma naturalidade que entre gatos de rua".[227] Outro preso lembra que o amor, em especial entre os bandidos, era "animalesco".[228]
De fato, o sexo era tão público que o tratavam com certa apatia: para alguns, o estupro e a prostituição se tornaram parte da rotina diária. Numa ocasião, Edward Buca estava trabalhando numa serraria junto com uma turma feminina quando chegou um grupo de bandidos condenados. Eles "agarraram as mulheres que queriam e as deitaram na neve, ou as possuíram contra uma pilha de toras. As mulheres pareciam acostumadas e não ofereceram resistência. Tinham sua própria chefe de turma, mas ela não objetava a essas interrupções, que, aliás, se afiguravam quase parte do trabalho".[229] Lev Razgon também conta a história de uma moça loura, muito nova, com a qual por acaso deparou quando ela varria o pátio de uma unidade médica de campo de concentração. Na época, Razgon era trabalhador livre, em visita a um médico seu conhecido; e, embora não estivesse com fome, ofereceram-lhe um lauto almoço. Ele deu a comida à moça, que "comeu em silêncio, com asseio e educação, podendo-se ver que fora criada em família". De fato, fez Razgon lembrar-se da própria irmã.
A mocinha acabou de comer e empilhou os pratos direitinho na bandeja de madeira. Depois, ergueu o vestido, tirou a calcinha e, segurando-a, voltou-se para mim sem sorrir.
"No chão ou em outro lugar", perguntou.
De início sem entender minha reação, e depois amedrontada com esta, a jovem se justificou, outra vez sem sorrir de modo algum: "As pessoas não me dão comida de outro jeito..."[230]
Em alguns campos, também acontecia de certos alojamentos femininos se tornarem pouco menos que bordéis escancarados. Soljenitsin descreve um que era
insuperavelmente sujo e dilapidado. Havia um cheiro opressivo, e os beliches não tinham roupa de cama. Existia uma proibição oficial de que homens entrassem ali, mas ela não era levada em conta, e ninguém a impunha. Lá, havia não só homens adultos, mas também adolescentes, meninos de doze a treze anos que afluíam para aprender [...]. Tudo ocorria muito sem cerimônia, como na natureza, à vista de todos e em vários lugares ao mesmo tempo. Para as mulheres de lá, as únicas defesas possíveis eram a velhice e a feiúra evidentes - nada mais.[231]
Ainda assim... Em muitas memórias, indo diretamente contra os relatos de vulgaridade e sexo brutal, vêem-se histórias igualmente incríveis de amor nos campos, algumas das quais surgiram simplesmente da vontade das mulheres de protegerem-se. Conforme as normas idiossincráticas da vida no Gulag, mulheres que tinham um "marido dos campos" costumavam ser deixadas em paz pelos outros homens, num sistema que Gustav Herling denomina "o peculiar jus primae noctis[232] do campo de concentração".[233] Não eram necessariamente "casamentos" de iguais: por vezes, mulheres respeitáveis viviam com bandidos.[234] Tampouco se davam necessariamente de livre e espontânea vontade, como bem mostra o exemplo de Tamara Ruzhnevits. Apesar disso, não seria rigorosamente correto defini-los como prostituição. Antes, escreve Valerii Frid, eram braki po raschetu, casamentos de interesse, "que às vezes eram também por amor". Mesmo se tais relacionamentos surgiam por motivos tão-somente práticos, os detentos os levavam a sério. "O zek se referia à amásia mais ou menos permanente como 'minha esposa' ", relata Frid. "E ela o chamava de 'meu marido'. Não se dizia isso de gozação: os relacionamentos no campo humanizavam nossas vidas."[235]
E, por estranho que possa talvez parecer, presos que não estavam demasiado exaustos ou emaciados realmente procuravam o afeto amoroso. Nas memórias de Anatolii Zhigulin, inclui-se a descrição do romance que manteve com uma alemã, prisioneira política, a "boa e alegre Marta, de olhos cinzentos e cabelos louros". Posteriormente, Zhigulin soube que ela tivera um filho, o qual ganhou o nome Anatolii. (Isso foi no outono de 1951; dado que à morte de Stalin se seguiria uma anistia geral para os presos estrangeiros, Zhigulin presumia que "Marta e o menino, desde que não tivesse ocorrido algum infortúnio, houvessem voltado para casa".)[236] Por vezes, as memórias de Isaac Vogelfanger, médico de campo de concentração, parecem uma ficção romântica em que o herói pisa em ovos entre os perigos do affaire com a esposa de um administrador e as alegrias do verdadeiro amor.[237]
Pessoas privadas de tudo ansiavam tão desesperadamente por vínculos sentimentais que algumas mergulhavam fundo em platônicos amores epistolares. Isso se aplica em particular ao final da década de 1940, nos campos especiais para presos políticos, onde homens e mulheres eram mantidos rigorosamente separados. No Minlag (um de tais campos), prisioneiros e prisioneiras trocavam bilhetes por intermédio de colegas no hospital, que era compartilhado pelos dois sexos. Os presos também organizaram uma "caixa de correio" secreta no setor ferroviário onde as turmas femininas trabalhavam. De poucos em poucos dias, uma mulher empregada ali fingia ter esquecido um casaco ou outro objeto, ia até a caixa e pegava e deixava cartas. Mais tarde, um dos homens ia apanhá-las e depositar outras.[238] Também existiam outros métodos: "Num horário específico, uma pessoa escolhida numa das zonas prisionais atirava cartas dos homens para as mulheres, ou das mulheres para os homens. Eram os 'Correios'".[239]
Segundo Leonid Sitko, tais cartas eram escritas em minúsculos pedaços de papel, com letra ínfima. Todos as assinavam com nome falso: Sitko era "Hamlet", e a namorada, "Marsianka". Tinham sido "apresentados" por outras mulheres, as quais disseram a Sitko que ela estava deprimidíssima, pois seu bebê pequeno lhe fora tirado após a prisão. Sitko começou a escrever para ela, e uma vez até conseguiram encontrar-se, dentro de uma mina abandonada.[240]
Na busca por alguma espécie de intimidade, outros elaboravam métodos ainda mais surreais. No campo especial de Kengir, havia pessoas - quase na totalidade presos políticos, completamente privados de contato com os amigos, a família e os cônjuges que haviam deixado em casa - que desenvolviam complexas relações com gente que nunca tinham visto.[241] Um muro separava o campo feminino do masculino, mas alguns pares até casavam sem nunca se terem encontrado. A mulher ficava de um lado do muro e o homem, do outro; trocavam-se votos, e um padre encarcerado registrava a cerimônia num pedaço de papel.
Esse tipo de amor persistia, mesmo depois que a administração do campo ergueu ainda mais o muro, cobriu-o com arame farpado e proibiu os presos de aproximar-se dele. Ao descrever tais matrimônios realizados às escuras, até Soljenitsin abre temporariamente mão do ceticismo com que encara quase todos os outros relacionamentos nos campos: "Nesse matrimônio com uma pessoa desconhecida do outro lado do muro [...] ouço um coro de anjos. E como a contemplação pura e abnegada de corpos celestes. É também algo demasiado sublime para estes tempos de calculismo egoísta".[242]
Se amor, sexo, estupro e prostituição eram parte da vida no Gulag, segue-se que gravidez e parto também o eram. Junto com minas e canteiros de obras, turmas madeireiras e celas punitivas, alojamentos de presos e vagões de gado, havia maternidades e campos para grávidas - assim como berçários.
Nem todas as crianças que apareciam nessas instituições eram nascidas nos campos. Algumas haviam sido "presas" com as mães. As normas que regiam essa prática sempre foram pouco claras. A ordem operacional de 1937 que determinava a detenção de esposas e filhos de "inimigos do povo" proibia categoricamente a captura de grávidas e lactantes.[243] Por outro lado, uma ordem de 1940 dizia que as mães podiam ficar com os bebês por um ano e meio, "até eles não precisarem mais de leite materno", quando então seriam colocados em orfanatos ou entregues a parentes.[244]
Na prática, tanto grávidas quanto lactantes eram freqüentemente encarceradas. Ao fazer exames de rotina num comboio de presos recém-chegado, um médico de campo deparou com uma grávida que já sentia as contrações. Fora detida no sétimo mês.[245] Outra, Natalya Zaporozhets, foi colocada num traslado de presos quando estava no oitavo mês: após sofrer trancos em trens e carrocerias de caminhão, daria à luz um nati-morto.[246] A artista e memorialista Evfrosiniya Kersnovskaya ajudou no parto de bebê que nasceu num trem de traslado.[247]
Já dissemos que crianças pequenas eram "presas" com os pais. Uma detenta, encarcerada nos anos 1920, escreveu uma ácida carta de protesto a Dzerzhinsky, agradecendo-lhe ter "prendido" seu filho de três anos: a prisão, dizia, era preferível ao orfanato, que ela chamava de "fábrica de anjinhos".[248] Centenas de milhares de crianças foram, para todos os fins e efeitos, aprisionadas junto com os pais durante as duas grandes ondas de deportação, a primeira a dos kulaks, no começo da década de 1930, a outra a das etnias e nacionalidades "inimigas" durante e após a Segunda Guerra Mundial.
Para essas crianças, o choque da nova situação permaneceria com elas pelo resto da vida. Uma prisioneira polonesa recordaria que uma mulher em sua cela estava acompanhada do filho de três anos: "O menino, apesar de bem-comportado, era frágil e macambúzio. Nós o entretínhamos o melhor que podíamos, com histórias e contos de fada, mas ele nos interrompia de tempos em tempos, perguntando: 'Estamos na cadeia, né?'"[249]
Muitos anos depois, um filho de kulaks degredados se lembraria de sua provação nos vagões de gado: "As pessoas ficavam tresloucadas [...]. Não faço idéia de quantos dias viajamos. No vagão, sete pessoas morreram de fome. Chegamos a Tomsk, e nos tiraram para fora, diversas famílias. Também descarregaram vários cadáveres - crianças, jovens, idosos".[250]
Apesar das privações, havia mulheres que, de modo proposital e até cínico, engravidavam nos campos de concentração. Em geral, eram as criminosas profissionais ou as condenadas por delitos de pouca monta as que desejavam engravidar para ser dispensadas do trabalho pesado, receber alimentação ligeiramente melhor e talvez beneficiar-se das anistias periodicamente concedidas a mães com filhos pequenos. Tais anistias (houve uma em 1945 e outra em 1948, por exemplo) em geral não se aplicavam às condenadas por crimes contra-revolucionários.[251] "A vida ficava mais fácil quando a pessoa engravidava", disse-me Lyudmila Khachatryan, para explicar por que as mulheres dormiam de bom grado com seus carcereiros.[252]
Outra se recordaria de ter ouvido o rumor de que todas as mulheres com filhos pequenos (as mamki, na gíria prisional) seriam soltas. Ela então ficou grávida de caso pensado.[253] Nadezhda Joffe, prisioneira que engravidara do marido após haver recebido autorização para um encontro com ele, escreveria que suas companheiras no "alojamentos das amas-de-leite" de Magadan simplesmente "não tinham nenhum instinto maternal" e largavam seus bebês tão logo podiam.[254]
De modo talvez nada surpreendente, nem todas as mulheres que descobriam ter engravidado nos campos queriam levar a gestação adiante. O comando geral do Gulag parece ter sido ambivalente no que se referia ao aborto, por vezes permitindo-o e por vezes acrescentando outra condenação à pena das mulheres que tentavam praticá-lo.[255] Tampouco está muito claro quão freqüentes eram essas interrupções forçadas da gravidez, pois só muito raramente são mencionadas: em dúzias de entrevistas e memórias, ouvi ou li apenas dois relatos. Numa entrevista, Anna Andreevna me falou da mulher que "enfiou pregos em si mesma, sentou-se e trabalhou à máquina de costura; por fim, começou a sangrar bastante".[256] Outra mulher descreveu de que modo um médico de seu campo procurou pôr fim à gravidez dela:
Imaginem a cena. É noite. Está escuro... Andrei Andreevich tenta me fazer abortar, sem nenhum instrumento, usando só as mãos, cobertas de iodo. Mas está tão nervoso que não sai nada. Sinto tanta dor que nem consigo respirar, mas agüento sem dar um pio, para que ninguém nos ouça. Aí, a dor se torna insuportável, e eu grito: "Pare!" O procedimento inteiro fica interrompido durante dois dias. Enfim, sai tudo - o feto e um bocado de sangue. Por isso nunca fui mãe.[257]
Mas havia as que queriam os filhos, e muitas vezes a tragédia era sua sina. Indo contra tudo o que se escreveu sobre o egoísmo e a venalidade das mulheres que engravidavam no Gulag, sobressai a história de Hava Volovich. Prisioneira política encarcerada em 1937, era extremamente solitária nos campos e resolveu ficar grávida e dar à luz.
Embora Hava não sentisse nenhum amor em especial pelo pai da criança, esta, uma menina chamada Eleonora, nasceu em 1942, num campo sem instalações especiais para mães.
Ali, havia três mães, e nos deram um cômodo minúsculo no alojamento. Das paredes e do teto, os percevejos se derramavam como areia; passávamos a noite toda afastando-os dos bebês. De dia, precisávamos sair para o serviço e confiávamos as crianças a qualquer velha que encontrássemos que houvesse sido dispensada do trabalho; então, essas mulheres serviam-se calmamente do alimento que tínhamos deixado para os pequenos.
No entanto, escreve Hava,
Toda noite, um ano inteiro, fiquei junto ao berço, catando percevejos e fazendo orações. Rezava para que Deus prolongasse meu tormento por cem anos se isso garantisse que eu não me separaria de minha filha. Rezava para que me visse libertada com ela, mesmo que eu me tornasse apenas uma indigente ou aleijada. Rezava para que eu conseguisse criá-la até a idade adulta, mesmo que eu precisasse rastejar aos pés das pessoas e implorar-lhes esmolas. Mas Deus não atendeu a minhas preces. Meu bebê mal começara a andar, eu mal ouvira suas primeiras palavras, a maravilhosa e alentadora palavra "Mamãe", quando fomos todas trajadas com farrapos (apesar do inverno gelado), amontoadas num vagão de carga e transferidas para o "campo das mães". E ali o meu anjinho rechonchudo de cachos dourados se tornou um fantasma pálido com sombras azuladas debaixo dos olhos e feridas nos lábios inteiros.
Hava foi colocada para trabalhar primeiro numa turma madeireira e depois numa serraria. A noite, levava para o campo um pequeno feixe de lenha, que dava às babás no berçário. Em troca, deixavam-na às vezes ficar com a filha fora dos horários de visita.
Eu via as babás acordarem as crianças pela manhã. Elas as obrigavam a sair das camas geladas com safanões e pontapés [...] empurrando-as aos murros e xingando-as de modo pesado, tiravam-lhe os camisolões e as lavavam na água gelada. Os bebês não ousavam nem chorar. Davam fungadelas, como velhos, e soltavam pios baixinhos.
Aqueles pios medonhos vinham dos berços durante dias, sem parar. Crianças já com idade suficiente para sentar ou engatinhar ficavam deitadas de costas, pressionando os joelhinhos contra a barriga, fazendo aqueles sons esquisitos, semelhantes a arrulhos abafados.
Uma babá tinha a seu cargo dezessete crianças e, com isso, mal dispunha de tempo para manter todas trocadas e alimentadas, para nem falarmos de devidamente cuidadas.
A babá trazia da cozinha uma tigela de mingau fumegante e a repartia entre vários pratos. Apanhava o bebê mais próximo, forçava-lhe os bracinhos para trás, amarrava-os com uma toalha de banho e começava a enfiar colheradas de mingau quente goela abaixo da criança, não lhe dando tempo de engolir, exatamente como se estivesse alimentando um peru.
Eleonora começou a definhar.
Em algumas de minhas visitas, achei machucaduras em seu corpinho. Nunca me esquecerei de como ela se agarrava a meu pescoço com as mãos magrinhas e gemia: "Mamãe, quero casa!" Ela não se esquecera do muquifo onde viera à luz e onde ficara com a mãe o tempo todo...
A pequena Eleonora, que agora tinha quinze meses, logo percebeu que seus rogos de "casa" eram inúteis. Parou de esticar os braços para mim quando a visitava; dava-me as costas, em silêncio. No último dia de vida, quando a levantei (deixaram que eu a amamentasse), ela ficou olhando para longe, de olhos arregalados, e então começou a bater com suas mãozinhas crispadas em meu rosto e a arranhar e morder meu seio. Em seguida, apontou para o berço, querendo voltar a ele.
À noite, quando voltei com o feixe de lenha, seu berço estava vazio. Eu a encontrei no necrotério, onde jazia nua entre os cadáveres dos presos adultos. Ela passara um ano e quatro meses neste mundo e morrera em 3 de março de 1944. [...] Essa é a história de como, ao ter dado uma única vez à luz, cometi o pior dos crimes.[258]
Nos arquivos do Gulag, conservaram-se fotos do tipo de berçário descrito por Hava Volovich. Um dos álbuns fotográficos se inicia com a seguinte introdução:
O sol brilha sobre a pátria stalinista desses pequenos. A nação está repleta de amor pelos líderes, e nossas maravilhosas crianças são felizes tal qual toda a juventude do país. Aqui, em leitos amplos e aconchegantes, dormem os novos cidadãos de nosso país. Tendo sido alimentados, repousam tranqüilos e, com certeza, têm bons sonhos.
As fotos desmentem as legendas. Numa delas, uma enfiada de lactantes, com os rostos cobertos por máscaras brancas - prova das práticas higiênicas no campo -, senta-se num banco com olhar sério sem nenhum sorriso, segurando seus bebês. Em outra, todas as crianças estão indo para a caminhada da noitinha. Enfileiradas, não parecem mais espontâneas que as mães.
Em muitas fotos, as crianças estão de cabelo rapado, presumivelmente para evitar piolhos, e o efeito disso era que ficavam parecendo pequenos presos, coisa que, na prática, eram consideradas mesmo.[259] "O berçário também era parte do complexo do campo", escreveria Evgeniya Ginzburg. "Tinha sua própria guarita, seus próprios portões, seus próprios barracões, seu próprio arame farpado."[260]
Em algum nível, a direção do Gulag em Moscou deve ter estado ciente de quão terrível era a vida nos campos para as crianças que viviam ali. No mínimo, sabemos que os inspetores transmitiam a informação: um relatório de 1949 sobre a condição das mulheres nos campos assinalava de maneira desaprovadora que, das 503 mil prisioneiras do sistema, 9.300 estavam grávidas e outras 23.790 se viam acompanhadas de filhos pequenos. "Levando em conta a influência negativa sobre a saúde e a educação das crianças", o relatório argumentava em favor da soltura antecipada das mães, assim como das mulheres que haviam deixado filhos em casa, num total (quando excetuadas as reincidentes e as prisioneiras políticas contra-revolucionárias) de umas 70 mil mulheres.[261]
De tempos em tempos, realizavam-se tais anistias. Contudo, pouco melhorava a vida das crianças que ficavam. Pelo contrário: dado que não contribuíam com nada para a produtividade do campo, sua saúde e seu bem-estar estavam bem embaixo na lista de prioridade dos comandantes, e elas habitavam as construções mais precárias, geladas e velhas. Um inspetor verificou que, no berçário de um campo, a temperatura nunca se elevava acima dos onze graus; outro descobriu um berçário em que a tinta das paredes estava descascada e não havia absolutamente nenhuma iluminação, nem mesmo a querosene.[262] Um relatório do Siblag de 1933 dizia que no campo seriam necessários mais setecentos pares de calçado infantil, mais setecentos casacos infantis compridos e mais novecentos conjuntos de talheres.[263] E quem trabalhava ali não era necessariamente qualificado. Ao contrário: os serviços de berçário eram para aquelas "prisioneiras de confiança" e, assim, costumavam ser atribuídos a criminosas. Nadezhda Joffe escreve que, "por hora a fio, ficavam debaixo da escada com os 'maridos'; ou, então, simplesmente saíam, enquanto as crianças, sem alimento e sem cuidados, adoeciam e começavam a morrer".[264]
Tampouco as mães, cuja gravidez já custara um bocado ao campo, costumavam ser autorizadas a compensar tal negligência - supondo-se que elas realmente desejassem isso. Faziam-nas voltar ao trabalho tão logo era possível, e só de má vontade lhes davam folga para amamentar. Em geral, eram simplesmente liberadas do trabalho de quatro em quatro horas e, ainda com as mesmas roupas sujas, tinham quinze minutos com os filhos, sendo depois mandadas de volta; o resultado era que as crianças continuavam com fome. Às vezes, não se permitia nem isso. Um inspetor do Gulag citou o caso de uma mulher que, por causa de suas obrigações no trabalho, chegara alguns minutos atrasada para amamentar o bebê; negaram-lhe acesso a ele.[265] Numa entrevista, a ex-supervisora do berçário de um campo me disse (fazendo pouco caso) que as crianças que não conseguiam mamar o que deviam nessa (segundo ela) meia hora recebiam das babás o resto de alguma mamadeira.
A mesma mulher também confirmou descrições que prisioneiras fizeram de outro tipo de crueldade: tão logo acabavam de amamentar, as mulheres eram freqüentemente proibidas de manter qualquer outro contato com as crianças. A ex-supervisora contou que, em seu campo, proibira pessoalmente todas as mães de caminharem com os filhos, alegando que elas, sendo mulheres condenadas, poderiam machucá-los. Afirmou ter visto uma mãe dar ao filho açúcar com fumo, para assim envenená-lo. Outra, ainda segundo ela, tirara de propósito os sapatos do filho na neve. "Eu era responsável pelas taxas de mortalidade infantil no campo", disse-me, explicando por que tomara medidas para manter as mães à distância. "Aquelas crianças eram um ônus para elas, que assim desejavam matá-las."[266] A mesma lógica talvez tenha levado outros comandantes a proibir mães de verem os filhos. No entanto, é igualmente possível que tais normas fossem outro produto da crueldade irrefletida dos administradores: providenciar para que as mães vissem os filhos representava um incômodo, e, por isso, proibia-se tal prática.
Eram previsíveis as conseqüências de separar dos pais crianças em tão tenra idade. Havia incontáveis epidemias entre elas. As taxas de mortalidade infantil eram extremamente altas - tanto que, conforme também registram os relatórios de inspeção, elas muitas vezes eram deliberadamente ocultadas.[267] Mas mesmo as crianças que sobreviviam à primeira idade tinham pouca chance de levar uma existência normal nos berçários. Algumas talvez tivessem a sorte de ser tratadas pelo tipo mais bondoso de prisioneira transformada em babá. Outras não. A própria Evgeniya Ginzburg trabalhou num berçário do Gulag e descobriu, ao chegar lá, que nem as crianças mais velhas sabiam falar:
Só algumas das que tinham quatro anos conseguiam articular umas poucas palavras, esparsas e desarticuladas. Gemidos, mímica e socos eram os principais meios de comunicação. "Como se pode esperar que falem? Quem estava lá para ensiná-los?", explicou Anya, sem alterar-se. "No grupo dos mais novos, passam o tempo todo deitados nos berços. Ninguém os tira de lá, mesmo quando se esgoelam de tanto chorar. É proibido, a menos que seja para trocar as fraldas - quando há fraldas secas, é claro."
Quando Evgeniya tentou ensinar algo às crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas - aquelas que haviam mantido algum contato com as mães - se mostravam capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima:
"Olhe", eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha que eu desenhara. "O que é isso?"
"Alojamento", respondeu o menininho, de modo bem claro.
Com algumas caneladas, pus um gato ao lado da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí, desenhei uma cerca rústica, tradicional, em volta da casa.
"E o que é isso?"
"A zona prisional!", gritou Vera, encantada.[268]
Normalmente, as crianças eram transferidas de tais berçários para orfanatos quando faziam dois anos. Algumas mães viam isso com bons olhos, pois era uma oportunidade para as crianças escaparem do Gulag. Outras protestavam, sabendo que elas próprias podiam ser proposital ou acidentalmente transferidas para outros campos, longe dos filhos, cujos nomes podiam então ter sido mudados ou esquecidos, impossibilitando que se estabelecesse relacionamento ou mesmo contato.[269]
Isso às vezes acontecia. Valentina Yurganova, filha de kulaks da etnia alemã do Volga, foi colocada num orfanato onde algumas das crianças eram demasiado pequenas para recordar-se dos próprios nomes e as autoridades, demasiado desorganizadas para lembrar-se deles. Valentina me disse que uma das crianças fora simplesmente rebatizada "Kashtanova" ("Castanheira"), dado que havia tantas dessas árvores no parque atrás do orfanato.
Anos depois, outra dessas crianças escreveria uma pungente descrição da malsucedida busca que, durante a vida inteira, fez para descobrir o verdadeiro nome dos pais: não havia registro de nenhuma menina nascida na região da mulher com o nome que aparecia em seu salvo-conduto, e a criança, muito pequena, ainda não aprendera o nome deles. Mesmo assim, lembrar-se-ia de fragmentos de seu passado: "Mamãe na máquina de costura, eu pedindo agulha e linha... Eu num jardim... Aí, depois... O recinto é escuro, a cama à direita está vazia, alguma coisa acontece. De algum modo, fico sozinha. Estou apavorada".[270]
Não admira que algumas mães "chorassem, berrassem ou até enlouquecessem e fossem trancadas em depósitos, para se acalmarem", quando os filhos eram levados embora. Depois que eles se afastavam, era pequena a probabilidade de reencontrarem as mães.[271]
Extramuros, a vida das crianças nascidas nos campos não necessariamente melhorava. Elas se juntavam ao enorme contingente de outra categoria de vítima infantil - as crianças que haviam sido transferidas direto para os orfanatos após o encarceramento dos pais. Em regra, os orfanatos estatais não tinham funcionários suficientes e eram superlotadíssimos, sujos e com freqüência mortíferos. Uma ex-prisioneira recordaria as emoções e esperanças com que seu campo enviou para um orfanato urbano um grupo de filhos de presos - e o horror sentido quando se soube que todas aquelas crianças tinham morrido numa epidemia.[272] Já em 1931, no auge da coletivização, diretores de orfanatos nos Urais escreviam cartas desesperadas às autoridades regionais, implorando ajuda para cuidar dos milhares de crianças que acabavam de ficar órfãs de kulaks:
Num cômodo de doze metros quadrados, há trinta meninos. Para 38 crianças, há sete leitos, onde dormem os "reincidentes". Dois rapazes de dezoito anos destruíram a instalação elétrica, assaltaram o empório e bebem com o diretor [...] crianças dormem, jogam cartas (que confeccionam com retratos rasgados do "Líder"), fumam, quebram as grades das janelas e pulam os muros com a intenção de fugir.[273]
Em outro orfanato para filhos de kulaks,
as crianças dormem no chão, e não há calçados em quantidade suficiente [...] às vezes, falta água por dias a fio. Comem mal; afora água e batata, não têm almoço. Não há pratos nem cuias; elas comem direto de conchas. Para 140 pessoas, dispõe-se de uma única caneca, e não existem colheres suficientes; revezam-se para comer, ou comem com a mão. Não há iluminação, só um lampião para o orfanato inteiro, e o querosene está em falta.[274]
Em 1933, um orfanato perto de Smolensk enviou o seguinte telegrama à comissão infantil em Moscou: "Abastecimento alimentos orfanato interrompido. Cem crianças passando fome. Organização recusa fornecer rações. Não há nenhum socorro. Tomar medidas urgentes".[275] As coisas não mudaram muito com o passar do tempo. Em 1938, uma ordem da NKVD descrevia um orfanato onde duas meninas de oito anos haviam sido estupradas por alguns dos garotos mais velhos; e outro onde 212 crianças compartilhavam doze colheres e vinte pratos e, por falta de roupa de dormir, iam para a cama com a indumentário com que haviam passado o dia, aí incluídos os calçados.[276] Em 1940, Savelyeva Leonidovna foi "seqüestrada" de seu orfanato (os pais tinham sido aprisionados) e adotada por uma família que pretendia usá-la como doméstica. Assim, viu-se separada da irmã, a qual nunca mais tornaria a ver.[277]
Filhos de presos políticos, em especial, passavam maus bocados nessas instituições; com freqüência, recebiam tratamento pior que o conferido aos órfãos dali. Diziam-lhes - como o fizeram a Svetlana Kogteva, então com dez anos -, que "esquecessem os pais, já que estes eram inimigos do povo".[278] Os homens da NKVD que eram responsáveis por tais lares tinham ordem de manter vigilância especial e atentar para os filhos de contra-revolucionários, a fim de garantir que não recebessem tratamento privilegiado de nenhuma espécie.[279] Graças a essa norma, PyotrYakir, após a detenção dos pais, ficou exatos três dias num desses orfanatos. Durante esse período, adquiriu "fama de cabecilha dos filhos dos 'traidores'" e foi de imediato preso. Tinha catorze anos. Foi transferido para uma cadeia e acabou sendo mandado para o Gulag.[280]
Mais freqüentemente, os filhos de presos políticos sofriam provocação e exclusão. Um preso recordaria que se recolhiam as impressões digitais desses menores quando chegavam ao orfanato. Todos os professores e todos os outros funcionários temiam demonstrar demasiada afeição por eles, pois não queriam ser acusados de ter simpatia por "inimigos do povo".[281] Os filhos de presos políticos eram impiedosamente provocados por serem "inimigos", conforme conta Valentina Yurganova, que, em conseqüência, esqueceu de propósito o idioma alemão (sua língua natal).[282]
Em ambientes desse tipo, até filhos de pais instruídos logo adquiriam hábitos da bandidagem. Vladimir Glebov, filho do destacado bolchevique Lev Kamenev, era uma dessas crianças. O pai foi preso quando Glebov tinha quatro anos, e o menino foi "degredado" para um orfanato especial na região oeste da Sibéria. Ali, cerca de 40% das crianças eram filhas de "inimigos do povo", cerca de 40% eram menores delinqüentes, e cerca de 20% eram crianças ciganas, detidas pelo crime de nomadismo. Glebov explicaria ao escritor Adam Hochschild que, menos para os filhos de presos políticos, havia vantagens no contato precoce com jovens criminosos:
Meu chapa me ensinou coisas que, depois, me ajudaram bastante na hora de proteger-me. Aqui eu tenho uma cicatriz, e aqui outra [...] quando se é atacado a facadas, é preciso saber reagir. O principal é reagir antes, para não se deixar atingir. Era assim a nossa feliz meninice soviética![283]
Algumas crianças ficavam permanentemente afetadas pela vivência em orfanatos. Uma mãe voltou do degredo e reuniu-se à filha. A menina, de oito anos de idade, mal sabia falar, comia com as mãos e se comportava como o bicho-do-mato que o orfanato a ensinara a ser.[284] Outra mãe, solta após cumprida uma pena de oito anos, foi pegar os filhos no orfanato e ali descobriu que eles não desejavam ir com ela. Tinham-lhes ensinado que os pais eram inimigos do povo que não mereciam nenhum afeto. Os filhos haviam sido especificamente instruídos a negar-se a ir embora "caso sua mãe um dia venha buscar vocês", e nunca mais quiseram morar com os pais.[285]
Não era de surpreender que crianças de tais orfanatos fugissem - em grande número. Quando se viam nas ruas, caíam bem depressa no submundo criminal. E quando se tornavam parte desse submundo, o ciclo vicioso se renovava: cedo ou tarde, provavelmente seriam encarceradas também.
A primeira vista, o relatório anual de 1944-5 da NKVD sobre um grupo de oito campos na Ucrânia não revela nada fora do comum. Arrolam-se quais dos campos cumpriram as metas do Plano Qüinqüenal e quais não o fizeram. Louvam-se os presos que são trabalhadores de choque.
Observa-se com severidade que, na maioria daqueles campos, a dieta é ruim e monótona. De modo mais abonador, nota-se que, no período em questão, só num dos campos ocorreu um surto epidêmico - e isso depois que cinco detentos haviam sido transferidos para lá do superlotado cárcere de Kharkov.
No entanto, alguns detalhes do relatório servem para ilustrar a verdadeira natureza desses oito campos ucranianos. Um inspetor se queixa, por exemplo, de que num deles faltam "livros didáticos, lápis, cadernos, canetas". Há também um reparo severo sobre a propensão de certos detentos a apostar o alimento, às vezes perdendo antecipadamente meses de ração de pão - ao que parece, os elementos mais jovens dos campos são demasiado inexperientes para jogar cartas com os mais velhos.[286]
Os oito campos eram as colônias de menores. Isso porque nem todos os menores sob jurisdição do Gulag eram filhos de prisioneiros. Parte deles trilhara seu próprio caminho para os campos. Cometeram delitos e foram apanhados e mandados a campos especiais para menores delinqüentes. Tais estabelecimentos não só eram administrados pelos mesmos burocratas que geriam os campos para adultos, como também se pareciam com estes de muitas maneiras.
Na origem, os "campos infantis" foram organizados para os besprizornye, os órfãos, enjeitados e pequenos moradores de rua que haviam se perdido ou fugido dos pais durante os anos da Guerra Civil, da fome, da coletivização e das prisões em massa. No início da década de 1930, essas crianças de rua já eram espetáculo comum nas estações ferroviárias e nos parques públicos da URSS. O escritor russo Victor Serge as descreveu nestes termos:
Eu as vi em Leningrado e Moscou, morando nos esgotos, debaixo dos outdoors, nas criptas dos cemitérios, lugares dos quais eram as senhoras imperturbadas; realizando conferências noturnas em mictórios públicos; viajando em cima ou embaixo dos vagões. Emergiam, irritantes, pretas de suor, para pedir uns copeques aos viajantes e ficar à espreita da oportunidade de roubar alguma bagagem.[287]
Esses menores eram tão numerosos e problemáticos que, em 1934, o Gulag estabeleceu nos campos para adultos os primeiros berçários destinados a filhos de presos, objetivando impedir que tais crianças ficassem vagando pelas ruas.[288] Pouco depois, em 1935, o Gulag também resolveu instalar colônias especiais de menores. Estes eram capturados em grandes batidas nas ruas e depois mandados àquelas colônias, a fim de educar-se e preparar-se para ingressar na força de trabalho.
Em 1935, as autoridades soviéticas também aprovaram uma lei, tristemente célebre, que baixava para doze anos a maioridade penal. Depois disso, camponesas adolescentes detidas pelo furto de alguns grãos de trigo, ou filhos de "inimigos do povo" suspeitos de colaboração com os pais, iriam para a prisão juvenil junto com as menores prostitutas, os jovens punguistas, os meninos de rua e outros.[289] Nos anos 1930, segundo um relatório interno, agentes da NKVD detiveram uma tártara de doze anos que não falava russo e fora separada da mãe numa estação ferroviária. Deportaram-na, sozinha, para o extremo norte.[290]
Os menores delinqüentes da URSS eram tantos que, em 1937, a NKVD criou orfanatos de regime especial para quem desrespeitava sistematicamente as normas nos orfanatos comuns. Em 1939, os simplesmente órfãos já não eram mandados aos campos de menores: esses lugares agora estavam reservados aos meninos e meninas que de fato tinham sido condenados pelos tribunais ou pela osoboe soveshchanie (comissão especial).[291]
Apesar da ameaça de punição mais dura, o número de menores delinqüentes continuava a aumentar. A guerra não produziu apenas órfãos: havia também os que fugiam de casa; ou crianças que eram largadas à própria sorte porque o pai estava na frente de batalha e a mãe fazia turno de doze horas na fábrica; ou uma categoria inteiramente nova de criminoso, os menores operários que escapuliam de seus empregos fabris - às vezes depois que as fábricas haviam sido evacuadas para leste, longe de suas famílias - e, assim, desrespeitavam uma lei dos tempos de guerra - "Do abandono não-autorizado do trabalho nos empreendimentos militares".[292]
De acordo com as estatísticas da própria NKVD, os "centros de recepção" de menores recolheram em 1943-45 o extraordinário contingente de 842.144 crianças sem teto. A maioria foi mandada de volta aos pais, aos orfanatos ou às escolas profissionalizantes. Mas um número considerável (pelos registros, 52.830) foi designado para "colônias de trabalho educacional". Esse termo era nada mais que uma descrição palatável para campos de concentração infantis.[293]
De muitas maneiras, o tratamento dos menores em tais campos pouco diferia daquele conferido a seus pais. Os menores eram detidos e trasladados segundo as mesmas normas - com duas exceções: deviam ficar apartados dos adultos e não podiam ser alvejados caso tentassem fugir.[294] Eram mantidos no mesmo tipo de cárcere que os maiores de idade; suas celas eram separadas destes, mas se revelavam igualmente precárias. A descrição que um inspetor do Gulag faz de uma delas é deprimentemente familiar: "As paredes estão sujas; nem todos os presos têm beliches ou colchões. Não têm lençóis, fronhas nem cobertores. Na cela 5, por falta de vidraça, a janela está tapada com um travesseiro; e, na cela 14, uma janela não fecha de jeito nenhum".[295] Outro relatório diz que os cárceres de menores são "inaceitavelmente insalubres", com falta de água quente e de itens tão elementares como canecas, cuias e banquinhos.[296]
Alguns menores também eram interrogados como maiores. Após ter ficado detido no orfanato, Pyotr Yakir (que, vimos, tinha então catorze anos) foi primeiro colocado numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os adultos. Seu interrogador o acusou de "ter organizado um bando de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar atrás das linhas do Exéreito Vermelho", citando como prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida, Yakir foi condenado pelo crime de ser "elemento socialmente perigoso".[297] Jerzy Kmiecik, polonês de dezesseis anos capturado ao tentar atravessai a fronteira soviética rumo à Hungria (isso foi em 1939, na seqüência da invasão soviética da Polônia), também foi interrogado como maior. Eles o mantiveram em pé, ou sentado num banquinho sem encosto, por horas a fio; ainda o alimentaram com sopa salgada e lhe negaram água. Os interrogadores queriam saber, entre outras coisas, "quanto o sr. Churchill pagou a você para fornecer-lhe informações". Kmiecik não sabia quem era Churchill e pediu que lhe explicassem a pergunta.[298]
Os arquivos também conservam os registros de interrogatório de Vladimir Moroz, quinze anos, acusado de ter exercido "atividades contra-revolucionárias" no orfanato. A mãe e um irmão mais velho, de dezessete anos, já haviam sido aprisionados. O pai, fuzilado. Moroz mantivera um diário, encontrado pela NKVD, no qual execrava as "mentiras e calúnias" que diziam a seu redor: "Se alguém houvesse caído num sono profundo há doze anos e acordasse de repente agora, ficaria aturdido com as mudanças que ocorreram nesse período". Embora condenado a três anos no Gulag, Moroz morreria na cadeia em 1939.[299]
Esses não eram casos isolados. Em 1939, quando a imprensa soviética relatou alguns casos de oficiais da NKVD detidos por terem extraído confissões falsas, um jornal siberiano contou a história de 160 menores, a maioria com idade entre doze e catorze anos, mas alguns até de dez anos. Quatro oficiais da NKVD e os promotores dos processos foram condenados a penas de cinco a dez anos por terem interrogado aqueles menores. O historiador Robert Conquest escreve que as confissões foram obtidas "com relativa facilidade": "Um menino de dez anos cedeu após uma única noite de interrogatório e reconheceu ser membro de uma organização fascista desde os sete anos".[300]
Os menores aprisionados tampouco eram poupados das implacáveis exigências do sistema de trabalho escravo. Embora as colônias de menores não fossem, como regra, instaladas no âmbito dos campos madeireiros ou mineiros setentrionais, onde as condições eram bem mais severas, havia nos anos 1940 um lagpunkt no campo de Norilsk, no extremo norte. Alguns dos mil presos desse lagpunkt foram trabalhar na olaria de Norilsk; os outros foram postos para limpar neve. Entre eles, estavam algumas crianças de doze, treze e catorze anos, mas a maioria tinha quinze ou dezesseis - os mais velhos que isso já haviam sido transferidos para o campo dos adultos. Muitos inspetores reclamaram das condições no campo de menores de Norilsk, e ele acabou sendo deslocado para uma região mais meridional da URSS - não antes que muitos de seus detentos houvessem sucumbido às mesmas doenças que seus homólogos adultos contraíam por conta do frio e da desnutrição.[301]
Mais típico é o relatório ucraniano que explica que presos das colônias de trabalho de menores na Ucrânia receberam funções de marcenaria, metalurgia e costura.[302] Kmiecik, o qual esteve numa dessas colônias, perto de Zhitomir, trabalhou numa fábrica de móveis.[303] Ainda assim, tais colônias seguiam muitas das práticas dos campos para maiores. Havia metas de produtividade a atingir, metas e normas individuais a cumprir, um regime prisional a obedecer. Em 1940, uma ordem da NKVD estipulava que os menores de doze a dezesseis anos trabalhassem quatro horas por dia e passassem outras quatro horas em atividades escolares. A mesma ordem determinava que os menores de dezessete a dezoito anos trabalhassem oito horas por dia e dedicassem duas à escola.[304] No campo de Norilsk, não se observava esse regime, pois não havia nenhuma escola ali.[305]
No campo de menores em que Kmiecik ficou, as aulas eram apenas à noite. Entre outras coisas, ensinaram-lhe que "a Inglaterra é uma ilha na Europa ocidental [...]. E governada por lordes que usam becas vermelhas de gola branca. São donos dos trabalhadores, que dão duro para eles e aos quais pagam muito pouco".[306] Não que os menores estivessem ali primordialmente para ser educados: em 1944, Beria informou com orgulho a Stalin que os campos de menores do Gulag haviam contribuído de modo notável para o esforço de guerra, produzindo granadas, minas explosivas e outros itens no valor total de 150 milhões de rublos."[307]
No Gulag, os menores também se submetiam ao mesmo tipo de propaganda que os adultos. Jornais dos campos publicados em meados dos anos 1930 falam de stakhanovistas juvenis e cantam loas aos "de 35" - os meninos de rua colocados ali pela lei daquele ano -, enaltecendo os que tinham se regenerado pelo trabalho físico. Os mesmos jornais atacam os menores que não haviam entendido que "precisam abandonar seu passado, pois é hora de começar vida nova [...]. Carteado, bebedeira, vandalismo, malandragem, ladroeira etc. são vícios disseminados entre eles".[308] Para combater esse "parasitismo" juvenil, os menores deviam participar do mesmo tipo de concerto cultural e educacional que os adultos, entoando as mesmas canções stalinislas.[309]
Por fim, eram submetidos às mesmas pressões psicológicas que os adultos. Outra diretiva da NKVD, esta de 1941, requeria a organização de uma agenturno-operativnoe obsluzhwanie (rede de informantes) em suas colônias e centros de recepção de menores. Tinham se espalhado rumores de que, nesses campos, havia sentimento contra-revolucionário tanto entre os funcionários quanto entre os detentos, em especial os filhos de contra-revolucionários. Em certo campo, os menores até haviam encetado uma mini-revolta: tomaram e arrebentaram o refeitório e atacaram os guardas, ferindo seis destes.[310]
Só num aspecto os detentos dos campos de menores eram afortunados: ao contrário de outros de sua idade, não tinham sido mandados para os campos de concentração comuns, onde ficariam rodeados de criminosos adultos. De fato, assim como as onipresentes prisioneiras grávidas, o número sempre crescente de menores nos campos para adultos constituía eterna dor de cabeça para os comandantes. Em outubro de 1935, Yagoda escreveu a todos os comandantes de campo para dizer que, "a despeito de minhas instruções, menores presos não estão sendo mandados às colônias de trabalho especiais; em vez disso, misturam-se com adultos na cadeia". Pela contagem mais recente, afirmava Yagoda, ainda havia 4.305 menores nas prisões comuns.[311] Treze anos depois, em 1948, investigadores da promotoria-geral continuavam a queixar-se de que havia menores demais nos campos comuns, onde eram corrompidos pelos presos adultos. Até mesmo as autoridades de um campo perceberam quando um preso, o chefão da bandidagem ali, transformou um ladrãozinho de dezoito anos em matador de aluguel.[312] Os maloletki (menores delinqüentes) despertavam pouca compaixão entre os outros presos. "A fome e o horror do que acontecera os privara de todas as defesas", escreve Lev Razgon, o qual observou que os menores se aproximavam naturalmente dos indivíduos que pareciam ser os mais fortes. Esses últimos eram os criminosos de carreira, que faziam dos garotos "serviçais, escravos mudos, bufões, reféns e tudo mais" e convertiam menores de ambos os sexos à prostituição.[313] No entanto, essas vivências apavorantes não suscitavam muita piedade. Pelo contrário: na memorialística do Gulag, algumas das invectivas mais duras são dirigidas a tais adolescentes. Razgon diz que, não importando sua origem, todos os menores aprisionados logo "manifestavam uma crueldade assustadora e incorrigivelmente vingativa, sem freio e sem responsabilidade". Pior:
Não temiam nada nem ninguém. Os guardas e capatazes dos campos morriam de medo de entrar nos alojamentos separados onde ficavam os menores. Era ali que ocorriam os atos mais vis, mais impudentes e mais cruéis. Se um dos chefes da bandidagem jogava e perdia tudo após ter apostado até a vida, os garotos o matavam por uma ração diária de pão ou, simplesmente, "pela diversão". As garotas se gabavam de conseguir satisfazer uma turma inteira de lenhadores. Não restara nada de humano nesses menores, e era impossível achar que pudessem retornar ao mundo normal e tornar-se seres humanos comuns outra vez.[314]
Soljenitsin tem a mesma impressão:
Na consciência deles, não havia nenhuma linha demarcatória entre o que era e o que não era permissível, nenhum conceito de certo e errado. Para eles, tudo o que desejassem era bom, e tudo o que os atrapalhasse era mau. Adquiriam aquele comportamento descarado e insolente porque se tratava da conduta mais vantajosa no campo.[315]
O preso holandês Johan Wigmans também escreve sobre jovens que "provavelmente não chegavam a incomodar-se por estar nesses campos. Oficialmente, deviam trabalhar; na prática, porém, era a última coisa que faziam. Ao mesmo tempo, beneficiavam-se de 'proventos' regulares e de amplas oportunidades de aprenderem com seus cupinchas".[316]
Havia exceções. Aleksander Klein conta a história de dois meninos de treze anos, capturados como guerrilheiros anti-soviéticos, que foram condenados a vinte anos no Gulag. Os dois permaneceram dez anos nos campos, conseguindo manter-se juntos declarando greve de fome sempre que alguém os separava. Por causa da idade, as pessoas se apiedavam deles, dando-lhes serviço leve e comida extra. Os dois se matricularam em cursos técnicos no Gulag, vindo a ser profissionais competentes antes de serem libertados numa das anistias que se seguiram à morte de Stalin. Se não houvesse sido pelos campos, escreve Klein, "quem teria ajudado esses camponeses semi-analfabetos a tornar-se pessoas instruídas, bons especialistas?"[317]
Mas, no final dos anos 1990, quando comecei a procurar memórias escritas por pessoas que tinham sido menores prisioneiros, encontrei muita dificuldade para achar alguma. Só temos as memórias de Yakir e Kmiecik e um punhado de outras, reunidas pela Sociedade Memorial e outras organizações.[318] Contudo houvera milhares e milhares de tais menores, e muitos ainda deviam estar vivos. Até sugeri a uma amiga russa que puséssemos anúncio em jornal, na tentativa de localizar alguns desses sobreviventes para entrevistá-los. "Não faça isso", ela me recomendou. "Todos sabemos o que aquele tipo de gente virou." Décadas de propaganda, de cartazes ostentados nas paredes de orfanatos para agradecer a Stalin "a nossa feliz meninice", não tinham conseguido convencer o povo soviético de que as crianças do Gulag, as crianças das ruas e as crianças dos orfanatos houvessem se tornado outra coisa senão membros de carteirinha da grande e onipresente classe criminosa da URSS.
Quem está doente, imprestável,
Fraco demais para as minas,
E demovido, mandado
Ao campo mais abaixo
Para abater as árvores de Kolyma.
Parece muito simples
No papel. Mas não consigo esquecer
A fieira de trenós na neve
E as pessoas, arreadas.
Forcejando, os peitos cavados, elas puxam os trenós.
Ou param para descansar,
Ou vacilam nas encostas íngremes...
Aquele enorme peso rola abaixo
E, a qualquer momento,
As fará tropeçar.
Quem já não viu cavalo que tropica?
Mas nós... Nós vimos gente com arreios...
Elena Vladimirova, "Kolyma".[319]
Rabochaya zoha: a zona de trabalho
O trabalho era a função primordial da maioria dos campos soviéticos. Era a principal ocupação dos presos e a principal preocupação dos administradores. O cotidiano girava em torno do trabalho, e o bem-estar dos presos dependia de quão bem trabalhassem. No entanto, é difícil fazer generalizações sobre o que era o trabalho nos campos: a imagem do preso na tempestade de neve, minerando ouro ou carvão com uma picareta, é apenas estereótipo. Havia muitos de tais prisioneiros - milhões, como os números dos campos de Kolyma e Vorkuta deixam claro -, mas agora sabemos que também existiam campos no centro de Moscou onde presos projetavam aviões; campos na Rússia central onde presos construíam e operavam reatores nucleares; campos pesqueiros no litoral do Pacífico; campos no sul do Uzbequistão que eram fazendas coletivas. Os arquivos do Gulag em Moscou estão entupidos de fotos de presos com seus camelos.[320]
Sem nenhuma dúvida, a gama de atividades econômicas do Gulag era tão ampla quanto a de atividades econômicas da URSS. Um rápido olhar pelo Guia do sistema de campos de trabalhos correcionais da URSS - a mais abrangente lista dos campos elaborada até hoje - revela a existência de campos organizados em razão de minas de ouro, carvão, níquel; da abertura de rodovias e ferrovias; de fabricas de armamento, produtos químicos e produtos metalúrgicos; de usinas elétricas; da construção de aeroportos, prédios residenciais e sistemas de saneamento; da extração de turfa e madeira; do enlatamento de pescado.[321] Os próprios administradores do Gulag conservavam um álbum fotográfico dedicado tão-somente aos bens que os detentos produziam. Entre outras coisas, havia fotos de mísseis, minas explosivas e outros aparatos militares; autopeças, fechaduras e botões; toras boiando rios abaixo; artigos de madeira, inclusive cadeiras, armários, barris e cabines telefônicas; calçados, cestas e têxteis (com amostras anexas); tapetes, couros, gorros de pele e casacos de carneiro; copos, lâmpadas e frascos de vidro; sabão e velas; até brinquedos (tanques de guerra de madeira, minúsculos moinhos de vento, coelhos mecânicos que tocavam tambor).[322]
O trabalho variava dentro dos campos e entre eles. E verdade que, nos campos madeireiros, muitos presos não faziam nada senão derrubar árvores. Presos que cumpriam pena de três anos ou menos trabalhavam em "colônias de trabalho correcional", campos de regime brando que em geral operavam em função de uma única fábrica ou atividade. Em contrapartida, campos maiores podiam englobar vários ramos: minas, olaria e usina elétrica, assim como canteiros de obras de residências e estradas. Em tais campos, presos descarregavam os trens que diariamente traziam mercadorias; dirigiam caminhões; colhiam hortaliças; trabalhavam em cozinhas, hospitais e creches. Extra-oficialmente, presos também serviam de domésticos, babás e alfaiates para os guardas e comandantes dos campos e suas esposas.
Presos que cumpriam penas longas freqüentemente ocupavam ampla variedade de funções, mudando de trabalho ao sabor da sorte Em quase duas décadas de carreira nos campos, Evgeniya Ginzburg cortou árvores, cavou valas, limpou a casa de hóspedes do campo, lavou louça, cuidou de galinhas, foi lavadeira para esposas de comandantes de campo e olhou filhos de presas. Por fim, tornou-se enfermeira.[323] Outro preso político, Leonid Sitko, durante os onze anos que passou nos campos, foi soldador, trabalhador de pedreira, operário de uma turma de construção civil, carregador num depósito ferroviário, mineiro de carvão e marceneiro numa fábrica de móveis, produzindo mesas e estantes.[324]
Mas, embora os empregos pudessem ser tão variados no sistema de campos quanto o eram no mundo extramuros, os prisioneiros que trabalhavam costumavam dividir-se em duas categorias: os presos designados para obshchya raboty (serviços gerais) e os presos de confiança, chamados pridurki (monitores). Veremos que esses últimos tinham status de casta à parte. Os serviços gerais, sina da imensa maioria dos prisioneiros, eram trabalho braçal, sem qualificação, extenuante. "O primeiro inverno ali, em 1949-50, foi especialmente difícil para mim", escreveu Isaak Filshtinskii. "Eu não tinha um ofício que pudesse ser de utilidade nos campos, e fui forçado a ir de um lugar para outro, fazendo diversos tipos de serviço geral, serrando, carregando, puxando, empurrando etc. - em outras palavras, indo aonde desse na veneta do distribuidor de tarefas me mandar."[325]
A exceção daqueles que haviam tido sorte logo na primeira distribuição de trabalhos - em geral os que eram engenheiros civis ou outros membros de profissões úteis nos campos ou que, então, já tinham se estabelecido como informantes -, os zeks eram designados para os serviços gerais tão logo findava a semana (ou coisa parecida) de quarentena. Também eram designados para uma turma de trabalho, grupo que variava de quatro a quatrocentos zeks, os quais trabalhavam e comiam juntos e, em geral, dormiam nos mesmos alojamentos. Cada turma, ou "brigada", era comandada por um "brigadeiro", um preso de confiança que tinha status elevado e era encarregado de distribuir tarefas, supervisionar o trabalho e, sobretudo, garantir que a turma cumprisse as metas de produção. A importância do brigadeiro, cujo status se situava entre o de preso e o de administrador, não escapava às autoridades dos campos, Em 1933, o chefe do Dmitlag enviou ordem a todos os seus subordinados, lembrando-os da necessidade de "identificar entre nossos trabalhadores de choque aquelas pessoas capazes que são tão necessárias a nosso trabalho", pois "o brigadeiro é o elemento mais importante e relevante nos canteiros de obras".[326] Do ponto de vista dos outros presos, a relação corri o brigadeiro era mais que apenas importante: podia determinar qual seria a qualidade de vida deles e até se viveriam ou morreriam. Um preso escreveu:
A vida da pessoa depende muito da brigada e do brigadeiro, dado que se passa todos os dias e noites na companhia deles. No trabalho, no refeitório e nos beliches - sempre os mesmos rostos. Os integrantes da brigada podem trabalhar ou todos juntos, ou em grupos, ou individualmente. Podem nos ajudar a sobreviver - ou ajudar a nos destruir. Trata-se ou de compaixão e auxílio, ou de hostilidade e indiferença. O papel do brigadeiro não é menos importante. Também importa quem ele é e o que pensa de suas próprias tarefas e obrigações: servir a chefia à nossa custa e em benefício dele mesmo, tratando os integrantes da brigada como subalternos, serviçais e lacaios -ou ser nosso companheiro nas agruras e fazer todo o possível para tornar a vida mais fácil para a brigada.[327]
Alguns brigadeiros realmente ameaçavam e intimidavam sua força de trabalho. No primeiro dia nas minas de Karaganda, Alexander Weissberg fraquejou de fome e cansaço.
Com bramidos de touro alucinado, o brigadeiro então se voltou contra mim, golpeando-me com cada grama de sua compleição vigorosa, chutando, esmurrando e, por fim, dando-me tamanha pancada na cabeça que me estatelei, meio grogue, coberto de machucaduras, com sangue escorrendo pela cara.[328]
Em outros casos, o brigadeiro deixava que a própria turma de trabalho funcionasse como grupo paritário organizado, pressionando os Presos a dar mais duro mesmo quando não era essa vontade deles. Em certa altura do romance Um dia na vida de Ivan Denisovich, de Soljenitsin, o protagonista reflete que uma brigada dos campos
não é como uma turma de trabalho lá fora, onde fulano e sicrano ganham cada um seu salário. Nos campos, as coisas se dispõem de tal modo que o zek é mantido na linha não pelas chefias, mas pelos outros membros da turma. Ou todos ganham um prêmio extra, ou todos morrem juntos.[329]
Verno Kress, outro preso de Kolyma, era alvo de gritos e pancadas de seus camaradas de brigada por não conseguir acompanhar o ritmo deles; acabaria sendo mandado para uma brigada "fraca", cujos membros nunca recebiam a ração integral.[330] Yuri Zorin também passou pela experiência de ser parte de uma brigada realmente esforçada, na maioria composta de lituanos que não admitiam mandriões em suas fileiras: "Não dá nem para imaginar a vontade e o desvelo com que eles trabalhavam [...] se achavam que você não trabalhava direito, eles o chutavam para fora da brigada lituana".[331]
Caso se tivesse o azar de terminar numa brigada "ruim" e não se conseguisse subornar alguém ou se livrar daquilo, podia-se morrer de inanição. Uma vez, M. B. Mindlin (depois um dos fundadores da Sociedade Memorial) foi designado para uma brigada de Kolyma que se constituía sobretudo de georgianos e era liderada por um brigadeiro dessa nacionalidade. Mindlin logo percebeu que o grupo tinha tanto medo do brigadeiro quanto dos guardas do campo; e que ele, Mindlin, "o único judeu numa brigada de georgianos", não poderia contar com nenhum favor especial. Certo dia, ele trabalhou com especial afinco, na tentativa de ganhar a ração de nível mais alto (1.200 gramas de pão). O brigadeiro se negou a reconhecer aquele esforço e determinou que Mindlin recebesse só setecentos gramas. Apelando para o suborno, Mindlin trocou de brigada e encontrou ambiente completamente diverso: o novo brigadeiro se preocupava de fato com os subalternos e até lhes concedia alguns dias de trabalho mais leve no início, para que recuperassem as forças. "Todos os que entraram na brigada dele se consideravam afortunados e salvaram-se da morte." Posteriormente, o próprio Mindlin virou brigadeiro e tomou a iniciativa de distribuir suborno, para garantir que todos os integrantes de sua turma de trabalho conseguissem o melhor acerto possível com os cozinheiros, cortadores de pão e outras pessoas importantes no campo.[332]
A atitude dos brigadeiros importava porque, na maior parte das vezes, os serviços gerais não se destinavam a ser uma impostura ou não ter propósito. Se nos campos alemães o trabalho era "principalmente meio de tortura e maus-tratos" - nas palavras de um destacado estudioso -, os presos soviéticos, ao contrário, deviam cumprir este ou aquele aspecto do esquema de produção do campo.[333] E verdade que havia exceções à regra. Por vezes, guardas néscios ou sádicos impunham de fato tarefas despropositadas. Susanna Pechora se recordaria de ter sido designada para carregar baldes de argila de um lado para outro, "um serviço absolutamente sem sentido". Um dos capatazes encarregados de seu local de trabalho lhe disse especificamente: "Não preciso do seu trabalho, preciso é do seu sofrimento", frase que teria sido familiar aos presos de Solovetsky em 1926.[334] Na década de 1940, como veremos, também surgiria um sistema de campos disciplinares, cujo objetivo prioritário não era econômico, mas punitivo. Mesmo neles, porém, esperava-se que os presos produzissem alguma coisa.
Durante a maior parte do tempo, não se pretendia que os presos sofressem - ou talvez fosse mais exato dizer que ninguém se importava se eles sofriam ou não. Era muitíssimo mais importante que se encaixassem no esquema produtivo do campo e cumprissem uma meta de trabalho. Esta podia ser qualquer coisa: certo número de metros cúbicos de madeira por cortar, de valas por cavar, de carvão por carregar. E tais normas eram levadas muitíssimo a sério. Os campos estavam cobertos de cartazes que exortavam os presos a cumpri-las. Todo o aparato "cultural e educacional" do Gulag se votava à mesma mensagem. Os refeitórios ou pátios centrais de alguns campos ostentavam enormes quadros-negros relacionando todas as turmas de trabalho e os mais recentes resultados de produção de cada uma delas.[335]
As metas eram calculadas com muito cuidado e arrazoado cientifico pelo normirovshik, funcionário cujo trabalho acreditavam exigir grande perícia. Jacques Rossi menciona, por exemplo, que quem varria neve recebia diferentes metas, dependendo do tipo de neve: fresca; leve; ligeiramente compactada; compactada (exigindo pressão do pé na pá); muito compactada; ou congelada (exigindo uso de picareta), depois disso tudo, "uma série de coeficientes levava em conta o peso da neve, a distância a que a atiravam etc.".[336]
Mas, apesar de teoricamente científico, o processo de estabelecer metas de trabalho, e determinar quem as cumpriria, estava permeado de corrupção, irregularidade e incoerência. Para começo de conversa, os presos geralmente recebiam metas que correspondiam àquelas dos trabalhadores livres - deviam produzir o mesmo que lenhadores ou mineiros profissionais. Contudo, no mais das vezes, eles não eram lenhadores nem mineiros de ofício; com freqüência, tinham muito pouca noção do que deviam fazer; e, após longas estadas na cadeia e viagens aflitivas em vagões de gado sem aquecimento, tampouco estavam nas condições físicas da média dos trabalhadores livres.
Quanto mais inexperiente e exausto, mais o preso sofria. Evgeniya Ginzburg deixou uma descrição clássica sobre duas mulheres - ambas intelectuais não-afeitas ao trabalho braçal, ambas enfraquecidas por anos no cárcere - que tentavam cortar árvores:
Durante três dias, Galya e eu tentamos o impossível. Coitadas das árvores, como devem ter sofrido ao ser mutiladas por nossas mãos inábeis! Nós mesmas já estávamos meio mortas e, completamente sem qualificação, não tínhamos como dar conta delas. O machado escorregava e nos atirava uma chuva de lascas na cara. Serrávamos freneticamente, aos trancos, no íntimo acusando a outra de inépcia - mas sabendo que não podíamos nos dar ao luxo de brigar. Repetidas vezes, a serra emperrava. Todavia, o momento mais apavorante foi aquele em que a árvore enfim ficou a ponto de cair - só que não sabíamos para qual lado. Em certa altura, Galya foi atingida na cabeça, mas o enfermeiro se recusou até a passar iodo no corte, dizendo: "Ah-ah, esse truque é velho! Você está tentando ser dispensada do trabalho já no primeiro dia?!
Ao fim do dia, o brigadeiro declarou que Evgeniya e Galya haviam cumprido 18% da meta e lhes "pagou" pelo mau desempenho: "No dia seguinte, tendo recebido o pedacinho de pão que correspondia a nosso rendimento, fomos reconduzidas a nosso local de trabalho, literalmente cambaleantes". Entrementes, o brigadeiro ficava repetindo que "não pretendia desperdiçar comida valiosa com traidoras que não conseguiam cumprir a norma".[337]
Nos campos do extremo norte - em especial os de Kolyma, assim como os de Vbrkuta e Norilsk, localizados acima do Círculo Polar -, clima e o terreno agravavam as dificuldades. Com freqüência, ao contrário do que reza a crença popular, o verão dessas regiões árticas não era mais suportável que o inverno. Mesmo lá, as temperaturas podem subir acima de trinta graus Celsius. Quando vem o degelo, a tundra vira um lamaçal, dificultando a caminhada, e os mosquitos parecem deslocar-se em nuvens cinzentas, fazendo tanto ruído que é impossível ouvir outra coisa. Um preso se recordaria deles:
Enfiavam-se pelas mangas e pelas calças. A cara estourava de tantas picadas. O almoço nos era trazido ao local de trabalho, e, enquanto tomávamos a sopa, os mosquitos enchiam a cuia [...]. Eles nos cobriam os olhos e nos tapavam o nariz e a garganta, e tinham gosto adocicado, como o de sangue. Quanto mais nos mexíamos e os espantávamos, mais nos atacavam. O melhor era não ligar para eles, pôr roupa mais leve e, em vez de chapéu com mosquiteiro, usar um festão de grama ou de cortiça de bétula.[338]
Os invernos, é claro, eram muitíssimo gelados. As temperaturas podiam cair a 35, quarenta, 45 graus abaixo de zero. Memorialistas, poetas e romancistas tiveram grande dificuldade para descrever como era trabalhar nesse gelo. Um relatou que fazia tanto frio que "mesmo o mais simples e abrupto movimento de mão no ar causava um silvo extraordinário".[339] Outro contou que, numa manhã de véspera de Natal, ele acordou e descobriu que não conseguia mexer a cabeça.
Ao despertar, o que primeiro me ocorreu foi que ela, de algum modo, se prendera às tabuas do beliche durante a noite. Mas, quando tentei me erguer para sentar, vi que fora puxado o material que eu enrolara em volta da cabeça e das orelhas antes de ter ido dormir. Apoiado num cotovelo, fazendo força para levantar, dei um puxão no material e percebi que ele congelara e se grudara à madeira. Minha respiração e a respiração de todos os homens na cabana estavam suspensas no ar, como se fossem fumaça.[340]
Outro ainda escreveu que
era perigoso parar de mexer-se. Durante a contagem dos presos, nós pulávamos, corríamos sem sair do lugar e dávamos tapas no corpo para nos mantermos aquecidos. Eu não parava de massagear os dedos dos pés, e os das mãos estavam sempre crispados [...] se tocássemos ferramentas de metal com a mão nua, a pele podia ser arrancada, e as idas ao banheiro eram perigosíssimas. Uma crise de diarréia podia deixar a pessoa para sempre na neve.
Em conseqüência, alguns presos simplesmente sujavam as calças: "Trabalhar junto deles era desagradável, e de volta à tenda, quando começávamos a nos aquecer, o fedor se tornava insuportável. Quem fazia nas calças era muitas vezes espancado e posto para fora".[341]
No que se referia ao clima, certos serviços gerais eram piores que outros. Nas minas carboníferas do Ártico, conforme um preso, o ar subterrâneo era mais quente, mas a água gelada vivia pingando nos trabalhadores: "O mineiro se transforma numa espécie de gigantesco pingente de gelo, e seu organismo começa a congelar-se num período longo e estável. Depois de três ou quatro meses dessa labuta infernal, os presos passam a ter doenças generalizadas".[342]
Isaak Filshtinskii também acabou designado para um dos mais desagradáveis serviços de inverno no Kargopollag, separando toras que seriam processadas. Tinha-se de ficar em pé na água o dia inteiro, e, embora a água fosse morna (vinha bombeada da usina de força), o ar não o era:
Naquele inverno, dado que na região de Arcangel o frio se mantinha estável em quarenta, 45 graus abaixo de zero, uma névoa espessa pairava o tempo todo sobre a água. Era simultaneamente muito gelado e muito molhado [...] o trabalho não era muito difícil, mas, após trinta ou quarenta minutos, o corpo inteiro ficava permeado e envolto pela umidade; o queixo, os lábios e as pestanas, cobertos de gelo; e o frio penetrava até os ossos, atravessando a lastimável indumentária do campo.[343]
No inverno, os piores serviços eram nas florestas. Isso porque, nessa estação, a taiga é não apenas gelada mas também periodicamente varrida por tempestades de inverno, chamadas burany oupurgai, que são violentas e imprevisíveis. Dmitrii Brystoletov, preso no Siblag, foi apanhado por uma delas:
Naquele instante, o vento começou a uivar de modo furioso e apavorante, e tivemos de nos prostrar. A neve redemoinhava no ar; tudo sumiu - as luzes do campo, as estrelas, a aurora boreal -, e ficamos sozinhos numa névoa branca. Abrindo bem os braços, escorregando e tropeçando desajeitadamente, caindo e nos apoiando uns aos outros, tentamos achar o caminho de volta quanto antes. De repente, um trovão ribombou acima de nós. Eu mal conseguira segurar-me a um companheiro quando uma violenta enxurrada de gelo, neve e pedra começou a nos atingir no rosto. A neve rodopiante não nos permitia respirar nem enxergar.[344]
Janusz Bardach, quando trabalhava numa pedreira em Kolyma, também se viu numa dessas tempestades. Ele e os outros presos, junto com os guardas, voltaram para o campo seguindo os cães de guarda, ligados uns aos outros por uma corda:
Eu não enxergava nada para além das costas de Yuri e me aferrava à corda como se ela fosse um bote salva-vidas [...] Depois que os referenciais de sempre sumiram, eu já não fazia idéia de quanto ainda precisávamos percorrer, e tinha certeza de que nunca conseguiríamos voltar. Pisei em alguma coisa mole - um preso que soltara a corda. "Parem!", berrei. Mas ninguém parou. Ninguém conseguia ouvir minha voz. Eu me inclinei e puxei o braço dele para a corda. "Aqui!" Tentei fazer que sua mão se agarrasse à corda. "Segure-se!" Não adiantou nada. O braço do homem despencou quando o soltei. A ordem severa de Yuri, que mandava seguir em frente, me fez continuar.
Quando a turma de trabalho de Bardach retornou ao campo, faltavam três presos. Em geral, "os corpos dos prisioneiros que se perdiam só eram encontrados na primavera, muitas vezes a menos de cem metros da zona prisional".[345]
A indumentária regulamentar destinada aos presos lhes proporcionava pouca proteção contra as intempéries. Em 1943, por exemplo, a direção central do Gulag ordenou que eles recebessem, entre outras coisas, camisa de verão, para durar duas estações; calças de verão, também para duas estações; casaco de inverno, acolchoado, de algodão, para dois anos; calças de inverno, acolchoadas, para dezoito meses; botas de feltro, para dois anos; e roupa de baixo, para nove meses.[346] Na prática, nunca havia quantidade suficiente desses itens, já em si parcos. Em 1948, uma inspeção de 23 campos relatou que o abastecimento de "indumentária, roupa de baixo e calçado é insatisfatório". Esse "insatisfatório" parece ter sido eufemismo. Num campo em Krasnoyarsk, menos de metade dos prisioneiros estava calçado. Em Norilsk, no extremo norte, só 75% tinham botas quentes, e só 86% estavam agasalhados. Em Vorkuta, também no extremo norte, apenas 25% a 30% dos presos possuíam roupa de baixo, e somente 48% contavam com botas quentes.[347]
Na falta de calçado, os presos improvisavam. Faziam botas de cortiça de bétula, trapos, pneus velhos. No melhor dos casos, essas soluções eram desajeitadas e duras, em especial na neve profunda. No pior, não eram herméticas, praticamente garantindo que o usuário sofreria queimaduras de frio.[348] Elinor Lipper descreveria suas botas caseiras, que no campo onde ela estava tinham o apelido Che-Te-Ze, abreviação russa de "Fábrica de Pneus de Chelyabinsk":
Eram de aniagem levemente acolchoada, com cano alto e largo, que chegava ao joelho; o calçado em si era reforçado com encerado ou couro sintético no dedão e no calcanhar. A sola era feita de três seções transversais de borracha, tiradas de pneus carecas. A coisa toda era amarrada ao pé com barbante; também se usava barbante para amarrá-las abaixo do joelho, a fim de que a neve não entrasse [...] depois de um dia de uso, ficavam totalmente retorcidas, e as solas, fraquinhas, entortavam-se de todos os jeitos. Essas botas absorviam umidade com inacreditável rapidez, sobretudo quando os sacos de aniagem de que eram feitas tinham sido empregados para acondicionar sal.[349]
Outro preso descreve uma improvisação parecida: "Os lados eram abertos, de modo que os dedos ficavam expostos ali. Não se conseguia amarrar bem o pano que envolvia os pés, e assim os dedos também ficavam suscetíveis ao congelamento". Como resultado do uso desse calçado, o preso ganhou mesmo queimaduras de frio - o que, entretanto, ele acreditava ter-lhe salvado a vida, pois ficou dispensado de trabalhar.[350]
Diferentes prisioneiros tinham diferentes teorias de como lidar com o frio. Para recuperarem-se do congelamento ao fim do dia, por exemplo, alguns corriam aos alojamentos e se apinhavam em volta do fogareiro, chegando tão perto que às vezes as roupas pegavam fogo: "O cheiro repugnante de trapos queimando nos chegava às narinas".[351] Outros consideravam esse procedimento uma insensatez. Prisioneiros mais experientes disseram a Isaak Filshtinskii que se juntar em volta do fogareiro ou da fogueira do campo era perigoso porque a súbita mudança de temperatura causava pneumonia: "O organismo humano é constituído de maneira tal que, não importando quão baixa a temperatura, o corpo se ajusta e se acostuma. Sempre segui essa sábia norma no campo, e nunca sequer me resignei".[352]
As autoridades dos campos estavam obrigadas a fazer algumas concessões por causa do frio. Pelas regras, os presos de certos campos setentrionais recebiam rações adicionais. Mas estas, segundo documentos de 1944, podiam corresponder a não mais que cinqüenta gramas de pão extra por dia, o que nem de longe bastava para contrabalançar o frio extremo.[353] Em teoria, quando fazia frio demais, ou quando uma tempestade se aproximava, os presos nem deveriam trabalhar. Vladimir Petrov afirmaria que, durante a administração de Eduard Berzin em Kolyma, os prisioneiros largavam o serviço quando as temperaturas desciam a quinze graus negativos. No inverno de 1938-9, após a destituição de Berzin, elas tinham de cair a cinqüenta graus negativos antes que se interrompesse o trabalho. Petrov escreve que nem mesmo tal determinação era sempre seguida, pois a única pessoa que tinha termômetro naquela jazida de ouro era o comandante do campo. Em conseqüência, "só três dias daquele inverno foram de folga ocasionada pelas baixas temperaturas; no inverno de 1937-8, haviam sido quinze".[354]
Kazimierz Zarod, outro memorialista, registraria que a temperatura de interrupção do trabalho em seu campo, durante a Segunda Guerra Mundial, era de 49 graus negativos; ele recordaria uma ocasião em que sua turma de lenhadores recebeu ordens de voltar ao campo durante o dia porque o termômetro indicava 53 graus negativos. "Com que rapidez juntamos o equipamento, formamos coluna e iniciamos o regresso ao campo!"[355] Bardach lembra que em Kolyma, durante os anos de guerra, a norma eram cinqüenta graus negativos, "embora nunca levassem em conta a sensibilidade térmica".[356]
Mas o clima não era o único obstáculo ao cumprimento das metas. Em muitos campos, elas eram absurdamente elevadas. Em parte, isso era conseqüência indireta da lógica do planejamento central soviético, a qual impunha que as empresas aumentassem a produção todo ano. Elinor Olitskaya recordaria que suas companheiras forcejavam para cumprir as metas numa oficina de costura, querendo manter-se naquele trabalho aquecido, em recinto fechado. Mas, como elas as cumpriam, a administração do campo vivia elevando as metas, até que se tornaram inatingíveis.[357]
As metas também ficavam mais exigentes porque tanto presos quanto normirovshiki mentiam, exagerando o trabalho que fora ou seria realizado. Com o tempo, o resultado era que, às vezes, elas se tornavam estratosféricas. Alexander Weissberg recordaria que, mesmo em funções supostamente mais fáceis, as metas desafiavam a credulidade: "Todos pareciam às voltas com urna tarefa praticamente impossível. Os dois encarregados da lavanderia tinham de lavar as roupas de oitocentos homens em dez dias".[358]
Não que superar as metas acarretasse necessariamente as vantagens esperadas. Antoni Ekart se lembraria de quando se rompeu o gelo do rio próximo de seu campo e houve ameaça de enchente: 'Várias brigadas, constituídas dos presos mais fortes, aí incluídos todos os 'trabalhadores de choque', labutaram como loucos durante dois dias, praticamente sem intervalo. Pelo que realizaram, receberam um arenque para cada dois homens e um pacote de makhorka [fumo cru] para cada quatro".[359]
Em tais condições - com jornadas longas, poucos dias de folga e pouco descanso durante o dia -, os acidentes eram freqüentes. No inicio dos anos 1950, mandaram um grupo de prisioneiras inexperientes apagar um incêndio no mato perto do Ozerlag. Só naquela ocasião, lembraria uma das condenadas, "várias pessoas queimaram até a morte".[360] Também com freqüência, a exaustão e o clima se revelavam uma combinação mortífera, conforme atesta Alexander Dolgun:
Dedos enregelados e adormecidos não conseguiam segurar alças, alavancas, vigas e caixotes, e ocorriam muitos acidentes, amiúde fatais Um homem foi esmagado quando rolávamos toras de um vagão-plataforma, usando duas como rampa. Ficou soterrado quando vinte toras ou mais se soltaram de uma vez e ele não se afastou rápido o bastante. Os guardas empurraram o corpo de lado, na plataforma, e aquela massa coberta de sangue coagulado nos aguardava para ser levada para casa quando a noite caísse. [361]
Moscou compilava estatísticas de acidentes, e de vez em quando elas provocavam altercações entre inspetores e comandantes de campo. Uma dessas compilações, referente ao ano de 1945, discriminava 7.124 acidentes nas minas carboníferas de Vorkuta, dos quais 482 haviam resultado em lesões sérias e 137 em óbitos. Os inspetores punham a culpa na escassez de lanternas de mineiro, em falhas elétricas e na inexperiência e freqüente rotação dos operários. Furiosos, esses inspetores calcularam o número de homens/dia perdidos em decorrência de acidentes: 61.492.[362]
Organização absurdamente ruim e gestão desleixada também dificultavam o trabalho. Embora seja importante observar que mesmo os locais de trabalho comuns eram mal administrados na URSS, a situação era pior no Gulag, onde a vida e a saúde dos trabalhadores não eram consideradas importantes e a chegada regular de peças de reposição para o equipamento encontrava problemas por causa do clima e das enormes distâncias. O caos reinava no Gulag desde os tempos do Canal do Mar Branco, e essa situação continuou pela década de 1950, mesmo depois que se mecanizaram muito mais locais de trabalho no país. Para quem fazia trabalho madeireiro, "não havia motosserras, nem tratores para levantar toras, nem carregadores mecânicos".[363] Quem trabalhava em indústrias têxteis recebia "ferramentas que eram ou muito poucas, ou muito inadequadas". Segundo um testemunho, isso significava que "todas as costuras precisavam ser passadas com um ferro enorme, que pesava dois quilos. Tinha-se de passar 426 calças durante o turno; as mãos adormeciam com o peso, e as pernas inchavam e doíam".[364]
A maquinaria também vivia quebrando, fator que não era necessariamente levado em conta quando se calculavam as metas. Na mesma unidade têxtil, "chamavam-se os mecânicos de manutenção o tempo todo Eram na maioria mulheres condenadas. Os consertos demoravam horas, pois elas não tinham qualificação. Ficava impossível realizar a quantidade obrigatória de trabalho, e, como resultado, não recebíamos nenhum pão".[365]
O tema da maquinaria quebrada e dos técnicos de manutenção inábeis surge repetidas vezes nos anais da administração do Gulag. Em 1934, administradores regionais de campos que compareceram à Conferência Partidária do Extremo Oriente, em Khabarovsk, queixaram-se de que as constantes interrupções na provisão de equipamento e a pouca qualificação dos técnicos implicavam que não conseguissem cumprir as metas de produção de ouro.[366] Uma carta de 1938 ao vice-ministro do Interior encarregado do Gulag afirma que "de 40% a 50% dos tratores estão quebrados". Mas até métodos de trabalho mais primitivos também falhavam com freqüência. Uma carta do ano anterior observava que dos 36.491 cavalos disponíveis no Gulag, 25% não estavam em condições de uso.[367]
As empresas do Gulag se ressentiam igualmente da falta de engenheiros e gestores. Poucos técnicos qualificados se apresentavam de livre e espontânea vontade para trabalhar em projetos do Gulag, e os que de fato se ofereciam não tinham necessariamente as habilidades requeridas. No decorrer dos anos, envidaram-se muitos esforços para atrair trabalhadores livres para os campos, e davam-se enormes incentivos. Já em meados da década de 1930, recrutadores da Dalstroi faziam campanha pelo país, oferecendo privilégios especiais a qualquer um que assinasse contrato de trabalho de dois anos. Entre os atrativos, incluíam-se salário 20% superior à média soviética por aqueles dois primeiros anos e 10% superior pelos anos seguintes, assim como férias remuneradas, acesso a comestíveis e suprimentos especiais e uma aposentadoria generosa.[368]
Os campos do extremo norte também eram descritos com muito alarde e entusiasmo na imprensa soviética. Um exemplo clássico desse tipo de propaganda apareceu em inglês, na Sonetland, revista escrita para estrangeiros. Num artigo de abril de 1939 dedicado a Magadan, entoavam-se loas ao mágico atrativo da cidade:
O mar de luzes que é Magadan à noite constitui espetáculo dos mais arrebatadores e cativantes. Trata-se de uma cidade que está viva e buliçosa em todos os minutos do dia e da noite. Ela fervilha de pessoas cujas vidas são reguladas por rigoroso cronograma de trabalho. Exatidão e prontidão implicam celeridade, e celeridade implica trabalho fácil e prazeroso.[369]
Não se faz nenhuma menção ao fato de que as pessoas cujas vidas estavam "reguladas por rigoroso cronograma de trabalho" eram prisioneiras.
Não que isso importasse: tais esforços não conseguiram mesmo atrair o número necessário de especialistas, restando ao Gulag depender de presos. Um deles relataria que, junto com uma brigada de construção, foi enviado seiscentos quilômetros ao norte de Magadan para erguer uma ponte. Quando chegaram, perceberam que ninguém na brigada construíra pontes antes. Um dos presos, um engenheiro, viu-se encarregado do projeto, ainda que pontes não fossem sua especialidade. A ponte foi construída. Também foi levada de roldão na primeira enchente.[370]
Esse, porém, foi um desastre menor se comparado a alguns outros. Houve projetos inteiros do Gulag, empregando milhares de pessoas e enormes recursos, que se revelaram espetacularmente anti-econômicos e mal concebidos. Talvez o mais famoso tenha sido a tentativa de construir urna ferrovia da região de Vorkuta à foz do Ob, no oceano Ártico. A decisão de iniciar as obras foi tomada pelo governo soviético em abril de 1947. Um mês depois, o desbravamento, o levantamento topográfico e a construção tiveram início simultâneo. Prisioneiros também começaram a construir um novo porto de mar no cabo Kamenny, onde o Ob se alarga rumo ao mar.
Como de hábito, houve complicações: não se dispunha de tratores em número suficiente, de modo que os presos usaram velhos tanques de guerra. Os planejadores compensaram a falta de máquinas sobrecarregando os prisioneiros. Jornadas de onze horas eram normais, e às vezes, durante os longos dias de verão, até trabalhadores livres ficavam nas obras das nove da manhã à meia-noite. No final do ano, as complicações se tornaram mais sérias. A equipe topográfica determinara que o cabo Kamenny era má localização para o porto: não havia calado-d'água suficiente para navios de porte, e o solo era instável demais para indústrias pesadas. Em janeiro de 1949, Stalin convocou uma reunião, altas horas da noite, em que a liderança soviética resolveu mudar não só o local da obra, mas também a ferrovia: agora, a linha ligaria o Ob não com a região de Vorkuta (a oeste), mas com o rio Ienissei (a leste). Construíram-se mais dois campos: o canteiro de obras 501 e o canteiro de obras 503. Ambos começaram a assentar os trilhos ao mesmo tempo. A idéia era encontrarem-se no meio do traje-to. A distância entre eles era de 1.300 quilômetros.
As obras continuavam. No auge do projeto, segundo uma fonte, eram 80 mil pessoas trabalhando; segundo outra, eram 120 mil. O projeto ficou conhecido como "Estrada da Morte". A construção se revelou quase impossível na tundra ártica. Quando o permafrost de inverno se transformava rapidamente em lama de verão, tinha-se de lutar o tempo todo para impedir que os trilhos se retorcessem ou afundassem. Mesmo com esse esforço, os vagões freqüentemente descarrilavam. Por problemas de abastecimento, os presos começaram a usar madeira em lugar de aço na construção ferroviária - uma decisão que veio selar o fracasso do projeto. Em 1953, à época da morte de Stalin, haviam-se construído quinhentos quilômetros de um dos extremos, duzentos do outro. O porto existia apenas no papel. Semanas após o funeral de Stalin, o projeto inteiro, que custara 40 bilhões de rublos e dezenas de milhares de vidas, foi abandonado de vez.[371]
Em escala menor, tais histórias se repetiam todos os dias, por todo o Gulag. No entanto, apesar do clima, da inexperiência e da má gestão, a pressão sobre os administradores dos campos, e sobre os presos, nunca amainava. As chefias eram submetidas a infindáveis inspeções e programas de fiscalização e viviam sendo exortadas a melhorar o desempenho. Os resultados, por mais que fossem fictícios, tinham importância. Por mais ridículo que possa ter parecido aos prisioneiros - os quais sabiam perfeitamente quanto o trabalho era acochambrado -, a brincadeira era terrivelmente séria. Muitos dos presos não sobreviveriam a ela.
KVCh: o Departamento de Cultura e Educação
Caso não estivesse claramente indicado que elas pertenciam ao arquivo da NKVD, o observador casual poderia ser desculpado se achasse que as fotos do Bogoslovlag - que aparecem num álbum cuidadosamente conservado, datado de 1945 - não eram de um campo de concentração. As imagens mostram jardins bem plantados, flores, arbustos, um chafariz e um quiosque em que os presos podiam sentar e conversar. A entrada do campo é marcada por uma estrela vermelha e um slogan: "Votamos todas as nossas forças para o poderio futuro da pátria!"
As fotos de presos que adornam outro álbum, arquivado ali perto, são igualmente difíceis de conciliar com a imagem popular que se tem dos detentos do Gulag. Há um homem que, contente, segura uma abóbora; vacas puxam arado; um sorridente comandante de campo colhe uma maçã. Ao lado das imagens, vêem-se gráficos. Um mostra a produção planejada do campo; o outro, o cumprimento da meta.[372]
Todos esses álbuns - montados, colados e etiquetados com o mesmo zelo que as crianças demonstram quando elaboram um trabalho para apresentação em classe - foram produzidos por uma só instituição: o Departamento de Cultura e Educação do Gulag (Kolturno-vospitatelnaya Chast, ou KVCh, como era mais conhecido dos presos). Ele, ou algum equivalente, existia desde o início do Gulag. Em 1924, a primeira edição do Slon, o periódico da prisão de Solovetsky, continha um artigo sobre o futuro dos estabelecimentos prisionais no país: "A política de trabalho correcional da Rússia precisa reabilitar os presos acostumando-os a participar do trabalho produtivo organizado".[373]
Na maioria das vezes, porém, o verdadeiro objetivo da propaganda dos campos era aumentar as cifras de produção. Foi esse o caso até durante a construção do Canal do Mar Branco, quando, como já vimos, a propaganda de "reabilitação" teve sua fase mais ostensiva e, talvez, mais sincera. Naquela época, o culto nacional do trabalhador de choque estava no auge. No campos, artistas pintavam retratos dos melhores operários do canal, e atores e músicos montavam espetáculos e concertos especiais para eles. Os trabalhadores de choque eram até convidados a enormes assembléias, nas quais se cantava e discursava. Uma delas, realizada em 21 de abril de 1933, foi seguida de uma "investida de trabalho": durante 48 horas, nenhum dos 30 mil trabalhadores de choque deixou o local de serviço.[374]
Esse tipo de atividade foi abandonado sem nenhuma cerimônia no final dos anos 1930, quando os presos se tornaram "inimigos do povo" e já não podiam simultaneamente ser "trabalhadores de choque". Mesmo assim, depois que Beria assumiu os campos (1939), a propaganda foi aos poucos retornando. Embora nunca mais tivesse havido outro Canal do Mar Branco - um projeto do Gulag cujo "êxito" fora alardeado para o mundo -, a linguagem da reabilitação voltou aos campos. Em teoria, na década de 1940, todo campo tinha um instrutor do KVCh, assim como uma pequena livraria e um "clube" do KVCh, onde se organizavam concertos e exibições teatrais e ocorriam palestras e debates políticos. Thornas Sgovio se recordaria de um desses clubes:
O recinto principal, acomodando cerca de trinta pessoas, tinha paredes de madeira pintadas em cores vistosas. Havia algumas mesas, em princípio para leitura. Contudo não existiam livros, jornais nem outros periódicos. E como poderia ler sido diferente? Os jornais valiam seu peso em ouro - nós os usávamos para fazer cigarros.[375]
A partir dos anos 30, os presos com ficha criminal eram supostamente os principais "clientes" do KVCh. Assim como não estava claro se presos políticos seriam autorizados a ocupar cargos de especialistas, tampouco estava claro se valeria a pena tentar reabilitá-los. Em 1940, uma diretiva da NKVD sobre o trabalho cultural e educacional nos campos afirmou categoricamente que quem cometera crimes anti-revolucionários não era material adequado para reabilitação. Nas montagens teatrais dos campos, esses elementos podiam tocar instrumentos, mas não falar nem cantar.[376]
Como em tantas outras situações, tais ordens eram mais desconsideradas do que obedecidas. E, também como em tantas outras situações, a verdadeira função do KVCh na vida dos campos diferia daquilo que os poderosos do Gulag haviam tido em mente para o departamento. Se Moscou pretendia que o KVCh obrigasse os presos a darem mais duro, os presos então usavam o KVCh a seu próprio modo: para obter apoio moral - e para sobreviver.
Em vista disso, parece que os instrutores culturais e educacionais nos campos procuravam difundir entre os presos o valor do trabalho, de maneira bem semelhante àquela com que representantes do Partido Comunista procuravam fazê-lo fora do mundo prisional. Nos campos maiores, o KVCh produzia jornais locais. Às vezes eram jornais de verdade, com reportagens e longos artigos sobre os êxitos do campo, assim como com "autocríticas" - comentários sobre o que estava errado no estabelecimento -, as quais eram de rigor na imprensa soviética. Afora um breve período no começo da década de 1930, esses jornais se destinavam sobretudo aos administradores e aos trabalhadores livres.[377]
Para os presos, também havia jornais murais (afinal, ocorria escassez de papel). Um prisioneiro descreveu os jornais murais como "um atributo do modo de vida soviético - ninguém os lia, mas eles apareciam regularmente". Com freqüência, tinham "seções humorísticas":
Obviamente, presumiam que trabalhadores que estavam morrendo de inanição leriam aquilo, dariam uma gostosa gargalhada e, por fim, chamariam à razão os folgados que não queriam saldar através do trabalho honesto a dívida com a pátria.[378]
Por mais risíveis que os jornais murais pudessem parecer a muitos, a direção do Gulag, em Moscou, os levava muito a sério. Esses jornais, ordenava uma diretiva, devem "ilustrar os melhores exemplos de trabalho, popularizar os trabalhadores de choque, condenar os refratários e mandriões". Não se permitiam imagens de Stalin - afinal, aqueles eram criminosos, não "camaradas", e continuavam "excomungados" da vida soviética, proibidos até de contemplar o rosto do líder Ademais, a freqüentemente absurda atmosfera de sigilo que se abatera sobre os campos em 1937 perdurou por toda a década de 40: jornais que eram impressos nos campos não podiam sair dali.[379]
Além de pôr jornais em paredes, o KVCh exibia filmes. Gustav Herling assistiu a um musical americano, "cheio de mulheres de corpete e homens de plastrom e paletó acinturado", e a um filme de propaganda que concluía com "o triunfo da virtude": "Os desajeitados universitários ficavam em primeiro lugar na competição laborai socialista e, com olhos chamejantes, faziam um discurso que enaltecia o Estado no qual o trabalho manual fora elevado à mais excelsa posição".[380]
Entrementes, alguns presos comuns se aproveitavam das salas escuras onde se projetavam os filmes para matar outros, por vingança ou não. "Ao fim de uma dessas exibições, lembro-me de ter visto o corpo de um morto passar numa maca", disse-me uma pessoa que estivera aprisionada no Gulag.[381]
O KVCh também promovia partidas de futebol ou xadrez, concertos e apresentações que eram solenemente denominadas "atividades criativas autodidáticas". Um documento de arquivo relaciona o seguinte repertório, de um conjunto de canto e dança da NKVD que fazia turnê pelos campos:
Ainda havia números mais ligeiros, como "Vamos fumar" e "Canção do Dnieper", que pelo menos celebrava um rio, e não uma instituição da polícia secreta. No repertório teatral, também se incluíam algumas peças de Tchekhov. Mas, pelo menos em teoria, o grosso dos esforços artísticos se destinava à educação, e não ao entretenimento, dos presos. Em 1940, uma ordem de Moscou declarava: "Toda apresentação deve educar os presos, ensinando-os a valorizar mais o trabalho".[383] Como veremos, os presos também aprendiam a usar essas apresentações para ajudá-los a sobreviver.
Mas as "atividades criativas autodidáticas" não eram a única preocupação do Departamento de Cultura e Educação - nem eram o único caminho para uma carga de trabalho mais branda. O KVCh era igualmente responsável por reunir sugestões de como melhorar ou "racionalizar" o trabalho dos presos, tarefa que o departamento levava muito a sério. No relatório semestral a Moscou, um campo em Nizhne-Amursk afirmava, sem ironia, ter obtido 302 racionalizações, das quais 157 haviam sido postas em prática, tendo-se economizado assim 812.332 rublos.[384]
Isaak Filshtinskii também observa, com muita ironia, que alguns presos se tornavam peritos em distorcer essa política em proveito próprio. Um deles, ex-motorista, garantia saber como construir um mecanismo que possibilitaria aos carros usarem oxigênio como combustível. Os chefes do campo, empolgados com a perspectiva de descobrir uma "racionalização" realmente importante, deram-lhe um laboratório onde pudesse desenvolver a idéia.
Não sei dizer se acreditavam nele ou não. Estavam simplesmente cumprindo determinações do Gulag. Em todo campo, pessoas deviam trabalhar como racionalizadores e inventores [...] e - quem sabe? - talvez Vdovin acabasse descobrindo alguma coisa, e aí todos ganhariam o Prêmio Stalin!
Vdovin foi enfim desmascarado no dia em que voltou do laboratório com um gigantesco objeto feito de sucata, cujo propósito ele se mostrou incapaz de explicar.[385]
Assim como no mundo extramuros, os campos de concentração continuavam a realizar "competições socialistas", nas quais os presos deviam concorrer uns contra os outros para elevar a produção. Os campos também homenageavam seus trabalhadores de choque pela suposta capacidade de triplicar ou quadruplicar as metas de produção. No capítulo 4, já descrevi a primeiras dessas campanhas, que começou nos anos 1930, mas elas continuaram pelos 40 - com entusiasmo sensível-mente menor e exagero sensivelmente mais absurdo. Os presos que participavam podiam ganhar muitos tipos diferentes de prêmio. Alguns recebiam maiores rações ou melhores condições de vida. Outros, gratificações mais intangíveis. Em 1942, por exemplo, o prêmio pelo bom desempenho podia abranger uma knizhka otlichnika, a caderneta concedida àqueles que alcançavam o status de trabalhadores "ótimos". Ela compreendia um pequeno calendário, com espaço para registrar em porcentagem o cumprimento das metas diárias; um espaço em branco para sugerir "racionalizações"; uma lista dos direitos do detentor da caderneta - a prerrogativa de ficar com o melhor lugar no alojamento, ter os melhores uniformes, receber remessas externas sem restrições etc.; e uma citação de Stalin: "A pessoa esforçada sente-se um cidadão livre de seu país, uma espécie de ativista social. E, se ela der duro, e der o que puder à sociedade, será um herói do trabalho".[386]
Nem todos levavam esse prêmio muito a sério. O preso polonês Antoni Ekart também descreveria uma de tais campanhas:
Pendurava-se um Quadro de Honra (feito de compensado), no qual se indicavam os resultados das Competições dos Trabalhadores Socialistas à medida que eram anunciados. Às vezes, exibia-se um retrato tosco do "trabalhador de choque" que estava na frente, dando detalhes dos recordes quebrados. Expunham-se números quase inacreditáveis, mostrando uma produção 500% ou até 1.000% acima do normal. Isso se referia a cavar buracos com pás. Até os presos menos atilados sabiam ser impossível conseguir cavar cinco ou dez mais do que o padrão.[387]
Mas, no fim das contas, os instrutores do KVCh também tinham a responsabilidade de convencer os "folgados" de que era do interesse deles trabalhar, e não ficar em celas punitivas, nem tentar sobreviver com rações pequenas. Fica claro que não muitos instrutores levavam tais palestras a sério - havia tantas outras maneiras de persuadir os presos a trabalhar! Todavia, uns poucos as levavam, para júbilo dos maiorais do Gulag, em Moscou. Estes, aliás, consideravam importantíssima aquela função do KVCh e até promoviam conferências periódicas de instrutores, para debater temas como "Quais as motivações básicas daqueles que se recusam a trabalhar?" e "Quais os resultados práticos da eliminação do dia livre dos presos?".
Numa dessas reuniões, durante a Segunda Guerra Mundial, os organizadores trocaram impressões. Um deles reconheceu que alguns "folgados" não conseguiam trabalhar porque estavam fracos demais para conseguir manter-se com a quantidade de alimento que recebiam. Ainda assim, alegou que mesmo os famintos podiam ser motivados: ele dissera a um refratário que o comportamento deste era "como uma faca cravada nas costas de teu irmão, que está na frente de batalha". Tinha sido o suficiente para fazer o homem esquecer a fome e dar mais duro. Outro dos instrutores presentes afirmou ter mostrado a alguns refratários fotos de "Leningrado em batalha", depois do que todos eles foram de imediato para o trabalho. Outro ainda disse que, em seu campo, as melhores brigadas podiam decorar os respectivos alojamentos; e que os melhores trabalhadores eram estimulados a plantar flores em vasos individuais, deles próprios. Nas atas da reunião (conservadas em arquivo), alguém fez uma anotação ao lado desse último comentário: Korosho! ("Excelente!").[388]
Compartilhar experiências dessa maneira era considerado tão importante que, no auge da guerra, o Departamento de Cultura e Educação do Gulag em Moscou se deu ao trabalho de imprimir um folheto sobre o assunto. O título - com conotações claramente religiosas - era Retorno à vida. O autor, certo camarada Loginov, descreve uma série de relacionamentos que teve com presos "mandriões". Utilizando astutas táticas psicológicas, converteu cada um deles para a crença no valor do trabalho duro.
As histórias que Loginov conta são bem previsíveis. Numa delas, por exemplo, explica a Ekaterina Sh. (esposa instruída de um condenado à morte por espionagem em 1937) que a vida dela, embora arruinada, podia voltar a ter sentido no contexto do Partido Comunista. Loginov também expõe ao preso Samuel Goldshtein as "teorias raciais" de Hitler e esclarece o que a "Nova Ordem" nazista na Europa acarretaria para ele, Goldshtein. O prisioneiro, de tão inspirado com esse surpreendente (na URSS) apelo a sua judaicidade, quer partir na mesma hora para a frente de batalha. Loginov lhe diz que, "hoje, tua arma é teu trabalho"; e o convence a dar mais duro no campo de concentração. "Tua pátria precisa de teu trabalho - e de ti", diz a outro preso ainda, que, com lágrimas nos olhos, volta ao serviço ao ouvir tais palavras.[389]
Fica evidente que o camarada Loginov se orgulha de sua função e se dedica a ela com muita energia. O entusiasmo dele era real. As recompensas que recebeu por seu trabalho, também: V. G. Nasedkin então chefe de todo o sistema Gulag, mostrou-se tão satisfeito com o empenho de Loginov que premiou o autor com uma gratificação de mil rublos e ordenou que o panfleto fosse enviado a todos os campos do sistema.
Está menos claro se Loginov e seus mandriões acreditavam de fato no que ele dizia. Não sabemos, por exemplo, se Loginov entendia em alguma medida que muitas das pessoas que ele estava tentando "trazer de volta à vida" eram inocentes de todo e qualquer crime. Tampouco sabemos se pessoas como Ekaterina Sh., caso tenha existido, realmente se reconverteram aos valores soviéticos; ou se de repente perceberam que, aparentando ter-se convertido, talvez recebessem melhor comida, melhor tratamento, trabalho mais fácil. As duas possibilidades nem chegam a ser mutuamente excludentes. Para pessoas aturdidas e desorientadas com a rápida transição de cidadãos úteis a prisioneiros desprezados, "ver a luz" e regressar à sociedade soviética pode não só tê-las ajudado a restabelecer-se psicologicamente, mas também ter-lhes proporcionado a melhoria de condições que lhes salvou a vida.
Aliás, a pergunta "Será que eles acreditavam no que estavam fazendo?" é parte pequena de uma questão muito maior, a qual vai ao fundo do caráter da URSS: será que algum dos líderes daquele país chegou a acreditar no que eles próprios estavam fazendo? A relação entre a propaganda e a realidade soviéticas sempre foi estranha: as fábricas mal conseguem funcionar, não há nada para comprar no comércio, velhinhas não têm condições de aquecer seus apartamentos - e, nas ruas lá fora, faixas proclamam o "triunfo do socialismo" e as "heróicas realizações da pátria soviética".
Nos campos do Gulag, tais paradoxos não eram diferentes. Stephen Kotkin, em sua obra sobre a história de Magnitogorsk, assina-la que, no jornal da colônia de trabalho correcional dessa cidade fabril stalinista, os perfis dos condenados regenerados eram escritos numa "linguagem que lembrava muito o que se podia ouvir a respeito de operários-padrão fora da colônia: eles davam duro, estudavam, sacrificavam-se e procuravam aprimorar-se".[390]
Não obstante, havia nos campos um nível extra de singularidade. Se no mundo extramuros a enorme disparidade entre esse tipo de propaganda e a realidade soviética já parecia risível a muitos, no Gulag o absurdo dava a impressão de alcançar novas culminâncias. Nos campos, onde os presos viviam sendo chamados de "inimigos", estando categoricamente proibidos de tratarem-se por "camarada" e contemplarem o retrato de Stalin, eles mesmo assim deviam trabalhar pela glória da pátria socialista, tal qual os homens e mulheres livres - e ainda participar de "atividades criativas autodidáticas" como se o fizessem por puro e simples amor à arte. O despropósito ficava bastante claro para todos. Em certa altura de sua carreira no Gulag, Anna Andreevna se tornou "artista" do campo, significando que era empregada para pintar aqueles slogans. Esse serviço, leve pelos padrões dos campos, lhe salvou certamente a saúde e possivelmente a vida. Mas, entrevistada anos depois, Anna afirmou nem sequer se lembrar dos dizeres. Disse achar que "a chefia os concebia. Algo como 'Dedicamos todas as nossas forças ao trabalho' ou coisa assim [...]. Eu os pintava muito depressa e, estritamente falando, muito bem, mas esqueci por completo o que escrevia. Isso aconteceu por alguma espécie de mecanismo de autodefesa".[391]
Também chamou a atenção de Leonid Trus (prisioneiro no começo dos anos 1950) o despropósito dos slogans que estavam fixados por todas as construções do campo e que eram repetidos pelos alto-falantes:
Havia um sistema de rádio do campo, que regularmente transmitia informações sobre nossos êxitos no trabalho e ralhava com quem não trabalhava direito. Essas transmissões eram muito canhestras, mas me faziam lembrar as que eu ouvira em liberdade. Acabei convencendo-me de que a única diferença era que, em liberdade, as pessoas eram mais talentosas e sabiam descrever tudo aquilo de modo mais bonitinho [...] em geral, o campo era igual à liberdade - os mesmos cartazes, os mesmos slogans -, só que [no Gulag] as frases soavam mais absurdas. "Pegaram o serviço e o concluíram", por exemplo. Ou "Na URSS, o trabalho é questão de honestidade, honra, bravura e heroísmo" - palavras de Stalin. Ou todos os outros slogans, como "Somos pela paz" ou "Desejamos a paz para o mundo inteiro".[392]
Os estrangeiros que não estavam acostumados a slogans e faixas achavam o trabalho dos "reeducadores" ainda mais esquisito. O polonês Antoni Ekart descreveria uma típica sessão de doutrinação política:
O método utilizado era o seguinte: um homem do KVCh, um agitador profissional com a mentalidade de uma criança de seis anos, falava aos presos sobre a nobreza de envidarem todos os seus esforços no trabalho. Dizia-lhes que pessoas nobres eram patriotas; que todos os patriotas amavam a Rússia Soviética, o melhor país do mundo para os trabalhadores; que os cidadãos soviéticos se orgulhavam de pertencer a um país assim etc. etc., durante duas horas inteiras - e isso tudo para um público cuja própria aparência era testemunho do absurdo e da hipocrisia de tais afirmações. Mas o orador não se incomodava com a fria acolhida e continuava falando. Por fim, prometia a todos os "trabalhadores de choque" mais gratificação, maiores rações e melhores condições. Pode-se imaginar o efeito disso em quem estava submetido à disciplina da fome.[393]
Um polonês desterrado teve a mesma reação a uma palestra propagandística a que assistiu num campo de concentração siberiano.
Durante horas e horas, o palestrante não parou de falar, tentando provar que Deus não existia, que Ele era apenas uma invenção burguesa. Devíamos nos considerar afortunados por estarmos na URSS, o país mais perfeito do mundo. Ali no campo, aprenderíamos a trabalhar e enfim ser pessoas dignas. De quando em quando, ele procurava nos instruir: assim, contava-nos que "a Terra é redonda" e que ele estava absolutamente convencido de que não sabíamos nada disso; de que também ignorávamos, por exemplo, que Creta era "peninsular", ou que Roosevelt era ministro de algum país estrangeiro. Comunicava verdades desse tipo com uma confiança inabalável em nossa total falta de conhecimento, pois como podíamos nós, criados num Estado burguês, esperar ter o benefício da educação mais elementar que fosse? [...] com muita satisfação, enfatizava que não poderíamos sequer sonhar em recuperar a liberdade, pois a Polônia jamais se reergueria.
Infelizmente para o coitado do palestrante, todo o seu trabalho não adiantou de nada, segundo o polonês: "Quanto mais ele arengava, mais nos rebelávamos intimamente, mantendo a esperança apesar de tudo. Os rostos se endureceram de obstinação".[394]
Gustav Herling, outro polonês, descreveria as atividades culturais de seu campo de concentração como
vestígios dos regulamentos elaborados em Moscou nos tempos em que os campos realmente se destinavam a ser instituições correcionais e educacionais. Gogol teria detectado aquela obediência cega a uma ficção oficial, mesmo que contraditória com a prática geral no campo - era como educar "almas mortas".[395]
Tais opiniões não são casos isolados: encontram-se na imensa maioria dos registros, que ou nem mencionam o KVCh, ou o ridicularizam. Por esse motivo, é difícil, quando se escreve sobre a função da propaganda no Gulag, avaliar a importância dela para a direção do sistema. Por um lado, pode-se muito bem argumentar - e muitos o fazem - que a propaganda nos campos, assim como toda a propaganda soviética, era pura farsa; que ninguém lhe dava crédito; que era produzida pela administração dos campos só para iludir os prisioneiros de maneira bastante pueril e óbvia.
Por outro lado, se a propaganda, os cartazes e as sessões de doutrinação política eram completamente ridículos - e se ninguém acreditava neles de jeito nenhum -, então por que se desperdiçava tanto tempo e tanto dinheiro com aquilo? Tomando como amostra só os registros da administração do Gulag, há centenas e mais centenas de documentos que atestam o trabalho intensivo do Departamento de Cultura e Educação. Por exemplo, no primeiro trimestre de 1943, quando a guerra estava no auge, os campos e Moscou trocavam telegramas frenéticos, pois comandantes tentavam desesperadamente obter instrumentos musicais para os presos. Ao mesmo tempo, os campos promoviam um concurso cujo tema era "A grande guerra patriótica do povo soviético contra os ocupantes fascistas alemães" e do qual participavam cinqüenta pintores e oito escultores. Num tempo de escassez nacional de mão-de-obra, os órgãos centrais também recomendavam que todo campo empregasse um bibliotecário; um projetista para exibir filmes de propaganda; e um kulturorganizator, prisioneiro que servia de assistente ao instrutor cultural e ajudava a travar a "batalha" pela limpeza, a organizar as atividades artísticas, a elevar o nível cultural dos presos - e a ensiná-los a "entender corretamente as questões da política contemporânea".[396]
Os instrutores culturais dos campos ainda apresentavam relatórios semestrais ou trimestrais sobre seu trabalho, muitas vezes arrolando com grande minúcia suas realizações. Também em 1943, o instrutor cultural no Vosturallag (na época um campo para 13 mil presos) enviou um desses relatórios. Com 21 páginas, começava reconhecendo que, no primeiro semestre daquele ano, as metas industriais do campo "não foram cumpridas". No segundo semestre, porém, tomaram-se providências. O Departamento de Cultura e Educação ajudara a "mobilizar os presos para cumprirem e superarem as metas de produção estabelecidas pelo camarada Stalin", a "restabelecer a saúde dos presos e fazer os preparativos para o inverno" e a "eliminar deficiências no trabalho cultural e educacional".[397] Em seguida, o chefe do KVCh no campo listava os métodos que empregava. Assinalava grandiosamente que, naquele segundo semestre, fizeram-se 762 discursos políticos, aos quais assistiram mais de 70 mil presos (é de supor que muitos tenham ido mais de uma vez). Ao mesmo tempo, o KVCh promovera 444 palestras de informação política, com presença de 82.400 presos; imprimira 5.046 jornais murais, lidos por 350 mil pessoas; apresentara 232 concertos e peças; exibira 69 filmes; e organizara 38 grupos de teatro. Um desses últimos até compusera uma canção, citada com orgulho no relatório:
A brigada é simpática,
O dever nos chama,
O canteiro de obra nos aguarda,
A frente de batalha precisa de nosso trabalho.[398]
Pode-se tentar aventar explicações para esse enorme esforço. Na burocracia do Gulag, talvez o Departamento de Cultura e Educação fosse o derradeiro bode expiatório: se as metas não estavam sendo cumpridas, a culpa não era da má organização, nem da desnutrição, nem das práticas de trabalho estupidamente cruéis, nem da falta de botas de feltro - era, isto sim, da propaganda insuficiente.
Talvez o motivo fosse a rígida burocracia do sistema: tão logo a cúpula decidia que precisava haver propaganda, todos tentavam obedecer à ordem sem questionar se era ou não absurda.
Talvez a liderança moscovita estivesse tão isolada dos campos que realmente acreditasse que 444 palestras e 762 discursos políticos fariam homens e mulheres famélicos trabalharem com mais afinco (ainda que isso pareça improvável, dadas as informações também disponíveis para essa mesma liderança nos relatórios dos inspetores dos campos).
Ou talvez não haja nenhuma boa explicação. Vladimir Bukovsky, o dissidente soviético que depois também foi prisioneiro, dava de ombros quando lhe perguntavam sobre isso. Segundo Bukovsky, aquele paradoxo era o que tornava o Gulag excepcional:
Em nossos campos, esperava-se não apenas que fossemos trabalhadores escravos, mas que também cantássemos e sorríssemos enquanto trabalhávamos. Não queriam só nos oprimir - queriam que lhes agradecêssemos por isso.[399]
Quem ainda não esteve lá, estará.
Quem já esteve, nunca esquecerá.
Provérbio soviético acerca das prisões.[400]
Shizo: as celas punitivas
Muito poucos campos de concentração soviéticos chegaram ao presente intactos, ou mesmo em ruínas. Por isso, é curioso que bom número de shtrafnye izolyhateri (celas de isolamento, ou, no inevitável acrônimo, Shizo) continue de pé. Do lagpunkt 7 do Ukhtpechlag, só resta o pavilhão de celas punitivas, agora a oficina de um mecânico de autos armênio. Ele deixou as grades nas janelas tal qual estavam, na esperança, segundo ele, de que "Soljenitsin compre meu imóvel". Do lagpunkt agrícola de Aizherom, no Lokchimlag, não resta nada - exceto, mais uma vez, as celas punitivas, hoje transformadas na residência de várias famílias. Uma das idosas que moram ali elogia a solidez de uma das portas. Esta ainda tem no meio um grande "buraco de Judas", pelo qual os guardas outrora espiavam os presos e lhes atiravam rações de pão.
A longevidade desses pavilhões é testemunho da robustez de sua construção. Sendo freqüentemente as únicas obras de alvenaria num campo de madeira, eram a zona prisional dentro da zona prisional. Entre suas paredes, tinha-se o rezhim dentro do rezhim. "Uma edificação sombria de pedra" foi como um preso descreveu o pavilhão punitivo em seu campo. "Portões externos, portões internos, sentinelas armadas a toda volta."[401]
Na década de 1940, Moscou já emitira instruções minuciosas, descrevendo tanto a construção das celas punitivas quanto as normas para os condenados a viver ali. Cada lagpunkt (ou grupo de lagpunkts, no caso dos menores) tinha um pavilhão punitivo, em geral logo do lado de fora da zona prisional, ou, se ficasse do lado de dentro, "cercado por uma cerca intransponível", a alguma distância das outras edificações do campo. De acordo com um preso, essa restrição talvez não fosse necessária, já que muitos prisioneiros procuravam evitar a cela punitiva "circundando-a à distância, nem sequer olhando na direção daquelas paredes de pedra cinzenta, interrompidas por abertura que pareciam exalar um vazio escuro e gelado".[402]
Todo complexo de campos devia também ter um pavilhão central de celas punitivas perto da sede (Magadan, Vorkuta, Norilsk). Na realidade, esse pavilhão central era muitas vezes uma cadeia enorme, que conforme as normas, "deve estar em local o mais distante possível das regiões habitadas e das vias de transporte, ser bem guardado e assegurar completo isolamento. A guarda deve compor-se apenas dos atiradores mais confiáveis, disciplinados e experientes, selecionados dentre os trabalhadores livres". Tais cadeias centrais continham tanto celas comuns quanto solitárias. Essas últimas tinham de ficar numa construção especial, à parte, e eram reservadas a "elementos particularmente nocivos". Os presos mantidos em isolamento não eram levados para trabalhar. Ademais, ficava-lhes vedado todo tipo de exercício, além de fumo, papel e fósforo. Isso vinha acrescer-se às restrições "ordinárias" que se aplicavam a quem estava nas celas comuns: nada de cartas, nada de remessas de fora, nada de visitas de familiares.[403]
A primeira vista, a existência das celas punitivas parece contradizer os princípios econômicos gerais em que se baseava o Gulag. Manter edificações especiais e guardas adicionais era caro. Manter detentos longe do trabalho era desperdício. Todavia, do ponto de vista da administração dos campos, as celas eram não uma forma extra de tortura, e sim parte integral do vasto esforço para fazer os presos darem mais duro. Junto com as rações reduzidas, o regime punitivo se destinava a (1) intimidar os otkazchiki, os que se recusavam a trabalhar; e (2) castigar os perpetradores de algum crime no campo, como homicídio ou tentativa de fuga.
Dado que esses dois tipos de delito tendiam a ser cometidos por diferentes tipos de preso, as celas punitivas, em alguns campos, tinham ambiente esquisito. De um lado, estavam repletas de bandidos profissionais, mais propensos a matar e escapar. De outro lado, porém, outra categoria começou a lotá-las: os presos religiosos, tanto homens quanto mulheres, as monashki, "freiras" que, por princípio, também se negavam a trabalhar para o Satã soviético. A finlandesa Aino Kuusinen, por exemplo, estava num lagpunkt de Potma cujo comandante construiu um barracão punitivo só para mulheres profundamente religiosas que "se recusavam a trabalhar na lavoura e passavam o tempo rezando em voz alta e entoando hinos". Elas não comiam com as outras prisioneiras; em vez disso, recebiam rações disciplinares naquele barracão. Duas vezes ao dia, guardas armados as acompanhavam à latrina. "De tempos em tempos, o comandante as visitava de rebenque na mão, e gritos agudos de dor ressoavam no barracão; elas costumavam ser despidas antes de açoitadas, mas nenhuma crueldade conseguia fazê-las desistir das preces e dos jejuns." Acabaram sendo levadas embora. Aino acreditava que houvessem sido fuziladas.[404]
Outros tipos de "refratários" inveterados também iam parar em celas punitivas. Aliás, a própria existência dessas celas impunha uma escolha aos presos: podiam ou trabalhar, ou ficar alguns dias ali, virando-se com rações menores, sofrendo frio e desconforto, mas não se estafando nas florestas e outros locais de trabalho. Lev Razgon narra a história do conde Tyszkiewicz, aristocrata polonês que, vendo-se num campo madeireiro siberiano, calculou que não sobreviveria com as rações fornecidas e simplesmente se negou a trabalhar. Estimou que assim pouparia as forças, mesmo recebendo apenas a ração disciplinar.
Toda manhã, antes que as colunas de zeks se alinhassem no pátio e os presos fossem conduzidos marchando para fora do campo, dois carcereiros tiravam Tyszkiewicz da cela punitiva. Pêlos curtos e grisalhos lhe cobriam o rosto e a cabeça rapada, e ele trajava os restos de um antigo capote, mais polainas. O oficial encarregado da segurança do campo dava início à reprimenda didática de todos os dias: "Pois bem, seu conde de m..., seu m... estúpido, vai ou não vai trabalhar?"
"Não, senhor, não posso trabalhar", respondia o conde com voz muito firme.
"Ah, não pode, não é, seu m...?"
O oficial então explicava publicamente ao conde o que pensava deste e de seus parentes próximos e distantes e o que faria com ele logo, logo. Esse espetáculo diário era fonte de satisfação geral para os outros detentos.[405]
Mas, embora Razgon conte a história com humor, tal estratégia era muito arriscada, pois o regime punitivo não era concebido para ser aprazível. Oficialmente, as rações disciplinares diárias para presos que não cumpriam as metas eram de 300 gramas de "pão preto de centeio", 5 gramas de farinha, 25 gramas de trigo-sarraceno ou macarrão, 27 gramas de carne e 170 gramas de batata. Se bem que essa já fosse uma quantidade ínfima de comida, os presos que ficavam nas celas punitivas recebiam ainda menos: 300 gramas daquele pão preto ao dia, mais
água quente e "alimento líquido quente" (ou seja, sopa) só uma vez a cada três dias.[406]
Contudo, para a maioria dos presos, o aspecto mais desagradável do regime punitivo estava não no sofrimento físico - a edificação isolada, a comida ruim -, mas nos outros suplícios que dessem na veneta do comando local. Os beliches compartilhados, por exemplo, podiam ser substituídos por um simples banco. Ou o pão podia ser feito com cereal não-processado. Ou então o "alimento líquido quente" podia ser mesmo bem aguado. Janusz Bardach foi posto numa cela punitiva cujo piso ficava coberto de água e cujas paredes eram encharcadas e cobertas de limo:
Minha roupa de baixo já estava molhada, e eu tremia. Sentia rigidez e cãibras no pescoço e nos ombros. A madeira do banco, bruta e ensopada, estava apodrecendo, principalmente nas beiradas [...] o banco era tão estreito que eu não conseguia deitar de costas, e, quando ficava de lado, as pernas pendiam da beirada; tinha de mantê-las dobradas o tempo todo. Difícil mesmo era resolver de que lado deitar: de um lado, a cara ficava espremida contra a parede; de outro, as costas ficavam molhadas.[407]
A umidade era comum, assim como o frio. Embora as normas determinassem que a temperatura nas celas punitivas não podia ser inferior a dezesseis graus, o aquecimento era com freqüência negligenciado. Gustav Herling lembraria que, em seu pavilhão punitivo, "as janelas das pequenas celas não tinham nem vidraças nem tábuas, de modo que a temperatura nunca era mais alta que lá fora". Herling descreveria outras maneiras pelas quais as celas eram concebidas para criar desconforto:
Minha cela era tão baixa que eu conseguia tocar o teto com a mão [...] era impossível sentar no beliche de cima sem dobrar as costas contra o teto; só se podia entrar no de baixo com um movimento de mergulho, e para sair era preciso alçar-se da madeira, como um nadador num banco de areia. A distância entre a beirada do beliche e o balde sanitário na porta era de menos que uma passada normal.[408]
Os comandantes de campo também estavam autorizados a decidir se os presos usariam roupa na cela (muitos eram mantidos só de roupa de baixo) e se os mandariam para o trabalho. Quando os presos não trabalhavam, permaneciam no frio das celas o dia todo, sem exercício. Quando trabalhavam, passavam muita fome. Nadezhda Ulyanovskaya ficou um mês à base de rações disciplinares, mas ainda assim a fizeram trabalhar. "Vivia com vontade de comer", escreveria. "Comecei a falar só de comida."[409] Por causa das mudanças freqüentemente inesperadas no regime punitivo, os presos morriam de medo de ser mandados para as celas. "Ali, presos choravam feito crianças, prometendo ser bonzinhos só para sair", escreveria Herling.[410]
Nos complexos maiores, havia tipos diversos de tormento: não apenas celas punitivas, mas também barracões e até lagpunkts punitivos. Em 1933, o Dmitlag, campo que construiu o Canal Moscou-Volga, estabeleceu um "lagpunkt de regime estrito" para "refratários ao trabalho, fujões, larápios e outros". A fim de garantir a segurança, a chefia do campo prescreveu que o novo lagpunkt tivesse cerca dupla de arame farpado; que guardas adicionais conduzissem os presos ao trabalho; e que os presos fizessem trabalho braçal pesado em locais de onde fosse difícil escapar.[411]
Mais ou menos na mesma época, a Dalstroi criou um lagpunkt disciplinar, que, no final dos anos 1930, se tornaria um dos mais infames do Gulag: Serpantinnaya (ou Serpantinka), na encosta setentrional dos montes logo acima de Magadan. Cuidadosamente situado para receber muito pouco sol, mais frio e mais escuro que os outros campos do complexo (localizados no vales e já bem frios e escuros durante grande parte do ano), o campo punitivo da Dalstroi era mais fortificado que outros lagpunkts e também serviu de local de execução em 1937 e 1938. Seu nome era usado para amedrontar os presos, que igualavam a ida para Serpantinka à sentença de morte.[412] Um dos pouquíssimos sobreviventes descreveria o alojamento como "tão superlotado que os prisioneiros se revezavam para sentar no chão, enquanto todos os restantes permaneciam de pé. Pela manhã, a porta se abria, e chamavam de dez a doze presos pelo nome. Ninguém respondia. Aí, os primeiros que estavam à mão eram arrastados para fora e fuzilados".[413]
Na realidade, sabe-se muito pouco sobre Serpantinka, em boa parte porque sobrou tão pouca gente para dizer como era o campo. Sabe-se ainda menos sobre lagpunkts punitivos estabelecidos em outros lugares; por exemplo, o de Iskitim (do complexo do Siblag), construído numa pedreira de calcário. Ali, os presos trabalhavam sem maquinaria e sem equipamento, escavando com as mãos. Cedo ou tarde, a poeira matava muitos, em decorrência de doenças pulmonares e outros problemas respiratórios.[414] Anna Larina, a jovem esposa de Bukharin, ficou encarcerada lá durante breve período. A maior parte dos outros prisioneiros (e mortos) de Iskitim continua anônima.[415]
Não foram, porém, esquecidos de todo. O sofrimento dos cativos afetou tão profundamente a imaginação do povo de Iskitim que, muitas décadas depois, o surgimento de uma nova fonte de água numa colina ao lado do antigo campo seria saudada como um milagre. Dado que o barranco abaixo da fonte era, segundo a tradição local, lugar de execuções em massa de prisioneiros, os habitantes acreditavam que a água santa era a maneira pela qual Deus decidira manter viva a lembrança daqueles mortos. Num dia silencioso e gelado no final do inverno siberiano, quando o solo ainda estava coberto por um metro de neve, pude ver grupos de fiéis subirem o morro até a fonte, encherem garrafas e canecas de plástico com a água límpida e a bebericarem reverentemente - às vezes olhando, de modo solene, para o barranco lá embaixo.
POCHTOVYI YASHCHIK: A CAIXA DO CORREIO
A Shizo era a máxima punição do sistema penal. Entretanto, o Gulag também fazia agrados aos detentos - contrabalançando castigos com recompensas. Junto com a comida, o sono e o trabalho, o campo controlava o contato dos presos com o mundo extramuros. Ano após ano, os administradores do Gulag em Moscou enviavam instruções, fixando quantas cartas e remessas de gêneros ou dinheiro os detentos podiam receber e quando e como os familiares podiam visitá-los.
Assim como as instruções referentes às celas punitivas, as normas que regiam esses contatos variaram com o tempo. Ou talvez seja mais exato dizer que, de modo geral, os contatos foram ficando mais limitados com o passar dos anos. As instruções que descreviam em termos genéricos o regime prisional de 1930, por exemplo, estipulavam apenas que os presos podiam enviar e receber um número ilimitado de cartas e remessas. Também se permitiam as visitas de familiares, sem restrições específicas, embora o número de visitas (o qual não vinha determinado nas instruções) dependesse do bom comportamento do preso.[416]
Contudo, em 1939, as instruções já eram muito mais detalhadas. Afirmavam especificamente que apenas os presos que cumprissem as metas de produção poderiam encontrar-se com os parentes, e mesmo assim só de seis em seis meses. Quem excedesse as metas teria direito a uma visita por mês. As remessas de fora também se tornaram mais limitadas: os presos em geral podiam receber somente uma por mês, e os condenados por crimes anti-revolucionários, uma a cada três meses.[417]
Em 1939, já surgiram igualmente inúmeras regras para o envio e recebimento de cartas. Alguns presos políticos podiam receber cartas uma vez por mês; outros, apenas a cada três meses. Ademais, os censores dos campos proibiam categoricamente os presos de escrever sobre certos assuntos: não podiam indicar o número de detentos em seu respectivo campo, discutir detalhes do regime prisional, mencionar guardas pelo nome ou dizer que tipo de trabalho se realizava ali. Cartas que continham tais detalhes eram não apenas confiscadas por aqueles censores, mas também cuidadosamente registradas na ficha do preso - sendo de supor que se fazia isso para usá-las como prova de "espionagem".[418]
Todos esses regulamentos eram sempre modificados, emendados e adaptados às circunstâncias. Durante a guerra, por exemplo, suspenderam-se todas as restrições ao número de remessas de alimentos recebidas - as autoridades dos campos parecem ter tido a esperança de que os familiares simplesmente ajudassem a alimentar os presos, tarefa que, na época, era difícil ao extremo para a NKVD. Por outro lado, depois da guerra, prisioneiros em campos disciplinares especiais para criminosos violentos - bem como em campos especiais para presos políticos - viam diminuir outra vez o direito ao contato com o mundo extramuros. Estavam autorizados a escrever só quatro vezes por ano e receber cartas apenas de parentes próximos (pais, irmãos, cônjuges e filhos).[419]
Justamente porque os regulamentos eram tão variados e complexos, e porque eles mudavam com tanta freqüência, os contatos externos acabavam ficando (mais uma vez) ao bel-prazer dos comandantes de campo. Cartas e remessas certamente nunca chegavam às celas, alojamentos ou lagpunkts punitivos. Tampouco chegavam a presos do quais as autoridades, por alguma razão, não gostassem. Além disso, havia campos que simplesmente eram demasiado isolados e, por conseguinte, não recebiam nenhuma correspondência.[420] E existiam campos tão desorganizados que nem se preocupavam em distribuir a correspondência. Um desgostoso fiscal da NKVD escreveu que, num deles, "cartas e remessas de gêneros e de dinheiro não são entregues aos presos e jazem aos milhares em depósitos e guaritas".[421] Em grande numero de campos, as cartas eram recebidas com atraso de meses. Isso quando eram: muitos presos só souberam anos depois que inúmeras cartas e remessas suas haviam sumido, e ninguém sabia informar se tinham sido roubadas ou perdidas. Na situação inversa, presos que haviam sido categoricamente proibidos de receber cartas acabavam recebendo-as mesmo assim, apesar do empenho dos administradores de campos.[422]
De outra parte, alguns censores não somente cumpriam sua obrigação e distribuíam as cartas, como até deixavam algumas passar invioladas. Dmitrii Bystroletov se recordaria de uma censora que se portava assim, uma konsomolka (membro da Juventude Comunista) que entregava aos presos cartas que não haviam sido nem abertas. "Ela estava arriscando não um mero pedaço de pão, mas a própria liberdade: podia ser condenada a dez anos."[423]
Havia, é claro, maneiras de burlar tanto a censura quanto as restrições ao número de cartas. Certa vez, Anna Razina recebeu do marido uma carta dentro de um bolo (naquele momento, o marido já fora executado). Ela também viu cartas levadas para fora do Gulag às escondidas, enfiadas em solas de sapatos ou costuradas em roupas de presos que estavam sendo libertados.[424] Num campo de regime brando, Barbara Armonas mandava cartas clandestinamente por intermédio de presos que trabalhavam sem guarda fora da zona prisional.[425]
O general Gorbatov também descreve como, de dentro de um trem de traslado, enviou à esposa uma carta não-censurada, usando um método mencionado por muitos outros. Primeiro, comprou de um dos presos um toco de lápis:
Dei o fumo cru ao condenado, peguei o lápis com ele e, quando o trem voltou a mover-se, escrevi uma carta nos papéis de cigarro [de enrolar], numerando cada folha. Em seguida, fiz um envelope com o invólucro do fumo e o fechei com miolo de pão úmido. Para que o vento não levasse minha carta para os arbustos junto aos trilhos, eu a lastreei com um pedaço de pão, que amarrei usando fios puxados de minha toalha. Entre o envelope e o pão, enfiei uma nota de um rublo e quatro papéis de cigarro, cada um deles com esta mensagem: "Peço a quem encontrar este envelope que o sele e o ponha no correio". Fui à janela quando estávamos passando por uma grande estação e deixei a carta cair.[426]
Não muito depois, a mulher de Gorbatov a recebeu.
As instruções oficiais não mencionavam algumas dificuldades para a escrita de cartas. Mesmo que fosse permitido redigi-las, por exemplo -nem sempre era muito fácil achar papel e lápis ou caneta.
"No campo, o papel constituía artigo de grande valor, pois os presos recisavam muito dele, mas era impossível obtê-lo", escreveria Bystroletov. "Que significa o grito de 'Hoje é dia de mandar cartas! Passem-nas!' quando não há nada em que escrever, ou quando apenas uns poucos afortunados sabem escrever e os restantes, desalentados, têm de permanecer nos beliches?"[427]
Um preso se recordaria de trocar pão por duas páginas arrancadas de A questão do leninismo (livro cujo autor era Stalin).[428] Nas entrelinhas, ele redigiu uma carta à família. Em lagpunkts menores, até os administradores precisavam idear soluções criativas. Em Kedrovyi Shor, por exemplo, um contador usava papel de parede velho para elaborar documentos oficiais.[429]
As normas para o recebimento de remessas de gêneros eram ainda mais complexas. As instruções enviadas a cada comandante de campo ordenavam expressamente que os presos abrissem todas as remessas na presença de um guarda, o qual então confiscaria qualquer item proibido.[430] De fato, muitas vezes, esse recebimento se fazia acompanhar de todo um ritual. Primeiro, o preso era avisado de sua boa sorte. Em seguida, guardas o escoltavam para o depósito, onde ficavam trancados os pertences pessoais dos detentos. Depois que o preso abria a remessa, os guardas cortavam ou revolviam cada item (cada cebola, cada lingüiça) para assegurar-se de que não continha mensagens secretas. Se tudo passasse pela inspeção, o preso seria autorizado a pegar alguma coisa da remessa. O resto permaneceria no depósito, à espera da próxima visita autorizada do preso. Quem estivesse nas celas punitivas - ou houvesse caído em desfavor de alguma outra forma - ficaria proibido, é claro, de receber comestíveis remetidos de casa.
Havia variações nesse sistema. Um preso logo percebeu que, se deixasse suas remessas no depósito, parte delas não demoraria a sumir, furtada pelos guardas. Por conseguinte, arrumou um jeito de pendurar no cinto uma garrafa que recebera, cheia de manteiga, escondendo-a nas calças. "Com o calor do corpo, a manteiga estava sempre líquida." No final do dia, passava-a no pão.[431] Dmitrii Brystoletov, num lagpunkt que não tinha nenhum depósito, precisou ser ainda mais criativo.
Na época, eu trabalhava na tundra, no canteiro de obras de uma fábrica, e morava num alojamento de operários onde era impossível deixar o que quer que fosse, e de onde era impossível levar algo para a obra: as sentinelas à entrada do campo confiscavam e comiam tudo o que encontravam, e tudo o que ficasse no alojamento era surrupiado e comido pelo dnevalni [o preso designado para limpar e vigiar o lugar]. Tinha-se de comer tudo de uma vez. Tirei um prego dos beliches, fiz dois buracos numa lata de leite condensado e comecei a sugá-lo debaixo da coberta. Entretanto, eu estava tão exausto que caí no sono e aquele líquido inestimável ficou pingando inutilmente no imundo colchão de palha.[432]
Também havia complicadas questões morais envolvendo as remessas, já que nem todos as recebiam. Deviam compartilhá-las? Em caso afirmativo, seria melhor fazê-lo apenas com os amigos? Ou com os potenciais protetores? Na cadeia, pudera-se organizar "Comitês dos Pobres"; nos campos, porém, isso era impossível. Alguns davam a todos, por bondade ou pelo desejo de granjear boa vontade. Outros só davam a pequenos círculos de amigos. E às vezes, conforme recordaria um preso, "acontecia de comermos os biscoitos doces na cama, à noite, porque era desagradável fazê-lo na frente dos outros".[433]
Durante os piores anos da guerra, nos campos setentrionais mais duros, as remessas podiam constituir a diferença entre a vida e a morte. Um memorialista, o diretor de cinema Georgii Zhenov, afirma ter sido literalmente salvo por duas remessas. A mãe as mandara de Leningrado em 1940, e ele as recebeu três anos depois, "no momento mais crucial, quando eu, faminto e tendo perdido toda a esperança, estava lentamente morrendo de escorbuto".
Na época, Zhenov trabalhava na casa de banhos de um lagpunkt, pois estava fraco demais para a lida na floresta. Ao ser informado de que recebera as duas remessas, ele de início nem acreditou. Depois, convencido de que era verdade, pediu ao responsável pelos banhos permissão para caminhar os dez quilômetros até a administração central do campo, onde ficava o depósito. Após duas horas e meia, voltou: "Com dificuldade, só conseguira caminhar um quilômetro". Aí, vendo um grupo de capatazes da NKVD num trenó, "urna idéia extravagante me passou pela cabeça: e se eu pedisse para ir com eles?". Concordaram, e o que aconteceu em seguida "pareceu um sonho": Zhenov entrou no trenó; percorreu os dez quilômetros; desceu com muita dificuldade, ajudado por aqueles capatazes; solicitou suas remessas, velhas de três anos; e as abriu.
Tudo o que fora posto no pacote - açúcar, lingüiça, banha, confeito, cebola, alho, biscoito doce, biscoito salgado, cigarro, chocolate, junto com os papéis em que se embrulhara cada uma dessas coisas - se misturara, como numa máquina de lavar roupa, enfim se transformando numa única massa dura, com um odor adocicado de podridão, mofo, fumo e confeito.
Fui até a mesa, cortei um pedaço a faca e, na frente de todos, quase sem mastigar, engoli apressadamente, sem distinguir sabor nem cheiro - temendo, em suma, que alguém me interrompesse ou tomasse aquilo de mim.[434]
DOM SVIDAHII: A CASA DE VISITAS
No entanto, não eram cartas e remessas o que evocava entre os presos a maior das emoções, ou a maior das agonias. Muito mais dolorosos eram os encontros com os familiares, em geral o cônjuge ou a mãe. Só os presos que haviam cumprido as metas e seguido obedientemente as normas tinham permissão para receber visitas - documentos oficiais as descrevem, com clareza, como recompensa pelo "bom trabalho, zeloso e acelerado".[435] E a promessa de visita de um familiar era mesmo fortíssimo estímulo à boa conduta.
Desnecessário dizer que nem todos estavam em posição de receber visitas. Para começo de conversa, as famílias precisavam ter suficiente coragem moral para manter contato com um parente que era "inimigo do povo". Viajar para o Cazaquistão, Kolyma, Vorkuta ou Norilsk, mesmo como cidadão livre, também exigia coragem física. O visitante teria não apenas de suportar uma longa jornada ferroviária para uma cidade longínqua e primitiva, mas também de andar, ou pegar carona e fazer um percurso sacolejante na traseira de um caminhão, até o lagpunkt. Depois disso, talvez precisasse esperar dias ou mais, implorando a desdenhosos comandantes de campo a autorização para ver o preso - autorização que podia muito bem ser negada sem nenhuma justificação. Em seguida, o familiar encarava outra longa viagem, agora de retorno, pela mesma rota enfadonha.
Além do desconforto físico, o desgaste psicológico desses encontros podia ser terrível. Segundo escreveria Herling, as mulheres que chegavam para visita
sentiam o sofrimento ilimitado de seus cônjuges, sem entendê-lo por completo ou ser capaz de ajudar de algum modo; os longos anos de separação haviam eliminado muito da afeição pelos maridos [...] o campo, distante e vedado às visitantes, ainda assim as ameaça de modo sombrio. Não são prisioneiras, mas têm parentesco com aqueles inimigos do povo.[436]
Esses sentimentos ambíguos não se limitavam às esposas. Um preso conta a história de uma mulher que trouxera a filha de dois anos para ver o pai. Ao chegarem, ela disse à menina: "Vá dar um beijo no papai". A criança correu para o guarda e o beijou no pescoço.[437] A filha do cientista espacial soviético Sergei Korolev ainda se recorda de ter sido levada para ver o pai quando ele estava num sharashka. Antes, vinham dizendo à menina que ele estava fora, combatendo na Força Aérea. Ao entrar na prisão, ela ficou surpresa com as pequenas dimensões do pátio e perguntou à mãe: "Onde é que o papai aterrissa com o avião?".[438]
Nas cadeias (e também em certos campos), tais encontros eram invariavelmente breves e costumavam ocorrer na presença de um guarda, uma regra que também causava enorme desgaste. "Eu queria falar, dizer um bocado, contar tudo o que acontecera naquele ano", lembraria um preso, referindo-se à única vez em que lhe permitiram receber a visita da mãe. Não só era difícil achar palavras, mas também, "se alguém começava a falar, a descrever alguma coisa, o guarda, sempre vigilante, interrompia e dizia: 'Isso é proibido!'".[439]
Ainda mais trágica é a história contada por Brystoletov, ao qual concederam em 1941 uma série de visitas da mulher - todas com a presença de um guarda. A esposa viera de Moscou para despedir-se: após a prisão do marido, contraíra tuberculose e estava às portas da morte. Dando-lhe o último adeus, ela esticou a mão e o tocou no pescoço, o que não era permitido (as visitas não podiam ter contato físico com os presos). O guarda afastou bruscamente o braço da mulher de Brystoletov, e ela caiu no chão, tossindo sangue. Brystoletov escreve que "perdeu a cabeça" e passou a bater no guarda, o qual começou a sangrar. O preso só foi salvo de severíssima punição pela guerra, que irrompeu naquele mesmo dia; no caos subseqüente, esqueceu-se a agressão ao guarda. Brystoletov nunca mais reviu a mulher.[440]
Contudo os guardas nem sempre estavam presentes. Aliás, nos lagpunkts maiores, dos campos mais amplos, às vezes se permitiam visitas de vários dias, sem nenhum guarda. Na década de 1940, essas visitas em geral aconteciam numa dom svidanii (casa de visitas), especialmente construída para esse propósito no limite do campo. Herling descreve uma delas:
A casa em si, quando vista da estrada que levava da aldeia à cidade, causava boa impressão. Era construída de toras de pinho bruto, com interstícios calafetados e bom telhado. [...] A porta que ficava fora da zona prisional só podia ser usada por visitantes livres; chegava-se a ela por alguns degraus de madeira sólida. Cortinas de algodão cobriam as janelas, e os peitoris eram cobertos de longas floreiras. Cada cômodo era mobiliado com duas camas bem arrumadas, uma mesa grande, dois bancos, uma bacia e uma jarra de água, um guarda-roupa e um fogareiro de ferro; a luz era até de abajur. O que mais poderia desejar dessa modelar habitação pequeno-burguesa um preso que passara anos compartilhando beliches num alojamento imundo? Nossos sonhos de vida em liberdade se inspiravam naquele cômodo.[441]
E no entanto... Com freqüência, quem aguardara ansiosamente aquele "sonho de liberdade" sentia-se muito pior quando o encontro acabava mal, como muitas vezes acontecia. Temendo ficarem aprisionados pelo resto da vida, alguns presos já iam ordenando aos familiares que não voltassem nunca mais. "Esqueça-se deste lugar", um deles disse ao irmão, que viajara muitos dias, em temperaturas baixíssimas, para encontrar-se com ele por vinte minutos. "Para mim, é mais importante que tudo fique bem com você.”[442] Homens que reviam as esposas pela primeira vez em anos sentiam-se repentinamente tomados de nervosismo sexual, conforme lembra Herling:
Anos de trabalho pesado lhes haviam solapado a virilidade, e agora, antes de um encontro íntimo com uma mulher quase estranha, sentiam, além da agitação nervosa, o medo e a desesperança sem solução. Várias vezes, após visitas, ouvi homens se gabarem de suas proezas, mas em geral essas coisas eram motivo de humilhação, sendo respeitadas em silêncio por todos os presos.[443]
As esposas em visita tinham os próprios problemas para discutir. No mais das vezes, haviam sofrido um bocado com o encarceramento dos maridos. Não conseguiam emprego, não podiam estudar e, com freqüência, tinham de esconder de vizinhos curiosos o fato de serem casadas. Algumas chegavam para informar que pretendiam divorciar-se. Em O primeiro círculo, Soljenitsin narra, com surpreendente compaixão, uma de tais conversas, baseada num diálogo real que tivera com a própria esposa, Natasha. No livro, Nadya (mulher do preso Gerasi-movich) está a ponto de perder tanto o emprego num albergue de estudantes quanto a possibilidade de concluir sua tese acadêmica, tudo porque o marido é detento. Ela sabe que o divórcio é a única maneira de “ter alguma chance de voltar a viver":
Nadya baixou o olhar. "Eu queria dizer... Não fique chateado, está bem?... Uma vez, você disse que devíamos nos divorciar..." Ela falou bem baixinho...
E, tinha havido época em que ele insistira nisso. Mas agora estava atônito. Só naquele momento reparou que a aliança de casada, que ela sempre usara, já não estava no dedo.
"Ah, claro", ele concordou, aparentando total alegria.
"Então você não vai se opor se... se eu... tiver de fazer isso?" Com grande esforço, ela o encarou, os olhos arregalados. Os pontinhos em suas pupilas se iluminavam, rogando por perdão e compreensão. "Seria... só para constar", acrescentou, arfando mais do que pronunciando a frase.[444]
Tais encontros podiam ser piores que nenhum. Izrail Mazus, encarcerado nos anos 1950, conta a história de um preso que cometeu o erro de informar aos companheiros que a mulher chegara. Enquanto se submetia à rotina exigida de todo detento que estava para receber visita - foi aos banhos, ao barbeiro e ao depósito, para reaver algumas roupas adequadas -, os outros presos piscavam para ele e o cutucavam sem cessar, com provocações sobre a cama rangente da casa de visitas.[445] Mas, no fim das contas, nem sequer lhe permitiram ficar a sós com a esposa no quarto. Que tipo de "gostinho da liberdade" era aquele?
Contatos com o mundo lá fora se mostravam sempre complicados - pela expectativa ou pelo desejo. E de novo Herling quem escreve:
Qualquer que tivesse sido o motivo do desapontamento - a liberdade, usufruída por três dias, ou não correspondera à idealização, ou fora breve demais, ou, desaparecendo tal qual um sonho interrompido, só deixara um vazio renovado em que não havia mais nada a esperar -, os presos ficavam invariavelmente taciturnos e irritadiços depois das visitas. E isso para nem falarmos daqueles cujas visitas haviam se transformado na trágica formalidade da separação e do divórcio. Krestynski [...] tentou enforcar-se duas vezes após uma conversa com a mulher, a qual lhe pedira o divórcio e a autorização para colocar os filhos num internato municipal.
O polonês Herling, que, na condição de estrangeiro, "jamais esperara receber ninguém" na casa de visitas, ainda assim percebia com mais clareza que muitos escritores soviéticos a importância daquele lugar: "Cheguei à conclusão de que, se a esperança é com freqüência o único significado que resta na vida, dar-se conta disso pode às vezes ser um tormento insuportável".[446]
Aos chekistas
Uma tarefa de grandiosa responsabilidade
Foi-te conferida por Lênin.
O rosto do chekista é marcado por inquietações
Que ninguém mais consegue compreender.
No rosto do chekista se estampa a coragem.
Ele está pronto a lutar, mesmo hoje,
Pelo bem e felicidade de todos.
Ele luta pelos trabalhadores.
Muitos tombaram em batalha,
E surgiram tantos túmulos de irmãos nossos.
Mas ainda restam muitos
Combatentes honrados e vigorosos.
Tremei, inimigos, tremei!
Logo, logo, vosso fim chegará!
Tu, chekista, estás sempre de guarda,
E em batalha liderarás no tropel.
Mikhail Panchenko, inspetor no sistema prisional soviético;
o poema foi conservado no mesmo dossiê que descreve a
expulsão de Panchenko do Partido e da NKVD.[447]
Por estranho que possa parecer, nem todas as normas dos campos eram escritas pelos comandantes. Havia também regras tácitas - sobre como obter status, ganhar privilégios, viver um pouco melhor que os outros -, bem como uma hierarquia extra-oficial. Quem seguia essas regras e aprendia a subir na hierarquia descobria ser muito mais fácil sobreviver assim.
No topo, estavam os comandantes, os supervisores, os carcereiros e os guardas. Usei de propósito a expressão "no topo", em vez de "acima ou "para além" da hierarquia, porque no Gulag os administradores e guardas não constituíam uma casta à parte, distanciada dos presos. Ao contrário dos guardas da SS nos campos nazistas, não eram considerados imutável e racialmente superiores aos prisioneiros, de cuja etnia eles com freqüência partilhavam. Após a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, havia centenas de milhares de presos ucranianos nos campos, assim como um número extraordinário de guardas da mesma nacionalidade.[448]
Tampouco guardas e presos habitavam esferas sociais inteiramente distintas. Alguns guardas e administradores faziam complexas negociatas de mercado negro com os presos. Alguns se embriagavam com eles. Muitos "co-habitavam" - o eufemismo do Gulag para relações sexuais.[449] De modo mais relevante, muitos eram ex-presos. No começo dos anos 1930, considerava-se perfeitamente normal que detentos de boa conduta se "qualificassem" como guardas - e às vezes como elementos de posto ainda mais alto na hierarquia.[450] A carreira de Naftaly Frenkel talvez represente a transformação mais extraordinária, mas havia outros indivíduos com histórico parecido.
A trajetória de Yakov Kuperman, por exemplo, mostrou-se menos augusta que a de Frenkel, mas foi mais típica. Kuperman - que depois doaria suas memórias, não-publicadas, à Sociedade Memorial de Moscou - foi detido na década de 1930 e condenado a sete anos. Cumpriu pena em Kem (a prisão onde se ficava em trânsito antes de seguir definitivamente para Solovetsky) e depois foi trabalhar na divisão de planejamento das obras do Canal do Mar Branco. Em 1932, o caso de Kuperman foi revisto, e sua situação legal se modificou: ele passou de preso para degredado. Acabou obtendo soltura e assumiu um cargo na ferrovia Baikal-Amur (o Bamlag), experiência que recordaria "com satisfação" até o fim da vida.[451] Sua biografia não era incomum. Em 1938, mais de metade dos administradores e quase metade dos guardas armados do Belbaltlag (o campo que construiu o Canal do Mar Branco) eram antigos ou atuais presos.[452]
No entanto, podia-se tanto perder quanto ganhar status. Assim como era relativamente fácil para o prisioneiro tornar-se carcereiro, também era relativamente fácil para o carcereiro tornar-se prisioneiro. Administradores e comandantes de campo do Gulag estavam entre os milhares de homens da NKVD detidos nos expurgos de 1937 e 1938. Em anos posteriores, funcionários e guardas graduados do Gulag seriam freqüentemente presos por colegas suspeitosos. Nos lagpunkts isolados, a fofoca e a maledicência eram comuns: dossiês inteiros dos arquivos do Gulag se dedicam a denúncias e refutações, cartas furiosas sobre deficiências dos campos, queixas de falta de apoio da liderança central e de más condições de trabalho - e subseqüentes solicitações de que os culpados, ou desafetos, fossem encarcerados.[453]
Administradores e guardas armados eram volta e meia aprisionados por deserção, bebedeira, furto, perda das armas e até maus-tratos aos detentos.[454] Os registros do campo de trânsito do porto de Vanino, por exemplo, contêm descrições dos casos de V N. Sadovnikov, guarda armado que matou uma enfermeira do campo (ele pretendera mesmo era matar a esposa); de I. M. Soboleev, que afanou 300 rublos de um grupo de presos, embebedou-se e deixou sumir a carteirinha do Partido; de V. D. Suvorov, que organizou uma bebedeira e depois arrumou briga com um grupo de oficiais; e de outros que "beberam até desmaiar", ou que estavam embriagados demais para exercer suas funções.[455] Na papelada pessoal de Georgi Malenkov, um dos lugar-tenentes de Stalin, inclui-se o relatório do caso de dois administradores de campo que, durante uma bebedeira, assassinaram dois colegas, entre eles uma médica com dois filhos pequenos.[456] Em carta a Moscou, um administrador de campo se queixou de que a vida nos postos mais longínquos era tão enfadonha que a falta de entretenimento levava "muitos dos rapazes a desertar, desrespeitar a disciplina, embebedar-se e se meter com o carteado - atitudes que com freqüência acabam levando à prisão".[457]
Para alguns, era possível, e até comum, cumprir o ciclo completo: oficiais da NKVD tornavam-se prisioneiros e depois de novo carcereiros, iniciando sua segunda carreira na administração do Gulag. Muitos ex-presos escrevem da rapidez com que oficiais da NKVD caídos em desgraça se reerguiam nos campos e obtinham posições de real poder. Lev Razgon, em suas memórias, narra o encontro com certo Korabelnikov, funcionário de baixo escalão da NKVD que ele conheceu durante a viagem de Moscou para o campo de concentração. Korabelnikov lhe contou que fora detido porque tagarelara com o melhor amigo sobre uma das amantes dos chefes, pegando "cinco anos como Elemento Socialmente Perigoso - e sendo transportado para o campo junto com o resto". Mas Korabelnikov não era exatamente como o resto. Alguns meses depois, Razgon voltou a encontrá-lo. Dessa vez, Korabelnikov envergava um uniforme do campo, limpo e bem cortado. Usara de astúcia para arrumar uma "boa" ocupação, administrando o lagpunkt punitivo do Ustvymlag.[458]
A narrativa de Razgon reflete uma realidade que os arquivos registram. De fato, um número enorme de administradores e guardas do Gulag tinha ficha criminal. Aliás, parece que, na NKVD, o Gulag funcionava explicitamente como local de exílio, a derradeira chance do secreta degradado.[459] Depois de mandados para os limites mais longínquos do império do Gulag, esses homens raramente podiam voltar a qualquer outro departamento da NKVD, para nem falarmos de Moscou. Em sinal de sua situação diferenciada, os funcionários do Gulag usavam uniformes também diferentes e tinham um sistema ligeiramente diverso de insígnias e postos hierárquicos.[460] Nas conferências do Partido, os oficiais do Gulag se queixavam de seu status inferior. "O Gulag é visto como uma administração da qual se pode exigir tudo e não dar nada em troca", reclamava um oficial. "Esse modo de pensar excessivamente simplório - a idéia de que somos piores que todo o mundo - está errado e possibilita que se perpetuem injustiças em termos de soldo, habitação etc."[461] Posteriormente, em 1946, quando a NKVD foi dividida e de novo rebatizada, o Gulag passou para o controle do Ministério do Interior (MVD), e quase todas as outras funções mais interessantes, em especial a espionagem e contra-espionagem, foram para o Ministério da Segurança do Estado (MGB, depois KGB), mais prestigioso. O MVD, que administraria o sistema prisional até o funda URSS, continuaria sendo uma burocracia menos influente.[462]
Desde o início, aliás, os comandantes de campo tinham status relativamente baixo. Numa carta que se conseguiu fazer sair às escondidas de Solovetsky no começo dos anos 1920, um preso escreveu que a administração do campo se compunha inteiramente de chekistas caídos em desgraça, que tinham sido "condenados por especulação, extorsão, agressão ou algum outro delito especificado no Código Penal Ordinário".[463] Nas década de 1930 e 40, o Gulag se transformou no destino final de autoridades da NKVD cujo currículo não correspondia aos pré-requisitos: aqueles cuja proveniência social não era proletária o bastante, ou cuja condição de judeus, poloneses ou baltas os tornava suspeitos em períodos nos quais esses grupos étnicos estavam sendo reprimidos com vigor. O Gulag também constituía o último refúgio daqueles que simplesmente eram néscios, incompetentes ou beberrões. Em 1937, Izrail Pliner, então chefe do Gulag, queixou-se:
Deixam-nos as sobras das outras seções; mandam-nos gente com base no princípio de que "Vocês podem ficar com aquilo de que não precisamos". A nata dessa turma são os bêbados incorrigíveis; tão logo um homem dá para beber, é despejado no Gulag. [...] Do ponto de vista do aparato da NKVD, se alguém comete um delito, o maior castigo possível é mandá-lo trabalhar num dos campos.[464]
Em 1939, outra autoridade do Gulag descreveu os guardas dos campos como "gente não de segunda, mas de quarta classe, o próprio rebotalho".[465] Em 1945,Vasily Chernyshev, na época o chefe do Gulag, enviou memorando a todos os comandantes de campo e diretores regionais da NKVD para manifestar seu horror ante a baixa qualidade dos guardas armados dos campos, entre os quais se haviam constatado elevados índices de "suicídio, deserção, perda e furto de armamento, embriaguez e outros atos amorais", assim como freqüente "desrespeito às leis revolucionárias".[466] Já em 1952, quando se descobriu corrupção nos escalões mais altos da polícia secreta, a primeira reação de Stalin foi "exilar" um dos principais transgressores, que de imediato se tornou vice-comandante do campo de Bazhenovsky, nos Urais.[467]
Os próprios arquivos do Gulag também confirmam a crença, expressa por um ex-preso, de que tanto administradores quanto guardas eram, "no mais das vezes, pessoas muito limitadas".[468] Por exemplo, dos onze homens que, entre 1930 e 1960, detiveram o título de "comandante do Gulag" (o chefe de todo o sistema de campos), apenas cinco possuíam algum tipo de educação superior; três não tinham ido além do primário. E raramente os que ocupavam aquele cargo o mantinham por muito tempo: num período de trinta anos, só dois homens - Matvei Berman e Viktor Nasedkin - ficaram mais de cinco anos na posição. Izrail Pliner durou apenas um ano (1937-8); Gleb Filaretov, três meses (1938-9).[469]
No ponto mais baixo da hierarquia da NKVD, os registros pessoais dos funcionários do serviço prisional mostram, a partir da década de 1940, que até os carcereiros mais graduados - membros ou aspirantes à condição de membros do Partido - vinham quase inteiramente de famílias camponesas, possuindo instrução mínima. Poucos tinham cinco anos de escolaridade, e alguns haviam completado apenas três.[470] Em abril de 1945, perto de 75% dos administradores do Gulag não tinham nenhuma instrução além do primário, uma porcentagem quase duas vezes maior que no resto da NKVD.[471]
Os guardas armados dos campos - os voenizirovannaya okhrana, termo cujo acrônimo, Vokhr, dava nome à corporação deles, seguindo o hábito soviético - eram ainda menos instruídos. Esses eram os homens que patrulhavam o perímetro dos campos, que faziam os presos marchar para o trabalho, que guardavam os trens de traslado, freqüentemente tendo apenas uma vaga idéia dos motivos de suas funções. Conforme um relatório sobre o Kargopollag, "parece que os guardas não sabem os nomes de membros do Politburo, nem de líderes do Partido".[472] Outro relatório lista uma série de incidentes envolvendo guardas que haviam usado armamento de modo impróprio. Um desses indivíduos feriu três presos "em conseqüência de não saber como sua arma funcionava". Outro, "embriagado em serviço, feriu o cidadão Timofeev".[473]
Em reuniões, comandantes de divisão se queixavam de que
Os guardas não sabem lubrificar, limpar nem manter suas armas. [...] Uma mulher que serve como guarda cumpriu turno tendo um trapo enfiado no cano da arma. [...] Alguns guardas pegam os fuzis de outros, deixando os seus em casa porque são demasiado preguiçosos para limpá-los sempre.[474]
Constantes cartas de Moscou instavam os comandantes locais a passarem mais tempo entre os guardas, em "trabalho cultural e educacional".[475]
No entanto, até as "sobras" e os "bêbados incorrigíveis" de outros departamentos da NKVD conseguiam atender aos pré-requisitos de trabalho no Gulag. A maioria das instituições soviéticas se ressentia da falta crônica de pessoal, e o Gulag sofria em especial. Nem mesmo a NKVD foi capaz de arranjar número suficiente de delinqüentes para, transformando-os em funcionários, suprir o aumento de 1.800% nos efetivos entre 1930 e 1939, ou fornecer o contingente de 150 mil pessoas que foi preciso contratar em 1939-41, ou atender à enorme expansão do pós-guerra. Em 1947, com 157 mil indivíduos servindo apenas nas unidades de vigilância armada dos campos, o Gulag ainda achava que precisava de mais 40 mil guardas.[476]
Até a dissolução final do sistema, esse dilema nunca deixou de atormentar a administração do Gulag. Excetuados os cargos de máximo escalão, o trabalho nos campos de concentração não era considerado prestigioso nem atraente, e as condições de vida estavam longe de ser confortáveis, sobretudo nos locais mais acanhados e isolados do extremo norte. A escassez generalizada de alimentos fazia que guardas e administradores recebessem víveres racionados, em quantidades atribuídas de acordo com o posto hierárquico.[477] Retornando de uma viagem de inspeção aos campos setentrionais da região de Vorkuta, certo inspetor do Gulag reclamou da má qualidade de vida dos guardas armados, os quais trabalhavam de catorze a dezesseis horas por dia nas "difíceis condições climáticas do norte", muitas vezes não tinham indumentária nem calçado adequados e habitavam casernas imundas. Alguns, tal qual os presos, sofriam de escorbuto, pelagra e demais doenças causadas pela deficiência vitamínica.[478] Outro inspetor escreveu que, no Kargopollag, 26 membros da Vokhr tinham sido processados e condenados como criminosos, muitos deles por terem adormecido em serviço. No verão, cumpriam turnos de treze horas - e, quando estavam de folga, não dispunham de nenhum entretenimento. Quem tinha família ficava em situação particularmente difícil, pois muitas vezes não contava com acomodações próprias e era obrigado a morar na caserna.[479]
Quem queria dar baixa descobria que isso não era fácil, nem mesmo nos escalões mais altos. Os arquivos da NKVD contêm a carta lastimosa do promotor público de Norilsk, o qual implorava que o tirassem da "região ártica", pois estava estafado e tinha saúde ruim: "Se não for possível transferir-me para o cargo de promotor em outro campo de trabalho correcional, eu gostaria de ser colocado num cargo de retaguarda ou ser dispensado da promotoria". Em resposta, ofereceram-lhe uma transferência para Krasnoyarsk, o que ele recusou, já que as condições ali (Krasnoyarsk, embora se localize ao sul de Norilsk, ainda fica na Sibéria setentrional) eram quase as mesmas.[480]
Após a morte de Stalin, ex-autoridades dos campos freqüentemente defenderam seu ganha-pão anterior descrevendo as dificuldades daquele trabalho. Quando conheci Olga Vasileevna - antiga inspetora de campos na divisão de obras viárias do Gulag -, ela me regalou com histórias da vida dura dos funcionários do sistema. Durante nossa conversa (no apartamento moscovita com que um Partido agradecido a presenteou), Olga me contou que uma vez, quando visitava um campo distante, foi convidada a dormir na casa do comandante, na cama que era do filho dele. A noite, sentiu calor e coceiras. Achando que talvez estivesse doente, acendeu a luz. "O cobertor militar cinzento parecia vivo, estando infestado de piolhos. Não eram só os presos que tinham piolhos. As chefias também." Por via de regra, quando voltava para casa de uma viagem de inspeção, Olga tirava toda a roupa antes de entrar, para deixar os parasitas do lado de fora.
Na visão de Olga Vasileevna, o trabalho de comandante de campo era dificílimo. "Não era brincadeira. Ficava-se encarregado de centenas, milhares de presos. Havia reincidentes e assassinos, os condenados por crimes graves, pessoas das quais se podia esperar tudo. Com isso, era preciso estar em guarda o tempo todo." Os comandantes, embora pressionados a trabalhar tão eficientemente quanto possível, descobriam que também precisavam resolver todo tipo de problema:
Chefe de um projeto de construção, era igualmente chefe do campo e passava pelo menos 60% do tempo não nas obras, tomando decisões de engenharia, mas no campo, lidando com dificuldades. Alguém adoecia, uma epidemia podia ter irrompido ou um acidente acontecia e aí alguém tinha de ser levado para o hospital, e alguém precisava de um carro, cavalo ou carroça.
Olga também disse que os "patrões" não necessariamente comiam bem em Moscou, sobretudo durante a guerra. No refeitório da sede do Gulag, serviam-se repolho, sopa e kasha. "Não me lembro de haver carne. Nunca vi nenhuma." Enquanto Stalin viveu, os funcionários do Gulag na capital soviética trabalhavam das nove da manhã às duas ou três da madrugada, todos os dias. Olga só via o filho aos domingos. Todavia, após a morte de Stalin, as coisas melhoraram. S. N. Kruglov, então chefe da NKVD, emitiu ordem que concedia uma hora de almoço aos funcionários comuns da direção geral. Em 1963, Olga e o marido também receberam um apartamento muito grande no centro de Moscou, o mesmo onde ela morava em 1998, quando a conheci.[481]
Enquanto Stalin era vivo, porém, o trabalho no Gulag era menos recompensado, cabendo à direção geral resolver de diferentes maneiras o problema da falta de atrativos do emprego. Em 1930, quando o sistema ainda era visto como parte da expansão econômica daquela época, a OGPU realizava campanhas de publicidade interna, solicitando entusiastas para atuar no que então eram os novos campos do extremo norte:
A dedicação e a energia dos chekistas criaram e fortaleceram os campos de Solovetsky, desempenhando papel amplo e positivo no desenvolvimento industrial e cultural do setentrião europeu de nosso território. Os novos campos, assim como Solovetsky, devem exercer função reformadora na economia e na cultura das regiões mais longínquas. Para tal responsabilidade [...], necessitamos de chekistas especialmente rijos, voluntários à cata de trabalho duro.
A eles se ofereciam, dentre outras coisas, salário até 50% maior, férias anuais de dois meses e, após três anos, um abono correspondente a três meses de salário, mais três meses de férias. Além disso, os administradores do primeiro escalão receberiam rações mensais gratuitas e teriam acesso a "rádio e instalações esportivas e culturais".[482]
Posteriormente, quando desapareceu de vez o entusiasmo sincero (se é que este algum dia existira), os incentivos se tornaram mais sistemáticos. Os campos eram classificados de acordo com a distância e o rigor das condições locais. Quanto mais longínquos e mais duros eles eram, mais se pagava aos elementos da NKVD para trabalhar lá. Alguns campos se preocupavam em organizar esportes e outras atividades recreativas para seus funcionários. A NKVD também construiu spas especiais na região do mar Negro (em Sochi e Kislovodsk), de modo que os oficiais de maior patente pudessem passar suas longas férias com conforto, ao sol.[483]
A direção geral criou ainda escolas onde os oficiais do Gulag pudessem aprimorar suas qualificações, para assim subir na hierarquia. À guisa de exemplo, uma delas, estabelecida em Kharkov, dava cursos não só de "História do Partido" e "História da NKVD" (disciplinas obrigatórias), mas também de direito penal, normas e técnicas de administração dos campos, contabilidade e assuntos militares.[484] Quem se dispunha a trabalhar para a Dalstroi, na distante Kolyma, podia até ter a prole reclassificada como "filhos de trabalhadores", o que lhes garantia tratamento preferencial na admissão aos estabelecimentos de ensino superior; esse se revelou um estímulo popularíssimo.[485]
O dinheiro e os benefícios decerto bastavam para atrair alguns funcionários também nos escalões mais baixos. Muitos consideravam o Gulag simplesmente a menos ruim das escolhas possíveis. Na URSS de Stalin (uma terra de guerra e fome), o emprego de carcereiro ou guarda prisional podia significar imensurável ascensão social. Susanna Pechora, prisioneira no começo dos anos 1950, se recordaria de ter conhecido uma carcereira que trabalhava no campo de concentração porque era a única maneira de fugir à penúria extrema da fazenda coletiva onde nascera. "Com o salário, alimentava os sete irmãos e irmãs."[486] Outro memorialista conta a história de Maria Ivanova, moça que viera trabalhar voluntariamente num campo em 1948. Esperando dessa maneira escapar à vida numa fazenda coletiva e, mais ainda, arrumar marido, Maria tornou-se, isto sim, amante de uma série de autoridades de posto hierárquico sempre mais baixo. Acabou morando num quartinho com a mãe e os dois filhos ilegítimos.[487]
Mas nem sempre a perspectiva de salário elevado, férias longas e ascensão social bastava para trazer trabalhadores para o sistema, em especial nos escalões mais baixos. Em épocas de muita escassez de pessoal, as comissões soviéticas de mão-de-obra simplesmente despachavam trabalhadores para onde eram requisitados, sem necessariamente informá-los de onde iam. Zoya Eremenko, ex-enfermeira do Gulag, foi mandada direto do curso profissionalizante para um emprego que, disseram-lhe, seria num canteiro de obras. Quando chegou, descobriu que se tratava de um campo prisional, o Krasnoyarsk 26. "Ficamos surpresas e assustadas, mas, quando nos familiarizamos com o local, constatamos que ali as pessoas e o trabalho clínico eram os mesmos que nossos estudos nos haviam levado a esperar."[488]
Particularmente trágicos eram os casos das pessoas obrigadas a trabalhar nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial. Milhares de ex-soldados do Exército Vermelho que haviam combatido no avanço para a Alemanha -assim como civis que, na condição de deportados ou refugiados, tinham "morado no exterior" durante a guerra - foram detidos ao retornar para a URSS e confinados a "campos de triagem", onde seriam minuciosamente interrogados para ver se caíam em contradição. Às vezes, os que não eram presos acabavam sendo enviados de imediato para trabalhar no serviço de guarda prisional. No começo de 1946, havia 31 mil pessoas nessa última situação, e em alguns campos elas correspondiam a 80% dos guardas.[489] Tampouco podiam ir-se embora com facilidade. Muitas haviam sido privadas de sua documentação (passaporte, licença de moradia, certificado de reservista). Sem ela, não tinham como deixar os campos, nem como procurar emprego. Entre trezentos e quatrocentos desses indivíduos se suicidavam a cada ano. Um que tentou fazê-lo explicou o motivo: "Já estou no serviço há muito tempo, ainda não me deram a licença de moradia, quase todo dia chega um polícia com ordem de sairmos do apartamento, e todo santo dia isso causa brigas lá em casa".[490]
Outros simplesmente se degeneravam. Karlo Stajner, comunista iugoslavo que esteve preso em Norilsk durante e após a guerra, recordaria que tais guardas eram "extraordinariamente diferentes daqueles que não haviam lutado no conflito":
Para começo de conversa, mostravam sinais claros de desmoralização. Podia-se ver isso na disposição a serem subornados pelas prisioneiras, tornarem-se clientes das mais bonitinhas ou permitirem que criminosos saíssem das turmas de trabalho para invadir alguma moradia e depois dividir com eles o produto do furto. Esses guardas não temiam a severa punição que sofreriam caso seus superiores descobrissem tais delitos.[491]
Uns poucos, muito poucos, protestavam. Os arquivos registram, por exemplo, o caso de certo Danilyuk, recruta refratário, que se negou terminantemente a ir para a guarda prisional armada, alegando o seguinte: "De jeito nenhum quero servir nos órgãos do Ministério do Interior". Não arredou pé dessa posição, apesar daquilo que os arquivos denominam "sessões de tratamento", que por certo eram longos períodos de intimidação e talvez incluíssem até espancamentos. Danilyuk acabou sendo dispensado. Pelo menos no caso dele, premiou-se a recusa sistemática e persistente em trabalhar para o Gulag.[492]
Entretanto, no final das contas, o sistema realmente gratificava seus membros mais afortunados e leais, alguns dos quais obtinham mais do que melhores rações ou mera ascensão social: quem fazia seus trabalhadores cativos renderem grandes quantidades de ouro ou madeira para o Estado seria mesmo recompensado ao fim e ao cabo. E, embora a média dos lagpunkts mineiros ou madeireiros nunca oferecesse boas condições de vida (nem mesmo para os que os dirigiam), as sedes de alguns dos campos maiores se tornaram de fato muito confortáveis com o passar do tempo.
Nos anos 1940, as cidades que ficavam no centro dos complexos maiores (Magadan,Vorkuta, Norilsk, Ukhta) já eram grandes e movimentadas, tendo lojas, cinemas, teatros e parques. Desde a fase pioneira do Gulag, as oportunidades para desfrutar a vida haviam se ampliado bastante. Nos campos maiores, o primeiro escalão recebia salários mais elevados, abonos e benefícios melhores e férias mais longas que no mundo do trabalho comum. Também tinham mais acesso a comestíveis e bens de consumo que estavam em falta nos demais lugares. "Em Norilsk, a vida era melhor que em qualquer outro lugar da União Soviética", lembraria Andrei Cheburkin, capataz e depois burocrata ali:
Em primeiro lugar, todos os chefes dispunham de empregadas - prisioneiras. Em segundo lugar, a comida era impressionante. Havia peixes de todo tipo. Podia-se sair para apanhá-los nos lagos. E, se no resto da União Soviética havia cartões de racionamento, aqui vivíamos praticamente sem eles. Carne. Manteiga. Caso se quisesse champanhe, por que não pegar também siri? Havia tanto! Caviar? Eram barris cheios. Estou falando dos chefes, claro, não dos trabalhadores. Mas, também, os trabalhadores eram prisioneiros. [...]
O dinheiro era bom. [...] Quando se era brigadeiro [na hierarquia dos oficiais], podia-se receber 6 mil, 8 mil rublos. Na Rússia central, não se conseguia mais que 1.200. Vim para Norilsk para trabalhar como supervisor de trabalho num departamento especial da NKVD que prospectava urânio. Deram-me salário de supervisor: primeiro recebia 2.100 rublos; depois, a cada seis meses, tinha aumento de 10%; era cerca de cinco vezes mais do que ganhava na vida civil normal.[493]
O primeiro argumento de Cheburkin ("todos os chefes dispunham de empregadas") é fundamental, pois, na realidade, aplicava-se não só às chefias, mas a todo o mundo. Estritamente falando, era proibido usar presos como domésticos. Mas a prática estava disseminada, conforme as autoridades bem sabiam; e, apesar das freqüentes tentativas de eliminá-la, ela persistiu.[494] Em Vorkuta, Konstantin Rokossovsky (oficial do Exército Vermelho que se tornaria general, depois marechal e depois ministro da Defesa da Polônia stalinista) serviu de criado para um "carcereiro boçal chamado Buchko, e suas funções consistiam em trazer as refeições do sujeito, arrumar e aquecer o chalé dele, e assim por diante".[495] Em Magadan, Evgeniya Ginzburg trabalhou durante algum tempo como lavadeira para a mulher de um administrador do campo.[496]
Em Kolyma, Thomas Sgovio também foi criado pessoal de um guarda graduado, preparando-lhe a comida e tentando providenciar bebida alcoólica para ele. O homem passou a confiar em Sgovio. "Thomas, meu garoto", ele dizia, "lembre-se de uma única coisa: cuide da minha carteirinha do Partido. Quando eu ficar bêbado, certifique-se de que eu não a perca. Você é meu criado - e, se eu vier a perdê-la, terei de matá-lo como a um cão... e não quero fazer isso."[497]
Para os verdadeiros maiorais, a criadagem era só o começo. Ivan Nikishov, que se tornou chefe da Dalstroi em 1939, após os expurgos, e se manteve no cargo até 1948, ficou tristemente célebre por ter acumulado riqueza em meio à pobreza extrema. Pertencia a uma geração diferente daquela de seu predecessor, Berzin; a de Nikishov já estava muito distante dos tempos da Revolução e da Guerra Civil - que tinham sido anos de muita escassez e, contudo, de mais ardor. Talvez como resultado disso, Nikishov não tinha pruridos de usar sua posição para viver bem. Dotou-se de "um grande contingente de seguranças, mais automóveis de luxo, gabinetes amplos e uma magnífica dacha com vista para o Pacífico".[498] Segundo relatos de presos, essa última teria tapetes orientais, peles de urso e candelabros de cristal. Consta que, na luxuosa sala de jantar, ele e a segunda mulher (Gridasova, jovem e ambiciosa comandante de campo) consumiam carne de urso, vinho do Cáucaso, frutas trazidas do sul por via aérea, tomates e pepinos frescos cultivados em estufas particulares.[499]
Nikishov não era o único a usufruir uma vida de luxos. Lev Razgon, em sua inesquecível descrição do coronel Tarasyuk (comandante do Ustvymlag durante a guerra), registra excessos semelhantes:
Ele vivia como um romano que houvesse sido designado governador de alguma província bárbara recém-conquistada. Hortaliças, frutas e flores bastante estranhas ao norte eram cultivadas para ele em estufas especiais. Para fazer sua mobília, procuraram-se os melhores marceneiros. Os mais famosos costureiros do passado recente vestiam sua esposa, extravagante e voluntariosa. Quando não se sentia bem, ele não era examinado por nenhum doutorzinho que, como profissional livre, se vendera ao Gulag [...]. Não, senhor: Tarasyuk era tratado por catedráticos que haviam dirigido as maiores clínicas de Moscou e agora cumpriam longas penas nas enfermarias de remotos campos na floresta.[500]
Com freqüência, exigia-se dos presos que ajudassem a satisfazer tais caprichos. Isaac Vogelfanger, médico prisioneiro de campo de concentração, via-se constantemente sem álcool medicinal porque seu farmacêutico o usava para fazer bebida. O comandante do campo então a servia a dignitários em visita: "Quanto mais álcool consomem, melhor conceito têm do trabalho no Sevurallag". Vogelfanger também viu um cozinheiro do campo preparar um "banquete" para visitantes, usando coisas que economizara para a ocasião: "caviar, enguia defumada, pãezinhos quentes feitos com massa francesa e cogumelo, salmão ártico com galantina de limão, ganso e leitão assados".[501]
Foi também nesse período, os anos 1940, que chefes como Nikishov principiaram a considerar-se mais que simples carcereiros. Alguns até começaram a competir entre si, numa versão grotesca das disputas de prestígio entre vizinhos. Almejavam ter os melhores grupos teatrais de presos, as melhores orquestras de presos, as melhores obras artísticas de presos. Lev Kopelev estava no Unzhlag em 1946, época em que o comandante selecionava, tão logo os presos chegavam nos trens, "os atores, músicos e artistas mais gabaritados, aos quais dava os melhores serviços, de faxineiros e zeladores no hospital". O campo ficou conhecido como "refúgio de artistas".[502] A Dalstroi também possuía uma trupe de detentos, o Sewostlag Club, que se apresentava em Magadan e alguns dos campos periféricos da região mineira, beneficiando-se dos muitos cantores e dançarinos famosos encarcerados em Kolyma.[503] Lev Razgon descreve ainda o comandante do Ukhtizhemlag, que "mantinha uma verdadeira companhia de ópera em Ukhta", dirigida por um célebre ator soviético. "Empregava" igualmente uma famosa bailarina do Bolshoi, assim como cantores e músicos conhecidos:
Às vezes, o chefe do Ukhtizhemlag fazia uma visita a seus colegas da vizinhança. Embora o propósito oficial fosse "trocar experiências", essa descrição chã esconde os complexos preparativos e protocolo, que mais se assemelhavam à visita de um chefe de Estado estrangeiro. Os chefes vinham acompanhados de amplo entourage de diretores de seção; preparavam-se acomodações especiais de hotel para eles; os percursos eram minuciosamente planejados; e traziam-se presentes. [...] O chefe do Ukhtizhemlag também trazia consigo seus melhores artistas, de modo que os anfitriões pudessem ver que lá a cultura florescia tanto quanto ali, se não mais.[504]
Até hoje, o velho teatro do Ukhtizhemlag - uma vasta construção branca e colunar, com símbolos cênicos no frontão - é um dos edifícios mais notáveis da cidade de Ukhta. Dele, pode-se ir a pé para a antiga residência do comandante do campo, uma espaçosa casa de madeira à beira de um parque.
Entretanto, não só aqueles com gostos artísticos procuravam satisfazer caprichos próprios. Quem preferia os esportes tinha igualmente a oportunidade de fundar times de futebol, que competiam uns com os outros de modo bastante renhido. Nikolai Starostin, o craque que fora encarcerado porque sua equipe tivera o azar de ganhar daquela pela qual torcia Beria, também foi mandado para Ukhta, onde o aguardavam já na estação. Foi levado para conhecer o técnico do time local, que o tratou com polidez e lhe disse que o chefe do campo solicitara especialmente a presença dele, Starostin: "o coração do general está no futebol. Foi ele quem trouxe você para cá". Starostin passaria grande parte de sua carreira no Gulag servindo de técnico de times para a NKVD, indo de campo em campo para atender às solicitações dos comandantes que o queriam como treinador.[505]
Muito de vez em quando, a notícia de tais excessos despertava alarme, ou no mínimo interesse, de Moscou. Em certa ocasião, Beria, talvez respondendo a queixas, ordenou um inquérito secreto sobre o suntuoso estilo de vida de Nikishov. O relatório resultante confirma, entre outras coisas, que em determinada vez Nikishov gastou 15 mil rublos (na época uma quantia imensa) num banquete para comemorar a visita da Companhia de Opereta de Khabarovsk.[506] O relatório também condena a "atmosfera de servilismo" em torno de Nikishov e da esposa, Gridasova: "A influência de Gridasova é tão grande que até os auxiliares imediatos de Nikishov atestam que só conseguirão exercer suas funções enquanto ela os vir com bons olhos".[507] Entretanto, não se tomou nenhuma medida. Gridasova e Nikishov continuaram a reinar em paz.
Nos últimos anos, virou moda assinalar que, ao contrário do alegado por eles após a guerra, poucos alemães eram forçados a atuar nos campos de concentração ou nos esquadrões de extermínio. Há pouco tempo, um estudioso afirmou que a maioria o fizera voluntariamente - conclusão que despertou certa controvérsia.[508] No caso da Rússia e dos outros Estados pós-soviéticos, a questão precisa ser examinada de maneira diversa. Com muita freqüência, os funcionários dos campos, bem como a maior parte dos outros cidadãos soviéticos, tinham pouca escolha. Uma comissão de mão-de-obra simplesmente lhes designava um local de trabalho, e eles eram obrigados a ir para lá. A falta de opção estava embutida no próprio sistema econômico soviético.
Todavia, não é exato dizer, como tentaram alguns, que os oficiais e guardas armados da NKVD "não estavam melhor que os presos que eles comandavam", ou que eram vítimas do mesmo sistema. Pois, embora talvez houvessem preferido trabalhar em outro lugar, os funcionários do Gulag, tão logo ingressavam no sistema, realmente tinham opções, muito mais do que seus equivalentes nazistas, cujas atribuições eram definidas de modo mais rígido. No Gulag, podiam escolher entre a brutalidade e a bondade. Podiam escolher entre fazer os presos trabalharem até a morte e manter tantos deles vivos quanto fosse possível. Podiam escolher entre demonstrar compaixão pelos presos, de cuja sina talvez já houvessem partilhado, e aproveitar-se de uma maré temporária de sorte e oprimir seus antigos e futuros companheiros de sofrimento.
No histórico pregresso desses indivíduos, nada necessariamente indicava qual opção fariam, pois tanto os administradores quanto os guardas comuns provinham de etnias e ambientes os mais diversos, tal qual os presos. Aliás, quando lhes pedem que descrevam o caráter dos guardas, os sobreviventes do Gulag sempre respondem que ele variava bastante. Solicitei a mesma coisa a Galina Smirnova, a qual lembrou que "eles, assim como todo mundo, eram diferentes uns dos outros".[509] Anna Andreevna me contou que "havia sádicos doentios e pessoas absolutamente boas e normais". Anna também recordou o dia, logo após a morte de Stalin, em que o contador-chefe do campo correu de repente para o escritório de contabilidade em que presas trabalhavam, deu vivas, abraçou-as e, gritando, deu a entender que elas recuperariam a liberdade.[510]
Irena Arginskaya me disse que seus guardas não apenas eram "pessoas de tipos muitos diferentes", mas também mudavam com o passar do tempo. Os soldados conscritos, em especial, portavam-se "como animais" quando eram novos no serviço, pois haviam sido intoxicados pela propaganda; contudo, "depois de algum tempo, eles -não todos, mas grande parte - começavam a entender as coisas e freqüentemente mudavam".[511]
É bem verdade que as autoridades soviéticas exerciam alguma pressão tanto sobre os administradores quanto sobre os guardas, desencorajando-os de demonstrar bondade para com os presos. O arquivo da inspetoria-geral do Gulag registra o caso do chefe da divisão de suprimentos do Dmitlag, Levin, que em 1937 sofreu vigorosa investigação por causa de sua leniência. O crime de Levin foi ter permitido que um preso se encontrasse com o irmão, também preso - no sistema prisional, os parentes eram normalmente mantidos bem longe uns dos outros. Levin também foi acusado de ser demasiado amistoso com os zeks em geral, e com um grupo de supostos mencheviques em especial. Levin (ele próprio ex-prisioneiro no Canal do Mar Branco) contra-argumentou que não sabia que eram mencheviques. Dado que o ano era 1937, Levin foi condenado assim mesmo.[512]
No entanto, tais imposições não eram aplicadas com rigor. Aliás, vários comandantes até ficaram famosos pela brandura para com os presos. O historiador e publicista dissidente Roy Medvedev, em Que a história julgue (seu ataque ao stalinismo), descreve um comandante de campo, VA. Kundush, que levou muito a sério as exigências de aumento de produção durante a guerra. Kundush colocou os presos mais instruídos em funções administrativas e passou a tratar bem os detentos, até providenciando a soltura antecipada para alguns deles. Na época, o empreendimento que ele dirigia recebeu o "Estandarte Vermelho da Boa Gestão". Mas, quando a guerra acabou, Kundush também foi aprisionado, talvez por causa da mesma atitude humana que tanto expandira a produção em seu campo.[513]
Lev Razgon fala da prisão transitória incomum pela qual ele e a mulher, Rika, passaram em Georgievsk:
As celas eram não apenas varridas, mas também lavadas, o piso tanto quanto as tábuas dos leitos. A comida era tão substanciosa que saciava até a fome constante dos prisioneiros em trânsito. Podíamos realmente ficar limpos na casa de banhos. Havia até um recinto especial, completamente equipado, onde as mulheres podiam empetecar-se (e isso, mais do que qualquer outra coisa, espantou Rika).[514]
Existiam outros administradores assim. Em certa altura de sua vida no Gulag, Genrikh Gorchakov, judeu russo aprisionado em 1945, foi designado para um campo de inválidos no complexo do Siblag. Fazia pouco tempo, a direção do campo fora assumida por um novo comandante, um ex-oficial de linha de frente que não conseguira arrumar nenhum outro emprego após a guerra. Levando o cargo a sério, ele construiu novos alojamentos, cuidou para que os presos tivessem colchões e até lençóis e reorganizou o sistema de trabalho, transformando o campo por completo.[515]
Outro ex-zek, Aleksei Pryadilov, encarcerado aos dezesseis anos, foi enviado para um campo agrícola nos montes Altai. Ali, o comandante "administrava o campo como uma organização econômica e tratava os presos não como criminosos e inimigos que precisava 'reabilitar', mas como trabalhadores. Ele estava convencido de que não havia lógica em tentar fazer que gente faminta produzisse trabalho decente".[516] Por vezes, até os inspetores do Gulag descobriam bons comandantes. Em 1942, um fiscal visitou o Birlag e constatou que "os presos dessa fábrica faziam excelente trabalho porque as condições deles também eram excelentes". Os alojamentos eram limpos, e todos os presos tinham lençóis e cobertores próprios, além de boas roupas e calçados.[517]
Havia também formas mais diretas de bondade. A memorialista Galina Levinson se recordaria de um comandante de campo que dissuadiu uma prisioneira de abortar. "Quando você sair do campo, estará sozinha", ele lhe disse. "Pense no quanto será bom ter um filho." A mulher lhe seria grata até o fim da vida.[518] Anatolii Zhigulin também escreveria sobre o "bom" comandante de campo que "salvou centenas da morte", chamava aqueles a seu cargo de "camaradas prisioneiros", desafiando as ordens, e mandava o cozinheiro alimentá-los melhor. Segundo Zhigulin, era óbvio que "ele ainda não conhecia as normas". Mariya Sandratskaya, encarcerada por ser esposa de um "inimigo do povo", também conta de um comandante que dava especial atenção às mulheres com filhos, assegurando-se de que a creche fosse bem administrada, as lactantes recebessem comida suficiente e as mães não trabalhassem demais.[519]
Na realidade, a bondade era possível. Em todos os níveis, sempre havia uns poucos que resistiam à propaganda que tachava todos os presos de inimigos; sempre havia uns poucos que compreendiam a verdadeira situação. E um número surpreendente de memorialistas registra algum episódio de benevolência de um guarda. "Não duvido", escreveu Evgenii Gnedin, "de que no enorme exército de administradores dos campos houvesse trabalhadores íntegros que ficassem angustiados com seu papel de feitores de pessoas completamente inocentes".[520] Mas, ao mesmo tempo, a maioria dos memorialistas também se admira de quanto tal compreensão era fora do comum. Isso porque, apesar de uns poucos exemplos do contrário, prisões limpas não eram a regra; a vida em muitos campos equivalia a uma sentença de morte; e, sobretudo, a maior parte dos guardas tratava os detentos com indiferença, na melhor das hipóteses, ou rematada crueldade, na pior.
Repito: em lugar algum se exigia crueldade. Ao contrário: quando proposital, esta era oficialmente desaprovada pela liderança central. Guardas e administradores que se mostravam desnecessariamente severos com os presos podiam ser punidos, e muitas vezes o eram. Os arquivos do Vyatlag contêm informes sobre guardas castigados por "espancarem sistematicamente zeks", furtar pertences dos detentos e estuprar prisioneiras.[521] Os arquivos do Dmitlag assinalam as condenações penais impostas a administradores que haviam sido acusados de, estando embriagados, terem surrado presos. Os arquivos centrais do Gulag também registram punições a comandantes de campo que espancavam presos, os torturavam durante investigações ou os trasladavam sem indumentária de inverno adequada.[522]
Contudo a crueldade persistia. Por vezes, era verdadeiramente sádica. Viktor Bulgakov, prisioneiro nos anos 1950, se recordaria de um guarda, um cazaque analfabeto, que parecia ter prazer em obrigar os presos a ficar parados, congelando aos poucos, na neve; e de outro que gostava de "exibir força e surrar detentos" sem nenhum motivo.[523] Os arquivos do Gulag também trazem, entre muitos outros registros semelhantes, o relato sobre o camarada Reshetov, chefe de um dos lagpunkts da Volgostroi o qual punia zeks colocando-os em celas geladas e mandava presos enfermos trabalharem a temperaturas baixíssimas, o que causava a morte de muitos em serviço.[524]
Com maior freqüência, a crueldade não se devia tanto ao sadismo quanto ao egoísmo. Guardas que atiravam em presos fujões recebiam gratificação financeira e podiam até ganhar férias em casa. Por isso, ficavam tentados a estimular tais "fugas". Zhigulin descreve o resultado:
O guarda gritava para alguém na coluna: "Você aí, traga-me aquela tábua!"
"Mas está do outro lado da cerca!"
"Não interessa - vá buscar!"
O preso ia e era abatido por uma rajada de metralhadora.[525]
Esses episódios eram comuns - conforme os arquivos mostram. Em 1938, quatro guardas da Vokhr que trabalhavam no Vyatlag foram condenados pelo homicídio de dois presos que eles tinham "incitado" a fugir. Na seqüência, descobriu-se que o comandante da divisão e seu assistente também haviam se apossado de pertences dos presos.[526] O escritor Boris Dyakov, em suas memórias "pró-soviéticas" do Gulag (publicadas na URSS em 1964), menciona igualmente a prática de provocar fugas.[527]
Assim como nos trens de traslado, a crueldade nos campos parecia derivar da raiva ou do tédio de precisar realizar uma atividade servil. Quando trabalhava como enfermeira num hospital de Kolyma, a comunista holandesa Elinor Lippe passou uma noite à cabeceira de um paciente que estava com pleurisia e febre alta. Além disso, um carbúnculo que ele tinha nas costas estourara por causa do guarda que o trouxera ao hospital:
Com voz entrecortada e dolorida, contou-me que o guarda quisera concluir aquela marcha inconveniente o quanto antes. Por isso, durante horas, usara de pauladas para forçar o preso, enfermo e febril, a seguir adiante. No final da marcha, ameaçara quebrar-lhe todos os ossos se dissesse no hospital que o guarda o espancara.
Apavorado até o fim, o homem se negou a repetir a história na presença de não-prisioneiros. "Nós o deixamos morrer em paz", escreveria Elinor, "e o guarda continuou a surrar presos sem ser incomodado."[528]
Na maioria das vezes, porém, a crueldade dos guardas de campo soviéticos era irrefletida, néscia e preguiçosa, do tipo que se poderia demonstrar para com bois ou ovelhas. Se não se ordenava explicitamente aos guardas que maltratassem os prisioneiros, eles tampouco eram instruídos a considerá-los plenamente humanos, em especial no caso dos presos políticos. Pelo contrário: envidavam-se grandes esforços para cultivar o ódio pelos detentos, sempre descritos como "criminosos perigosos", "espiões e sabotadores que tentavam destruir o povo soviético". Tal propaganda tinha enorme efeito sobre pessoas que já estavam amarguradas pelo infortúnio, pelo emprego indesejado, pelas más condições de vida.[529] Também moldava a visão dos empregados livres do Gulag - os moradores locais que trabalhavam nos campos e não eram funcionários da NKVD - tanto quanto dos guardas, como recordaria um preso:
Em geral, éramos separados dos trabalhadores livres por um muro de desconfiança mútua. [...] Para eles, nossos vultos cinzentos, conduzidos em turmas e às vezes guardados por cães, provavelmente constituíam algo muito desagradável, em que era melhor não pensar.[530]
Isso já era verdade nos anos 1920, quando os guardas de Solovetsky faziam prisioneiros enregelados pular de pontes. As coisas ficaram piores, é claro, no final da década de 30, com a redução dos presos políticos a "inimigos do povo" e o endurecimento do regime prisional nos campos. Em 1937, ao saber que um grande contingente de trotskistas estava a caminho de Kolyma, o chefe do campo, Eduard Berzin, disse a um grupo de colegas que, "se esses cachorros [...] cometeram sabotagem por lá, vamos garantir que aqui eles trabalhem pela União Soviética; temos meios de fazê-los trabalhar".[531]
Mesmo depois de terminado o Grande Terror, a propaganda nunca chegou a arrefecer. Durante toda a década de 1940 e parte da década de 50, os presos eram regularmente descritos como colaboracionistas e criminosos de guerra, traidores e espiões. Dentre os diferentes epitetos para aqueles nacionalistas ucranianos que começaram a derramar-se nos campos do Gulag após a Segunda Guerra Mundial, incluíam-se "cães servis e traiçoeiros dos sicários nazistas", "fascistas germano-ucranianos" e "agentes da espionagem estrangeira". Nikita Khrutchev, então líder soviético da Ucrânia, declarou numa plenária do Comitê Central que os nacionalistas ucranianos haviam se suicidado "ao tentar agradar a seu amo, Hitler, e pegar uma pequena parcela do butim por seus vis serviços".[532] Durante a guerra, os guardas chamavam quase todos os presos políticos de "fascistas", "hitleristas" ou "vlasovistas" (seguidores do general soviético Vlasov, que desertara do Exército Vermelho e apoiara Hitler).
Isso era especialmente doloroso para os judeus, para os veteranos que haviam combatido com bravura os alemães e para os comunistas estrangeiros que haviam fugido do fascismo em seus próprios países.[533] "Não somos fascistas; na maioria, somos ex-membros do Partido", disse indignado o iugoslavo Karlo Stajner a um grupo de detentos com ficha criminal, que, zombeteiros, tinham lançado o insulto "fascista" a uma turma de trabalho constituída de presos políticos.[534] Margarete Buber-Neumann, comunista alemã que foi transferida diretamente do Gulag para o campo de concentração nazista de Ravensbruck, também escreveu que antes sé referiam repetidamente a ela como "a fascista alemã".[535] E, quando o judeu Mikhail Shreider, oficial preso da NKVD, disse que não poderia ser acusado de colaborar com Hitler, seu interrogador retrucou que Shreider não era judeu, e sim "alemão disfarçado de judeu".[536]
Esses insultos não eram só uma atitude juvenil e despropositada. Ao definirem os presos como "inimigos" ou "subumanos", os guardas se reasseguravam da legitimidade dos próprios atos. Aliás, a "retórica dos inimigos" era apenas uma parte da ideologia dos quadros do Gulag. A outra parte - vamos denominá-la "retórica da submissão total ao Estado" - insistia o tempo todo na importância do trabalho e das cifras de produção sempre crescentes, as quais eram necessárias para a continuidade da URSS. Para sermos bem diretos: podia-se justificar tudo que proporcionasse resultados. Essa tese foi maravilhosamente sintetizada por Aleksei Loginov, diretor aposentado de produção e de campos prisionais de Norilsk, numa entrevista que deu a um documentarista britânico:
Desde o início, sabíamos perfeitamente que o mundo exterior nunca deixaria nossa Revolução Soviética em paz. Não era só Stalin que percebia isso - todo comunista comum, toda pessoa comum, todos nós percebíamos que precisávamos não apenas construir, mas construir sabendo plenamente que logo estaríamos em guerra. Assim, na minha área, a busca por todas as fontes de matéria-prima - cobre, níquel, alumínio, ferro etc. - era incrivelmente intensa. Sempre tínhamos estado cientes dos enormes recursos de Norilsk - mas como explorá-los no Ártico? Por isso, o empreendimento inteiro foi posto nas mãos da NKVD, o Ministério do Interior. Quem mais conseguiria fazer aquilo? Você já sabe quantas pessoas tinham ido para a prisão. E lá precisávamos de dezenas de milhares...[537]
Loginov falava em 1990, quase meio século depois que Norilsk deixara de ser um vasto complexo prisional. Mas as palavras dele ecoam as de Anna Zakharova, mulher de um comandante de campo, escrevendo em 1964 ao jornal governamental Izvestiya - a carta não foi publicada, mas depois seria veiculada pela imprensa clandestina. Anna, assim como Loginov, falava dos sacrifícios que o marido fizera para maior glória da pátria:
A saúde dele já se dilapidou pelo trabalho com criminosos, porque aqui toda essa atividade desgasta os nervos. Gostaríamos de mudar, pois meu marido já cumpriu seu tempo de serviço, mas não querem deixá-lo ir. Comunista e oficial, ele submete-se às exigências do dever.[538]
Opiniões semelhantes me foram apresentadas por uma administradora do Gulag que preferiu permanecer anônima. Com orgulho, falou-me do trabalho que seus presos tinham feito pela URSS durante a guerra: "Todos, absolutamente todos, pagavam suas expensas com o próprio trabalho e davam tudo o que podiam para a frente de combate".[539]
Nesse quadro mais amplo da lealdade para com a URSS e seus objetivos econômicos, a crueldade cometida em nome das cifras de produção parecia admirabilíssima a seus perpetradores. A verdadeira natureza da crueldade, assim como a verdadeira natureza dos campos, podia ocultar-se atrás do economês. Após ter entrevistado em 1991 um ex-administrador do Karlag, o jornalista americano Adam Hochschild se queixou:
Pela conversa do coronel, não se saberia que se tratava de uma prisão, porque ele falou quase exclusivamente do papel do Karlag na economia soviética. Ele parecia um orgulhoso chefe regional do partido. "Tínhamos nossa própria estação agrícola experimental. A pecuária também era avançada: criamos uma raça especial, a Estepe Vermelha, assim como o gado cazaque..."[540]
Nos escalões mais altos, os administradores freqüentemente descreviam os presos como se fossem máquinas ou ferramentas, necessárias para concluir o trabalho e nada mais. De maneira explícita, os prisioneiros eram considerados mão-de-obra barata e cômoda - um insumo, tal qual os suprimentos de aço ou cimento. Mais uma vez, é Loginov, o comandante de Norilsk, quem expressa isso melhor:
Se houvéssemos mandado civis [para Norilsk], primeiro teríamos precisado construir casas para eles. E como civis conseguiriam viver ali? Com os presos, é fácil - necessita-se apenas de um barracão e um fogão com chaminé, e eles se viram. Depois, talvez um lugar para comerem. Em resumo: nas circunstâncias daquela época, os presos eram as únicas pessoas que podíamos usar em escala tão grande. Se houvéssemos tido tempo, provavelmente não teríamos feito daquele jeito.[541]
Ao mesmo tempo, o economês tornava possível aos comandantes de campo justificarem qualquer coisa, mesmo a morte: tudo era pelo bem comum. Por vezes, esse argumento era levado a verdadeiros extremos. Lev Razgon, por exemplo, relata uma conversa entre o coronel Tarasyuk, então comandante do Ustvymlag, e um médico do campo, Kogan, que cometera o erro de gabar-se ao coronel de quantos pacientes "salvara das garras da pelagra", doença causada pela inanição e conseqüente falta de proteínas. Segundo Razgon, seguiu-se este diálogo:
Tarasyuk: O que estão dando a eles?
Kogan: Todos estão recebendo a ração antipelagra determinada pelo Departamento de Saúde e Saneamento do Gulag.
Então, Kogan especificou em calorias a quantidade de proteínas.
Tarasyuk: Quantos deles vão poder trabalhar na floresta? E quando será isso?
Kogan: Bem, está claro que nenhum deles vai poder trabalhar na floresta. Nunca mais. Mas agora vão sobreviver, e será possível usá-los para serviços leves no perímetro no campo.
Tarasyuk: Pare de lhes dar rações antipelagra. Pode anotar: essas rações são para aqueles que trabalham na floresta. Os outros presos devem receber rações de inválidos.
Kogan: Mas camarada coronel! E óbvio que eu não me expliquei direito. Essas pessoas só vão sobreviver se tiverem rações especiais. Um preso inválido recebe 400 gramas de pão. Com essa ração, vão morrer em dez dias. Não podemos fazer uma coisa dessas!
Tarasyuk olhou para o médico, que estava transtornado. Havia até certa expressão de curiosidade no rosto do coronel.
"Qual é o problema? A sua ética médica o impede de fazer isso?" "Mas é claro que impede..."
"Bem, eu não ligo a mínima para a sua ética", disse Tarasyuk, calmamente, sem dar nenhuma indicação de estar irado. "Você já anotou? Agora, tratemos dos outros assuntos..."
Passado um mês, todos os 246 enfermos já haviam morrido.[542]
Os registros mostram que conversas desse tipo não eram excepcionais nem apócrifas. Relatando as condições dos presos na Volgostroi durante a guerra, um inspetor reclamou de que a administração do campo estava "interessada exclusivamente em produzir madeira [...] e não demonstrava o mínimo interesse em alimentar e vestir os presos, mandando-os trabalhar sem considerar a aptidão física, jamais se preocupando em saber se estavam sadios, trajados e nutridos".[543] E, durante uma reunião de oficiais do Vyatlag em janeiro de 1943, o camarada Avrutsky, falando na linguagem absolutamente neutra da estatística, fez o seguinte comentário: "Dispomos de 100% de nossa força de trabalho, mas não podemos cumprir nosso programa, pois o grupo B continua a crescer. Mas, se a alimentação que destinamos ao grupo B fosse direcionada a outro contingente, já não teríamos grupo B e cumpriríamos a meta".[544] Naturalmente, a expressão "grupo B" se referia a presos mais fracos, que de fato deixariam de existir caso não recebessem alimento. Os comandantes de campo podiam dar-se ao luxo de tomar tais decisões a grande distância das pessoas que seriam afetadas por elas; entretanto, no caso daqueles que se encontravam mais abaixo na hierarquia, a proximidade não necessariamente despertava mais compaixão. O preso polonês Kasimierz Zarod estava numa coluna de presos que marchava para o local de um novo campo. Praticamente não tendo recebido comida, começaram a enfraquecer-se. Por fim, um deles caiu e não conseguiu mais se levantar. Um dos guardas apontou a arma para ele. Outro ameaçou atirar:
"Pelo amor de Deus", ouvi o homem gemer, "se vocês me deixarem descansar um pouco, eu consigo alcançá-los."
"Você ou anda, ou morre", respondeu o primeiro guarda...
Eu o vi erguer e apontar o fuzil - não pude acreditar que ele fosse atirar. Nesse momento, os homens na coluna atrás de mim já haviam se reagrupado, e minha visão do que acontecia foi obstruída. De repente, porém, ressoou um disparo, seguido de outro, e percebi que o homem morrera.
Contudo Zarod relata que nem todos os que desabavam durante a marcha eram fuzilados. Caso aqueles exaustos demais para continuar andando fossem jovens, eram apanhados e postos numa carroça, onde
jaziam tal qual sacas até se recuperarem. [...] Pelo que consegui entender, o raciocínio era que os jovens podiam recobrar-se e trabalhar, mas que os velhos não valia a pena salvar. Com certeza, aqueles jogados como trouxas de roupas velhas nas carroças de suprimentos não o eram por nenhuma razão humanitária. Os guardas, embora jovens, já haviam feito aquele caminho antes e aparentemente estavam desprovidos de qualquer sentimento humano.[545]
Ainda que não haja memórias para documentar isto, tal atitude certamente afetava até aqueles que ocupavam cargos no topo do sistema de campos. Nos capítulos anteriores, citei freqüentemente relatórios encontrados nos arquivos da inspetoria-geral do Gulag, que fazia parte da promotoria soviética. Esses relatórios, redigidos com grande precisão e regularidade, são extraordinários pela honestidade. Referem-se a epidemias de tifo, falta de alimentos, escassez de itens de vestuário. Denunciam campos onde a taxa de mortalidade é "demasiado alta". Irados, acusam certos comandantes de campo de criar más condições de vida para os prisioneiros. Calculam o número de homens/dia perdidos por conta de doenças, acidentes e óbitos. Lendo-os, não se tem nenhuma dúvida de que os maiorais do Gulag em Moscou sabiam - real e verdadeiramente - como era a vida nos campos de concentração. Estava tudo lá, numa linguagem não menos franca do que a utilizada por Alexander Soljenitsin e Variam Shalamov.[546]
E no entanto, embora às vezes se fizessem mudanças e se impusessem penas judiciais a comandantes, o que impressiona nos relatórios é a própria repetitividade: eles fazem lembrar a cultura absurda das inspeções fajutas que Gogol descreveu de maneira tão maravilhosa. Era como se respeitassem as formalidades, produzissem os relatórios, expressassem a ira que era de rigor - e não ligassem para os reais efeitos nos seres humanos. Comandantes viviam sendo repreendidos por não melhorarem as condições de vida nos campos, estas continuavam a não melhorar, e a conversava acabava por aí.
Ao fim e ao cabo, ninguém obrigava os guardas a salvar os jovens e assassinar os velhos. Ninguém obrigava os comandantes de campo a matar os enfermos. Ninguém obrigava a direção geral do Gulag, em Moscou, a não atentar para o que os relatórios dos inspetores indicavam. Ainda assim, tais decisões eram tomadas abertamente, todos os dias, por guardas e administradores que pareciam convencidos do direito de tomá-las.
Tampouco a ideologia da submissão total ao Estado era exclusiva dos amos do Gulag. Os presos também eram estimulados a cooperar -e alguns o faziam.
O homem é uma criatura que consegue acostumar-se a tudo,
e creio ser essa a melhor definição dele.
Dostoievski, Recordações da casa dos mortos.[547]
Urki: a bandidagem
Para o preso político inexperiente, para a jovem camponesa presa por ter roubado um pão, para o deportado polonês despreparado, o primeiro contato com os urki (a casta criminosa da URSS) era desnorteante e aterrador. Evgeniya Ginzburg topou pela primeira vez com criminosas quando embarcou no navio para Kolyma:
Eram a nata da bandidagem: assassinas, sádicas, versadas em todos os tipos de perversão sexual [...] sem perderem tempo, já foram aterrorizando e oprimindo as "senhoras" e ficavam encantadas em descobrir que as "inimigas do povo" eram seres ainda mais desprezados e marginalizados do que elas próprias [...]. Apossavam-se de nossos pedacinhos de pão, roubavam nossos últimos trapos e pertences, empurravam-nos dos lugares que tínhamos conseguido arranjar.[548]
Viajando pela mesma rota, Aleksander Gorbatov - o general Gorbatov, herói de guerra soviético, que dificilmente poderia ser considerado covarde - teve as botas roubadas quando estava no porão do vapor Dzhurma, atravessando o mar de Okhotsk:
Um deles me golpeou com força no peito e depois na cabeça e disse, desdenhoso: "Olhem para ele - me vendeu as botas já faz dias, pegou o dinheiro e não quis mais saber de entregar!" Foram-se com o produto do roubo, rindo-se o mais que podiam e só parando para bater em mim outra vez, quando, por puro e simples desespero, fui atrás deles e pedi as botas de volta.[549]
Dezenas de outros memorialistas descrevem cenas semelhantes. Os criminosos de carreira se lançavam sobre os outros presos com o que parecia ser uma fúria louca, atirando-os para fora dos beliches nos trens e alojamentos; roubando as roupas que lhes restavam; berrando, maldizendo e xingando. Para pessoas comuns, a aparência e o comportamento dos bandidos se afiguravam estranhíssimos. O preso polonês Antoni Ekart ficou horrorizado com a "absoluta falta de inibição da parte dos urki, que satisfaziam à vista de todos as suas necessidades naturais, aí incluído o onanismo. Isso os tornava extraordinariamente similares aos macacos, com os quais pareciam ter mais em comum que com os humanos"[550] Mariya Ioffe, mulher de um bolchevique famoso, também escreveu que os bandidos faziam sexo às claras, andavam nus pelos alojamentos e não tinham nenhum sentimento uns pelos outros: "Neles, só o corpo vivia".[551]
Apenas depois de semanas ou meses nos campos, os não-inicia-dos começavam a entender que o inundo da criminalidade não era uniforme, que ele tinha uma hierarquia própria e que, na realidade, havia muitos tipos diferentes de bandido. Lev Razgon explicou: "Eles se dividiam em castas e comunidades, cada uma com a própria disciplina férrea, tendo muitas regras e costumes. Casos estes fossem desrespeitados, o castigo era severo: na melhor das hipóteses, o indivíduo era expulso do grupo; na pior, assassinado".[552]
O preso polonês Karol Colonna-Czosnowski, que se viu na situação de ser o único preso político num campo madeireiro setentrional habitado por bandidos, também observou tais diferenças:
Naquele tempo, os criminosos russos tinham muita consciência de classe. Para eles, aliás, a classe era tudo. Em sua hierarquia, os peixes grandes, como os assaltantes de trem ou de banco, eram membros da classe alta. Grisha Tchorny, chefe da máfia do campo, era um desses. No extremo oposto da escala social, ficava a arraia-miúda, como os punguistas. Eram usados como criados e mensageiros pessoais pelos maiorais e tratados com muito pouco respeito. Todos os outros criminosos juntos compunham o grosso da classe média, mas mesmo ali havia distinções.
De muitas maneiras, essa estranha sociedade era uma réplica caricaturesca do mundo normal. Nela, podíamos localizar o equivalente de cada nuance de virtude ou defeito humano. Conseguíamos sem esforço identificar, por exemplo, o ambicioso em ascensão, o alpinista social, o embusteiro, assim como o íntegro e generoso.[553]
Bem no topo daquela hierarquia, dando ordens a todos os outros, estavam os chefões. Os criminosos profissionais russos, conhecidos como urki, blatoi ou, caso estivessem na elite mais exclusivista da bandidagem, vory v zakone - expressão que se poderia traduzir por "mafiosos" -, viviam segundo regras e costumes que precediam o Gulag e que durariam mais que ele. Esses indivíduos não tinham absolutamente nada que ver com a vasta maioria dos presos do Gulag, aqueles com condenações por "crimes" contra o socialismo. Os chamados "criminosos ordinários" - pessoas condenadas por pequenos furtos eventuais, infrações das normas de trabalho ou outros crimes não-políticos - odiavam os mafiosos com a mesma veemência com que odiavam os presos políticos.
E não era de admirar: os mafiosos possuíam cultura muito diversa daquela do cidadão soviético médio. Esse universo criminoso tinha raízes profundas na bandidagem da Rússia czarista, nas corporações de larápios e mendigos que, naquele tempo, controlavam os crimes de pouca monta.[554] No entanto, essa cultura se disseminou muitíssimo mais durante as primeiras décadas do regime soviético, graças às centenas de milhares de órfãos - vítimas diretas da Revolução, da Guerra Civil e da coletivização - que haviam sobrevivido primeiro como crianças de rua e depois como bandidos. No final da década de 1920, quando os campos começaram a expandir-se em escala maciça, os criminosos de carreira já haviam se tornado uma comunidade totalmente à parte, tendo até um rigoroso código de conduta que os proibia de manter toda e qualquer relação com o Estado soviético. O verdadeiro mafioso se recusava a trabalhar, possuir documentos e cooperar de que modo fosse com as autoridades, só o fazendo para explorá-las: os "aristocratas" da peça homônima de Nicolai Pogodin, de 1944, já eram identificáveis como "mafiosos" que, por princípio, se negavam a realizar qualquer trabalho.[555]
Aliás, os programas de doutrinação e reabilitação do começo dos anos 1930 estavam, na maior parte, voltados mais para os mafiosos que para os presos políticos. Presumia-se que os bandidos, sendo sotsialnoblizkii - "socialmente próximos", ao contrário dos presos políticos, que eram sotsialnoopasnyi, "socialmente perigosos" -, pudessem regenerar-se. Mas, no fim da década de 1930, as autoridades pareciam ter desistido da idéia de recuperar os criminosos de carreira. Em vez disso, resolveram usar os mafiosos para controlar e intimidar outros presos, em especial "contra-revolucionários", os quais os bandidos abominavam com muita naturalidade.[556]
Não se tratava de um desdobramento inteiramente novo. Um século antes, criminosos que cumpriam sentença na Sibéria já odiavam os presos políticos. Em Recordações da casa dos mortos, as memórias bastante romanceadas de seus cinco anos na prisão, Dostoievski relata as observações de outro detento: "Não, eles não gostam de detentos afidalgados, sobretudo dos presos políticos; bem gostariam de matá-los, o que não é de admirar. Para começo de conversa, vocês são um tipo diferente de pessoa, não são como eles".[557]
Na URSS, desde mais ou menos 1937 até o final da guerra, a administração dos campos começou a utilizar abertamente pequenos grupos de criminosos profissionais para controlar outros presos. Durante aquele período, os mafiosos de mais alto coturno não trabalhavam; em vez disso, asseguravam-se de que outros o fizessem.[558] Lev Razgon assim descreveu:
Não trabalhavam, mas recebiam ração completa; extorquiam um tributo em dinheiro de todos os "camponeses", ou seja, de quem realmente trabalhava; pegavam metade das remessas de alimento recebidas pelos detentos, mais metade do que estes compravam do empório do campo; e roubavam descaradamente os novos contingentes de presos, apossando-se de todas as melhores roupas dos recém-chegados. Em suma, eram extorsionários, gângsteres, membros de uma pequena máfia. Todos os "criminosos ordinários" do campo - e eles constituíam a maioria - os detestavam intensamente.[559]
Alguns presos políticos descobriam maneiras de dar-se bem com os mafiosos, em especial após a guerra. Certos chefões gostavam de ter presos políticos como mascotes ou sombras. Num campo onde os presos ficavam de passagem até o destino final, Alexander Dolgun ganhou o respeito de um chefão ao espancar um criminoso de menor posição.[560] Em parte porque também derrotara um criminoso numa briga de socos, Marlen Korallov (jovem preso político, depois um dos fundadores da Sociedade Memorial de Moscou) foi notado pelo manda-chuva dos criminosos do pampo, Nikola, o qual autorizou Korallov a pôr-se perto dele no alojamento. Essa decisão alterou o status de Korallov no campo, onde de imediato passou a ser considerado "protegido" de Nikola e obter muito mais vantagens na hora de arrumar lugar para dormir. "O campo entendeu: se eu era parte da tróica em torno de Nikola, então era parte da elite [...] todas as atitudes para comigo se modificaram na mesma hora."[561]
Na maior parte das vezes, porém, o domínio dos bandidos sobre os presos políticos era absoluto. O status superior dos criminosos ajudava a explicar por que eles, nas palavras de um criminologista, se sentiam "em casa" nos campos de concentração: passavam melhor que outros presos e desfrutavam um nível de poder real que não tinham fora dali.[562] Korallov explica, por exemplo, que Nikola ficava na "única cama de ferro" do alojamento, a qual havia sido ajeitada num canto Ninguém mais dormia nela, e um bando de asseclas a rondava para garantir que as coisas continuassem assim. Eles também faziam um cortinado de cobertores nos leitos ao redor, a fim de impedir que outros espiassem o que faziam. O acesso ao espaço em torno do líder era controlado com zelo. Tais presos até consideravam suas longas condenações com uma espécie de orgulho viril. Korallov observa que
havia alguns jovens que, para reforçar sua autoridade, procuravam escapar - uma tentativa inútil - e então recebiam mais 25 anos de pena, e talvez outros tantos por sabotagem. Aí, quando apareciam num novo campo e diziam às pessoas que tinham sido condenados a cem anos, isso, seguindo a moralidade dos campos, os transformava em figurões.[563]
O status mais elevado aumentava o atrativo da bandidagem para os presos mais jovens, que às vezes eram introduzidos na fraternidade mediante complexos rituais de iniciação. De acordo com relatos compilados por secretas e administradores prisionais nos anos 1950, os novos membros do clã tinham de fazer juramento, prometendo ser "bandidos de valor" e aceitar as normas severas daquela vida. Outros mafiosos então recomendavam o noviço, talvez elogiando-o por "ter desafiado a disciplina do campo" e dando-lhe um apelido. A notícia dessa "coroação" se disseminava por todo o sistema de campos, através da rede de contatos dos criminosos, de modo que, se o novo mafioso fosse transferido para outro lagpunkt, seu status se conservaria.[564]
Esse era o sistema que Nikolai Medvedev (o qual não tem nenhum parentesco com aqueles intelectuais de Moscou) encontrou em 1946. Aprisionado na adolescência por ter furtado cereal numa fazenda coletiva, Medvedev já. ficou debaixo da asa de um dos principais chefões mafiosos quando ainda estava em traslado; então, aos poucos, iniciaram-no na bandidagem. Ao chegarem a Magadan, Medvedev foi posto para trabalhar como os outros presos; viu-se encarregado de limpar o refeitório, o que não era uma tarefa muito árdua. Seu mentor, porém, gritou para que parasse. "E, assim, não trabalhei, da mesma maneira todos os outros bandidos." Outros presos é que se incumbiam do trabalho para ele.[565]
Conforme Medvedev, a administração do campo não se preocupava com o fato de certos detentos não trabalharem. "Para ela, só interessava uma coisa: que a mina produzisse ouro - tanto ouro quanto possível - e que o campo permanecesse em ordem." E, escreve ele de modo abonador, os bandidos realmente garantiam a ordem. O que os campos perdiam em homens/hora (pelos criminosos que deixavam de trabalhar) ganhavam em disciplina. Medvedev explica que, "se alguém ofendia alguém, levava-se a queixa às autoridades da bandidagem", não às do campo. Esse sistema, afirma Medvedev, mantinha baixo o nível de desavença e violência, o qual, do contrário, teria sido inconvenientemente elevado.[566]
A avaliação positiva que Nikolai Medvedev faz do domínio da bandidagem nos campos é incomum, em parte porque descreve de dentro o mundo dos mafiosos (muitos dos urki eram analfabetos, e quase nenhum escreveu memórias), mas sobretudo porque lança sobre eles uma luz favorável. A maioria dos cronistas "clássicos" do Gulag, testemunhas do terror, dos assaltos e dos estupros que os bandidos infligiam aos outros habitantes dos campos, os odiava com ardor. "Os criminosos não são humanos", escreveu Variam Shalamov, sem meias palavras. "Os atos de perversidade que cometeram nos campos são inumeráveis."[567] Soljenitsin escreveu que "era exatamente esse mundo universalmente humano, o nosso mundo, com sua moral, seus costumes e suas relações mútuas, o que se mostrava mais odioso e mais merecedor de desdém para os bandidos, pois se contrapunha da forma mais nítida possível a seu kubla (clã) anti-social e anticívico".[568] De modo vivido, Anatolii Zhigulin descreveu como de fato funcionava a ordem que os bandidos impunham. Certo dia, enquanto estava sentado num refeitório praticamente vazio, Zhigulin ouviu dois presos brigarem por causa de uma colher. De súbito, Dezemiya, o principal lugar-tenente do maior chefão do campo, irrompeu pela porta e perguntou:
"Que barulho é esse? Por que o bate-boca? Vocês não podem perturbar a paz no refeitório."
"Olhe, ele pegou a minha colher e a trocou. Eu lhe dei uma inteira, e ele me devolveu uma quebrada..."
"Vou castigar e reconciliar os dois", disse Dezemiya, rindo à socapa. Nisto, executou dois rápidos movimentos em direção aos brigões: rápido como um raio, furou um olho de cada um deles com seu picão.[569]
A influência dos bandidos sobre a vida dos campos era decerto profunda. Sua gíria, tão distinta do russo comum que quase se torna um idioma à parte, tornou-se o mais importante meio de comunicação no Gulag. Embora esse calão fosse célebre pelo enorme e complexo vocabulário de imprecações, uma lista de palavras compiladas nos anos 1980 - muitas das quais ainda eram as mesmas usadas nos 1940 -também abrange centenas de termos para objetos comuns (aí incluídos utensílios, vestimentas e partes do corpo) que são bem diversos das palavras russas usuais. Para objetos de particular interesse (dinheiro, prostitutas, bandidos e furto), há dúzias de sinônimos. E, assim como termos genéricos para "crime" - entre eles po muzike khodit, "dançar conforme a música" -, existem muitos termos específicos para "furto" e afins: derzhatsadku (furtar em estação ferroviária), marku derzhat (furtar em trem), idti na shalynuyu (furto não-planejado) denmik (furto à luz do dia) e klyusvennik (ladrão de igreja), entre outros.[570]
Aprender a falar blatnoe slovo - "língua de bandido", às vezes chamada blatnaya muzyka, "música de bandido" - era um ritual de iniciação a que muitos presos se submetiam, não necessariamente de boa vontade. Alguns nunca se acostumavam. Uma prisioneira política escreveria:
Em tais campos, o mais difícil de agüentar são os constantes vitupérios [...] os palavrões que as prisioneiras usam são tão obscenos que se tornam insuportáveis, e elas só parecem conseguir falar umas com as outras no linguajar mais reles e vulgar. Quando começavam com aqueles xingamentos e impropérios, ficávamos com tanta raiva que costumávamos dizer entre nós: "Se uma delas estivesse morrendo aqui do meu lado, eu não lhe daria nem uma gota de água".[571]
Outros tentavam analisar essa gíria. Já em 1925, um preso de Solovetsky especulava as origens daquele vocabulário num artigo que escreveu para a Solovetskie Ostrova (uma das revistas do campo). Observava que algumas das palavras simplesmente refletiam a moralidade dos bandidos: a linguagem a respeito das mulheres era em parte obscena, em parte melosamente sentimental. Algumas das palavras surgiam do contexto: os presos usavam stukat (bater) em vez de govorit (falar) porque batiam nas paredes para comunicar-se uns com os outros.[572] Outro ex-preso comentou o fato de que várias palavras, como shmon (para "busca"), musor (para "policial") e fraier (para "não-criminoso", podendo traduzir-se também por "otário"), pareciam originar-se do hebraico ou do iídiche.[573] Isso talvez seja evidência do papel que o porto de Odessa - uma cidade em grande parte judaica, outrora a capital do contrabando na Rússia - desempenhou no desenvolvimento da cultura da bandidagem. De tempos em tempos, a administração dos campos até procurava eliminar o calão. Em 1933, o comandante do Dmitlag ordenou a seus subordinados que "tomassem as devidas medidas" para fazer os presos, assim como os guardas e administradores, pararem de utilizar o linguajar criminoso, o qual agora era "de uso geral, mesmo em cartas e discursos oficiais".[574] Não há nenhum indício de que a medida tenha surtido efeito.
Os mafiosos de mais alta posição pareciam e soavam diferentes dos outros presos. A indumentária e a moda estranha, talvez até mais que o calão, os estabeleciam como casta identificável e distinta, o que reforçava ainda mais o poder de intimidação que exerciam sobre os demais prisioneiros. Nos anos 1940, segundo Shalamov, todos os chefões mafiosos de Kolyma usavam cruzes de alumínio ao pescoço, sem nenhuma conotação religiosa ("Era uma espécie de símbolo"). Mas as modas mudavam:
Na década de 1920, os mafiosos usavam bonés de operário; antes ainda, a voga eram os quepes de oficial. Nos anos 40, durante os invernos, usavam bonés de couro sem aba, dobravam o alto das botas de feltro e tinham ao pescoço um crucifixo. Este era em geral liso, mas, se houvesse algum artista à mão, eles o obrigavam a usar uma agulha para pintar na cruz os motivos mais diversos: um coração, cartas de baralho, uma crucificação, uma mulher nua.[575]
Georgii Feldgun, também prisioneiro nos campos na década de 1940, lembraria que os bandidos tinham um andar diferenciado, "de passadas curtas, com as pernas ligeiramente abertas"; nos dentes, ostentavam coroas de ouro ou prata, uma espécie de moda:
Normalmente, o vor de 1943 circulava num costume azul-marinho de três peças, com as calças enfiadas dentro das botas. A túnica ficava debaixo do colete, com a fralda para fora. Havia também o boné, cobrindo os olhos. E tatuagens, em geral sentimentais: "Nunca esquecerei minha querida mãezinha", "A vida desconhece a felicidade".[576]
Essas tatuagens, mencionadas por muitos outros, também ajudavam a distinguir os mafiosos dos outros criminosos e a identificar o papel de cada chefão no mundo da bandidagem. De acordo com um historiador dos campos, existiam diferentes tatuagens para homossexuais, viciados, condenados por estupro e condenados por homicídio.[577] Soljenitsin é mais explícito:
Cediam sua pele brônzea para a tatuagem e, dessa maneira, gradualmente satisfaziam suas necessidades artísticas, eróticas e até morais: nos peitos, barrigas e costas uns dos outros, podiam admirar águias poderosas que se empoleiravam em desfiladeiros ou cruzavam os céus; ou uma grande marreta; ou o sol, dardejando raios em todas as direções; ou homens e mulheres em cópula; ou os órgãos de seu desfrute sexual; e, bem de repente, Lênin, Stalin ou talvez ambos apareciam ao lado de seus corações [...]. Por vezes, riam com a figura do foguista galhofeiro que lhes jogava carvão no orifício traseiro, ou com um macaco que se masturbava. E, na pele uns dos outros, liam slogans que, mesmo se já familiares, eles adoravam repetir - "Vou f... todas as minas na boca!" [,..]. Ou, na barriga da namorada de um chefão, podia haver um "Eu morro por uma boa f...!".[578]
Sendo artista profissional, Thomas Sgovio logo foi tragado pelo ramo da tatuagem. Certa vez, pediram-lhe que desenhasse o rosto de Lênin no peito de alguém: entre os bandidos, havia a crença comum de que nenhum pelotão de fuzilamento dispararia num retrato de Lênin ou Stalin.[579]
Os mafiosos também se distinguiam de outros presos na maneira de se divertir. Complexos rituais cercavam seu carteado, o qual acarretava enorme risco, tanto do próprio jogo, em que as apostas eram altas, quanto das autoridades, que puniam todos os apanhados em jogatina.[580] Entretanto, o risco era provavelmente parte do atrativo para pessoas acostumadas ao perigo: Dmitrii Likhachev, o crítico literário encarcerado em Solovetsky, observou que muitos bandidos "comparam as emoções do carteado às da consecução de um crime".[581]
Aliás, os criminosos anularam todas as tentativas da NKVD de pôr fim ao carteado. Buscas e apreensões não adiantavam de nada. Entre os bandidos, "peritos" se especializavam em produzir baralhos, procedimento que, nos anos 1940, já se tornara extremamente sofisticado. Primeiro, o expert cortava quadrados de papel com lâmina de barbear. Para assegurar-se de que as cartas fossem rijas o bastante, ele sobrepunha cinco ou seis desses quadrados, usando a "cola" que se fazia esfregando pão molhado contra um lencinho. Depois, deixava as cartas amanhecerem debaixo dos beliches, para endurecê-las. Quando ficavam prontas, estampava as figuras e números, usando um carimbo que fora entalhado do fundo de uma caneca. Para as cartas pretas, utilizava cinzas escuras. Caso se dispusesse de estreptomicina - se o médico da cadeia ou do campo a tivesse e pudesse ser subornado ou ameaçado para entregar alguma -, podia também fazer as cartas vermelhas.[582]
Os rituais do carteado eram outra parte do terror que os bandidos impunham aos presos políticos. Quando os criminosos jogavam uns com os outros, apostava-se dinheiro, pão e indumentária. Se perdiam essas coisas, apostavam as de outros presos. Gustav Herling testemunhou pela primeira vez um desses episódios quando estava num vagão Stolypin rumo à Sibéria. Viajava com outro polonês, o coronel Shklovski. No mesmo vagão, três urki, entre eles "um gorila com cara achatada de mongol", jogavam cartas.
[...] de repente, o gorila largou as cartas com brusquidão, levantou-se do banco num salto e veio para cima de Shklovski.
"Me dá o casaco!", berrou. "Eu o perdi no jogo!"
Shklovski abriu os olhos e, sem se mexer do assento, deu de ombros.
"Me dá!", rugiu o gorila, furioso. "Me dá! Senão, glaza vykolu, eu arranco os teus olhos!"
O coronel se ergueu devagar e entregou o casaco.
Só depois, no campo de trabalhos forçados, compreendi o significado daquela cena esdrúxula. Apostar nas cartas os pertences de outros presos é uma das diversões prediletas dos urki, e o principal atrativo disso está no fato de que o perdedor é obrigado a tirar à força da vítima o item previamente acordado.[583]
Uma prisioneira estava num alojamento feminino que fora todo "perdido" num jogo de cartas. Após terem ficado sabendo da notícia, as mulheres passaram dias numa espera angustiada, "incrédulas". Até que, uma noite, ocorreu o ataque. "O alvoroço foi terrível: as mulheres berraram como loucas até que homens vieram em nosso socorro [...] ao fim e ao cabo, só roubaram algumas trouxas de roupas, e a starosta foi apunhalada."[584]
O carteado, porém, podia ser não menos perigoso para os próprios criminosos de carreira. Em Kolyma, o general Gorbatov encontrou um bandido que tinha apenas dois dedos na mão esquerda. O homem explicou:
Estava jogando cartas e perdi. Não tinha dinheiro e, por isso, apostei um terno de boa qualidade - não meu, é claro, mas de um [preso] político. Eu pretendia pegar o terno de noite, quando o preso, recém-chegado, o tivesse tirado para dormir. Eu precisava entregá-lo antes das oito da manhã, mas acabaram levando o político para outro campo naquele mesmo dia. Nosso conselho de chefes se reuniu para determinar meu castigo. A parte queixosa queria que me cortassem todos os dedos da mão esquerda. Os chefes propuseram dois. Pechincharam um pouco e fecharam em três. Assim, pus a mão na mesa, e o homem para o qual eu tinha perdido pegou um picão e, com cinco golpes, arrancou meus três dedos.
Quase com orgulho, o homem concluiu: "Também temos as nossas leis, só que mais duras que as de vocês. Quando se falha com os companheiros, é preciso responder por isso".[585] E os rituais judiciais dos mafiosos eram tão complexos quanto suas cerimônias de iniciação, demandando um "tribunal", um julgamento e uma sentença, a qual podia significar surra, humilhação ou até morte. Colonna-Czosnowski presenciou uma longa e renhida partida de cartas entre dois mafiosos de alto escalão, que só terminou quando um deles já perdera todos os seus pertences. Em vez de um braço ou perna, o ganhador exigiu como penalidade uma humilhação medonha: mandou o "artista" do alojamento tatuar na cara do perdedor um pênis enorme, apontado para a boca. Minutos depois de pronta a tatuagem, o perdedor pressionou um atiçador em brasa contra o próprio rosto, apagando-a e desfigurando-se pelo resto da vida.[586] Anton Antonov-Ovseenko, filho de um destacado bolchevique, também afirmaria ter conhecido nos campos um "surdo-mudo" que perdera nas cartas e, por isso, fora proibido de usar a voz durante três anos. Mesmo quando era transferido de campo, não se atrevia a violar a condenação, pois todos os urki locais estavam cientes dela. "O desrespeito ao acertado seria punido com a morte. Ninguém escapa à lei dos bandidos."[587]
As autoridades sabiam desses rituais e, de quando em quando, procuravam intervir, nem sempre com sucesso. Num episódio em 1951, um tribunal mafioso condenou à morte um bandido chamado Yurilkin. As autoridades do campo souberam da sentença e transferiram Yurilkin, primeiro para outro campo, depois para uma prisão transitória, em seguida para um terceiro campo, numa região completamente diferente do país. Ainda assim, dois mafiosos enfim localizaram o condenado e o mataram - passados quatro anos. Depois, foram julgados e executados por homicídio na Justiça soviética, mas nem mesmo tal castigo se mostrava necessariamente coibitivo. Em 1956, a promotoria-geral da URSS fez circular um memorando em que, com frustração, se queixava de que "essa formação criminosa existe em todos os campos de trabalho correcional, e com freqüência a decisão do grupo de matar este ou aquele preso que se encontra em outro campo é ali executada sem discussão".[588]
Os tribunais mafiosos também eram capazes de impor punições a quem não pertencia à bandidagem, o que talvez explique por que inspiravam tanto terror. Lev Finkelstein, preso político no começo dos anos 1950, recordaria um desses assassínios motivados pela vingança:
Pessoalmente, vi um só homicídio, mas esse foi bem espetacular. Sabe esses espetos de papel metálicos? Quando bem afiados, são uma arma extremamente mortífera. [...]
Tínhamos um naryadchik, o homem designado para distribuir tarefas aos presos - do que ele era culpado, disso não sei. Mas os mafiosos resolveram que devia ser morto. Aconteceu quando ele estava de pé na contagem dos presos, antes de irem para o trabalho. Cada turma estava em posição de sentido, separada das outras. O naryadchik se encontrava à frente. O nome dele era Kazakhov, um homem pesadão, com uma bela pança. Um dos bandidos saiu chispando da formação e enfiou o espeto na barriga dele. Provavelmente, era um assassino experiente. Foi pego de imediato - mas tinha 25 anos de pena. Eles o julgaram outra vez, é claro, e lhe deram outros 25. Assim, a sentença se prolongaria mais alguns anos - e quem se importava?[589]
Contudo era um tanto raro que os bandidos voltassem sua "justiça" contra quem administrava os campos. No geral, se não eram exatamente leais cidadãos soviéticos, pelos menos ficavam satisfeitos -satisfeitíssimos - em cooperar na única tarefa que as autoridades da URSS lhes destinavam: dominar os presos políticos, aqueles elementos que, para de novo citarmos Evgeniya Ginzburg, eram ainda mais desprezados e marginalizados do que eles.
KONTRIKI E BYTOVYE: OS PRESOS POLÍTICOS E OS PRESOS ORDINÁRIOS
Com seu calão especial, sua indumentária característica e sua cultura rígida, os criminosos de carreira eram fáceis de identificar e de descrever. Sobre o resto dos presos, que constituíam a mão-de-obra do Gulag, torna-se muito mais difícil fazer generalizações, pois eram pessoas oriundas de todos os estratos da sociedade soviética. Aliás, durante tempo demasiado longo, nossa compreensão de quem era exatamente a maioria dos prisioneiros nos campos se viu enviesada pela dependência forçada que tínhamos em relação às memórias escritas, sobretudo às publicadas fora da URSS. Seus autores eram em geral intelectuais, com freqüência estrangeiros e quase universalmente presos políticos.
Mas, desde a glasnost de Gorbatchev, disponibilizou-se uma variedade maior de material memorialístico, junto com alguns dados arquivais. Segundo esses últimos - que devem ser tratados com um bocado de cautela -, parece que a imensa maioria dos presos não era de modo algum composta de intelectuais. Ou seja, não eram pessoas da intelligentsia técnica e acadêmica da Rússia, a qual, na prática, formava uma classe social à parte, mas operários e camponeses. Alguns números referentes aos anos 1930, quando o grosso dos presos do Gulag eram kulaks, são particularmente reveladores. Em 1934, só 0,7% da população dos campos de concentração tinha instrução superior; já 39,1% possuíam apenas escolaridade primária. Na mesma época, 42,6% eram descritos como "semi-alfabetizados", e 12% eram totalmente analfabetos. Mesmo em 1938, o ano em que o Grande Terror assolou a intelectualidade de Moscou e Leningrado, quem tinha instrução superior ainda correspondia a apenas 1,1% da população do Gulag, ao passo que mais de metade do total fizera somente o primário e um terço era semi-alfabetizado.[590]
Estatísticas comparáveis sobre a proveniência social dos detentos não parecem estar disponíveis, mas vale a pena notar que, em 1948, menos de um quarto deles eram presos políticos - aqueles condenados por crimes "contra-revolucionários", conforme o artigo 58 do Código Penal. Isso seguia um padrão preexistente. Os presos políticos corresponderam a apenas 12%-18% da população prisional nos anos de terror de 1937 e 1938; ficaram em 30%-40% durante a guerra; subiram para quase 60% em 1946, em conseqüência da anistia concedida a presos criminais após a vitória; e então permaneceram numa porcentagem estável, entre um quarto e um terço de todos os presos, pelo restante do reinado de Stalin.[591] Dada a elevada rotatividade de presos não-polí-ticos - estes freqüentemente estavam condenados a penas mais curtas e tinham mais chance de atender aos requisitos para a liberação antecipada -, é seguro dizer que a grande maioria dos que passaram pelo sistema Gulag nas décadas de 1930 e 40 se constituía de pessoas com sentenças criminais e, portanto, com maior probabilidade de serem operários e camponeses.
No entanto, embora esses números possam ajudar a corrigir impressões anteriores, eles também enganam. Analisando o novo material memorialístico acumulado na Rússia desde o colapso da URSS, fica igualmente claro que muitos dos presos políticos não se enquadravam na definição que hoje damos ao termo. Nos anos 1920, os campos realmente continham membros dos partidos antibolchevique, indivíduos que de fato se designavam "presos políticos". Nos anos 30, também havia alguns verdadeiros trotskistas - pessoas que tinham mesmo apoiado Trotski contra Stalin. Nos anos 40, após as prisões em massa na Ucrânia, nos Estados bálticos e na Polônia, uma onda de guerrilheiros e ativistas verdadeiramente anti-soviéticos fluiu para o Gulag. E, no começo da década de 50, prendeu-se um punhado de estudantes anti-stalinistas.
Todavia, entre as centenas de milhares de pessoas que eram denominadas presos políticos nos campos, a imensa maioria se compunha não de dissidentes, nem de padres que diziam missa às escondidas, nem mesmo de maiorais do Partido. Era, isto sim, de pessoas comuns, levadas de roldão durante detenções em massa, não tendo necessariamente posições políticas fortes em nenhum sentido. Olga Adamova-Sliozberg, outrora funcionária de um dos ministérios industriais em Moscou, escreveria: "Antes de minha prisão, eu levava vida bastante comum, típica de uma profissional liberal soviética que não pertencesse ao Partido. Dava duro, mas não tinha nenhuma participação especial na política nem nas questões públicas. Meus verdadeiros interesses eram o lar e a família".[592]
Se os presos políticos não eram necessariamente políticos, a esmagadora maioria dos presos criminais tampouco era necessariamente de criminosos. No Gulag, embora houvesse alguns criminosos de carreira e, durante o conflito mundial, alguns verdadeiros colaboracionistas e criminosos de guerra, a maior parte dos demais fora condenada por crimes "ordinários" ou não-políticos que, em outras sociedades, nunca seriam considerados delitos. Por duas vezes, o pai do general e político russo Alexsander Lebed se atrasara dez minutos para o trabalho numa fábrica, pelo que o sentenciaram a cinco anos no Gulag.[593] No campo de Polyansky, situado perto do Krasnoyarsk 26 (local de um dos reatores nucleares da URSS) e habitado majoritariamente por criminosos, os arquivos registram um preso "criminal" que pegou seis anos pelo furto de um único pé de galocha numa feira; outro, dez anos pelo furto de dez pães; outro (caminhoneiro que criava sozinho os dois filhos), sete anos pelo furto de três garrafas do vinho que estava entregando; e outro, cinco anos por "especulação", significando que comprara cigarros num lugar e os vendera em outro.[594] Antoni Ekart conta a história de uma mulher que foi presa porque pegou um lápis do escritório onde trabalhava; era para o filho, que não podia fazer o dever de casa porque não tinha com o que escrever.[595]
No mundo às avessas do Gulag, a probabilidade de presos criminais serem de fato criminosos equivalia à de presos políticos serem mesmo opositores ativos do regime. Em outras palavras, os criminosos nem sempre eram gente que cometera crimes de verdade. E era ainda mais raro que um preso político houvesse cometido um delito de natureza política. Isso, porém, não impedia o sistema judiciário soviético de classificá-los zelosamente. Como grupo, os contra-revolucionários tinham status ainda mais baixo que os criminosos; como já dissemos, eram considerados "socialmente perigosos", menos compatíveis com a sociedade soviética que os criminosos, "socialmente próximos". Mas os presos políticos também se classificavam segundo o parágrafo do artigo 58 do Código Penal pelo qual houvessem sido condenados. Evgeniya Ginzburg observou que, dentre os presos políticos, era muitíssimo "melhor" ter sido condenado conforme o parágrafo 10, por "agitação anti-soviética" (ASA). Eram os "tagarelas": haviam contado alguma piada infeliz a respeito do Partido ou deixado escapar alguma crítica a Stalin ou ao chefe partidário local - ou então sido acusados disso por algum vizinho invejoso. Até as autoridades dos campos reconheciam tacitamente que os "tagarelas" não haviam cometido crime nenhum, e assim os condenados por ASA descobriam que, no caso deles, às vezes era mais fácil ser designado para trabalho mais leve.
Abaixo deles, estavam os condenados por "atividades contra-revolucionárias" (KDR). Mais abaixo ainda, havia os condenados por "atividades terroristas contra-revolucionárias" (KRTD). Em alguns campos, o T adicional podia significar que o preso estava proibido de realizar outro trabalho que não os "serviços gerais" mais pesados (cortar árvores, cavar nas minas, construir estradas), em especial se a KRTD acarretara pena de dez ou quinze anos ou mais.[596]
E era possível descer ainda mais. Abaixo da KRTD, havia outra categoria: as KRTTD, que eram não qualquer atividade terrorista, mas sim as "atividades terroristas trotskistas contra-revolucionárias". "Sei de casos", escreve Lev Razgon, "em que esse T extra aparecia na documentação do preso nos campos por causa de alguma discussão, durante a contagem dos prisioneiros, com o distribuidor de tarefas ou com o chefe desse serviço, ambos os quais eram criminosos."[597] Uma mudancinha como essa podia ser a diferença entre a vida e a morte, pois nenhum capataz designaria um preso KRTTD para outra coisa senão a labuta mais pesada.
Tais regras nem sempre eram nítidas. Na prática, os presos viviam sopesando o valor das diferentes sentenças judiciais, procurando calcular que influência elas teriam em suas vidas. Variam Shalamov relata que, após haver sido selecionado para fazer um curso de paramédico que lhe teria permitido tornar-se feldsher (assistente médico, um dos serviços mais prestigiosos e confortáveis no campo), ficou preocupado com o efeito que sua sentença teria em suas possibilidades de concluir o curso: "Será que aceitariam presos políticos condenados pelo artigo 58? Só os que o tivessem sido pelo parágrafo 10? E o homem que estava comigo na traseira do caminhão? Ele também era ASA, agitação anti-soviética".[598]
As sentenças oficiais, por si sós, não determinavam o lugar dos presos políticos na hierarquia dos campos. Embora não tivessem um código de conduta rígido como o dos bandidos, nem um linguajar uniformizador, eles realmente acabavam segregando-se em grupos. Esses clãs políticos se mantinham unidos pela camaradagem, pela necessidade de defender-se ou pela visão de mundo que compartilhavam. Não ficavam à parte - tinham elementos de contato uns com os outros e com os clãs de presos não-políticos -, nem existiam em todos os campos. Mas, nas circunstâncias certas, podiam ser cruciais para a sobrevivência do prisioneiro.
Dos clãs políticos, os mais fundamentais, e, no final das contas, mais poderosos, se constituíam em torno da nacionalidade ou do lugar de origem. Esses se tornaram mais importantes durante e após a Segunda Guerra Mundial, quando o número de presos estrangeiros aumentou enormemente. Surgiam de modo bem natural: o novo prisioneiro chegava e de imediato procurava nos alojamentos seus patrícios estonianos, ucranianos ou (num número ínfimo de casos) americanos, por exemplo. Walter Warwick, um dos fino-americanos que acabaram no Gulag nos anos 1930, descreve, num manuscrito que elaborou para a família, como os falantes do finlandês em seu campo se aglutinavam especificamente para proteger-se dos roubos e abusos da bandidagem: "Chegamos à conclusão de que, se quiséssemos um pouco de sossego, precisaríamos formar uma gangue. Assim, organizamos nossa própria turma, para nos ajudarmos uns aos outros. Éramos seis: dois fino-americanos [...], dois finlandeses da própria Finlândia [...] e dois finlandeses da região de Leningrado".[599]
Nem todo clã baseado na nacionalidade exibia o mesmo caráter. Há opiniões discordantes, por exemplo, sobre se os prisioneiros judeus tinham mesmo uma rede própria ou se, ao contrário, fundiam-se na população geral russa - ou, no caso do grande número de judeus polacos, na grande população geral polonesa. Parece que a resposta variava conforme a época e que muito dependia das atitudes individuais. Muitos dos judeus aprisionados no final dos anos 1930, durante a repressão contra os primeiros escalões da nomenklatura e das Forças Armadas, parecem ter-se considerado primeiro comunistas e só depois judeus. Segundo um preso, nos campos "todo o mundo virava russo -fossem caucásios, fossem tártaros, fossem judeus".[600]
Posteriormente, à medida que mais judeus chegavam com os poloneses durante a guerra, eles parecem ter formado redes étnicas reconhecíveis. Ada Federolf - que escreveu memórias junto com Ariadna Efron, filha de Maria Tsvetaeva - descreveu um campo no qual a oficina de costura (pelos padrões locais, um lugar luxuoso para trabalhar) ficava a cargo de um homem chamado Lieberman. Sempre que chegava um contingente de prisioneiros, ele percorria a multidão, gritando: "Quem é judeu? Quem é judeu?" Quando os localizava, providenciava para que viessem trabalhar consigo na oficina, poupando-os do trabalho braçal na floresta. Lieberman também ideou planos engenhosos para salvar rabinos, os quais, por dever de ofício, precisavam rezar o dia todo. Construiu um cubículo especial para certo rabino, ocultando o religioso a fim de que ninguém soubesse que ele não estava trabalhando. Lieberman também inventou para outro rabino o cargo de "controlador de qualidade". Isso possibilitava que o homem percorresse o dia inteiro as fileiras de costureiras, sorrindo para elas e orando de mansinho.[601]
No começo dos anos 1950, quando o anti-semitismo oficial soviético começou a fortalecer-se - estimulado pela obsessão de Stalin com os médicos judeus que, achava ele, estavam tentando matá-lo -, voltou a ficar difícil ser judeu. Entretanto, mesmo dessa vez, o grau de anti-semitismo parecia variar de campo para campo. Ada Purizhinskaya, aprisionada no auge do "Complô dos Médicos" (o irmão fora julgado e executado por "ter conspirado para matar Stalin"), não se recordaria de "nenhum problema em especial por ser judia".[602] Mas Leonid Trus, outro judeu encarcerado na mesma época, pensaria de modo diferente. Certa vez, disse ele, um zek mais velho o salvou de um anti-semita furibundo, que fora aprisionado por comércio de ícones. (O zek mais velho gritou para o vendilhão que este, homem que "comprava e vendia imagens de Cristo", devia envergonhar-se.)
Trus, porém, não tentava esconder o fato de que era judeu. Pelo contrário: nas botas, pintou uma estrela-de-davi, em boa parte para impedir que as roubassem. Em seu campo, "os judeus, assim como os russos, não se organizam num grupo". Isso o deixava sem companhia evidente. "Para mim [...] o pior era a solidão, a sensação de ser judeu em meio a russos, o fato de que todos tinham amigos de sua terra, ao passo que eu estava completamente só."[603]
Por causa de seu pequeno número, os europeus-ocidentais e os norte-americanos que acabavam nos campos também tinham dificuldade para formar redes fortes. Dificilmente estavam em situação de ajudar-se uns aos outros: muitos estavam de todo desorientados pela vida no Gulag, não falavam russo e achavam o rancho incomível e as condições de vida insuportáveis. Após ter visto todo um grupo de alemãs morrer na prisão transitória de Vladivostok, apesar de autorizadas a beber água fervida, a prisioneira russa Nina Gagen-Torn escreveu, só em parte com ironia, que, "se os alojamentos estiverem repletos de cidadãos soviéticos, acostumados à comida, eles suportarão o peixe salgado mesmo se estragado; mas, quando chega um grande transporte de presos da Terceira Internacional, eles todos pegam disenteria do tipo mais grave".[604] Lev Razgon também se compadecia dos estrangeiros, lembrando que "não conseguiam nem entender nem se assimilar; não tentavam adaptar-se e sobreviver; apenas se juntavam instintivamente".[605]
Mas os ocidentais - grupo que englobava poloneses, tchecos e outros leste-europeus - também tinham algumas vantagens. Eram motivo de especial fascínio e interesse, o que às vezes lhes rendia contatos, dádivas de alimento, um tratamento mais gentil. Antoni Ekart, polonês educado na Suíça, conseguiu vaga no hospital graças a um enfermeiro chamado Ackerman, oriundo da Bessarábia. "O fato de que eu provinha do Ocidente simplificava as coisas": todos estavam interessados no ocidental e queriam salvá-lo.[606] A escocesa Flora Leipman, cujo padrasto (russo) convencera a família dela a mudar-se para a URSS, usava sua nacionalidade para entreter as companheiras de cativeiro:
Eu levantava a saia, para que parecesse um kilt, e baixava as meias, para que dessem a impressão de ir só até os joelhos. Jogava o cobertor sobre os ombros, como um manto escocês, e pendurava o chapéu na cintura, como um sporran. Minha voz se elevava orgulhosamente, cantando "Annie-Laurie" e "Ye banks and braes o'boonie Doon", sempre concluindo com o "God save the King" - sem traduzir a letra.[607]
Ekart também descreveria a sensação de ser "objeto de curiosidade" para os intelectuais russos:
Em encontros especialmente organizados e cuidadosamente ocultos que tive com alguns dos mais confiáveis entre eles, falei de minha vida em Zurique, Varsóvia, Viena e outras cidades do Ocidente. Meu paletó esporte de Genebra e minhas camisas de seda eram examinados com todo o zelo, pois eram a única prova concreta do alto padrão de vida existente fora do mundo comunista. Alguns se mostravam visivelmente incrédulos quando eu dizia que podia comprar todos aqueles artigos com meu salário mensal de engenheiro júnior numa fábrica de cimento.
"Quantos ternos você tem?", perguntou um dos agrônomos. "Seis ou sete."
"Você está mentindo!", protestou um homem de não mais que 25 anos. Depois, voltou-se para os outros e disse: "Por que é que temos de tolerar essas histórias absurdas? Para tudo há limite; não somos criancinhas".
Eu encontrava dificuldade para esclarecer que, no Ocidente, uma pessoa comum que se preocupasse um pouco com a aparência procuraria ter vários ternos, pois as roupas duram mais quando podemos tirá-las de tempos em tempos. Para um membro da intelligentsia russa, o qual raramente possuía mais de um terno, era difícil entender isso.[608]
John Noble, americano pego em Dresden, também se tornou um "VIP de Vorkuta" e regalava os companheiros de campo com histórias sobre a vida nos Estados Unidos, as quais eles consideravam inacreditáveis. "Johnny", disse-lhe um deles, "você vai querer nos fazer acreditar que os trabalhadores americanos têm carro próprio."[609]
Mas, embora esses estrangeiros despertassem admiração, isso também os impedia de estabelecer os contatos estreitos que sustinham tantos prisioneiros nos campos. Flora Leipman escreveria que "até minhas novas 'amigas' do campo tinham medo de mim, já que era estrangeira mesmo para elas".[610] Antoni Ekart, quando se viu como único preso não-russo num lagpunkt, sofreu porque os cidadãos soviéticos não gostavam dele e porque o sentimento era recíproco. "Estava envolto pelo cheiro de aversão, quando não de ódio [...] ressentiam-se do fato de que eu não era como eles. A cada momento, eu percebia a desconfiança, a estultice, a má vontade, a vulgaridade inata. Tive de ficar muitas noites sem dormir, para proteger a mim e a meus pertences."[611]
Mais uma vez, os sentimentos de Ekart evocam uma época anterior. A descrição de Dostoievski do relacionamento entre criminosos polacos e russos no século XIX faz pensar que os ancestrais de Ekart tinham vivenciado a mesma coisa:
Os poloneses (falo apenas dos presos políticos) tinham para com eles uma espécie de polidez refinada e insultante; eram extremamente fechados e não conseguiam de modo algum esconder dos condenados a repulsa que sentiam por eles; os condenados, por sua vez, percebiam isso muitíssimo bem e pagavam na mesma moeda.[612]
Em posição ainda mais delicada, estavam os muçulmanos e outros presos da Ásia central e de algumas das repúblicas do Cáucaso. Sofriam com o mesmo desnorteamento que os ocidentais, mas em geral não conseguiam entreter nem interessar os russos. Conhecidos como natsmeny - acrônimo do termo russo para "minorias nacionais" -, eram parte da vida no Gulag desde o final dos anos 1920. Grande número deles fora aprisionado durante a pacificação (e sovietização) da Ásia central e do Cáucaso setentrional e mandado para trabalhar no Canal do Mar Branco, onde um coetâneo escreveu que, "para eles, tudo é difícil de entender: as pessoas que os dirigem, o canal que estão construindo, a comida que estão consumindo".[613] A partir de 1933, muitos trabalharam também no Canal Moscou-Volga, onde os chefes do campo parecem ter-se compadecido deles. Em certa altura, ordenaram a seus subordinados que estabelecessem alojamentos e turmas de trabalho distintos para esses presos, de modo que pudessem pelo menos cercar-se de patrícios.[614] Posteriormente, Gustav Herling toparia com eles num campo madeireiro do norte. Lembrar-se-ia de vê-los toda noitinha na enfermaria do campo, esperando para ser atendidos pelo médico do campo:
Mesmo na sala de espera, ficavam segurando a barriga, com dor, e, tão logo iam para a consulta, irrompiam em lamúrios aflitos, nos quais os gemidos se misturavam de maneira indistinta com o precário e curioso russo que falavam. Não havia remédio para a doença deles [...] estavam simplesmente perecendo de fome, de frio, da monótona brancura da neve, das saudades da terra natal. Seus olhos repuxados, desacostumados à paisagem setentrional, estavam sempre lacrimejantes, e suas pestanas ficavam coladas uma à outra por uma pequena crosta amarela. Nos raros dias em que ficavam livres do trabalho, os uzbeques, turcomanos e quirguizes se juntavam num canto do alojamento e punham suas roupas de festa - longos e coloridos mantos de seda e barretes bordados. Era impossível adivinhar do que falavam com tanta animação e entusiasmo, gesticulando, berrando uns com os outros e balançando tristemente as cabeças, mas eu tinha certeza de que não era a respeito do campo.[615]
A vida não se mostrava muito melhor para os coreanos - em geral cidadãos soviéticos daquela origem -, nem para os japoneses -dos quais espantosos 600 mil chegaram ao Gulag e aos campos de prisioneiros de guerra no fim do conflito mundial. Os japoneses sofriam em especial com a comida, que lhes parecia não apenas escassa, mas também estranha e praticamente inconsumível. Em conseqüência, catavam e consumiam coisas que se assemelhavam igualmente incomestível aos outros presos: ervas silvestres, insetos, besouros, cobras e cogumelos que nem os russos comiam. De vez em quando, essas iniciativas acabavam mal: há registros de prisioneiros japoneses que morreram da ingestão de ervas ou capins venenosos.[616] Uma indicação de quão isolados eles se sentiam aparece nas memórias de um preso russo que, numa biblioteca de campo, encontrou um folheto em japonês -tratava-se de um discurso do bolchevique Zhdanov. O russo o levou a um japonês seu conhecido, prisioneiro de guerra. "Pela primeira vez, eu o vi feliz de verdade. Mais tarde, disse-me que lia o folheto todos os dias, apenas para ter contato com o idioma natal."[617]
Algumas das outras nacionalidades do Extremo Oriente se adaptavam com mais facilidade. Vários memorialistas mencionam a forte organização dos chineses. Destes, alguns eram "soviéticos", nascidos na URSS; outros, trabalhadores que haviam imigrado legalmente nos anos 1920; e outros ainda, desafortunados que, por acidente ou capricho, haviam atravessado a longa fronteira sino-soviética. Um preso se recordaria de que um chinês lhe contou que ele, assim como muitos outros, fora aprisionado porque atravessara o rio Amur a nado, atraído pela vista do lado soviético:
O verde e o dourado das árvores [e] as estepes pareciam tão belas! E, em nossa região, nenhum dos que cruzavam o rio jamais voltava. Pensávamos que isso só podia significar que a vida era boa do lado de cá e, assim, resolvíamos atravessar. No instante em que chegávamos, éramos detidos e acusados segundo o artigo 58, parágrafo 6º Espionagem. Pena de dez anos.[618]
Dmitri Panin - um dos companheiros de campo de Soljenitsin - lembraria que, no Gulag, os chineses "só se comunicavam entre si; à guisa de resposta a qualquer de nossas perguntas, faziam cara de incompreensão".[619] Karlo Stajner recordaria que eles eram ótimos na hora de arrumar bons trabalhos uns para os outros: "Em toda a Europa, os chineses são famosos malabaristas, mas, nos campos, eram usados na lavanderia. Não me lembro de ter visto algum trabalhador não-chinês nas lavanderias dos campos pelos quais passei".[620]
No Gulag, os grupos étnicos mais influentes eram, de longe, os baltas e os oeste-ucranianos que haviam sido varridos em massa para os campos de concentração durante e após a guerra (ver capítulo 20).
Menos numerosos, mas também influentes, eram os poloneses, sobretudo os guerrilheiros anticomunistas, que igualmente apareceram nos campos na segunda metade da década de 1940 - assim como os tchetchenos, os quais Soljenitsin descreveria como "a única nação que se recusava a desistir e a adquirir os hábitos mentais da submissão" e que, de diversas maneiras, sobressaía entre os outros caucásios.[621] A força desses grupos étnicos específicos estava nos números e na clara oposição à URSS, cuja invasão de seus respectivos países eles consideravam ilegal. Os poloneses, baltas e ucranianos do pós-guerra também tinham experiência militar e guerrilheira, e, em alguns casos, suas organizações de luta clandestina se mantiveram nos campos. Logo depois da guerra, o estado-maior geral do Exército Rebelde Ucraniano - UPA, um dos vários grupos que combatiam pelo controle da Ucrânia naquela época -, divulgou um comunicado a todos os compatriotas que haviam sido degredados ou mandados para o Gulag: "Onde quer que estejais, nas minas, nas florestas ou nos campos de concentração, sempre permanecei o que fostes, continuai sendo ucranianos fiéis e prossegui nossa luta".
Nos campos, ex-guerrilheiros se ajudavam conscientemente e cuidavam dos recém-chegados. Adam Galinski, que lutara no Exército da Pátria, a guerrilha anticomunista da Polônia, durante e após a guerra, escreveria: "Zelávamos especialmente pela mocidade do Exército da Pátria e mantínhamos seu moral, que era o mais elevado na degradante atmosfera de declínio espiritual que prevalecia entre os diversos grupos nacionais aprisionados em Vorkuta".[622]
Em anos posteriores, quando adquiririam mais poder para influenciar o andamento das coisas nos campos, os poloneses, baltas e ucranianos - assim como os georgianos, armênios e tchetchenos -, também formavam suas próprias turmas de trabalho, dormiam à parte em alojamentos dispostos conforme a etnia e organizavam comemorações de seus feriados nacionais. Às vezes, esses grupos poderosos cooperavam uns com os outros. O autor polonês Aleksander Wat escreveria que, nas prisões soviéticas, os polacos e ucranianos - inimigos figadais durante a guerra, quando seus movimentos guerrilheiros se confrontaram em cada centímetro do território da Ucrânia ocidental - se relacionavam "com reticência, mas com incrível lealdade. 'Somos inimigos, mas não aqui"'.[623]
De outras vezes, esses grupos étnicos competiam tanto entre si quanto com os russos. Lyudmila Khachatryan, aprisionada por ter-se apaixonado por um soldado iugoslavo, recordaria que os ucranianos de seu campo se recusavam a trabalhar com os russos.[624] Os movimentos nacionais de resistência, escreveria outro observador, "caracterizam-se, de um lado, pela hostilidade ao regime e, de outro, pela hostilidade aos russos". Edward Buca se lembraria de uma hostilidade mais generalizada - "era incomum um preso dar qualquer assistência a alguém de outra nacionalidade" -,[625] embora Pavel Negretov, o qual estava em Vorkuta à mesma época que Buca, achasse que a maioria das nacionalidades só não se dava bem quando sucumbia às "provocações" da administração - "por meio de seus informantes, ela tentava [...] fazer que brigássemos".[626]
No final dos anos 1940, quando os vários grupos étnicos assumiram o papel da bandidagem como policiais de facto nos campos, eles às vezes lutavam entre si pelo controle. Marlen Korallov recordaria que "começaram a disputar o poder, e este significava muito: controlar o refeitório, por exemplo, importava bastante, pois o cozinheiro trabalharia diretamente para quem fosse seu senhor". Naquele tempo, segundo Korallov, o equilíbrio entre os diversos grupos era delicadíssimo e podia ser abalado pela chegada de um novo contingente de presos. Quando, por exemplo, um grupo de tchetchenos veio para o lagpunkt de Korallov, eles entraram nos alojamentos, "jogaram suas coisas nos beliches mais próximos do chão [naquele campo, os leitos "aristocráticos" eram os mais baixos] e instalaram-se ali com todas as suas posses".[627]
No final dos anos 1940, Leonid Sitko - que ficara num campo de prisioneiros de guerra alemão e depois fora novamente preso quando voltou para a Rússia - testemunhou uma batalha muito mais séria entre tchetchenos, russos e ucranianos. A discussão começou com uma disputa pessoal entre "brigadeiros" e foi aumentando - "virou guerra, uma guerra total". Os tchetchenos organizaram um ataque a um alojamento russo, e muitos foram feridos. (Mais tarde, todos os cabeças acabaram indo para uma cela punitiva.) Sitko explicaria que, embora as disputas fossem por influência nos campos, elas tinham origem em sentimentos nacionais mais profundos: "Os baltas e os ucranianos achavam que russos e soviéticos eram a mesma coisa. Embora não faltassem russos no campo, isso não os impedia de ver esses últimos como invasores e ladrões".
Certa vez, o próprio Sitko foi abordado no meio da noite por um grupo de oeste-ucranianos:
"Seu nome é ucraniano", disseram-me. "Você é o quê? Algum traidor?"
Expliquei que fora criado no norte do Cáucaso, numa família que falava russo, e que não sabia por que tinha nome ucraniano. Ficaram um pouco e depois partiram. Podiam ter-me matado - estavam com uma faca.[628]
Uma prisioneira e recordaria de que as diferenças nacionais não eram "nada lá muito importantes", mas também brincaria comentando que isso só não se aplicava aos ucranianos, os quais simplesmente "odiavam todos os demais".[629]
Na maioria dos campos, por estranho que possa parecer, não havia nenhum clã para os russos, o grupo étnico que, segundo as próprias estatísticas do sistema, constituiu a clara maioria dos prisioneiros durante toda a existência do Gulag.[630] E bem verdade que os russos se associavam segundo a cidade ou região de que viessem. Moscovitas descobriam outros moscovitas; leningradenses, outros leningradenses; e assim por diante. Em certa altura, Vladimir Petrov foi ajudado por um médico que lhe perguntou:
"Antes você fazia o quê?" "Estudava em Leningrado."
"Ah, então somos conterrâneos - ótimo!", disse o médico, dando-me tapinhas nas costas.[631]
Com freqüência, os oriundos de Moscou eram particularmente poderosos e organizados. Leonid Trus, aprisionado quando ainda era estudante, recordaria que, no campo, os moscovitas mais velhos formavam uma rede forte, da qual ele ficou de fora. Em certa ocasião, quando quis pegar emprestado um livro da biblioteca do campo, precisou primeiro convencer o bibliotecário, membro daquele clã, de que podiam confiar-lhe o exemplar.[632]
No mais das vezes, porém, esses laços eram fracos, proporcionando ao preso não mais que a companhia de pessoas que se lembravam da rua em que morara ou da escola que freqüentara. Enquanto outros grupos étnicos formavam redes completas de auxílio mútuo - achando lugar para os recém-chegados nos alojamentos, ajudando-os a obter tarefas mais leves -, os russos não o faziam. Ariadna Éfron escreveria que, ao chegar a Turukhansk, para onde fora banida com outras prisioneiras quando terminou de cumprir sua pena no Gulag, outros degredados que já moravam ali vieram receber o trem:
Um judeu separou as judias em nosso grupo, deu-lhes pão, explicou como deviam portar-se e o que deviam fazer. Então, um grupo de georgianas foi recepcionada por um patrício... E, depois de algum tempo, só restávamos nós, as russas, talvez dez ou quinze. Ninguém veio até nós, ofereceu-nos pão nem nos aconselhou.[633]
Ainda assim, havia algumas distinções entre os detentos russos - distinções baseadas mais na ideologia que na etnia. Nina Gagen-Torn registraria que "a clara maioria das mulheres dos campos considerava aquela sina e aquele sofrimento um infortúnio acidental, sem procurar os motivos". Contudo, para as que "descobriam por si mesmas algum tipo de explicação para o que acontecia e passavam a acreditar nele, as coisas ficavam mais fáceis".[634] Entre as que tinham uma explicação, estavam principalmente as comunistas; ou seja, as prisioneiras que continuavam a alegar inocência, professar lealdade à URSS e acreditar, contra todos os indícios, que todas as demais eram de fato inimigas e deviam ser evitadas. Anna Andreevna se recordaria de que as comunistas se procuravam umas às outras. "Elas se localizavam mutuamente e se mantinham juntas. Eram gente limpa, soviética, e achavam que todas as restantes eram criminosas."[635] Chegando ao Minlag no começo dos anos 1950, Susanna Pechora conta que as viu "sentadas num canto e dizendo umas às outras: 'Somos boas soviéticas, viva Stalin, não somos culpadas, e nosso Estado nos livrará da companhia de todas essas inimigas"'.[636]
Tanto Susanna Pechora quanto Irena Arginskaya (prisioneira em Kengir na mesma época) lembram que a maioria das integrantes desse grupo pertencia ao mesmo segmento de membros de alto escalão do Partido presos em 1937 e 1938. Na maior parte, eram pessoas mais velhas; Irena lembra que eram freqüentemente agrupadas nos campos para inválidos, lugares que ainda continham muita gente aprisionada durante o Grande Terror. Anna Larina, mulher do líder soviético Nikolai Bukharin, foi desses indivíduos que, encarcerados naquela fase anterior, de início se mantiveram fiéis à Revolução. Quando ainda estava na detenção, escreveu um poema para comemorar o aniversário da Revolução de Outubro:
Embora esteja atrás das grades,
Sentindo a angústia dos condenados,
Ainda assim celebro este dia
Junto com minha feliz pátria.
Hoje tenho uma nova crença:
Retornarei à vida
E de novo marcharei com minha seção do Konsomol,
Ombro a ombro, pela praça Vermelha!
Posteriormente, Anna viria a considerar tais versos "os delírios de uma lunática". Na época, entretanto, ela os recitou para as esposas encarceradas dos velhos bolcheviques, e estas "reagiram com lágrimas e aplausos comovidos".[637]
Em Arquipélago Gulag, Soljenitsin dedica um capítulo aos comunistas, a quem denomina (de modo não muito generoso) "duplipensantes". O escritor se admirava com a capacidade desses indivíduos para explicar até a detenção, tortura e reclusão deles próprios como "obra muito astuciosa dos serviços estrangeiros de espionagem", "sabotagem em enorme escala", "complô da NKVD local" ou "traição". Alguns vinham com uma explicação ainda mais magistral: "Essa repressão é uma necessidade histórica no desenvolvimento de nossa sociedade".[638] Depois, alguns daqueles legalistas também escreveriam memórias, de bom grado publicadas pelo regime soviético. Em 1964, por exemplo, Uma história de sobrevivência, romance curto de Boris Dyakov, foi veiculado pelo periódico Oktyabr com a seguinte introdução: "A força da narrativa de Dyakov reside no fato de que trata de autênticos soviéticos, autênticos comunistas. Em circunstâncias difíceis, eles nunca perderam a humanidade, mantiveram-se fiéis a seus ideais do Partido e dedicaram-se à pátria". Todorsky, um dos heróis de Dyakov, conta como ajudou um tenente da NKVD a redigir um discurso sobre a história do Partido. Em outra ocasião, diz ao oficial de segurança do campo que, apesar de seu injusto encarceramento, ele se considera um verdadeiro comunista: "Não sou culpado de nenhum crime contra a autoridade soviética. Portanto sou, e permanecerei, comunista". O oficial, major Yakovlev, o aconselha a não fazer alarde: "Por que ficar berrando isso? Você acha que todo mundo aqui no campo adora os comunistas?".[639]
E de fato não adoravam: os abertamente comunistas eram muitas vezes suspeitos de trabalhar, às escondidas ou não, para as autoridades dos campos. Escrevendo sobre Dyakov, Soljenitsin observa que as memórias dele parecem deixar de fora algumas coisas. Em troca de quê, pergunta, o oficial de segurança Sokovikov concordava em postar secretamente as cartas de Dyakov, driblando o censor do campo? "Esse tipo de amizade... tinha origem em quê?"[640] Na realidade, os arquivos hoje mostram que Dyakov fora agente da polícia secreta a vida toda (com o codinome "Pica-pau") e continuara a ser informante no Gulag.[641]
O único grupo que superava os comunistas em matéria de fé absoluta eram os cristãos da Igreja Ortodoxa, assim como os seguidores das várias seitas protestantes que também sofriam perseguição política na URSS: batistas, testemunhas-de-jeová e variantes russas dessas doutrinas. Eram presença particularmente forte nos campos femininos, onde as conheciam pela expressão coloquial monashki (freiras). Anna Andreevna recordaria que, no final dos anos 1940, no campo feminino da Mordóvia, "a maioria das prisioneiras eram devotas" que se organizavam de modo que, "nos dias santos, as católicas trabalhassem para as ortodoxas, e vice-versa".[642]
Como já observamos, algumas dessas seitas se negavam totalmente a cooperar com o Satã soviético, e seus membros não trabalhavam nem assinavam nenhum documento oficial. Nina Gagen-Torn descreve uma devota que foi libertada por motivo de saúde, mas que se recusou a deixar os campos. "Não reconheço vossa autoridade", disse ao guarda que se prontificou a dar-lhe os documentos necessários e mandá-la para casa. "Vosso poder é ilegítimo, o anticristo aparece em vossos salvo-condutos [...] Se eu sair, vós me prendereis outra vez. Não há razão para partir.[643] A finlandesa Aino Kuusinen estava num campo com um grupo de prisioneiras que se recusavam a usar números de identificação nas roupas; em vista disso, "os números lhes eram marcados na própria pele", e essas mulheres eram obrigadas a comparecer nuas em pêlo às chamadas da manhã e da noite.[644]
Soljenitsin conta a história (repetida de variadas formas por outros) de um grupo de membros de uma seita que foram levados para Solovetsky em 1930. Rejeitavam tudo o que viesse do "anticristo", negando-se a usar o dinheiro ou os salvo-condutos soviéticos. Como punição, foram mandados para uma pequena ilha daquele arquipélago, onde lhes disseram que só receberiam alimento se concordassem em assinar a documentação necessária. Negaram-se a fazê-lo. Dali a dois meses, haviam todos morrido de inanição. Segundo uma testemunha ocular, o barco seguinte para a ilha "só encontrou cadáveres bicados pelos pássaros".[645]
Mesmo os devotos que trabalhavam não necessariamente se misturavam com os outros presos; às vezes, até se recusavam a falar o que fosse com eles. Aglutinavam-se nos alojamentos, observando absoluto silêncio ou então entoando suas preces e cânticos nos horários de rigor:
Fiquei atrás das grades
Lembrando como Cristo
Humilde e mansamente carregou Sua pesada Cruz,
Com penitência, até o Gólgota.[646]
Os mais extremados tendiam a despertar sentimentos conflitantes nos outros presos. De modo jocoso, Irena Arginskaya, prisioneira indiscutivelmente laica, lembraria que "todas as abominávamos", em especial aquelas que, por motivo religiosos, se negavam a tomar banho.[647] Segundo Nina Gagen-Torn, outras prisioneiras se queixavam daquelas que se recusavam a trabalhar: "A gente trabalha, e elas não! E comem o pão do mesmo jeito!"[648]
Num sentido, porém, os homens e mulheres que chegavam a um campo e na mesma hora se integravam num clã ou seita se mostravam afortunados. Para quem era membro, as gangues, as nacionalidades mais militantes, os comunistas fiéis e as seitas religiosas proporcionavam de imediato comunidades, redes de auxílio mútuo, companhia. Já a maior parte dos presos políticos, e a maior parte dos criminosos "ordinários" - a imensa maioria dos habitantes do Gulag -, não se ajustava tão facilmente a este ou aquele grupo. Então, constatava que assim era mais difícil aprender a sobreviver no campo, a lidar com a moralidade e a hierarquia dali. Sem forte rede de contatos, essas pessoas tinham de descobrir por si mesmas as regras para melhorar de situação.
A prisioneira que era a enfermeira do alojamento me saudou com um grito: "Corra para ver o que está debaixo do seu travesseiro!"
Meu coração deu um pulo: talvez eu enfim houvesse conseguido minha ração de pão!
Corri para a cama e afastei bruscamente o travesseiro. Debaixo dele, havia três cartas de casa - três cartas inteiras! Fazia seis meses que eu não recebia nenhuma correspondência.
Minha primeira reação foi de profundo desapontamento. E depois... de horror.
No que eu me transformara se agora um pedaço de pão era mais importante que cartas de minha mãe, meu pai, meus filhos?... Esqueci totalmente o pão e chorei.
Olga Adamova-Sliozberg, Minha jornada.[649]
Cumpriam as mesmas metas de produção e tomavam a mesma sopa aguada. Habitavam o mesmo tipo de alojamento e viajavam nos mesmos vagões de gado. Suas roupas eram quase idênticas, e seu calçado, igualmente inadequado. Sob interrogatório, não recebiam tratamento diferente. E no entanto... A experiência de homens e mulheres nos campos não era exatamente a mesma.
Por certo, muitas sobreviventes estão convencidas de que havia muitas vantagens em ser mulher no Gulag. As mulheres eram melhores quando se tratava de tomar cuidados consigo mesmas, de manter as roupas remendadas e o cabelo limpo. Pareciam mais capazes de subsistir com pouca quantidade de alimento e não sucumbiam tão facilmente à pelagra e a outras doenças da inanição.[650] Formavam amizades fortes e se ajudavam umas às outras de maneiras que os homens presos não conseguiam reproduzir. Margarete Buber-Neumann registra que uma das mulheres detidas com ela na prisão Butyrka viera usando um vestido leve de verão que logo ficou em farrapos. As outras detentas na cela resolveram confeccionar um novo:
Fizeram uma vaquinha e compraram meia dúzia de toalhas de linho russo cru. Mas como cortar o vestido sem tesouras? Um pouco de engenhosidade resolveu o problema. O molde foi marcado com pontas de fósforo queimado; o tecido foi dobrado seguindo as linhas assim marcadas; e um fósforo aceso foi rapidamente passado pelas dobras. Quando se desdobrou o tecido, o fogo já o cortara o suficiente nas dobras. Conseguiu-se algodão para linha tirando cuidadosamente fios soltos de outras roupas [...].
Esse vestido feito de toalha (ele se destinava a uma letã gorda) passou de mão em mão e ganhou maravilhosos bordados na gola, nas mangas e na barra. Quando enfim ficou pronto, foi umedecido e dobrado com esmero. Naquela noite, a feliz proprietária dormiu sobre ele [para "passá-lo"]. Acredite se quiser, mas, quando ela o mostrou de manhã, estava realmente lindo; não teria envergonhado a vitrine de uma loja da moda.[651]
Contudo, entre muitos ex-presos do sexo masculino, prevalece o ponto de vista oposto: moralmente, as mulheres decaíam mais depressa que os homens. Graças ao sexo, dispunham de oportunidades especiais para obter melhor classificação laborai, ganhando trabalho mais fácil e, com isso, status superior nos campos. Em conseqüência, desorientavam-se, perdendo o rumo no mundo áspero do Gulag. Gustav Herling escreve, por exemplo, sobre uma "cantora da Opera de Moscou, de cabelos negros", que foi presa por "espionagem". Dada a severidade da sentença, designaram-na para o trabalho na floresta tão logo chegou ao Kargopollag.
Infelizmente para ela, foi desejada por Vanya, o urka [mafioso] baixinho que estava encarregado de sua turma de trabalho. Foi posta para descascar troncos com um machado enorme, que ela mal conseguia levantar. À noite, tendo ficado muito atrás dos vigorosos lenhadores, chegou à zona prisional quase sem forças para arrastar-se até a cozinha e pegar sua "primeira caldeirada" [a ração de sopa mais fraca] [...] era óbvio que estava febril, mas o enfermeiro era amigo de Vanya e não quis liberá-la do trabalho.
Ela acabou cedendo, primeiro para Vanya e finalmente para "algum chefe do campo" que a "trouxe do monturo e a colocou atrás de uma escrivaninha no escritório da contabilidade".[652]
Havia sinas piores, como Herling também descreve. Ele fala, por exemplo, de uma moça polonesa à qual um "júri informal de urki" deu nota bem alta. De início,
ela saía para trabalhar de cabeça erguida c, com olhar dardejante de Cúria, repelia todo homem que se aventurasse perto dela. A noitinha, voltava mais humilde do trabalho, mas ainda intocável e recatadamente altiva. Ia direto da guarita de entrada para a cozinha, a fim de buscar sua porção de sopa, e não tornava a sair do alojamento das mulheres durante a noite. Por conseguinte, parecia que não seria logo vítima das caçadas noturnas na zona prisional.
Contudo, esse esforço inicial foi inútil. Após semanas de zelosa vigilância de seu supervisor, que a proibia de furtar uma cenoura ou batata podre que fosse no armazém onde ela trabalhava, a moça desistiu. Uma noite, o homem entrou n,o alojamento de Herling e, "sem dizer palavra, atirou em meu beliche uma calcinha rasgada". Foi o começo da transformação:
A partir daquele momento, a moça sofreu uma mudança completa. Já não se apressava para ir pegar a sopa na cozinha; após o retorno do trabalho, vagava pela zona prisional até tarde da noite, como uma gata no cio. Quem quisesse a possuía, no beliche, debaixo do beliche, nos cubículos à parte dos especialistas técnicos, no depósito de roupas. Sempre que topava comigo, ela olhava para o outro lado e franzia convulsivamente os lábios. Certa vez, ao entrar no depósito de batatas no centro do campo, eu a surpreendi numa pilha de batatas com o corcunda Levkovich, o mestiço que era chefe de turma da 56a; a moça teve um acesso de choro, e quando voltou para a zona prisional à noite estava segurando as lágrimas, com as mãozinhas crispadas.[653]
Essa é a versão de Herling para uma história contada com freqüência - uma história que, é preciso dizer, sempre parece um tanto diferente quando narrada do ponto de vista da mulher. Outra versão é contada, por exemplo, por Tamara Ruzhnevits, cujo "romance" no campo começou com uma carta -"uma carta-padrão de amor, uma carta tipicamente dos campos" -, de Sasha, jovem com o confortável trabalho de sapateiro, o que o transformava em parte da aristocracia do lugar. Era uma carta curta e direta: "Vamos morar juntos, e aí eu ajudo você". Alguns dias depois de enviá-la, Sasha puxou Tamara de lado, querendo saber a resposta. "Você vai ou não vai morar comigo?", perguntou. A reposta foi negativa. Ele a espancou com um bastão de metal. Depois, carregou-a para o hospital, onde o status especial de sapateiro lhe dava influência, e mandou a equipe médica cuidar bem de Tamara. Ela ficou ali vários dias, recuperando-se dos ferimentos. Ao receber alta, tendo tido bastante tempo para pensar no assunto, voltou para Sasha. Do contrário, ele a teria espancado de novo.
"Assim começou minha vida doméstica", escreveria Tamara. Os benefícios foram imediatos. "Ganhei saúde, passei a usar bons sapatos, já não precisava mais vestir sabe-se lá que trapos - tinha casaco novo, calças novas [...] até chapéu novo." Muitas décadas depois, descreveria Sasha como "meu primeiro verdadeiro amor". Infelizmente, ele logo foi mandado para outro campo, e Tamara nunca mais o viu. Pior: o homem responsável pela transferência de Sasha também desejava Tamara. Já que "não havia saída", ela começou a dormir com ele também. Embora não descreva nenhum sentimento amoroso pelo homem, Tamara recorda que esse arranjo tinha igualmente suas vantagens: ganhou passe para deslocar-se fora do campo sem guarda e teve um cavalo só para si.[654]
O relato de Tamara Ruzhnevits, da mesma maneira que o de Gustav Herling, pode ser considerado uma história de degradação moral. Ou, então, de sobrevivência.
Do ponto de vista dos administradores, nada disso devia acontecer. Em princípio, homens e mulheres nem podiam estar juntos no mesmo campo, e há presos que dizem não ter posto os olhos numa mulher durante anos e anos. Tampouco os comandantes de campo tinham alguma vontade especial de contar com prisioneiras. Fisicamente mais fracas, eram suscetíveis a tornar-se um peso morto quando se tratava de cumprir as metas produtivas, e, por isso, alguns comandantes tentavam rejeitá-las. Em certa altura, em fevereiro de 1941, a direção do Gulag até mandou carta a toda a liderança da NKVD e todos os comandantes de campo, instruindo-os severamente a aceitar comboios de prisioneiras e arrolando todas as atividades em que as mulheres poderiam atuar com proveito. A carta menciona a indústria leve e a indústria têxtil; a carpintaria e a metalurgia; certos tipos de serviço madeireiro; a carga e descarga de mercadorias.[655]
Talvez por causa das objeções dos comandantes dos campos, o número de mulheres que eram de fato enviadas para lá sempre permaneceu relativamente baixo (tal qual, aliás, o número de mulheres executadas durante os expurgos de 1937-8). Segundo as estatísticas oficiais, em 1942, por exemplo, só uns 13% da população do Gulag eram mulheres. Em 1945, essa proporção se elevou a 30%, em parte devido ao enorme contingente de presos do sexo masculino que foram convocados e mandados para a frente de batalha; e em parte devido às leis que proibiam os operários fabris de largar seus empregos - e que causaram a prisão de muitas jovens.[656] Em 1948, as mulheres eram 22%, tornando depois a cair, agora para 17%, em 1951 e 1952.[657] E mesmo esses números não refletem a verdadeira situação, pois as mulheres tinham muito mais probabilidade de cumprir pena nas "colônias" de trabalho leve. Nos grandes campos industriais do extremo norte, elas eram ainda menos numerosas, e sua presença, ainda mais rara.
No entanto, o número menor implicava que as mulheres - assim como o alimento, o vestuário e outros pertences - estavam quase sempre em falta. Por isso, embora talvez apresentassem pouco valor econômico para quem compilava as estatísticas de produção dos campos, elas tinham outro tipo de valor para os presos, os guardas e os trabalhadores livres do Gulag. Nos campos em que os contatos entre presos de ambos os sexos eram mais ou menos livres - ou nos lugares em que, na prática, certos homens tinham acesso aos campos femininos -, as mulheres com freqüência ouviam cantadas, sofriam abordagens atrevidas ou, mais comumente, recebiam propostas de alimento e trabalho fácil em troca de favores sexuais. Isso talvez não fosse característica exclusiva do Gulag. Em 1999, por exemplo, um relatório da Anistia Internacional sobre presidiárias americanas revelou casos de guardas e presos que estupravam detentas; de presos que subornavam guardas para ter acesso a elas; de mulheres que sofriam revistas íntimas de guardas do sexo masculino.[658] No entanto, as estranhas hierarquias sociais do Gulag levavam mulheres a ser estupradas e humilhadas num grau incomum até para o mundo das prisões.
Para começo de conversa, o destino da prisioneira dependia muito de seu status e posição nos vários clãs do campo. Dentre a bandidagem, as mulheres se submetiam a um sistema de normas e rituais complexos e eram tratadas com muito pouco respeito. Segundo Variam Shalamov, "o criminoso de terceira ou quarta geração aprende desde a infância a ver as mulheres com desprezo [...] a mulher, ser inferior, fora criada apenas para satisfazer o apetite animal do criminoso, para ser o alvo de piadas grosseiras e a vítima de surras públicas quando o bandido resolvesse 'agitar um pouco'". Na prática, as prostitutas "pertenciam" a chefões e podiam ser trocadas, mercadejadas e até herdadas por algum irmão ou amigo do criminoso, caso este fosse morto ou transferido para outro campo. Quando ocorria uma troca de donos, "em geral as partes interessadas não caíam no tapa, e a prostituta sujeitava-se a dormir com o novo amo. Na bandidagem, não havia nenhum ménage à trois em que dois homens compartilhassem a mesma mulher Tampouco era possível a uma bandida viver com alguém que não fosse criminoso".[659]
As mulheres não eram os únicos alvos. Entre os criminosos de carreira, o homossexualismo parece ter-se organizado segundo regras igualmente brutais. Na corte de alguns chefões, havia efebos, junto com as "esposas" que o criminoso possuía no campo, ou mesmo no lugar delas. Thomas Sgovio cita um chefe de turma de trabalho que tinha por "mulher" um rapaz que recebia comida extra em troca de seus favores.[660] Todavia, é difícil descrever as normas que regiam a homossexualidade masculina nos campos, já que os memorialistas só mencionam o tema muito raramente - talvez porque, na cultura russa, o homossexualismo continue em parte a ser tabu e as pessoas prefiram não escrever sobre ele. Ademais, no Gulag, o homossexualismo parece ter-se restringido sobretudo aos bandidos - e poucos destes nos legaram memórias.
Entretanto, sabemos que, nos anos 1970 e 80, os criminosos soviéticos desenvolveram complicadíssimas regras de etiqueta homossexual. Os "passivos" eram condenados ao ostracismo pelo resto da sociedade prisional, comendo em mesas separadas e não dirigindo a palavra aos outros homens.[661] Regras semelhantes, embora raras vezes descritas, parecem ter existido em alguns lugares já no final dos anos 30, quando PyotrYakir (então com quinze anos) testemunhou fenômeno análogo numa cela para menores delinqüentes. De início, ficou estarrecido ao ouvir os demais garotos falarem de suas experiências sexuais e achou que estivessem exagerando,
mas estava enganado. Um dos rapazes guardara a ração de pão até a noite, quando perguntou a Mashka (que não comera nada o dia todo): "Você quer uma mordida?"
"Quero", respondeu Mashka.
"Então abaixe as calças."
A coisa aconteceu num canto, o qual era difícil de enxergar pela vigia da porta, mas à vista de todos na cela. Ninguém se surpreendeu, e fingi não estranhar nada daquilo. Houve muitos outros episódios desse tipo enquanto estive ali; os passivos eram sempre os mesmos garotos. Eram tratados como párias; não podiam beber da caneca coletiva e constituíam alvo de humilhações.[662]
Nos campos, curiosamente, o lesbianismo era mais franco ou, pelo menos, mais amiúde citado. Entre as criminosas, também era muitíssimo ritualizado. As lésbicas eram designadas pelo pronome neutro (ono) e se dividiam entre as mais femininas ("éguas") e as mais masculinas ("maridos"). Segundo uma descrição, as primeiras eram às vezes "verdadeiras escravas", fazendo a limpeza para os "maridos" e cuidando deles, os quais adotavam apelidos masculinos e quase sempre fumavam.[663] Falavam abertamente do lesbianismo e até o cantavam:
Ah, obrigada, Stalin,
Você fez de mim uma baronesa.
Sou tanto vaca quanto touro,
Fêmea e macho.[664]
Também se identificavam pela indumentária e pelo comportamento. Uma polonesa escreveria:
Todo o mundo sabe de casais assim, e elas não fazem nenhuma tentativa de ocultar seus hábitos. Em geral, quem faz o papel de homem usa roupas masculinas, corta o cabelo bem curto e fica com as mãos nos bolsos. Quando um desses casais é repentinamente tomado pela paixão, as duas se levantam correndo de seus assentos, largam as máquinas de costura, correm uma atrás da outra e, em meio a beijos desvairados, jogam-se no chão.[665]
Valerii Frid menciona criminosas encarceradas que, vestidas de homem, faziam-se passar por hermafroditas. Uma "tinha cabelo curto, era bonitinha e usava calças de oficial"; outra parece ter mesmo tido uma deformação genital.[666] Outra prisioneira ainda descreveria o "estupro" lésbio: viu um casal perseguir uma "mocinha quieta e recatada" atrás dos beliches, onde lhe romperam o hímen.[667] Já nos círculos intelectuais, o lesbianismo parece ter sido visto com menos benevolência. Uma ex-prisioneira política o lembraria como "prática absolutamente revoltante".[668] Mas, embora costumasse ser mais disfarçado no ambiente das "políticas", também existia entre estas, freqüentemente entre mulheres que tinham maridos e filhos em liberdade. Susanna Pechora me contou que, no Minlag, campo predominantemente habitado por presos políticos, as relações lésbicas "ajudavam algumas pessoas a sobreviver".[669]
Voluntários ou forçados, homossexuais ou heterossexuais, os relacionamentos carnais nos campos compartilhavam, na maioria dos casos, o mesmo ambiente quase sempre brutal. Forçosamente, ocorriam com uma sem-cerimônia que muitos presos achavam escandalosa. Casais "arrastavam-se por baixo do arame farpado e faziam amor no chão, junto à latrina", disse um ex-prisioneiro.[670] "O beliche coletivo segregado das mulheres vizinhas por uma cortina de trapos era cena clássica nos campos", escreve Soljenitsin.[671] Uma vez, Isaak Filshtinskii acordou no meio da noite e deparou com uma mulher que dormia no leito ao lado do seu. Ela pulara o muro de fininho para ter relações com o cozinheiro do campo. "Afora eu, ninguém dormira naquela noite: tinham ficado ouvindo tudo com a maior atenção."[672] A prisioneira Hava Volovich conta que "coisas que uma pessoa em liberdade pensaria cem vezes antes de fazer aconteciam ali com a mesma naturalidade que entre gatos de rua".[673] Outro preso lembra que o amor, em especial entre os bandidos, era "animalesco".[674]
De fato, o sexo era tão público que o tratavam com certa apatia: para alguns, o estupro e a prostituição se tornaram parte da rotina diária. Numa ocasião, Edward Buca estava trabalhando numa serraria junto com uma turma feminina quando chegou um grupo de bandidos condenados. Eles "agarraram as mulheres que queriam e as deitaram na neve, ou as possuíram contra uma pilha de toras. As mulheres pareciam acostumadas e não ofereceram resistência. Tinham sua própria chefe de turma, mas ela não objetava a essas interrupções, que, aliás, se afiguravam quase parte do trabalho".[675] Lev Razgon também conta a história de uma moça loura, muito nova, com a qual por acaso deparou quando ela varria o pátio de uma unidade médica de campo de concentração. Na época, Razgon era trabalhador livre, em visita a um médico seu conhecido; e, embora não estivesse com fome, ofereceram-lhe um lauto almoço. Ele deu a comida à moça, que "comeu em silêncio, com asseio e educação, podendo-se ver que fora criada em família". De fato, fez Razgon lembrar-se da própria irmã.
A mocinha acabou de comer e empilhou os pratos direitinho na bandeja de madeira. Depois, ergueu o vestido, tirou a calcinha e, segurando-a, voltou-se para mim sem sorrir.
"No chão ou em outro lugar", perguntou.
De início sem entender minha reação, e depois amedrontada com esta, a jovem se justificou, outra vez sem sorrir de modo algum: "As pessoas não me dão comida de outro jeito..."[676]
Em alguns campos, também acontecia de certos alojamentos femininos se tornarem pouco menos que bordéis escancarados. Soljenitsin descreve um que era
insuperavelmente sujo e dilapidado. Havia um cheiro opressivo, e os beliches não tinham roupa de cama. Existia uma proibição oficial de que homens entrassem ali, mas ela não era levada em conta, e ninguém a impunha. Lá, havia não só homens adultos, mas também adolescentes, meninos de doze a treze anos que afluíam para aprender [...]. Tudo ocorria muito sem cerimônia, como na natureza, à vista de todos e em vários lugares ao mesmo tempo. Para as mulheres de lá, as únicas defesas possíveis eram a velhice e a feiúra evidentes - nada mais.[677]
Ainda assim... Em muitas memórias, indo diretamente contra os relatos de vulgaridade e sexo brutal, vêem-se histórias igualmente incríveis de amor nos campos, algumas das quais surgiram simplesmente da vontade das mulheres de protegerem-se. Conforme as normas idiossincráticas da vida no Gulag, mulheres que tinham um "marido dos campos" costumavam ser deixadas em paz pelos outros homens, num sistema que Gustav Herling denomina "o peculiar jus primae noctis[678] do campo de concentração".[679] Não eram necessariamente "casamentos" de iguais: por vezes, mulheres respeitáveis viviam com bandidos.[680] Tampouco se davam necessariamente de livre e espontânea vontade, como bem mostra o exemplo de Tamara Ruzhnevits. Apesar disso, não seria rigorosamente correto defini-los como prostituição. Antes, escreve Valerii Frid, eram braki po raschetu, casamentos de interesse, "que às vezes eram também por amor". Mesmo se tais relacionamentos surgiam por motivos tão-somente práticos, os detentos os levavam a sério. "O zek se referia à amásia mais ou menos permanente como 'minha esposa' ", relata Frid. "E ela o chamava de 'meu marido'. Não se dizia isso de gozação: os relacionamentos no campo humanizavam nossas vidas."[681]
E, por estranho que possa talvez parecer, presos que não estavam demasiado exaustos ou emaciados realmente procuravam o afeto amoroso. Nas memórias de Anatolii Zhigulin, inclui-se a descrição do romance que manteve com uma alemã, prisioneira política, a "boa e alegre Marta, de olhos cinzentos e cabelos louros". Posteriormente, Zhigulin soube que ela tivera um filho, o qual ganhou o nome Anatolii. (Isso foi no outono de 1951; dado que à morte de Stalin se seguiria uma anistia geral para os presos estrangeiros, Zhigulin presumia que "Marta e o menino, desde que não tivesse ocorrido algum infortúnio, houvessem voltado para casa".)[682] Por vezes, as memórias de Isaac Vogelfanger, médico de campo de concentração, parecem uma ficção romântica em que o herói pisa em ovos entre os perigos do affaire com a esposa de um administrador e as alegrias do verdadeiro amor.[683]
Pessoas privadas de tudo ansiavam tão desesperadamente por vínculos sentimentais que algumas mergulhavam fundo em platônicos amores epistolares. Isso se aplica em particular ao final da década de 1940, nos campos especiais para presos políticos, onde homens e mulheres eram mantidos rigorosamente separados. No Minlag (um de tais campos), prisioneiros e prisioneiras trocavam bilhetes por intermédio de colegas no hospital, que era compartilhado pelos dois sexos. Os presos também organizaram uma "caixa de correio" secreta no setor ferroviário onde as turmas femininas trabalhavam. De poucos em poucos dias, uma mulher empregada ali fingia ter esquecido um casaco ou outro objeto, ia até a caixa e pegava e deixava cartas. Mais tarde, um dos homens ia apanhá-las e depositar outras.[684] Também existiam outros métodos: "Num horário específico, uma pessoa escolhida numa das zonas prisionais atirava cartas dos homens para as mulheres, ou das mulheres para os homens. Eram os 'Correios'".[685]
Segundo Leonid Sitko, tais cartas eram escritas em minúsculos pedaços de papel, com letra ínfima. Todos as assinavam com nome falso: Sitko era "Hamlet", e a namorada, "Marsianka". Tinham sido "apresentados" por outras mulheres, as quais disseram a Sitko que ela estava deprimidíssima, pois seu bebê pequeno lhe fora tirado após a prisão. Sitko começou a escrever para ela, e uma vez até conseguiram encontrar-se, dentro de uma mina abandonada.[686]
Na busca por alguma espécie de intimidade, outros elaboravam métodos ainda mais surreais. No campo especial de Kengir, havia pessoas - quase na totalidade presos políticos, completamente privados de contato com os amigos, a família e os cônjuges que haviam deixado em casa - que desenvolviam complexas relações com gente que nunca tinham visto.[687] Um muro separava o campo feminino do masculino, mas alguns pares até casavam sem nunca se terem encontrado. A mulher ficava de um lado do muro e o homem, do outro; trocavam-se votos, e um padre encarcerado registrava a cerimônia num pedaço de papel.
Esse tipo de amor persistia, mesmo depois que a administração do campo ergueu ainda mais o muro, cobriu-o com arame farpado e proibiu os presos de aproximar-se dele. Ao descrever tais matrimônios realizados às escuras, até Soljenitsin abre temporariamente mão do ceticismo com que encara quase todos os outros relacionamentos nos campos: "Nesse matrimônio com uma pessoa desconhecida do outro lado do muro [...] ouço um coro de anjos. E como a contemplação pura e abnegada de corpos celestes. É também algo demasiado sublime para estes tempos de calculismo egoísta".[688]
Se amor, sexo, estupro e prostituição eram parte da vida no Gulag, segue-se que gravidez e parto também o eram. Junto com minas e canteiros de obras, turmas madeireiras e celas punitivas, alojamentos de presos e vagões de gado, havia maternidades e campos para grávidas - assim como berçários.
Nem todas as crianças que apareciam nessas instituições eram nascidas nos campos. Algumas haviam sido "presas" com as mães. As normas que regiam essa prática sempre foram pouco claras. A ordem operacional de 1937 que determinava a detenção de esposas e filhos de "inimigos do povo" proibia categoricamente a captura de grávidas e lactantes.[689] Por outro lado, uma ordem de 1940 dizia que as mães podiam ficar com os bebês por um ano e meio, "até eles não precisarem mais de leite materno", quando então seriam colocados em orfanatos ou entregues a parentes.[690]
Na prática, tanto grávidas quanto lactantes eram freqüentemente encarceradas. Ao fazer exames de rotina num comboio de presos recém-chegado, um médico de campo deparou com uma grávida que já sentia as contrações. Fora detida no sétimo mês.[691] Outra, Natalya Zaporozhets, foi colocada num traslado de presos quando estava no oitavo mês: após sofrer trancos em trens e carrocerias de caminhão, daria à luz um nati-morto.[692] A artista e memorialista Evfrosiniya Kersnovskaya ajudou no parto de bebê que nasceu num trem de traslado.[693]
Já dissemos que crianças pequenas eram "presas" com os pais. Uma detenta, encarcerada nos anos 1920, escreveu uma ácida carta de protesto a Dzerzhinsky, agradecendo-lhe ter "prendido" seu filho de três anos: a prisão, dizia, era preferível ao orfanato, que ela chamava de "fábrica de anjinhos".[694] Centenas de milhares de crianças foram, para todos os fins e efeitos, aprisionadas junto com os pais durante as duas grandes ondas de deportação, a primeira a dos kulaks, no começo da década de 1930, a outra a das etnias e nacionalidades "inimigas" durante e após a Segunda Guerra Mundial.
Para essas crianças, o choque da nova situação permaneceria com elas pelo resto da vida. Uma prisioneira polonesa recordaria que uma mulher em sua cela estava acompanhada do filho de três anos: "O menino, apesar de bem-comportado, era frágil e macambúzio. Nós o entretínhamos o melhor que podíamos, com histórias e contos de fada, mas ele nos interrompia de tempos em tempos, perguntando: 'Estamos na cadeia, né?'"[695]
Muitos anos depois, um filho de kulaks degredados se lembraria de sua provação nos vagões de gado: "As pessoas ficavam tresloucadas [...]. Não faço idéia de quantos dias viajamos. No vagão, sete pessoas morreram de fome. Chegamos a Tomsk, e nos tiraram para fora, diversas famílias. Também descarregaram vários cadáveres - crianças, jovens, idosos".[696]
Apesar das privações, havia mulheres que, de modo proposital e até cínico, engravidavam nos campos de concentração. Em geral, eram as criminosas profissionais ou as condenadas por delitos de pouca monta as que desejavam engravidar para ser dispensadas do trabalho pesado, receber alimentação ligeiramente melhor e talvez beneficiar-se das anistias periodicamente concedidas a mães com filhos pequenos. Tais anistias (houve uma em 1945 e outra em 1948, por exemplo) em geral não se aplicavam às condenadas por crimes contra-revolucionários.[697] "A vida ficava mais fácil quando a pessoa engravidava", disse-me Lyudmila Khachatryan, para explicar por que as mulheres dormiam de bom grado com seus carcereiros.[698]
Outra se recordaria de ter ouvido o rumor de que todas as mulheres com filhos pequenos (as mamki, na gíria prisional) seriam soltas. Ela então ficou grávida de caso pensado.[699] Nadezhda Joffe, prisioneira que engravidara do marido após haver recebido autorização para um encontro com ele, escreveria que suas companheiras no "alojamentos das amas-de-leite" de Magadan simplesmente "não tinham nenhum instinto maternal" e largavam seus bebês tão logo podiam.[700]
De modo talvez nada surpreendente, nem todas as mulheres que descobriam ter engravidado nos campos queriam levar a gestação adiante. O comando geral do Gulag parece ter sido ambivalente no que se referia ao aborto, por vezes permitindo-o e por vezes acrescentando outra condenação à pena das mulheres que tentavam praticá-lo.[701] Tampouco está muito claro quão freqüentes eram essas interrupções forçadas da gravidez, pois só muito raramente são mencionadas: em dúzias de entrevistas e memórias, ouvi ou li apenas dois relatos. Numa entrevista, Anna Andreevna me falou da mulher que "enfiou pregos em si mesma, sentou-se e trabalhou à máquina de costura; por fim, começou a sangrar bastante".[702] Outra mulher descreveu de que modo um médico de seu campo procurou pôr fim à gravidez dela:
Imaginem a cena. É noite. Está escuro... Andrei Andreevich tenta me fazer abortar, sem nenhum instrumento, usando só as mãos, cobertas de iodo. Mas está tão nervoso que não sai nada. Sinto tanta dor que nem consigo respirar, mas agüento sem dar um pio, para que ninguém nos ouça. Aí, a dor se torna insuportável, e eu grito: "Pare!" O procedimento inteiro fica interrompido durante dois dias. Enfim, sai tudo - o feto e um bocado de sangue. Por isso nunca fui mãe.[703]
Mas havia as que queriam os filhos, e muitas vezes a tragédia era sua sina. Indo contra tudo o que se escreveu sobre o egoísmo e a venalidade das mulheres que engravidavam no Gulag, sobressai a história de Hava Volovich. Prisioneira política encarcerada em 1937, era extremamente solitária nos campos e resolveu ficar grávida e dar à luz.
Embora Hava não sentisse nenhum amor em especial pelo pai da criança, esta, uma menina chamada Eleonora, nasceu em 1942, num campo sem instalações especiais para mães.
Ali, havia três mães, e nos deram um cômodo minúsculo no alojamento. Das paredes e do teto, os percevejos se derramavam como areia; passávamos a noite toda afastando-os dos bebês. De dia, precisávamos sair para o serviço e confiávamos as crianças a qualquer velha que encontrássemos que houvesse sido dispensada do trabalho; então, essas mulheres serviam-se calmamente do alimento que tínhamos deixado para os pequenos.
No entanto, escreve Hava,
Toda noite, um ano inteiro, fiquei junto ao berço, catando percevejos e fazendo orações. Rezava para que Deus prolongasse meu tormento por cem anos se isso garantisse que eu não me separaria de minha filha. Rezava para que me visse libertada com ela, mesmo que eu me tornasse apenas uma indigente ou aleijada. Rezava para que eu conseguisse criá-la até a idade adulta, mesmo que eu precisasse rastejar aos pés das pessoas e implorar-lhes esmolas. Mas Deus não atendeu a minhas preces. Meu bebê mal começara a andar, eu mal ouvira suas primeiras palavras, a maravilhosa e alentadora palavra "Mamãe", quando fomos todas trajadas com farrapos (apesar do inverno gelado), amontoadas num vagão de carga e transferidas para o "campo das mães". E ali o meu anjinho rechonchudo de cachos dourados se tornou um fantasma pálido com sombras azuladas debaixo dos olhos e feridas nos lábios inteiros.
Hava foi colocada para trabalhar primeiro numa turma madeireira e depois numa serraria. A noite, levava para o campo um pequeno feixe de lenha, que dava às babás no berçário. Em troca, deixavam-na às vezes ficar com a filha fora dos horários de visita.
Eu via as babás acordarem as crianças pela manhã. Elas as obrigavam a sair das camas geladas com safanões e pontapés [...] empurrando-as aos murros e xingando-as de modo pesado, tiravam-lhe os camisolões e as lavavam na água gelada. Os bebês não ousavam nem chorar. Davam fungadelas, como velhos, e soltavam pios baixinhos.
Aqueles pios medonhos vinham dos berços durante dias, sem parar. Crianças já com idade suficiente para sentar ou engatinhar ficavam deitadas de costas, pressionando os joelhinhos contra a barriga, fazendo aqueles sons esquisitos, semelhantes a arrulhos abafados.
Uma babá tinha a seu cargo dezessete crianças e, com isso, mal dispunha de tempo para manter todas trocadas e alimentadas, para nem falarmos de devidamente cuidadas.
A babá trazia da cozinha uma tigela de mingau fumegante e a repartia entre vários pratos. Apanhava o bebê mais próximo, forçava-lhe os bracinhos para trás, amarrava-os com uma toalha de banho e começava a enfiar colheradas de mingau quente goela abaixo da criança, não lhe dando tempo de engolir, exatamente como se estivesse alimentando um peru.
Eleonora começou a definhar.
Em algumas de minhas visitas, achei machucaduras em seu corpinho. Nunca me esquecerei de como ela se agarrava a meu pescoço com as mãos magrinhas e gemia: "Mamãe, quero casa!" Ela não se esquecera do muquifo onde viera à luz e onde ficara com a mãe o tempo todo...
A pequena Eleonora, que agora tinha quinze meses, logo percebeu que seus rogos de "casa" eram inúteis. Parou de esticar os braços para mim quando a visitava; dava-me as costas, em silêncio. No último dia de vida, quando a levantei (deixaram que eu a amamentasse), ela ficou olhando para longe, de olhos arregalados, e então começou a bater com suas mãozinhas crispadas em meu rosto e a arranhar e morder meu seio. Em seguida, apontou para o berço, querendo voltar a ele.
À noite, quando voltei com o feixe de lenha, seu berço estava vazio. Eu a encontrei no necrotério, onde jazia nua entre os cadáveres dos presos adultos. Ela passara um ano e quatro meses neste mundo e morrera em 3 de março de 1944. [...] Essa é a história de como, ao ter dado uma única vez à luz, cometi o pior dos crimes.[704]
Nos arquivos do Gulag, conservaram-se fotos do tipo de berçário descrito por Hava Volovich. Um dos álbuns fotográficos se inicia com a seguinte introdução:
O sol brilha sobre a pátria stalinista desses pequenos. A nação está repleta de amor pelos líderes, e nossas maravilhosas crianças são felizes tal qual toda a juventude do país. Aqui, em leitos amplos e aconchegantes, dormem os novos cidadãos de nosso país. Tendo sido alimentados, repousam tranqüilos e, com certeza, têm bons sonhos.
As fotos desmentem as legendas. Numa delas, uma enfiada de lactantes, com os rostos cobertos por máscaras brancas - prova das práticas higiênicas no campo -, senta-se num banco com olhar sério sem nenhum sorriso, segurando seus bebês. Em outra, todas as crianças estão indo para a caminhada da noitinha. Enfileiradas, não parecem mais espontâneas que as mães.
Em muitas fotos, as crianças estão de cabelo rapado, presumivelmente para evitar piolhos, e o efeito disso era que ficavam parecendo pequenos presos, coisa que, na prática, eram consideradas mesmo.[705] "O berçário também era parte do complexo do campo", escreveria Evgeniya Ginzburg. "Tinha sua própria guarita, seus próprios portões, seus próprios barracões, seu próprio arame farpado."[706]
Em algum nível, a direção do Gulag em Moscou deve ter estado ciente de quão terrível era a vida nos campos para as crianças que viviam ali. No mínimo, sabemos que os inspetores transmitiam a informação: um relatório de 1949 sobre a condição das mulheres nos campos assinalava de maneira desaprovadora que, das 503 mil prisioneiras do sistema, 9.300 estavam grávidas e outras 23.790 se viam acompanhadas de filhos pequenos. "Levando em conta a influência negativa sobre a saúde e a educação das crianças", o relatório argumentava em favor da soltura antecipada das mães, assim como das mulheres que haviam deixado filhos em casa, num total (quando excetuadas as reincidentes e as prisioneiras políticas contra-revolucionárias) de umas 70 mil mulheres.[707]
De tempos em tempos, realizavam-se tais anistias. Contudo, pouco melhorava a vida das crianças que ficavam. Pelo contrário: dado que não contribuíam com nada para a produtividade do campo, sua saúde e seu bem-estar estavam bem embaixo na lista de prioridade dos comandantes, e elas habitavam as construções mais precárias, geladas e velhas. Um inspetor verificou que, no berçário de um campo, a temperatura nunca se elevava acima dos onze graus; outro descobriu um berçário em que a tinta das paredes estava descascada e não havia absolutamente nenhuma iluminação, nem mesmo a querosene.[708] Um relatório do Siblag de 1933 dizia que no campo seriam necessários mais setecentos pares de calçado infantil, mais setecentos casacos infantis compridos e mais novecentos conjuntos de talheres.[709] E quem trabalhava ali não era necessariamente qualificado. Ao contrário: os serviços de berçário eram para aquelas "prisioneiras de confiança" e, assim, costumavam ser atribuídos a criminosas. Nadezhda Joffe escreve que, "por hora a fio, ficavam debaixo da escada com os 'maridos'; ou, então, simplesmente saíam, enquanto as crianças, sem alimento e sem cuidados, adoeciam e começavam a morrer".[710]
Tampouco as mães, cuja gravidez já custara um bocado ao campo, costumavam ser autorizadas a compensar tal negligência - supondo-se que elas realmente desejassem isso. Faziam-nas voltar ao trabalho tão logo era possível, e só de má vontade lhes davam folga para amamentar. Em geral, eram simplesmente liberadas do trabalho de quatro em quatro horas e, ainda com as mesmas roupas sujas, tinham quinze minutos com os filhos, sendo depois mandadas de volta; o resultado era que as crianças continuavam com fome. Às vezes, não se permitia nem isso. Um inspetor do Gulag citou o caso de uma mulher que, por causa de suas obrigações no trabalho, chegara alguns minutos atrasada para amamentar o bebê; negaram-lhe acesso a ele.[711] Numa entrevista, a ex-supervisora do berçário de um campo me disse (fazendo pouco caso) que as crianças que não conseguiam mamar o que deviam nessa (segundo ela) meia hora recebiam das babás o resto de alguma mamadeira.
A mesma mulher também confirmou descrições que prisioneiras fizeram de outro tipo de crueldade: tão logo acabavam de amamentar, as mulheres eram freqüentemente proibidas de manter qualquer outro contato com as crianças. A ex-supervisora contou que, em seu campo, proibira pessoalmente todas as mães de caminharem com os filhos, alegando que elas, sendo mulheres condenadas, poderiam machucá-los. Afirmou ter visto uma mãe dar ao filho açúcar com fumo, para assim envenená-lo. Outra, ainda segundo ela, tirara de propósito os sapatos do filho na neve. "Eu era responsável pelas taxas de mortalidade infantil no campo", disse-me, explicando por que tomara medidas para manter as mães à distância. "Aquelas crianças eram um ônus para elas, que assim desejavam matá-las."[712] A mesma lógica talvez tenha levado outros comandantes a proibir mães de verem os filhos. No entanto, é igualmente possível que tais normas fossem outro produto da crueldade irrefletida dos administradores: providenciar para que as mães vissem os filhos representava um incômodo, e, por isso, proibia-se tal prática.
Eram previsíveis as conseqüências de separar dos pais crianças em tão tenra idade. Havia incontáveis epidemias entre elas. As taxas de mortalidade infantil eram extremamente altas - tanto que, conforme também registram os relatórios de inspeção, elas muitas vezes eram deliberadamente ocultadas.[713] Mas mesmo as crianças que sobreviviam à primeira idade tinham pouca chance de levar uma existência normal nos berçários. Algumas talvez tivessem a sorte de ser tratadas pelo tipo mais bondoso de prisioneira transformada em babá. Outras não. A própria Evgeniya Ginzburg trabalhou num berçário do Gulag e descobriu, ao chegar lá, que nem as crianças mais velhas sabiam falar:
Só algumas das que tinham quatro anos conseguiam articular umas poucas palavras, esparsas e desarticuladas. Gemidos, mímica e socos eram os principais meios de comunicação. "Como se pode esperar que falem? Quem estava lá para ensiná-los?", explicou Anya, sem alterar-se. "No grupo dos mais novos, passam o tempo todo deitados nos berços. Ninguém os tira de lá, mesmo quando se esgoelam de tanto chorar. É proibido, a menos que seja para trocar as fraldas - quando há fraldas secas, é claro."
Quando Evgeniya tentou ensinar algo às crianças sob seus cuidados, ela constatou que apenas uma ou duas - aquelas que haviam mantido algum contato com as mães - se mostravam capazes de aprender alguma coisa. E mesmo a experiência dessas poucas crianças era limitadíssima:
"Olhe", eu disse a Anastas, mostrando-lhe a casinha que eu desenhara. "O que é isso?"
"Alojamento", respondeu o menininho, de modo bem claro.
Com algumas caneladas, pus um gato ao lado da casa. Mas ninguém, nem mesmo Anastas, reconheceu o bicho. Nunca tinham visto aquele animal raro. Aí, desenhei uma cerca rústica, tradicional, em volta da casa.
"E o que é isso?"
"A zona prisional!", gritou Vera, encantada.[714]
Normalmente, as crianças eram transferidas de tais berçários para orfanatos quando faziam dois anos. Algumas mães viam isso com bons olhos, pois era uma oportunidade para as crianças escaparem do Gulag. Outras protestavam, sabendo que elas próprias podiam ser proposital ou acidentalmente transferidas para outros campos, longe dos filhos, cujos nomes podiam então ter sido mudados ou esquecidos, impossibilitando que se estabelecesse relacionamento ou mesmo contato.[715]
Isso às vezes acontecia. Valentina Yurganova, filha de kulaks da etnia alemã do Volga, foi colocada num orfanato onde algumas das crianças eram demasiado pequenas para recordar-se dos próprios nomes e as autoridades, demasiado desorganizadas para lembrar-se deles. Valentina me disse que uma das crianças fora simplesmente rebatizada "Kashtanova" ("Castanheira"), dado que havia tantas dessas árvores no parque atrás do orfanato.
Anos depois, outra dessas crianças escreveria uma pungente descrição da malsucedida busca que, durante a vida inteira, fez para descobrir o verdadeiro nome dos pais: não havia registro de nenhuma menina nascida na região da mulher com o nome que aparecia em seu salvo-conduto, e a criança, muito pequena, ainda não aprendera o nome deles. Mesmo assim, lembrar-se-ia de fragmentos de seu passado: "Mamãe na máquina de costura, eu pedindo agulha e linha... Eu num jardim... Aí, depois... O recinto é escuro, a cama à direita está vazia, alguma coisa acontece. De algum modo, fico sozinha. Estou apavorada".[716]
Não admira que algumas mães "chorassem, berrassem ou até enlouquecessem e fossem trancadas em depósitos, para se acalmarem", quando os filhos eram levados embora. Depois que eles se afastavam, era pequena a probabilidade de reencontrarem as mães.[717]
Extramuros, a vida das crianças nascidas nos campos não necessariamente melhorava. Elas se juntavam ao enorme contingente de outra categoria de vítima infantil - as crianças que haviam sido transferidas direto para os orfanatos após o encarceramento dos pais. Em regra, os orfanatos estatais não tinham funcionários suficientes e eram superlotadíssimos, sujos e com freqüência mortíferos. Uma ex-prisioneira recordaria as emoções e esperanças com que seu campo enviou para um orfanato urbano um grupo de filhos de presos - e o horror sentido quando se soube que todas aquelas crianças tinham morrido numa epidemia.[718] Já em 1931, no auge da coletivização, diretores de orfanatos nos Urais escreviam cartas desesperadas às autoridades regionais, implorando ajuda para cuidar dos milhares de crianças que acabavam de ficar órfãs de kulaks:
Num cômodo de doze metros quadrados, há trinta meninos. Para 38 crianças, há sete leitos, onde dormem os "reincidentes". Dois rapazes de dezoito anos destruíram a instalação elétrica, assaltaram o empório e bebem com o diretor [...] crianças dormem, jogam cartas (que confeccionam com retratos rasgados do "Líder"), fumam, quebram as grades das janelas e pulam os muros com a intenção de fugir.[719]
Em outro orfanato para filhos de kulaks,
as crianças dormem no chão, e não há calçados em quantidade suficiente [...] às vezes, falta água por dias a fio. Comem mal; afora água e batata, não têm almoço. Não há pratos nem cuias; elas comem direto de conchas. Para 140 pessoas, dispõe-se de uma única caneca, e não existem colheres suficientes; revezam-se para comer, ou comem com a mão. Não há iluminação, só um lampião para o orfanato inteiro, e o querosene está em falta.[720]
Em 1933, um orfanato perto de Smolensk enviou o seguinte telegrama à comissão infantil em Moscou: "Abastecimento alimentos orfanato interrompido. Cem crianças passando fome. Organização recusa fornecer rações. Não há nenhum socorro. Tomar medidas urgentes".[721] As coisas não mudaram muito com o passar do tempo. Em 1938, uma ordem da NKVD descrevia um orfanato onde duas meninas de oito anos haviam sido estupradas por alguns dos garotos mais velhos; e outro onde 212 crianças compartilhavam doze colheres e vinte pratos e, por falta de roupa de dormir, iam para a cama com a indumentário com que haviam passado o dia, aí incluídos os calçados.[722] Em 1940, Savelyeva Leonidovna foi "seqüestrada" de seu orfanato (os pais tinham sido aprisionados) e adotada por uma família que pretendia usá-la como doméstica. Assim, viu-se separada da irmã, a qual nunca mais tornaria a ver.[723]
Filhos de presos políticos, em especial, passavam maus bocados nessas instituições; com freqüência, recebiam tratamento pior que o conferido aos órfãos dali. Diziam-lhes - como o fizeram a Svetlana Kogteva, então com dez anos -, que "esquecessem os pais, já que estes eram inimigos do povo".[724] Os homens da NKVD que eram responsáveis por tais lares tinham ordem de manter vigilância especial e atentar para os filhos de contra-revolucionários, a fim de garantir que não recebessem tratamento privilegiado de nenhuma espécie.[725] Graças a essa norma, PyotrYakir, após a detenção dos pais, ficou exatos três dias num desses orfanatos. Durante esse período, adquiriu "fama de cabecilha dos filhos dos 'traidores'" e foi de imediato preso. Tinha catorze anos. Foi transferido para uma cadeia e acabou sendo mandado para o Gulag.[726]
Mais freqüentemente, os filhos de presos políticos sofriam provocação e exclusão. Um preso recordaria que se recolhiam as impressões digitais desses menores quando chegavam ao orfanato. Todos os professores e todos os outros funcionários temiam demonstrar demasiada afeição por eles, pois não queriam ser acusados de ter simpatia por "inimigos do povo".[727] Os filhos de presos políticos eram impiedosamente provocados por serem "inimigos", conforme conta Valentina Yurganova, que, em conseqüência, esqueceu de propósito o idioma alemão (sua língua natal).[728]
Em ambientes desse tipo, até filhos de pais instruídos logo adquiriam hábitos da bandidagem. Vladimir Glebov, filho do destacado bolchevique Lev Kamenev, era uma dessas crianças. O pai foi preso quando Glebov tinha quatro anos, e o menino foi "degredado" para um orfanato especial na região oeste da Sibéria. Ali, cerca de 40% das crianças eram filhas de "inimigos do povo", cerca de 40% eram menores delinqüentes, e cerca de 20% eram crianças ciganas, detidas pelo crime de nomadismo. Glebov explicaria ao escritor Adam Hochschild que, menos para os filhos de presos políticos, havia vantagens no contato precoce com jovens criminosos:
Meu chapa me ensinou coisas que, depois, me ajudaram bastante na hora de proteger-me. Aqui eu tenho uma cicatriz, e aqui outra [...] quando se é atacado a facadas, é preciso saber reagir. O principal é reagir antes, para não se deixar atingir. Era assim a nossa feliz meninice soviética![729]
Algumas crianças ficavam permanentemente afetadas pela vivência em orfanatos. Uma mãe voltou do degredo e reuniu-se à filha. A menina, de oito anos de idade, mal sabia falar, comia com as mãos e se comportava como o bicho-do-mato que o orfanato a ensinara a ser.[730] Outra mãe, solta após cumprida uma pena de oito anos, foi pegar os filhos no orfanato e ali descobriu que eles não desejavam ir com ela. Tinham-lhes ensinado que os pais eram inimigos do povo que não mereciam nenhum afeto. Os filhos haviam sido especificamente instruídos a negar-se a ir embora "caso sua mãe um dia venha buscar vocês", e nunca mais quiseram morar com os pais.[731]
Não era de surpreender que crianças de tais orfanatos fugissem - em grande número. Quando se viam nas ruas, caíam bem depressa no submundo criminal. E quando se tornavam parte desse submundo, o ciclo vicioso se renovava: cedo ou tarde, provavelmente seriam encarceradas também.
A primeira vista, o relatório anual de 1944-5 da NKVD sobre um grupo de oito campos na Ucrânia não revela nada fora do comum. Arrolam-se quais dos campos cumpriram as metas do Plano Qüinqüenal e quais não o fizeram. Louvam-se os presos que são trabalhadores de choque.
Observa-se com severidade que, na maioria daqueles campos, a dieta é ruim e monótona. De modo mais abonador, nota-se que, no período em questão, só num dos campos ocorreu um surto epidêmico - e isso depois que cinco detentos haviam sido transferidos para lá do superlotado cárcere de Kharkov.
No entanto, alguns detalhes do relatório servem para ilustrar a verdadeira natureza desses oito campos ucranianos. Um inspetor se queixa, por exemplo, de que num deles faltam "livros didáticos, lápis, cadernos, canetas". Há também um reparo severo sobre a propensão de certos detentos a apostar o alimento, às vezes perdendo antecipadamente meses de ração de pão - ao que parece, os elementos mais jovens dos campos são demasiado inexperientes para jogar cartas com os mais velhos.[732]
Os oito campos eram as colônias de menores. Isso porque nem todos os menores sob jurisdição do Gulag eram filhos de prisioneiros. Parte deles trilhara seu próprio caminho para os campos. Cometeram delitos e foram apanhados e mandados a campos especiais para menores delinqüentes. Tais estabelecimentos não só eram administrados pelos mesmos burocratas que geriam os campos para adultos, como também se pareciam com estes de muitas maneiras.
Na origem, os "campos infantis" foram organizados para os besprizornye, os órfãos, enjeitados e pequenos moradores de rua que haviam se perdido ou fugido dos pais durante os anos da Guerra Civil, da fome, da coletivização e das prisões em massa. No início da década de 1930, essas crianças de rua já eram espetáculo comum nas estações ferroviárias e nos parques públicos da URSS. O escritor russo Victor Serge as descreveu nestes termos:
Eu as vi em Leningrado e Moscou, morando nos esgotos, debaixo dos outdoors, nas criptas dos cemitérios, lugares dos quais eram as senhoras imperturbadas; realizando conferências noturnas em mictórios públicos; viajando em cima ou embaixo dos vagões. Emergiam, irritantes, pretas de suor, para pedir uns copeques aos viajantes e ficar à espreita da oportunidade de roubar alguma bagagem.[733]
Esses menores eram tão numerosos e problemáticos que, em 1934, o Gulag estabeleceu nos campos para adultos os primeiros berçários destinados a filhos de presos, objetivando impedir que tais crianças ficassem vagando pelas ruas.[734] Pouco depois, em 1935, o Gulag também resolveu instalar colônias especiais de menores. Estes eram capturados em grandes batidas nas ruas e depois mandados àquelas colônias, a fim de educar-se e preparar-se para ingressar na força de trabalho.
Em 1935, as autoridades soviéticas também aprovaram uma lei, tristemente célebre, que baixava para doze anos a maioridade penal. Depois disso, camponesas adolescentes detidas pelo furto de alguns grãos de trigo, ou filhos de "inimigos do povo" suspeitos de colaboração com os pais, iriam para a prisão juvenil junto com as menores prostitutas, os jovens punguistas, os meninos de rua e outros.[735] Nos anos 1930, segundo um relatório interno, agentes da NKVD detiveram uma tártara de doze anos que não falava russo e fora separada da mãe numa estação ferroviária. Deportaram-na, sozinha, para o extremo norte.[736]
Os menores delinqüentes da URSS eram tantos que, em 1937, a NKVD criou orfanatos de regime especial para quem desrespeitava sistematicamente as normas nos orfanatos comuns. Em 1939, os simplesmente órfãos já não eram mandados aos campos de menores: esses lugares agora estavam reservados aos meninos e meninas que de fato tinham sido condenados pelos tribunais ou pela osoboe soveshchanie (comissão especial).[737]
Apesar da ameaça de punição mais dura, o número de menores delinqüentes continuava a aumentar. A guerra não produziu apenas órfãos: havia também os que fugiam de casa; ou crianças que eram largadas à própria sorte porque o pai estava na frente de batalha e a mãe fazia turno de doze horas na fábrica; ou uma categoria inteiramente nova de criminoso, os menores operários que escapuliam de seus empregos fabris - às vezes depois que as fábricas haviam sido evacuadas para leste, longe de suas famílias - e, assim, desrespeitavam uma lei dos tempos de guerra - "Do abandono não-autorizado do trabalho nos empreendimentos militares".[738]
De acordo com as estatísticas da própria NKVD, os "centros de recepção" de menores recolheram em 1943-45 o extraordinário contingente de 842.144 crianças sem teto. A maioria foi mandada de volta aos pais, aos orfanatos ou às escolas profissionalizantes. Mas um número considerável (pelos registros, 52.830) foi designado para "colônias de trabalho educacional". Esse termo era nada mais que uma descrição palatável para campos de concentração infantis.[739]
De muitas maneiras, o tratamento dos menores em tais campos pouco diferia daquele conferido a seus pais. Os menores eram detidos e trasladados segundo as mesmas normas - com duas exceções: deviam ficar apartados dos adultos e não podiam ser alvejados caso tentassem fugir.[740] Eram mantidos no mesmo tipo de cárcere que os maiores de idade; suas celas eram separadas destes, mas se revelavam igualmente precárias. A descrição que um inspetor do Gulag faz de uma delas é deprimentemente familiar: "As paredes estão sujas; nem todos os presos têm beliches ou colchões. Não têm lençóis, fronhas nem cobertores. Na cela 5, por falta de vidraça, a janela está tapada com um travesseiro; e, na cela 14, uma janela não fecha de jeito nenhum".[741] Outro relatório diz que os cárceres de menores são "inaceitavelmente insalubres", com falta de água quente e de itens tão elementares como canecas, cuias e banquinhos.[742]
Alguns menores também eram interrogados como maiores. Após ter ficado detido no orfanato, Pyotr Yakir (que, vimos, tinha então catorze anos) foi primeiro colocado numa cadeia comum e depois submetido a um interrogatório completo, do mesmo tipo a que se submetiam os adultos. Seu interrogador o acusou de "ter organizado um bando de cavalaria anarquista, cujo objetivo era atuar atrás das linhas do Exéreito Vermelho", citando como prova o fato de Yakir adorar montar. Em seguida, Yakir foi condenado pelo crime de ser "elemento socialmente perigoso".[743] Jerzy Kmiecik, polonês de dezesseis anos capturado ao tentar atravessai a fronteira soviética rumo à Hungria (isso foi em 1939, na seqüência da invasão soviética da Polônia), também foi interrogado como maior. Eles o mantiveram em pé, ou sentado num banquinho sem encosto, por horas a fio; ainda o alimentaram com sopa salgada e lhe negaram água. Os interrogadores queriam saber, entre outras coisas, "quanto o sr. Churchill pagou a você para fornecer-lhe informações". Kmiecik não sabia quem era Churchill e pediu que lhe explicassem a pergunta.[744]
Os arquivos também conservam os registros de interrogatório de Vladimir Moroz, quinze anos, acusado de ter exercido "atividades contra-revolucionárias" no orfanato. A mãe e um irmão mais velho, de dezessete anos, já haviam sido aprisionados. O pai, fuzilado. Moroz mantivera um diário, encontrado pela NKVD, no qual execrava as "mentiras e calúnias" que diziam a seu redor: "Se alguém houvesse caído num sono profundo há doze anos e acordasse de repente agora, ficaria aturdido com as mudanças que ocorreram nesse período". Embora condenado a três anos no Gulag, Moroz morreria na cadeia em 1939.[745]
Esses não eram casos isolados. Em 1939, quando a imprensa soviética relatou alguns casos de oficiais da NKVD detidos por terem extraído confissões falsas, um jornal siberiano contou a história de 160 menores, a maioria com idade entre doze e catorze anos, mas alguns até de dez anos. Quatro oficiais da NKVD e os promotores dos processos foram condenados a penas de cinco a dez anos por terem interrogado aqueles menores. O historiador Robert Conquest escreve que as confissões foram obtidas "com relativa facilidade": "Um menino de dez anos cedeu após uma única noite de interrogatório e reconheceu ser membro de uma organização fascista desde os sete anos".[746]
Os menores aprisionados tampouco eram poupados das implacáveis exigências do sistema de trabalho escravo. Embora as colônias de menores não fossem, como regra, instaladas no âmbito dos campos madeireiros ou mineiros setentrionais, onde as condições eram bem mais severas, havia nos anos 1940 um lagpunkt no campo de Norilsk, no extremo norte. Alguns dos mil presos desse lagpunkt foram trabalhar na olaria de Norilsk; os outros foram postos para limpar neve. Entre eles, estavam algumas crianças de doze, treze e catorze anos, mas a maioria tinha quinze ou dezesseis - os mais velhos que isso já haviam sido transferidos para o campo dos adultos. Muitos inspetores reclamaram das condições no campo de menores de Norilsk, e ele acabou sendo deslocado para uma região mais meridional da URSS - não antes que muitos de seus detentos houvessem sucumbido às mesmas doenças que seus homólogos adultos contraíam por conta do frio e da desnutrição.[747]
Mais típico é o relatório ucraniano que explica que presos das colônias de trabalho de menores na Ucrânia receberam funções de marcenaria, metalurgia e costura.[748] Kmiecik, o qual esteve numa dessas colônias, perto de Zhitomir, trabalhou numa fábrica de móveis.[749] Ainda assim, tais colônias seguiam muitas das práticas dos campos para maiores. Havia metas de produtividade a atingir, metas e normas individuais a cumprir, um regime prisional a obedecer. Em 1940, uma ordem da NKVD estipulava que os menores de doze a dezesseis anos trabalhassem quatro horas por dia e passassem outras quatro horas em atividades escolares. A mesma ordem determinava que os menores de dezessete a dezoito anos trabalhassem oito horas por dia e dedicassem duas à escola.[750] No campo de Norilsk, não se observava esse regime, pois não havia nenhuma escola ali.[751]
No campo de menores em que Kmiecik ficou, as aulas eram apenas à noite. Entre outras coisas, ensinaram-lhe que "a Inglaterra é uma ilha na Europa ocidental [...]. E governada por lordes que usam becas vermelhas de gola branca. São donos dos trabalhadores, que dão duro para eles e aos quais pagam muito pouco".[752] Não que os menores estivessem ali primordialmente para ser educados: em 1944, Beria informou com orgulho a Stalin que os campos de menores do Gulag haviam contribuído de modo notável para o esforço de guerra, produzindo granadas, minas explosivas e outros itens no valor total de 150 milhões de rublos."[753]
No Gulag, os menores também se submetiam ao mesmo tipo de propaganda que os adultos. Jornais dos campos publicados em meados dos anos 1930 falam de stakhanovistas juvenis e cantam loas aos "de 35" - os meninos de rua colocados ali pela lei daquele ano -, enaltecendo os que tinham se regenerado pelo trabalho físico. Os mesmos jornais atacam os menores que não haviam entendido que "precisam abandonar seu passado, pois é hora de começar vida nova [...]. Carteado, bebedeira, vandalismo, malandragem, ladroeira etc. são vícios disseminados entre eles".[754] Para combater esse "parasitismo" juvenil, os menores deviam participar do mesmo tipo de concerto cultural e educacional que os adultos, entoando as mesmas canções stalinislas.[755]
Por fim, eram submetidos às mesmas pressões psicológicas que os adultos. Outra diretiva da NKVD, esta de 1941, requeria a organização de uma agenturno-operativnoe obsluzhwanie (rede de informantes) em suas colônias e centros de recepção de menores. Tinham se espalhado rumores de que, nesses campos, havia sentimento contra-revolucionário tanto entre os funcionários quanto entre os detentos, em especial os filhos de contra-revolucionários. Em certo campo, os menores até haviam encetado uma mini-revolta: tomaram e arrebentaram o refeitório e atacaram os guardas, ferindo seis destes.[756]
Só num aspecto os detentos dos campos de menores eram afortunados: ao contrário de outros de sua idade, não tinham sido mandados para os campos de concentração comuns, onde ficariam rodeados de criminosos adultos. De fato, assim como as onipresentes prisioneiras grávidas, o número sempre crescente de menores nos campos para adultos constituía eterna dor de cabeça para os comandantes. Em outubro de 1935, Yagoda escreveu a todos os comandantes de campo para dizer que, "a despeito de minhas instruções, menores presos não estão sendo mandados às colônias de trabalho especiais; em vez disso, misturam-se com adultos na cadeia". Pela contagem mais recente, afirmava Yagoda, ainda havia 4.305 menores nas prisões comuns.[757] Treze anos depois, em 1948, investigadores da promotoria-geral continuavam a queixar-se de que havia menores demais nos campos comuns, onde eram corrompidos pelos presos adultos. Até mesmo as autoridades de um campo perceberam quando um preso, o chefão da bandidagem ali, transformou um ladrãozinho de dezoito anos em matador de aluguel.[758] Os maloletki (menores delinqüentes) despertavam pouca compaixão entre os outros presos. "A fome e o horror do que acontecera os privara de todas as defesas", escreve Lev Razgon, o qual observou que os menores se aproximavam naturalmente dos indivíduos que pareciam ser os mais fortes. Esses últimos eram os criminosos de carreira, que faziam dos garotos "serviçais, escravos mudos, bufões, reféns e tudo mais" e convertiam menores de ambos os sexos à prostituição.[759] No entanto, essas vivências apavorantes não suscitavam muita piedade. Pelo contrário: na memorialística do Gulag, algumas das invectivas mais duras são dirigidas a tais adolescentes. Razgon diz que, não importando sua origem, todos os menores aprisionados logo "manifestavam uma crueldade assustadora e incorrigivelmente vingativa, sem freio e sem responsabilidade". Pior:
Não temiam nada nem ninguém. Os guardas e capatazes dos campos morriam de medo de entrar nos alojamentos separados onde ficavam os menores. Era ali que ocorriam os atos mais vis, mais impudentes e mais cruéis. Se um dos chefes da bandidagem jogava e perdia tudo após ter apostado até a vida, os garotos o matavam por uma ração diária de pão ou, simplesmente, "pela diversão". As garotas se gabavam de conseguir satisfazer uma turma inteira de lenhadores. Não restara nada de humano nesses menores, e era impossível achar que pudessem retornar ao mundo normal e tornar-se seres humanos comuns outra vez.[760]
Soljenitsin tem a mesma impressão:
Na consciência deles, não havia nenhuma linha demarcatória entre o que era e o que não era permissível, nenhum conceito de certo e errado. Para eles, tudo o que desejassem era bom, e tudo o que os atrapalhasse era mau. Adquiriam aquele comportamento descarado e insolente porque se tratava da conduta mais vantajosa no campo.[761]
O preso holandês Johan Wigmans também escreve sobre jovens que "provavelmente não chegavam a incomodar-se por estar nesses campos. Oficialmente, deviam trabalhar; na prática, porém, era a última coisa que faziam. Ao mesmo tempo, beneficiavam-se de 'proventos' regulares e de amplas oportunidades de aprenderem com seus cupinchas".[762]
Havia exceções. Aleksander Klein conta a história de dois meninos de treze anos, capturados como guerrilheiros anti-soviéticos, que foram condenados a vinte anos no Gulag. Os dois permaneceram dez anos nos campos, conseguindo manter-se juntos declarando greve de fome sempre que alguém os separava. Por causa da idade, as pessoas se apiedavam deles, dando-lhes serviço leve e comida extra. Os dois se matricularam em cursos técnicos no Gulag, vindo a ser profissionais competentes antes de serem libertados numa das anistias que se seguiram à morte de Stalin. Se não houvesse sido pelos campos, escreve Klein, "quem teria ajudado esses camponeses semi-analfabetos a tornar-se pessoas instruídas, bons especialistas?"[763]
Mas, no final dos anos 1990, quando comecei a procurar memórias escritas por pessoas que tinham sido menores prisioneiros, encontrei muita dificuldade para achar alguma. Só temos as memórias de Yakir e Kmiecik e um punhado de outras, reunidas pela Sociedade Memorial e outras organizações.[764] Contudo houvera milhares e milhares de tais menores, e muitos ainda deviam estar vivos. Até sugeri a uma amiga russa que puséssemos anúncio em jornal, na tentativa de localizar alguns desses sobreviventes para entrevistá-los. "Não faça isso", ela me recomendou. "Todos sabemos o que aquele tipo de gente virou." Décadas de propaganda, de cartazes ostentados nas paredes de orfanatos para agradecer a Stalin "a nossa feliz meninice", não tinham conseguido convencer o povo soviético de que as crianças do Gulag, as crianças das ruas e as crianças dos orfanatos houvessem se tornado outra coisa senão membros de carteirinha da grande e onipresente classe criminosa da URSS.
O que significa... exaustão?
O que significa... estafa?
Cada movimento apavora,
Cada movimento de nossos braços e pernas doridos.
Fome terrível - delirando por pão,
"Pão, pão", bate o coração.
Bem longe no céu melancólico,
O sol indiferente se move.
Nossa respiração é um assovio fino
A 45 graus negativos.
O que significa morrer?
As montanhas olham e continuam silenciosas.
Nina Gagen-Torn, Memória.[765]
Durante toda a existência do Gulag, os presos sempre reservaram um lugar bem embaixo na hierarquia dos campos aos moribundos - ou melhor, aos mortos-vivos. Para descrevê-los, criou-se todo um subdialeto na gíria daqueles lugares. Às vezes, os moribundos eram chamados fitili (pavios), numa referência ao pavio de uma vela prestes a apagar-se. Também eram conhecidos como gavnoedy (come-merda) ou pormoechniki (papa-lavagem). Com mais freqüência, eram denominados dokhodyagi (no singular, dokhodyaga), substantivo derivado do verbo russo dokhodit (chegar, alcançar). No Manual do Gulag, Jacques Rossi afirma que o termo era sarcástico: os moribundos iam enfim "chegar ao socialismo".[766] Outros, de modo mais prosaico, dizem que a palavra significava que eles estavam chegando não ao socialismo, mas ao fim da vida.
Os dokhodyagi simplesmente estavam perecendo de fome e sofriam as enfermidades da inanição e da carência vitamínica: escorbuto, pelagra, vários tipos de diarréia. Nos primeiros estágios, essas doenças se manifestavam na forma de dentes moles e feridas cutâneas, sintomas que às vezes afligiam até os guardas dos campos.[767] Nos estágios posteriores, os presos perdiam a capacidade de enxergar no escuro. Gustav Herling se lembraria "daqueles com cegueira noturna, caminhando devagar pela zona prisional de madrugada e à noitinha, tateando à frente".[768]
Os famélicos também tinham problemas estomacais, tonturas e inchaços grotescos nas pernas. Ao acordar certa manhã, Thornas Sgovio (que chegou à beira da inanição antes de recuperar-se) descobriu que uma de suas pernas estava "arroxeada e duas vezes maior que a outra. Coçava e estava coberta de erupções, de onde escorriam sangue e pus. Depois que usei o dedo para comprimir aquela carne roxa, a marca ficou ali por muito tempo". Quando Sgovio viu que não conseguia calçar as botas por causa do inchaço, mandaram-no fazer um corte nelas.[769]
Nos estágios finais da inanição, os dokhodyagi assumiam aparência grotesca e inumana, transformando-se na encarnação da retórica desumanizadora usada pelo Estado: nos últimos dias de vida, os inimigos do povo deixavam, em outras palavras, de ser gente. Ficavam dementes, com freqüência delirando e falando sozinhos por horas a fio. A pele se tornava solta e seca. Os olhos adquiriam um brilho estranho. Comiam tudo em que conseguiam deitar as mãos - aves, cães, lixo. Moviam-se devagar e não eram mais capazes de controlar os intestinos nem a bexiga, emitindo assim um odor horrível. Tarnara Petkevich descreve a primeira vez em que viu essas pessoas:
Ali, atrás do arame farpado, estava uma fileira de criaturas, que lembravam remotamente seres humanos [...] havia dezenas delas, esqueletos de vários tamanhos coberto de pele pardacenta, semelhante a pergaminho, todas despidas até a cintura, com as cabeças rapadas e os seios murchos e balouçantes. Sua única indumentária eram umas roupas de baixo lastimáveis, sujas, e as tíbias se projetavam da carne vazia. Eram mulheres! A fome, o calor e a lida as haviam transformado em espécimes ressequidos que, inexplicavelmente, ainda se aferravam aos últimos vestígios de vida.[770]
Variam Shalamov também deixou uma inesquecível descrição poética dos dokhodyagi, invocando a similaridade que havia entre eles, a perda de características identificadoras que os humanizassem, o anonimato que era parte do horror que inspiravam:
Ergo um brinde a uma estrada na floresta,
Àqueles que caíram pelo caminho,
Àqueles que já não conseguem mais se arrastar,
Mas são forçados a fazê-lo.
A seus lábios rígidos e azulados,
A seus rostos idênticos,
A seus casacos rasgados e cobertos de gelo,
A suas mãos sem luvas,
À água que bebericam de uma velha latinha,
Ao escorbuto que se fixa em seus dentes,
Aos dentes de cães gordos e cinzentos,
Que os acordam pela manhã.
Ao sol carrancudo
Que os mira sem interesse,
Às lápides brancas,
Obras de astutas tempestades de neve.
A ração de pão cru e grudento
Engolido às pressas,
Ao céu pálido e tão alto,
Ao rio Ayab-Yuryakh![771]
Mas o termo dokhodyagi, tal qual era usado nos campos de concentração soviéticos, não se limitava a descrever um estado físico. Essas pessoas, conforme explicou Sgovio, não estavam apenas doentes: eram presos que haviam chegado a um grau de inanição tão intenso que já não cuidavam mais de si mesmos. Tal deterioração costumava avançar por etapas, à medida que os presos deixavam de lavar-se, de controlar os intestinos, de ter as reações humanas normais diante de insultos - até ficarem, literalmente, loucos de fome. Sgovio se mostrou estarrecidíssimo na primeira vez em que deparou com alguém nesse estado, um comunista americano chamado Eisenstein, que fora conhecido seu em Moscou:
De início, não reconheci meu amigo. Eisenstein não respondeu quando o cumprimentei. Seu rosto exibia a expressão vazia dos dokhodyagi. Olhou-me como se eu não estive ali. Eisenstein parecia não perceber a presença de ninguém. Não havia expressão nenhuma em seus olhos. Juntando os pratos vazios nas mesas do refeitório, ele examinava todos em busca de partículas de restos de comida. Passava os dedos por dentro de cada prato e depois os lambia.
Sgovio escreve que Eisenstein se tornara como os outros "pavios", na medida em que perdera toda noção de dignidade pessoal:
Descuidavam de si mesmos. Não se lavavam - nem mesmo quando tinham a oportunidade. Os pavios tampouco se preocupavam em procurar e matar os piolhos que lhes sugavam o sangue. Os dokhodyagi não limpavam com as mangas o que lhes pingava da ponta do nariz [...] o pavio era imune a pancadas. Quando atacado por outros zeks, cobria a cabeça para desviar dos golpes. Caía ao chão, e, se fosse deixado em paz e sua condição o permitisse, se levantava e saía choramingando como se nada tivesse acontecido. Depois do trabalho, o dokhodyaga podia ser visto a rondar a cozinha, implorando sobras. Por diversão, o cozinheiro lhes atirava na cara uma conchada de sopa. Em tais ocasiões, o pobre coitado passava apressadamente os dedos pelas suíças molhadas e os lambia [...]. Os pavios ficavam em pé perto das mesas, esperando que alguém deixasse um pouco de sopa ou papa. Quanto isso acontecia, os mais próximos dentre eles se lançavam sobre os restos. Na disputa subseqüente, muitas vezes derramavam a sopa. E aí, de quatro, lutavam e raspavam o chão até que o derradeiro tiquinho do precioso alimento fosse parar em suas bocas.[772]
Uns poucos presos que se tornaram dokhodyagi e depois se recuperaram tentaram explicar, não com inteiro sucesso, qual era a sensação de ser um dos mortos-vivos. Janusz Bardach recordaria que, após oito meses em Kolyma, "eu ficava zonzo ao acordar, e minha cabeça, confusa. Precisava de mais tempo e mais esforço para compor-me e ir ao refeitório pela manhã".[773] Yakov Éfrussi virou dokhodyaga depois que seus óculos foram roubados pela primeira vez - "para os míopes, ficará perfeitamente claro o que é a vida sem óculos: tudo a nossa volta parece embaçado" - e, em seguida, perdeu os dedos da mão esquerda por causa das queimaduras de frio. Éfrussi descreveria seus sentimentos nestes termos:
A constante privação de alimento destrói a psique. É impossível parar de pensar em comida - a gente o faz o tempo todo. A incapacidade física se junta a fraqueza moral, pois a fome constante elimina o amor-próprio, o respeito por si mesmo. Todos os pensamentos se dirigem para uma só coisa: como conseguir mais comida? E por isso que os dokhodyagi estão sempre rondando o lixão, as proximidades do refeitório, a entrada da cozinha. Ficam esperando para ver se alguém joga da cozinha alguma coisa comestível. Uns restos de repolho, por exemplo.[774]
A atração da cozinha e a obsessão pela comida cegavam alguns para quase todas as considerações, como Gustav Herling também tenta descrever:
Depois que a vacilante dignidade humana não mais consegue conservar um equilíbrio incerto porém independente, deixa de haver limite para os efeitos físicos da fome. Muitas vezes, comprimi meu rosto empalidecido contra o vidro fosco da janela da cozinha, para, com olhar abobado, implorar outra conchada de sopa aguada a Fyedka, o ladrão de Leningrado que estava encarregado dali. E me lembro de que, uma vez, meu melhor amigo, o engenheiro Sadovski, arrancou-me da mão uma lata cheia de sopa e, fugindo com ela, nem esperou para se esconder na latrina antes de engolir aquela gororoba fervente com lábios febricitantes. Se Deus existe, que Ele castigue sem dó os que degradam pela fome.[775]
O sionista polonês Yehoshua Gilboa, aprisionado em 1940, descreve eloqüentemente os logros com os quais os presos tentavam convencer-se de que estavam comendo mais do que de fato faziam:
Procurávamos enganar o estômago esfarelando o pão até virar quase farinha e misturando isso com sal e grandes quantidades de água. Essa iguaria era chamada "caldo de pão". A água salgada adquiria algo da cor e do sabor do pão. Bebíamos, e a papa de pão ficava. Aí, púnhamos mais água, até extrair a última gota de gostinho de pão. Ingeríamos a papa como sobremesa, depois de termos nos forrado com a "água de pão" (por assim dizer). Aquilo não tinha nenhum sabor, mas criávamos a ilusão de esticar várias centenas de gramas do alimento.
Gilboa escreve que também encharcava em água o peixe salgado. O líquido resultante "podia ser usado para fazer o caldo de pão, e aí tínhamos de fato uma iguaria digna de reis".[776]
Quando o preso passava todo o seu tempo rondando a cozinha e catando restos de comida, ele em geral já estava perto da morte e podia mesmo falecer a qualquer momento - dormindo, indo para o trabalho, caminhando pela zona prisional, jantando. Certa vez, Janusz Bardach viu um preso cair durante a chamada do fim do dia:
Formou-se um grupo em volta dele. "Peguei o chapéu", disse um homem. Outros apanharam o casaco, a calça, as botas e os panos com que a vítima envolvia os pés. Aí, começou uma briga por causa da roupa de baixo.
Tão logo o prisioneiro caído foi despido por completo, ele mexeu a cabeça, levantou a mão e afirmou, de modo débil, mas claro: "Está tão frio..." Sua cabeça voltou a tombar sobre a neve, e ele ficou com um olhar vítreo. Aqueles urubus se foram com o que haviam arrebatado, inabaláveis. O preso provavelmente morreu de exposição ao frio poucos minutos após ter sido despido.[777]
Todavia, a inanição não era a única maneira de morrer. Muitos presos tombavam trabalhando, nas perigosas condições das minas e fábricas. Alguns, enfraquecidos pela fome, também sucumbiam facilmente a doenças e epidemias. Já mencionei as epidemias de tifo, mas presos fracos e famélicos eram suscetíveis a muitas outras enfermidades. No Siblag, por exemplo, durante o primeiro trimestre de 1941, hospitalizaram-se 8.029 pessoas; com tuberculose, foram 746 (resultando em 109 óbitos); com pneumonia, 72 (22 óbitos); com disenteria, 36 (nove óbitos); com queimaduras de frio, 177 (cinco óbitos); com distúrbios estomacais, 302 (sete óbitos); com problemas circulatórios, 912 (123 óbitos); e por acidentes de trabalho, 210 (sete óbitos).[778]
Embora o assunto seja (curiosamente) tabu, presos também se suicidavam. Ê difícil dizer quantos tomaram esse caminho. Não existem estatísticas oficiais. Estranhamente, também não há muito consenso entre os sobreviventes sobre quantos suicídios ocorriam. Nadezhda Mandelstam escreveria que nos campos as pessoas não se matavam, e sim lutavam com afinco para continuar vivas.[779] Tal crença foi ecoada por outros. Evgenii Gnedin relataria que, embora houvesse pensado em suicidar-se na cadeia e, depois, no degredo, ele, durante seus oito anos nos campos, nunca pensou em matar-se. "Cada dia era uma luta pela vida; numa batalha assim, como teria sido possível pensar em largar a vida? Havia uma meta - sair daquele sofrimento - e uma esperança - reencontrar os entes queridos."[780]
Durante pesquisas, a historiadora Catherine Merridale, que é de opinião diferente, conheceu dois psicólogos de Moscou que haviam estudado ou trabalhado no sistema Gulag. Tal como Nadezhda Mandelstam e Evgenii Gnedin, eles insistiram em que o suicídio e a doença mental eram raros: "Ficaram surpresos, e um pouco ofendidos", quando Catherine apresentou provas do contrário. A historiadora atribui essa curiosa insistência ao "mito do estoicismo" na Rússia, mas talvez haja outras causas.[781] O teórico literário Tzvetan Todorov sugere que as testemunhas escrevem sobre a estranha ausência de suicídios porque querem enfatizar o caráter extraordinário da experiência pela qual passaram: esta era tão medonha que ninguém sequer fazia a opção "normal" pelo suicídio. "O sobrevivente objetiva acima de tudo comunicar a alteridade dos campos."[782]
Na realidade, os casos de suicídio de que se tem notícia são numerosos, e muitos memorialistas os mencionam. Um descreve o suicídio de um garoto cujos favores sexuais foram "ganhados" por um bandido no carteado.[783] Outro fala do suicídio de um cidadão soviético de origem alemã, que deixou um bilhete para Stalin: "Minha morte é um ato consciente de protesto contra a violência e o arbítrio lançados sobre nós, os germano-soviéticos, pelos órgãos da NKVD".[784] Um sobrevivente de Kolyma escreve que, na década de 1930, tornou-se relativamente comum que presos caminhassem, rápidos e decididos, rumo a "zona da morte" (a terra de ninguém junto à cerca do campo) e então ficassem parados ali, esperando para ser baleados.[785]
A própria Evgeniya Ginzburg cortou a corda que sua amiga Polina Melnikova usara para enforcar-se; Evgeniya escreveria sobre Polina, com admiração: "Ao agir daquela maneira, ela afirmara seus direitos de pessoa - e fizera um serviço bem-feito".[786] Todorov também escreve que muitos sobreviventes tanto do Gulag quanto dos campos nazistas viam o suicídio como uma oportunidade de exercer o livre-arbítrio: "Ao matar-se, a pessoa altera o curso dos acontecimentos (ainda que pela última vez na vida) em vez de simplesmente reagir a eles. Suicídios desse tipo são atos de desafio, não de desespero".[787]
Para os administradores dos campos, era indiferente a maneira pela qual os presos morriam. Para a maioria, o mais importante era manter as taxas de mortalidade em segredo, ainda que apenas parcial: os comandantes de lagpunkts onde essas taxas fossem consideradas "excessivamente altas" correriam o risco de ser punidos. Embora as regras não fossem impostas com regularidade, e embora alguns de fato defendessem a idéia de que mais presos deviam morrer, os comandantes de alguns campos particularmente mortíferos perdiam mesmo o emprego de vez em quando.[788] Era por isso que, conforme alguns ex-prisioneiros relatam, médicos ocultavam cadáveres dos inspetores do Gulag; e era por isso que, em alguns campos, constituía prática comum conceder a soltura antecipada a detentos moribundos - assim, não apareciam nas estatísticas de mortalidade.[789]
Mesmo quando as mortes eram registradas, os registros nem sempre se mostravam honestos. De uma ou outra maneira, os comandantes de campo se asseguravam de que os médicos que redigiam os atestados de óbito não indicassem "inanição" como causa direta da morte. O cirurgião Isaac Vogelfanger, por exemplo, recebeu ordem categórica de sempre assinalar "insuficiência do músculo cardíaco", não importando qual fosse a verdadeira causa da morte do preso.[790] O tiro podia sair pela culatra: em certo campo, os médicos arrolaram tantos casos de "colapso cardíaco" que os inspetores desconfiaram. A promotoria obrigou os médicos a desencavarem os corpos, e se estabeleceu que, na realidade, os presos haviam morrido de pelagra.[791] Nem todo esse caos era intencional: em outro campo, os registros estavam em tamanha confusão que um inspetor se queixou de que "os mortos são contabilizados como vivos, os fugitivos como ainda encarcerados, e vice-versa".[792]
Com freqüência, os presos também eram mantidos proposital-mente na ignorância dos fatos relacionados às mortes. Embora estas não pudessem ser ocultadas de todo - um preso falou de cadáveres que ficavam "numa pilha junto à cerca até o degelo" -,[793] podiam ser encobertas de outras maneiras. Em muitos campos, os corpos eram removidos à noite e levados para locais secretos. Só por acaso Edward Buca (obrigado a fazer serão para cumprir sua meta de trabalho) viu o que acontecia aos cadáveres em Vorkuta:
Após terem sido empilhados como toras num galpão aberto, até que se houvessem acumulado em número suficiente para uma cova coletiva no cemitério do campo, eles eram carregados nus, em trenós, com as cabeças para fora e os pés para dentro. Cada corpo tinha uma birka (plaquinha de madeira) amarrada ao dedão do pé direito, trazendo o nome e o número do morto. Antes de cada trenó sair pelo portão do campo, o nadziratel (um homem da NKVD) pegava uma picareta e arrebentava cada crânio. Isso era para garantir que nenhum preso vivo escapasse daquele jeito. Fora do campo, os corpos eram despejados numa transeya, uma das diversas valas largas que tinham sido cavadas com aquela finalidade durante o verão. Mas, quando o número de óbitos avultou, o procedimento para certificar-se de que estavam mesmo mortos foi modificado. Em vez de arrebentarem cabeças a picareta, os guardas usavam o szompol, um arame grosso de ponta afiada, que enfiavam em todos os corpos. Aparentemente, isso era mais fácil que desfechar golpes de picareta.[794]
Os enterros coletivos em valas comuns talvez fossem mantidos em segredo porque, estritamente falando, também eram proibidos - o que não quer dizer que fossem incomuns. Por toda a Rússia, terrenos de antigos campos mostram o que claramente eram covas coletivas, e, de tempos em tempos, elas até se abrem: no extremo norte, o permafrost não apenas conserva os corpos (às vezes lugubremente intactos), mas também se move com as congelações e degelos anuais. Variam Shalamov escreve: "O setentrião resistia com toda a força a essa obra do homem, não aceitando em suas entranhas os defuntos [...] a terra se rompia, deixando à mostra seus depósitos subterrâneos, que continham não só ouro, chumbo, tungstênio e urânio, mas também corpos humanos incorruptos".[795]
No entanto, eles não deviam estar ali, e, em 1946, a direção do Gulag ordenou a todos os comandantes de campo que enterrassem os cadáveres separadamente, usando mortalhas e cavando sepulturas com no mínimo 1,5 metro de profundidade. A localização dos corpos seria demarcada não com o nome, mas com um número. Só os encarregados dos registros do campo deveriam saber quem estava enterrado onde.[796]
Tudo isso parece muito civilizado - não fosse o fato de que outra ordem autorizou a extração dos dentes de ouro dos presos mortos. Esse procedimento deveria dar-se sob a égide de uma comissão do campo, formada de representantes do serviço médico, da administração e do departamento financeiro. O ouro precisaria então ser levado para o banco estatal mais próximo. Todavia, é difícil crer que tais comissões se reunissem com muita freqüência. Simplesmente, o furto dos dentes de ouro, um procedimento mais descomplicado, era muito mais fácil de executar e ocultar num mundo onde havia cadáveres em demasia.[797]
Em demasia mesmo - e isso, no fim das contas, era o aspecto aterrador das mortes no cativeiro, conforme escreveria Herling:
A morte no campo trazia outro horror: seu anonimato. Não tínhamos nenhuma idéia de onde os mortos eram enterrados, nem de se algum tipo de atestado de óbito era redigido após a morte de um preso [...]. A certeza de que ninguém jamais saberia da morte deles, de que ninguém jamais saberia onde eles tinham sido enterrados, era um dos maiores tormentos psicológicos pelos quais os prisioneiros passavam [...].
As paredes do alojamento estavam cobertas de nomes de presos rabiscados no reboco, e pedia-se aos amigos que completassem os dados após as mortes, acrescentando uma cruz e uma data; todo preso escrevia aos familiares em intervalos estritamente controlados, de modo que uma súbita interrupção da correspondência forneceria aos parentes a data aproximada da morte.[798]
Apesar dos esforços dos presos, muitas mortes - muitas mesmo - não foram assinaladas, nem lembradas, nem registradas. Formulários não eram preenchidos; parentes não eram notificados; demarcações de madeira se decompunham. Caminhando-se pelos antigos terrenos dos campos no extremo norte, vêem-se os sinais das covas coletivas: o solo irregular e matizado, os pinheiros jovens, o capim alto que cobre valas funerárias de meio século. Às vezes, um monumento foi erigido por algum grupo local. Com mais freqüência, não há identificação nenhuma. Os nomes, as vidas, as narrativas individuais, os vínculos familiares, a história - tudo se perdeu.
Estou pobre, sozinho e nu,
Não tenho fogo,
A melancolia polar lilás
Cerca-me por todos os lados...
Recito meus poemas
Eu os grito
As árvores, desfolhadas e surdas,
Estão assustadas.
Apenas o eco das montanhas distantes
Ressoa em meus ouvidos.
E com um profundo suspiro
Respiro de novo com facilidade.
Variam Shalamov, Neskolko moikh zhiznei.[799]
No final, havia prisioneiros que sobreviviam. Sobreviviam mesmo aos piores campos, às condições mais duras, mesmo aos anos de guerra, aos anos de escassez de víveres, aos anos de execuções em massa. Não apenas isso, alguns sobreviviam psicologicamente intactos o suficiente para voltarem para casa, recuperarem-se e viverem vidas relativamente normais. Janusz Bardach tornou-se cirurgião plástico na cidade de Iowa. Isaak Filshtinskii voltou a lecionar literatura árabe. Lev Razgon voltou a escrever literatura infantil. Anatolii Zhigulin retomou a produção de poesia. Evgeniya Ginzburg mudou-se para Moscou, e durante anos foi a alma de um círculo de sobreviventes, que se reuniam regularmente para comer, beber e discutir em volta da mesa da sua cozinha.
Ada Purizhinskaya, presa ainda adolescente, casou e teve quatro filhos, alguns dos quais tornaram-se músicos. Encontrei dois deles num jantar familiar, generoso, bem-humorado, durante o qual Purizhinskaya serviu diversos pratos de deliciosa comida fria, e pareceu desapontada quando não consegui comer mais. A casa de Irena Arginskaya também é pródiga em risadas, a maior parte das quais vem dela mesma. Quarenta anos depois, ela conseguia achar engraçadas as roupas que usara quando prisioneira: "Suponho que você poderia chamar isso de uma espécie de jaqueta", disse ela, tentando descrever um casaco desajeitado. Sua filha, adulta e bem falante, riu com ela.
Alguns até acabaram tendo vidas extraordinárias. Alexander Soljenitsin tornou-se um dos escritores russos mais conhecidos no inundo, e mais bem-sucedidos em vendagem. O general Gorbatov ajudou a liderar o assalto soviético a Berlim. Depois de cumprir pena em Kolyma e de uma sharashka em tempos de guerra, Sergei Korolev acabou tornando-se o pai do programa espacial da União Soviética. Gustav Herling deixou os campos, lutou com o exército polonês e, apesar de escrever desde seu exílio napolitano, tornou-se um dos mais reverenciados homens de letras da Polônia pós-comunista. A notícia de sua morte em julho de 2000 encheu as primeiras páginas dos jornais de Varsóvia, e toda uma geração de intelectuais poloneses pagou tributo à sua obra - especialmente Um mundo à parte, suas memórias do Gulag. Em sua capacidade de se recuperar, esses homens e mulheres não eram únicos. Isaac Vogelfanger, que acabou se tornando professor de cirurgia na Universidade de Ottawa, escreveu que "as feridas se curam, e podemos nos tornar íntegros de novo, um pouco mais fortes e mais humanos do que antes..."[800]
Nem todas as histórias de sobreviventes do Gulag terminaram tão bem assim, é claro, o que talvez não sejamos necessariamente capazes de depreender da leitura dos relatos. É claro, pessoas que não sobreviveram não escreveram nada. Também não escreveram nada aqueles que ficaram com problemas mentais ou físicos em conseqüência da vivência nos campos. Aqueles que sobreviveram à custa de coisas das quais mais tarde se envergonharam tampouco costumam escrever -ou, quando o fazem, não contam necessariamente toda a história. Existem pouquíssimos relatos de informantes - ou de pessoas que confessem terem sido informantes - e muito poucos sobreviventes que sejam capazes de admitir terem machucado ou assassinado colegas prisioneiros a fim de permanecer vivos.
Por essas razões, alguns sobreviventes questionam se os relatos escritos têm alguma validade. Yuri Zorin, um sobrevivente mais velho e não muito acessível que entrevistei em sua cidade natal, Arkhangelsk, descartou uma pergunta que lhe fiz sobre filosofias de sobrevivência. Não havia nenhuma, disse ele. Embora as lembranças dos prisioneiros transmitam a impressão de que "discutiam tudo, pensavam sobre tudo", não era bem assim, contou-me ele: "Tudo se resumia em viver até o dia seguinte, em permanecer vivo, não ficar doente, trabalhar menos, comer mais. E é por isso que discussões filosóficas, como regra, não aconteciam... Éramos salvos pela juventude, saúde, força física, pois ali vivíamos segundo as leis de Darwin, da sobrevivência do mais apto".[801]
Quem sobreviveu - e por que sobreviveu - é uma questão que deve portanto ser abordada com muita cautela. Não há documentos de arquivo confiáveis, e não existem "provas" concretas. Temos que nos basear no que dizem aqueles que se dispõem a descrever suas experiências, seja por escrito ou numa entrevista. Cada um deles deve ter tido motivos para ocultar de seus leitores aspectos de suas biografias.
Feita esta ressalva, é possível identificar padrões dentro das várias centenas de relatos que têm sido publicados ou disponibilizados em arquivos. Porque existiam estratégias de sobrevivência, e elas eram bem conhecidas na época, embora variassem muito, conforme as circunstâncias particulares do prisioneiro. Sobreviver a uma colônia de trabalho na Rússia ocidental em meados da década de 1930 ou mesmo no final da década de 1940, quando a maior parte do trabalho era fabril e a comida era regular, mesmo não sendo farta, provavelmente não exigiu quaisquer ajustes mentais especiais. Sobreviver a um dos campos distantes do norte - Kolyma, Vorkuta, Norilsk - durante os anos de fome da guerra, por outro lado, freqüentemente exigia imensas reservas de talento e força de vontade, ou então uma enorme capacidade para o mal, qualidades que os prisioneiros, se tivessem permanecido em liberdade, poderiam nunca ter descoberto dentro deles.
Sem dúvida, muitos desses prisioneiros sobreviveram porque encontraram maneiras de se sobrepor a outros prisioneiros, de se distinguir da apinhada massa de zeks famélicos. Dúzias de ditos e provérbios dos campos refletem os eleitos debilitadores para a moral dessa competição desesperada. "Você pode morrer hoje eu vou morrer amanhã", era um deles. "O homem é o lobo do homem" a frase que Janusz Bardach usou como título de um de seus relatos - era outro.
Muitos ex-zeks falam da luta pela sobrevivência como algo cruel, e muitos, como Zorin, referem-se a ela como darwiniana. "O campo era um grande leste para nossa força moral, nossa moralidade cotidiana, e 99% de nós fracassamos nesse leste", escreveu Shalamov.[802] "Depois de apenas três semanas a maioria dos prisioneiros se tornava homens alquebrados, sem interesse por nada a não ser comer. Comportavam-se como animais, antipatizavam e suspeitavam de todos os demais, vendo no amigo de ontem um competidor na luta pela sobrevivência", escreveu Edward Buca.[803]
Elior Olitskaya, com sua experiência no movimento social-democrata pré-revolucionário, ficou particularmente horrorizada com o que ela percebia corno a amoralidade dos campos: enquanto internos em prisões costumavam cooperar entre si, os fortes ajudando os fracos, nos campos soviéticos cada prisioneiro "vivia por si", pisando nos outros a fim de obter um status um pouco mais alto na hierarquia do campo.[804] Galina Usakova descreveu como sentiu que sua personalidade mudara nos campos: "Eu era uma garota bem-comportada, bem-cria-da, de uma família da intelligentsia. Mas com essas características não se sobrevive, é preciso endurecer, aprender a mentir, a ser hipócrita de várias maneiras".[805]
Gustav Herling foi além, descrevendo como o novo prisioneiro lentamente aprende a viver "sem piedade":
No início ele divide seu pão com prisioneiros dementes de fome, guia os que têm cegueira noturna no caminho de volta do trabalho, grita por ajuda quando seu vizinho na floresta acaba de cortar fora dois dedos, e sub-repticiamente carrega canecas de sopa e cabeças de peixe para a sala mortuária. Depois de várias semanas, ele compreende que suas motivações não são nem puras nem realmente desinteressadas, que ele está seguindo as injunções egoístas de seu cérebro e salvando primeiro a ele mesmo. O campo, onde os prisioneiros vivem no nível mais baixo de humanidade e seguem um código brutal de comportamento em relação aos outros, o ajuda a chegar a essa conclusão. Como ele poderia ter suposto, antes da prisão, que um homem pode ser degradado ao ponto de não despertar mais compaixão mas apenas aversão e repugnância em seus colegas prisioneiros? Como pode ajudar os que têm cegueira noturna, quando todo dia ele os vê levarem pancadas de rifle porque estão atrasando a volta da brigada ao trabalho, e depois serem empurrados com impaciência para fora do caminho por prisioneiros que têm pressa de chegar à cozinha para a sopa; como visitar a sala mortuária e encarar a escuridão constante e o fedor de excremento; como dividir seu pão com um louco faminto que já no dia seguinte vai cumprimentá-lo no alojamento com um olhar arregalado persistente, de quem pede... Ele lembra e acredita nas palavras do juiz que o julgou, que lhe disse que a vassoura de ferro da justiça soviética varre apenas lixo para seus campos.[806]
Tais sentimentos não são exclusivos dos sobreviventes de campos soviéticos. "Se alguém oferece uma posição privilegiada a alguns poucos indivíduos em condições de escravidão", escreveu Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz, "exigindo em troca a traição a uma natural solidariedade com seus camaradas, certamente haverá quem aceite".[807] Escrevendo também a respeito dos campos alemães, Bruno Bettelheim observou que os prisioneiros mais velhos com freqüência acabam "aceitando os valores e o comportamento dos SS como se fossem também os seus", particularmente adotando seu ódio pelos habitantes mais fracos e de cotação mais baixa dos campos, em especial os judeus.[808]
Nos campos soviéticos, assim como nos campos nazistas, os criminosos comuns também adotaram prontamente a desumanizante retórica da NKVD, insultando presos políticos e "inimigos", e expressando entre eles repulsa pelos dokhodyagi. De sua inusual posição de único preso político num lagpunkt para uma maioria de criminosos, Karol Colonna-Czosnowski conseguiu inteirar-se da visão que as pessoas do mundo do crime têm dos políticos: "O problema é que existem muitos deles. Eles são fracos, são sujos, e só querem comer. Não produzem nada. Por que as autoridades se preocupam com eles, só Deus sabe..." Um criminoso, escreve Colonna-Czosnowski, disse ter encontrado um cientista e professor universitário ocidental, num campo de trânsito: "Eu o peguei comendo, sim, comendo mesmo, a cauda meio apodrecida de um peixe treska. Eu fiz ele passar um mau pedaço, você pode imaginar. Perguntei se ele sabia o que estava fazendo. Ele disse apenas que estava com fome... Então eu lhe dei um sopapo na nuca que o fez vomitar. Fico mal só de lembrar. Eu também contei o caso para os guardas, mas o velho asqueroso morreu na manhã seguinte. Bem-feito!"[809]
Outros prisioneiros observavam, aprendiam e imitavam, como escreveu Variam Shalamov:
O jovem camponês que se tornou prisioneiro vê que nesse inferno apenas os criminosos vivem comparativamente bem, que eles são importantes, que a todo-poderosa administração do campo tem medo deles. Os criminosos sempre têm roupas e comida, e se apóiam mutuamente... ele começa a ter a impressão de que os criminosos possuem a verdade sobre a vida do campo, que somente imitando-os ele irá seguir o caminho que poderá salvar sua vida... o intelectual condenado é esmagado pelo campo. Tudo o que ele sempre valorizou se pulveriza à medida que civilização e cultura vão se despencando dele em questão de semanas. O método de persuasão são os punhos ou o pedaço de pau. A maneira de induzir alguém a fazer alguma coisa é por meio de uma coronhada, um murro nos dentes... [810]
E mesmo assim, seria incorreto dizer que não havia nenhuma moralidade nos campos, que nenhuma bondade ou generosidade era possível. Curiosamente, mesmo os mais pessimistas dentre os que apresentaram relatos com freqüência se contradizem a respeito desse ponto. O próprio Shalamov, cuja descrição da barbaridade da vida no campo ultrapassa todas as demais, a certa altura escreveu que: "Eu me recusei a procurar a tarefa de capataz, que proporcionava uma chance de permanecer vivo, pois a pior coisa num campo era impor a própria vontade ou a de alguém sobre outra pessoa que era um condenado assim como você". Em outras palavras, Shalamov era uma exceção à própria regra.[811]
A maioria dos relatos também deixa claro que o Gulag não era um mundo de contornos definidos, onde a linha entre senhores e escravos estava claramente traçada, e a única maneira de sobreviver era sendo cruel. Não apenas internos, trabalhadores livres e guardas pertenciam de fato a uma complexa rede social, mas essa rede estava constantemente mudando, como vimos. Os prisioneiros podiam subir ou descer na hierarquia, e muitos o faziam. Podiam alterar seu destino não apenas pela colaboração ou pelo desafio às autoridades mas também por meio de uma astuta manipulação, através de contatos e relacionamentos. A simples boa sorte ou o azar também determinavam o curso de uma típica carreira no campo, que, se fosse longa, poderia muito bem ter períodos "felizes", em que o prisioneiro se estabelecia num bom emprego, comia bem e trabalhava pouco, assim como períodos em que o mesmo prisioneiro caía no inferno do hospital, da sala mortuária e na sociedade dos dokhodyagi que se amontoavam em volta da pilha do lixo, procurando restos de comida.
Na verdade, os métodos de sobrevivência eram próprios do sistema Na maior parte do tempo, a administração do campo não estava tentando matar prisioneiros, estava apenas tentando alcançar altas metas impossíveis, definidas pelos planejadores centrais em Moscou. Como resultado, os guardas do campo estavam mais do que dispostos a recompensar os prisioneiros que julgassem ser úteis para alcançar essa meta. Os prisioneiros, naturalmente, tiravam partido dessa disposição. Os dois grupos tinham metas diferentes - os guardas queriam extrair mais ouro ou cortar mais madeira, e os prisioneiros queriam sobreviver - mas às vezes eles compartilhavam meios de alcançar objetivos tão diferentes. Um punhado de estratégias de sobrevivência mostrava-se particularmente adequado tanto para prisioneiros como para guardas, e uma lista delas é dada a seguir.
Tufta: fingir trabalhar
Fazer uma descrição precisa da tufta - uma palavra que pode ser traduzida, de modo bastante impreciso, como "enganar o patrão" - não é tarefa fácil. Primeiro, porque tais práticas estavam tão arraigadas no sistema soviético que não é justo descrevê-las como se fossem algo exclusivo do Gulag.[812] Tampouco eram exclusivas da URSS. O provérbio da era comunista "Eles fingem que nos pagam, e nós fingimos que trabalhamos", podia ser ouvido na maioria das línguas do antigo Pacto de Varsóvia.
Mais apropriadamente, a tufta permeava todos os aspectos do trabalho - atribuições de trabalho, organização do trabalho, contabilidade do trabalho - e afetava todos os membros da comunidade do campo, dos chefes do campo em Moscou, aos guardas de mais baixo escalão do campo, aos prisioneiros mais oprimidos. Isso vale desde os primórdios do Gulag até o seu final. Uma das rimas mais repetidas pelos prisioneiros datava dos dias do Canal do Mar Branco:
Bez tufty i ammonala
Ne postroili by kanala.
Sem tufta e dinamite
Nunca teriam construído o canal.[813]
Nos anos em que esse tópico passou a ser tema de discussão, houve também controvérsia sobre a questão de quanto os prisioneiros trabalhavam duro ou não, e de quanto empenho eles punham ou não em evitar o trabalho. Desde que a publicação em 1962 do livro de Soljenitsin Um dia na vida de Ivan Denisovich abriu um debate mais ou menos público sobre a questão dos campos, a grande comunidade de sobreviventes, polemistas e historiadores dos campos encontrou notáveis dificuldades para chegar a um acordo unânime sobre a moralidade do trabalho nos campos. Porque muito da impactante novela de Soljenitsin era de fato dedicado às tentativas de seu herói de evitar o trabalho. Durante o decorrer de um dia de Ivan Denisovich, ele consulta um médico, na esperança de obter uma licença por doença; fantasia que vai ficar doente por algumas semanas; dá uma olhada no termômetro do campo, esperando que comprove estar frio demais para ir até o local de trabalho; fala com admiração de líderes de brigada capazes de "fazer parecer que o trabalho tinha sido feito, fosse esse o caso ou não"; sente-se aliviado quando seu líder de brigada obtém uma "boa nota pelo trabalho", apesar de que "metade do dia tinha passado e eles não haviam feito nada"; rouba lascas de madeira do local de trabalho para acender fogo no alojamento; e rouba um pouco de mingau na hora do jantar. "Trabalho", pensa Ivan a certa altura, "é aquilo de que os cavalos morrem". Ele tenta evitá-lo.
Nos anos que se seguiram à publicação do livro, esse retrato de um típico zek era contestado por outros sobreviventes, tanto por razões ideológicas quanto pessoais. Por um lado, aqueles que acreditavam no sistema soviético - e portanto acreditavam também que o "trabalho nos campos era valioso e necessário - achavam a "preguiça" de Denisovich ofensiva. Muitas das descrições "alternativas", mais pró-soviéticas, da vida nos campos, publicadas na imprensa soviética oficial na esteira de Ivan Denisovich, chegavam a se concentrar explicitamente na dedicação ao trabalho mostrada por aqueles que, apesar da injustiça de sua prisão, ainda acreditavam. O escritor soviético (e informante a vida toda) Boris Dyakov descreveu um engenheiro empregado num projeto de construção de um Gulag perto de Perm. O engenheiro ficara tão absorvido no trabalho, contou ao narrador de Dyakov, que esqueceu que era prisioneiro: "Por um tempo apreciei tanto meu trabalho que esqueci o que me havia tornado". Tão consciencioso era o engenheiro na história de Dyakov que chegou a enviar secretamente uma carta a um jornal local, queixando-se da precária organização do transporte no campo e dos sistemas de suprimento. Embora advertido pelo comandante do campo por essa indiscrição - nunca se ouvira falar que o nome de um prisioneiro aparecesse no jornal - o engenheiro, como conta Dyakov, ficou satisfeito em ver que "depois do artigo, as coisas melhoraram um pouco".[814]
A visão daqueles que comandavam os campos era ainda mais radical. Anonimamente, uma antiga administradora contou-me bastante irritada que todas as histórias sobre internos em campos que viviam em más condições eram falsas. Aqueles que trabalhavam bem viviam extremamente bem, ela disse, bem melhor do que as pessoas em geral: podiam até comprar leite condensado - grifo meu - coisa que as pessoas comuns não podiam. "Só aqueles que se recusavam a trabalhar é que viviam mal", ela me contou.[815] Tais pontos de vista em geral não eram expressados em público, mas houve algumas exceções. Anna Zakharova, esposa de um oficial da NKVD, cuja carta ao Isvestiya circulou na imprensa underground russa na década de 1960, criticava dura-mente Soljenitsin. Zakharova escreveu que estava "enraivecida até o fundo da minha alma" por Ivan Denisovich:
Podemos ver por que o herói dessa história, tendo tal atitude para com o povo soviético, não espera nada além de ir para a ala dos doentes para, de algum modo, escapar de redimir sua culpa, o mal que fez à sua terra natal, por meio de trabalho duro... E por que exatamente deve uma pessoa tentar evitar o trabalho braçal e mostrar escárnio por ele? Afinal, para nós o trabalho é a base do sistema soviético, e é só no trabalho que o homem se torna conhecedor de seus verdadeiros poderes. [816]
Outras objeções, menos ideológicas, também vieram de zeks comuns.V K. Yasnui, prisioneiro durante cinco anos no início da década de 1940, escreve em seus relatos que "Tentamos trabalhar honestamente, e não por medo de perder as rações, ou acabar na solitária... trabalho duro, e assim era o trabalho em nossa brigada, nos ajudava a esquecer, ajudava a afastar pensamentos ansiosos".[817] Nadezhda Ulyanovskaya, que foi presa junto com a mãe, escreveu que sua mãe trabalhava duro "a fim de provar que judeus e a intelligentsia trabalhavam tão bem quanto os outros". ("Eu trabalhava porque era obrigada a isso", escreve ela a respeito de si mesma, no entanto. "Receio que nesse ponto eu não esteja à altura das honras do povo judeu.")[818]
Prisioneiros que trabalharam com entusiasmo em favor do regime soviético durante toda a vida também não mudaram rapidamente Aleksandr Borin, um preso político e engenheiro de aviação, foi destinado a uma metalúrgica de um Gulag. Em seus relatos, ele descreve com orgulho as inovações técnicas que promoveu ali, a maior parte concebida em seu tempo livre.[819] Alla Shister, outra prisioneira política detida no final da década de 1930, contou-me numa entrevista que "Eu sempre trabalhei como se fosse livre. Esse é meu traço de personalidade, não consigo trabalhar mal. Se é preciso cavar um buraco, eu vou continuar cavando até que ele esteja pronto". Depois de dois anos em trabalhos gerais, Shister tornou-se líder de brigada, porque, diz ela, "Eles viram que eu trabalhava não como um prisioneiro trabalha, mas com todas as minhas forças". Com essa capacidade, ela então fez todas as tentativas de inspirar seus subalternos, embora, admita, sem irritá-los com o amor pelo Estado soviético. Eis como ela descreveu seu primeiro encontro com os homens que deviam trabalhar para ela:
Fui até o canteiro onde eles estavam cavando. Os guardas se ofereceram para me acompanhar, mas eu disse que não era preciso, e fui sozinha. Era meia-noite. Fui até a equipe, e disse a eles "Preciso cumprir a cota, estão precisando de tijolos no front".
Eles disseram: "Alia Borisovna, não nos importamos com a cota para os tijolos, dê-nos nossa ração de pão".
Eu disse: "Vocês terão a ração, se cumprirem a cota".
Eles disseram: "A gente vai atirar você num buraco, enterrá-la e ninguém vai mais encontrá-la".
Fiquei lá em pé, quieta, e disse: "Vocês não vão me enterrar. Prometo a vocês que se hoje, lá pelo meio-dia, vocês cumprirem a cota, eu vou trazer-lhes um pouco de tabaco". Tabaco ali valia mais do que ouro ou diamantes.
Como ela mesma conta, Shister havia simplesmente guardado as próprias rações de tabaco, já que não fumava, e de bom grado passou-as aos seus comandados.[820]
Também havia, é claro, aqueles que percebiam as vantagens materiais que ganhariam se trabalhassem. Alguns prisioneiros simplesmente tentavam fazer o que se esperava deles: cumprir a cota, conseguir o status de trabalhador de choque, receber melhores rações.
Vladimir Petrov chegou a um lagpunkt de Kolyma e imediatamente percebeu que os que ocupavam a "tenda de stakhanovista", que haviam trabalhado mais duro do que os outros prisioneiros, possuíam todos os atributos que faltavam aos dokhodyagi:
Eles eram incomparavelmente mais limpos. Mesmo nas condições bastante severas de sua vida no campo, tinham conseguido lavar o rosto todos os dias, e quando não conseguiam água usavam neve. Também se vestiam melhor... [e] pareciam mais inteiros. Não se amontoavam em cima dos fogões, mas sentavam em seus bancos fazendo alguma coisa ou conversando sobre seus afazeres. Mesmo vista de fora, sua tenda parecia diferente.
Petrov pediu para se juntar à brigada deles, cujos membros recebiam um quilo de pão por dia. Uma vez admitido, não conseguiu agüentar o ritmo de trabalho. Foi excluído da brigada, que não podia tolerar nenhuma fraqueza.[821] Mas sua experiência não era atípica, como escreveu Herling:
O fascínio pela cota não era privilégio exclusivo dos homens livres que a haviam imposto, era também o instinto dominante entre os escravos que trabalhavam para ela. Nas brigadas em que o trabalho era feito por equipes de homens trabalhando juntos, os capatazes mais conscienciosos e ardorosos eram os próprios prisioneiros, pois ali a cota era definida coletivamente, dividindo-se o produto total pelo número de trabalhadores. Qualquer sentimento de amizade mútua era completamente abolido em favor de uma corrida pelas porcentagens. Um prisioneiro não qualificado que se visse em uma equipe coordenada de prisioneiros experientes não podia esperar que lhe demonstrassem alguma consideração; depois de uma pequena tentativa, era forçado a desistir e se transferir para uma equipe na qual ele por sua vez freqüentemente tinha de supervisionar colegas mais fracos. Havia em tudo isso algo de inumano, quebrando sem misericórdia o único laço natural entre os prisioneiros - a solidariedade diante de seus perseguidores.[822]
Mas trabalhar duro às vezes surtia o efeito contrário. Lev Razgon descreveu lavradores que se matavam tentando superar a cota, ganhando para si uma "grande ração" de um quilo e meio de pão: "Podia ser rústico e mal preparado, mas era pão de verdade. Para lavradores que haviam vivido em semi-inanição durante anos parecia uma quantidade enorme, mesmo sem nenhum alimento cozido". Mas nem essa "enorme quantidade" de comida era suficiente para compensar a energia gasta no trabalho florestal. O trabalhador florestal estava então condenado, Razgon escreve: "ele literalmente iria morrer de fome, mesmo comendo um quilo e meio de pão por dia".[823] Variam Shalamov também descreveu o "mito da grande ração", e Soljenitsin escreveu que "a grande ração é aquela que mata. Numa temporada carregando madeira, o mais forte dos lenhadores acabaria nas últimas, sem esperança".[824]
Mesmo assim, a grande maioria dos relatos (reforçados, em certo grau, por provas de arquivo) falava efetivamente em evitar o trabalho. Ainda que o motivo principal não fosse em geral a mera preguiça, ou mesmo a vontade de "mostrar escárnio" pelo sistema soviético: a principal razão era a sobrevivência. Como haviam recebido agasalhos precários e comida insuficiente, e ordens para trabalhar em condições climáticas extremas com maquinaria quebrada, muitos perceberam que evitar o trabalho poderia salvar sua vida.
O relato não publicado de Zinaida Usova, uma das esposas presas em 1938, ilustra magnificamente de que modo os prisioneiros chegavam a essa conclusão. Usova foi primeiro destinada a Temlag, um campo que continha principalmente mulheres como ela, esposas de destacados membros do partido e de figurões do Exército que haviam sido mortos. Com um chefe de campo relativamente condescendente e uma escala de trabalho razoável, todo mundo em Temlag trabalhava com entusiasmo. Não só a maioria era ainda de "cidadãos soviéticos leais", convencidos de que sua detenção havia sido parte de um gigantesco equívoco, mas eles também acreditavam que trabalhando duro seriam libertados mais cedo. A própria Usova "dormia e acordava pensando em trabalho, elaborando meus projetos. Um deles chegou a ser colocado em produção".
Mais tarde, porém, Usova e um grupo de outras esposas foram para outro campo, que continha também criminosos. Ali ela foi parar numa fábrica de móveis. Seu novo campo tinha cotas mais altas, mais rigorosas - as cotas "irracionais" citadas por tantos outros prisioneiros. Esse sistema, escreveu Usova, "tornava as pessoas escravas, com psicologia de escravos". Somente aqueles que atingiam a cota integralmente recebiam a ração de pão completa de 700 gramas. Os que não conseguiam, ou que simplesmente estavam incapacitados de trabalhar, ganhavam 300, o que mal dava para sobreviver.
Como compensação, os prisioneiros em seu novo campo tentavam o melhor que podiam "enganar os chefes, driblar o trabalho, fazer o mínimo possível". Com seu relativo entusiasmo pelo trabalho, os prisioneiros recém-chegados de Temlag sentiam-se como párias. "Do ponto de vista dos antigos habitantes, éramos tolos, ou uma espécie de fura-greves. Todos nos odiavam de imediato".[825] Logo, é claro, as mulheres de Temlag adotaram as técnicas para evitar trabalho já dominadas por todos os demais. Assim, o próprio sistema realmente criava tufta, e não o contrário.
Às vezes, os prisioneiros concebiam métodos, próprios de tufta. Uma mulher polonesa trabalhava numa fábrica de processamento de peixe em Kolyma onde as únicas pessoas que alcançavam as cotas impossíveis eram aquelas que fraudavam. Os stakhanovistas eram simplesmente os "fraudadores mais hábeis": em vez de embalar todos os peixes, colocavam alguns pedaços num pote e jogavam fora o resto, fazendo isso "de modo tão hábil que o capataz nunca percebia".[826] Enquanto ajudava a construir um banheiro coletivo no campo, Valerii Frid foi apresentado a outro truque: como camuflar rachaduras na construção com musgo em vez de preenchê-las com concreto. Ele só lamentava uma coisa nesse recurso para poupar trabalho: "E se um dia eu tivesse que tomar banho nesse banheiro? Depois de um tempo, o musgo seca, e então o vento frio sopra pelas rachaduras".[827]
Evgeniya Ginzburg também descreveu como ela e sua então parceira lenhadora, Galya, finalmente arrumaram um jeito de atingir sua cota impossível de derrubada. Percebendo que uma de suas colegas sempre conseguia alcançar a cota, "apesar de trabalhar sozinha com um serrote de uma só empunhadura", elas lhe perguntaram como ela fazia:
Quando a gente a pressionou mais, ela olhou furtivamente de lado e então contou:
"Essa floresta está cheia de pilhas de madeira cortada por turmas de trabalho anteriores. Nunca ninguém contou quantas são".
"Ê, mas qualquer um pode ver que elas não foram cortadas recentemente..."
"A única maneira pela qual se consegue ver isso é pela cor mais escura da seção cortada. Se você corta uma pequena seção de cada ponta, parece que acabou de ser cortada. Então a gente as empilha em outro lugar, e já tem a 'cota' ".
Esse truque, que a gente batizou de "refrescar os sanduíches", salvou nossas vidas durante aquele período... Posso acrescentar que não sentimos o menor remorso...[828]
Thomas Sgovio também passou um tempo numa brigada de corte de madeira em Kolyma que, simplesmente, nunca fez absolutamente nada:
Durante a primeira parte de janeiro, meu parceiro Levin e eu não derrubamos uma única árvore. Nem qualquer dos outros na brigada de derrubada. Havia muitas pilhas de toras na floresta. Nós escolhíamos uma ou duas, limpávamos a neve de cima e sentávamos à beira do fogo. Nem era preciso limpar a neve, porque não houve uma única vez durante o primeiro mês em que um brigadeiro, capataz ou supervisor viesse checar a produção de nosso trabalho.[829]
Outros usavam contatos ou relações para achar um jeito de lidar com incumbências de trabalho impossíveis. Um prisioneiro de Kargopollag pagou outro - o pagamento assumiu a forma de um naco de toucinho - para que lhe ensinasse a cortar árvores de maneira mais eficaz, para poder assim alcançar a cota, e até descansar às tardes.[830] Outro prisioneiro com a incumbência de garimpar ouro em Kolyma, pagou um suborno para receber uma tarefa mais fácil, ficando numa pilha de escória em vez de em pé na água.[831]
Com maior freqüência, a tufta era organizada no nível das brigadas de trabalho, pois os brigadeiros eram capazes de adulterar o número de prisioneiros que haviam trabalhado. Um ex-zek descreveu como seu brigadeiro lhe permitiu declarar que havia completado 60% da cota, quando na verdade ele não era capaz de fazer praticamente nada.[832] Já outro prisioneiro relatou como seu brigadeiro negociou com as autoridades do campo para que as cotas de sua brigada fossem menores, já que todos os seus trabalhadores estavam morrendo.[833] Havia ainda outros brigadeiros que recebiam subornos, como Yuri Zorin, ele próprio um brigadeiro, admitiu: "Ali, nos campos, existem leis internas que podem não ser compreendidas por aqueles que vivem fora da zona", foi como ele diplomaticamente abordou o assunto.[834] Leonid Trus lembrou que seus brigadeiros de Norilsk simplesmente "decidiam qual de seus trabalhadores merecia melhor comida e paga que os outros", sem dar a mínima atenção para o que haviam conseguido efetivamente. Suborno e lealdades de clã determinavam a "produção" de um prisioneiro.
Do ponto de vista do zek, os melhores brigadeiros eram aqueles capazes de organizar tufta em grande escala. Trabalhando num canteiro nos Urais, ao norte, no final da década de 1940, Lev Finkelstein foi parar numa brigada cujo líder idealizara um sistema altamente complexo de fraude. De manhã, a equipe descia para o cânion. Os guardas ficavam em cima, na beirada, onde passavam o dia sentados em volta de fogueiras para se aquecer. Ivan, o brigadeiro líder, organizava então a tufta:
A gente sabia exatamente que partes do fundo do cânion eram visíveis lá de cima, e esse era nosso truque... nas partes visíveis do fundo, a gente ficava cortando com força o muro de pedra. A gente estava trabalhando e havia muito barulho - os guardas podiam tanto ver como ouvir. Então, Ivan andava ao longo da fila... e dizia, "Um para a esquerda" - e cada um de nós dava um passo à esquerda. Os guardas nunca perceberam.
Então a gente dava um passo à esquerda, outro, mais um, até que o último passasse para a zona invisível - a gente sabia onde ela ficava, havia um risco de giz no chão. Assim que entrávamos na zona invisível, relaxávamos, sentávamos no chão, pegávamos um machado e batíamos no chão perto da gente, de maneira relaxada, só para produzir o barulho. Então alguém mais se juntava, e outro, e assim por diante. Então Ivan dizia - "Você: para a direita!" - e o homem ia e se juntava ao ciclo de novo. Nenhum de nós nunca trabalhou nem meio expediente.
Em outro ponto em sua carreira no campo, Finkelstein também trabalhou cavando um canal. Ali, a tufta era diferente, mas não menos sofisticada: "O mais importante era mostrar que a turma havia preenchido sua cota". Pedia-se aos trabalhadores que trabalhassem, mas deixando intacto "um pequeno poste, uma pilha, mostrando que altura a gente tinha cavado naquele turno, que profundidade a gente tinha cavado". Embora as cotas fossem muito pesadas, "havia artistas, verdadeiros artistas, que conseguiam encompridar esse poste, a altura dele. É inacreditável, ele havia sido cortado da terra, portanto seria imediatamente visível se alguém falseasse sua altura, e no entanto esta era falseada da maneira mais artística. Então, é claro, a turma toda conseguia o jantar stakhanovista".[835]
Tais talentos especiais nem sempre eram necessários. Em certa ocasião, Leonid Trus foi incumbido de descarregar vagões de bens: “Nós simplesmente anotávamos que havíamos carregado os bens mais longe do que fora na verdade, digamos trezentos metros, em vez de dez metros". Por isso, eles recebiam melhores rações de comida. "A tufta era constante", disse ele a respeito de Norilsk; "sem ela, não teria havido absolutamente nada."
A tufta podia também ser organizada em escalões mais altos da hierarquia administrativa, por meio de cuidadosa negociação entre brigadeiros e definidores de cotas, os funcionários do campo cuja função era determinar quanto uma brigada devia ou não ser capaz de conseguir num dia. Definidores de normas, assim como os brigadeiros, eram muito inclinados a favoritismo e suborno - assim como a caprichos. Em Kolyma, no fim da década de 1930, Olga Adamova-Sliozberg viu-se designada brigadeira, chefe de uma brigada de mulheres cavadoras de trincheiras composta em sua maioria por prisioneiras políticas, todas enfraquecidas por longas sentenças na prisão. Quando, após três dias de trabalho, elas haviam completado apenas 3% da cota, ela foi até o definidor de cotas e implorou uma incumbência mais fácil. Depois de ouvir que a fraca brigada era composta de antigos membros do partido, seu rosto ficou sombrio.
"Ah, quer dizer que vocês são antigos membros do partido? Bom, se fossem prostitutas, eu ficaria satisfeita de deixá-las lavando janelas e fazê-las completar três vezes a cota. Quando membros do partido em 1929 decidiram me punir por ser uma kulak e me expulsaram, eu e meus seis filhos, de nossa casa, eu lhes disse: 'O que foi que as crianças fizeram afinal?' E me responderam 'E a lei soviética'. Então, aqui estão vocês agora, podem se aferrar à sua lei soviética e cavar nove metros cúbicos de barro por dia".[836]
Quem definia as cotas também estava ciente da necessidade de preservar a força de trabalho em certas épocas - quando, por exemplo, o campo tinha sido criticado por seu alto índice de mortalidade, ou quando o campo era um daqueles do extremo norte que só podiam conseguir trabalhadores de reposição uma vez a cada estação. Nessas circunstâncias, eles podiam de fato baixar a cota, ou fazer vista grossa quando ela não era preenchida. Essa prática era conhecida no campo como "esticar a cota" e era amplamente disseminada.[837] Um prisioneiro trabalhou numa mina que exigia que os prisioneiros cavassem 5,5 toneladas de carvão por dia, uma tarefa impossível. Sensato, o engenheiro-chefe da mina - um trabalhador livre - tentou descobrir quantos prisioneiros podiam cumprir a cota diária, e simplesmente disse a seus definidores de cotas que se baseassem nisso para suas decisões, fazendo um rodízio de trabalhadores entre todos os prisioneiros, de modo que todos recebessem mais ou menos a mesma quantidade de comida.[838]
O suborno também funcionava hierarquia acima, às vezes através de uma longa cadeia de pessoas. Aleksandr Klein estava num campo no final da década de 1940, numa época em que foram introduzidos pequenos salários para estimular zeks a trabalhar mais:
Depois de receber o dinheiro que havia ganhado (não era muito) o trabalhador deu uma propina ao brigadeiro. Isso era obrigatório: o brigadeiro então linha de dar propina ao capataz e ao definidor de cotas, que determinavam que cota havia sido preenchida pela brigada... além dessas, o capataz e os brigadeiros tinham que dar propinas ao naryadshchick, o atribuidor de tarefas. Os cozinheiros também pagavam propinas ao cozinheiro-chefe, e os trabalhadores nas casas de banhos, ao diretor da casa de banhos.
Em média, escreveu Klein, ele perdia metade de seu "salário". As conseqüências para aqueles que não pagassem podiam ser terríveis. Os internos que não tinham como pagar eram automaticamente rebaixados por terem conseguido uma porcentagem mais baixa da cola, e portanto recebiam menos comida. Brigadeiros que não queriam pagar sofriam coisas piores. Um deles, escreveu Klein, foi morto na sua (-ama. Sua cabeça foi esmagada com uma pedra - e os que estavam dormindo em volta dele nem acordaram.[839]
A tufta também afetou a manutenção de estatísticas em todos os níveis da vida do campo. Os comandantes do campo e os contadores do campo com freqüência alteravam números para se beneficiarem, conforme as dúzias de comunicações de furto mantidas nos arquivos da inspetoria. Qualquer um que tivesse uma conexão, mesmo que remota, com algum campo roubava comida, dinheiro, o que houvesse para roubar: em 1942, a irmã do antigo chefe da divisão de ferrovias dos campos em Dzhezkazgan, Casaquistão, foi acusada de ter "ilegalmente removido alguns produtos alimentícios", e estar envolvida em especulação. Num lagpunkt em 1941, o comandante do campo e o contador chefe "usaram seu status profissional" para criar uma falsa conta, permitindo-lhes drenar os fundos do campo. O comandante roubou 25 mil rublos, o contador, 18 mil, uma fortuna em termos soviéticos. Mas as quantias não eram sempre altas assim: um grosso processo contra Siblag, contendo relatórios da promotoria de 1942 a 1944, inclui, entre outras coisas, uma longa série de cartas contando uma forte discussão sobre um empregado do campo que supostamente teria roubado duas travessas de ferro, uma chaleira esmaltada, um cobertor, um colchão, dois lençóis, dois travesseiros e duas fronhas.[840]
Do roubo, não havia um salto moral tão grande assim para contar lorotas a respeito das estatísticas de produção. Se a tufta começava no nível da brigada, e era desenvolvida no nível do lagpunkt, no período em que os contadores nos campos maiores estavam calculando estatísticas totais de produção os números já estavam muito distantes da realidade e davam, como veremos, idéias muito enganadoras sobre a real produtividade dos campos, que era provavelmente muitíssimo baixa.
Na verdade, é quase impossível saber como encarar os dados de produção do Gulag, tal o grau de mentira e fraude. Por essa razão, fico sempre desorientada diante dos relatórios anuais cuidadosamente detalhados do Gulag, como o produzido em março de 1940. Com mais de 124 páginas, esse impressionante documento traz os dados de produção de dúzias de campos, listando cuidadosamente cada um por especialidade: os campos de madeira, os campos fabris, as minas, as fazendas coletivas. O relatório é acompanhado de muitos gráficos e cálculos, e várias espécies diferentes de dados. Como conclusão, o autor do relatório declarou confiante que o valor total da produção do Gulag em 1940 foi de 2.659.500 milhões de rublos - um valor que deve, nessas circunstâncias, ser considerado completamente sem significado.[841]
Pridurki: cooperação e colaboração
A tufta não era o único método que os prisioneiros usavam para transpor a distância entre as cotas impossíveis que deviam cumprir e as impossíveis rações de comida que recebiam. Também não era a única ferramenta usada pelas autoridades para cumprir suas próprias metas de produção impossíveis. Havia outras maneiras de convencer os prisioneiros a cooperar, como Isaak Filshtinskii brilhante e memoravelmente descreve no primeiro capítulo de suas memórias, Marchamos sob escolta. Filshtinskii começa sua história num de seus primeiros dias em Kargopollag, o campo de corte de madeira e construção que fica a norte de Arkhangelsk. Recém-chegado, encontrou outro novato, uma jovem mulher. Ela fazia parte de um contingente feminino que havia sido temporariamente agregado à sua brigada. Percebendo sua "aparência tímida e assustada" e suas roupas de campo esfarrapadas, ele se deslocou para perto dela na fila de prisioneiros. Sim, disse ela, respondendo à sua pergunta, "cheguei ontem numa transferência da prisão". Começaram a conversar. Ela tinha o que Filshtinskii descreveu como "para aquela época, uma história pessoal bastante banal". Era artista, tinha 26 anos de idade. Era casada e tinha um filho de três anos. Tinha sido presa porque "dissera isso e aquilo para uma artista amiga, e a amiga a delatara". Como o pai dela também havia sido preso em 1937, ela foi logo presa por promover propaganda anti-soviética.
Enquanto falavam, a mulher, ainda espiando em volta com olhar assustado, segurou no braço de Filshtinskii. Tais contatos eram proibidos, mas felizmente os guardas não perceberam. Quando chegaram ao local de trabalho, os homens e as mulheres foram divididos, mas na volta para casa a jovem artista encontrou Filshtinskii de novo. Durante a semana e meia seguinte, eles caminharam para lá e para cá pela floresta juntos, ela contando-lhe de suas saudades de casa, do marido que a abandonara, do filho que talvez ela não visse mais. Então a brigada de mulheres foi separada da brigada dos homens em definitivo, e Filshtinskii perdeu contato com sua amiga.
Passaram-se três anos. Era um dia quente - coisa rara no extremo norte - quando Filshtinskii viu de novo a mesma mulher. Desta vez ela estava vestindo "uma jaqueta nova, bem ajustada a seu tamanho e a sua figura". Em vez do boné esfarrapado de prisioneiro, usava uma boina. Em vez das botas gastas de prisioneiro, usava sapatos. Seu rosto estava mais redondo, sua aparência era mais vulgar. Quando abriu a boca, falou na pior gíria possível, e seu linguajar "demonstrava longos e duradouros laços com o mundo do crime daquele campo". Ao ver Filshtinskii, uma expressão de horror tomou conta de seu rosto. Ela virou-se e foi embora, "quase correndo".
Quando Filshtinskii a encontrou pela terceira e última vez, a mulher estava vestida no que lhe pareceu ser "a última moda da cidade". Estava sentada atrás de uma escrivaninha de chefe, e já não era mais uma prisioneira. Estava agora casada com o major L, um administrador de campo famoso por sua crueldade. Ela se dirigiu a Filshtinskii rudemente, e não estava mais constrangida de falar com ele. A metamorfose tinha sido completa: ela passara de prisioneira a colaborado-ra, e depois de colaboradora a chefe de campo. Havia primeiro adotado a gíria do mundo do crime, depois sua vestimenta e seus hábitos. Seguindo esse caminho, tinha finalmente conseguido o status privilegiado das autoridades do campo. Filshtinskii sentiu que "não tinha mais nada a lhe dizer" - embora, ao deixar a sala, ele tenha se voltado de novo para ela. Seus olhos se encontraram por um instante, e ele achou ter percebido nos olhos dela um lampejo de "ilimitada melancolia" e um comecinho de choro.[842]
O destino desta conhecida de Filshtinskii pode ser reconhecido por aqueles leitores familiarizados com os sistemas de outros campos. Ao descrever os campos nazistas, o sociólogo alemão Wolfgang Sofsky escreveu que "o poder absoluto c uma estrutura, não uma posse". Com isso, queria dizer que o poder nos campos alemães não era uma simples questão de uma pessoa controlar a vida de outras. Ao contrário, "transformando um pequeno número de vítimas em cúmplices, o regime apagou a distinção entre pessoal e internos".[843] Embora a brutalidade que predominava no Gulag fosse diferente, em sua organização e em seus eleitos, os campos nazistas e soviéticos eram semelhantes nesse ponto: o regime soviético também fez o mesmo uso dos prisioneiros, tentando alguns a colaborarem com o sistema repressivo, elevando-os em relação aos outros e garantindo-lhes privilégios que lhes permitiram, por sua vez, ajudar as autoridades a exercerem seu poder. Não é por acaso que Filshtinskii concentrou-se, em sua história, no guarda-roupa cada vez melhor de sua conhecida: nos campos, onde tudo estava em crônica escassez, pequenas melhoras no vestir ou na comida ou nas condições de vida eram suficientes para persuadir os prisioneiros a cooperar, a lutar para melhorar. Esses prisioneiros que eram bem-sucedidos eram chamados depridurki, ou "de confiança". E depois que obtinham esse status, sua vida no campo melhorava numa miríade de pequenas maneiras.
Soljenitsin, que retoma várias vezes a questão dos presos de confiança, descreve sua obsessão por pequenos privilégios e favores em O Arquipélago Gulag:
Por causa do habitual e mentalmente estreito apego da espécie humana à casta, logo se tornou inconveniente para os presos de confiança dormirem no mesmo alojamento como internos comuns, nos mesmos beliches, ou mesmo, na verdade, em qualquer beliche que fosse, ou qualquer lugar exceto uma cama, ou comer na mesma mesa, despir-se no mesmo banheiro, ou vestir a mesma roupa de baixo que os internos haviam suado e deixado puída...
Embora reconhecendo que "todas as classificações neste mundo careciam de limites precisos", Soljenitsin fez o melhor possível para descrever a hierarquia dos presos de confiança. No nível mais inferior, explica ele, estavam os "trabalhadores de confiança": os presos engenheiros, projetistas, mecânicos e geólogos. Ranqueados logo acima deles vinham os prisioneiros capatazes, planejadores, definidores de cotas, superintendentes de construção, técnicos. Ambos esses grupos tinham de fazer fila e ser contados de manhã, e marchavam para o trabalho em comboio. Por outro lado, não faziam trabalho braçal e portanto não estavam "profundamente exaustos" no final do dia; isso os tornava mais privilegiados do que os prisioneiros em trabalhos gerais. Os "presos mistos" eram ainda mais privilegiados. Eram prisioneiros que nunca deixavam a zona durante o dia. Segundo Soljenitsin:
Um trabalhador nas oficinas do campo tinha uma vida muito melhor e mais fácil do que o interno em trabalhos gerais: ele não tinha de sair para lazer fila, e isso significava que ele podia levantar e tomar o café mais tarde; não unha de marchar em comboio para o local de trabalho e na volta; havia menos rigor, menos frio, menos energia gasta; além disso, seu expediente terminava mais cedo; e seu trabalho ou era num local aquecido ou num local em que o aquecimento estava à mão... "Alfaiate" num campo soa como e quer dizer algo como "Professor assistente" aqui fora na liberdade.[844]
Na hierarquia dos presos mistos, os de nível mais baixo na verdade faziam trabalho braçal: atendentes da casa de banhos, trabalhadores na lavanderia, lavadores de pratos, foguistas e ordenanças, assim como aqueles que trabalhavam nas oficinas do campo, consertando roupas, sapatos e maquinaria. Num nível acima desses trabalhadores em áreas fechadas estavam os "genuínos" trabalhadores mistos, que não faziam um trabalho braçal qualquer: os cozinheiros, cortadores de pão, funcionários, médicos, enfermeiras, médicos assistentes, barbeiros, ordenanças veteranos, atribuidores de tarefas, contadores. Em alguns campos, havia até prisioneiros empregados como provadores de comida oficiais.[845] Os deste último grupo, escreve Soljenitsin, eram "não apenas bem alimentados, vestiam boas roupas, estavam livres de levantar peso e de problemas nas costas, como tinham grande poder sobre o que era mais necessário a um ser humano, e conseqüentemente tinham poder sobre as pessoas".[846] Esses eram os presos de confiança que tinham o poder de decidir que tipo de trabalho os presos comuns iriam fazer, quanta comida tinham de receber, e se deviam ter tratamento médico ou não - em resumo, se iriam viver ou morrer.
Diferentemente dos presos privilegiados nos campos nazistas, os prisioneiros de confiança dos campos soviéticos não precisavam pertencer a uma categoria racial particular. Em tese, qualquer um podia ascender ao status de preso de confiança - do mesmo modo que qualquer um podia se tornar um guarda de prisão - e havia muita flutuação entre os dois grupos. Embora em princípio prisioneiros comuns pudessem se tornar prisioneiros de confiança, e em princípio os prisioneiros de confiança pudessem ser rebaixados ao nível de prisioneiros comuns, havia regras complexas governando esse processo.
Essas regras diferiam muito de campo para campo e de época para época, embora parecesse de fato haver algumas poucas convenções que se mantinham mais ou menos constantes ao longo do tempo. Mais importante, era mais fácil tornar-se um prisioneiro de confiança se o prisioneiro fosse classificado como um prisioneiro criminoso "socialmente próximo", e não como um preso político "socialmente perigoso". Como a intrincada hierarquia moral do sistema soviético de campos decretou que os "socialmente próximos" - não só os criminosos profissionais, mas os ladrões comuns, vigaristas, assassinos e estupradores - eram mais aptos para serem reabilitados e se tornarem bons cidadãos soviéticos, eles automaticamente estavam mais próximos de receber o status de prisioneiro de confiança. E num certo sentido, os ladrões, que não tinham receio de usar brutalidade, eram os prisioneiros de confiança ideais. "Por toda parte e a toda hora", escreveu um preso político acidamente, "esses presos desfrutavam de uma confiança quase ilimitada da administração do campo e da prisão, e eram designados para aquelas ocupações leves, como trabalhar em escritórios, lojas da prisão, cantinas, salas de banho, barbearias e assim por diante".[847] Como disse, este era particularmente o caso durante o final da década de 1930 e ao longo do período da guerra, os anos em que gangues criminosas reinaram soberanas nos campos soviéticos. Mesmo mais tarde - Filshtinskii escrevia sobre o final dos anos 1940 - a "cultura" dos prisioneiros de confiança era difícil de diferenciar da cultura dos criminosos profissionais.
Mas os criminosos prisioneiros de confiança também apresentavam um problema para as autoridades do campo. Eles não eram "inimigos" - mas tampouco eram instruídos. Em muitos casos não eram sequer alfabetizados, e não queriam ser: mesmo quando os campos montavam classes de alfabetização, eles costumavam não se dar ao trabalho de freqüentá-las.[848] Isso deixou os chefes do campo sem outra alternativa, escreveu Lev Razgon, a não ser empregar os presos políticos: "O plano exerceu por si só uma pressão implacável que não admitia desculpas. Sob a sua influência mesmo os mais zelosos chefes de campo que expressavam o maior ódio dos prisioneiros contra-revolucionários eram obrigados a colocar prisioneiros políticos para trabalhar".[849]
De fato, a partir de 1939, quando Beria substituiu Yezhov - e simultaneamente iniciou uma tentativa de tornar o Gulag lucrativo - as regras nunca eram claras de um jeito ou de outro. As instruções de Beria em agosto de 1939, embora explicitamente proibissem os comandantes de campo de usar presos políticos em qualquer posto administrativo, na verdade, abriam exceções. Médicos qualificados deviam ser usados em sua capacitação profissional e, sob circunstâncias especiais, também os prisioneiros sentenciados por alguns dos crimes "menores" do Artigo 58 - Seções 7, 10, 12 e 14, que incluíam a "agitação anti-soviética" (contar piadas anti-regime, por exemplo) e a "propaganda anti-soviética". Os sentenciados por "terrorismo" ou "traição à pátria", por outro lado, não deviam em tese ser empregados em nenhuma função exceto a de trabalhadores braçais.[850] Quando a guerra eclodiu, até essa instrução foi revertida. Stalin e Molotov enviaram um circular especial autorizando a Dalstroi, "em vista da situação excepcional" a "fechar acordos individuais por um determinado período de tempo com engenheiros, técnicos e trabalhadores administrativos que haviam sido mandados para trabalhar em Kolyma".[851]
Mesmo assim, os administradores de campo que tivessem presos políticos demais em tarefas de alto nível corriam o risco de ser repreendidos, e um grau de ambivalência sempre perdurou. De acordo tanto com Soljenitsin como com Razgon, acontecia às vezes portanto de prisioneiros políticos receberem "bons" empregos em áreas fechadas, como os de contador ou guarda-livros - mas apenas temporariamente. Uma vez a cada ano, quando as equipes de inspeção de Moscou estavam sendo aguardadas, eles eram demitidos de novo. Razgon desenvolveu uma teoria sobre esse procedimento:
Um bom chefe de campo esperava a comissão chegar, deixava que fizesse o trabalho dela, e removia quem tivesse de ser removido. Não era um processo que demandasse muito tempo e qualquer um que não tivesse sido removido iria permanecer por longo tempo - por um ano, até o mês de dezembro seguinte, ou no mínimo por meio ano. Um chefe de campo menos capaz, ou mais colo, removia tais pessoas antecipadamente de modo a poder relatar que estava tudo em ordem. Os piores chefes de campo, aqueles que tinham menos experiência, conscienciosamente cumpriam as ordens de seus superiores e não permitiam que pessoas condenadas pelo Artigo 58 trabalhassem com outro instrumento a não ser a picareta e o carrinho de mão, o serrote e o machado. Esses chefes de campo eram os menos bem-sucedidos. Eram rapidamente demitidos.[852]
Na prática, as regras simplesmente eram insensatas. Como prisioneiro político em Kargopollag, Filshtinskii estava estritamente proibido de freqüentar um curso de tecnologia florestal para prisioneiros. No entanto, tinha permissão para ler os livros do curso, e depois de passar no exame, estudando por conta própria, podia também trabalhar como especialista em florestamento.[853] Enquanto isso, Y K. Yasnyi, também prisioneiro político no final da década de 1940, trabalhava como engenheiro em Vorkuta sem que isso causasse qualquer controvérsia.[854] Nos anos pós-guerra, à medida que os grupos nacionais mais fortes começaram a causar impacto no campo, a soberania dos criminosos passou a ser com freqüência suplantada por aquela dos prisioneiros mais bem organizados, geralmente ucranianos e baltos. Os que estavam nos melhores postos - o capataz e os supervisores - podiam cuidar e de fato cuidavam de si mesmos, e distribuíam outros cargos bons para prisioneiros políticos que fossem seus conterrâneos.
Mas em nenhum momento os prisioneiros tiveram poder total de distribuir cargos de confiança. A administração do campo dava a última palavra a respeito de quem iria se tornar prisioneiro de confiança, e a maioria dos comandantes do campo inclinava-se a dar os trabalhos de confiança mais amenos àqueles que se dispunham a colaborar mais abertamente - em outras palavras, a delatar. Aliás, é difícil saber quantos informantes o sistema empregava. Embora o Estado russo tenha disponibilizado o resto dos arquivos da administração do Gulag, foram mantidos inacessíveis os documentos sobre a "Terceira Divisão", a divisão do campo responsável pelos informantes. O historiador russo Viktor Berdinskikh, em seu livro sobre Vyatlag, cita alguns números sem nomear a fonte: "Na década de 1920, a liderança da OGPU se propôs a tarefa de ter não menos do que 25% de informantes entre os prisioneiros do campo. Nas décadas de 1930 e 40, esse número planejado foi baixado para 10%". Mas Berdinskikh também concorda que uma aferição real dos números é "complicada" sem um melhor acesso aos arquivos.[855]
Outro aspecto é que não há muitos memorialistas que admitam abertamente terem sido informantes, embora alguns admitam terem sido recrutados. Claramente, prisioneiros que atuaram como informantes na prisão (ou mesmo antes de sua detenção) chegavam ao campo com uma notificação de sua disposição para cooperar já em seus prontuários. Outros, ao que parece, eram abordados logo após sua chegada ao campo, quando ainda estavam extremamente desorientados e com medo. Em seu segundo dia no campo, Lèonid Trus foi levado até o comandante - conhecido na gíria do campo como o kum, o recrutador de informantes -, que lhe pediu para cooperar. Sem entender de fato o que lhe estava sendo pedido, ele recusou. Isso, ele acha, foi a razão pela qual foi inicialmente incumbido de um trabalho braçal difícil, uma tarefa de baixo status segundo os padrões do campo. Berdinskikh também cita a partir de suas próprias entrevistas e correspondência com antigos prisioneiros:
No primeiro dia na zona, os recém-chegados eram chamados diante do kum. Eu também fui chamado para me apresentar ao kum. Lisonjeiro, ardiloso, adulador, ele aproveitou o fato de o acidente de carro pelo qual fui sentenciado (dez anos no campo, mais três anos sem direitos legais plenos) não ser vergonhoso (não era roubo, assassinato ou algo semelhante) e propôs que eu fosse informante - que virasse um delator. Eu educadamente recusei e não assinei a proposta do kum.
Embora o kum o xingasse, esse prisioneiro não foi mandado para as celas de castigo. Ao voltar para seu alojamento, viu que ninguém queria chegar perto dele: sabendo que tinham lhe proposto que fosse delator, vendo que não tinha apanhado nem sido punido, os outros prisioneiros passaram a supor que ele havia aceitado.[856]
Talvez a mais famosa exceção à quase universal recusa em admitir ter sido informante seja, de novo, Alexander Soljenitsin, que descreve exaustivamente seu flerte com as autoridades do campo. Ele data seu primeiro momento de fraqueza nos primeiros dias no campo, quando ainda lutava para se acostumar à sua abrupta perda de status. Quando convidado a falar com o comandante, foi introduzido numa "pequena e bem mobiliada sala" onde um rádio tocava música clássica. Depois de educadamente perguntar-lhe se estava confortável e bem ajustado à vida do campo, o comandante perguntou-lhe: "Você ainda é uma pessoa soviética?" Depois de hesitar, Soljenitsin concordou que era.
Mas embora confessar ser "soviético" fosse equivalente a confessar que desejava colaborar, Soljenitsin inicialmente declinou o convite para informar. Foi então que o comandante mudou de tática. Ele desligou a música e começou a falar com Soljenitsin sobre os criminosos do campo, perguntando como ele se sentiria se sua mulher em Moscou fosse atacada por algum que tivesse conseguido fugir. Finalmente, Soljenitsin concordou que se ouvisse algum deles planejando uma fuga, ele iria contar. Ele assinou uma petição, prometendo relatar quaisquer notícias de fuga às autoridades, e escolheu um pseudônimo conspiracional: Vetrov. "Essas seis letras", escreve ele, "estão gravadas em vergonhosos sulcos na minha memória."[857]
Por sua própria iniciativa, Soljenitsin nunca chegou a delatar. Quando preso de novo em 1956, ele diz que se recusou a assinar qualquer coisa. Mesmo assim, sua promessa inicial foi suficiente para mantê-lo, enquanto esteve no campo, em um dos postos de confiança, para que morasse nos quarteirões especiais para prisioneiros de confiança, para que pudesse se vestir e se alimentar ligeiramente melhor do que os outros presos. Essa experiência "me encheu de vergonha", escreveu ele - e sem dúvida provocou seu desdém por todos os prisioneiros de confiança.
Na época de sua publicação, a descrição que Soljenitsin fez dos prisioneiros de confiança do campo era controvertida - e ainda é. Como sua descrição dos hábitos de trabalho dos internos, ele também acendeu um debate no mundo dos sobreviventes dos campos e dos historiadores, que prossegue até hoje. Todos os memorialistas clássicos e mais amplamente lidos foram prisioneiros de confiança num momento ou noutro: Evgeniya Ginzburg, Lev Razgon, Variam Shalamov, Soljenitsin. Pode muito bem ser, como alguns afirmam, que a maior parte de todos os presos que sobreviveram a longas sentenças tenham sido prisioneiros de confiança em algum ponto de sua trajetória no campo. Uma vez encontrei um sobrevivente que me contou sobre uma reunião de velhos amigos de um campo, da qual ele participou. O grupo dedicava-se a reminiscências, e riam de velhas histórias do campo, quando um deles olhou em volta da sala e compreendeu o que era que os mantinha juntos, o que tornava possível para eles rir do passado em vez de chorar: "Todos nós havíamos sido pridurki".
Não há dúvida de que muitas pessoas sobreviveram porque foram capazes de conseguir postos de confiança em locais fechados, escapando assim do horror do trabalho geral. Mas será que isso sempre levou a uma colaboração ativa com o regime do campo? Soljenitsin sentia que sim. Mesmo aqueles prisioneiros de confiança que não eram informantes podiam, ele alegou, ainda ser descritos como colaboradores. "Que posição de prisioneiro de confiança", pergunta ele, "não envolvia de fato dar crédito aos chefes e participar do sistema geral de compulsão?"
Às vezes a colaboração era indireta, explicou Soljenitsin, mas mesmo assim prejudicial. Os "trabalhadores de confiança" - definidores de cotas, guarda-livros, engenheiros - não torturavam de fato pessoas, mas todos eles participaram de um sistema que forçou prisioneiros a trabalharem até morrer. O mesmo era verdade no que se refere aos "presos de confiança mistos": datilografes vazavam ordens do comando do campo. Cada cortador de pão que era capaz de roubar uma fatia para si pode ser acusado de privar um trabalhador zek na floresta de sua porção integral, escreveu Soljenitsin: "Quem foi que subtraiu peso do pão de Ivan Denisovich? Quem roubou seu açúcar umedecendo-o com água? Quem impediu que banha, carne, os bons cereais fossem parar na panela comum?"[858]
Outros se sentiam do mesmo jeito. Uma ex-zek escreveu que tinha deliberadamente ficado com a incumbência do trabalho geral por nove anos a fim de evitar cair nos relacionamentos corruptos que eram necessários para permanecer num posto de confiança.[859] Dimitri Panin (que, como escrevi, conheceu Soljenitsin nos campos e aparece em seu romance O primeiro círculo) também confessou que ficou muito embaraçado com as duas semanas em que pegou uma tarefa leve na cozinha do campo: "Pior ainda era a percepção de que eu estava roubando comida de outros prisioneiros. Eu tentava me confortar pensando que quando um homem é reduzido à condição em que eu estava então, ele não se preocupa com ninharias; mas isso não aliviava meu sentimento de ter feito uma coisa errada, e quando eles me expulsaram da cozinha, eu na verdade fiquei feliz."[860]
Frontalmente oposto a Soljenitsin - como muitos outros o roram e são - estava Lev Razgon, um escritor que se tornou, nos anos 1990, uma autoridade quase igualmente grande sobre o Gulag dentro da Rússia. Quando estava nos campos, Razgon foi um definidor de cotas, um dos mais altos postos de confiança. Razgon argumentou que, para ele e para muitos outros, tornar-se um prisioneiro de confiança era simplesmente uma questão de escolher viver. Particularmente nos anos da guerra, "era impossível sobreviver se você estivesse derrubando árvores". Só lavradores sobreviviam: "aqueles que sabiam como afiar e usar ferramentas, e aqueles a quem era dado trabalho agrícola conhecido para fazer, que podiam compor sua dieta com batatas roubadas, raízes ou qualquer outra espécie de legumes".[861]
Razgon não acredita que fosse imoral escolher a vida, nem que aqueles que fizeram isso "não eram melhores que as pessoas que os prenderam". Ele também contestou o retrato venal que Soljenitsin fez dos prisioneiros de confiança. Assim que ficavam em postos mais confortáveis, muitos prisioneiros de confiança ajudavam rotineiramente outros prisioneiros:
Não é que eles fossem indiferentes aos Ivan Denisoviches que iam lá fora derrubar madeira ou que se sentissem alheios a eles. Simplesmente não podiam ajudar aqueles que não sabiam fazer nada além do trabalho braçal. E mesmo entre esses últimos eles procuraram e acharam pessoas com os mais inesperados talentos: aqueles que sabiam como fazer arcos e flechas e barricas eram mandados para o posto avançado onde eram produzidos esquis; aqueles que sabiam fazer cestos começaram a fabricar poltronas, cadeiras e sofás de vime para os chefes.[862]
Assim como havia bons guardas e maus guardas, Razgon argumenta, também havia ali bons e maus prisioneiros de confiança, pessoas que ajudavam outras pessoas, pessoas que as machucavam. E no final das contas, eles não estavam mais seguros do que as pessoas que vinham abaixo deles na hierarquia. Se não estavam sendo obrigados a trabalhar até morrer, sabiam que isso logo poderia acontecer. A qualquer momento, o chefe de algum campo distante poderia ordenar uma transferência para levá-los embora até outro campo, outro posto, outro destino mortal.
Sanchast: hospitais e Médicos
Dos vários absurdos encontrados na vida do campo, talvez o mais estranho fosse também um dos mais mundanos: o médico do campo. Cada lagpunkt tinha um. Se não houvesse suficientes médicos treinados, então no mínimo o lagpunkt deveria ter uma enfermeira ou feldsher, um médico assistente que poderia ter recebido ou não treinamento médico. Como anjos da guarda, o pessoal médico tinha o poder de recolher os internos do frio, depositá-los em hospitais de campo limpos, onde poderiam ser alimentados e cuidados para retornarem a vida. Todos os demais - os guardas, o comandante do campo, os brigadeiros _ constantemente diziam aos zeks para trabalhar mais duro. Só o médico não era obrigado a fazer isso. "Só o médico", escreveu Varlam Shalamov, "tinha a autoridade de poupar o preso de sair lá fora no meio da branca neblina do inverno até chegar à parede de pedra melada da mina para ficar lá muitas horas do dia."[863]
Alguns internos eram literalmente salvos graças a algumas poucas palavras de um médico. Ardendo de febre, reduzido ao esqueleto, torturado por fome, Lev Kopelev recebeu de uma médica o diagnóstico de que estava com pelagra, uma infecção intestinal, e um resinado muito forte. "Estou mandando você para o hospital", declarou ela. Não foi uma viagem fácil do lagpunkt até o hospital central do campo, o sanchast. Kopelev abriu mão de todos os seus pertences - partindo do pressuposto de que todos os pertences do campo devem permanecer no campo -, marchou por "poças fundas e geladas" e se amontoou num carro de bois com outros prisioneiros doentes e moribundos. A viagem foi infernal. Mas quando ele acordou em seu novo ambiente, encontrou sua vida transformada:
Numa agradável sonolência, encontrava-me num quarto de hospital claro e limpo, num beliche coberto com um lençol incrivelmente limpo... O doutor era um homem pequeno, de rosto arredondado, cujo bigode cinza e cujos óculos de lentes grossas lhe davam um ar de bondade e preocupação. "Em Moscou", ele perguntou, "você conheceu uma crítica literária chamada Motylova?"
"Tamara Lazarevna Motylova? É claro!" "É minha sobrinha."
Tio Borya, o nome pelo qual vim a conhecê-lo, olhou para o termômetro. "Oh, oh! Dê-lhe banho", ele disse a seu assistente. "Mande ferver suas roupas. Ponha-o na cama".
Ao acordar de novo, Kopelev descobriu que haviam trazido para ele seis pedaços de pão: "Três pedaços de pão preto e – miraculosa visão! Três pedaços de pão branco! Comi-os com avidez, os olhos cheios de lágrimas". Melhor ainda, recebeu rações antipelagra: nabos e cenouras, além de levedura e mostarda para passar no pão. Ele foi pela primeira vez autorizado a receber pacotes e dinheiro de casa, e com isso conseguiu comprar batatas cozidas, leite e makhorka, a forma mais barata de tabaco. Tendo sido, ao que parecia, condenado a uma morte em vida, ele compreendeu que estava agora destinado a ser salvo.[864]
Essa era uma experiência comum. "Paraíso" é como Evgeniya Ginzburg chamou o hospital onde ela trabalhou em Kolyma.[865] "Nos sentíamos como reis", escreveu Thomas Sgovio a respeito dos "alojamentos de recuperação" no lagpunkt de Srednikan, onde ele recebeu "um pãozinho fresco e doce de manhã".[866] Outros rememoram com espanto os lençóis limpos, a bondade das enfermeiras, os extremos a que chegavam os médicos para salvar seus pacientes. Um prisioneiro conta a história de um médico que, arriscando a própria posição, deixou o campo ilegalmente para providenciar os medicamentos necessários.[867] Tatyana Okunevskaya escreveu que seu médico "trazia os mortos de volta à vida".[868] Vadim Aleksandrovich, ele próprio um médico de campo, lembrou que: "O doutor e seu assistente nos campos são, se não deuses, então semideuses. Sobre eles paira a possibilidade de alguns poucos dias livres do trabalho mortífero, e mesmo a possibilidade de ser mandado para um sanatório".[869]
Janos Rozsas, um húngaro de dezoito anos que foi parar no mesmo campo de Alexander Soljenitsin depois da guerra, escreveu um livro intitulado Irmã Dusya, em homenagem à enfermeira do campo que ele acredita ter salvado sua vida. A irmã Dusya do título não apenas conversou com ele, convencendo-o de que era impossível que ele morresse estando sob os cuidados dela, mas ainda negociou a própria ração de pão a fim de obter leite para Rozsas, que só conseguia digerir pouquíssima comida. Ele foi-lhe grato pelo resto de sua vida: "Eu evoco em minha mente dois rostos amados, o distante rosto de minha mãe natural e o rosto da irmã Dusya. Eles são espantosamente semelhantes... Disse a mim mesmo que se viesse algum dia a esquecer o rosto de minha mãe, eu só precisaria pensar no rosto da irmã Dusya, e por intermédio dela eu sempre veria minha mãe".[870]
A gratidão de Rozsas pela irmã Dusya acabou transferida para um amor pela língua e pela cultura russas. Quando encontrei Rozsas em Budapeste meio século após sua libertação, ele ainda falava um russo elegante, fluente, ainda mantinha contato com amigos russos, e orgulhosamente me contou onde poderia encontrar as referências à sua história em O Arquipélago Gulag e nas memórias da esposa de Soljenitsin.[871]
Mesmo assim havia, como muitos também notaram, outro paradoxo atuante nos campos. Quando um prisioneiro com escorbuto leve estava na brigada de trabalho, ninguém dava atenção aos seus dentes bambos ou aos furúnculos em suas pernas. Suas queixas iriam despertar escárnio derrisório nos guardas, ou coisa pior. Se ele virasse um clokhodyaga morrendo num beliche do campo, seria motivo de riso. Mas quando sua temperatura finalmente alcançasse o nível exigido ou sua doença atingisse o ponto crítico - quando ele se "qualificasse" como doente, em outras palavras -, o mesmo homem moribundo receberia imediatamente "rações para escorbuto" ou "rações para pelagra", além de todos os cuidados médicos que o Gulag pudesse oferecer.
Esse paradoxo estava embutido no sistema. Desde o início da existência dos campos, prisioneiros doentes eram tratados de modo diferente. Organizavam-se brigadas de inválidos, para prisioneiros que não podiam mais fazer trabalho braçal duro, isso já em janeiro de 1931.[872] Mais tarde, haveria alojamentos para inválidos, e até lagpunkts só para inválidos, dedicados a tratar de prisioneiros enfraquecidos para trazê-los de volta à vida. Em 1933, Dmitlag organizou "lagpunkts de recuperação" projetados para abrigar 3.600 prisioneiros.[873] Documentos oficiais do Gulag descrevem cuidadosamente as rações adicionais para prisioneiros hospitalizados: alguns poucos produtos de carne, chá de verdade (diferente do sucedâneo oferecido aos presos comuns), cebolas para prevenir escorbuto e, inexplicavelmente, pimenta e folhas de louro. Mesmo que, na prática, a comida adicional só chegasse a "um pouco de batatas ou ervilhas secas (só meio cozidas para preservar as vitaminas) ou chucrute", já se tratava, comparada com as rações normais, de um luxo.[874]
Gustav Herling achou tão estranho esse contraste entre as condições assassinas da vida do campo e os esforços que os médicos do campo investiam para reviver os prisioneiros cuja saúde tivesse sido muito destruída, que ele concluiu que devia existir na União Soviética um "culto ao hospital":
Havia algo incompreensível no fato de que no momento em que um prisioneiro deixava o hospital ele se tornava de novo um prisioneiro, mas enquanto ele havia permanecido imóvel numa cama limpa todos os direitos de um ser humano, embora sempre com a exceção da liberdade, lhe haviam sido concedidos. Para um homem não habituado aos violentos contrastes da vida soviética, os hospitais de campos pareciam igrejas que oferecem um santuário para proteger de uma todo-poderosa Inquisição.[875]
George Bien, um prisioneiro húngaro que foi mandado para um bem aparelhado hospital em Magadan, também teve dificuldade de entender: "Eu perguntei a mim mesmo por que eles estavam tentando me salvar quando dava a impressão de que eles só queriam minha morte por tortura - mas a lógica havia deixado de existir havia muito tempo".[876]
Com certeza os chefes do Gulag em Moscou encaravam os problemas causados pelo grande número de prisioneiros inválidos "incapazes de trabalhar" como muito sérios. Embora a existência deles não fosse de forma alguma nova, o problema ficou agudo depois da decisão de Stalin e Beria em 1939 de eliminar a política de "soltura condicional precoce" para inválidos: de repente, os doentes não podiam mais ser facilmente descartados das listas de trabalho. Isso, sem falar de outras conseqüências, teria forçado os comandantes dos campos a voltar sua atenção para os hospitais dos campos. Um inspetor fez um cálculo preciso do tempo e do dinheiro perdidos com doenças: "De outubro de 1940 até a primeira metade de março de 1941, houve 3.472 casos de ulcerações por frio, graças aos quais foram perdidos 42.334 dias de trabalho. Dois mil e quatrocentos prisioneiros ficaram fracos demais para poder trabalhar". Outro inspetor relatou que no mesmo ano, dos 2.398 prisioneiros nos campos de trabalho da Criméia, 860 tinham apenas uma limitada capacidade de trabalho, e 273 estavam totalmente incapacitados de trabalhar. Alguns estavam em camas de hospital, outros, por falta de camas, estavam sendo mantidos em celas de prisão, provocando um atraso em todo o sistema.[877]
Mesmo assim, como tudo mais no Gulag, não havia nenhuma medida específica a respeito da necessidade de curar os doentes. Em alguns campos, parece que os lagpunkts especiais para inválidos eram criados em grande parte para evitar que os inválidos derrubassem as estatísticas de produção do campo. Esse era o caso em Siblag, que contava 9 mil inválidos e 15 mil "semi-inválidos" entre seus 63 mil prisioneiros em 1940 e 1941 - mais de um terço. Quando esses prisioneiros enfraquecidos eram removidos de locais de trabalho importantes e substituídos por brigadas de novos trabalhadores "frescos", as cifras de produção do campo magicamente subiam.[878]
A pressão para cumprir o plano colocou muitos comandantes de campo num dilema. Por um lado, eles genuinamente queriam curar os doentes - para que pudessem ser mandados de volta ao trabalho. Por outro lado, eles não queriam incentivar os "preguiçosos". Na pratica, isso freqüentemente significava que as administrações dos campos colocavam limites - às vezes muito precisos - ao número de prisioneiros que podiam ficar doentes em determinado período, ou que podiam ser enviados a lagpunkts de recuperação.[879] Em outras palavras, não importava qual fosse o número real de prisioneiros doentes, os médicos só estavam autorizados a garantir dias de descanso para uma pequena porcentagem. Aleksandrovich, um médico de campo, lembrou que em seu campo "cerca de 10% do lagpunkt", trinta ou quarenta pessoas, apresentavam-se toda noite na hora do atendimento médico.[880] Ficava claro, porém, que não mais do que 3% a 5% poderiam ser liberados do trabalho: "mais do que isso, e teria início uma investigação".
Se mais ficassem doentes, teriam de esperar. Típica era a história de um prisioneiro de Ustvymlag, que declarou várias vezes estar doente e não poder trabalhar. De acordo com o relatório oficial arquivado mais tarde: "Os trabalhadores médicos não deram atenção ao seu protesto, e ele foi mandado para o trabalho. Como não estava em condições de trabalhar, recusou-se a fazê-lo, e por isso foi trancado na cela de punição. Foi mantido ali por quatro dias, e levado de lá em condições muito precárias até o hospital, onde morreu". Em outro campo, um tuberculoso foi mandado para o trabalho ao ar livre e, segundo o relatório do inspetor, "estava em condições tão ruins que não conseguiu voltar do campo sem ajuda".[881]
O baixo número desses "autorizados" a ficarem doentes significava que os médicos viviam sob uma pressão terrível e conflituosa. Eles podiam ser repreendidos, ou mesmo sentenciados, se morressem prisioneiros doentes demais, depois de terem acesso recusado ao hospital do campo.[882] Podiam também ser ameaçados pelos membros mais violentos e agressivos da elite criminosa do campo, que queriam ser liberados do trabalho. Se o médico de campo quisesse dar dias de descanso a esses prisioneiros genuinamente doentes, ele tinha de resistir às investidas desses criminosos. Shalamov, de novo, descreveu o destino de um tal dr. Surovoy, mandado para trabalhar no lagpunkt predominantemente de criminosos situado na mina de Spokoiny, em Kolyma:
Era um médico jovem e - mais importante - era um médico prisioneiro. O amigo de Suroyov tentou persuadi-lo a não ir. Ele podia ter recusado e ser mandado para uma turma de trabalho geral em vez de assumir esse trabalho claramente perigoso. Suroyov chegara ao hospital vindo de uma turma de trabalho geral; ele tinha medo de voltar para ela e concordou em ir para a mina e trabalhar em sua profissão. As autoridades do campo deram-lhe instruções mas nenhum conselho sobre como se portar. Ele foi categoricamente proibido de mandar ladrões saudáveis da mina para o hospital. Em um mês foi morto enquanto atendia pacientes; em seu corpo havia cinqüenta e duas facadas.[883]
Quando chegou para trabalhar como feldsher num lagpunkt de criminosos, Karol Colonna-Czosnowski também foi advertido de que sou antecessor tinha sido "morto a picaretadas" por seus pacientes. Em sua primeira noite no campo, ele se defrontou com um homem que carregava um machado, pedindo para ser dispensado do trabalho no dia seguinte. Karol conseguiu, diz ele, surpreendê-lo e jogá-lo para fora da cabana Ao feldsher. No dia seguinte ele fez um acordo com Grisha, o chefe dos criminosos do campo: além dos genuinamente doentes, Grisha lhe daria os nomes de mais duas pessoas por dia que deveriam ser dispensadas do trabalho.[884]
Alexander Dolgun também descreve uma experiência similar. Num de seus primeiros dias como feldsher, apresentou-se a ele um prisioneiro criminoso queixando-se de dor de estômago - e pedindo ópio. "Ele me fez chegar mais perto dele. 'Aqui!', ele cochichou ameaçadoramente, puxando sua camisa. Sua mão direita estava dentro da camisa, segurando um perigoso canivete entalhado como uma cimitarra em miniatura. 'Eu quero ópio. Eu sempre sou muito bem tratado aqui. Você é novo. Você também deve saber que se eu não conseguir meu ópio, você vai levar uma facada'." Dolgun arrumou um jeito de se livrar dele dando-lhe uma falsa solução de ópio. Outros não tinham a mesma presença de espírito, e podiam ficar sob o poder do criminoso indefinidamente.[885]
Mesmo quando um prisioneiro finalmente conseguia dar entrada no hospital, ele com freqüência percebia que a qualidade do atendimento médico variava bastante. Os campos maiores tinham hospitais adequados, com equipe médica e remédios. O hospital central da Dalstroi, na cidade de Magadan, era conhecido por contar com o mais moderno equipamento da época, e também por dispor de uma equipe dos melhores prisioneiros médicos, freqüentemente especialistas de Moscou. Embora a maioria de seus pacientes fossem oficiais da NKVD ou empregados do campo, alguns dos prisioneiros mais afortunados eram tratados também por especialistas, ali e em outras partes: durante sua sentença no campo, Lev Finkelstein recebeu permissão até para consultar um dentista.[886] Alguns dos lagpunkts de inválidos também eram bem equipados, e parece que foram de fato projetados para cuidar bem da saúde dos prisioneiros. Tatyana Okunevskaya foi mandada para um deles, e ficou maravilhada com os espaços abertos, os alojamentos generosos, as árvores: "Fazia tantos anos que não via árvores! K era primavera!"[887]
Nos hospitais dos lagpunkts, menores, a situação era bem mais grave. Geralmente, os médicos de lagpunkts viam que era impossível manter os padrões mínimos de esterilização e limpeza."[888] Hospitais muitas vezes eram nada mais do que alojamentos comuns nos quais os doentes eram simplesmente despejados em camas comuns - às vezes dois em cada cama - com apenas um suprimento mínimo de remédios. Num relatório sobre um pequeno campo, um inspetor reclamou que ele não tinha um prédio designado como hospital, não tinha lençóis nem roupa íntima para pacientes, nem remédios ou pessoal médico qualificado. As taxas de mortalidade, em conseqüência, eram extremamente elevadas.[889]
Testemunhas oculares concordam. Num pequeno hospital, num lagpunkt de Sevurallag, "o tratamento e a documentação eram precários", segundo Isaac Vogelfanger, que por um tempo foi o médico chefe do campo. O pior é que
as rações de comida eram flagrantemente inadequadas e havia pouquíssimos remédios disponíveis. Casos cirúrgicos como fraturas e ferimentos grandes nos tecidos moles eram tratados muito mal e negligenciados. Raramente, descobri mais tarde, os pacientes eram dispensados de voltar ao trabalho. Como eram admitidos com sinais avançados de desnutrição, a maioria morria no hospital.[890]
Jerzy Gliksman, um prisioneiro polonês, lembrou que num lagpunkt os prisioneiros ficavam literalmente "amontoados" no chão: "Todas as passagens estavam apinhadas de corpos deitados. Por toda parte havia sujeira e desolação. Muitos dos pacientes deliravam e gritavam incoerentemente, enquanto outros jaziam imóveis e pálidos".[891]
Piores ainda eram os alojamentos, ou melhor, salas mortuárias, para doentes terminais. Num desses, destinado a prisioneiros com disenteria, "os pacientes ficavam deitados na cama durante semanas. Se tivessem sorte, recuperavam-se. Mais freqüentemente, morriam. Não havia tratamento, nem remédios... os pacientes costumavam esconder um morto durante três ou quatro dias a fim de pegar as rações de comida do defunto".[892]
As condições eram agravadas pela burocracia do Gulag. Em 1940, um inspetor de campo reclamou que o campo simplesmente não tinha camas de hospital suficientes para os prisioneiros doentes. Como um prisioneiro que não estivesse realmente acamado no hospital não tinha permissão de receber uma ração hospitalar, isso significava que os prisioneiros doentes que ficavam fora do hospital recebiam simplesmente a ração reduzida dos "preguiçosos".[893]
Embora possamos dizer que muitos médicos de campo salvaram a vida de muitas pessoas, não se pode dizer que todos os médicos eram necessariamente inclinados a serem prestativos. Alguns, de seu ponto de vista privilegiado, acabaram simpatizando mais com os chefes do que com os "inimigos" que eles eram obrigados a tratar. Elinor Lipper descreveu uma médica, chefe de um hospital para quinhentos pacientes: "Ela se comportava como uma pomeshchitsa, uma grande senhora proprietária de terras dos tempos dos czares, e considerava toda a equipe do hospital como seus servos pessoais. Com sua mão carnuda, ela uma vez pegou uma faxineira negligente e puxou-a pelo cabelo até ela gritar".[894] Em outro campo, a esposa do comandante do campo, médica na seção do hospital, chegou a ser repreendida pela inspetoria do campo porque "admitia os seriamente doentes no hospital tarde demais, não dispensava os doentes do trabalho, era rude, e jogava os prisioneiros doentes para fora da enfermaria".[895]
Em alguns casos, os médicos sabidamente tratavam mal os pacientes prisioneiros. Enquanto ele trabalhava num campo de mineração no início dos anos 1950, uma das pernas de Leonid Trus foi esmagada. O médico do campo enfaixou a ferida, mas era preciso fazer mais que isso. Trus já havia perdido muito sangue, e começava a se sentir muito frio. Como o campo não tinha um equipamento para transfusão de sangue, as autoridades do campo o enviaram, na parte de trás de um caminhão, até um hospital local. Meio inconsciente, ele ouviu o médico pedir à enfermeira para iniciar uma transfusão de sangue. O amigo que o acompanhava forneceu seus dados pessoais: nome, idade, sexo, local de trabalho - após o que o médico interrompeu a transfusão de sangue. Esse tipo de auxilio não era dado a um prisioneiro. Trus lembra que lhe deram um pouco de glicose para beber - graças ao amigo, que pagou um suborno por ela - e um pouco de morfina. No dia seguinte, sua perna foi amputada:
O cirurgião estava tão convencido de que eu não iria viver que nem mesmo fez a operação ele mesmo, passando-a para a sua esposa, uma terapeuta que estava tentando requalificar-se como cirurgia. Depois me contaram que ela havia feito tudo direito, que ela sabia o que estava fazendo, exceto por alguns detalhes que deixara de fora. Não que ela tivesse esquecido deles, mas é que achava que eu não iria sobreviver, e que portanto era irrelevante que esses detalhes médicos fossem cumpridos. E veja, eu continuei vivo![896]
Não que os médicos do campo, tanto os bondosos como os indiferentes, fossem também necessariamente qualificados. Aqueles que ostentavam o título iam desde os maiores especialistas de Moscou cumprindo suas sentenças na prisão, até charlatães que não sabiam absolutamente nada de medicina, mas que se dispunham a fingir que sabiam a fim de obter um posto de status mais elevado. Já em 1932, a OGPU se queixava da escassez de pessoal médico qualificado.[897] Isso significava que prisioneiros com diploma de médico eram a exceção a todas as regras que governavam os postos de confiança: não importava que ato terrorista contra-revolucionário fossem acusados de ter cometido, eles eram sempre autorizados a praticar a medicina.[898]
A escassez de médicos também significava que prisioneiros eram treinados como enfermeiros e feldshers - um treinamento que costumava ser rudimentar. Evgeniya Ginzburg qualificou-se como enfermeira depois de passar "vários dias" num hospital de campo, aprendendo a arte de "aplicar ventosas" e como dar uma injeção.[899] Alexander Dolgun, depois de aprender num campo os fundamentos da função de feldsher, foi testado em seu conhecimento depois de ser transferido para outro campo. Quando um oficial, desconfiado de sua qualificação, mandou que fizesse uma autópsia, ele fez "a melhor encenação possível, agindo como se fizesse esse tipo de coisa o tempo inteiro".[900] A fim de conseguir seu trabalho como feldsher, Janusz Bardach também mentiu: disse que era um estudante de medicina do terceiro ano quando, na verdade, ainda não entrara na universidade.[901]
Os resultados eram previsíveis. Depois de chegar ao seu primeiro cargo de prisioneiro médico em Sevurallag, Isaac Vogelfanger, um cirurgião bem qualificado, ficou surpreso ao ver o feldsher local tratando de furúnculos de escorbuto - uma doença causada por subnutrição, não uma infecção - com iodo. Mais tarde, viu vários pacientes morrerem porque um médico não qualificado insistiu em injetar nos pacientes uma solução feita de açúcar comum.[902]
Nenhuma dessas coisas causaria surpresa aos chefes do Gulag, um dos quais se queixava, numa carta ao seu chefe em Moscou, de uma escassez de médicos: "Em vários lagpunkts, o auxílio médico é prestado por enfermeiros autodidatas, prisioneiros sem nenhuma qualificação médica". Outro escreveu sobre o sistema médico de um campo que desafiava "todos os princípios do serviço de saúde soviético".[903] Os chefes sabiam que eram falhos, os prisioneiros sabiam que eram falhos - e mesmo assim os serviços médicos do campo continuaram funcionando do mesmo jeito.
Mesmo com todas as suas falhas - mesmo quando os médicos eram venais, as alas precariamente equipadas, a medicação escassa -a vida no hospital ou na enfermaria parecia tão atraente aos prisioneiros, que para conseguir dar entrada nela eles se dispunham não só a machucar ou ameaçar os médicos, mas também a ferir a si mesmos. Como soldados tentando escapar do campo de batalha, os zeks também recorriam ao samorub (auto-mutilação) e à mastyrka (doença encenada) em tentativas desesperadas de salvar suas vidas. Alguns acreditavam que acabariam recebendo uma anistia por invalidez. Na verdade, havia tantos que acreditavam nisso que o Gulag pelo menos numa ocasião expediu uma declaração negando que os inválidos seriam libertados (embora eles o fossem, ocasionalmente).[904] A maioria, no entanto, ficava simplesmente feliz em poder evitar o trabalho.
A punição por auto-mutilação era particularmente severa: uma sentença adicional no campo. Isso refletia, talvez, o fato de que um trabalhador incapacitado era um fardo para o Estado e um atraso para o plano de produção. "A auto-mutilação era punida de maneira mórbida, com a sabotagem", escreveu Anatolii Zhigulin.[905] Um prisioneiro conta a história de um ladrão que cortou fora quatro dedos da mão esquerda. Em vez de ser enviado para um campo de inválidos, no entanto, fizeram o inválido sentar na neve e ficar vendo os outros trabalharem. Proibido de sair de lá, com medo de ser baleado por tentativa de fuga, "logo ele próprio pediu uma pá e, usando-a de muleta, com sua mão sobrevivente, enfiou-a na terra congelada, chorando e praguejando".[906]
Mesmo assim, muitos prisioneiros achavam que os benefícios potenciais faziam com que valesse a pena correr o risco. Alguns dos métodos eram rudes. Os criminosos eram particularmente conhecidos por simplesmente cortarem seus três dedos intermediários com um machado, de modo que não pudessem mais cortar árvores ou segurar um carrinho de mão nas minas. Outros cortavam fora um pé, ou uma mão, ou esfregavam ácido nos olhos. Outros ainda, ao partirem para o trabalho, embrulhavam um pano molhado em volta do pé: à noite, voltavam com ulceração por frio de terceiro grau. O mesmo método podia ser aplicado aos dedos. Nos anos 1960, Anatoly Marchenko viu um homem pregar seus testículos num banco de prisão.[907] Não foi o primeiro: Valerii Frid descreve um homem que pregou seu saco escrotal num toco de árvore.[908]
Mas havia também métodos mais sutis. Um criminoso mais ousado podia roubar uma seringa e injetar sabão derretido em seu pênis: a ejaculação resultante ficava parecida com uma doença venérea. Outro preso encontrou uma maneira de simular silicose, uma doença pulmonar. Primeiro, ele limava uma pequena quantidade de pó de prata de um anel de prata que ele havia conseguido manter entre seus pertences pessoais. Ele então misturava a poeira de prata com tabaco, e fumava. Embora não sentisse nada, ele ia até o hospital tossindo do jeito que vira as vítimas de silicose tossir. No raio-X que era feito em seguida, uma sombra terrível aparecia em seus pulmões - suficiente para desqualificá-lo para trabalho pesado e para que fosse enviado a um campo por causa da doença incurável.[909]
Prisioneiros também tentavam criar infecções, ou doenças crônicas. Vadim Aleksandrovich tratou de um paciente que havia infectado a si mesmo com uma agulha de costura suja.[910] Gustav Herling viu um prisioneiro enfiar o braço no fogo, quando achava que ninguém estava olhando; ele fazia isso uma vez por dia, todo dia, de modo a manter uma ferida misteriosamente persistente.[911] Zhigulin ficou doente propositalmente bebendo água gelada e depois respirando ar frio. Isso provocou-lhe uma febre suficientemente alta para que pudesse ser dispensado do trabalho: "Oh, que dez dias mais felizes no hospital!"[912] Prisioneiros também simulavam insanidade. Bardach, durante sua carreira como feldsher, trabalhou um tempo na ala psiquiátrica do hospital central de Magadan. Ali, o principal método de desmascarar falsos esquizofrênicos era colocá-los numa ala com esquizofrênicos de verdade: "Em questão de horas, muitos prisioneiros, mesmo os mais determinados, batiam na porta pedindo para sair". Se isso falhasse, dava-se ao prisioneiro uma injeção de cânfora, que induzia um ataque. Os que sobreviviam raramente queriam que o procedimento fosse repetido.[913]
Havia até um procedimento padrão para prisioneiros que tentaram simular paralisias, segundo Elinor Lipper. O paciente era colocado numa mesa de operação e recebia um anestésico leve. Quando ele acordava, os médicos o colocavam em pé. Inevitavelmente, quando eles chamavam seu nome, ele dava uns poucos passos antes de lembrar de desabar no chão.[914] Dimitrii Bystroletov também testemunhou uma mulher curada de "surdez" pela própria mãe. A administração, suspeitando da queixa da mulher de ouvir mal, convidou a mãe a visitar sua filha prisioneira, mas não deixou que ela entrasse no alojamento. Em vez disso, fizeram-na ficar do lado de fora do portão, onde ela ficou em pé, chamando o nome da filha. Naturalmente, a filha atendeu.[915]
Mas havia também médicos que ajudavam os pacientes a encontrar métodos de auto-mutilação. Alexander Dolgun, apesar de estar muito fraco e sofrendo de uma diarréia incontrolável, não tinha uma febre suficientemente alta para merecer ser dispensado do trabalho. Mesmo assim, quando ele contou ao médico do campo, um letão culto, que era americano, o homem se iluminou. "Queria tanto encontrar alguém com quem pudesse falar inglês", disse ele - e mostrou a Dolgun como infectar o próprio corte. Isso produziu uma enorme bolha púrpura em seu braço, suficiente para impressionar os guardas da MVD que inspecionavam o hospital sobre a gravidade de sua doença.[916]
Mais uma vez, a moralidade comum estava invertida. No mundo fora da prisão, nenhum médico que deliberadamente fizesse seus pacientes adoecerem seria considerado um homem bom. Mas no campo, um doutor assim era reverenciado com um santo.
"Virtudes comuns"
Nem todas as estratégias para sobreviver nos campos derivavam necessariamente do próprio sistema. E nem todas envolviam colaboração, crueldade ou auto-mutilação. Se alguns prisioneiros - talvez a vasta maioria dos prisioneiros - conseguiam continuar vivos manipulando as regras do campo a seu favor, havia também alguns que se baseavam no que Tzvetan Todorov, em seu livro sobre a moral dos campos de concentração, chamou de "virtudes comuns": cuidados e amizade, dignidade e a vida da mente.[917]
O cuidado assumia várias formas. Havia prisioneiros, como vimos, que criavam suas próprias redes de sobrevivência. Membros dos grupos étnicos que dominavam alguns dos campos no final dos anos 1940 - ucranianos, baltos, poloneses - criaram sistemas inteiros de auxílio mútuo. Outros construíam redes independentes de conhecidos ao longo de anos no campo. Outros ainda simplesmente faziam apenas um ou dois amigos extremamente íntimos. Talvez a mais conhecida dessas amizades do Gulag fosse aquela entre Ariadna Efron, a filha da poeta Marina Tsvetaeva, e sua amiga Ada Federolf. Elas fizeram esforços enormes a fim de permanecerem juntas, tanto nos campos como no exílio, e mais tarde publicaram suas memórias juntas em um volume. Num certo ponto de sua metade da história, Federolf contou como elas haviam se reencontrado depois de uma longa separação quando Éfron foi colocada numa outra transferência:
Já era verão. Os primeiros dias depois que chegamos foram horríveis. Eles nos levavam para fora para nos exercitarmos uma vez dia - o calor era insuportável. Então de repente uma nova transferência de Ryazan e - Alya. Eu arfava de alegria, puxei-a para os beliches de cima, mais perto do ar fresco... É essa á alegria de prisioneiro, a alegria de simplesmente encontrar alguém.[918]
Outros concordam. "E muito importante ter um amigo, um rosto confiável, que não vai abandoná-lo se você estiver em dificuldade", escreveu Zoya Marchenko.[919] "Era impossível sobreviver sozinho. As pessoas organizavam-se em grupos de dois ou três", escreveu outro prisioneiro.[920] Dmitri Panin também atribui sua capacidade de suportar os ataques dos criminosos ao pacto de autodefesa que fez com um grupo de outros prisioneiros.[921] Havia limites, é claro. Janusz Bardach escreveu sobre seu melhor amigo no campo que "nenhum de nós nunca pediu comida ao outro, nem a gente oferecia. Ambos sabíamos que esse santuário não podia ser violado se pretendíamos continuar amigos".[922]
Se o respeito pelos outros ajudava alguns a manter sua humanidade, o respeito por si mesmos ajudava outros. Muitos, particularmente mulheres, falavam da necessidade de se conservar limpo, ou o mais limpo possível, como uma maneira de preservar a própria dignidade.
Olga Adamova-Sliozberg conta como uma companheira de cela "lavava e secava seu colarinho branco e o costurava de volta na sua blusa", toda manhã.[923] Prisioneiros japoneses em Magadan montaram um "banho" japonês - um grande barril, ao qual eram acoplados bancos - ao longo da baía.[924] Durante dezesseis meses na prisão Kresty de Leningrado, Boris Chetverikov lavava suas roupas muitas vezes, assim como as paredes e o chão de sua cela - antes de entoar todas as árias de ópera que ele conhecia de memória.[925] Outros praticavam exercícios ou rotinas higiênicas.Vejamos Bardach de novo:
Apesar da minha fadiga e do frio, mantive a rotina de exercícios que seguira em casa e no Exército Vermelho, lavando o rosto e as mãos na bomba manual. Eu queria conservar o máximo de orgulho, distinguindo-me dos muitos prisioneiros que eu vira desistir dia após dia. Primeiro eles deixavam de cuidar de sua higiene ou aparência, depois paravam de cuidar de seus colegas prisioneiros, e finalmente de suas próprias vidas. Se eu não tinha controle sobre mais nada, tinha controle pelo menos sobre esse ritual que eu acreditava que iria me poupar da degradação e da morte certa.[926]
Outros ainda praticavam disciplinas intelectuais. Inúmeros prisioneiros escreviam ou decoravam poesias, repetindo seus versos e aqueles de outros para si mesmos, várias vezes, repetindo-os depois para amigos. Em Moscou, na década de 1960, Ginzburg uma vez encontrou um escritor que não podia acreditar que em tais condições os prisioneiros tivessem sido capazes de repetir poemas para si mesmos e sentirem alívio mental ao fazerem isso. "Sim, sim", ele disse a ela: "ele sabia que eu não era a primeira pessoa a dar testemunho disso, mas, bem, ele ainda achava que havíamos tido a idéia depois do evento". Ginzburg escreve que o homem não entendeu sua geração, os homens e mulheres que ainda pertenciam a uma "época de ilusões magníficas... estávamos nos atirando no comunismo das alturas poéticas".[927]
Nina Gagen-Torn, etnógrafa, escreveu poesia, freqüentemente cantando seus versos para si mesma:
Nos campos eu compreendi, num nível prático, por que as culturas pré-letradas sempre transmitiram textos na forma de canções - caso contrário, não conseguimos lembrar, não é possível ter certeza das palavras exatas. Os livros apareciam entre nós acidentalmente, eles eram dados e depois tirados. Escrever era proibido, assim como montar grupos de estudos: as autoridades temiam que isso levasse a contra-revolução. Então cada um preparava para si, do melhor jeito que desse, alimento para o cérebro.[928]
Shalamov escreveu que a poesia, entre "pretensão e maldade, decadência", poupou-o de se tornar completamente insensível. Eis uma poesia que ele escreveu, intitulada "A um poeta":
Comi como um animal, reclamando da comida
Uma simples folha de papel para escrever
Parecia um milagre
Caindo do céu na floresta escura.
Bebi como um animal, tomando água sofregamente
Empapando minhas longas suíças
Medindo minha vida não por meses ou anos
Mas por horas.
E toda noite
Surpreso por estar ainda vivo
Repetia versos
Como se ouvisse sua voz.
E os cochichava como orações,
Exaltava-os como a água da vida
Como uma imagem salva da batalha
Como uma estrela-guia.
Eles eram o único vínculo com outra vida
Ali, onde o mundo nos sufocava
Com imundície cotidiana
E a morte perseguia de perto nossos calcanhares.[929]
Soljenitsin "escreveu" poesia nos campos, compondo-a de cabeça e depois recitando-a para si mesmo com a ajuda de uma coleção de palitos de fósforo quebrados, como seu biógrafo Michael Scammell conta:
Ele dispunha duas fileiras de dez pedaços de palito de fósforo com a sua cigarreira, uma fileira representando as dezenas e a outra as unidades. Então recitava seus versos silenciosamente para si mesmo, movendo uma "unidade" a cada linha e uma "dezena" a cada dez linhas. Cada qüinquagésima e centésima linha eram memorizadas com cuidado especial, e uma vez por mês ele recitava o poema de cabo a rabo. Se uma linha estava fora do lugar ou era esquecida, ele refazia a coisa toda até acertar.[930]
Talvez por razões similares, rezar também ajudava alguns. O conjunto de memórias de um fiel batista, enviado para os campos pós-stalinistas nos anos 1970, consiste quase inteiramente em relatos sobre quando e onde ele rezava, e sobre onde e como escondia suas Bíblias.[931] Muitos memoristas escreveram sobre a importância das festas religiosas. A Páscoa podia acontecer secretamente, numa padaria do campo - como aconteceu um ano numa prisão de trânsito em Solovestsky -, ou podia acontecer abertamente, em trens de transferência: "o vagão balançava, os cantos eram desencontrados e esganiçados, os guardas batiam nas paredes do vagão a cada parada. Mas eles continuaram cantando".[932] O Natal podia ter lugar num alojamento. Yuri Zorin, um prisioneiro russo, relembra com assombro como os lituanos em seu campo haviam organizado bem a celebração do Natal, uma festa que eles vinham preparando havia um ano: "Você pode imaginar, no alojamento, uma mesa posta com tudo, vodca, presunto, tudo?". Eles tinham, pelo que ele achava, trazido a vodca em pequenas quantidades "que cabiam num dedal", em seus sapatos.[933]
Lev Kopelev, ateu, participou de urna cerimônia secreta de Páscoa:
As mesas tinham sido colocadas junto às paredes. Havia uma fragrância de incenso no ar. Uma pequena mesa forrada com um cobertor era o altar. Várias velas caseiras projetavam sua luz numa imagem. O padre, usando vestimenta feita com lençóis, segurava uma cruz de ferro. As velas piscavam no escuro. Mal podíamos ver o rosto dos outros na sala, mas eu tinha certeza de que não éramos os únicos não crentes ali. O padre entoou a missa com a voz trêmula de um ancião. Várias mulheres de lenço branco acompanharam-no suavemente, com vozes ardorosas e puras. Um coro respondia harmoniosamente, bem suave, bem suave, a fim de não ser ouvido do lado de fora.[934]
Kazimierz Zarod estava entre seus conterrâneos poloneses que celebraram a noite de Natal de 1940 num campo de trabalho, guiados por um padre que se paramentou discretamente pelo campo aquela noite, rezando missa em cada alojamento:
Sem auxílio da Bíblia ou de um livro de orações, ele começou a proferir o texto da missa, o latim familiar, dito num cochicho quase inaudível e respondido tão baixinho que parecia um suspiro - "Kyrie eleison, Christe eleison - Senhor tenha piedade de nós. Cristo tenha piedade de nós. Gloria in excelsis Deo..."
As palavras nos banharam e a atmosfera no barracão, normalmente tão brutal e rústica, mudou imperceptivelmente, os rostos se voltaram para o padre, ficando suaves e relaxados conforme os homens se esforçavam para ouvir o cochicho quase inaudível.
"Tudo limpo", disse a voz do homem que vigiava sentado à janela.[935]
Num plano mais geral, o envolvimento com algum projeto intelectual ou artístico mais amplo mantinha muitas pessoas cultas vivas, espiritualmente e fisicamente - pois quem tinha dons ou talentos costumava encontrar uma aplicação prática para eles. Num mundo de escassez constante, por exemplo, onde os pertences mais elementares ganhavam enorme significação, as pessoas que podiam fornecer algo de que os outros precisavam eram sempre requisitadas. Foi o caso de Prince Kirill Golitsyn, que aprendeu a fazer agulhas com ossos de peixe quando ainda estava na prisão de Butyrka.[936] E também de Alexander Dolgun, que antes de arrumar o cargo de feldsher, procurou um jeito de "ganhar uns rublos a mais ou umas gramas adicionais de pão":
Eu vi que havia um suprimento muito bom de alumínio nos cabos que os soldadores usavam. Pensei que se aprendesse a derretê-lo, seria capaz de moldar algumas colheres. Conversei um pouco com alguns prisioneiros que pareciam saber o que estavam fazendo ao lidar com metais, e colhi algumas idéias sem contar qual era a minha. Também encontrei alguns bons esconderijos, onde poderia passar parte do dia sem ser enxotado para o trabalho, e outros esconderijos onde poderia guardar ferramentas ou pedaços de cabo de alumínio.
Construí duas caixas rasas para a minha fundição, roubei eu mesmo restos de cabo de alumínio, fiz um cadinho rústico usando aço fino roubado das peças do fogão, surrupiei um pouco de carvão bom e de óleo diesel para acender minha forja, e estava pronto para iniciar meu negócio.
Logo, escreve Dolgun, ele conseguia "fazer aparecer duas colheres quase todo dia". Ele as trocou com outros prisioneiros por uma garrafa para água, e por óleo de cozinhar que guardava dentro dela. Desse modo, arrumou alguma coisa para molhar seu pão.[937]
Nem todos os objetos que os prisioneiros produziam uns para os outros eram utilitários. Anna Andreevna, uma artista, recebia constantes pedidos de seus serviços - e não só de prisioneiros. Era requisitada pelas autoridades do campo para decorar uma lápide durante um funeral, para consertar louça de barro ou brinquedos quebrados, e também para fazer brinquedos: "Fazíamos tudo para os chefes, não importa o que precisassem ou pedissem".[938] Um prisioneiro entalhou pequenos souvenirs para outros prisioneiros feitos de presa de mamute: braceletes, pequenas figuras com temas "do norte", anéis, medalhões, botões. Ocasionalmente, sentia-se culpado por aceitar dinheiro de outros prisioneiros: "Mas, e daí? Todo mundo é livre para pensar por si... e não e vergonhoso aceitar dinheiro por um trabalho".[939]
O museu da Sociedade Memorial de Moscou - montado por ex-prisioneiros e dedicado a contar a história das repressões de Stalin - está atualmente cheio dessas coisas: pedaços de renda bordada, bugigangas entalhadas à mão, cartas de baralho pintadas, e até pequenas obras de arte - pinturas, desenhos, esculturas - que prisioneiros preservaram, levaram para casa com eles e mais tarde doaram.
Os bens que os prisioneiros aprendiam a cultivar nem sempre eram tangíveis. Por estranho que possa soar, no Gulag era possível cantar - ou dançar ou representar - para salvar a própria vida. Isso era particularmente verdadeiro no caso de prisioneiros talentosos nos campos maiores, com chefes mais aparatosos, aqueles que tinham vontade de mostrar suas orquestras e grupos de teatro do campo. Se o comandante de Ukhtizhemlag aspirava a manter uma companhia de ópera de verdade - como um deles chegou a fazer - isso significava que a vida de dúzias de cantores e dançarinos seria salva. No mínimo, eles poderiam recuperar algum senso de humanidade. "Quando os atores estavam no palco, eles se esqueciam de sua constante sensação de fome, de sua ausência de direitos, do comboio que os aguardava com cães de guarda do lado de fora do portão", escreveu Aleksandr Klein.[940] Quando tocava na orquestra da Dalstroi, o prisioneiro e violinista Georgii Feldgun sentiu-se "como se eu respirasse o ar pleno da liberdade".[941]
Às vezes as recompensas eram ainda maiores. Um documento de Dmitlag descreve a roupa especial distribuída aos membros da orquestra do campo - incluindo as muito cobiçadas botas de oficial - e ordena a um comandante de lagpunkt que lhes forneça alojamentos especiais também.[942] Thomas Sgovio visitou um desses alojamentos para músicos em Magadan: "Ao entrar, à direita havia um compartimento separado com um pequeno fogão. Mantas para os pés e botas de feltro ficavam dependuradas em arames estendidos de uma parede a outra. Camas individuais estavam limpas e com cobertores. Colchões e fronhas eram forrados de palha. Os instrumentos pendiam das paredes -uma tuba, uma trompa, um trombone, um trompete etc. Cerca da metade dos músicos eram criminosos. Todos eles tinham empregos leves - cozinheiro, barbeiro, administrador de banheiro, contador etc.[943]
No entanto, nos campos menores, aqueles que se apresentavam também desfrutavam de melhores condições, o que acontecia ate em prisões. Georgii Feldgun recebeu comida adicional enquanto estava num campo de transferência, depois de tocar seu violino para um grupo de criminosos. Ele achou a experiência muito estranha: "Aqui estamos nós no fim do mundo, no porto de Vanino... e tocando musica eterna, escrita há mais de duzentos anos. Estamos tocando Vivaldi para quinze gorilas".[944]
Outra prisioneira foi parar numa cela com uma trupe de cantoras e atrizes que, graças aos seus talentos, não estavam sendo transferidas para os campos. Vendo que eram mais bem tratadas, ela convenceu-as a deixarem que ela também se apresentasse junto com elas, e então cantou fora do tom e fez uma cena engraçada, rindo de si mesma. Pelo resto de sua passagem pelo campo, seu talento cômico até então não descoberto fez com que recebesse comida adicional e ajuda de suas colegas prisioneiras.[945] Outros também usavam o humor para sobreviver. Dmitri Panin escreveu sobre um palhaço profissional de Odessa que atuava para salvar sua vida, sabendo que se fizesse as autoridades do campo rirem iria poupar-se de ser transferido para um campo de punição. "A única incongruência nessa alegre dança vinha dos grandes olhos negros do palhaço, que pareciam estar implorando misericórdia. Eu nunca havia visto uma performance tão emotiva".[946]
De todas as maneiras de sobreviver por meio da colaboração com as autoridades, "salvar a pele" por meio da atuação no teatro do campo ou participar de outras atividades culturais era o método que parecia aos prisioneiros o menos problemático do ponto de vista moral. Talvez porque outros prisioneiros também tirassem proveito disso. Mesmo para aqueles que não recebiam tratamento especial, o teatro dava um tremendo apoio moral, algo que também era necessário para a sobrevivência. "Para os prisioneiros, o teatro era a fonte de alegria, era amado, adorado", escreveu um prisioneiro.[947] Gustav Herling lembra que nos concertos "os prisioneiros tiravam seus bonés na entrada, limpavam a neve de suas botas no corredor externo, e ocupavam seus lugares nos bancos com expectativa cerimoniosa e com uma reverência quase religiosa".[948]
Talvez fosse por isso que aqueles cujo talento artístico lhes permitia viver melhor inspirassem admiração, e não inveja ou ódio. Tatyana Okunevskaya - a estrela de cinema enviada para os campos por se recusar a dormir com Abakumov, o chefe da contra-inteligência soviética - era reconhecida em toda parte, e todos a ajudavam. Durante um concerto no campo, ela sentiu o que pareciam ser pedras sendo atiradas em suas pernas; olhou para baixo e viu que eram latas de abacaxi mexicano, uma guloseima inaudita, que um grupo de ladrões tinha comprado só para ela.[949]
Nikolai Starostin, o jogador de futebol, também era tratado com o máximo respeito pelos urki, que, escreveu ele, passavam a mensagem um para o outro: não toquem em Starostin. Às noites, quando ele começava a contar histórias do futebol, os "jogos de cartas cessavam" e os prisioneiros se juntavam em torno dele. Quando ele chegava a um novo campo, geralmente lhe era oferecida uma cama limpa no hospital do campo. "Era a primeira coisa que me era oferecida, sempre que chegava, desde que entre os médicos ou chefes houvesse algum fã".[950]
Apenas algumas pessoas se incomodavam com a questão moral mais complexa de se era "certo" cantar e dançar enquanto estivessem na prisão. Nadezhda Joffe era uma delas: "Quando rememoro meus cinco anos, não sinto vergonha de me lembrar deles e não tenho nada que me faça enrubescer. Existe apenas a questão do teatro amador... Essencialmente não havia nada de errado com ele, e mesmo assim... nossos ancestrais distantes, em condições aproximadamente análogas, penduraram seus alaúdes e disseram que não iriam cantar em cativeiro".[951]
Alguns prisioneiros, particularmente os de origem não soviética, também tinham suas dúvidas sobre as produções. Um prisioneiro polonês, detido durante a guerra, escreveu que o teatro do campo "destinava-se a destruir ainda mais seu respeito por si mesmo... Às vezes havia performances 'artísticas', ou alguma espécie de orquestra estranha, mas isso não era feito para a satisfação da alma. Em vez disso, era destinado a nos mostrar a 'cultura' deles [soviética], a nos enervar mais ainda". [952]
Além disso, aqueles que se sentiam desconfortáveis não eram obrigados a participar das performances oficiais. Um impressionante número de prisioneiros políticos que escreveram relatos - e isso talvez explique por que eles escreveram relatos - atribuem sua sobrevivência a sua capacidade de "contar histórias": entreter prisioneiros criminosos contando enredos de romances ou filmes. No mundo dos campos e das prisões, onde os livros eram escassos e os filmes, raros, um bom contador de histórias era altamente valorizado. Lev Finkelstein diz que ele será "para sempre grato a um ladrão que, em meu primeiro dia na prisão, identificou esse potencial em mim, e disse: 'Você provavelmente leu um monte de livros. Conte eles para as pessoas, e você vai viver muito bem'. E de fato eu vivia melhor que o resto. Eu tinha alguma notoriedade, alguma fama... Passava por pessoas que diziam 'Você é o Levchik-Romanist [Levchik-o contador de histórias], ouvi falar de você em Taishet' ". Por causa desse talento, Finkelstein era convidado, duas vezes por dia, para o barracão do líder da brigada, onde recebia uma caneca de água quente. No canteiro em que ele trabalhava na época, "isso significava a vida". Finkelstein achava, conforme diz, que os clássicos russos e estrangeiros eram os que funcionavam melhor: ele fazia bem menos sucesso ao contar os enredos de romances soviéticos mais recentes.[953]
Outros compartilhavam essa opinião. Em seu quente e abafado trem para Vladivostok, Evgeniya Ginzburg aprendeu que "havia vantagens materiais em recitar poesia... Por exemplo, após cada ato de 0 infortúnio de ser talentoso, de Griboyedov, eu ganhava um gole de água da caneca de alguém como uma recompensa por 'serviços à comunidade'[954].
Aleksander Wat contou O vermelho e o negro, de Stendhal, para um grupo de bandidos quando estava na prisão.[955] Alexander Dolgun contou o enredo de Os miseráveis.[956] Janusz Bardach contou a história de Os três mosqueteiros: "Senti que meu status crescia a cada dobra do enredo".[957] Em resposta aos ladrões que rejeitavam os presos políticos como "gentalha", Colonna-Czosnowski também se defendeu contando-lhes "minha própria versão de um filme, devidamente embelezada para obter o máximo efeito dramático, que eu assistira na Polônia alguns anos antes. Tratava-se de uma história de 'policiais e ladrões', que acontecia em Chicago, envolvendo Al Capone. Para melhorá-la, eu introduzi Bugsy Malone, talvez até Bonnie e Clyde. Decidi incluir tudo que fosse capaz de lembrar, e mais uns refinamentos adicionais que eu inventava no calor da hora". A história impressionou seus ouvintes, e eles pediram ao polonês para repeti-la muitas vezes: "Como crianças, eles ouviam atentamente. Não se importavam de ouvir as mesmas histórias várias vezes. Como crianças, também gostavam que a cada vez eu usasse sempre as mesmas palavras. Eles também percebiam as mais leves mudanças e as mínimas omissões... três semanas após minha chegada eu era um homem diferente".[958]
Mesmo assim, quem tivesse dote artístico não precisava ganhar o dinheiro ou o pão de um prisioneiro para salvar sua vida. Nina Gagen-Torn fala de uma historiadora de música, apreciadora de Wagner, que conseguiu escrever uma ópera enquanto estava nos campos. Voluntariamente, ela quis trabalhar na limpeza de esgotos e privadas a céu aberto, já que essa tarefa, que de outro modo seria desagradável, lhe dava liberdade suficiente para se concentrar em sua música.[959] Aleksei Smirnov, um dos destacados defensores da liberdade de imprensa da Rússia daquele tempo, conta a história de dois acadêmicos de literatura que, enquanto estavam nos campos, criaram um poeta francês fictício do século XVIII, e escreveram um pastiche de poesia francesa daquele século.[960] Gustav Herling também tirou enorme proveito das "lições" sobre história da literatura que ele recebeu de um antigo professor: seu professor, especulou ele, devia ter se beneficiado ainda mais.[961]
Irena Arginskaya também foi auxiliada por sua sensibilidade estética. Anos após sua soltura, ainda era capaz de falar da "incrível beleza" do extremo norte, de como às vezes o pôr-do-sol e a visão dos espaços abertos e das grandes florestas a deixavam sem fôlego. Uma vez aconteceu até de sua mãe fazer a longa e terrível viagem para visitá-la no campo, só para descobrir ao chegar que sua filha havia sido levada para o hospital: a visita tinha sido em vão. Mesmo assim, ela falou "até o fim da sua vida", assim como a filha, da beleza da taiga.[962]
De qualquer modo, a beleza não podia ajudar a todos, e sua percepção era subjetiva. Rodeada pela mesma taiga, pelo mesmo espaço aberto, as mesmas vastas paisagens, Nadezhda Ulyanovskaya achava que o cenário a fazia sentir apenas aversão: "Quase contra a minha vontade, eu relembro as grandiosas alvoradas e os ocasos, os pinheirais, as dores brilhantes que por alguma razão não tinham perfume".[963]
Tão impressionada fiquei com esse comentário que quando eu mesma visitei o extremo norte em pleno verão apreciei com olhos diferentes os largos rios e as intermináveis florestas da Sibéria, a paisagem lunar desolada que é a tundra do Ártico. A entrada de uma mina de carvão, que fica no local de um antigo lagpunkt de Vorkuta, cheguei a colher um punhado de flores silvestres do Ártico para ver se tinham perfume. Tinham. Talvez Ulyanovskaya simplesmente não quisesse senti-lo.
Naquele momento, se eu tivesse escutado o som dos cães de trenó anunciando o início da patrulha, acho que teria tido um colapso. Percorremos correndo os poucos metros que nos separavam da última cerca [...] provavelmente, fazíamos pouco barulho, mas eu tinha a impressão de que o rebuliço era ensurdecedor [...] Escalamos a cerca desordenadamente, saltamos e caímos sobre o último lote de arame farpado, ao pé da cerca, erguemo-nos, verificamos rapidamente se todos estavam bem e, de comum acordo, começamos a correr.
Slavomir Rawicz, A longa caminhada.[964]
Entre os vários mitos sobre o Gulag, o da impossibilidade de fuga é um dos maiores. Escapar dos campos de Stalin, disse Soljenitsin, era "uma empreitada para gigantes entre os homens - mas gigantes condenados".[965] Segundo Anatolii Zhigulin, "Era impossível fugir de Kolyma".[966] Com a melancolia característica, Varlam Shalamov escreveu que "os condenados que tentam fugir são quase sempre os recém-chegados, os que estão no primeiro ano, homens em cujo coração a liberdade e a vaidade não tinham sido aniquiladas ainda".[967] Nikolai Abakumov, o antigo comandante da guarnição de Norilsk, descartava a idéia de uma fuga bem-sucedida: "Alguns homens abandonaram os campos, mas nenhum conseguiu chegar ao 'continente'"- era esse o termo que usava para se referir à Rússia central.[968]
Gustav Herling conta a história de um companheiro de prisão que tentou fugir e fracassou: depois de meses de planejamento cuidadoso, depois de conseguir passar pelas cercas e vagar pela floresta durante sete dias, faminto, ele se descobriu a apenas doze quilômetros do campo e entregou-se voluntariamente. "A liberdade não é para nós", o homem concluía toda vez que contava aos outros prisioneiros a história da fuga malograda. "Estamos acorrentados a este lugar pelo resto da vida, muito embora não haja correntes. Podemos fugir, podemos vagar por aí, mas no final voltaremos."[969]
Naturalmente, os campos eram construídos para evitar fugas: em última análise, era para isso que serviam os muros, o arame farpado, as torres de vigia e a terra de ninguém cuidadosamente esquadrinhada Em vários campos, entretanto, o arame farpado nem sequer era necessário para manter os presos do lado de dentro. O clima era desfavorável às fugas - durante dez meses por ano, a temperatura ficava abaixo do ponto de congelamento -, assim como a geografia, algo que só se pode compreender de fato quando se vê de perto o local em que ficavam alguns dos campos mais distantes.
Por exemplo, pode-se descrever Vorkuta, a cidade que se erguia ao lado das minas de carvão de Vorkutlag, não apenas como isolada, mas inacessível. Não há estradas até Vorkuta, que fica além do Círculo Polar Ártico - a cidade e suas minas podem ser alcançadas apenas de trem ou de avião. No inverno, qualquer um que se aventurasse pela tundra descampada, sem árvores, se transformaria num alvo móvel. No verão, essa paisagem se torna um pântano igualmente impenetrável.
Nos campos mais meridionais, as distâncias também eram um problema. Mesmo que um detento pulasse o arame farpado ou se esgueirasse pela floresta durante o trabalho (graças ao desmazelo dos guardas, isso não era tão difícil), ele se encontrava a quilômetros de uma estrada ou de uma ferrovia; às vezes, a quilômetros de algo que lembrasse uma cidade ou uma aldeia. Não havia comida nem abrigo, e, por vezes, a água era escassa.
Mais do que tudo, havia sentinelas em todos os cantos: toda a região de Kolyma - centenas e centenas de quilômetros quadrados de taiga - era na verdade uma imensa prisão, assim como toda a República Komi, grandes faixas do deserto casaque e o norte da Sibéria. Nesses lugares, havia poucas aldeias comuns e poucos habitantes comuns. Qualquer pessoa que andasse sozinha, sem documentos de identificação, seria imediatamente considerada fugitiva, levaria um tiro ou seria espancada e devolvida ao campo. Certo prisioneiro decidiu não se juntar a um grupo de fugitivos por essa razão: "Sem papéis nem dinheiro, para onde eu iria num território atulhado de campos de concentração e portanto cheio de postos de controle?"[970]
Também não era provável que um preso em fuga recebesse ajuda dos habitantes locais que porventura encontrasse. Na Sibéria czarista, havia uma tradição de solidariedade com os fugitivos e os servos. À noite, tigelas de pão e leite eram colocadas nas portas das casas para eles. Uma canção de prisioneiros pré-revolucionária descreve esse costume:
As camponesas me davam leite
Os rapazes forneciam tabaco.[971]
Na União Soviética de Stalin, o estado de espírito era diferente. A maioria das pessoas estava inclinada a entregar um "inimigo"que escapara e muito mais inclinada a entregar um criminoso "reincidente". Isso não acontecia apenas porque elas acreditassem, ainda que não totalmente, no que a propaganda dizia sobre os presos, mas porque aqueles que deixavam de entregar um fugitivo se arriscavam a receber longas sentenças de prisão.[972] Dado o clima diário de paranóia, seus temores prescindiam de uma razão específica:
Quanto à população do lugar, ninguém nos protegia nem escondia, como escondiam e protegiam os que fugiam dos campos de concentração nazistas. E isso acontecia porque durante muitos anos todos viveram atemorizados e desconfiados, esperando um novo infortúnio a cada minuto, com medo uns dos outros [...] Num lugar em que todos, do mais simples ao mais importante, temiam os espiões, era impossível esperar uma fuga bem-sucedida.[973]
Quando os moradores não entregavam os fugitivos por ideologia nem por medo, eles o faziam pela cobiça. Justa ou injustamente, muitos memorialistas acreditam que as tribos locais - de esquimós, ao norte, e de casaques, ao sul - viviam à procura de fugitivos. Alguns se tornaram caçadores de recompensa profissionais e entregavam os presos em troca de um quilo de chá ou de um pacote de trigo.[974] Em Kolyma, o morador que apresentou a mão direita de um fugitivo - a cabeça, segundo alguns relatos - recebeu uma recompensa de 250 rublos, e parece que as gratificações eram semelhantes em todo o país.[975] Num caso documentado, um habitante local reconheceu um prisioneiro disfarçado de homem livre e denunciou sua presença à polícia. Recebeu 250 rublos. Seu filho, que havia se dirigido à delegacia, recebeu outros 150. Em outro caso, um homem que denunciou o esconderijo de um fugitivo ao comandante de um campo recebeu a imensa quantia de 300 rublos.[976]
Os presos recapturados eram punidos com severidade. Alguns eram mortos imediatamente. O corpo dos mortos também era usado como propaganda:
À medida que nos aproximávamos do portão, pensei por um instante que estava tendo um pesadelo: vi um cadáver nu, suspenso no mourão. As mãos e os pés estavam amarrados com arame; a cabeça pendia para um lado; os olhos, rígidos, estavam meio abertos. Acima da cabeça havia uma placai com a inscrição: "Este é o destino de todos os que tentam fugir de Norilsk".[977]
Zhigulin se lembra dos cadáveres dos homens que haviam tentado fugir jogados no meio do seu lagpunkt em Kolyma, às vezes por um mês inteiro.[978] Na verdade, essa prática era antiga, remontava a Solovetsky. Nos anos 1940, era quase universal.[979]
Ainda assim, os detentos tentavam fugir. De fato, a julgar pelas estatísticas oficiais e pela correspondência irritada sobre o assunto nos arquivos do Gulag, as fugas e as tentativas de fuga eram mais comuns do que a maior parte dos memorialistas admite. Existem, por exemplo, registros de punições impostas depois de fugas que deram certo. Em 1945, após a escapada de vários grupos do "Canteiro de Obras 500 da NKVD" - uma ferrovia que atravessava a Sibéria oriental -, oficiais das guardas armadas receberam penas de prisão de cinco ou dez dias, e seu salário foi reduzido em 50% para cada dia passado atrás das grades. Em outros casos ilustrativos, os guardas eram levados a julgamento depois de fugas importantes, e, de vez em quando, os chefes dos campos perdiam o emprego.[980]
Também há registros de guardas que frustraram algumas fugas. Um guarda que soou o alarme depois que detentos em fuga sufocaram um vigia recebeu uma recompensa de 300 rublos. O chefe dele ganhou 200 rublos, assim como outro chefe da prisão, e os soldados envolvidos ficaram com 100 rublos cada um.[981]
Nenhum campo era totalmente seguro. Por causa da localização remota, pensava-se que Solovetsky fosse inexpugnável. No entanto, em maio de 1925, dois Guardas Brancos, S. A. Malsagov e Yuri Bessonov, escaparam de um dos campos da rede Slon do continente. Depois de atacar os vigias, eles caminharam durante 35 dias até a fronteira com a Finlândia. Mais tarde, ambos publicaram livros sobre sua passagem por Solovetsky, os primeiros a aparecerem no Ocidente.[982] Em 1928, Solovetsky foi palco de outra fuga famosa. Meia dúzia de detentos atacou os guardas e transpôs os portões do campo. A maioria escapou, provavelmente cruzando a fronteira com a Finlândia também.[983] Em 1934, houve duas fugas particularmente espetaculares - também em Solovetsky. A primeira envolveu quatro "espiões"; a segunda, "um espião e dois bandidos".[984]
No final dos anos 1920, à medida que os campos da Slon se expandiam pelo território careliano, as oportunidades de fuga se multiplicaram, e Vladimir Tchernavin aproveitou-se delas. Tchernavin era especialista em pesca e tentara corajosamente injetar um pouco de realismo no Plano Qüinqüenal da Cooperativa de Pesca de Murmansk. Foi condenado por "destruição" devido às críticas que fez ao projeto. Ele recebeu uma pena de cinco anos e foi enviado a Solovetsky. Posteriormente, o Slon o transferiu para o norte da Carélia, onde deveria projetar novos empreendimentos de pesca.
Tchernavin aguardou o momento propício. Ao longo de muitos meses, ganhou a confiança dos superiores, que chegaram a permitir que recebesse a visita da mulher e do filho de quinze anos, Andrei. Um dia, durante uma visita, no verão de 1933, a família saiu para um "piquenique" pela baía local. Quando chegaram à margem oeste, Tchernavin e a mulher contaram a Andrei que eles iriam sair da URSS - a pé. "Sem bússola nem mapa, atravessamos montanhas, florestas e pântanos, até a Finlândia e a liberdade", Tchernavin escreveu.[985] Décadas mais tarde, Andrei recordou que o pai acreditava que poderia mudar a opinião que o mundo tinha da Rússia soviética se escrevesse um livro sobre sua experiência. Ele escreveu. Não funcionou.[986]
Entretanto, é possível que a experiência de Tchernavin não tenha sido única: de fato, o período de expansão inicial do Gulag pode muito bem ter sido a era de ouro das fugas. O número de prisioneiros crescia rapidamente, a quantidade de guardas era insuficiente, os campos eram relativamente próximos à Finlândia. Em 1930, 1.174 fugitivos foram capturados na fronteira. Em 1932, 7.202 haviam sido encontrados, e é bem possível que o número de fugas bem-sucedidas tenha aumentado proporcionalmente.[987] Segundo as estatísticas do próprio Gulag - que podem não ser precisas, é claro -, 45.755 pessoas escaparam dos campos em 1933 e apenas um pouco mais da metade -28.370 - foi recapturada.[988] A população estava aterrorizada pela grande quantidade de condenados à solta, e os comandantes do campo, os guardas da fronteira e a OGPU local viviam solicitando reforços.[989]
A resposta da OGPU foi instituir controles mais rígidos. Mais ou menos na mesma época, a ajuda dos moradores foi ativamente recrutada: a OGPU baixou uma norma para a criação de um cinturão de 25 a 30 quilômetros em torno de cada campo no qual a população "combateria ativamente as fugas". Os encarregados dos trens e dos barcos na vizinhança dos campos também foram recrutados. Outra norma proibiu que os guardas levassem os detentos para tomar sol.[990] Os oficiais imploravam por mais recursos, particularmente por mais guardas para evitar fugas.[991] Novas leis determinavam penas de prisão extra para quem fugisse. Os guardas sabiam que se atirassem em um prisioneiro durante uma fuga, podiam até ser recompensados.[992]
Ainda assim, os números não caíram muito rapidamente. Nos anos 1930, as fugas em massa eram muito comuns em Kolyma. Acampados na floresta, os criminosos se organizavam em bandos, roubavam armas e chegavam a atacar moradores, grupos de geólogos e aldeias nativas. Em 1936, depois de 22 incidentes desse tipo, montou-se uma divisão especial para 1.500 "elementos especialmente perigosos" - prisioneiros que poderiam fugir.[993] Posteriormente, em janeiro de 1938, no auge do Grande Terror, um dos delegados-chefe da NKVD distribuiu uma circular a todos os campos da União Soviética observando que "apesar de uma série de normas que visam a combater decisivamente a fuga de detentos dos campos [...] a questão ainda precisa ser melhorada".31
Nos primeiros dias da Segunda Guerra Mundial, o número de fugas voltou a subir de maneira acentuada, graças às oportunidades criadas pela evacuação dos campos na região oeste do país e ao caos generalizado.[994] Em julho de 1941, quinze prisioneiros escaparam de Pechorlag, um dos campos mais ermos, localizado na República Komi. Em agosto do mesmo ano, quatro ex-marinheiros liderados por um ex-tenente da Frota do Norte conseguiram escapar de um posto avançado em Vorkuta.[995]
Os números começaram a cair com o decorrer da guerra, mas as fugas não cessaram completamente. Em 1947, em seu apogeu no pós-guerra, 10.440 prisioneiros tentaram escapar, dos quais apenas 2.894 foram recapturados.[996] Talvez essa porcentagem seja pequena em relação aos milhões que enchiam os campos na época, mas ainda assim e uma prova de que fugir não era tão impossível quanto se pensa. Pode ser até que a freqüência das fugas ajude a explicar o endurecimento das regras nos campos e o aumento dos níveis de segurança que caracterizaram a vida no Gulag nos últimos cinco anos de sua existência.
Em geral, os memorialistas concordam que a maioria esmagadora dos fugitivos potenciais era formada por crimimosos de carreira. Isso se reflete na gíria utilizada. Por exemplo, eles se referiam à aproximação da primavera como a chegada do "promotor verde" ("Vasia foi solto pelo promotor verde"), pois era na primavera que se planejavam fugas do verão: "Só é possível viajar pela taiga no verão, quando se pode comer grama, cogumelos, frutas silvestres, raízes ou panquecas de musgo, caçar arganazes, tâmias, esquilos, gaios, coelhos [...]"[997] No extremo norte, a melhor época para fugir era o inverno, que os criminosos chamavam de "promotor branco": só então era possível atravessar os pântanos e a lama da tundra.[998]
Na verdade, os criminosos de carreira escapavam com mais facilidade porque, depois de "passar por baixo do arame", tinham muito mais chances de sobreviver. Se conseguissem chegar a uma cidade grande, podiam se misturar aos criminosos locais, falsificar documentos e encontrar esconderijo. Como não tinham muitas aspirações de voltar ao mundo "livre", eles também fugiam só para se divertir, para ficar "fora" por um tempo. Se fossem capturados e conseguissem sobreviver, o que era uma pena de dez anos para alguém que já tinha duas condenações de 25 anos ou mais? Um ex-zek se lembra de uma prisioneira comum que fugiu apenas para se encontrar com um homem. Ela voltou "saciada", mas foi imediatamente condenada à solitária.[999]
Os prisioneiros políticos fugiam com muito menos freqüência. Além de não ter experiência e de não poder contar com uma rede de ajuda, eram perseguidos com muito mais fervor. Tchernavin - que pensou muito no assunto antes de fugir - explicou a diferença:
Os guardas não se importavam muito com a fuga dos criminosos, nem dispendiam muito esforço perseguindo-os: eles seriam capturados quando chegassem à ferrovia ou a uma cidade. No entanto, organizavam-se pelotões imediatamente para ir atrás dos presos políticos: às vezes, todas as aldeias vizinhas eram mobilizadas e até os guardas da fronteira eram chamados a ajudar. Os prisioneiros políticos sempre tentavam fugir para fora do país - não havia refúgio em sua terra natal.[1000]
A maioria dos fugitivos era do sexo masculino, mas não todos. Margarete Buber-Neumann esteve num campo do qual uma cigana fugiu com o cozinheiro. Ao ouvir a história, uma cigana mais velha assentiu com a cabeça: "Ela acha que existe um tabor [acampamento cigano] pelas redondezas. Se conseguir chegar até ele, estará segura".[1001] Em geral, as fugas eram planejadas com antecedência, mas elas também podiam acontecer de uma hora para outra: Soljenitsin conta a história de um prisioneiro que pulou uma cerca de arame farpado durante uma tempestade de poeira no Casaquistão.[1002] As tentativas de fuga costumavam ser realizadas nas áreas de trabalho menos guardadas do campo, mas isso não era regra. Por exemplo, no mês de setembro de 1945, selecionado aleatoriamente, 51% das tentativas de fuga registradas aconteceram em áreas de trabalho; 27%, nos alojamentos; 11%, durante o traslado.[1003] Junto com um grupo de ucranianos jovens, Edward Buca planejou a fuga de um trem de prisioneiros com destino à Sibéria:
Com minha serra para metal, tentaríamos cortar quatro ou cinco pranchas, trabalhando apenas à noite e escondendo os vestígios no piso do vagão com uma mistura de pão e estrume de cavalo. Quando o buraco estivesse pronto, esperaríamos até que o trem parasse na floresta, retiraríamos as pranchas e saltaríamos do vagão, tantos quanto possível, espalhando-nos em todas as direções para confundir os guardas. Alguns seriam atingidos por tiros, mas a maioria escaparia.[1004]
Eles tiveram de desistir do plano quando alguém suspeitou da tentativa de fuga. No entanto, havia quem tentasse fugir dos trens: em junho de 1940, dois criminosos conseguiram de fato sair por um buraco no vagão.[1005] No mesmo ano, Janusz Bardach também escapou através de algumas tábuas podres no trem. Entretanto, ele não as colocou de volta no lugar e foi perseguido pelos cães, capturado e espancado, mas sobreviveu.[1006]
Algumas fugas se originavam, conforme afirma Soljenitsin, "não de um impulso desesperado, mas de cálculos técnicos e do amor pelo trabalho bem feito.[1007] Muros falsos eram construídos nos vagões de carga fechados; os prisioneiros se escondiam em caixas e assim conseguiam sair dos campos.[1008] Uma vez, 26 criminosos abriram caminho por baixo de um muro. Todos conseguiram escapar, mas, de acordo com o oficial que liderou as buscas, também foram recapturados em um ano.[1009]
Outros, como Tchernavin, aproveitavam a posição especial de que desfrutavam no campo para organizar sua fuga. Os arquivos registram a história de um prisioneiro que deliberadamente causou um acidente num trem de mercadorias e escapou no meio da confusão.[1010] Em outro caso documentado, os detentos que receberam a incumbência de enterrar os mortos no cemitério do campo atiraram no guarda que os escoltava e o colocaram no túmulo coletivo, de modo que seu corpo não fosse descoberto de imediato.[1011] A fuga também era fácil para os prisioneiros "subvigiados", que tinham passes que lhes permitiam movimentar-se entre os campos.
Os disfarces também eram utilizados. Varlam Shalamov conta a história de um detento que escapou e conseguiu viver dois anos em liberdade, vagando pela Sibéria, fingindo ser um geólogo. Num dado momento, as autoridades locais, orgulhosas de contar com um especialista, pediram-lhe respeitosamente que proferisse uma palestra. "Krivoshei sorriu, citou Shakespeare em inglês, rabiscou alguma coisa no quadro-negro e desfiou uma dúzia de nomes estrangeiros." No final, foi apanhado porque enviou dinheiro à esposa.[1012] É muito possível que sua história seja apócrifa, mas os arquivos registram casos semelhantes. Em um desses episódios, um prisioneiro de Kolyma roubou alguns documentos, escondeu-se num avião e viajou até Yakutsk. E lá ele foi encontrado, confortavelmente instalado em um hotel, com 200 gramas de ouro no bolso.[1013]
Nem todas as fugas se davam por meio de astúcia. Muitas fugas de criminosos (a maioria, provavelmente) envolviam violência. Os fugitivos atacavam os guardas armados, sufocavam-nos e atiravam neles, e faziam o mesmo com os trabalhadores livres e os moradores.[1014] Também não poupavam os companheiros de prisão. Um dos métodos-padrão de fuga dos criminosos comuns era o canibalismo. Uma dupla de criminosos combinava fugir com um terceiro homem (a "carne"), cujo destino era tornar-se o sustento dos outros dois durante a jornada. Buca também descreve o julgamento de um ladrão e assassino profissional, que, junto com um colega, fugiram com o cozinheiro do campo, seu "suprimento ambulante":
Eles não foram os primeiros a ter essa idéia. Quando se tem uma comunidade imensa de pessoas que não pensam em nada a não ser fugir, é inevitável que se discutam todos os meios possíveis de atingir esse objetivo. O "suprimento ambulante" é, na verdade, um prisioneiro gordo. Se for preciso, pode-se matá-lo e comê-lo. E, até lá, é ele quem carrega a "comida".
Os dois homens fizeram conforme o planejado - mataram e comeram o cozinheiro - mas não negociaram a extensão da viagem. Começaram a ficar com fome outra vez:
No fundo do coração, os dois sabiam que o primeiro que dormisse seria morto pelo outro. Assim, ambos fingiam que não estavam cansados e passavam a noite contando histórias, observando o outro de perto. A velha amizade os impedia de atacar abertamente ou de confessar as suspeitas mútuas.
Afinal, um deles dormiu. O outro cortou-lhe a garganta. Foi apanhado, Buca nos conta, dois dias depois, e ainda tinha pedaços de carne crua no saco.[1015]
Embora não se possa saber com que freqüência esse tipo de fuga ocorria, há histórias semelhantes, contadas por um número considerável de presos entre os anos 1930 e 1940, em quantidade suficiente para afirmar que elas realmente aconteciam, pelo menos de vez em quando.[1016] Quando esteve em Kolyma, Thomas Sgovio ouviu as sentenças de morte pronunciadas em duas fugas desse tipo - eles haviam feito um rapaz de prisioneiro, mataram-no e salgaram sua carne.[1017] Vatslav Dvorzhetskii ouviu uma história parecida na Carélia, em meados dos anos 1930.
Na tradição oral do Gulag também se podem encontrar histórias de fugas e fugitivos verdadeiramente extraordinários, muitas, mais uma vez, possivelmente apócrifas.[1018] Soljenitsin relata a saga de Georgi Tenno, um político estoniano que vivia fugindo dos campos e em uma ocasião percorreu 460 quilômetros a cavalo, de barco e de bicicleta, quase chegando à cidade siberiana de Omsk. Enquanto algumas histórias de Tenno são provavelmente verdadeiras (mais tarde ele se tornou amigo de um outro memorialista sobrevivente do Gulag, Alexander Dolgun, que também o apresentou a Soljenitsin), outras, mais espetaculares, são de difícil confirmação.[1019] Existe uma antologia inglesa que conta a história de um pastor estoniano que conseguiu fugir de um campo, falsificar documentos e atravessar a fronteira do Afeganistão com seus acompanhantes. A mesma antologia cita um prisioneiro espanhol que escapou fingindo-se de morto quando um terremoto destruiu seu campo. Mais tarde, ele diz, atravessou a fronteira do Irã.[1020]
Por fim, há o caso curioso de Slavomir Rawicz, cujas memórias, A longa caminhada, contêm a mais espetacular e comovente descrição de uma fuga em toda a literatura sobre o Gulag. Segundo esse relato, Rawicz foi capturado após a invasão soviética da Polônia e deportado para um campo no norte da Sibéria. Ele afirma ter escapado, com a conivência da esposa de um comandante do campo, na companhia de outros seis detentos, um deles americano. Junto com uma garota polonesa, uma expatriada que ele pegou no meio do caminho, eles conseguiram sair da União Soviética.
Durante aquela que teria sido uma jornada extraordinária (se jamais tivesse ocorrido), eles circundaram o lago Baikal, cruzaram a fronteira da Mongólia, seguiram pelo deserto de Gobi, pelo Himalaia e pelo Tibete, até a Índia. Ao longo do caminho, quatro prisioneiros morreram; o restante sofreu privações extremas. Infelizmente, varias tentativas de confirmar essa história - muito parecida com um conto de Rudyard Kipling, "O homem que era" - deram em nada.[1021] A longa caminhada é uma história narrada com extrema maestria, mesmo (pie não seja verdadeira. Seu realismo convincente pode muito bem servir como lição a todos os que tentam descrever de forma factual as fugas do Gulag.
Pois, na verdade, a fantasia em torno da fuga exercia um papel importante na vida de muitos prisioneiros. Mesmo para os milhares de detentos que jamais tentariam escapar, o pensamento da fuga - o sonho da fuga - era um apoio psicológico importante. Um sobrevivente de Kolyma me disse que "uma das formas mais óbvias de oposição ao regime era fugir". Em especial, os prisioneiros jovens e do sexo masculino planejavam, discutiam e brigavam sobre a melhor maneira de escapar. Para alguns, essa discussão era um meio de combater a sensação de impotência, como Gustav Herling escreve:
Era comum nos reunirmos em um dos alojamentos, um grupo íntimo de poloneses, para discutir os detalhes do plano; juntávamos fragmentos de metal que encontrávamos no trabalho, caixas velhas e pedaços de vidro, com os quais acreditávamos poder montar uma bússola improvisada; recolhíamos informações sobre os arredores do campo, sobre as distâncias, as condições atmosféricas e as peculiaridades geográficas do norte [...]
Na terra de pesadelo para a qual fomos levados em centenas de trens de carga, cada minuto de fantasia nos dava uma nova vida. Afinal, se a participação em uma organização terrorista não existente podia ser punida com dez anos de prisão em um campo de trabalho forçado, por que um prego afiado não poderia ser a agulha de uma bússola, um pedaço de madeira não poderia se transformar em um esqui, uma folha de papel coberta de linhas e pontos não poderia servir de mapa?
Herling suspeita que, no fundo, todos os envolvidos nessas discussões aceditavam que os preparativos eram fúteis. No entanto, o exercício servia a seu propósito:
Lembro-me de um oficial subalterno da cavalaria polonesa que, durante os piores períodos de fome no campo, tinha força de vontade para cortar uma fina fatia do pão de sua ração diária, secá-la no fogo e guardá-la num saco que mantinha em algum esconderijo do alojamento. Anos depois, encontramo-nos de novo no deserto iraquiano.
Enquanto recordávamos os anos de prisão em torno de uma garrafa numa tenda, caçoei de seu "plano" de fuga. Mas ele me respondeu grave: "Você não devia rir disso. Sobrevivi ao campo graças à esperança de fugir, e só escapei da morte graças ao meu estoque de pão. Um homem é incapaz de sobreviver se não tiver uma razão para viver".[1022]
Se na memória da maioria dos sobreviventes era impossível fugir dos campos, uma rebelião era impensável. A caricatura do zek oprimido, derrotado e desumanizado, desesperado para colaborar com as autoridades, incapaz até mesmo de pensar mal do regime soviético, quanto mais de tramar contra ele, aparece em muitas memórias, inclusive nas de duas das maiores personalidades literárias da comunidade russa: Soljenitsin e Chalamov. E pode ser que, ao longo de grande parte da história do Gulag, essa imagem não estivesse longe da verdade. O sistema interno de espionagem e informantes realmente fazia os prisioneiros suspeitarem uns dos outros. A opressiva inevitabilidade do trabalho e a predominância dos membros do crime organizado tornavam difícil para os outros prisioneiros pensar em uma oposição organizada. A experiência humilhante de ser interrogado, preso e deportado roubara-lhes boa parte da vontade de viver, quanto mais o desejo de se opor às autoridades. Herling, que organizou uma greve de fome com outros detentos poloneses, descreve a reação dos amigos russos:
Eles ficavam excitados e fascinados diante do simples fato de termos ousado erguer a mão contra a inalterável lei da escravidão, que jamais havia sido perturbada por um gesto de revolta. Por outro lado, havia o medo instintivo - que tinham conservado da vida anterior - de se envolver em algo perigoso, talvez um caso que pudesse levar a um tribunal de guerra. Como saber se os interrogatórios não revelariam as conversas dos "rebeldes" no alojamento imediatamente após a transgressão?[1023]
Mais uma vez, no entanto, os arquivos contam uma história diferente e revelam a existência de muitos protestos menores e interrupções do trabalho nos campos. Os chefes dos criminosos de carreira, em especial, pareciam conduzir greves de trabalho breves e apolíticas sempre que queriam alguma coisa das autoridades, que consideravam esses incidentes como nada mais que uma perturbação. Nos anos 1930 e 1940, particularmente, a posição privilegiada dos criminosos comuns os teria tornado menos temerosos de punições e teria lhes dado mais oportunidades de organizar essas pequenas rebeliões.[1024]
Às vezes ocorriam protestos espontâneos dos criminosos nas lonas viagens de trem para o leste, quando não havia água e o único alimento disponível era arenque salgado. Para obrigar os guardas a lhes dar água, os criminosos combinavam "armar uma gritaria", que os guardas detestavam, como lembra um prisioneiro: "Um dia a legião romana chorou ao som dos gritos agudos dos germanos, tão aterrorizantes! Os sádicos do Gulag sentiram o mesmo terror [...]"[1025] Essa tradição durou até os anos 1980, quando, como lembra a poetisa e dissidente Irina Ratushinskaya, descontentes com o tratamento recebido, os detentos que eram transportados levaram o protesto um passo à frente:
"Ei, companheiros! Comecem a chacoalhar!", grita uma voz de homem.
Todos os prisioneiros começam a balançar o vagão. Todos juntos, em uníssono, jogam-se contra uma das paredes de sua prisão, depois contra a parede oposta. O vagão está tão cheio que a estratégia logo dá resultado. Ele sai dos trilhos e faz todo o trem descarrilar.[1026]
A superlotação e a má qualidade da comida também podiam levar a um tipo de protesto mais bem descrito como surtos semi-organizados de histeria. Uma testemunha narra uma dessas cenas, liderada por um grupo de prisioneiras comuns:
Como se tivessem recebido uma ordem, cerca de duzentas mulheres despiram-se de repente e começaram a correr pelo pátio, totalmente nuas. Em poses rudes, amontoaram-se ao redor dos guardas e gritaram, guincharam, riram e blasfemaram, jogaram-se ao chão em convulsões aterradoras, puxaram o próprio cabelo, arranharam o próprio rosto até ele sangrar, caíram de novo no chão, de novo se levantaram e correram para o portão.
"A-a-a-a-a-a-a-a-a-i!", a multidão gritou.[1027]
A parte esses momentos de loucura espontânea, utilizava-se uma modalidade de protesto mais antiga, a greve de fome, cujos objetivos e métodos foram herdados diretamente dos primeiros políticos (que, por sua vez, tinham-nos herdado da Rússia pré-revolucionária), os social-democratas, os anarquistas e os mencheviques que foram presos nos anos 1920. Esse grupo de prisioneiros manteve a tradição das greves de fome - herdada da Rússia pré-revolucionária - depois que foram mandados às prisões de isolamento, longe de Solovetsky, em 1925. Até o momento da execução, em 1937, Alexsander Fedodeev, um dos líderes dos social-revolucionários, continuou fazendo greves de fome na prisão de Suzdal, nas quais reivindicava o direito de se corresponder com a família.[1028]
Entretanto, mesmo depois de terem sido novamente transferidos das prisões para os campos, alguns ainda tentavam manter a tradição. Em meados dos anos 1930, as greves de fome dos socialistas ganharam a adesão de alguns trotskistas genuínos. Em outubro de 1936, centenas de trotskistas, anarquistas e outros prisioneiros políticos de um lagpunkt de Vorkuta deram início a uma greve de fome que duraria, segundo os registros, 132 dias. Sem dúvida, seu objetivo era político: os grevistas exigiam ser separados dos criminosos, queriam que o seu dia de trabalho fosse limitado a oito horas, que fossem alimentados a despeito do trabalho - e que suas penas fossem anuladas. Em outro lagpunkt de Vorkuta, uma greve ainda maior - desta vez com a adesão dos criminosos - duraria 115 dias. Em março de 1937, a administração do Gulag decidiu atender às reivindicações dos grevistas. No final de 1938, no entanto, a maioria havia sido morta nas execuções em massa que ocorreram no mesmo ano.[1029]
Mais ou menos na mesma época, outro grupo de trotskistas entrou em greve no campo de transição de Vladivostok, enquanto esperava a transferência para Kolyma. Ali eles fizeram reuniões e elegeram um líder, que reivindicou o direito de examinar o barco em que seriam transportados. O pedido foi recusado. Ainda assim, enquanto entravam na embarcação, os presos entoavam canções revolucionárias e chegaram até mesmo (a se acreditar nos relatórios dos informantes da NKVD) a exibir pôsteres com slogans como "Hurra, Trotski, gênio revolucionário!" e "Abaixo Stalin!" Quando o vapor chegou a Kolyma, os prisioneiros começaram a fazer novas reivindicações: as tarefas deveriam ser designadas segundo a especialidade de cada um, todos deveriam ser pagos para trabalhar, os casais não deveriam ser separados, todos os prisioneiros tinham o direito de enviar e receber cartas livremente. No tempo devido, convocaram uma série de greves de fome, sendo que uma delas durou cem dias. Um observador contemporâneo escreveu que "em Kolyma, os líderes dos prisioneiros trotskistas viviam no reino da fantasia e ignoravam as verdadeiras relações de poder". No devido tempo, também eles foram condenados e executados.[1030] Mas seu sofrimento causou impacto. Anos mais tarde, um ex-promotor de Kolyma recordava os acontecimentos com clareza:
Tudo que aconteceu depois produziu um efeito tão forte sobre mim e meus camaradas que, durante vários dias, fiquei vagando como se estivesse sob uma neblina e à minha frente marchasse uma fila de trotskistas fanáticos condenados, os quais, temerariamente, partiam desta vida grilando seus slogans [...][1031]
Talvez em resposta a essas rebeliões, a NKVD começou a levar mais a sério as greves de fome e de trabalho dos prisioneiros políticos. A partir dos anos 1930, os grevistas passaram a receber penas de prisão adicionais, até mesmo penas de morte. Eles levavam a sério as greves de fome, mas levavam ainda mais a sério a recusa dos prisioneiros em trabalhar: isso ia contra o próprio espírito dos campos. O prisioneiro que não trabalhava não criava apenas um problema disciplinar; ele se transformava num sério obstáculo aos objetivos econômicos do campo. Os grevistas passaram a ser severamente punidos, em especial após 1938, conforme descreve um detento:
Alguns prisioneiros se recusavam a sair para trabalhar [...] algo sobre a comida estar estragada. Naturalmente, a administração agia com rigor. Catorze líderes, doze homens e duas mulheres, foram mortos. As execuções aconteceram no campo, e os prisioneiros assistiram ao espetáculo enfileirados. Então, grupos de homens de cada alojamento ajudaram a cavar os túmulos, do lado de fora, ao lado da cerca de arame farpado. Enquanto essa lembrança ainda era fresca, as chances de haver outro tumulto eram pequenas [...][1032]
Mas nem a perspectiva de punição e a consciência de que haveria algumas mortes eliminavam a urgência de cada prisioneiro de se rebelar. Mais tarde, depois da morte de Stalin, eles o fizeram em massa. Mas mesmo enquanto Stalin vivia, mesmo durante os anos duros da guerra, o espírito da revolta sobreviveu - como bem ilustra a notável história do levante de Ust-Usa, em janeiro de 1942.
Nos anais do Gulag, a rebelião de Ust-Usa foi, ao que se sabe, única. Se houve outras fugas em massa enquanto Stalin era vivo, ainda não sabemos. Sobre Ust-Usa sabemos bastante: versões truncadas do acontecimento há muito fazem parte da história oral do Gulag, mas nos últimos anos ela também foi cuidadosamente documentada.[1033]
O mais estranho é o fato de essa rebelião não ter sido liderada por um prisioneiro, mas por um trabalhador livre. Na época, Mark Retyunin era o administrador chefe do lagpunkt Lesoreid, um pequeno campo madeireiro dentro do complexo de Vorkuta. O lagpunkt tinha cerca de duzentos prisioneiros, e mais da metade eram prisioneiros políticos. Em 1942, Retyuniri conhecia bem o sistema do campo: como vários chefes dos campos menores, ele já havia sido prisioneiro, tendo servido dez anos por um suposto roubo a banco. No entanto, tinha a confiança dos administradores. Um deles descreveu-o como um homem "preparado para sacrificar a própria vida pelos interesses produtivos do campo". Outros lembravam-se dele como um homem que bebia e jogava - uni testemunho, talvez, de suas origens criminosas. Outros ainda o descreviam como um amante de poesia e dono de um "temperamento forte", fanfarrão e briguento - um testemunho, talvez, da lenda em que ele se transformou.
A motivação precisa de Retyunin ainda é obscura. Ao que parece, ele ficou profundamente chocado quando a NKVD, logo depois do início da guerra, em 1941, publicou um édito proibindo todos os prisioneiros políticos de sair dos campos, mesmo aqueles cujas penas haviam expirado. Afanasy Yashkin, o único dos conspiradores originais que sobreviveu à rebelião, disse aos interrogadores da NKVD que Retyunin acreditava que todos os habitantes do lagpunkt, prisioneiros ou não, seriam executados quando os alemães começassem a avançar pela União Soviética. "O que temos a perder, mesmo que eles nos matem?", ele os incitava. "Qual é a diferença? Caímos mortos amanhã ou morremos hoje como rebeldes [...] as autoridades do campo vão atirar em todos os condenados por contra-revolução, mesmo nós, trabalhadores livres que eles pretendem manter aqui até o fim da guerra." Esse sentimento não era totalmente paranóico: como havia sido detento em Vorkuta, em 1938, ele sabia que a NKVD era bem capaz de cometer execuções em massa. Além disso, a despeito do status de chefe de um lagpunkt, recentemente fora proibido de voltar para casa num feriado.
Não se conhecem outros detalhes dos preparativos. Não é de surpreender que Retyunin não tenha deixado documentos escritos. Apesar disso, os próprios acontecimentos tornam claro que a rebelião foi planejada com cuidado. Os rebeldes deram o primeiro passo na tarde do dia 24 de janeiro de 1942. Era um sábado, o dia em que os guardas» do campo planejavam utilizar as banheiras. Eles as encheram zelosamente. O ajudante de banho do campo, um detento chinês chamado Lu Fa - que estava entre os conspiradores - rapidamente trancou as portas atrás deles. Imediatamente os outros rebeldes desarmaram o restante dos guardas, que vigiavam o vakhta. Dois guardas reagiram.
Um foi morto e o outro, ferido. Todas as armas foram parar nas mãos rios rebeldes, doze metralhadoras e quatro revólveres no total.
Rapidamente um grupo de rebeldes abriu os depósitos do campo e começou a distribuir roupas de boa qualidade e botas aos prisioneiros Esses itens haviam sido especialmente estocados por Retyunin, que exortou os prisioneiros a se juntarem ao levante. Nem todos aderiram. Alguns sentiram medo, outros perceberam a inutilidade de tudo aquilo; houve até quem tentasse dissuadir os rebeldes. Outros concordaram. Por volta das cinco horas daquela tarde, mais ou menos ama hora depois do início da revolta, uma coluna de cem homens marchava na direção de Ust-Usa, a cidade vizinha.
A princípio, os moradores do lugar, desconcertados pela boa aparência dos prisioneiros, não entenderam o que estava acontecendo. Então os rebeldes, a essa altura divididos em dois grupos, atacaram o correio e a cadeia. Foram bem-sucedidos nas duas investidas. Eles abriram as celas da cadeia, e mais doze presos se juntaram às suas fileiras. No correio, cortaram a comunicação com o mundo exterior. Ust-Usa estava sob o controle dos detentos.
Nesse ponto, a população começou a resistir. Uns poucos pegaram armas no edifício da milícia da cidade. Alguns se apressaram para defender o pequeno campo de aviação, em cuja pista, por acaso, havia dois aviões. Outros pediram socorro: um policial subiu no cavalo e dirigiu-se ao lagpunkt de Polya-Kurya, nas redondezas. Lá o pânico irrompeu. O chefe do campo, convencido de que os alemães tinham chegado, imediatamente ordenou que os prisioneiros tirassem o sapato, para que não pudessem fugir. Quinze guardas armados puseram-se a marchar em direção a Ust-Usa, pensando que iam defender a terra natal.
Nessa altura, a batalha já era aberta no centro de Ust-Usa. Os rebeldes haviam desarmado alguns dos policiais da cidade e procurado mais armas. Não contavam, no entanto, com os defensores intrépidos do edifício da milícia. A luta que se seguiu durou a noite toda. Pela manhã, as perdas dos rebeldes eram graves. Havia nove mortos e um ferido. Quarenta tinham sido capturados. Os sobreviventes optaram por uma tática diferente: partir de Ust-Usa e rumar para outra cidade, Kozhva. Não sabiam, porém, que as autoridades de Ust-Usa já haviam pedido ajuda com um radiotransmissor escondido na floresta. Todas as estradas que saíam de Ust-Usa aos poucos eram tomadas por milicianos.
Ainda assim, no início eles tiveram sorte. Quase de imediato, os rebeldes chegaram a uma aldeia onde não encontraram resistência de fato. Tentaram convencer os agricultores locais a se juntar a eles, mas foram mal-sucedidos. No correio, ouviram uma linha aberta e perceberam que a milícia estava a caminho. Abandonaram a estrada principal e enveredaram pela tundra, escondendo-se, a princípio, numa fazenda do renas. Na manhã do dia 28 de janeiro, foram descobertos: outra batalha irrompeu, com baixas pesadas dos dois lados. Ao cair da noite, porém, os rebeldes remanescentes haviam fugido - cerca de trinta ainda estavam vivos - e se escondido num abrigo de caçadores numa montanha próxima. Alguns decidiram permanecer e lutar, embora já não tivessem mais nenhuma chance, pois estavam sem munição. Outros partiram pela floresta, onde, sob o rigor do inverno, em terreno aberto, também não teriam chance.
O último ato se devi a 31 de janeiro e durou um dia e uma noite. A medida que a milícia fechava o cerco, alguns rebeldes, inclusive Retyunin, se mataram. A NKVD caçou os outros na floresta, pegando vim por um. Os corpos foram empilhados: a milícia, num frenesi de ódio, mutilou-os e depois fotografou-os. As fotos, conservadas nos arquivos regionais, mostram corpos contorcidos, atormentados, cobertos de neve e sangue. Não há registro do local de sepultamento. Dizem que os milicianos os queimaram ali mesmo.
Como conseqüência, os rebeldes capturados no início foram enviados a Syktyvkar, a capital regional, e sem demora colocados sob investigação. Depois de mais de seis meses de interrogatório e tortura, nove receberam novas penas de prisão e 49 foram executados a 9 de agosto de 1942.
O número de mortos entre os defensores da ordem soviética foi alto. Mas não foi apenas a perda de algumas dúzias de guardas e civis que preocupou a NKVD. Segundo um testemunho registrado, Yashkin também "confessou" que o objetivo final de Retyunin era derrubar as autoridades regionais, impor um regime fascista e, naturalmente, aliar-se à Alemanha nazista. Conhecendo os métodos soviéticos de interrogatório, podemos descartar essas razões com bastante segurança.
Ainda assim, a rebelião foi muito mais que uma revolta comum: claramente, ela tinha motivações políticas e abertamente anti-soviéticas. Os rebelados também não tinham o perfil típico do fugitivo comum: em sua maioria, eles eram prisioneiros políticos. A NKVD sabia que os rumores sobre a rebelião se espalhariam com rapidez pelos campos próximos, que contavam com um número incomumente alto de presos políticos durante a guerra. Alguns, então e mais tarde, suspeitavam que os alemães tivessem conhecimento dos campos de Vorkuta e planejassem usá-los como quinta-coluna, caso sua marcha chegasse tão longe. Rumores de que espiões alemães desceram de pára-quedas na região persistem até os dias de hoje.
Como temia que a ação se repetisse, Moscou tomou providências. A 20 de agosto de 1942, todos os chefes de todos os campos do sistema receberam um memorando: "Sobre o Aumento das Atividades Contra-Revolucionárias nos Campos de Trabalho Correcionais da NKVD". O memorando exigia que eles eliminassem as "forças contra-revolucionárias e anti-soviéticas" dos campos em duas semanas. As investigações que se seguiram em todo o país "revelaram" uma quantidade enorme de pretensas conspirações, desde o "Comitê para a Libertação do Povo", em Vorkuta, até a "Sociedade Russa para a Vingança contra os Bolcheviques", em Omsk. Um relatório publicado em 1944 declarava que 603 grupos de insurreição que operavam nos campos haviam sido descobertos entre 1941 e 1944, com um total de 4.640 participantes.[1034]
Sem dúvida, a grande maioria desses grupos era fictícia, criada com o objetivo de provar que a rede de informantes dentro dos campos estava fazendo alguma coisa. No entanto, as autoridades tinham razão em ter medo: a rebelião de Ust-Usa fora uma amostra do que estava por vir. Embora tenha sido derrotada, não foi esquecida: como também não se esqueceu o sofrimento dos socialistas e dos trotskistas. Uma década depois, partindo do ponto em que os rebeldes e os grevistas de fome haviam parado, uma nova geração de prisioneiros reinventaria as greves políticas, modificando suas táticas à luz de uma nova era. A história deles, entretanto, pertence aos capítulos subseqüentes. Eles não fazem parte da história dos campos no apogeu do reinado do Gulag, mas de uma saga posterior: a história do fim do Gulag.
ASCENSÃO E QUEDA DO COMPLEXO INDUSTRIAL DE CAMPOS - 1940-86
Era soldado, hoje sou prisioneiro
Minha alma congela, minha língua cala.
Que poeta, que artista
Pintará meu terrível cativeiro?
E os corvos malignos não sabiam
Que espécie de pena dar
Quando nos torturaram e caçaram
Da prisão ao degredo ao campo
Mas o indizível ocorrei
Acima da presa
Uma estrela livre brilha
A alma congela - mas não se quebra
A língua cala - mas vai falar!
Leonid Sitko, 1949.[1035]
A memória coletiva do Ocidente costuma reconhecer o dia 1o de setembro de 1939, data da invasão do oeste da Polônia pela Alemanha, como o início da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, na consciência histórica da Rússia, nem esse dia, nem o 15 de setembro de 1939 -data da invasão soviética do leste da Polônia - contam como o início da batalha. Apesar de dramática, essa invasão conjunta, definida com antecedência durante as negociações que culminaram com o pacto Hitler-Stalin, não afetou diretamente a vida da maioria dos soviéticos.
Nenhum cidadão soviético se esquece, porém, de 22 de junho de 1941, o dia em que Hitler deslanchou a Operação Barba Ruiva, um ataque-surpresa contra os aliados russos. Karlo Stajner, então prisioneiro em Norilsk, ouviu a notícia no rádio do campo:
Subitamente, a música foi interrompida e ouvimos Molotov falar do "ataque desleal" contra a União Soviética. Depois de algumas palavras, o programa saiu do ar. Havia cerca de cem pessoas no alojamento, mas o silêncio era completo: olhávamos fixamente uns para os outros. O vizinho de Vasily disse: "E o nosso fim".[1036]
Acostumados à idéia de que todo evento político de grandes proporções era ruim para eles, os prisioneiros políticos receberam a notícia da invasão com particular horror. E eles tinham razão: em alguns casos, os "inimigos do povo", agora encarados como uma potencial quinta-coluna, eram alvo imediato do aumento da repressão. Alguns (até hoje o número é desconhecido) foram executados. Stajner se lembra de que, no segundo dia da guerra, a comida foi racionada: "o açúcar foi banido, e mesmo a ração de sabão caiu pela metade". No terceiro dia da guerra, todos os detentos estrangeiros foram reunidos. Stajner, um cidadão austríaco (embora ele se considerasse um comunista iugoslavo), foi detido novamente, retirado do campo e colocado numa cadeia. Os promotores do campo reabriram seu caso.
O mesmo padrão se repetiu em todos os campos. Em Ustvymlag, no primeiro dia de guerra o comandante do campo...
[1] RGASPI, 119/7/96.
[2] Viktor Shmirov, entrevista com a autora, 31 de março de 1998. Shmirov é diretor do Perm Gulag Museum.
[3] Ver GARF, 9414/4/29 para uma lista de administradores do Canal do Mar Branco expulsos do Partido por terem tido relações sexuais com prisioneiros, entre outros delitos.
[4] NARK, 865/1/(10/52).
[5] Kuperman, memórias não publicadas.
[6] Ivanova,Labor Camp Socialism, p. 154.
[7] Ver, por exemplo, GARF, 9414/4110.
[8] GARF, 9401/1a/61 e 9401/1/743.
[9] Kuzmina, pp. 93-99.
[10] GARF, 9401/2/319.
[11] GARF, 9414/3/40.
[12] Razgon, pp. 201-10.
[13] Petrov, "Cekisti e it seconding". (A autora leu o manuscrito em russo).
[14] Ibid. Houve exceções, das quais a carreira de Viktor Abakumov foi uma. Ele começou sua carreira no Gulag, mas trabalhou seu caminho ladeira acima até ingressar na contra-espionagem. Ver Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 141-42.
[15] Ivanova, ibid., p. 145.
[16] Sou grata a Terry Martin por apontar isto.
[17] Melgunov, p. 241. Ver também Petrov, "Cekisti a it seconding".
[18] Ivanova, Labor Camp Socialism.
[19] Ibid., p. 150.
[20] GARF, 9401/1/743.
[21] Petrov, "Cekisti a it seconding".
[22] Smimova, entrevista com a autora.
[23] Kokurin e Petrov, Gulag, pp. 798-857.
[24] RGASPI, 119/3/1, 6,12, e 206; 119/4/66.
[25] Petrov, "Cekisti e it seconding".
[26] GARF, 9414/4/3.
[27] GARF, 9401/1/4240.
[28] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 163.
[29] Ver, por exemplo, GARF, 9414/3/40 e 9401/1/743.
[30] Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 143 e 161.
[31] GARF, 9489/2/16.
[32] GARF, 9414/3/40.
[33] GARF, 8131/37/357.
[34] GARF, 8131/37/2063.
[35] Vasíleevna, entrevista com a autora.
[36] GARF,9401/1a/1.
[37] GARF, 9401/1a/10; 9489/2/5; e 9401/1a/5.
[38] GARF, 9401/1a/6.
[39] Nordleer, "Capital of the Gulag", p. 183.
[40] Pechora, entrevista com a autora.
[41] Roeder, pp. 128-30.
[42] Kuchin, PolyanskiiLTL, pp. 10-16.
[43] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 159-60.
[44] Ibid., p. 160.
[45] Stajner, pp. 241-42.
[46] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 160.
[47] MacQueen.
[48] GARF, 8131/37/2063 e 9401/12/316.
[49] Kuusinen, p. 173.
[50] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, pp. 376-78 e p. 140.
[51] Sgovio, pp. 247-48.
[52] Nordleer, "Capital of the Gulag".
[53] Rotfort, pp. 78-80.
[54] Razgon, p. 214.
[55] Vogelfanger, pp. 147 e 178.
[56] Kopelev, pp. 372-75.
[57] Nordleer, "Capital of the Gulag", p. 277.
[58] Razgon, p. 228.
[59] Starosthvpp. 83-88.
[60] GARF, documento em poder da autora, sem referência.
[61] Ibid.
[62] Este é o argumento em Goldhagen.
[63] Smirnova, entrevista com a autora.
[64] Ereevna, entrevista com a autora.
[65] Arginskaya, entrevista com a autora.
[66] GARF, 8131/37/100.
[67] R. Medvedev, p. 282.
[68] Razgon, p. 221.
[69] Gorchakov, L-1-105, pp. 156-57.
[70] Pryadilov, pp. 81-95.
[71] GARF, 8131/37/1253.
[72] Levinson, p. 40.
[73] Zhigulin, p. 154; Seratskaya, memórias inéditas, p. 51.
[74] Gnedin, p. 117.
[75] Rerdinskikh, p. 22.
[76] GARF, 9489/2/20 e 9401/1a/61.
[77] Bulgakov, entrevista com a autora.
[78] GARF, 8131/37/809.
[79] Zhigulin, p. 157.
[80] Berdinskikh, p. 22.
[81] Dyakov, p. 65.
[82] Lipper,pp. 241-43.
[83] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 149.
[84] Ulyanovskaya, p. 316.
[85] Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR", p. 89.
[86] Weiner, "Nature, Nurture and Memory in a Socialist Utopia".
[87] Zhigulin, p. 157.
[88] Stajner, p. 69.
[89] Buber-Neumann, p. 125.
[90] Shreider, p. 193.
[91] MacQueen.
[92] Anna Zakharova, "The Defense of a Prison Camp Official", em Cohen, p. 143.
[93] Anônimo, entrevista com a autora.
[94] Hochschild, p. 65.
[95] MacQueen.
[96] Razgon, p. 214.
[97] GARF, 8131/37/809.
[98] Berdinskikh, p. 28.
[99] Zarod, p. 94.
[100] GARF, 8131/37.
[101] Dostoevsky, p. 29.
[102] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, pp. 353-54.
[103] Gorbatov, p.125.
[104] Ekart, pp. 71-74.
[105] Ioffe, pp. 8-9.
[106] Razgon, p.184.
[107] Colonna-Czosnowski, p.109.
[108] Varese, pp. 162-64.
[109] Abramkin e Chesnokova, pp. 7-22.
[110] Ibid.
[111] Dostoevsky, p. 35.
[112] Abramkin e Chesnokova, p. 10.
[113] Razgon, p.185.
[114] Dolgun, pp. 139-60.
[115] Korallov, entrevista com a autora.
[116] Abramkin e Chesnokova, p. 9.
[117] Korallov, entrevista com a autora.
[118] Varese, pp. 146-50.
[119] N. Medvedev, pp. 14-16.
[120] Ibid.
[121] Shalamov, Kolyma Tales, p. 411.
[122] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 445.
[123] Zhigulin, p. 136.
[124] Berdinskikh, pp. 291-315.
[125] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[126] A. Akarevich, "Blatnye slova". Solovetskie Ostrova, Fevereiro de 1925, no. 2 (SKM).
[127] Guberman, pp. 72-73.
[128] GARF, 9489/2/15.
[129] Shalamov, Kolyma Tales, p. 7.
[130] Feldgun, memórias inéditas.
[131] Berdinskikh, p.132.
[132] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 441.
[133] Sgovio, pp. 165-69.
[134] GARF, 8131/37/1261.
[135] Likhachev, "Kartezhnye igri ugolovnikov". Solovetskie Ostrova,1930, nº 1., pp. 32-35 (SKM).
[136] Finkelstein, entrevista com a autora.
[137] Herling, p. 18.
[138] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 113, Pasta 2.
[139] Gorbatov, p. 140-41.
[140] Colonna-Czosnowski, pp. 126-31.
[141] Antonov-Ovseenko, The Time ofStalin, p. 316.
[142] Varese, p. 159.
[143] Finkelstein, entrevista com a autora.
[144] Zemskov, "Zaklyuchennie v 1930-e gody", p. 68.
[145] Dugin; Zemskov, ibid., p. 65.
[146] Adamova-Sliozberg, "My Journey", em Vilensky, Till My Tale Is Told, p. 2
[147] Elletson, p. 2.
[148] Kuchin, Polyans ii ITL, pp. 37-38.
[149] Ekart, p. 69.
[150] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, pp. 334-35; Razgon, p. 93.
[151] Razgon, p. 93.
[152] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 258-59.
[153] Warwick, memórias inéditas.
[154] Frid, p. 235.
[155] Federolf, p. 123.
[156] Purizhinskaya, entrevista com a autora.
[157] Trus, entrevista com a autora.
[158] Gagen-Torn, p. 77.
[159] Razgon, p. 138.
[160] Ekart, p. 192.
[161] Leipman, p. 69.
[162] Ekart, pp. 67-68.
[163] Noble, p. 121.
[164] Leipman, p. 89.
[165] Ekart, p. 191.
[166] Dostoevsky, p. 51.
[167] Chukhin, Kanaloarmeetsi, pp. 164-67.
[168] GARF, 9489/2/5.
[169] Herling-Grudzinski, p. 25.
[170] S. I. Kuznetsov.
[171] Polonskii.
[172] MacQueen.
[173] Panin, p. 187.
[174] Stajner, p. 203.
[175] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 401.
[176] Hoover, Coleção Adam Galinski.
[177] Wat, p. 147.
[178] Khachatryan, entrevista com a autora.
[179] Buca, p. 122.
[180] Negretov, entrevista com a autora.
[181] Korallov, entrevista com a autora.
[182] Sitko, entrevista com a autora.
[183] Purizhinskaya, entrevista com a autora.
[184] GARF, 9414/1/206 (estatísticas nacionais de 1954).
[185] Petrov, pp. 119-37.
[186] Trus, entrevista com a autora.
[187] Federolf, p. 234.
[188] Gagen-Torn, p. 205.
[189] Ereevna, entrevista com a autora.
[190] Pechora, entrevista com a autora.
[191] Larina, p. 159.
[192] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 330.
[193] Dyakov, pp. 60-67.
[194] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 351-52.
[195] Shentalinsky, pp. 163-65.
[196] Ereevna, entrevista com a autora.
[197] Gagen-Torn, p. 208.
[198] Kuusinen, p. 202.
[199] Solzhenityn, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 65-66.
[200] Ulyanovskaya, p. 300.
[201] Arginskaya, entrevista com a autora.
[202] Gagen-Torn, p. 208.
[203] Vilenskii, Till My Taleis Told, p. 53-54.
[204] Por exemplo, Vilensky, entrevista com a autora.
[205] Buber-Neumann, p. 38.
[206] Herling, p. 136.
[207] Ibid., pp. 134-35.
[208] Levinson, pp. 72-75.
[209] GARF, 9401/1a/107.
[210] Ver, por exemplo, Alin, pp. 157-60 e Evstonichev, pp. 19-20.
[211] Estatísticas compiladas de várias fontes, GARF. Agradeço a Alekser Kokurin por elas.
[212] "Não Faz Parte de Minha Sentença: Violações dos Direitos Humanos de Mulheres em Custódia".
[213] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 415-31.
[214] Sgovio, pp. 173-74.
[215] Abramkin e Chesnokova, p. 18; Marchenko, To Live Like Everyone, p. 16.
[216] Yakir, pp. 46-47.
[217] Ulyanovskaya, pp. 388-91, e Lvov, memórias inéditas.
[218] Ulyanovskaya, ibid.
[219] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[220] Frid, pp. 186-87.
[221] Lvov, memórias inéditas.
[222] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[223] Pechora, entrevista com a autora.
[224] Ereevna, entrevista com a autora.
[225] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 233.
[226] Filshtinskii, entrevista com a autora.
[227] Hava Volovich, "My Past", em Vilensky, TillMy Tale Is To/d, p. 260.
[228] Lvov, memórias inéditas.
[229] Buca, pp. 134-35.
[230] Razgon, pp. 163-64.
[231] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 233.
[232] Em latim, referência ao pretenso direito que o suserano teria de passar a primeira noite com a esposa do vassalo. (N. T.)
[233] Herling, p.135.
[234] Frid, p.187.
[235] Ibid., pp. 187-88.
[236] Zhigulin, pp. 128-33.
[237] Vogelfanger.
[238] Sitko e Pechora, entrevistas com a autora.
[239] Kaufman, p. 223.
[240] Sitko, entrevista com a autora.
[241] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 248-49.
[242] Ibid., p. 249.
[243] NKVD, ordem operacional de 15 de Agosto de 1937, reproduzida em Sbornik, pp. 86-93.
[244] GARF, 9401/1a/66.
[245] Kaufman, pp. 188-89.
[246] Natalya Zaporozhets, em Vilensky, Till MyTale Is Told, pp. 532-39.
[247] Vilensky, Deti Gulags, p. 428.
[248] Ibid., pp. 41-42.
[249] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[250] Vilensky, Deti Gulags, p. 117.
[251] Por exemplo, a anistia de mulheres com crianças em 1945 excluiu especificamente prisioneiras políticas, como fez uma similar em 1948. GARF 8131/37/4554 9401/1a/191; e 9401/1/743.
[252] Khachatryan, entrevista com a autora.
[253] Lahti, memórias inéditas. Agradeço a Reuben Rajala por este manuscrito.
[254] Joffe, p.124.
[255] Frid, p.184; GARF, 9414/1/2741.
[256] Ereevna, entrevista com a autora.
[257] Yakovenko, p.196.
[258] Hava Volovich, "My Past", em Vilensky, Dodnes Tiagoteet, pp. 260-64.
[259] GARF, 9414/6/44 e 45.
[260] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 3.
[261] GARF, 9401/2/234.
[262] GARF, 8313/37/4554 e 1261.
[263] Vilensky, Deti Gulags, p.150.
[264] Joffe, pp. 127-35.
[265] GARF, 8313/37/4554.
[266] Anônimo, entrevista com a autora.
[267] GARF, 8313/37/4554.
[268] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, pp. 3-11.
[269] Embora o anônimo administrador de enfermaria com quem falei tenha negado que isto ocorreu, inúmeros memorialistas falam de mães sendo separadas de suas crianças. Susanna Pechora conta que nos campos especiais essa era uma prática constante.
[270] Vilensky, Deti Gulags, pp. 241-42.
[271] Armonas, pp. 156-6.
[272] Vilensky, Deti Gulags, p. 320.
[273] Bazarov, p. 362.
[274] Ibid., pp. 370-76.
[275] Vilensky, Deti Gulags, p. 144.
[276] GARF, 9401/1a/20.
[277] Vilensky, Deti Gulags, p. 248.
[278] Ibid., p. 247.
[279] GARF, 9401/1a/20.
[280] Yakir,p. 31.
[281] Anônimo, Ekho iz Nebutiya, pp. 289-92.
[282] Yurganova, entrevista com a autora.
[283] Hochschild, p. 87.
[284] Pechora, entrevista com a autora.
[285] Lahti, memórias inéditas.
[286] GARF, 9414/1/27.
[287] Serge, p. 28.
[288] Bazarov, p. 383.
[289] GARF, 9414/1/42 e 9401/1a/7; Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 447-51.
[290] Vilensky, Deti Gulags, p. 11.
[291] GARF, 9414/1/42; Bazarov, pp. 385-93.
[292] Razgon, p. 162.
[293] GARF, 9412/1/58.
[294] GARF, 9401/1a/62 e 7.
[295] GARF, 8131/37/4553.
[296] GARF, 9401/1a/57.
[297] Yakir, pp. 32-62.
[298] Kmiecik, pp. 70-74.
[299] Vilensky, Deti Gulags, pp. 283-93.
[300] Conquest, The Great Terror, p. 274.
[301] GARF, 8131/37/2063.
[302] GARF, 9414/1/27.
[303] Kmiecik, pp. 93-94.
[304] GARF, 9401/1a/81.
[305] GARF, 8131/37/2063.
[306] Kmiecik, pp. 114-17.
[307] GARF, arquivos, da coleção da autora.
[308] GARF, 941414/1; do jornal Perekovka, 1º de junho de 1934.
[309] GARF, 9412/1 C/47.
[310] GARF, 9401/1a/107.
[311] GARF, 9401/1a/7/84.
[312] GARF, 8131/37/4547.
[313] Razgon, pp. 162-63.
[314] Ibid., p. 162.
[315] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 457.
[316] Wigmans, p. 90.
[317] Klein, Ulybki nevoli, pp. 20-25.
[318] Ver Vilensky, Deti Gulags, para excertos dessas memórias.
[319] Reeditado em Cohen, pp. 96-97.
[320] GARF, 9414/6 (álbum fotográfico).
[321] Okhotin e Roginskii, pp. 137-476.
[322] GARF, 9414/6/8.
[323] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind e Within the Whirlwind.
[324] Sitko, entrevista com a autora.
[325] Filshtinskii, p. 37.
[326] GARF, 9489/2/9.
[327] Pryadilov, pp. 113-14.
[328] Weissberg, p. 96.
[329] Soljenitsin, One Day in the Life of Ivan Denisovich, p. 49.
[330] Kress, "Novyi pioner, ili, Kolymskaya selektsiya", in Vilensky, Osventsim Gez Fechei, pp. 62-70.
[331] Zorin, entrevista com a autora.
[332] Mindlin, pp. 52-57.
[333] Sofsky, p. 168.
[334] Pechora, entrevista com a autora.
[335] Ver, por exemplo, fotografias do Memorial Archive.
[336] Rossi, The GulagHandbook, p. 255.
[337] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, pp. 405 e 407.
[338] Ulyanovskaya, pp. 356-65.
[339] Petrov, pp. 208 e 178.
[340] Zarod, p. 114.
[341] Bardach, pp. 233-34.
[342] Sulimov, p. 57.
[343] Filshtinskii, p. 38.
[344] Bystroletov, p. 162.
[345] Bardach, pp. 232-33.
[346] GARF, 9401/1a/141.
[347] GARF, 8131/37/4547.
[348] Ver, por exemplo, Zhenov, p. 69.
[349] Lipper, p. 135.
[350] George Victor Zgornicki, de uma gravação enviada à autora, abril de 1998.
[351] Petrov, p. 178.
[352] Filshtinskii, p. 39.
[353] GARF, 9401/1/713.
[354] Petrov, p. 208.
[355] Zarod, p. 114.
[356] Bardach, p, 233.
[357] Olitskaya, pp. 234-44.
[358] Weissberg, p. 63.
[359] Ekart, p. 83.
[360] Usakova, entrevista com a autora.
[361] Dolgun, p. 185.
[362] GAHF documento em posse da autora, sem referências.
[363] Razgon, p. 155. Exemplos de serrotes primitivos estão expostos no museu de história de Medvezhegorsk.
[364] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[365] Ibid.
[366] Norlander, "Capital of the Gulag", p. 170.
[367] CARK 9414/4/3.
[368] Norlander, "Capital of the Gulag", p. 182.
[369] Dagor, p. 10.
[370] Maksimovieh, pp. 91-100.
[371] A. Dobrovolskii; Okhotin e Roginskii, pp. 220-21 e 341-43.
[372] GARF, 9414/6/23.
[373] SLON, vol. I, 1924 (from GARF collection).
[374] Chukhin,Kanaloarmeetsi, pp. 127-31.
[375] Sgovio, p. 184.
[376] GARF, 9401/1/567.
[377] GARF, 9401/1a/68.
[378] Feldgun, memórias não publicadas.
[379] GARF, 9401/1/567.
[380] Herling, pp. 157-58.
[381] Wigmans, p. 127; Korallov, entrevista com a autora.
[382] GARF, 9401/1/2443.
[383] GARF, 9401/1/567.
[384] GARF, 9414/1/1442.
[385] Filshtinskii, pp. 163-69.
[386] GARF, 9414/1/1441.
[387] Ekart, p. 82.
[388] GARF, 9414/1/1440.
[389] GARF, 9414/4/145.
[390] Kotkin, p. 232.
[391] Andreevna, entrevista com a autora.
[392] Trus, entrevista com a autora.
[393] Ekart, p. 82.
[394] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[395] Herling, p. 155.
[396] GARF, 9414/1/1460.
[397] GARF, 9414/1/1461; Okhotin e Roginskii, p. 195.
[398] GARF, 9414/1/1461.
[399] Vladimir Bukovsky, entrevista com a autora, março de 2002.
[400] Reeditado in Rossi, The Gulag Handbook, p. 460.
[401] Kaufman, p. 249.
[402] Herling, p. 199.
[403] GARF, 9401/12/316.
[404] Kuusinen, pp. 201-2.
[405] Razgon, pp. 139-40.
[406] GARF, 9401/1/713 e 9401/12/316.
[407] Bardach, pp. 213-15.
[408] Herling, pp. 199 e 200.
[409] Ulyanovskaya, p. 358.
[410] Herling, p. 200.
[411] GARF, 9489/2/5.
[412] Nordlander, "Capital of the Gulag", pp. 230-31.
[413] Adamova-Sliozberg, p. 66.
[414] Svetlana Doinisena, diretora do museu de história de Iskitim, entrevista com a autora, 1º de março de 1999.
[415] L. Samakhova, "Lagernaya Pyl", in Vozvrashcheniepamyati, vol. 1, pp. 38-42.
[416] GARF, 5446/1/54.
[417] GARF, 9401/12/316.
[418] Ibid.
[419] GARF, 9401/1/3463.
[420] Ver, por exemplo, Chirkov, pp. 54-55; Maksimovieh, pp. 82-90.
[421] GARF, 8131/37/542.
[422] GARF, 9489/2/20.
[423] Bystroletov, pp. 377-78.
[424] Rozina, p. 65.
[425] Armonas, pp. 123-26.
[426] Gorbatov, p. 121.
[427] Bystroletov, pp. 385-86.
[428] A. Morozov, pp. 101-3.
[429] Há um exemplo na coletânea de documentos de Kedrovyi Shor, em posse da autora.
[430] GARF, 9401/12/316.
[431] A. Morozov, pp. 171-75.
[432] Bystroletov, p. 169.
[433] Ulyanovskaya, p. 403.
[434] Zhcnov, pp. 104-6.
[435] GARF, 9489/2/5.
[436] Herling, p. 93.
[437] Golovanov, p. 128.
[438] Koroleva, entrevista com a autora.
[439] Yasnyi, pp. 52-53.
[440] Bystrolelov, p. 391.
[441] Herling, p. 92.
[442] Gogua, memórias não publicadas.
[443] Herling, p. 95.
[444] Soljenitsin, The First Circle, p. 221;Thomas, pp. 175-77.
[445] Mazus, pp. 34-37.
[446] Herling, p. 95.
[447] RGASPI, 119/7/96.
[448] Viktor Shmirov, entrevista com a autora, 31 de março de 1998. Shmirov é diretor do Perm Gulag Museum.
[449] Ver GARF, 9414/4/29 para uma lista de administradores do Canal do Mar Branco expulsos do Partido por terem tido relações sexuais com prisioneiros, entre outros delitos.
[450] NARK, 865/1/(10/52).
[451] Kuperman, memórias não publicadas.
[452] Ivanova,Labor Camp Socialism, p. 154.
[453] Ver, por exemplo, GARF, 9414/4110.
[454] GARF, 9401/1a/61 e 9401/1/743.
[455] Kuzmina, pp. 93-99.
[456] GARF, 9401/2/319.
[457] GARF, 9414/3/40.
[458] Razgon, pp. 201-10.
[459] Petrov, "Cekisti e it seconding". (A autora leu o manuscrito em russo).
[460] Ibid. Houve exceções, das quais a carreira de Viktor Abakumov foi uma. Ele começou sua carreira no Gulag, mas trabalhou seu caminho ladeira acima até ingressar na contra-espionagem. Ver Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 141-42.
[461] Ivanova, ibid., p. 145.
[462] Sou grata a Terry Martin por apontar isto.
[463] Melgunov, p. 241. Ver também Petrov, "Cekisti a it seconding".
[464] Ivanova, Labor Camp Socialism.
[465] Ibid., p. 150.
[466] GARF, 9401/1/743.
[467] Petrov, "Cekisti a it seconding".
[468] Smimova, entrevista com a autora.
[469] Kokurin e Petrov, Gulag, pp. 798-857.
[470] RGASPI, 119/3/1, 6,12, e 206; 119/4/66.
[471] Petrov, "Cekisti e it seconding".
[472] GARF, 9414/4/3.
[473] GARF, 9401/1/4240.
[474] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 163.
[475] Ver, por exemplo, GARF, 9414/3/40 e 9401/1/743.
[476] Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 143 e 161.
[477] GARF, 9489/2/16.
[478] GARF, 9414/3/40.
[479] GARF, 8131/37/357.
[480] GARF, 8131/37/2063.
[481] Vasíleevna, entrevista com a autora.
[482] GARF,9401/1a/1.
[483] GARF, 9401/1a/10; 9489/2/5; e 9401/1a/5.
[484] GARF, 9401/1a/6.
[485] Nordleer, "Capital of the Gulag", p. 183.
[486] Pechora, entrevista com a autora.
[487] Roeder, pp. 128-30.
[488] Kuchin, PolyanskiiLTL, pp. 10-16.
[489] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 159-60.
[490] Ibid., p. 160.
[491] Stajner, pp. 241-42.
[492] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 160.
[493] MacQueen.
[494] GARF, 8131/37/2063 e 9401/12/316.
[495] Kuusinen, p. 173.
[496] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, pp. 376-78 e p. 140.
[497] Sgovio, pp. 247-48.
[498] Nordleer, "Capital of the Gulag".
[499] Rotfort, pp. 78-80.
[500] Razgon, p. 214.
[501] Vogelfanger, pp. 147 e 178.
[502] Kopelev, pp. 372-75.
[503] Nordleer, "Capital of the Gulag", p. 277.
[504] Razgon, p. 228.
[505] Starosthvpp. 83-88.
[506] GARF, documento em poder da autora, sem referência.
[507] Ibid.
[508] Este é o argumento em Goldhagen.
[509] Smirnova, entrevista com a autora.
[510] Ereevna, entrevista com a autora.
[511] Arginskaya, entrevista com a autora.
[512] GARF, 8131/37/100.
[513] R. Medvedev, p. 282.
[514] Razgon, p. 221.
[515] Gorchakov, L-1-105, pp. 156-57.
[516] Pryadilov, pp. 81-95.
[517] GARF, 8131/37/1253.
[518] Levinson, p. 40.
[519] Zhigulin, p. 154; Seratskaya, memórias inéditas, p. 51.
[520] Gnedin, p. 117.
[521] Rerdinskikh, p. 22.
[522] GARF, 9489/2/20 e 9401/1a/61.
[523] Bulgakov, entrevista com a autora.
[524] GARF, 8131/37/809.
[525] Zhigulin, p. 157.
[526] Berdinskikh, p. 22.
[527] Dyakov, p. 65.
[528] Lipper,pp. 241-43.
[529] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 149.
[530] Ulyanovskaya, p. 316.
[531] Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR", p. 89.
[532] Weiner, "Nature, Nurture and Memory in a Socialist Utopia".
[533] Zhigulin, p. 157.
[534] Stajner, p. 69.
[535] Buber-Neumann, p. 125.
[536] Shreider, p. 193.
[537] MacQueen.
[538] Anna Zakharova, "The Defense of a Prison Camp Official", em Cohen, p. 143.
[539] Anônimo, entrevista com a autora.
[540] Hochschild, p. 65.
[541] MacQueen.
[542] Razgon, p. 214.
[543] GARF, 8131/37/809.
[544] Berdinskikh, p. 28.
[545] Zarod, p. 94.
[546] GARF, 8131/37.
[547] Dostoevsky, p. 29.
[548] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, pp. 353-54.
[549] Gorbatov, p.125.
[550] Ekart, pp. 71-74.
[551] Ioffe, pp. 8-9.
[552] Razgon, p.184.
[553] Colonna-Czosnowski, p.109.
[554] Varese, pp. 162-64.
[555] Abramkin e Chesnokova, pp. 7-22.
[556] Ibid.
[557] Dostoevsky, p. 35.
[558] Abramkin e Chesnokova, p. 10.
[559] Razgon, p.185.
[560] Dolgun, pp. 139-60.
[561] Korallov, entrevista com a autora.
[562] Abramkin e Chesnokova, p. 9.
[563] Korallov, entrevista com a autora.
[564] Varese, pp. 146-50.
[565] N. Medvedev, pp. 14-16.
[566] Ibid.
[567] Shalamov, Kolyma Tales, p. 411.
[568] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 445.
[569] Zhigulin, p. 136.
[570] Berdinskikh, pp. 291-315.
[571] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[572] A. Akarevich, "Blatnye slova". Solovetskie Ostrova, Fevereiro de 1925, no. 2 (SKM).
[573] Guberman, pp. 72-73.
[574] GARF, 9489/2/15.
[575] Shalamov, Kolyma Tales, p. 7.
[576] Feldgun, memórias inéditas.
[577] Berdinskikh, p.132.
[578] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 441.
[579] Sgovio, pp. 165-69.
[580] GARF, 8131/37/1261.
[581] Likhachev, "Kartezhnye igri ugolovnikov". Solovetskie Ostrova,1930, nº 1., pp. 32-35 (SKM).
[582] Finkelstein, entrevista com a autora.
[583] Herling, p. 18.
[584] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 113, Pasta 2.
[585] Gorbatov, p. 140-41.
[586] Colonna-Czosnowski, pp. 126-31.
[587] Antonov-Ovseenko, The Time ofStalin, p. 316.
[588] Varese, p. 159.
[589] Finkelstein, entrevista com a autora.
[590] Zemskov, "Zaklyuchennie v 1930-e gody", p. 68.
[591] Dugin; Zemskov, ibid., p. 65.
[592] Adamova-Sliozberg, "My Journey", em Vilensky, Till My Tale Is Told, p. 2
[593] Elletson, p. 2.
[594] Kuchin, Polyans ii ITL, pp. 37-38.
[595] Ekart, p. 69.
[596] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, pp. 334-35; Razgon, p. 93.
[597] Razgon, p. 93.
[598] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 258-59.
[599] Warwick, memórias inéditas.
[600] Frid, p. 235.
[601] Federolf, p. 123.
[602] Purizhinskaya, entrevista com a autora.
[603] Trus, entrevista com a autora.
[604] Gagen-Torn, p. 77.
[605] Razgon, p. 138.
[606] Ekart, p. 192.
[607] Leipman, p. 69.
[608] Ekart, pp. 67-68.
[609] Noble, p. 121.
[610] Leipman, p. 89.
[611] Ekart, p. 191.
[612] Dostoevsky, p. 51.
[613] Chukhin, Kanaloarmeetsi, pp. 164-67.
[614] GARF, 9489/2/5.
[615] Herling-Grudzinski, p. 25.
[616] S. I. Kuznetsov.
[617] Polonskii.
[618] MacQueen.
[619] Panin, p. 187.
[620] Stajner, p. 203.
[621] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 401.
[622] Hoover, Coleção Adam Galinski.
[623] Wat, p. 147.
[624] Khachatryan, entrevista com a autora.
[625] Buca, p. 122.
[626] Negretov, entrevista com a autora.
[627] Korallov, entrevista com a autora.
[628] Sitko, entrevista com a autora.
[629] Purizhinskaya, entrevista com a autora.
[630] GARF, 9414/1/206 (estatísticas nacionais de 1954).
[631] Petrov, pp. 119-37.
[632] Trus, entrevista com a autora.
[633] Federolf, p. 234.
[634] Gagen-Torn, p. 205.
[635] Ereevna, entrevista com a autora.
[636] Pechora, entrevista com a autora.
[637] Larina, p. 159.
[638] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 330.
[639] Dyakov, pp. 60-67.
[640] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 351-52.
[641] Shentalinsky, pp. 163-65.
[642] Ereevna, entrevista com a autora.
[643] Gagen-Torn, p. 208.
[644] Kuusinen, p. 202.
[645] Solzhenityn, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 65-66.
[646] Ulyanovskaya, p. 300.
[647] Arginskaya, entrevista com a autora.
[648] Gagen-Torn, p. 208.
[649] Vilenskii, Till My Taleis Told, p. 53-54.
[650] Por exemplo, Vilensky, entrevista com a autora.
[651] Buber-Neumann, p. 38.
[652] Herling, p. 136.
[653] Ibid., pp. 134-35.
[654] Levinson, pp. 72-75.
[655] GARF, 9401/1a/107.
[656] Ver, por exemplo, Alin, pp. 157-60 e Evstonichev, pp. 19-20.
[657] Estatísticas compiladas de várias fontes, GARF. Agradeço a Alekser Kokurin por elas.
[658] "Não Faz Parte de Minha Sentença: Violações dos Direitos Humanos de Mulheres em Custódia".
[659] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 415-31.
[660] Sgovio, pp. 173-74.
[661] Abramkin e Chesnokova, p. 18; Marchenko, To Live Like Everyone, p. 16.
[662] Yakir, pp. 46-47.
[663] Ulyanovskaya, pp. 388-91, e Lvov, memórias inéditas.
[664] Ulyanovskaya, ibid.
[665] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[666] Frid, pp. 186-87.
[667] Lvov, memórias inéditas.
[668] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[669] Pechora, entrevista com a autora.
[670] Ereevna, entrevista com a autora.
[671] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 233.
[672] Filshtinskii, entrevista com a autora.
[673] Hava Volovich, "My Past", em Vilensky, TillMy Tale Is To/d, p. 260.
[674] Lvov, memórias inéditas.
[675] Buca, pp. 134-35.
[676] Razgon, pp. 163-64.
[677] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 233.
[678] Em latim, referência ao pretenso direito que o suserano teria de passar a primeira noite com a esposa do vassalo. (N. T.)
[679] Herling, p.135.
[680] Frid, p.187.
[681] Ibid., pp. 187-88.
[682] Zhigulin, pp. 128-33.
[683] Vogelfanger.
[684] Sitko e Pechora, entrevistas com a autora.
[685] Kaufman, p. 223.
[686] Sitko, entrevista com a autora.
[687] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 248-49.
[688] Ibid., p. 249.
[689] NKVD, ordem operacional de 15 de Agosto de 1937, reproduzida em Sbornik, pp. 86-93.
[690] GARF, 9401/1a/66.
[691] Kaufman, pp. 188-89.
[692] Natalya Zaporozhets, em Vilensky, Till MyTale Is Told, pp. 532-39.
[693] Vilensky, Deti Gulags, p. 428.
[694] Ibid., pp. 41-42.
[695] Hoover, Coleção do Ministério de Informação da Polônia, Caixa 114, Pasta 2.
[696] Vilensky, Deti Gulags, p. 117.
[697] Por exemplo, a anistia de mulheres com crianças em 1945 excluiu especificamente prisioneiras políticas, como fez uma similar em 1948. GARF 8131/37/4554 9401/1a/191; e 9401/1/743.
[698] Khachatryan, entrevista com a autora.
[699] Lahti, memórias inéditas. Agradeço a Reuben Rajala por este manuscrito.
[700] Joffe, p.124.
[701] Frid, p.184; GARF, 9414/1/2741.
[702] Ereevna, entrevista com a autora.
[703] Yakovenko, p.196.
[704] Hava Volovich, "My Past", em Vilensky, Dodnes Tiagoteet, pp. 260-64.
[705] GARF, 9414/6/44 e 45.
[706] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 3.
[707] GARF, 9401/2/234.
[708] GARF, 8313/37/4554 e 1261.
[709] Vilensky, Deti Gulags, p.150.
[710] Joffe, pp. 127-35.
[711] GARF, 8313/37/4554.
[712] Anônimo, entrevista com a autora.
[713] GARF, 8313/37/4554.
[714] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, pp. 3-11.
[715] Embora o anônimo administrador de enfermaria com quem falei tenha negado que isto ocorreu, inúmeros memorialistas falam de mães sendo separadas de suas crianças. Susanna Pechora conta que nos campos especiais essa era uma prática constante.
[716] Vilensky, Deti Gulags, pp. 241-42.
[717] Armonas, pp. 156-6.
[718] Vilensky, Deti Gulags, p. 320.
[719] Bazarov, p. 362.
[720] Ibid., pp. 370-76.
[721] Vilensky, Deti Gulags, p. 144.
[722] GARF, 9401/1a/20.
[723] Vilensky, Deti Gulags, p. 248.
[724] Ibid., p. 247.
[725] GARF, 9401/1a/20.
[726] Yakir,p. 31.
[727] Anônimo, Ekho iz Nebutiya, pp. 289-92.
[728] Yurganova, entrevista com a autora.
[729] Hochschild, p. 87.
[730] Pechora, entrevista com a autora.
[731] Lahti, memórias inéditas.
[732] GARF, 9414/1/27.
[733] Serge, p. 28.
[734] Bazarov, p. 383.
[735] GARF, 9414/1/42 e 9401/1a/7; Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 447-51.
[736] Vilensky, Deti Gulags, p. 11.
[737] GARF, 9414/1/42; Bazarov, pp. 385-93.
[738] Razgon, p. 162.
[739] GARF, 9412/1/58.
[740] GARF, 9401/1a/62 e 7.
[741] GARF, 8131/37/4553.
[742] GARF, 9401/1a/57.
[743] Yakir, pp. 32-62.
[744] Kmiecik, pp. 70-74.
[745] Vilensky, Deti Gulags, pp. 283-93.
[746] Conquest, The Great Terror, p. 274.
[747] GARF, 8131/37/2063.
[748] GARF, 9414/1/27.
[749] Kmiecik, pp. 93-94.
[750] GARF, 9401/1a/81.
[751] GARF, 8131/37/2063.
[752] Kmiecik, pp. 114-17.
[753] GARF, arquivos, da coleção da autora.
[754] GARF, 941414/1; do jornal Perekovka, 1º de junho de 1934.
[755] GARF, 9412/1 C/47.
[756] GARF, 9401/1a/107.
[757] GARF, 9401/1a/7/84.
[758] GARF, 8131/37/4547.
[759] Razgon, pp. 162-63.
[760] Ibid., p. 162.
[761] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 457.
[762] Wigmans, p. 90.
[763] Klein, Ulybki nevoli, pp. 20-25.
[764] Ver Vilensky, Deti Gulags, para excertos dessas memórias.
[765] Gagen-Torn, p. 244.
[766] Rossi, The Gulag Hebook, pp. 107-S e 476.
[767] GARF, 9414/3/40.
[768] Herling, p. 51.
[769] Sgovio, p. 177.
[770] Tamara Petkevich, "Just One Fate", em Vilensky, Till My Tale Is Told, pp. 223-24.
[771] Shalamov, de publicação samizdat, traduzida com a ajuda de Galya Vinogradova. Embora a autora tenha boas razões para acreditar que este seja um trabalho de Varlam Shalamov, alguns trabalhos podem ter circulado incorretamente na União Soviética sob seu nome.
[772] Sgovio, pp. 162 e 160-61.
[773] Rardach, p. 236.
[774] Efrussi, "Dokhodyagi", em Vilensky, Osventsim Gez Pechei, p. 59.
[775] Herling,p. 136.
[776] Gilboa, pp. 53-54.
[777] Rardach, p. 235.
[778] GARF, 8131/37/797.
[779] N. Mandelstam, p. 263.
[780] Gnedin, pp. 80-86.
[781] Merridale, p. 261.
[782] Todorov, Facing the Extreme, p. 37.
[783] Rotfort, pp. 40-41.
[784] Eizenberger, pp. 38-39.
[785] Mindlin, p. 60.
[786] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 91.
[787] Todorov, Facing the Extreme, p. 63.
[788] GARF, 8131/37/809.
[789] Buca, p. 150; Berdinskikh, p. 28.
[790] Vogelfanger, p. 80.
[791] GARF, 8131/37/809.
[792] GARF, 8131/37/542.
[793] Merridale, p. 265.
[794] Buca, p. 152.
[795] Shalamov, p. 281.
[796] GARF, 9414/1/2809.
[797] GARF, 9414/1/2771.
[798] Herling, p. 149.
[799] Shalamov, Neskolko moikh zhiznei, p. 391.
[800] Vogelfanger, p. 206.
[801] Zorin, entrevista com a autora.
[802] Citado em Todorov, Facing the Extreme, p. 32.
[803] Buca, p. 79.
[804] Olitskaya, pp. 233-34.
[805] Usakova, entrevista com a autora.
[806] Herling, p. 68.
[807] Levi, p. 97.
[808] Bettelheim, pp. 169-71.
[809] Colonna-Czosnowski, p. 118.
[810] Shalamov, Koljma Tales, pp. 405-14.
[811] Esta observação é de Todorov. Todorov, Facing the Extreme, p. 35.
[812] Muita coisa foi escrita a respeito de tufts na USSR. Ver Fitzpatrick, EverydayStalinism; Berliner; Ledeneva; e Ereev-Khomiakov.
[813] Frid, pp. 134-36.
[814] Dyakov, p. 54.
[815] Anônimo, entrevista com a autora.
[816] Cohen, pp. 140-47.
[817] Yasnyi, p. 51.
[818] Ulyanovskaya, pp. 360-61.
[819] Bonn, pp. 234-36.
[820] Shister, entrevista com a autora.
[821] Petrov, p. 179.
[822] Herling, p. 37.
[823] Razgon, p. 155.
[824] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 218.
[825] Usova, memórias inéditas.
[826] Karta, Coleção Kazimierz Zamorski, Teczka I, Arquivo 6107 (Haling Storozuk).
[827] Frid, pp. 134-36.
[828] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, p. 416.
[829] Sgovio, pp. 167-75.
[830] S. Fomchenko, "Pervye desyat", em Uroki, p. 225.
[831] P. Galitskii, "Étogo Zobyt Nelzya", em Uroki, pp. 83-88.
[832] Samsonov, Zhiznprodolzhaetsya, pp. 70-71.
[833] Maksimovich, pp. 91-100.
[834] Zorie, entrevista com a autora.
[835] Finkelstein, entrevista com a autora.
[836] Adamova-Sliozberg, pp. 50-51.
[837] Rossi, The Gulag Hebook, pp. 247 e 255.
[838] Maksimovich, pp. 91-100.
[839] Klein, Ulybki nevoli, pp. 60-61 e 73.
[840] GARF, 8131/37/1261, 797, e 1265.
[841] GARF, 9414/1/28.
[842] Filshtinskii, pp. 15-22.
[843] Sofsky, p. 130.
[844] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 253, 254, e 252.
[845] Bien, memórias inéditas.
[846] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 252-53.
[847] Petrov, pp. 48-96.
[848] GARF, 9489/2/19.
[849] Razgon, p. 154.
[850] GARF, 9401/12/316.
[851] GARF, 8131/37/356.
[852] Razgon, pp. 222-31; Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 255.
[853] Filshtinskii, pp. 120-21.
[854] Yasnyi, pp. 50-51.
[855] Berdinskikh, p. 113.
[856] Ibid.,pp. 113-14.
[857] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, pp. 360-66.
[858] Ibid., pp. 260-61.
[859] Mukhina-Petrinskaya.
[860] Panin, p. 176.
[861] Razgon, p. 153.
[862] Ibid., p. 156.
[863] Shalamov, Kolyma Tales, p. 405.
[864] Kopelev, pp. 142-44.
[865] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 108.
[866] Sgovio, p. 206.
[867] Eisenberger, pp. 67-68.
[868] Okunevskaya, p. 280.
[869] Alekserovich, p. 11.
[870] Rozsas, p. 282. Sou grata a Janos Rozsas por enviar-me este material.
[871] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. I., p. 279; Reshetovskaya, pp. 121-22.
[872] GARF, 9414/1/2736.
[873] GARF, 9489/2/25.
[874] Gliksman, p. 300.
[875] Herling, pp. 101-2.
[876] Bien, memórias inéditas.
[877] GARF, 8131/37/356, 809, e 356.
[878] Papkov, p. 57.
[879] GARF, 9489/2/25.
[880] Alekserovich, pp. 11 e 22.
[881] GARF, 8131/37/4547.
[882] GARF, 9489/2/25.
[883] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 408-10.
[884] Colonna-Czosnowski, pp. 102-7.
[885] Dolgun, p. 240.
[886] Finkelstein, entrevista com a autora.
[887] Okunevskaya, p. 336.
[888] Alekserovich, p. 12.
[889] GARF, 8131/37/4547 e 542.
[890] Vogelfanger,pp. 71-72.
[891] Gliksman, pp. 211-12.
[892] Buca, p. 150.
[893] GARF, 8131/37/356.
[894] Lipper, p. 251.
[895] GARF, 8131/37/809.
[896] Trus, entrevista com a autora.
[897] GARF, 9414/1/2739.
[898] Por exemplo, GARF, 9489/2/18.
[899] E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 8.
[900] Dolgun, p. 239.
[901] Bardach, p. 259.
[902] Vogelfanger, pp. 68 e 162.
[903] GARF, 9414/1/2771.
[904] GARF, 9489/2/5/474.
[905] Zhigulin, p,153.
[906] Kudryavtsev, p. 288.
[907] Lipper, pp. 257-58; Herling, p. 102; Alekserovich, pp. 24-25; A. Marchenko, My Testimony pp. 140-42.
[908] Frid, p.137.
[909] Dolgun, p. 273; Lipper, pp. 257-58.
[910] Alekserovich, p. 24.
[911] Herling, pp. 80-82.
[912] Zhiguiin, p. 151.
[913] Bardach, pp. 332-33.
[914] Lipper, p. 258.
[915] Bystroletov, p. 407.
[916] Dolgun, pp. 176-79.
[917] Todorov, Facing the Extreme, pp. 47-120.
[918] Federolf, p. 224.
[919] Z. Marchenko, memórias inéditas. Sou grata a Zoya Marchenko por oferecer-me seu trabalho.
[920] Kekushev, pp. 84-85.
[921] Panin, p. 79.
[922] Bardach, pp. 207-8.
[923] Adamova-Sliozberg, pp. 8-9.
[924] S. I. Kuznetsov, p. 613.
[925] Chetverikov, p. 35.
[926] Bardach, pp. 122-39.
[927] E. Ginzburg, Within the Whirlwind.
[928] Gagen-Torn, p. 161.
[929] Shalamov, de publicação samizdat, traduzida com a ajuda de Galya Vinogradova. Embora a autora tenha boas razões para acreditar que este seja um trabalho de Varlam Shalamov, alguns trabalhos podem ter circulado incorretamente na União Soviética sob seu nome.
[930] Scammell, Soljenitsin, p. 284.
[931] Pashnin, pp. 103-17.
[932] Cherkhanov, memórias inéditas; Ulyanovskaya, p. 300.
[933] Zorin, entrevista com a autora.
[934] Kopelev, p.154.
[935] Zarod, p. 118.
[936] K. Golitsyn, pp. 267-68.
[937] Dolgun, pp. 206-7.
[938] Ereevna, entrevista com a autora.
[939] Tvardovskii, pp. 272-75.
[940] Klein, Ulyb/inevoli, pp. 70-71.
[941] Feldgun, memórias inéditas.
[942] GARF, 9489/2/20.
[943] Sgovio, pp. 168-69.
[944] Feldgun, memórias inéditas.
[945] E. Sudakova, "Otryvok iz vospominanii", em Uroki, pp. 132-37.
[946] Panin, p. 79.
[947] Chirkov, pp. 96-97.
[948] Herling, p. 156.
[949] Okunevskaya, p. 352.
[950] Starostin, pp. 88-92.
[951] Joffe, p. 139.
[952] Glowacki,pp. 317-18.
[953] Finkelstein, entrevista com a autora.
[954] E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind, p. 292.
[955] Wat, p. 142.
[956] Dolgun, pp. 141-47.
[957] Bardach, p. 190.
[958] Colonna-Czosnowski, pp. 120-21.
[959] Gagen-Torn, "Rukopis", em PamjatKolymy, pp. 23-25.
[960] Smirnov, conversa com a autora, Fevereiro de 2001.
[961] Herling, pp. 139-40.
[962] Arginskaya, entrevista com a autora.
[963] Ulyanovskaya, pp. 356-65.
[964] Rawicz, p. 96.
[965] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 97.
[966] Zhigulin, p. 192.
[967] Shalamov, Kolymy Tales, pp. 343-79.
[968] MacQueen.
[969] Herling, pp. 125-29.
[970] Petrov, pp. 104-7.
[971] Rossi, The Gulag Handbook, p. 204; Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 161.
[972] Soljenitsin, ibid., pp. 197-99.
[973] A. Morozov, p. 187.
[974] Soljenitsin, The Gulag Archipelago ,vol. III, pp. 197-99.
[975] Kusurgashev, pp. 34-36; Rossi, The Gulag Handbook, pp. 204-5.
[976] GARF, 9401/1a/552 e 64.
[977] Stajner, p. 78.
[978] Zhigulin, pp. 191-212.
[979] Rossi, The Gulag Handbook, p. 406.
[980] GARF, 9401/1a/185.
[981] GARF, 9401/1a/7.
[982] Malsagov.
[983] V. V. Ioffe, "Bolshoi Pobeg 1928-ogo goda", em Solovetskie Ostrova, vol. II, pp. 215-16 (GARF).
[984] GARF, 9414/1/8.
[985] V. Tchemavin, p. 357; T. Tchernavin.
[986] Gulag, documentário da BBC, produzido por Angus MacQueen, 1998.
[987] Chukhin, Kanaloarmeetsi, pp. 188-92.
[988] GARF, 9401/1a/5.
[989] Makurov, p. 6.
[990] GARF, 9401/1a/5 e 6.
[991] Makurov, pp. 38-39.
[992] Rossi, The Gulag Handbook, pp. 310-11.
[993] Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR", p. 81. 31.GARF,9401/1a/20.
[994] GARF, 9401/1a/128; Kuchin, Polyansii ITL, p. 148.
[995] Poleshchikov, p. 39.
[996] GARF, 9414/1/2632; Kuchm,Polyanskii ITL, p. 148.
[997] Shalamov, Kolyma Tales, p. 345; Rossi, The Gulag Handbook, p. 342.
[998] Rossi, ibid., p. 310.
[999] Lvov, memórias inéditas.
[1000] V. Tchemavin, p. 319.
[1001] Buber-Neumann, p. 112.
[1002] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 140.
[1003] GARF, 9401/1/2244.
[1004] Buca, p. 33.
[1005] GARF, 9401/1a/64.
[1006] Bardach, pp. 106-21.
[1007] Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. III, p. 204.
[1008] Soljenitsin, ibid.; Yuri Morakov (anteriormente funcionário do MVD), conversa com a autora, Novembro de 1999.
[1009] Morakov, ibid.
[1010] GARF, 9414/4/10.
[1011] GARF, 9401/12/319.
[1012] Shalamov, Kolyma Tales, pp. 80-85.
[1013] GARF,9401/1a/552.
[1014] GARF, 9401/1a/64 e 9401/12/319, entre outros.
[1015] Buca, pp. 123-27.
[1016] Vilensky, entrevista com a autora.
[1017] Sgovio, p. 177.
[1018] Dvorzhetskii, p. 48.
[1019] Dolgun, p. 338.
[1020] C. A. Smith.
[1021] Um dos mais proeminentes estudiosos russos do Gulag, Veniamin Ioffe, diretor Memorial de São Petersburgo, procurou encontrar os arquivos de Rawicz e fracassou. Posteriormente, após manter correspondência com o último autor, ficou dúvida pois considerou pouco convincente.
[1022] Herling, pp. 124-25.
[1023] Ibid., pp. 194-95.
[1024] Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 45.
[1025] Petrus, p. 61.
[1026] Ratushinskaya, pp. 21-22.
[1027] Petrus, p. 63.
[1028] Osipova, pp. 87-109; Serge, p. 71.
[1029] V M. Poleshchikov, monografia inédita, na coleção da autora; Ioffe, pp. 122-130; Rossi, The Gulag Handbook, p.120.
[1030] Osipova, pp. 109-34; M. Baitalskii, "Trotskisty na Kolyme", in Minuvshee, vol. 2, 1990, pp. 346-57.
[1031] Vilensky, Soprotivlenia v Gulage, p.158.
[1032] Kravchenko, p. 341.
[1033] O relato seguinte decorre amplamente de Mikhail Rogachev, "Bunt nad Usa", Karta, nº 17,1995 pp. 97-105, e de conversações com Rogachev em julho de 2001. Há também alguns detalhes retirados de Poleshchikov, pp. 37-65; Ivanova, Labor Camp Socialism, pp. 54-55 Osipova, pp. 167-82.
[1034] Ivanova, ibid., p. 45.
[1035] Sitko, poema sem título, do Tyazhest sveta, p. 11.
[1036] Stajner, p.101.
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