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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HÁ SEMPRE UM AMANHÃ / Pearl S. Buck
HÁ SEMPRE UM AMANHÃ / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HÁ SEMPRE UM AMANHÃ

Primeira Parte

 

Num domingo de manhã de 1920, em Middlebope, Pensilvânia Oriental, Estados Unidos da América. Joan Richards, tranquilamente adormecida na sua cama, abriu os olhos, devagar, e viu o sol de junho entrar-lhe a jorros pela janela. A luz iluminava todos os tons de azul do seu quarto azul e marfim e acariciava as centaureas delicadamente desbotadas do papel da parede. Uma brisazinha estival agitava as cortinas franzidas, cor de creme. O sol e o vento enchiam-lhe o quarto de vida.

Uma onda de saudável alegria percorreu Joan, impetuosamente. Estava, enfím, em casa, e para ficar! Durante todo o seu último ano de estudante, na universidade, tivera consciência de que a sua mocidade terminara e sentira-se impaciente por iniciar a sua vida de mulher. Nos derradeiros meses libertara-se, pouco a pouco, de coisas que a tinham absorvido, nos anos anteriores, e até as últimas promessas gritadas á partida, pormenores de escrever, de visitar amigas, de nunca esquecer, pareciam nimbadas de irrealidade. Quereria conservar na vida futura o que tinha agora? Quem permaneceria no seu coração; que amiga corresponderia às suas novas necessidades? Queria tudo quanto surgisse no seu caminho, inteiramente, absolutamente, a trasbordar! Confiava nos anos que viriam, sentia-se audaz, com a esperança de uma longa vida, pletórica de energia no seu corpo forte, abastada de tudo quanto seria preciso para o que queria fazer. Havia nela tanta abundância, que naquela hora podia esquecer tudo, até essa copiosidade, e saborear uma pausa feliz. Mais tarde, quando a vida se lançasse num turbilhão ao seu encontro, escolheria isto e aquilo. Agora não escolheria; limitar-se-ia a saborear.

Bocejou, espreguiçou-se e sorriu. Quando se espreguiçava, a cabeça e os pés tocavam nas extremidades do leito. Crescera sempre tanto que as coisas deixavam constantemente de lhe servir.

Só a sua casa, o seu lar, se conservava sempre à sua medida!

Agradava-lhe que fosse de domingo a primeira manhã que passava em casa. Amava as manhãs de domingo passadas naquele velho presbitério, onde moravam desde que nascera, embora aos domingos não fosse verdadeiramente o seu lar. Pertencia à Igreja Presbiteriana, que por sua vez pertencia ao povo de Middlehope, excepto aos baptistas e metodistas, que não eram muitos. A igreja era dos presbiterianos e, talvez, também dos episcopalianos, como os Kinneys, cujo número não era suficiente para terem uma igreja própría e, por isso, iam à presbiteriana. Uma vez por mês o pai celebrava um serviço especial para eles e lia a oração da manhã ou da tarde. Joan gostava. Agradava-lhe a ténue sensação de pompa que esse serviço imprimia na velha igreja caiada de branco, assim como lhe agradavam os paramentos que o pai vestia. Nos outros domingos usava a sobrecasaca toda abotoada, muito justa ao seu corpo alto e esguio. Algumas pessoas, como Mrs. Winters e Mr. Parsons, não frequentavam a igreja nos domingos dedicados aos episcopalianos, mas o pai fazia sempre o que considerava justo e não queria saber.

Um relógio bateu horas, algures na casa, e as badaladas ecoaram docemente no comprido corredor e chegaram ao quarto de Joan, que contou as lentas notas musicais. Oito. Eram horas de se levantar. Na casa do ministro, aos domingos, o pequeno almoço tinha de estar terminado às nove horas. Sentou-se na cama e viu a sua imagem reflectida no espelho que ficava defronte.

Grande, sempre excessivamente grande, mas bonita, mesmo assim.

Queria desesperadamente ser bonita. Gostava tanto das pessoas bonitas! Na universidade, perguntara-se amiúde se se poderia considerar bonita. Mas talvez fosse demasiado alta. Talvez fosse apenas atraente. Durante alguns meses, no segundo ano, usara blusas camiseiras e gravatas masculinas, com êxito, mas depois saturara-se. Secretamente, adorava usar vestuário muito feminino, como a camisa de dormir que vestia naquele momento. A cabeça erguia-se-lhe nobremente, acima dos folhos de renda cor-de-rosa, e a comprida trança castanha- dourada caía-lhe por cima do ombro. Admirou um instante os olhos azuis-esverdeados, muito claros, a generosa boca vermelha, a pele macia e clara, e envergonhou-se da sua vaidade. É bonito quem faz bonitas acções, costumava dizer a mãe. Era curioso como os pequenos aforismos morais da mãe a tinham impressionado tanto, em pequena - e a impressionariam ainda agora, se deixasse! Mas não deixava. Nada na vida a deveria jamais entristecer. Nada, nada! Só queria coisas agradáveis, pensamentos agradáveis, protecção contra o sofrimento.

Recostou-se na almofada e saboreou com profundo júbilo a brisa fresca, a bonita cor do quarto, a sua própria pessoa e a sua liberdade. Era jovem e forte e livre! Tudo nela e à volta dela era intenso. Entregou-se toda àquele momento, àquele instante de sol, àquela hora de uma calma manhã, áquela casa de paz. Todos os seus sentidos estavam intensamente aguçados. Ali reinava a tranquilidade e a segurança, ali era outra vez pequena, criança feliz durante uma hora, a acordar, como acordara em tantas manhãs da sua vida, para segurança das paredes que a envolviam, para a comida quente e deliciosa que a esperava na mesa, para o rosto da mãe, sentada à sua direita à mesa do pequeno almoço, para o do pai, à esquerda, e para os de Francis e Rose, seu irmão e sua irmã, à sua frente. Formavam à sua volta um círculo terno, de intimidade e segurança, e ela amava-os ardentemente.

Para lá do gradeamento do jardim ficava Middlehope, quase tão perto como a sua própria família. Surgiram-lhe no pensamento diversas caras. Mrs. Winters, Miss Kinney, o velho Mr. Parker. Estariam todos na igreja, dali a bocado, ansiosos por a ver. Interessavam-se todos por ela, esperavam para a amar, porque era jovem e bonita. Sim, porque ela era bonita, não era?

No silêncio da casa, naquela manhã de Junho, ficou deitada à espera, segura de si mesma e de tudo, mas desejosa de prolongar aquela deliciosa hora de infantilidade.

De súbito, na intensa quietude de domingo, ouviu um murmúrio, um diálogo murmurado, uma voz cheia e clara, dificilmente contida, e outra mais baixa, mas de uma insistência mais firme. Não conseguiu compreender as palavras, nunca as conseguiia compreender. Toda a sua vida ouvira aquele murmúrio, de quando em quando, vindo detrás das portas fechadas do quarto dos pais, ao lado do seu. Em criança escutara-o, sensível a todas as mudanças de atmosfera do seu mundo e, portanto, perturbada. Seria possível que o pai e a mãe estivessem a discutir? Mas a mãe saía sempre do quarto com o passo rápido e vivo de todos os dias.

- Então, queridinha, estás pronta para o pequeno almoço?perguntava-lhe, sorridente.

Não podia ser a discutir. A mesa, em garota, parava de comer as suas papas de aveia e olhava de um rosto para o outro, o, perscrutadoramente. Mas nunca encontrava nada de novo. A cara morena e rosada da mãe estava alegre, os seus olhos castanhos trasbordavam vivacidade e os seus cabelos, castanhos, também, e encaracolados, erguiam-se-lhe da testa como uma auréola. O rosto pálido e sereno do pai mostrava a habitual xpressão nobre. Sentia-se aliviada. Aqueles dois seres que eram os deuses da sua meninice ocupavam, imperturbáveis, os seus tronos. Esquecia-os e sentia-se de novo tranquila. Eram todos felizes, era tudo agradável.

No entanto, agora, franziu a testa, mais uma vez presa da antiga sensação de infantil pressentimento. Não discutiam? Tinham discutido durante todos aqueles anos? Virou-se de lado e escutou. Ouviu a voz da mãe erguer-se, tornar-se quase inteligível, e depois emudecer. Que som abafado fora aquele? A mãe soluçava? Apoderou-se dela um momento de pânico, o pânico de uma criança que vê um adulto chorar e sente o coração apertado, aflito, porque se os adultos choram, também, ninguém está ao abrigo do sofrimento.

Mas logo a seguir, ainda não deixara de escutar, ouviu uma pancada firme e rápida na sua porta, esta abriu-se e a mãe entrou, muito fresca no seu vestido estampado, cor de alfazema. Laivos brancos manchavam-lhe agora a auréola castanha que lhe envolvia a cabeça e ornara-se um pouco corpulenta e macia. Falou, na sua voz quente, clara e musical, e um sorriso transformou-lhe o rosto. Um sorriso fazia uma grande diferença na cara resoluta da mãe.

-Ainda na cama, preguiçosa? - Os seus olhos vivos e brilhantes percorreram o quarto, apanhou um par de meias, que pendurou nas costas de uma cadeira, e acrescentou, tolerante:

-Deixa-te ficar deitada, se te apetece, querida. O pai não se importará se faltares à igreja, só esta vez.

Que tolice ter imaginado aquela mulher reconfortante e segura de si a soluçar atrás de uma porta fechada! Joan saltou da cama, envolveu a mãe nos braços jovens, compridos e ávidos, inclinou á cabeça e beijou-a.

- Não quero perder nada! - exclamou.

As faces da mãe coraram intensamente. Aceitou o abraço com ternura, mas também com timidez.

-Cresceste tanto que mal te conheço! Sais à família do Paul, nesse aspecto - murmurou, um pouco embaraçada. - Ainda penso em ti como numa rapariguinha de doze anos, com duas tranças. e agora apareces-me, de súbito, uma cabeça mais alta do que eu! - Mergulhou os olhos nos da filha e confessou:Quase tenho medo de ti.

Tornou-se séria e fitaram-se as duas, gravemente. Havia estranheza entre elas, e a rapariga não a ia suportar.

- Sou a mesma! - murmurou, assustada e de cabeça baixa. Vibrava na sua voz o tom magoado de uma criança perdida, e a mãe reconheceu-o e conheçeu-a de novo.

Claro que és a mesma! - apressou-se a confirmar. - Agora, querida, se vais, não te atrases muito.

Era de novo a sua mãe, prática, competente e um pouco autoritária. Sob o domínio familiar, voltava tudo ao seu lugar, estava outra vez tudo bem. Começou a escovar o cabelo, a trautear o hino que dali a bocado cantariam, talvez, na igreja, pois era o favorito do pai: Que alicerces firmes sois, ó santos do Senhor. A luz do Sol tornou-se mais intensa, maravilhosa, com o avançar do dia. Do que fora o silêncio do amanhecer erguiam-se agora sons diversos - o bater do fecho do portão, os passos leves e certos do pai, a descer a escada, uma pazada de carvão, deitada por Hannah no fogão da cozinha, o irmão a pedir, ruidosamente, uma camisa lavada, Rose a tocar um hino, ao piano, docemente. Começara tudo, em casa.

Chegou um pouco atrasada ao pequeno almoço, mas confiante no amor da família. Era a filha mais velha que voltara ao lar, a ternamente querida; a jovem rainha. Viu a expressão afectuosa dos olhos da mãe e sorriu, encantada. Embora os seus lábios pudessem dizer: É bonito quem faz bonitas acções, naquele momento os seus olhos diziam que estava orgulhosa da sua filha.

- Gosto desse vestido verde - elogiou. - Ainda bem que o preferimos ao branco, tanto mais que se suja menos. É esses folhos ficam-te bem a valer, apesar de seres tão alta.

Eram estas as palavras que os seus lábios pronunciavam serenamente, com compostura, mas a filha lia-lhe outras palavras nos olhos. A Joan é encantadora! A Joan é a que eu sonhei que podia ser. Alta, encantadora, forte! Fará tudo quanto eu não fui capaz de fazer. Tudo isto estava claramente escrito nos olhos da mãe, antes de virar a cabeça e começar a deitar o café, empenhada em dominar decentemente o seu orgulho.

- Oh, Joan, estás maravilhosa! - exclamou Rose, mas a mãe ordenou, com suave autoridade:

-Senta-te, querida. O pai está á espera, para dar as graças. Joan olhou, com ar penitente, para o pai, que queria agradecer a Deus antes de comer. Desejosa de lhe agradar, exclamou, sinceramente:

- Desculpe, querido pai!

O pai não respondeu e continuou á espera, pacatamente. Pela sua expressão serena e distante, a filha compreendeu que ele jamais repararia se o seu vestido era verde e tinha folhus ou se ela tinha o cabelo brilhante, farto e macio. Era um homem de Deus. Mas a sua mãe era uma criatura terna, ardente e humana, que conhecia intimamente o corpo dos filhos e os amava com secreta paixão - secreta porque tinha medo de se exibir, de se trair, não fosse alguma coisa ou alguém encontrar uma arma para lhe ferir o coração; através dos filhos. Se alguém os elogiava, respondia tranquilamente: São bons filhos, e isso basta. Mas o próprio tom em que o dizia demonstrava que, na realidade, não bastava. Eram muito mais do que isso, e ela sabia-o e sentia-se jubilosa.

Mas o pai não sabia nada acerca dos seus filhos, a não ser que tinham almas para salvar, almas que, esperava e cria, estavam salvas. Não podia deixar de incluir, nas graças a Deus pelo pão de cada dia, uma prece que era na realidade apenas em intenção deles, visto saber que a sua alma estava salva: Suplicamos-Te, Senhor, que nos salves, e se este dia for o da morte para qualquer de nós, aceita as nossas almas e deixa-nos viver Contigo eternamente. Amem.

Morte e Eternidade. Estas duas palavras adquiriam forma e significado quando ele as dizia, no seu jeito grave e profundo. Vivia, também, no breve momento em que se Lhe dirigia. Este homem invocava Deus com uma crença tão firme e tão natural, que Deus acorria ao seu chamamento e tudo vivia. Mas quando a sua voz emudecia e os olhos de todos se abriam, Deus, a Morte e a Eternidade regressavam às suas sombras e deixavam de existir.

Mas a vida não morria na sala. Havia vida nas paredes pintadas de amarelo, nas cortinas brancas que a brisa agitava na puída carpete castanha, nos livros que vinham ali parar de todos os outros aposentos, livros que já todos tinham lido, mas que não se podiam deitar fora porque eram livros. Em cima da mesa brilhante encontravam-se os próprios meios da vida: fruta, leite, pão, manteiga, ovos e bacon e um boião de vidro, de marmelada, em que o sol se reflectia e parecia ficar preso - tão preso que quando Rose estendeu a mão para se servir, Joan não pôde conter-se que não lhe pedisse:

-Depois põe-no outra vez onde incide esse raio de sol. É ambrósia ao sol!

Rose sorriu e obedeceu contente por agradar à irmã. Mas não disse nada, pois raramente falava, a não ser que a interrogassem.

A porta abriu-se, de repelão, e Francis entrou. Olhou para a mãe, primeiro, e ela olhou-o também, repleto de novo o olhar do orgulho que tinha dos filhos.

- Vem cá, filho, deixa-me fazer-te outra vez o nó da gravata.

- Nunca sou capaz de o fazer direito - redarguiu o rapaz, a sorrir.

Dobrou as pernas compridas e ajoelhou-se diante dela, com os braços apoiados no seu colo e a olhá-la confiantemente. A mãe desatou-lhe a gravata e fez de novo o laço, em movimentos certos e rápidos. Fora ela que comprara a gravata e a escolhera vermelha porque o filho era tão moreno como ela e ela gostavam, em segredo, do vermelho, embora compreendesse que a cor já não era própria para a sua idade e só a usasse para debruar uma gola ou num forro que raramente se vira. Em nova, tivera sempre um vestido vermelho entre os outros. Mas agora, como esse tempo passara, gostava de ver o queixo moreno e redondo do filho por cima de uma gravata vermelha e de pôr uma rosa encarnada na botoeira. O vermelho fazia sobressair a negrura dos seus olhos e do seu cabelo.

Quando acabou, Francis passou-lhe os braços pela cintura e comprimiu a cabeça contra o seu seio.

- Cheira bem, mãe - murmurou.

A mãe deu-lhe uma palmadinha na cara e endireitou-lhe uma madeixa de cabelo encaracolado. Não se sentia embaraçada quando o filho a cortejava; ele não a constrangia como as filhas.

- Come antes que arrefeça. - E acrescentou, dirigindo-se a Hannah, a criada: -Traz pãezinhos moles para o Francis.

O rapaz levantou-se e, com a graça indolente da sua juventude, deixou-se cair na cadeira e começou a comer. Mas o pai reparou, finalmente, nele e perguntou-lhe:

- Não dás graças a Deus?

O rapaz olhou-o friamente, antagonicamente, mas ao encontrar aquela serena e solene expressão sacerdotal hesitou, baixou um instante a cabeça e mexeu os lábios, aplacando assim o homem de Deus que era seu pai. Mas não invocou Deus.

A vida matinal prosseguiu, vigorosa, naquela sala. Hannah trouxe pão mole e café acabado de fazer, e todos comeram com apetite e abundantemente, excepto o pai, que comeu pouco. Mas já estavam habituados a isso. Enquanto não compartilhasse com o seu povo o que de novo aprendera acerca de Deus, não comeria com vontade.

O seu corpo faminto era a sua tentação, pois adorava a comida. Quando era criança, ao crescer sentira-se sempre esfomeado. Comia tanto, que os irmãos se riam dele. Depois de o missionário o converter, aos treze anos, começara a compreender que devia lutar para submeter o seu grande corpo. Como poderia um homem salvar a alma se o seu corpo o dominasse? Naquele frio domingo de Novembro, sentara-se à mesa de jantar da sua mãe, entre todos os seus robustos irmãos e irmãs, e deixara o prato cheio à sua frente. Comerei um terço de tudo, não mais, prometera a Deus. O cheiro suculento do molho da galinha subia-lhe pelas narinas, a fragrância das batatas assadas, do dourado puré de nabos e dos biscoitos quentes faziam-no desfalecer, assim como o cheiro doce do mel e dos pêssegos de conserva e o perfume embriagador das tortas quentes, de passas. Do outro lado da mesa, o missionário comia delicadamente, recusando a maior parte das iguarias.

- Não come nada, Mr. Barnes! - queixara-se a mãe, com uma expressão de desespero no rosto redondo.

Que se podia fazer a quem não comia? Na sua grande casa da quinta todos comiam!

O missionário sorrira-lhe, com certa tristeza, e respondera:

- Comi mál durante tanto tempo que o meu estómago, agora, recusa banquetear-se. Tem o hábito da pobreza e prefere-a.

Ele também ensinaria o seu corpo! A mãe assustara-se, ao ver levarem-lhe o prato cheio. Estás doente, Paul! Nunca te vi deixar comer no prato! Sorrira-lhe, com um sorriso amarelo e as palmas das mãos húmidas, da força da fome. Mas não comera.

Numa tortura de rubores e timidez, suportara as troças dos irmãos. Bem, se o Paul não come, deve estar a morrer. Até o pai sorrira com secura e acrescentára a sua ferroada: Sempre disse que o Paul se cansava só de transportar o que comia. Mas nenhum soubera com que fúria a fome o mordia.

Ainda agora, passados tantos anos, nunca se sentava à mesa que não sentisse aquele desfalecimento de voracidade nas entranhas, ao cheiro da comida. Mas ninguém o sabia. Sentir-se-ia envergonhado ainda que fosse apenas a mulher, Mary, que soubesse. Por isso estabelecera a regra de negar a si mesmo a satisfação do estômago antes de falar de Deus ao seu povo. A noite comia com vontade e adormecia depressa, extenuado e de alma vazia. Mas até lá conservava-se calado e meditabundo, de olhos brilhantes e estranhos e espírito ausente, surdo a não ser ao som do seu nome.

Os filhos estavam, também, habituados a isso. Aceitavam-no entre eles, deixavam-no ser como parecia que devia ser e voltavam-se para a mãe. Ela era o seu sol e eles giravam à sua volta e contavam-lhe tudo ou quase tudo. Guardavam apenas o âmago secreto do seu ser, que inconscientemente lhe escondiam e a toda a gente.

E ela entregava-se-lhes alegremente, em troca, dando a cada um o que dela precisava. Assim como lhes dera o seu leite, quando tinham nascido, assim lhes dava agora o alimento do seu cérebro e dos seus pensamentos, de tudo quanto sabia. As vezes não chegava, mas ela ignorava-o e eles não lho diziam - se, acaso, o percebiam. Ela dava-lhes tanto que parecia suficiente.

Sentada entre eles naquela manhã de domingo, estava feliz e bem disposta. Sabia que os filhos se sentiam quentes e aconchegados na sua casa e que os alimentava com o melhor que tinha. Alimentava os seus corpos com leite, pão, carne e fruta, tornava fortes o seu sangue e a sua carne, com a eterna e mística transubstanciação da mãe. Dentro de momentos, as suas almas também receberiam alimento. Não compreendia bem como, mas na casa de Deus recebiam pão e vinho para as suas almas, e eram as mãos do pai que lhos davam. Estavam em segurança. Estavam em segurança de corpo e alma. Sorriu, cheia de paz, e distribuiu-lhes pedaços do seu amor.

-O ovo está como tu gostas, Joan? Dantes gostavas dele assim, mole, mas as pessoas mudam de gosto e se o quisexes de outra maneira... Rose, pus uma colcha lavada na tua cama. Não gostava da que lá tinhas e pareceu-me que a cor-de-rosa condizia melhor com o teu quarto. Francis, querido, tens aqui mais bacon, tostadinho e estaladiço como gostas.

Não esquecia o marido, nos seus cuidados, mas a maior parte das vezes era através dos filhos que lhe falava.

- Pássa-me a chávena do pai, querido - pediu ao filho. Ele deixou arrefecer o café. Deito-lhe outro.

Levantou um pouco a voz e acrescentou:

-Tens aqui café quente, Paul. Bebe antes que arrefeça outra vez.

O marido olhou-a vagamente, aceitou a chávena, bebeu um golo e levantou-se.

- Vou para a sacristia - disse, serenamente, e pareceu sair da sala a flutuar, tão suaves e silenciosos eram os seus passos.

Sabiam que passaria a rezar a hora que faltava para se reunirem todos na igreja. Rezaria durante tanto tempo e tão intensamente que depois o achariam transfigurado, com a pele do rosto reluzente e um ar de santidade em todo o corpo. Não compreendiam. Francis, que invejava a exaltação do pai, comentou:

- Não percebo o que ele conseguirá rezar durante tanto tempo. A mim acabar-se-me-iam as palavras muito antes de serem horas de ir para a igreja.

- Ele não diz nada - redarguiu-lhe a mãe, muito serena. Aguarda, diante do Senhor.

O rapaz compreendeu, pelo tom da sua voz, que a mãe não o deixaria levar a melhor naquele assunto, naquelas singulares relações entre homem e Deus. Baixou a cabeça, os lábios vermelhos esticados num amuo, espalhou marmelada dourada no pão, mais do que generosamente, e comeu em grandes dentadas. Rose brincava com um montinho de migalhas secas, sonhadora, toda absorvida em si mesma.

Mas Joan ouviu as palavras da mãe e sorriu, a olhar para o jardim. Aguarda diante do Senhor! As palavras vibraram no ar, brilhantes e sonoras, e atraíram outras palavras. Ela esperava, esperava radiante. Levantai a cabeça, ó portais, erguei-vos, portas eternas, e o Rei da Glória entrará. Quem era o Rei da Glória? Levantai. levantai a cabeça. e esperai.

Entrou na igreja atrás da mãe, orgulhosamente, de cabeça erguida no pescoço direito. Anos antes, a mãe dissera-lhe: alta, sê portanto, tão alta quanto puderes. e embora às vezes detestasse que a sua cabeça se erguesse acima de todas as outras, lembrava-se das palavras da mãe e mostrava-se tão alta quanto podia.

Atrás dela entrou Rose, sòzinha, pequena e grave. Francis iria quando lhe apetecesse ou, se se sentisse muito rebelde e o dia estivesse calmo e tentador, junto do rio, nem sequer iria. Mas os desejos da mãe ainda exerciam pressão nele. Todos u desejos o compeliam, por causa do amor que ela lhe dedicava, um amor que ele não sentia demasiado pesado porque a não tinha outro.

Mas naquela manhã resistira-lhe um pouco. Quando, de olhos velados e voz resolutamente amável, ela lhe perguntara: Estás pronto para irmos à igreja, filho?, olhara-a da repente de do alpendre onde se deitara e respondera-lhe, desviando o olhar para as roseiras: Irei lá ter. E, ao vê-la esperar, acrescentara: Não espere .

A mãe olhara-o, de língua presa atrás dos dentes cerrados e sorriso forçado nos lábios. Um ano antes, ter-lhe-ia replicado viva e naturalmente, porque o amava e sabia o que melhor lhe convinha: Vai já buscar o casaco e o chapéu e vem. Mas agora o seu instinto, sempre atento e sincronizado com tudo quanto se relacionava com os filhos (sobretudo com tudo quanto se relacionava com o filho), advertia-a de que estava muito próximo o momento em que ele se lhe oporia abertamente. Qualquer manhã, dir-lhe-ia: Detesto a igreja. Não a acompanho mais. Tinha medo desse momento e adiava-o semana a semana. Ele sabia-o e mostrava-se arrogante com ela, altivo por causa da sua juventude.

Deixara-o, por isso, sòzinho, para que fosse quando lhe apetecesse, e saíra com as duas filhas. joan sentou-se ao lado da mãe e Rose ao lado de Joan. Para elas, aquele ambiente era tão familiar como o da própria casa. A igreja era, também, uma espécie de lar. Domingos sem conta, durante anos e anos, Joan ocupara aquele lugar, com a mãe entre ela e Francis. A mãe sentava-se entre aquelas duas crianças fortes e arrebatadas, cheias de vida, a separá-las, a apaziguá-las, a encaminhá-las para o pai para que ele as pudesse encaminhar para Deus. Rose era obediente e fazia com naturalidade, ou assim parecia, pelo menos, o que devia fazer.

Contudo, naquele dia dir-se-ia que não estavam completas, como acontecera durante tanto tempo. Joan sentiu a mãe inquieta, enquanto Francis não veio ocupar o seu lugar. A mãe rezou depressa, com uma das mãos a tapar os olhos, e depois recostou-se á espera de Francis, desejosa de que ele aparecesse. Queria que a congregação a visse com os seus filhos, ainda seus, ainda fiéis. Muitos pais iam sós. A igreja estava cheia de gente idosa sozinha, cujos filhos tinham partido da aldeola ou então haviam crescido e ficavam teimosamente em casa ou iam divertir-se. Mas ela estava ali, rodeada pelos seus filhos. Joan conhecia os sentimentos da mãe e sorria do seu orgulho quando, findo o serviço religioso, atravessava a nave, entre as outras pessoas, com os seus filhos.

Joan virou um pouco a cabeça e olhou à sua volta. Era cedo e as pessoas começavam a chegar. Toda a vida chegara cedo à igreja, com a família, a fim de darem o exemplo, como a mãe dizia. O sol entrava pelo templo dentro, em longos dedos brilhantes e metálicos, e a luz, suavemente colorida pelos vidros de cor das janelas, incidia nas cabeças prateadas de alguns homens e mulheres idosos, que também tinham chegado cedo. Joan viu Mr. Parker a olhá-la e sorriu-lhe, enternecida. Com ele aprendera música e com ele aprendera a escrever as melodias que se formavam com tanta facilidade na sua cabeça. Mr. Parker tinha uma loja zinha de artigos musicais, na aldeia, mas isso não lhe chegaria para viver se não afinasse pianos e não desse aulas de canto na escola distrital. Ensinava fiel e regularmente, na esperança de, no fim dos seus dias, lhe concederem uma pensãozinha. Agora já não podia cantar muito, embora em tempos tivesse uma doce voz de barítono, e de pouco mais era capaz do que de pigarrear e trautear uma ou outra nota, para as vozes juvenis compreenderem. O órgão começou a tocar, profunda e docemente, e as notas pareceram ficar a pairar no ar. Joan voltou o rosto na direcção da música e escutou, atenta. Via as costas de um homem, direitas e esguias. Conhecia-o - pelo menos conhecia-o assim, na igreja, de costas voltadas e a arrancar melodia ao órgão. Conhecia as suas costas melhor do que o seu rosto, a sua música melhor do que a sua voz. Noutros tempos, ninguém o conhecia bem, embora ele vivesse na aldeia e ali tivesse crescido. Tinha um cartório de advogado, na cidade, aonde ia quase todos os dias. A noite dormia em casa da mãe, na aldeia, onde dormira sempre, excepto durante os dois anos em que estivera na guerra. Era filho único e perdera o pai quando ainda era muito novo. Dir-se-ia não ter outra vida além daquela, na aldeia, a olhar pela mãe e a passear pacatamente com ela, no seu jardim, a falar de flores. Creio que amanhã o lilás estará em flor, observava ela, ao que ele respondia: Também acho, mãe. Aos vizinhos, a idosa senhora afirmava: O Martin é tudo quanto me resta: só vivo para ele. Fazia do filho a razão da sua vida e mantinha impecável e ordenada a casa de tijolo vermelho, para que nela se sentisse bem. Martin entrava todas as noites no vestíbulo sombrio e limpo e andava em silêncio pelas divisões sombrias e limpas.

No entanto, partia todas as manhãs para Filadélfia, para o seu trabalho, e tão bem parecia avir-se com ele que tinha uma certa fama, como advogado - fama de que os aldeões ouviam falar vagamente e sempre duvidosos e maravilhados, pois conheciam-no desde que nascera. Diziam, como sempre tinham dito: O pai dele não valia grande coisa. Tinha grandes ideias, acerca da fábrica de camisas de South End, mas não as conseguia pôr em prática. Bom homem, mas pouco inteligente. Por isso lhes custava a acreditar no êxito do filho. Se o Martin tivesse ido para a fábrica e me ajudasse, as coisas teriam corrido de modo diferente. Mas Martin entregara-se cedo à sua própria vida e mal o pai morrera vendera a fábrica a Peter Weeks.

Martin Bradlóy nunca falava de si. Silenciosamente, a sorrir um pouco a toda a gente, apresentava-se na igreja todas as manhãs de domingo, para tocar órgão, como fazia desde os dezoito anos.

No primeiro domingo que passara em casa, depois da guerra, apresentara- se no seu posto. Ninguém lhe perguntara o que acontecera, no intervalo, e ele também não dissera nada. Em breve todos esqueceram que se ausentara.

Agora, enquanto Joan escutava e olhava para as suas costas direitas e para a sua cabeça estreita e escura, que começava a ficar grisalha, tocava meticulosa e perfeitamente uma música de Bach, dando a cada nota o seu valor e todo o seu significado. A porta do coro abriu-se e entraram quatro pessoas com ar um pouco envergonhado, como se sentissem que toda a gente as conhecia sob um aspecto diferente. Eram duas mulheres e dois homens, Mr. Winters e Mrs. Parsons, Mr. Weeks e Miss Kinney. Ocuparam os seus lugares e olharam, ansíosa e constrangidamente, em frente. Todos menos Miss Kinney, que fora missionária em África. Essa sorria sem parar e os seus olhos saltitavam de lado para lado, inquietos como pálidas borboletas azuis.

Depois a porta da sacristia abriu-se e a música suavizou-se. O pai de joan entrou, padre recém-chegado da presença de Deus para o convívio do seu povo. Em trinta anos, nunca aquela atitude parecera velha e usual nele. Não compareceria perante os fiéis, a não ser que viesse da presença de Deus. Joan lembrava-se de um atraso do pai, quando era muito pequena. O povo esperara-o, primeiro pacientemente e depois cheio de surpresa, de olhos postos na porta da sacristia. O tempo passava e o órgão não parava de tocar, em improvisos e variações, mas sempre preparado para a nota final. Joan tinha apenas seis anos, mas percebia o espanto e a ansiedade da mãe. Ouviu-a murmurar: Tenho de ir ver o que sucedeu. Sentiu-a preparar-se para se levantar, mas no mesmo instante a porta abriu-se bruscamente, como empurrada pelo vento, e o pai entrou, triunfante, e disse ao seu povo, em voz sonora e forte: Cantemos em louvor do Senhor!

Mais tarde, quando a mulher lhe perguntara: Onde estiveste, Paul? Fizeste-nos esperar a todos!, respondera simplesmente: Não conseguia obter a bênção de Deus e não podia subir ao púlpito enquanto a não tivesse.

Mas agora, no começo da velhice, acalmado o temperamento arrebatado, parecia que tinha sempre a bênção de Deus. Alto e um pouco curvado, avançou com tranquilidade e serenidade, tendo nos olhos muito azuis e muito claros a inocência dos olhos das crianças. O órgão deixou de tocar e os fiéis olharam o seu padre, à espera. Antes que ele pudesse falar, porém, ouviu-se um som à porta e passos na nave. Era Francis, que ia mais uma vez sentar-se ao lado da mãe. O pai esperou por ele.

Agora estavam completos. O pai acima deles, no púlpito, e a mãe e os três filhos nos lugares habituais, de rostos voltados para ele, à espera do que estavam prestes a receber.

Os fiéis levantaram-se, banhados pelos raios multicores do sol, e cantaram juntos. Joan cantou também, com a sua voz jovem e forte a erguer-se muito acima das outras vozes fracas e velhas, a arrastá-las consigo, a reuni-las numa maré vibrante e harmoniosa. Depois sentaram- se, deram graças e ouviram ler a Escritura. No momento oportuno, contribuíram com pequenas moedas de prata, que tilintaram nas velhas bandejas de estanho.

No coro, Mrs. Parsons levantou-se, alta e descarnada, e cantou, com uma expressão de grande doçura nos olhos decepcionados: Mas o Senhor vela pelos Seus. Cantou com excessiva lentidão, agarrada às palavras favoritas, e, apesar de a voz lhe faltar nas notas altas, ainda cantava com ressaibos de esperança. O que desejava ainda podia acontecer. Por isso cantava, com uma fé melancólica no que não recebera. Gostava daqueles momentos em que cantava, em que se podia perder em vagas esperanças acerca da história que estava a escrever.

A Emily era tão parecida com o pai, impacientava-se tanto com as escrevinhices da mãe, como lhes chamavam! Edward fora sempre ríspido com ela a esse respeito. Quando chegava a casa e encontrava o jantar por acabar, em virtude de ela ter estado a escrever, mostrava-se tão zangado e incompreensivo! E agora Emily, embora tivesse apenas quinze anos, também era cruel e incompreensiva. Escreve coisas tão tolas, mãe! A sua voz cortava, de fria, e os pratos viam uma dubadoira, no lava-louça. Mas Ned - querido filho! - era mais velho do que Emily e ainda escutava as suas histórias, de olhos húmidos. É apenas uma história, Neddieu, repetia-lhe, amiúde. O filho ajudava-a a manter viva a esperança. Um dia, alguém aceitaria as suas histórias, uma das cartas não seria uma recusa e Edward diria: Bem, Florrie, tinhas razão e eu não. Edward dir-lhe-ia o que nunca lhe dissera, acerca fosse do que fosse: Perdoa, Florrie. Entretanto, teria paciência e continuaria a escrever, o melhor que pudesse.

Mas o Senhor vela, vela pelos Seus!. cantou ternamente, lentamente, de olhos nublados e com voz trémula, a prender-se-lhe na garganta. Sentou-se, fortalecida e reconfortada, e começou a planear uma nova história - a melhor de todas. Era tão fácil planear histórias na igreja, no silêncio em que o sacerdote lia o sermão.

Mrs. Parsons entregou-se, feliz, ao seu devaneio.

O sermão começou. Por causa daqueles sermões as crianças tinham passado quase em silêncio todos os sábados da sua vida, embora o sábado fosse um dia feriado, sem escóla. Sabiam que o pai estava sentado no gabinete frio e nu, a procurar nas Escrituras o alimento espiritual para todos eles. Não podiam, fosse por que motivo fosse, entrar no gabinete, nesses dias. Andavam pela casa em bicos de pés, seguidas pelos seus amiguinhos, tendo como meta a lata dos bolinhos, na cozinha. Com as mãos cheias deles, saíam de casa silenciosamente e corriam até ao fim da rua, libertos e alegres, a gritar de contentes. A sua volta havia árvores e prados, debaixo dos seus pés crescia erva verde e fofa e era feriado.

Cantavam, gritavam e brincavam com um prazer desesperado. e às vezes chegavam a brigar. Mas até as suas brigas eram doces e intensas, cheias de vida. Não pensavam no pai, fechado no gabinete, a procurar no livro sagrado alimento para as suas almas, assim como não pensavam na mãe, a cozinhar para eles na cozinha, a costurar e a remendar. Tudo isso era natural, fazia parte dos alicerces da sua vida agradável e segura, que julgavam seria sempre assim.

De Deus nada sabiam, além do que lhes tinham dito. Acreditavam, ou julgavam que acreditavam, no que o pai lhes dizia. Confiavam nele, no que se referia a Deus. Quando ele dizia que Deus era um pai bondoso, que nem um pardalito do jardim deixava sofrer, acreditavam-no. Aliás, parecia ser verdade, pois todos os pardais que viam eram gordinhos e buliçosos. Quando o pai lhes dizia que os próprios cabelos da sua cabeça estavam contados, acreditavam-no, porque estavam habituados ao amor. Não teriam achado estranho se a mãe lhes contasse os cabelos da cabeça, pois ela amava-os tanto, e por isso não era estranho que Deus o fizesse, também. Mostravam-se complacentes e seguro de Deus, convencidos de que os amava e se importava com eles.

Havia também Jesus Cristo, que morrera pelos pecados dos homens, e o Espírito Santo. Mas o Espírito Santo era uma sombra sem substância nem forma, e não se prendiam muito com Ele. Jesus, porém, era real, Doce Jesus, suave e manso! Era enternecedor e real, embora mais real antes da Sua ressurrreição do que depois. Depois tornara-se arrogante e orgulhoso, dissera: Não me toqueis! Mas antes, quando era um homem, dissera: Vinde a mim e Deixai vir a mim as criancinhas. Então, compreendiam-no. Eles próprios teriam corrido ao Seu encontro, a rir e a gritar, se tivessem estado perto d'Ele, porque Jesus era real para eles, embora morto.

Mas quando se deixava pregar na cruz pelos seus pecados, sentiam-se constrangidos e culpados, embora não soubessem porquê. Tinham sido concebidos e nascido em pecado. Havia muito tempo, Joan perguntara-se, sem encontrar resposta, o que seria ser concebido em pecado. Um dia perguntara à mãe: Eu também fui concebida em pecado? A surpresa dilatara os olhos e ruborizara as faces morenas da mãe, que se apressara a responder-lhe: Quando fores mais crescida, explicar-te-ei tudo. Queres levar o Francis e ir brincar com a Netta Weeks? Podes levar-lhe dois bolinhos, um para ela e outro para o Jackie.

No entanto, nunca lho explicara. Mas, passado algum tempo, Joan compreendera que não se podia tratar de uma coisa da qual só ela fosse culpada. Se todos eram assim concebidos, tratava-se de um pecado bom. Esquecera-o, por isso, tanto mais que havia muito em que pensar, na sucessão das estações, e não menos que saborear, e ela não queria ocupar o pensamento em coisas desagradáveis; preferia ser feliz e rir.

Mas Rose não pudera esquecer. Uma vez perguntara-lhe tristemente, de lábios secos: Joan, compreendes o que é, o que é ser concebido em pecado?

Joan sentira-se escandalizada com a pergunta, pois entretanto aprendera como a vida começava dentro do corpo de uma mulher, vinda do corpo de um homem. Mas era segredo. Aprendera-o secretamente na escola, culposamente e contra vontade. Ouvira, surpreendida e gritara, furiosa: Não acredito! Mas sentira-se compelida a acreditar. Eu sei, afirmara Netta Weeks. Sabes como? insistira Joan, mas Netta limitara-se a sorrir, como uma idiota. Joan afastara-se, invadida por uma grande náusea, mas não pudera esquecer. Durante muito tempo, quando olhava o pai e a mãe, não conseguira esquecer. Mas por fim obrigara-se a expulsar o assunto do pensamento, para que lhe pudesse escapar. No entanto, não tolerava falar nisso, nem mesmo com Rose.

Seria mais vergonhoso ainda, se entre elas fossem trocadas palavras a esse respeito. A sua carne sadia arrepiava-se só de o pensar, revoltada. Não sei nada a tal respeito, respondera secamente, e correra para o jardim e colhera um grande braçado das rosas vermelhas da mãe.

Rose não voltara a perguntar. Crescera interiormente, voltada para si mesma. Lia a Bíblia todas as noites, mesmo no Inverno, por muito frio que o seu quarto estivesse. Nunca apressava as suas orações, e se se sentia tentada a fazê-lo, para se meter mais depressa na cama quente, castigava-se rezando mais devagar ainda. Estava sempre pronta para ir à igreja, para sonhar, para receber o pão e o vinho, e os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas com a maior facilidade, quando pensava n'Aquele que morrera pelos seus pecados. Sentia-se cheia de pecado. Fixava no pensamento cada pecado cometido, separadamente, e recordava-o quando o pão consagrado se lhe desfazia na língua e o vinho lhe queimava delicadamente os lábios. Era tão doce sentir-se purificada pelo sangue de Jesus! Era quase agradável pecar, para poder ser purificada assim. Mas querer pecar era pecado, e por isso ela orava em êxtase, a suplicar perdão.

Rose ocultava dentro de si esta vida secreta e intensa, tal como vivia interiormente, exteriormente parecia sempre doce, humilde e obediente e os seus olhos azuis eram santos na sua mansidão. A gente da aldeia dizia, muitas vezes: É um anjo. Tão boa! Ao ouvir tais palavras, Rose sentia prazer, um estranho prazer que lhe punha um formigueiro no corpo todo. Planeava novos actos de bondade, um número de boas acções, todos os dias. Levava flores à velha Mrs. Mark, que jazia na sua casinha de pedra, nos confins da aldeia, imobilizada por uma paralisia progressiva. Tantas flores lhe levou que um dia Mrs. Mark disse-lhe, sem rodeios: Não tenho mais jarras, pequena, e as rosas provocam-me alergia. Sei que tens boas intenções, mas aceitarei a intenção sem precisares de cometer a acção.

Sim, Mrs. Mark, dissera Rose, afastando-se da velha ríspida e rabugenta. Mas nem mesmo assim conseguira desistir dos seus gestos de bondade. Quando chegara a casa, lembrara-se de que não se devia importar se a perseguissem por ser boa, e por isso voltara a casa de Mrs. Mark, a quem levara maçãs e um boião de geleia, que convencera a mãe a dar-lhe. Aceitara de boa mente o azedume com que fora recebida, e quando, a certa altura, a velha rezingara contra as pernas inúteis, dissera-lhe docemente: Deus não faz nada sem uma intenção, querida Mrs. Mark. Manda-nos sofrimento para nos preparar para o céu. Ouvira Mrs. Parsons dizer estas palavras quando a pequenina Emma Winters morrera.

Furiosa, a doente endireitara-se, apoiada nas almofadas, e gritara- lhe: Sai, não te atrevas a vir-me impingir tais idiotices! Gostava de saber que lucra Deus em me conservar assim, presa na cama, quando eu podia ser uma mulher útil, se tivesse as pernas sãs. Não me fales mais! Não sabes nada, papagueias como o teu pai. Sai e vai brincar, pois é isso que está bem na tua idade!

Rose recolhera as suas coisas e saíra. Ao princípio sentira-se furiosa e magoada, mas depois lembrara-se de Jesus e enchera-a um sentimnto de exultante virtude. Fora como Jesus, não dera nenhuma resposta. Quando os seus inimigos a perseguiam, era como Ele, um cordeirinho inocente levado para o matadouro. No entanto, achara preferível desistir de visitar Mrs. Mark e rezar antes por ela, à noite, na segurança do seu quarto.

Agora, na igreja, estava tranquilamente sentada de rosto voltado para o pai e espírito dominado pelo espírito dele. Gostava dos momentos em que ele se erguia para orar, dominando-a, dizendo-lhe em que acreditar. Nesses instantes não era o seu pai e, sim, o seu padre, o seu salvador. Amava-o, então, apaixonadamente. A seus olhos, e le representava Jesus, o Jesus que morrera por ela. Ao ouvi-lo, ficava purificada da cabeça aos pés, imaculada e nova, e gritava, no seu coração: Purifica-me, e ficarei mais branca do que a neve. Sentada na igreja, esperava o momento da purificação, o momento em que ficaria limpa de todos os pecados e novamente trasbordante de amor, amor, amor! Tinha os olhos brilhantes, os lábios entreabertos e respirava doce e apressadamente, esquecida de tudo, excepto do seu salvador, do seu amado salvador.

Ao ouvir a respiração apressada e palpitante da irmã, Joan voltou- se e olhou cheia de curiosidade a pequena, estranha e silenciosa Rose. Tinha abandonadas no regaço as mãos pequeninas, brancas e imaculadas, que lavava muitas vezes por dia, mãos macias e pálidas, de palmas cheias e dedos afuselados. As vezes até parecia que não eram irmãos. Joan não conseguia compreender a paciência de Rose, resignada como as pessoas idosas, sempre pronta a sofrer. As vezes chegava a parecer-lhe que Rose gostava de sofrer.

Um dia, durante a limpeza da Primavera, a mãe irritara-se com ela por ser tão vagarosa e sonhadora: Rose, nunca mais temos a sala arrumada se continuares a parar por tudo e por nada. A rapariga voltara-se para a mãe, a sorrir, a saborear àvidamente a sua irritação, e dissera-lhe, num murmúrio estranho e apaixonado: Sou má, sei que devia levar pancada, mãe.

Estupefacta e escandalizada, a mãe parara de varrer e fitara-a. Nunca bati em nenhum dos meus filhos!, gritara-lhe, mais irritada ainda. Pois não, mãe. Mas eu merecia.

E, no entanto, era tão pequena e infantil, com o seu corpo tímido e roliço como o dos bebés, o rosto puro como o de uma criança, a voz doce e os meigos olhos castanhos, da cor das folhas de Outono! Nunca precisava de nada, nunca pedia nada. Usava, sem se queixar, os vestidos que tão depressa deixavam de servir à irmã. Naquele domingo, por exemplo, trazia o vestido de Joan do último Verão, azul já um nadinha desbotado. Joan sen tiu invadi-la uma onda de amor. Havia de arranjar maneira de Rose estrear qualquer coisa! O próximo vestido novo sería para ela e, um dia, vesti-la-ia de novo dos pés à cabeça! Queria que Rose fosse feliz. Era tão agradável quando todos se sentiam felizes!

A voz do pai soou-lhe aos ouvidos, vibrante e sincera:

-Avaliemos, pois, antes que seja demasiado tarde, o que Deus é para cada um de nós. Deus não está muito longe de qualquer de nós.

A voz do pai dissipou-se de novo, ao acudir ao espírito de Joan uma pergunta para a qual não encontrou resposta: Que era Deus para ela? Não sabia. Agora não lhe importava que estivesse longe ou perto, pois não acreditava nem deixava de acreditar em Deus. Não era importante. Deus era como aqueles velhos que estavam na igreja, aqueles adoráveis velhos que eram gentis com ela, a conheciam desde que nascera e se interessavam e interessariam sempre pelo que lhe respeitasse. Existia, sem dúvida, para se recorrer a Ele se fosse preciso. Mas ela não precisava de nada. tinha tudo. Tinha a sua juventude, tinha a sua beleza. Teria de facto, a sua beleza?

Começava a acreditar secreta e frequentemente na sua beleza, a guardar no coração, como um tesouro, todos os elogios que a tal respeito lhe faziam. A Joan está cada vez mais bonita, á medida que cresce; Creio que a joan será a bela da família, apesar de ser tão alta; Os olhos da Joan são maravilhosos. . Na cerimónia da formatura, Mary Robey segredara-lhe, trocista: Sabes o que disse o meu irmão, Joan? Que gostaria de beijar a tua boca!

Os lábios de Joan queimavam, ao recordar o episódio. Nunca nenhum homem a beijara, ainda. Uma vez, um rapaz tímido colara- se muito a ela, num baile, e depois de um passeio ao luar pretendera colar-se ainda mais, mas ela afastara-se. O seu corpo desejara encostar-se ao dele. mas o seu coração não consentira. Joan rira-se, porque se sentira muito embaraçada, o rapaz recuara, também, e ela dissera-lhe, meio a rir, meio a chorar: Voltemos para junto dos outros... para a luz.

O beijo, o seu primeiro beijo, esperava-a, algures. Acreditava que o amor a esperava. Ele iria ao seu encontro, alto e forte, mais alto ainda do que ela, e ela iria ao encontro dele. Queria ter tudo quanto se relacionava com o amor: a sua descoberta, a espera pelo casamento, o amor desabrochado em filhos, muitos filhos. Queria uma casa cheia de crianças, de crianças concebidas em amor e não em pecado. Queria trabalhar, cozinhar e costurar para elas, brincar com elas e cantar- lhes, amá-las apaixonadamente, erguer à sua volta as paredes do lar e do amor, dar-lhes segurança. Entre elas, também ela viveria em segurança. Miss Joan Richards casou hoje com. com. Com quem casaria? A igreja estava enfeitada com fetos e rosas de Junho, e a noiva, encanta dora no seu vestido de cetim branco, usava o véu de noivado da mãe, de renda adornada de raminhos de flor de laranjeira...

Viu-se a subir a nave, sob arcos floridos. Rose ia a seu lado, de vestido novo de um madrepérola rosado muito claro. Interrompeu um momento o seu devaneio, para imaginar como seria o vestido de Rose, e depois deixou-se levar, de novo, nas asas do sonho. O pai aguardava, para efectuar a cerimónia, e a mãe teria também um vestido novo, de chiffon cinzento-prateado. E Francis? Deteve-se de novo, a pensar. Queria que todos participassem no seu casamento. Olhou para o irmão, pensativa. Francis tirara travessamente a aliança á mãe e enfiava-a no seu dedo pequenino. A mãe olhava-o, inquieta, e ele, para a arreliar, fingia que deixava cair o aro de ouro.

De súbito, como um látego a retalhar-lhe o sonho, ouviu a voz do pai, a acusar os assistentes numa cólera solene:

- Afirmo que Deus não nos considerará inocentes.

O sonho, o seu belo sonho, dissipou-se como névoa. Baixou a cabeça e sentiu a alma encolher-se de medo, dentro do seu corpo forte. Porque não deixava ele de falar naquele caso horrendo e desagradável? Já passara tanto tempo! As pessoas sentiam-se sempre contrariadas, quando ele o abordava, como acontece quando se recorda a uma pessoa boa e sensata a sua única loucura. A atmosfera da igreja era tão agradável, antes de ele começar a falar naquilo. Joan sentia as pessoas mexerem-se, constrangidas, ao ouvir as suas palavras. Aqui e ali, ouviu- se, até, uma tossezinha seca. Só Mrs. Parsons continuava a sorrir, vaga e docemente. Pelo canto do olho, Joan viu Mr. Weeks, no coro, estender a mão para um livro de hinos e começar a ler, ostensivamente.

Toda a gente sabia que Mr. Weeks procurara Mr. Bradley, havia muitos anos, quando todos eles eram pequenos, e lhe dissera o que a sua filha, Netta, lhe contara. Mr. Bradley respondera-lhe que a garota era uma grandíssima mentirosa e possuidora de muita malícia, pois nenhum rapaz de South End podia ter estado na aldeia durante o dia, visto ser dia de trabalho na fábrica. Então Mr. Weeks, furioso, levara Netta consigo a South End, para encontrar o rapaz negro que, segundo ela, lhe tocara. Depois, quando Mr. Bradley falira, Mr. Weeks comprara a fábrica.

De qualquer modo, reinava em South End uma atmosfera muito carregada, com os operários brancos em greve contra Mr. Bradley, por ele ter admitido negros. Mr. Bradley começara apenas com pessoal branco, mas depois as coisas tinham corrido mal. Por exemplo, os homens deixaram de usar tantos colarinhos brancos engomados precisamente na altura em que ele comprara um novo lote de máquinas para confeccionar esse tipo de colarinho. Vira-se, por isso, forçado a baixar os salários, e quando o pessoal fizera greve admitira negros.

Netta contara a todas as rapariguinhas da escola que um rapaz negro a detivera no caminho da escola, quando se encontrava sozinha na azinhaga. Olhem, fez-me isto. Levantara a saia e metera a mão entre as pernas magras. O meu pai levou-me logo a South End, procurámo-lo e eu reconheci-o assim que o vi. Não era bem preto. era assim amarelado. Repetira a história vezes sem conta, mas como Netta era mentirosa, tinham-na ouvido sem lhe dar grande crédito. Isso não impedira, porém, que o rapaz fosse chicoteado por um grupo de brancos, em South End, e que homens e mulheres tivessem saído a correr de Middlehope, para assistir ao espectáculo. Netta estremecia toda, quando contava a história.

Agora, passados oito longos anos, o pai de Joan continuava a flagelá-los, na igreja, a não lhes permitir que esquecessem.

Deus pedir-nos-á contas por nada termos feito por essa gente! Vertemos sangue ilegalmente, talvez, até sangue inocente, e a mancha continuará a macular-nos se não a apagarmos com as nossas preces e boas acções.

Ia outra vez pedir-lhes dinheiro para a sua missão em South End, e eles não lho queriam dar. O que queriam era esquecer South End. A igreja encheu-se, de súbito, de um antagonismo silencioso entre os fiéis e o sacerdote. Joan sentiu-o e mal podia respirar. Viu a mãe baixar a cabeça, de mãos apertadas com força uma na outra, e reparou que só Rose parecia não se importar e sorria um pouco, à escuta. No coro, Mrs. Parsons também não se importava, pois não estava a ouvir nada.

Mas Francis olhava a direito para o pai, com um rosto que parecia de pedra. Devolvera o anel ao dedo da mãe e fitava o pai, cheio de ódio. De que valia ir pregar àquela gente? Pregar não valia de nada. Se o pai soubesse alguma coisa, das coisas que os outros homens sabiam, compreenderia a idiotice de pensar que com pregações se salvaria alguém em South End.

Por fim, acabou. Joan levantou a cabeça, para respirar de novo a atmosfera de paz da igreja. Era tão agradável ter paz para sonhar! Onde ia ela?. Descia a nave, vestida de cetim, com a comprida cauda branca a arrastar. Mas o pai interrompeu-lhe outra vez o sonho, ao concluir, veementemente:

- Vivamos, portanto, vitoriosos até ao fim, triunfantes, conhecendo Aquele em que acreditamos. Sejamos com Deus, que é...

O órgão fez-se ouvir alegremente, numa despedida, e as pessoas levantaram-se ávidas e aliviadas, desejosas de conversar umas com as outras, de sair para o sol, de combinar encontros durante a semana. A mãe de Joan reuniu os filhos e desceu com eles a nave, com a mão apoiada no braço do filho. O rapaz endireitou-se, trocou o ar infantil pela gravidade de um homenzinho, e ela reviu-se nele, com todo o seu orgulho de mãe estampado no rosto. Esforçava-se por disfarçar. como a decência mandava, mas o orgulho brilhava nos seus olhos, cintilava no seu sorriso e vibrava na sua voz. Do outro lado, Joan sorria, com a doçura do seu sonho ainda a brincar-lhe no rosto. Acolheram-na todos com amor e simpatia. Era, também, sua filha, filha da aldeia.

-Li no jornal que recebeste muitas honras, Joan.

-A Joan ainda um dia será famosa.

- E, então, sentir-nos-emos orgulhosos de a ter conhecido.

-Qual nada! - exclamou Mr. Billings, ruidosamente. Alguém casará com ela muito antes disso, e ela terá filhos em vez de fama, o que será muito melhor!

É A mãe de Joan ergueu um pouco mais a cabeça e disse friamente, pois considerava Mr. Billings muito grosseiro:

- Vamos, Joan.

No fim de contas, Mr. Billings era apenas o carniceiro, o que não passava de uma profissão inferior. Depois lembrou-se, porém, que ele oferecia semanalmente ao presbitério a carne de borrego ou de vaca, para assar, que era membro da igreja e que a sua profissão justificava que fosse grosseiro. Por isso cumprimentou-o, embora em tom senhoril e cortês:

- Bons dias, Mr. Billings: Está uma bonita manhã. Logo a seguir voltou-se para Mrs. Winters, cujo marido era deão, além de fazer parte do coro, e perguntou-lhe pelas suas peónias. Joan sorriu, envergonhada, a Mr. Billings, mas ele não se importou. Piscou-lhe um dos olhinhos pretos e maliciosos e a sua grande cara vermelha abriu-se num sorriso.

- Esta semana mandei um lombo - segredou-lhe. - Especialmente para si, hem? Pareceu-me mais próprio do que um sim ples assado, percebe?

- Obrigada - agradeceu-lhe, com um sorriso que lhe abria covinhas nas faces e que aceitava também, implicitamente, a dádiva de admiração estampada nos olhos de Mr. Billings.

Era um homem velho e gordo, grosseiro e ignorante, mas valia a pena aceitar o seu olhar, que se demorou um instante no rosto da rapariga. Valia a pena aceitar tudo, todas as migalhinhas de amor e de admiração. Joan queria flores espalhadas no seu caminho.

Olhava de uns para outros, a rir, a cumprimentar, a aceitar tudo quanto lhe davam. Era maravilhoso! Como recompensa, não foi avara de promessas: Sim, claro que irei! Oh. os piqueniques são divertidos! Farei um bolo de chocolate. Sou artista a fazer bolos!

No seu entusiasmo esqueceu-se da mãe e de Francis, que a puxava cheio de impaciência - Apre, mãe, estou cheio de fome!, resmungava, sem modíficar a expressão grave, de homenzinho. A igreja faz-me sempre fome- e esqueceu-se de Rose, que seguia docemente atrás deles. Sentia-se cheia de si mesma, uma rainha que regressava ao seu reino, uma mulher que voltava, encantadora e jovem.

Entusiasmava ver sonhos e desejos atê nos rostos dos velhos. Sabia que lhes despertava recordações, que lhes permitia amar de novo, por ser tão jovem e tão cheia de vida. As poucas pessoas novas presentes mostravam-se acanhadas perante ela, tímidas, por ser tão confiante e alegre. Lá estava a Netta Weeks, que afinal não fora para a universidade. O pai diz que não pode díspor do dinheiro necessário, enquanto a fábrica não começar a compensar, explicara a toda a gente. Ao ver Joan, agarrou-lhe num braço e segredou-lhe:

-Quero encontrar-me contigo, para termos uma daquelas belas conversas que costumávamos ter...

- Com certeza, Netta - respondera Joan, sem hesitar. Pobre Netta! Compreendia-a, compreendia toda a gente, lamentava todos! Sentia-se cheia de compreensão e de bondade por todos eles.

Um rapaz que se encontrava perto, um jovem camponês alto e robusto, olhou-a disfarçadamente, e Joan deu logo por isso, mesmo sem o olhar, pois ele era um desconhecido. No entanto, demorou-se um momento, para que a pudesse admirar à vontade.

Por fim chegaram à rua, onde o sol brilhava no céu sem nuvens, e Francis afastou-se e seguiu à frente, a assobiar. Sentia-se satisfeito por estar fora da igreja. Não valia de nada recordar coisas. As vezes, quando estava um dia assim, cheio de sol, pensava que talvez tivesse imaginado que vira o negro pendurado, ou o inventara graças a conversas ouvidas em South End. As pessoas de lá ainda falavam no caso, de vez em quando, nas tardes de modorra. Mas à noite todas as dúvidas se dissipavam, sabia que vira.

- Eh! - gritou a um rapaz que se encontrava do outro lado da rua. - Encontramo-nos logo à tarde!

- Vou à frente, para tratar da carne - disse a mãe.

- Eu vou já -redarguiu Joan, a olhar à sua volta. As pessoas começavam a afastar-se, sùbitamente famintas a lembrar-se do almoço dominical.

- Eu espero pelo pai - decidiu Rose.

-Nesse caso, vou com a mãe, para a ajudar. Mas faltava ainda sair uma pessoa da igreja: Martin Bradley. Desceu garbosamente a escada, com a pauta da música debaixo do braço. Esperava sempre, para sair sòzinho. Tirou o chapéu e cumprimentou, delicado:

- Como está, Miss Richards? É agradável saber que voltou. espero que para ficar?

Joan sentiu-se súrpreendida. Martin Brádley nunca lhe falara de modo tão directo nem nunca a tratara por Miss Richards. Fitou-o nos olhos castanhos, melancólicos. Era um nadinha mais baixo do que ela. Não, eram da mesma altura.

- Não sei. durante uns tempos, pelo menos. - respondeu a gaguejar, súbitamente embaraçada.

Martin levantou de novo o chapéu e Joan viu-lhe o cabelo preto, liso e muito penteado, branco aos lados. Sorriu-lhe de modo agradável, mas só com os olhos, e deixou-a. joan atravessou o relvado, na direcção do presbitério, a sorrir para consigo. Era estranho, como, quando se crescia, as pessoas pareciam diferentes. Havia anos e anos que conhecia Martin Bradley, aos domingos como parte do órgão, aos dias de semana como uma cara entre as caras da aldeia. Agora, de súbito, adquirira uma forma própria... era, até, simpático, de uma maneira misteriosa e antiquada.

Joan não sabia, porém, qual era essa forma, e a surpresa que experimentara desaparecia, pelo menos de momento. Dissipavam-na a manhã quente, a paz da alameda de sombras acolhedoras, as rosas que trepavam pelo alpendre e o cheiro da carne cozida e da torta de maçã. Joan correu pela escada acima e entrou em casa. A mesa estava posta e, nela, comida quente e deliciosa, à espera de ser saboreada.

Joan sentiu-se, de súbito, esfaimada.

Aos dias de semana a casa voltava a ser um lar, apenas. Deixava de pertencer á igreja de tijolo vermelho e á áldeia, para lhes pertencer sómente a eles. Era a sua casa, para elá viverem como lhes aprouvesse, e cada úm vivia a sua intensa vida pessoal, intensamente só e, ao mesmo tempo, terna e intensamente unidos. Havia os momentos quotidianos em que se reuniam por necessidade de convivência, não tanto pela necessidade de qualquer deles, como pela necessidade conjunta, de todos.

De manhã, Joan dormitava, na doçura do meio-despertar. Sentia o corpo simultâneamente pesado e leve, e o seu espírito, apesar de entorpecido pela sonolência, estava superficialmente desperto para o sol, para os ângulos do mobiliário familiar, para a suavidade dos lençóis e para a maciez do colchão. Não precisava de se levantar, ainda não havia pressa de que começasse a trabalhár. A vida continuava à espera e as férias não tinham acabado. Como de costume, o seu corpo despertava apaziguado pelo sono e ainda não sentia fome. Pudia dormir tanto quanto lhe apetecésse, pensou para consigo, e comer quando lhe aprouvesse. Aquéla era a sua casa, na qual era livre. Sorriu, profundamente feliz, e virou-se, para adormecer de novo.

Mas o sono fugia-lhe. Perversamente, o espírito esgueirou-se-lhe do corpo langoroso, desceu a escada e viu os outros à mesa, reunidos. Só o seu lugar estava deserto. O pai hesitou antes de dar graças, como acontecia sempre que um deles não estava presente, e perguntou:

- A joan? Está doente?

- Deixa a pequena descansar - respondeu-lhe a mãe, compreensiva. - São as suas férias.

Começaram a comer sem ela, mas sentiam-lhe a falta e Jóan sabia-o. A refeição não era completa. Só se sentiam absolutamente saciados se comiam juntos. O espírito de Joan subiu a escada e voltou, sorrateiro, ao seu corpo, que continuava inerte e de olhos fechados. Eu também sinto a falta deles, deu consigo a pensar. - Prefiro tomar o pequeno almoço na sua companhia do que sozinha. Quero ocupar o meu lugar entre eles.

De súbito, saltou da cama, definitivamente acordada, despiu, de repelão, a camisa de dormir, e meteu-se debaixo do chuveiro, na casa de banho. Abriu a água toda, para a sentir numa chuvada fria e estimulante. Voltou-se, recebeu o jacto nos seios e deixou-o escorrer para os pés; voltou-se de novo e recebeu-o nos ombros e pelas costas abaixo, até aos calcanhares. Friccionou-se com a toalha felpuda, num e noutro lado do corpo, enfiou a roupa, abotoou depressa os poucos botões, calçou meias e sapatos, escovou o cabelo e enrolou-o. Correu para a mesa, risonha, com as pontas do cabelo ainda húmidas.

Olharam-na, satisfeitos, e a mãe exclamou, alegre:

-Julgava que ficavas na cama, esta manhã!

- Não quis perder nada e pareceu-me, de repente, que estava a perder qualquer coisa.

- Perderias, com certeza, estas rosquinhas - replicou Francis. - Mesmo assim, farei o que estiver na minha mão para que percas a maior quantidade possível - e tirou uma rosquinha quente do prato que Hannah oferecia, sorridente e lisonjeada.

Contentes com a sua vinda, começaram todos a falar, excepto a mãe, que os devia ouvir. Cada un deles precisava do circuito familiar completo, para dizer o que tinha a dizer. O pai comia com apetite, a pensar na véspera. Perturbado por qualquer pensamento, levantou a cabeça e perguntou á mulher, no meio da conversa geral:

-Mary, achaste que, ontem, faltaram tantos como de costume?

A mulher respondeu-lhe logo, embora os seus olhos ainda brilhassem de contentamento, do convívio com os filhos:

-Achei, sim, Paul, atendendo à época do ano. As pessoas gostam de viajar e de fazer piqueniques, neste tempo ameno.

Mas a explicação não tranquilizou o marido, que murmurou:

-Os membros da igreja deviam lembrar-se dos seus deveres, o serviço divino devia ser-lhes necessário, tão necessário às suas almas como os alimentos são necessários aos seus corpos.        Não lhe parece, pai, que há outra moda de obter alimento para a alma? - interveio Joan. - encontra-o na música, na beleza espalhada por toda a párte...

O rosto grave do pai tornou-se um pouco mais grave, ainda, e os seus lábios comprimiram-se, antes de lhe responder, cheio de paciência:

-Essas coisas não conduzem ao conhecimento de Deus. Só há um Salvador, o Crucificado.

Rose levantou os olhos ocultos sob as pálpebras pesadas. olhou o pai e baixou-os de novo, pensativa. Para além da cabeça loura de Rose, Joan via o jardim, as rosas vermelhas recém-desabrochadas, e os lírios do Verão, nas beiras dos canteiros. Os lírios amarelos estavam todos abertos e Joan esqueceu as palavras do pai. Depois do pequeno almoço sairia e mergulharia delicadamente o rosto nas flores, como o beija-flor, quando as descobria. Conservava, de ano para ano, a recordação da fragrância dos lírios amarelos; entre uma centena de perfumes, reconhecia aquele cheiro simples e doce. Mas tal conhecimento, segundo o pai dizia, não era o conhecimento de Deus.

Joan voltou-se para a mãe, impaciente, e chamou-a:

- Mãe.

Mas a mãe escutava o filho, de expressão perturbada, e não a ouviu.

- Não percebo porque não posso! - protestava o rapaz.

A contrariedade tornava o seu rosto moreno e atraente mais escuro, e também mais atraente, e Francis mordia o lábio inferior, que parecia querer rebentar com a força do sangue que lhe subia à cara.

- Todos os rapazes vão. até o Ned Parsons, que, está sempre a apontar-me como exemplo! Além disso, já convidei uma pequena.

- Não gosto que vás a essa sala de baile - replicou a mãe, obstinada. - O teu pai é o sacerdote. - Fez uma pausa, comprimiu os lábios, cujo formato era exactamente o dos do filho, e depois perguntou, com certo constrangimento e em voz diferente:

-Que rapariga convidáste?

Francis decidiu castigá-la e resmungou:

- Para que lhe hei-de dizer, se não a posso levar?

Na realidade, não convidara rapariga nenhuma, mas queria magoar a mãe.

- Oh, Frank, não sejas assim! - suplicou-lhe, baixinho.

Sabes muito bem que gosto que tenhas bons e sãos divertimentos. Não creio, porém, que esse seja bom para ti.

-A razão não é essa. Não me deixa porque o pai é um ministro da Igreja. Com a breca, toda a minha vida tenho sido prejudicado pelo facto de o meu pai ser um ministro da Igreja.

A expressão da mãe modificou-se, pois não era capaz de se zangar, nem sequer com o filho.

-Se quando fores homem valeres metade do que o teu pai vale, Francis...

- Espero morrer antes disso! - replicou o rapaz, entre dentes.

- Aonde queres tu ir, filho? - perguntou o pai, que não ouvira náda, mas levantára de súbito a cabeça, consciente de qualquer discórdia.

- De que me vale pedir as coisas? - revoltou-se o moço contra a mãe, ignorando a intervenção do pai. Devia fazer como os outros, não dizer nada, mas sou um idiota!

Vencera a mãe, pois ela queria, acima de tudo, que ele não lhe escondesse nada. Temia a hora em que haveria silêncio entre eles, o silêncio das conversas superficiais e banais. Queria-o como ele era por enquánto. Quando Francis se mostrava rebelde e tempestuoso, ela conhecia-o, pelo menos, e enquanto o conhecesse ele ainda seria seu. Compreendia, no entanto, que o filho se lhe escapáva lentamente das mãos, que a fuga definitiva se verificaria numa questão de dias ou, até, de hóras. Cedeu, por isso, assustada, com medo de que tivesse soado a hora derradeira.

-Pensarei nisso - prometeu.

Francis compreendeu; tornou-se imediatamente amável e respondeu, por fim, ao pai:

-Há um sitio novo onde se pode comer e nadar, a cerca de cinco quilómetros da estrada do sul, e a rapaziada pensou ir até lá esta noite, jantar e passar um bocado.

- Compreendo - murmuroú o pai, vagamente.

Nos últimos tempos começara a ocorrer-lhe, de vez em quando, que se devia interessar pela vida do filho; agora que o rapaz tinha dezasseis anos (ou eram dezassete?) e já não era umá criança.

Enquanto os filhos eram crianças, era natúrál que fosse a mãe a olhar por eles, mas Francis estava um homenzinho.

-As tuas aulas já acabaram? perguntou, delicadamente.

- Não te lembras que fomos assistir ao encerramento das aulas, a semana passada? - interrompeu a mulher, impaciente e meio envergonhada com a figura que o marido fazia perante o filho.

- Lembro, sim, querida -respondeu-lhe em tom suave, fitando nela o distante e claro olhar azul. - Parece-me, no entanto, que se disse qualquer coisa acerca de estudar latim, este Verão. - Animou-se, de súbito, e pareceu mais junto deles, ao propor, com tímido interesse: - Eu podia ajudar, nisso.

Ou eu -interveio Joan, a sorrir, maliciosa.

O rapaz desatou a rir, com vontade.

- Apre, estou a ver que ainda tenho de aturar um grupo de professores, na minha própria família! Não te ofereças também, Rose!

- Eu? - perguntou a rapariga, descendo das nuvens. - Não sei latim... Além disso, prometi ao pai encarregar-me de uma aula especial de catequese para meninas pequenas, este Verão.

-Prometi ao Francis um mês de férias, Paul-disse a mãe, e depois sorriu inesperadamente ao filho e acrescentou: -Mas é excelente a tua ideia de o ajudarem. Sei que ele ficará contente.

-Oh, com certeza! -exclamou o rapaz, satisfeito, e levantou-se da mesa.

A refeição terminou, depois de os unir de novo. Agora as suas vidas separar-se-iam e seguiria cada uma para seu lado, mas nas três refeições diárias voltariam a unir-se, num todo. O corpo era o laço que os unia, a igualdade do seu sangue e da sua carne. Reuniam-se, comiam, bebiam e renovavam a sua carne e o seu sangue, antes de se levantarem da mesa, saciados e prontos para nova separação. Na busca do que desejavam para além do corpo, viviam sòzinhos, mas como voltavam sempre a reunir-se não se perdiam na solidão.

Joan ainda não sabia o que seria a sua vida pessoal, isolada; Levantou-se da mesa. de coração leve e descuidado, e foi para o jardim banhado de sol. Da relva elevava-se o cheiro da terra, quente e íntimo. Subia, até, por entre as flores. Joan aproximou-se dos lírios amarelos, inclinou-se e aspirou sua fragância. Aspirou em longos haustos, até o seu corpo ficar cheio, qual navio carregado de perfume. Mas por debaixo do odor delicado havia o cheiro forte e húmido da terra quente.

A jovem endireitou-se e andou de um lado para o outro, calma e sem pressas, a admirar todas as folhas e todas as flores. Não tinha nada que fazer e o jardim era encantador. Uma aranha tecera uma teia entre os botões a abrir de uma roseira branca, apanhando aqui, delicadamente, a ponta de uma fólha, ali a orla de um cálice, a unir numa rede de prata, suave e firmemente, um ramilhete de rosas brancas. No centro daquele mundo branco e prateado, via-se a aranha, pequena, preta e imóvel.

Para lá do jardim desdobrava-se a rua, que levava para longe da casa e das flores, para longe da aldeia, para os campos e para além deles. Joan olhou para este e oeste. A este, erguia-se a igreja, fechada e silenciosa, que dir-se-ia não ter nada a ver com aquele dia. Na véspera as pessoas tinham-lhe emprestado vida, ao frequentá-la, mas agora passavam por ela na esteira de outro destino.

Naquele momento, por exemplo, passava uma mulher. Era a mãe de Martin Bradley, e nem sequer virou a cabeça para ver onde estivera na véspera. Parou, no entanto, ao ver Jóan sòzinha, pois a rapariga era alguém com quem podia falar, Mrs. Bradley não sabia resistir a tal tentação. Sorriu a Joan, suave e lisonjeiramente.

Era uma mulher pequena e roliça, satisfeita consigo própria e com o seu filho, e o alegre e bonito vestido de algodão justava-se-lhe tão bem ao corpo como as penas se ajustam ao corpo de uma ave gorda.

- Está um lindo dia, não está - perguntou. - Vou ao talho, para arranjar as carnes cedo. O Martin adora uma boa carne para o jantar, cozinhada com um pouco de bacan, e eu também não me faço rogada.

Inclinou a cabeça, sorriu e seguiu o seu caminho, cheia de importância, a assentar bem no chão os pés gordos e inclinados para fora. Todos os dias aparecia no talho, de manhã cedo, a fim de comprar os petiscos que planeava dar ao filho, ao jantar. Se os conseguia arranjar, sentia-se triunfante durante o resto do dia. Se falhava, se alguém se lhe antecipara e levara o mimo, tinha o dia estragado. Alimentava oddiozinhos violentos contra as vizinhas, se chegavam primeiro do que ela.

- Tenho muita pena, Mrs. Bradley - dizia-lhe Mr. illings, alegre e sujo de sangue, no meio das suas carcaças-, mas Mrs. Winters acaba de me levar os rins. E se levasse uma iscazinha de fígado? O meu fígado é fresquissimo, esta manhã.

Mas o fígado fresquíssimo de Mr. Billings não consolava Mrs. Bradley.

- Martin gosta menos de fígado do que de rins - replicava secamente, e escolhia uma costeleta.

Se encontrava Mrs. Winters no caminho, tratava-a com uma frieza que se prolongava até voltar a ser bem sucedida. Se, porém, os malogros se sucedíam durante vários dias, tornava-se avinagrada, vingava-se em Mr. Billings e pedia ao filho que lhe trouxesse a carne da cidade.

-As coisas estão a ficar de tal maneira que não consigo encontrar nada de jeito no talho de Mr. Billings - queixava-se, impante e presumida, entre as comadres da aldeia. - O estabelecimento dele já não é tão bom como era. O meu Martin traz-me a carne da cidade, umas vezes por outras.

- Joan! Joan! - chamou, de súbito, a mãe, de uma das janelas do primeiro andar.

Vou já - respondeu, mas deixou-se ficar, indolente. Gostaria de saber o que sucedera, naquela manhã, a Mrs. Brad ley, no talho. Mas a mãe estava com pressa e chamou-a de novo:

- Joan!

Resignou-se, por isso, a ficar com a curiosidade insatisfeita e foi ter com a mãe.

No grande quarto do primeiro andar, a mãe lidava de lado para lado, rápida e competente. Havia muitos anos que fazia exactamente os mesmos movimentos, todos os dias, e agora as suas mãos conheciam, por instinto, os gestos mais repetidos e os seus pés o camino mais breve. Entalou bem o lençol no canto da grande cama de casal, onde dormia com o pai dos seus filhos desde a noite em que tinham chegado ao lar, de regresso da viagem de núpcias. Era-lhe tudo tão familiar como as próprias mãos e os próprios pés. Acabou de fazer a cama quando Joan entrou, e sentou-se na cadeira de balanço. Joan estava habituada a vê-la ali sentada. Fora naquela cadeira de velha madeira castanha, com uma almofada da mesma cor, que a mãe sempre se sentara, a passajar e a remendar, e os filhos tinham ocupado por turnos, a seus pés, o desconjuntado genuflexório, forrado de tapeçaria, para recitarem os salmos, os hinos e o catecismo que deviam decorar. Em baixo, na sala de estar da família, havia sempre muito barulho, e nem podiam pensar em ir para a sala de visitas. Mas ali havia sossego. Quando era pequena, Joan olhava, da janela baixa, os - telhados da aldeia e os montes onde pastavam ovelhas, e cantava: "O Senhor é o meu pastor, nada me falta!" E acrescentava, hesitante: "... o fim principal do homem é glorificar Deus e gozar .para sempre a- Sua doçura." Como se gozava a doçura de Deus? Por muito que perguntasse à mãe e que escutasse atentamente a sua resposta, nunca compreendia, a mãe nunca conseguia explicar-lho com clareza. Ali, naquele quarto, costumava, também, a mãe admoestá-los, quando cometiam maldades, e administrar-lhes os seus raros castigos. Joan lembrou-se, de súbito, de uma vez em que se atirara para cima da cama, a chorar de pena por ter dito uma mentira qualquer, não se lembrava acerca de quê. Lembrava-se apenas de que, por ter mentido, não fora ao piquenique da catequese. A mãe não tolerava mentiras. Podia ser branda e perdoar tudo o mais, mas a sua voz endurecia e abatia-se sobre eles. fria como uma espada, se os apanhava numa mentira.

"Não me mintam!", gritava em tais momentos, perdida por completo a paciência.

Agora, sentada na velha cadeira de balanço, fitava a filha timidamente, com uma expressão suplicante que não era habitual nela.

- Joan. esperei que passassem alguns dias depois do teu regresso a casa para te dizer uma coisa. Não quis estragar a tua formatura e o teu regresso, mas hoje tenho de te dizer, pois não me sinto com coragem para assistir à reunião missionária desta tarde. Miss Kinney vai falar acerca de África e eu quero que vás tu em meu lugar.

- Mãe! - exclamou, estupefacta, e deixou-se cair na cama firme e larga.

A mãe nunca estivera doente! Agora que reparava, achava-a, talvez, um pouco mais magra. Observou-lhe a cara com mais atenção e perguntou-lhe:

-Porque não nos disse?

-Quis resistir - respondeu-lhe a mãe, fatigada. - Sempre pensei que devia fazer das fraquezas forças, diante de vocês. As preocupações chegam sempre depressa de mais e as crianças não devem compartilhar as dos pais.

- Não sabia que tinha preocupações - murmurou Joan, em voz baixa.

-Nem eu queria que soubesses. Tãwpouco te falaria agora no caso se não tivesse dores. Mas ontem de manhã, quando fui ao teu quarto, compreendi, de súbito, que já não és uma criança. És uma mulher feita, alta e forte, e eu não posso continuar a afastar as preocupações do teu caminho.

Joan não soube que responder. Aquela não era a sua mãe.       Aquela mulher indolentemente sentada numa velha cadeira de balanço, com o rosto tão despido de sorrisos como se nunca tivesse sorrido, não era a mãe que conhecia. Teve medo dela.

- Claro que farei tudo quanto puder - murmurou, hesitante, quase sem poder acreditar que dez minutos antes, apenas dez minutos antes, estivera no jardim, ao sol.

- Há qualquer coisa que não está bem, em mim - disse-lhe a mãe, em tom vago. - Nunca fiquei boa, depois de o Francis nascer. - Calou-se, embaraçada, e prosseguiu, a custo. - Ele era um bebé muito grande e eu devo ter ficado rasgada.

Não olhava para a filha; tinha a cabeça virada e os olhos fixos na janela. Constrangida e envergonhada, não podia esquecer que aquela rapariga alta também nascera de si. Pairava entre ambas uma leve repulsa. Apesar de inquieta, Joan achava na sua ansiedade um travo de repugnância, contra a qual lutava. Se na sua frente estivesse apenas uma mulher desconhecida, não teria dificuldade em lhe responder com palavras de compreensão e compadecimento; é fácil ser amável com desconhecidos. Mas aquela mulher era, também, a sua mãe. Sentiu-se enredada em algo que não compreendia, enredada de modo físico e repugnante com o pai, a mãe e, até, com Rose e Francis. Estavam todos fisicamente enredados uns nos outros. Tal ideia irritou-a e Joan levantou-se, inquieta, da cama. Queria ser sempre feliz!

-já foi ao médico?

Dirigiu-se para a outra janela, que ficava afastada da mãe, e olhou para fora. Não devia ter feito a pergunta com tanta frieza. Porque se mostrava, agora, fria com a mãe. Tinha medo de qualquer coisa... Não queria a mãe assim tão próxima; tão íntima; queria-a como sempre fora, alegre, confiante, a rodeá-los de uma atmosfera terna e amena.

- Consultei o Dr. Crabbe - respondeu-lhe a mãe, contrafeita.

- O Dr. Crabbe! Ele não passa de um velho médico de aldeia!

- Assistiu-me quando vocês nasceram e conhece-me - replicou-lhe a mãe, simplesmente.

Joan sentiu de novo a onda de repulsa. O seu corpo fora arrancado da carne da mãe, agarrado pelas mãos ásperas e rudes do velho Dr. Crabbe. Joan conhecia as mãos do doutor, sentira os seus dedos grossos a apalpar-lhe as gengivas, quando era pequena, à procura de um dente solto, ou a puxar-lhe a língua para baixo, para lhe observar a garganta inflamada. Lembrava-se da sua cara vermelha, perscrutadora e muito próxima, cheia de cicatrizes e mal barbeada. Abria a boca, enquanto observava, mostrava os dentes manchados de tabaco e respirava pelas narinas cabeludas. As suas sobrancelhas lembravam bigodes amarelos e saíam-lhe das orelhas cabelos com uma polegada de comprimento.

Éra baixo e atarracado.

- Deve consultar outro médico - disse, sem deixar de olhar para fora da janela.

Mrs. Parsons descia a rua. Estivera outra vez nos Correios e levava um volume grosso debaixo do braço. Outro manuscrito recusado, com certeza... Se fosse a sua mãe que estivesse sentada como de costúme na cadeira de balanço, com as mãos atarefadas em vez de tristemente abandonadas no regaço, Joan gritar-lhe-ia: Devolveram outra vez a novéla a Mrs. Parsons. Qual será, desta vez? E a mãe responder-lhe-ia, compadecida: Coitada, não te rias dela. O seu desejo de escrever histórias tem sido uma verdadeira praga para aquela família. Confesso que não compreendo como o Ned e a Emily cresceram tão bem. Tem sido um verdadeiro inferno para o pobre Ed, que me disse, uma vez, que nunca tivera, realmente, uma esposa nem os filhos uma mãe. Não significam nada para ela, comparados com as histórias que escreve pelas quais regula toda a sua vida. Se lhe aceitassem uma só que fosse, creio que se julgaria no céu! Sempre a conheci assim.

Mas agora seria banal falar de Mrs. Parsons.

-Que diz o pai?

Não obteve resposta. Voltou-se, então, e viu a mãe de olhos baixos e lágrimas ao longo das pálpebras.

- Mãe!

Correu para ela e envolveu-a nos braços. Era estranho. era estranho sentir o corpo da mãe perder a rigidez, apaziguar-se nos seus braços! A repugnância dissipou-se e Joan apertou a mãe a si e fê-la deitar a cabeça no seu ombro.

- Mãe! Oh, mãe, mãe! - Que tragédia, que catástrofe era aquela?

- Não vale a pena dizer seja o que for ao teu pai - murmurou a mãe, sufocada. - Ele não compreende nada. nunca compreendeu.

Joan lembrou-se da porta fechada e das vozes baixas e apaixonadas, atrás dela. Seria. Mas antes que completasse a pergunta que ia fazer a si mesma a mãe endireitou-se e limpou os olhos.

- Sou má - afirmou, de súbito. - Não sei que me deu, para dizer semelhante tolice. O teu pai é um homem maravilhosamente bom e eu tenho muitos motivos para estar agradecida. Se penso na pobre Mrs. Weeks tenho de dar graças a Deus... Oh, aquele horrível Mr. Weeks!

Afastou Joan, levantou-se e tirou os ganchos do cabelo comprido, que começou a escovar muito depressa, defronte do espelho do toucador.

-Não tenho nada de que me queixar. Não faltam mulheres que, com a minha idade, se sentem menos fortes do que noutros tempos.

Assim afastada, Joan levantou-se, sentindo-se constrangida e ridícula. Hesitou, antes de perguntar:

-Que faço esta tarde, mãe? Quero ajudar.

- Vai à reunião por mim, querida - respondeu-lhe a mãe, muito calma, enquanto enrolava o cabelo no alto da cabeça e punha os ganchos de massa cinzenta. - Faz algumas observações acerca de Miss Kinney... o que te apetecer; conhece-la. Se queres, querida... Eu creio que descansarei, desta vez... Ficarei boa, depois de descansar uma tarde... E a Rose também irá. Quer ir sempre...

Observou, pelo espelho, a cara da mãe. Cingida na moldura e iluminada pela claridade que entrava pelas janelas, parecia mais branca e mais fatigada do que pareceria, por certo, quando se voltasse.

-Esteja descansada, farei tudo isso.

Encaminhou-se para a porta, parou e hesitou de novo. No fim de contas, aquela última meia hora existira, fora uma realidade.

- De qualquer modo, devia consultar outro médico.

- Talvez consulte, um destes dias - respondeu-lhe a mãe, tranquilamente, atarefada a pentear-se.

Joan saiu e deixou-a de pé, ao espelho.

À tarde, antes de sair para a reunião, dirigíu-se, pé ante pé, ao quarto dos pais. A porta estava aberta e Joan entrou, em silêncio. A mãe dormia, deitada na cama, tapada com um velho xale de lã tricotada que as senhoras da paróquia lhe tinham oferecido, em tempos, e cujos quadrados tinham perdido um pouco a cor. A cara da mãe surgia do xale, pálida, de boca aberta e com sombras cor de cinza à volta das narinas e dos olhos. Custava a crer que fosse o mesmo rosto que Joan observara serenamente à mesa, pois á hora do almoço a mãe voltara a ser a mesma de sempre. Um pouco calada, talvez, mas eles estavam habituados aos seus raros momentos de silêncio, embora adorassem o seu riso. Quando eram pequenos e a viam assim, assustavam-se e pediam-lhe: Que tem, mãe? Volte a ser alegre e a rir-se, mãe! Umas vezes ela fazia-lhes a vontade, mas outras fitava-os, com uma gravidade terrível, e respondia-lhes:

- Não poderei estar sossegada, de quando em quando? Apetece-me estar calada.

Tinham de se resignar, embora lhes fosse quase insuportável. A casa entristecia, parecia tornar-se cinzenta, e o peso do silêncio da mãe pesava cruelmente sobre os filhos. As vezes, até o pai se apercebia e perguntava-lhe:

- Estás doente, Mary?

Ela respondia-lhe, serenamente:

-Não. Estou apenas calada.

Seguiam-na para todos os lados, tristes, incapazes de a deixar ou de brincar. Quando esses momentos passavam, recomeçavam a viver e a casa readquiria a sua verdadeira cor. Corriam, cantavam, gritavam e brincavam ruidosamente, e até eram capazes de a deixar e de ir á aldeia em busca de divertimentos.

Agora, ao olhar o rosto adormecido, joan experimentou de novo a antiga dependência do estado de espirito da mãe. Parecia que estava tudo errado. Virou-se, assustada, e saiu, em silêncio, do quarto. A reunião surgiu-lhe, de súbito, como um fardo. Não seria divertida e joan temia-a. Não gostava de ouvir coisas tristes nem mesmo acerca de pagãos que viviam muito longe. Havia anos que não assistia a uma reunião missionária, desde quando era uma garotinha tão pequena que a mãe não a deixava em casa sòzinha. Temia semelhantes reuniões porque a mãe também as temera sempre, apesar de galhofar a seu respeito. No entanto, era uma das suas tarefas e ela cumpria-a, mas regressava sempre a casa risonha e aliviada. Ufa, exclamava, estou livre de págãos durante um mês!

Contudo, por ser a esposa do sacerdote, envidava todos os seus esforços para reunir o dinheiro com que a igreja prometia contribuir: cem dólares por ano. A igreja prometia contribuir com essa importância e as mulheres faziam planos e davam jantares de galinha, durante os quais vendiam sacos, lencinhos com rendas á volta, toalhas bordadas, panos da louça e mil e uma bagatelas que faziam e vendiam umas às outras, embora preferissem não ter de as fazer nem de as comprar. A velha Mrs. Mark comprava todos os anos o mesmo saco, dava-o no ano seguinte e voltava a comprá-lo, sem disfarces. Chamava-lhe o meu saco missionário...       

A mãe fazia muitas coisas que detestava, percebeu Joan, enquanto descia vagarosamente a escada.

Encontrou Rose à porta, vestida de linho branco e já com o grande chapéu de palha na cabeça.

- Posso ir contigo, Joan? - perguntou, cheia de gravidade.

- Se quiseres.

Atravessou o relvado ao lado da irmã, em cuja presença se sentia agora constrangida, sem saber porquê. Não pensara muito em Rose, nos últimos anos, ocupada a admirar o seu próprio crescimento. Mas Rose também crescera. Passado o Verão, seria a sua vez de partir, para a escola.

- Que tencionas fazer depois do Verão, Joan? - perguntou-lhe inesperadamente, Rose, fitando-a com os seus grandes olhos verdes. - Que planos tens para a tua vida?

Planos? Planeava tudo. Mas respondeu, vagamente:

- Não sei...

Não podia dar uma resposta qualquer a Rose, e era verdade que não sabia. Além disso, tinham chegado à igreja. Miss Kinney foi áo seu encontro, pela porta lateral, ansiosa e com o narizinho a tremer, como o de um coelhinho.

- Sinto-me sempre nervosa antes de falar - confessou, ofegante: - Mas Deus dá-me forças, pouco a pouco. Sinto a falta da vossa querida mãe. Ela anima-me muito, ao princípio, mostra-se sempre muito interessada...

Debaixo do braço, tinha uma pasta com fotografias. Já as mostrara muitas vezes, mas eram fotografias de África e ela estivera lá. Sim, caminhara entre as árvores da selva e debaixo de serpentes penduradas nos ramos, saíra de uma tenda, numa noite tropical, e vira o disco vermelho da Lua, atrás das palmeiras, e ouvira o percutir profundo de tambores distantes. Durante cinco anos da sua vida escapara àquela aldeia, ao pai e à mãe. Dizia que a voz de Deus a chamara, que nenhuma outra voz a poderia ter atraído, nem a do amor, nem a da concupiscência. Aos trinta e três anos, ainda em idade de aprender a linguagem, como sempre explicava, obedecera ao chamamento de Deus e tornara-se missionária.

Mr. e Mrs, Kinney tinham-se sentido escandalizados e abandonados na sua velha casa cheia de dignidade, mas a decência não lhes permitira protestar contra Deus, como tinham protestado contra os apelos dos rapazes novos. Contudo, haviam-na retido, demorado. A Sarah é impetuosa, decide tudo muito depressa... , desculpavam-se, e iam-na retendo, ano após ano, como tinham feito no caso dos dois jovens que se haviam apaixonado pelos ardentes olhos infantis da filha, e tinham esperado, desesperado e partido. Mas Deus era diferente, de Deus não a podiam afastar. Sarah mantinha invisível, mas sempre a seu lado. Chamou-me, repetia, com uma firmeza nunca empregada em nenhuma outra coisa, em toda a sua vida.

Tornara-se tão rebelde e tão firme após um ou dois anos de evasivas, que o Dr. Crabbe aconselhara, irritado: Deixem a rapariga fazer a sua vontade, desta vez, se não terão de a internar num manicómio.

- Que faremos sem ela? - carpira a velha Mrs. Kinney. O pai é-lhe tão dedicado, a Sarah é tudo quanto temos, a nossa única filha!

- Há dez anos que deviam ter netos! - ripostara o médico, com rudeza.

- Sarah tem uma saúde delicada - respondera-lhe Mrs. Kinney, positivamente.

Mrs. Kinney era idosa, mas muito bonita e frágil e tinha uma casa encantadora, que herdara juntamente com algum dinheiro. Nem ela nem o marido tinham jamais precisado de trabalhar.

Mrs. Kinney, que sempre tivera medo de tudo, tornara-se ainda mais medrosa com o passar dos anos. Afirmava, por exemplo, que jamais goria os pés numa dessas máquinas novas, chamadas automóveis. Era tentar Deus, era suicídio. Dava todas as tardes um passeiozinho pela rua abaixo, agarrada ao braço de Mr. Kinney, e aos domingos percorriam os três quarteirões que separavam a sua casa da igreja e voltavam. Somos ambos muito fracos, explicava, temos de ter cuidado connosco. Infelizmente a Sarah herdou a minha constituição delicada.

Mas Sarah provara, de uma vez por todas, que não era fraca. Metera-se no barco, fizera a viagem numa euforia de entusiasmo, chegara à remota missão perdida na selva e mergulhara intensamente na nova vida. A fadiga e as dificuldades não a molestavam não tinha medo de nada, embora andasse sempre ofegante.

Ao fim de cinco anos, quando veio de licença, o velho casal apoderara-se de novo dela, prendera-a com o seu amor, com palavras patéticas acerca da sua idade avançada e da sua fragilidade. Sarah ouvia a tosse do pai, via as mãos da mãe tremer... Agora, os pais não lhe falavam da sua delicada constituição e, sim, da sua força, da sua robustez. "És tão jovem e tão forte e nós já não duraremos muito... Um ano de vida não te fará falta, e podes ter a certeza de que não será mais de um ano."

Sarah esperara, ano após ano, e ao fim de seis o pai morrera. Então a mãe, muito trémula e magra como uma folha seca, dissera-lhe: "És capaz de me deixar sòzinha, Sarah? Não me resta nem um ano de vida..."

Sarah esperara um ano, dois anos, cinco anos e iniciava agora o sétimo ano de espera. A velha continuava a viver penosamente, sem carne nenhuma a cobrir-lhe os ossos e sacudida por tantas tremuras que era preciso alimentá-la e vesti-la como a uma criança. Os dias passavam, numa enfiada sem fim, e a morte continuava tão longe como ao princípio. Claro que Miss Kinney era terna como a mãe e nunca, nem no segredo do seu coração, desejara mais do que a saúde da velhinha. O seu único luxo era recordar os cinco anos que vivera em África e ter esperança.

Agora tinha na sua frente as duas raparigas e sentia-se feliz porque podia recordar de novo. Magra e seca, com todo o aspecto da solteirona, Miss Kinney era muito alta (tão alta que começara a curvar timidamente as costas desde que, aos dezasseis anos, o espelho lhe dissera, pela primeira vez, como na realidade era) tinha o cabelo branco, mais branco ainda do que o da mãe, solto à roda do rosto pequeno e excitado.

- Cinco abençoados anos, queridas amigas! - começou, com a voz a tremer. -Cinco abençoados anos a fazer o trabalho do Senhor! O povo africano, aquele querido povo, entregou-se-me, confiante. Não tinham medo nenhum de mim, sabiam que os amava. Quando estavam doentes era uma alegria tão grande para mim. era uma alegria tão grande podér tratá-los! Sobretudo as criancinhas pequenas, os bebés, eram tão ternos! Não me receavam, embora eu saiba que lhes parecia estranha. Como compreendem, nós parecemos estranhos e pálidos num país onde todos são negros.

O seu olhar saltitava de rosto para rosto e via-os todos incrédulos, pois lembravam-se dela quando era uma criança adoentada, de dentes da frente salientes. Fitou Rose, que a escutara extasiada, de olhos baixos e mãos abandonadas no regaço, e depois o seu olhar encontrou-se com o de Joan, de modo suplicante. A rapariga teve a sensação de que lhe incidiam no rosto duas lâmpadas acesas. Sem deixar de a fitar, a mulher de rebeldes cabelos brancos hesitou e a sua voz tremeu e tornou-se mais profunda:

- Não era apenas o povo.

Na sala nua e silenciosa ninguém compreendeu o que ela dizia - nem sequer Rose, a sonhadora Rose, que sopesava todas as palavras no seu próprio pensamento. Ninguém compreendeu, excepto Joan. E foi para Joan que a mulher de olhos húmidos e rebeldes cabelos brancos continuou a falar, a atropelar as palavras, na ânsia de que ela a compreendesse.

- Pobre Sarah Kinney! - segredou Mrs. Parsons a Mrs. Winters, a qual por sua vez segredou a Joan:

-Creio que devíamos proceder á recolha de donativos e encerrar a sessão. Espero visitas para o jantar.

No mesmo instante, Miss Kiniéy dominou-se. Começou a juntar as fotografias, com os dedos trémulos, e desculpou-se, em voz pouco segura e sufocada:

- É tarde? Oh, perdoem-me! Quando começo a falar da minha África.

Joan estremeceu, num rebate de culpa. Seria assim tão tarde? Devia ter orientado melhor a reunião. Desviou os olhos de Miss Kinney e suspirou, aliviada, antes de se levantar e dizer em voz clara, como a sua mãe faria:

-Depois da recolha de donativos para a missão de Banpu

- Rose, encarregas-te da colecta? -, cantaremos o hino número sessenta e um e a sessão ficará encerrada.

Mal as moedas de cobre e de prata tilintaram na bandeja que Rose estendeu, tranquilamente, às senhoras presentes, levantaram-se e começaram a cantar. Cantavam apressadamente e com energia, a pensar no jantar que teriam de pôr na mesa, nos maridos e nos filhos a saciar. Se o jantar se atrasava, os homens resmungavam, irritados: Era melhor que cuidassem da família! Joan ouvia as suas vozes simples e apressadas, levemente desafinadas:

- O Filho do Senhor parte para a guerra. -, e via os seus rostos honrados e envelhecidos. As mulheres novas não compareciam às reuniões missionárias, o que constituía um dos problemas da mãe. Como havemos de interessar as jovens?, costumava perguntar, perplexa. Joan passou o olhar pelas caras bondosas e distraídas, pelas bocas francamente abertas e pelas luvas de algodão, que começavam a enfiar, à socapa, nas mãos ásperas, e o seu coração enterneceu-se. Sentia-se feliz por estar de novo entre elas, em segurança na sua companhia. Eram todas tão boas, tão queridas, tão generosas no seu interesse pela África distante! Porque contribuíam com as suas moedas de cobre e de prata a favor dos pobres doentes de Banpu? Os seus próprios filhos estavam muitas vezes doentes, mas elas davam dinheiro para se construir um hospital em Banpu e não tinham nenhum em Middlehope... No entanto, continuariam a contribuir, a enrolar ligaduras e a enviar sabão e alfinetes-de-ama porque eram tão pacientemente generosas!

Qualquer história de sofrimentos e provações bastava para lhes arrancar as poucas moedas, num pingar constante. Privavam-se de pequenas coisas para minorar os sofrimentos e as provações de pessoas que nunca veriam.

Joan amava-as enternecidamente, eram-lhe muito queridas.

Apesar da pressa que todas elas tinham, pararam para lhe dizer:

-Sinto muito que a tua mãe esteja doente, Joan. Amanhã passarei por lá, para a ver.

-Vou fazer pãezinhos fermentados, Joan. Diz à tua mãe que lhe mandarei um cestinho.

-E eu levar-lhe-ei um boião de geleia de maçã. Ela sempre gostou muito da minha geleia.

Sentiu-se confortada, tão confortada que só se voltou a lembrar de Miss Kinney quando já todas tinham saído - todas menos Miss Kinney, Rose e ela própria.

- Oh, Miss Kinney, muito obrigada! - agradeceu, contrita. É sempre interessante ouvi-la falar da sua experiência em África. Direi a minha mãe que foi uma boa reunião.

- Acha, realmente, que foi, minha querida? - A voz de Miss Kinney ergueu-se de entre as árvores, na luz crepuscular, vibrante de ansiedade. - As vezes penso. creio que falo. Compreende, foi a única coisa que, na realidade, me aconteceu. Ainda espero regressar, um dia, quando a minha querida mãe estiver aconchegadinha no céu. Faz oitenta e dois anos, este ano, e não seria capaz de a deixar. Mas todos os dias pratico na língua banpu, para não a esquecer. Se fosse, poderia reatar o trabalho no ponto onde o deixei.

Rose ainda não dissera nada, muito calada e calma ao lado da irmã. Mas, de súbito, falou, docemente:

-Fez-me compreender tudo. Vi tudo tal qual como é.

Miss Kinney olhou-a, transformado o rosto numa mancha vazia, nas sombras do anoitecer, e exclamou; comovida:

-Oh, minha querida criança, minha querida criança! Choramingou um pouco, apertou com força a mão de Rose e afastou-se, apressada. As duas irmãs caminharam em silêncio, até que Rose falou de novo, com a mesma doçura:

-Deve ser maravilhoso ter servido assim!

Mas o coração de Joan revoltou-se, apressou o seu ritmo, num protesto contra a doçura da voz de Rose. De súbito, odiou a devota, invariávei e constante doçura da irmã.

- Eu detestaria! - declarou, em tom brusco.

- Mas, Joan - redarguiu-lhe Rose, numa suave censura -, não irias, se Deus te chamasse?

No cérebro de Joan sucederam-se as imagens negras e incompletas sugeridas pelas palavras de Miss Kinney. Sentiu o calor, tão ardente que não podia ser saudável, a arrancar às selvas escuras e misteriosas uma vida extraordinàriamente luxuriante e anormal; viu os negros, com o branco dos dentes a reluzir entre as árvores.

- Não - respondeu secamente, e correu para casa, para o seu lar.

Queria permanecer sempre onde havia segurança, calor e luz. Queria o que lhe pertencia.

Quando, meses depois, recordou esse Verão, compreendeu que tivera mais férias do que na altura lhe parecera. A mãe não voltara a falar na sua doença. Levantava-se de manhã, como de costume; e quando, passados dias, Joan a interrogara timidamente, pois ainda se retraía de qualquer intimidade de carne com a mãe, respondera-lhe: Pior não estou. Não te preocupes, filha, diverte-te este Verão. Eu estou bem.

Joan acreditou, porque era nisso que queria acreditar, e divertiu-se, voltando sem dificuldade à antiga e feliz dependência. Contavam todos, mais do que nunca, com a mãe. A casa vibrava com a esfusiante alegria da juventude. Rapazes altos, adolescentes, subiam ruidosamente os degraus de madeira do alpendre, a gritar por Francis, e quando ele acorria partiam numa grande algazarra, para pescar e nadar ou entregar-se às suas brincadeiras no rio e na estrada. Jovens já mais velhos vinham perguntar timidamente por Joan, e Rob Winters perguntava sempre por Rose. Era um rapaz alto, louro e grave, filho único; que estudava para sacerdote e tinha sempre muito cuidado em proceder como devia. Se Rose se importava de ser ele o único a procurá-la, não o demonstrava. Recebia-o com o seu invariável sorriso calmo e saíam os dois sózinhos.

Mas Joan não queria estar a sós com nenhum dos que a procuravam. Recebia todos com o mesmo contentamento e a mesma simpatia, desejosa de viver e ávida de rir. Fazia todas as coisas como se estivesse faminta delas. Um piquenique de rapazes e raparigas da aldeia era uma festa para ela. No dia combinado acordava de manhãzinha cedo, com o coração a bater de pura alegria e uma canção prestes a saltar-lhe da boca. Não importava quem iria, quem encontraria ou o que faria naquele período da sua vida, naquele período em que esperava, segura do que aconteceria. Era uma alegria levantar-se, tomar banho, vestir-se, comer, sair de casa, saudar outros jovens que iam ao seu encontro, descer a rua, embrenhar-se nos bosques, subir encostas e mergulhar em lagoas fundas e frias. Só o seu corpo vivia, tudo o mais que nela havia estava adormecido, isolado, à espera. Quase não lia um livro, ou se lia tinha de ser uma história simples, de amores jovens e felizes. Por uns tempos, estava saturada de erudição. O seu corpo tornava-se cada vez mais belo, o seu rosto arredondava-se e a cor da sua pele tornava-se mais escura e mais rica, com o brilho do sol e da saúde. As horas de despreocupação deixavam-lhe os olhos alegres, o riso pronto e punham-lhe constantemente nos lábios uma graça ou uma brejeirice.

Por isso, naquele breve e encantador Verão, não reparou em ninguém, toda entregue a viver para si mesma e por amor de si mesma. O pai era como um fantasma para ela. Beijava-o alegremente, de passagem, e gritava-lhe um ou outro cumprimento, porque era um prazer ser amável com todos. Mas depois esquecia-o. Do mesmo modo esquecia Rose, a não ser quando se cruzava com ela. Nessas ocasiões, fazia uma festa ligeira e alegre no rosto da irmã e esquecia-a de novo. Francis era como se não existisse, a não ser nos momentos em que trocavam risos ou se arreliavam um ao outro.

Dir-se-ia que estava apaixonada; mas não estava. Não estava apaixonada- por ninguém nem por coisa nenhuma, a não ser pelo mundo inteiro! Amava a manhã e o sol, amava a chuva e o luar mas não se deixava iludir se uma voz jovem e ardente lhe jurava amor à luz da Lua. Sorria e escutava, de bom grado, pois gostava de ouvir falar de amor, de qualquer amor, enquanto esperava, e o que escutava permitia-lhe arquitectar sonhos. Ned Parsons, a afagar a sua guitarra debaixo da glicínia e a fitá-la com olhos apaixonados, conseguia fazê-la sorrir, mas não se fazia amar. Joan não podia amar Ned, que sempre conhecera e com quem brigara muitas vezes, em pequena -e a quem veneera, também, não poucas. o pobre Ned a quem a mãe transmitira, com o sangue, a sua tonta e romântica imaginação. Ned não se parecia nada com a Emily, rapariga carrancuda e forte, que saía ao pai. Emily ia arranjar emprego na cidade.

- Tenho de me ir embora daqui - dissera concisamente a Joan, num piquenique. - Quero escolher o meu próprio caminho.

E Joan respondera-lhe, sem hesitar:

-Eu nunca sairei de casa. Gosto disto aqui, da aldeia, onde vivo e todos são, sempre, exactamente os mesmos.

-Eu não gosto.

Mas Emily nunca ria e era feia, com o lábio superior comprido e duro, o áspero cabelo preto e aquele seu jeito decidido e seco de dizer todas as coisas, até quando se tratava de banalidades, como a de pedír que lhepassassem o açúcar. Joan gostava mais de Ned, embora soubesse, apesar do luar, que os seus olhos cinzentos eram um pouco protuberantes, e estremecesse de cada vez que os seus grandes dedos ossudos hesitavam nas cordas da guitarra, numa desafinação. Não se deixava iludir por ele, mas na sua voz de falsete ouvia outra voz, no seu corpo desengonçado, inclinado para ela, sonhava com outro amor. E por isso murmurava, docemente: Gosto de ouvir música, ao luar! Dizia-o com tal ardor, com tão doce veemência, que o pobre rapaz se julgava amado, ou quase. Enquanto ele cantava, Joan olhava para o outro lado do relvado e via, extasiada, a sombra alta da igreja, entre as sombras mais pequenas e menos densas das árvores. Um dia, algures, num lugar ainda mais encantador, ouviria uma canção, uma grande canção nova. Por causa dessa esperança era terna com Ned, simpática, até, com o Jackie Weeks, que ainda andava no liceu, meiga com todas as vozes que escutava. Por causa dessa esperança apreciava tudo, uma fogueira junto de um lago, uma canoa a descer um regato, o chamamento de uma ave, na noite.

E sentia sempre, a envolvê-la, o calor bom e constante da sua casa. Aceitava o sorriso pronto da mãe e afastava do pensamento a ideia de que ela emagrecia ou parecia fatigada. Uma noite, no fim do Verão, acordou-a a antiga discussão abafada, atrás da porta fechada do quarto dos pais. Ou não seria uma discussão?

Não sabia, nem queria saber. Tapou os ouvidos com a trança, enterrou a cabeça na almofada fofa e adormeceu outra vez, profundamente. Quando acordou, de manhã, pensou que sonhara.

Sim, com certeza que sonhara.

De súbito, o Verão terminou. Um dia, a mãe disse:

- Agora é a vez da Rose. Quando ela e o Francis acabarem de estudar, quando estiverem todos preparados para iniciar a sua vida, descansarei. Então não descansarei apenas um bocadinho, de tarde. Será um longo descanso, serei egoísta durante muito tempo. -Sorriu para o tecido florido que tinha no colo e enfiou de novo a agulha com fio de seda cor-de-rosa.

- Como se a mãe pudesse ser egoísta! - exclamou Joan.

Ainda não estava vestida, embora fosse quase meio-dia. A manhã estava cinzenta e morrinhenta, chovia, e Joan dançara até tarde, numa festa. Acordara já manhã alta, esfomeada, e fora procurar comida. Agora estava sentada na cama da mãe, de pijama de seda amarelo, com uma fatia de pão com geleia de pêssego na mão -tinha sempre fome! - e o espírito cheio de doce indolência. Mas a mãe mostrou-se inesperadamente grave, ao dizer, a suspirar:

- Estou, de facto, a precisar de descanso. - Apressou-se, porém, a esclarecer: - Não quero dizer que não deseje trabalhar, pois o trabalho sempre me agradou, fosse qual fosse. Quando era rapariga, pensava que não gostava de varrer, mastanto varri que acabei por gostar, também. O melhor é gostarmos de fazer as coisas, já que temos de as fazer. Agora dá-me prazer sentir uma casa ficar limpa debaixo de uma boa vassoura. Vem af Mrs. Billings. Apostava que quer que lhe diga acerca de que deve falar, amanhã, na reunião das Senhoras Benfeitoras. É uma boa alma mas estúpida. Querida, importas-te de chamar a Rose e de lhe dìzer que prove este vestido? Tens habilidade para modas e eu quero que os vestidos dela lhe fiquem bem, quando se for embora. Tentarei despachar Mrs. Billings depressa.

Levantou-se, enèrgicamente, e chamou, enquanto saía do quarto:

- Rose! Rose! Vem provar o vestido.

Joan sacudiu as pregas floridas e esperou que a irmã despisse o vestido que trazia. Depois enfiou-lhe o novo, de tecido macio, ajeitou-lho nos ombros redondos e olhou-a, no espelho.

- Oh, Rose, és bonita! - elogiou, sinceramente. - Ainda bem que chegoú a tua vez de estrear coisas novas.

As florinhas multicores no fundo cor-de-rosa ficavam bem à cara redonda e pálida e aos olhos escuros da irmã. Mas Rose limitou-se a sorrir, sem dizer nada, pouco entusiasmada.

- Não te agrada, Rose? - perguntou-lhe Joan, admirada. Não queres ser bonita? Quando eu era da tua idade tinha tanto medo de nunca o vir a ser! Tu és muito mais bonita do que eu era, então. Sou grande de mais, tenho os ossos enormes e uma boca horrível. Tento pensar que não é assim, mas sei que é.

Rose hesitou, antes de lhe responder:

-Não quero pensar nessas coisas.

- Mas tu és realmente bonita! - exclamou a irmã, a rir. Santinha tola!

Encolheu os ombros bem feitos, ao de leve, e pensou: Esta

Rose, sempre com medo de pecàr! Começou a cantar descuidadamente, com a boca cheia de alfinetes, enquanto ajustava o vestido aqui e ali, lhe dava um pouco mais de folga no busto (Rose tinha os seios mais redondos do que ela) e apertava um nadinha

a cintura. Sentia o corpo da irmã, macio e quente debaixo do tecido, as suas formas juvenis, ainda hesitantes, e ás vezes os seus dedos tocavam-lhe na pele fina. Reparou nos caracolinhos fofos e louros, na base do pescoço inclinado de Rose, e sentiu-se invadir por uma grande onda de ternura. Raro se sentia assim tão perto da irmã, mas o contacto da sua carne e o serviço que lhe prestava aproximavam-nas. Sentia uma grande ternura pela rapariga, um amor generoso, como o de uma mãe por uma filha.

- Minha santinha querida! - murmurou, e sorriu docemente aos olhos de Rose, no espelho.

Era muito maior do que a irmã, olharia sempre por ela...

E eis que, de súbito, a casa ficou vazia, sem Rose. Até então, quando as férias acabavam, fora ela; Joan, que partira ao encontro de caras novas e de uma vida nova, fora ela que, ao regressar, completara a família. Agora ficava com o pai e a mãe e via o rosto de Rose, através da janela do comboio, cheia de secreta apreensão. Os seus anos de segurança, aqueles em que soubera, sem hesitar, o que tinha a fazer, pertenciam, de súbito, ao passado.

Tinham parecido lentos, enquanto os vivera, mas agora davam-lhe a impressão de terem passado muito depressa.

Ao regressarem, juntos, a casa, sob o matinal sol de Setembro, sentiu-se possuída por uma grande seriedade. As férias tinham acabado. Embora voltasse para a sua casa, e entre aqueles dois seres que sempre a tinham abrigado, sentia-se de súbito sem abrigo. Tinha de sair de entre eles, de abandonar a sua casa, de começar sózinha qualquer coisa, para si própria, se queria viver com o máximo deleite. Era uma independência que desejava e temia. Queria bastar-se a si mesma, ter uma Vida sua, mas queria também sentir o calor daquele lar à sua volta, à noite.

A mãe olhou-a e sorriu.

-Sentia-me muito desanimada, quando tu partias como a Rose partiu, hoje. Nunca me habituei ao afastamento de qualquer de vocês. A primeira vez que partiste, fui para casa e chorei.

- Chorou, mãe? - perguntou Joan, surpreendida. Nunca lhe ocorrera semelhante coisa. Nunca pensara que naquela manhã em que partira pela primeira vez, havia quatro anos, toda cheia de si mesma e a pensar no que estava prestes a acontecer-lhe, a mulher forte e alegre que era a sua mãe fora para casa chorar porque o lar parecia vazio sem ela! Sentiu- se, por isso, profundamente comovida e confortada. Era maravilhoso ser amada. Fosse para onde fosse, poderia regressar sempre áo conchego daquele amor. Estendeu a mão e acariciou o cabelo grisalho da mãe, sob o chapelinho de veludo feito em casa. A mãe sorriu-lhe e viveram um momento terno e íntimo, até que, mutuamente tímidas, desviaram os olhos uma da outra.

- Espero - disse o pai suavemente, do fundo do seu próprio silêncio - que a Rose não perca a fé, assim como tu não a perdeste, Joan. Nunca vi uma alma jovem com convicções mais fortes do que as dela.

Joan sentiu-se culpada. Devia dizer ao pai que não sabia, na realidade, no que acreditava, mas fugia de o magoar.

- E eu espero que a Rose se divirta - disse a mãe, com energia, e apressou-se a acrescentar: - Joan, tenho estado a pensar que aquele meu velho fato de casimira castanha-dourada faria um belo vestido prático para a Rose. A cor ficar-lhe-ia bem, com certeza, e a saia, como é antiga, tem muita fazenda nos franzidos.

Creio que vou deitar mãos à obra. Ajuda entretermo-nos com qualquer coisa.

Chegaram a casa incrivelmente depressa. Os únicos sons que se ouviam eram os produzidos por Hannah, a dar lustro à escada, a vibração da máquina de costura, no sótão, onde a mãe se metera logo, a costurar, e os passos leves do pai, no gabinete de trabalho.

Se Rose estivesse presente seria o mesmo; pois ela era tão sossegada que parecia não acrescentar nada aos ruídos da casa. No entanto, esta parecia, agora, vazia. Isso não se devia, porém, ao facto de Rose ter partido nem ao de Francis ter voltado para a escola. Devia-se, sim, ao facto de ela, Joan, lá estar, inactiva, enquanto os outros trabalhavam. Tinha de pensar no que devia fazer a seguir. Claro que devia ganhar o seu pão. A mãe dissera-lhe muitas vezes: Fica em casa um ano, querida. Não tenhas pressa. Mas ela sentia-se desassossegada, agora que o Verão terminara. Chegara a altura de trabalhar, de fazer qualquer coisa.

A casa parecia-lhe, de súbito, demasiado pequena e os móveis gastos, velhos e enfadonhos, aos seus olhos.

Foi para o quarto, fechou a porta e sentou-se junto da janela.

Que sucedera à alegre disposição do Verão? Porque se sentia tão descontente? A aldeia era incrivelmente pequena, um entrecruzar de meia dúzia de ruas, um aglomeradozinho de casas pobres, um punhado de pessoas enfadonhas... Recordou, uma após outra, as casas cujo interior conhecia bem, onde nem uma cadeira ou uma mesa mudara de lugar desde que se lembrava. Estava farta delas, cansada. Erguiam-se, esquálidas e tristes, ao sol da manhã...

nada daquilo lhe chegava.

Quero mais qualquer coisa, pensou, resoluta. Tenho de descobrir uma coisa que seja capaz de fazer bem, realmente bem...

Música, talvez...

Mas sabia, no fundo do seu coração, o que queria fazer e o que saberia fazer bem. Saberia amar bem um homem, conservar-lhe a casa limpa e bonita e dar à luz os seus filhos. Seguir esse velho caminho já tão trilhado era, na realidade, tudo quanto secretamente pedia à vida. Mas como conseguiria encontrar o amor, assim perdida e escondida num velho presbitério de aldeia?

Bateram à porta e a cabeça ruiva e despenteada de Hannah espreitou pela fresta.

- Miss Joan, o seu pai diz que está lá em baixo um par que se quer casar e pede-lhe que seja testemunha, com a sua mãe.

Joan levantou-se maquinalmente, habituada á tal género de pedidos. Desta vez, porém, o momento revestiu-se de uma intensidade especial. No rés-do-chão, esperou que o pai despisse o casaco com que trabalhava e vestisse a velha sotaina. O noivo era um jovem provinciano, sem dúvida trabalhador de alguma quinta. As suas mãos pendiam ao longo do corpo, enormes e disformes, e os seus grandes ombros arqueados ameaçavam rebentar o casaco. A rapariga afinava pelo mesmo diapasão: forte e atarracada, de braços vermelhuscos e grossos, cara quadrada, baixa de testa e tisnada pelo sol. Eram desconhecidos, vindos de qualquer solo rústico de um mundo mais velho. Mostravam-se constrangidos, muito unidos um ao outro, com os olhos lerdos e esverdeados fielmente fixos no rosto do sacerdote. Joan ouvia-lhes a respiração pesada e via, no pescoço grosso do homem, grandes gotas de suor.

Acabou tudo num instante. Meia dúzia de palavras, a troca de uma promessa hesitante, uma breve pausa por causa do anel. O rapaz atrapalhou-se, às voltas com o dedo da noiva, e esta tirou-lhe o anel da mão e, esquecendo onde estava, disse-lhe, em voz alta:

- Deixa cá ver.

Ele olhou-a, muito atento, enquanto ela fazia passar o aro de ouro pelo grosso nó do dedo, e suspirou, aliviado.

- Agora venham beber café e comer uma fatia de bolo - ofereceu a mãe, com a costumada amabilidade, em tais casos.

Os noivos sorriram, humildes, e acompanharam-na à casa de jantar, com a docilidade tacanha de animais. Atrás deles, Joan viu-lhes as mãos unidas, duas mãos jovens, nodosas e ásperas a apertarem-se uma à outra, com força. Dali seguiriam para qualquer casinhoto de madeira, num campo, trabalhariam, comeriam, dormiriam, amar-se-iam toscamente e gerariam e criariam filhos. Acasalados. Era uma maneira de viver.

Sentiu-se, de súbito, muito só. Virou costas e voltou para o seu quarto.

Numa noite, o Outono chegou, impetuosamente. O vento soprou, frio, através do quarto, e quando Joan abriu os olhos viu em cima da cama uma chuva de folhas secas, sulcadas de veios amarelos, do bordo que tinha defronte da janela. Levantou-se para fechar a janela e reparou que a relva verde estava coberta de geada. O frio acordou-a por completo e Joan não voltou para a cama. Tinha de começar a trabalhar naquele próprio dia! Assim que acabasse de tomar o pequeno almoço, começaria a trabalhar no prelúdio iniciado na última Primavera e nunca terminado. Iria para a igreja e trabalharia sózinha, no órgão. Vestiu-se, resoluta e rapidamente, e comeu depressa.

- Comeste pouco, Joan - observou a mãe, preocupada.

-Quero começar a trabalhar, mãe. Hoje mesmo. Tenho uma ideia para o meu prelúdio.

Mas a mãe não a ouviu. Escutava qualquer coisa, de cabeça inclinada e mãos a mexer nas chávenas do café. De súbito, ouviu-se barulho na escada, a porta abriu-se de repelão e Francis deixou-se cair na cadeira, a seu lado.

-Dê-me o comer depressa, sim, mãe? O Jackie Weeks prometeu ajudar-me na matemática, esta manhã, se eu chegasse cedo. Quero despachar-me, para poder ir às nozes. Aposto que a geada desta noite chegou para as fazer cair. O Jackie é uma fera em matemática, coisa que eu detesto!

- Talvez a Joan te pudesse ajudar, querido - sugeriu a mãe.

- Deixa-me pôr-te manteiga no pão... Gostava que andasses menos com o Jackie...

Mas Joan disse a si mesma que não ajudaria; tinha o seu trabalho à espera. Alem disso, a mãe nem sequer a ouvira.

- Não percebo muito de matemática - declarou, mas detestou-se, no mesmo instante, por ser egoísta. -Claro que ajudarei o Francis...

- O Jackie ajuda-me mais depressa - replicou o irmão, desinteressado, e ela sentiu-se desobrigada.

Com a pauta da música debaixo do braço, atravessou o relvado ainda coberto de geada e entrou na igreja silenciosa. No exterior, o ar estava cortante e frio, mas ali na igreja a temperatura era agradável e amena. Pairava no ar um certo odor cediço, muito ténue, um cheiro adocicado a gente velha. Percorreu a nave em bicos de pés, passou pelo púlpito deserto e sentou-se ao órgão. Mal o abriu, as teclas convidaram-na, numa tentação. Estava cansada de inactividade, o trabalho dava prazer. Abriu a pauta e tocou os primeiros compassos, devagarinho; com sentido crítico. Tocou até chegar ao fim, ao ponto onde parara de compor, na última Primavera, antes da cerimónia da formatura. Ocorrera-lhe uma melodia, escrevera-a apressadamente e depois deixara-a incompleta, porque as suas companheiras de quarto, Mary Robey e Patty, a tinham chamado: Joan, Joan! Ensaio do cortejo das finalistas!

O cortejo das finalistas fora, então, para ela, a coisa mais importante do mundo. Agora, porém, já não era nada; era menos do que uma recordação. Por estranho que parecesse, a verdade é que ouvia as vozes das colegas, mas não as desejava ver. Pertenciam ao passado, a qualquer coisa que acabara. Queria. não era a elas que queria. Queria uma pessoa, álguém.

Embrenhou-se resolutamente na música. Uma quarta ali, depois terça menor na mão esquerda, repetir o tema devagar e continuar assim através da variação para o último compasso. O último acorde. clave maior ou menor? Quinta, talvez.

Passou os dedos pelas teclas, a experimentar, enquanto trauteava docemente a melodia. Optaria por uma sexta menor. Podia parecer incompleto, mas não encontrava outro fim.

Experimentou outra vez, do princípio. A igreja vazia repercutia a sua música e devolvia-lha, em eco. A melodia percorria as abóbadas, voltava aos seus ouvidos, e Joan escutava-a, absorta. Havia qualquer coisa que não estava bem. A nota menor não entrava a tempo na melodia da mão direita. Começava com excessiva alegria, que não se conjugava com o fim. A nota menor devia soar muito cedo, logo no princípio. Molhou o bico do lápis, nos lábios, desenhou uma nota e experimentou mais uma vez, devagar.

- Assim está bem - disse uma voz, de dentro da igreja. Joan deu um pulo no banco e voltou-se. Debaixo do púlpito, no banco da frente, estava Martin Bradley, com o chapéu nos joelhos e um rolo de papel de música na mão. A rapariga lembrou-se, acto contínuo, que era sexta-feira e que ele ensaiava todas as sextas-feiras de manhã. Como se pudera esquecer de semelhante coisa, se em todas as manhãs de sexta-feira da sua infância tinha vibrado a música que Martin Bradley tocava, na igreja?

Correu para o gradeamento do coro e murmurou, confusa:

- Oh, desculpe!

Martin levantou-se, delicado, e sorriu-lhe.

- Porquê? - perguntou-lhe, com a maior simplicidade. - Foi delicioso. Tocou uma melodiazinha encantadora, delicadamente triste. Que é?

- Fui eu que fiz... - murmurou, acanhada.

A cara de Martin Bradley, assim virada para ela, era nova, diferente da que conhecia. Era uma cara estreita e sensível, que não lhe dava nenhum ar de velhice, apesar dos cabelos grisalhos.

- Não sou capaz de decidir onde devo meter a quinta... acrescentou Joan, numa confidência impulsiva.

- Deixe ver...

Subiu àgilmente os degraus, com graciosidade, e sentou-se por sua vez ao órgão. Começou a tocar o prelúdio, com precisão e clareza. Causava uma estranha sensação ouvir a sua música sair, assim, das mãos dele! Joan tinha intensa consciência da presença e do olhar de Martin. A igreja estava cheia da sua presença. De súbito, ele começou a introduzir variações.

- Que lhe parece assim... e assim?... - Modulava docemente, simplesmente. - Ainda é a sua ideia?

- Sim, sim, é maravilhoso! - exclamou, encantada. – Agora insista na sexta e repita na mão esquerda... Sim! Porque não percebi como devia fazê-lo, por mim própria?

Martin continuou a tocar. O bonito cabelo preto crescia-lhe delicadamente no pescoço, levemente prateado nas pontas. Joan escutava a música e pensava na música, mas via-lhe o pescoço bronzeádo, os cabelos curtos, bem aparados, e as manchas brancas, muito certas, junto das orelhas. Quando se voltou para ela, com expressão interrogadora, Joan reparou que tinha a pele muito enrugada, à volta dos olhos. Mas não era velho, pelo menos não era tão velho como ela imaginara. Gostou da linha distinta, seca de carne, dos seus ombros...

- E agora... o final em menor.

Terminou, virou-se para ela e sorriu-lhe.

- Obrigada! - agradeceu-lhe, com ardor, e ele sorriu-lhe de novo.

Constrangida, Joan começou a reunir as suas pautas.

- Não vá.

- Tenho de ir - respondeu-lhe, e admirou-se, logo a seguir, da sua pressa.

Não precisava de se ir embora, podia demorar-se ali o tempo que quisesse e ninguém daria pela sua falta. No entanto, tinha pressa de se ir embora. De que lhe falaria, se ficasse? Inesperadamente, deixara de ver nele o filho de Mrs. Bradley, para quem a velhota comprava petiscos. Era um homem, misterioso e competente, que ganhava a sua vida numa grande cidade e só utilizava a aldeia para dormir. Sem dúvida conhecia muitas mulheres bonitas e inteligentes, e ela não passava de uma rapariga, acabada de sair da escola. Ao lado da sua requintada fragilidade, Joan sentia-se demasiado vigorosa e irremediàvelmente jovem. De repente, porém, deu consigo a fitá-lo nos olhos sorridentes e compreendeu que ele a achava bonita. Aliviada e à vontade, apeteceu-lhe brincar. Sorriu-lhe, também, e disse-lhe:

-Tenho de ir ajudar a minha mãe, que está a fazer um vestido para a Rose.

-Parece um rapaz alto e bonito, e os rapazes não cosem! Percebeu que a estava a arreliar, e riu-se, satisfeita.

-Sei cozinhar, costurar, varrer, fazer camas, presidir a reuniões missionárias, dançar, nadar.

-Com certeza no meio de tantas coisas há alguma que poderemos fazer juntos?

Sentiu um afogueamento em todas as veias. Era a primeira vez que um homem a convidava. Afastou do pensamento, com um enorme desdém momentâneo, todos os rapazes que conhecia, e fitou-o, de novo tímida.

- Costuma dar algum passeio, aos domingos, de tarde?continuou Martin.

- Posso dar - respondeu-lhe, gravemente.

-Domingo cerca das quatro, está bem? Se a deixar partir agora?

- Às quatro - prometeu-lhe, muito alegre.

Martin voltou-se de novo para o órgão, sorriu a Joan, inclinou a cabeça e começou a tocar longas e suaves fieiras de notas.

A jovem afastou-se, devagar, e a música seguiu-a até casa: Foi para o quarto, abriu a janela, e a música subiu e entrou, abafada, mas ainda clara. Martin tocava agora magnífica, rápida e triunfantemente, em acordes claros e vibrantes. Joan sentou-se a ouvir, encostada à janela.

Era singular como- esquecera que estavam na igreja! Começara qualquer coisa nova, para ela, mas não sabia o que era.

Sabia, porém, que a casa já não estava vazia e que não lhe faltava em que se ocupar. Havia mil coisas que podia e queria fazer.

Porque se sentira, na véspera, tão desanimada? A vida corria de novo, com ímpeto, trasbordante de promessas. Agora, de um momento para o outro, podia acontecer-lhe qualquer coisa, em Middlehope... Riu-se, virou-se para a secretária e abriu o caderno de música. Escreveria as notas que ele lhe dera, aquela quinta variável que introduzia, no início, o tema menor... A tarde de domingo chegaria num ápice!

- Não compreendo o que vês naquele velho! - gritou-lhe a mãe.

- Ele não é velho! - gritou por sua vez, colérica.

Estavam no quarto da mãe, que fechara a porta para lhe poder dizer o que tinha a dizer. Sentou-se na cadeira de balanço e começou a balouçar-se frenèticamente, para a frente e para trás, de braços cruzados, com força, no peito, como era seu hábito quando estava fora de si. Joan encontrava-se de pé junto da janela, rebelde, obstinada, furiosa por a mãe a continuar a tratar como a uma criança.

-Tem quarenta e cinco anos, pelo menos, e tu tens vinte e dois! Tem idade para ser teu pai! Pertences à geração do Ned

Parsons, joan!

- O Ned Parsons maça-me - replicou, secamente.

-Este Verão julguei que gostasses dele.

-Só para me divertir.

-Partes-me o coração! Cada um dos meus filhos parece possuir uma maneira especial de me partir o coração.

-Não é justo tentar obrigar-me a dar-lhe razão fazendo-me ter pena de si - afirmou com uma dureza que a si própria surpreendeu.

Seguiu-se um silêncio pesado, interronpido apenas pelo estalar da cadeira. Joan lembrou-se que às vezes, à noite, quando oúvia as vozes abafadas, a discutir, ouvia também aquele ruído. Mas não disse nada e continuou a olhar para fora, para a cinzenta tarde de Novembro. As folhas das árvores já tinham caído todas e a igreja de tijolo encarnado erguia-se, alta, nua, angulosa e imóvel, no meio da paisagem desolada. Mas nenhuma dessas coisas tinha importância para ela. Em menos de dez minutos, Martin estaria em casa e o telefone tocaria. Ouviria a sua voz, pela qual esperara todo o dia.

-Ele propôs-te casamento? - perguntou-lhe, secamente, a mãe.

- Não - respondeu, fria.

- Nunca casará contigo, o que é uma consolação - afirmou a mãe, com azedume. - Tem-se entretido com uma rapariga após outra... As raparigas do Martin tornaram-se um assunto de mofa, na aldeia, e ninguém sabe o que se passa lá pela cidade. Mas o principal é que ele nunca casará com ninguém. A mãe não o deixaria, mesmo que ele quisesse, mas ele nunca quererá. Fala-se a seu respeito, não te posso explicár. - Fez uma pausa, antes de acrescentar, acanhada: - Há algo de definitivamente esquisito nele.

-Sinto-o.

Não responderia. Que lhe importava o que se pensava e dizia naquela estúpida aldeia? Não conheciam Martin. De resto, ele fora sincero com ela. Ainda na véspera lhe dissera: Não pretenderei que nunca amei ninguém, antes, mas tu, querido amor, surgiste quando eu julgava tudo acabado. Chegaste como uma encantadora Primavera tardia. Nunca existiu ninguém como tu, és tudo quanto desejei, um doce rapazinho, uma bonita senhora...

- Sei tudo a seu respeito - afirmou, em voz muito calma e clara.

- Joan, Joan! - suspirou a mãe, desesperada. - Não passas de uma criança pateta. Não vês o que andas a fazer? Todos falam de ti... e o teu pai é o sacerdote, lembra-te! Até Mrs. Winters...

- Não me diga! - interrompeu, voltando-se, furiosa, para a mãe. - Não me interessa o que Mrs. Winters possa dizer! Quem é ela, para falar?

A sua fúria emudeceu a mãe, que no entanto não desviou os olhos dos da filha. Passado um instante, tentou de novo, sempre a olhá-la, esforçando-se por se mostrar calma e razoável.

-Falemos com serenidade, Joan. Todas as raparigas novas se apaixonam uma vez por um homem mais velho...

- Ouça! - O telefone tocava, no vestíbulo, e Joan correu, sem querer saber de mais nada.

Lá estava a voz dele ao seu ouvido, quente, ardente e rica.

Martin tinha uma bela voz terna, pouco profunda, mas leve e meiga como a de uma mulher.

- Joan?

- Oh, Martin!

-Encontramo-nos daqui a dez minutos, no mesmo sítio, querida?

- Sim.

Desligou devagar, enfiou o casaco e saiu de casa, em cabelo.

Mas a mãe continuava com ela. Por muito que respondesse

com rebeldia, por muito que corresse e que gritasse a si mesma, na penumbra crepuscular, que escolheria o seu próprio caminho e viveria a sua própria vida, a mãe estava consigo, parecia até, de qualquer modo estranho, compartilhar o seu corpo. Em tempos, o seu ser pequeno e encolhido fizera obstinadamente parte do ser maior da mãe; agora dir-se-ia que era a mãe quem ocupava obstinadamente uma parte pequena e obscura do seu ser forte e robusto.

Não se podia libertar dela.

Continuou a avançar, ao frio, encontrou-se com Martin á saída da estação e lançou-se apaixonadamente na escuridão, ávida dos seus braços e dos seus lábios. Mas, apesar de estar escuro, ele recuou.

- Espera - recomendou-lhe, baixinho. - Espera, Saiu mais alguém do comboio, atrás de mim.

Afastou-se dela, um momento, e esperaram em silêncio. Um vulto feminino surgiu, a pouca distância, e passou por eles.

- Reconhece-la ? - perguntou Martin, num sussurro.

- Não - respondeu-lhe secamente, e em voz alta; a mãe, dentro de si, impelia-a a responder com secura e a acrescentar, contra vontade: - Que nos importa? Detesto proceder furtivamente.

Martin redarguiu-lhe, paciente e terno:

- Não se trata de proceder furtivamente, queridinha, e, sim, de ser discreto.

Agarrou-lhe no braço, lisonjeador, e ela não lhe soube responder. Caminharam, muito juntos, ao longo de uma estrada de desvio, na orla dos campos, na direcção do outro extremo da aldeia, onde ele morava. joan desejava apaixonadamente sentir-se nos seus braços, tinha fome do seu contacto. Não o queria irritar, porque quando ele se irritava deixava de sorrir, ficava calado e afastava os braços dela. Zangado, era capaz de a deixár com uma brusquidão silenciosa, que a magoava. Mas a mãe continuava, obs tinadamente, com ela.

-Para que havemos de ser discretos? Não temos nada que esconder.

- Querida. - começou, mas limitou-se a agarrar-lhe na mão e a metê-la no sobretudo, contra o seu peito.

Joan sentiu a mão no calor do corpo de Martin, com uma vida independente. Mas a mãe impeliu-a, uma vez mais, a ser dura com ele. Não quisera ouvir as suas palavras, mas, ouvira-as e agora repetia-as.

Qual será, afinal, o fim de tudo isto? Martin, nunca mais diremos a ninguém?

Martin parou e, na estrada escura e deserta; tomou-a nos braços e beijou-a. Mas a voz da mãe lutou uma vez mais com os seus beijos:

-O nosso amor não conduzirá, nunca, a nada?

Ele respondeu-lhe apenas com os seus beijos. Apertou-a com força, contra o corpo magro e quente, e beijou-a repetidas vezes, com beijos violentos, experientes, que exerciam um poder intolerável na carne jovem e virgem da rapariga. Por momentos, a trovoada que lhe soou aos ouvidos, o tumulto do seu sangue impetuoso e excitado, silenciou a voz da mãe. Apoiou a cabeça no ombro do companheiro e ficou encostada a ele, calada e a tremer.

Em casa, a mãe não disse mais nada. Os dias passaram e ela não disse mais nada. Tratava, como de costume, das lidas caseiras, e, se o fazia em silêncio, Joan não Lhe perguntava porque estava calada. Não queria sentir o seu amor abalado, não queria desistir dele. Trabalhava todos os dias na sua música, horas a fio, sòzinha, na igreja deserta. Mas agora nunca se sentia só. Concebera a ideia de uma sequência de amor em música. Todos os dias lhe acrescentava qualquer significado do seu amor e de Martin, mas ainda não começara, realmente, a dar-lhe forma. Por enquanto, era apenas um amontoado de melodias na sua imaginação.

Agora vivia inteiramente a vida secreta do seu súbito amor.

       Mostrava-se sempre agradável com a mãe, sempre disposta a ajudá-la e a cativá-la. Tinha sempre uma frase pronta nos lábios:

Deixe-me fazer isso, mãe! Umas vezes a mãe deixava-a tirar-lhe a vassoura ou o pano do pó, outras não. Umas vezes respondia-lhe tranquilamente:

- Obrigáda, filha, . mas outras gritava-lhe, com azedume: Vai fazer qualquer coisa de que gostes, de facto! Na sua amargura, uma vez olhou Joan e diss-lhe, num grande desânimo: Esperei demasiado... Parece que esperei sempre demasiado dos meus filhos. Joan afastou-se rapidamente e em silêncio, pois não queria ouvir a mãe falar da única coisa que a alimentava, agora.

No entanto, continuava a desejar sentir á sua volta o antigo amor familiar, e por isso voltou-se âvidamente para o pai, grata pela sua ingénua ignorância de tudo quanto se passava em seu redor. . Sabia que a mãe não lhe dissera nada. (Para quê dizer tais coisas a quem compreendia apenas os mistérios de Deus?) Por isso, de dia, enquanto esperava pela noite e por Martin, para poder escapar à mãe, acompanhava ás vezes o pai pelas estradas ruráis, quando ele ia visitar os seus paroquianos, e respeitava seus silêncios ou ouvia-o falar dos seus pensamentos distantes.

Nos silêncios, pensava em Martin. Mas não era realmente pensar, não era o seu cérebro a dizer palavras e a engendrar pensamentos acerca dele. Acontecia apenas que, se ficava sòzinha durante um longo momento, sem nenhuma ocupação, sem ninguém a falar consigo e nenhuma tarefa para realizar, se sentia vazia e, nese vazio, sómente Martin existia. Nada do que lia nos livros, nada do que aprendera na escola, tinha agora qualquer significado para si. Precisava de ter as mãos ou os pês ocupados em qualquer coisa, de ouvir e responder a uma pergunta, pois de contrário ficava vazia e no vazio surgia Martin.

Por isso escutava, quando o pai falava. Mas escutava apenas superficialmente e respondia, nem sabia como, ao que mal ouvia. Também não se podia dizer que o pai falasse, realmente, com ela, enquanto percorriam as estradas. Falava, antes, consigo próprio, em voz alta, ou com Deus. Preciso de alargar a capela de South End. Atormenta-me constantemente a ideia de naquela aldeia de várias centenas de almas não haver uma igreja como deve ser. As pessoas vivem juntas como selvagens, sem leis matrimoniais, e os seus filhos não são baptizados. Apesar de serem negros, são almas aos olhos de Deus. Mas preciso de auxilio, preciso de auxílio e o povo de Middlehope não me ajuda. .

Por momentos, joan ouvia-o. Almas negras. Lembrava-se de Miss Kinney e de África. South End era como a África. As pessoas eram pretas. Eram selvagens, o que significava que viviam juntas, sem leis matrimoniais. Nas reuniões missionárias ninguém falava m South End, mas ela sabia, desde que nascera, que as pessoas não gostavam de passar por lá, à noite. Desde que a fábrica fechara as coisas tinham piorado, havia rixas e disputas entre as famílias. Peter Weeks estava sempre a dizer que ia reabrir a fábrica, mas entretanto as pessoas esperavam, inactivas, a discutir e a beber.

A voz do pai continuava, suave e calma:

- Mas se o meu povo não vê as coisas como eu, posso dizer, como Cristo disse: tenho outras ovelhas que não são deste redil. Dir-lhes-ei que Deus me falou no assunto, obedecerei às palavras do Senhor e deixarei a seu cargo que o meu povo ouça, também, a Sua voz. - Falava em tom tão definitivo como se o que planeava fazer estivesse feito.

Joan deixava-o falar, sem responder. No regresso a casa, o pai virou o velho carrinho e passaram por South End. Passou pela capela, a conduzir devagar, cheio de planos.

- um sítio muito feio - disse Joan, ao ver a rua suja e esburacada e as pessoas esquálidas, que saíam das portas.

- Feio porque está cheio de pecado - respondeu o pai, tranquilamente.

Mas ela já não o queria ouvir. Queria afastar-se depressa de South End e chegar a casa, pois a tarde ia no fim e ela desejava estar presente quando Martin chegasse.

No entanto, o pai também fazia parte dela. Se a mãe fizera e alimentara o seu corpo, o pai alimentara-lhe o espirito. Dia a dia, semana a semana, com a sua presença e as suas palavras, moldara nela qualquer coisa. O que nela havia da mãe era apaixonado, veemente, forte e cheio de bom-senso. Ele nunca casará contigo, gritava-lhe agora a sua voz, constantemente. Mas o que nela havia do pai não era mais fraco, embora não lhe estivesse no sangue, não lhe tivesse moldado os ossos nem criado a carne. Insuflara nela uma espécie de vida, uma vida que não era deste mundo, enformara-lhe o espírito: Quando ele dissera: É feio por que está cheio de pecado, ela compreendera-o.

Não podia, por isso, viver sempre com Martin apenas no seu corpo. A sua alma também tnha fome. O pai não lha saciara, mas dera-lhe alimento suficiente para a manter viva. A sua alma vivia e tinha fome, tanta que Joan desejava falar com Martin, sentir o seu espírito comungar com o dela. Mas ele não falava com ela. Quando Joan falava, Martin ouvia-a, a sorrir, tolerante como se escutasse uma criança, e depois abraçava-a e beijava-a repetidamente. Era essa a sua única resposta, e ao fim de certo tempo ela começou a pressentir, embora vagamente, que não chegaria.

Por enquanto, porém, chegava, ou quase, para lhe dar alegria. A própria força que lhe provinha da participação pela mãe no seu ser a tornava faminta de alegria, e Martin era o único meio de se saciar. Não o via pelo que ele próprio era, mas apenas como um meio de se sentir feliz. Dava-lhe felicidade que a beijasse as vezes que quisesse, porque isso era sentir uns lábios de homem nos seus lábios; dava-lhe felicidade sentir as mãos dele nas suas, embora se envergonhasse secretamente por as suas mãos serem mais largas e terem a palma mais dura do que as dele; dava-lhe felicidade senti-lo afagar-lhe docemente a garganta e tocar-lhe delicadamente no seio. Chamava Martin a esses lábios, a essas mãos, a essa forma de homem que a excitava. O facto de, pela sua música, ele também lhe impressionar o coração, não tornava o verdadeiro Martin mais claro, mais seu conhecido. Ele prendia-a pelo sangue.

No entanto, limitava-se a beijá-la e a acariciá-la quando estavam sós, não passava daí. Era muito comedido e Joan precisava de muito pouco para se sentir feliz: um momento ou dois todos os dias, quando o podia ir esperar ao comboio, meia hora na igreja, quando lá se encontravam sòzinhos, sexta-feira. Junto do órgão, inclinava-se para ele, enquanto Martin tocava, encostava a cara ao seu cabelo e via as suas mãos finas e ágeis percorrer ràpidamente as teclas. Outras vezes esperava-o, silenciosamente sentada num banco, enquanto ele tocava, vezes seguidas, uma frase que não lhe agradava. E Martin deixava-a esperar.

Agora ele mudava, com o passar dos meses, mudava como uma mulher - como ela, na realidade, nunca mudava, pois não sabia mudar. Joan era por natureza franca, simples e imutável. Mas Martin era delicadamente frio e quente, e ela não sabia que fazer nem como adaptar-se à sua inconstância. As vezes mostrava-se ansioso e obrigava-a a deixá-lo depressa. A igreja, dizia, ficava muito perto dos pais dela, podiam descobri-los. Tinhá medo de que a mãe de joan os descobrisse. Era frio e quente ao mesmo tempo, uma estranha criatura feita de gelo e fogo. Umas vezes, fazia-a esperar angustiadamente, acanhada e consciente da sua juventude e da maturidade dele. Outras, chegava tarde à igreja e, ao encontrá-la à espera, dizia-lhe, fria e formalmente: Bons dias, Joan, como se ela não passasse de uma garota, e começava a trabalhar, sem lhe tocar. Nesses momentos de indiferença procedia como se nunca lhe tivesse tocado, sequer. Joan ficava perplexa, sem saber que fazer. Uma vez, na Primavera, cega de mágoa, saíra ruidosamente da igreja e fora para o quarto. Sentara-se junto da janela, toda a tremer, mas não resistira á tentação de a abrir, para o ouvir tocar. Martin tocara longamente, com firmeza, e por certo nem uma vez voltara a cabeça, para ver se ela lá estava. Quando, por fim, parou, Joan fechou a janela. Agora daria pela sua falta, agora apareceria à sua porta, com qualquer pretexto, e perguntaria por ela.

Mas não apareceu. Joan viu-o descer tranquilamente a rua, com a elegância de semppre, a caminho da casa da mãe. Nesse dia e no seguinte não se foi encontrar com ele em lado nenhum.

Martin não lhe telefonou e Joan forçou-se, também, ao silêncio.

No domingo de manhã ele chegou à igreja antes de todos, como sempre, e não a olhou. Mas por essa altura já o coração de Joan lembrava um cachorrinho escorraçado. Por amor de si própria, não devia ir encontrar-se de novo com ele. Jurou que naquela tarde não íria ao lugar oculto onde se encontravam, um vale fundo, em forma de poço, entre dois cabeços íngremes, a meio camínho de South End.

Mas foi. Ele chegara primeiro e, sem uma palavra, começou a beijá-la e a acariciá-la com as suas mãos macias e experientes.

E Joan não teve coragem de lhe perguntar por que motivo, dois dias antes, não a beijara nem lhe quisera tocar. Não o compreendia. Era estranho e incompreensível. Limitou-se a perguntar-lhe tristemente, após um longo silêncio:

-Porque gostas, afinal, de mim?

- Porque gosto de ti?...

Tinham-se levantado do tronco onde se costumavam sentar, ele fitou-a e o ardór voltou a encher-lhe os olhos.

- Pareces um rapaz encantador, Joan. Amo-te porque és tão encantadora e tão parecida com um rapaz. Tens cabeça de rapaz, boca de rapaz... Repara nas tuas mãos. - Abriu na palma da sua mão a mão forté e seca de Joan. - Até as tuas mãos lembram as de um rapaz! Desejava que cortasses o cabelo mais curto.

A sua cara era seca, castanha e enrugada, sob o sol inclemente, e Joan achou-o, pela primeira vez, velho. Viu-o, um instante, como ele de fácto era, o Martin Bradley que sempre vivera na aldeia, e houve qúàlquer coisa que a repeliu. Seria algum odor que dele se desprendia? Sim, parecia um cheiro levemente adocicado, levemente repulsivo, como um perfume posto na véspera num lenço por uma mulher.

- Nunca nos casaremos - disse, de súbito, Joan.

- Querida.

-Tu nunca casarás com ninguém.

-Querida - repetiu, e puxou-a para si, pela mão que segurava.

Mas agora Joan sabia que ele lhe repugnava, e disse-lhe, com rispidez:

-Não. Vou a South End encontrar-me com o meu pai, na missão.

Lembrou-se de que, de facto, o pai ia a South End, aos domingos à tarde, e portanto podia ir ter com ele. Queria a companhia do pai.

Afastou-se, rapidamente, com o corpo muito direito e hirto, e não olhou uma só vez para trás. Mas chorava, dentro de si. Atrás do seu rosto grave e sério chorava amargamente. Quando se perguntou porque chorava, ouviu o coração gritar- lhe: Desejava que não tivesse sido ele o primeiro a beijar-me! Mas continuou a andar, obstinada, e pouco depois chegava à porta da capela do pai.

Sentou-se no último banco da salinha nua, a observar. A capela estava cheia de gente barulhenta e curiosa, negra e carrancuda ou amarela e lívida. Estavam cheios de sangue negro e branco mal misturado e contraditório. Quando envelheciam, porém, os seus rostos tornavam-se plácidos, tão velhos que não se distinguia o bem do mal, tão tranquilos após anos de maldade como os de Mr. Parker ou Mrs. Parsons após uma vida de bondade. Todos os rostos se voltavam para o pai de Joan, que se erguia acima de todos eles.

Joan voltou também o rosto para ele, com uma impetuosa sensação de segurança, confiante na sua bondade. Era digno de confiança por ser tão bom, de uma bondade tão simples.

Joan voltou o rosto para o pai, mas dentro de si havia qualquer coisa que latejava e a magoava profundamente. O seu corpo defraudado, recusado, fechava-se em si mesmo, consumia-se no seu próprio ardor. A quem beijaria agora, quem a beijaria e acariciaria? - perguntava o seu corpo, apaixonadamente; e o seu cérebro sensato respondia, frio e implacável: Ele jamais casaria comigo.

Por isso voltou-se para o pai e recebeu dele, àvidamente, outro género de alimento. Sentada entre os outros, alimentou-se de algumas palavras suas. Jesus disse, vinde todos a mim...

Isto era, com certéza, uma espécie de alimento que o pai lhe dava, enquanto o dava também aos outros. Joan escutou-o ansiosamente, quando falou do filho pródigo, à espera de receber dele qualquer coisa.

Mas pareceu-lhe que, afinal, não poderia suportar a sua mistica presença física. Enquanto ele lançava a bênção àquela gente inquieta e meio subjugada, saiu e desceu, sòzinha, a estrada que levava a sua casa, grata pelo crepúscúlo que esbatia tudo. Agora já não precisava de olhar para o vale escondido entre as duas encostas, não precisava porque ele já de lá saíra havia muito tempo. Estava liberta dele, tinham-se acabado... tinham-se acabado os seus beijos! A mãe e o pai haviam-na recuperado, voltaria para eles. No dia seguinte, humilhar-se-ia e confessaria à mãe:

Fui uma idiota. Dois mil anos atrás, o filho pródigo da parábola dissera: Pequei. Talvez fosse a mesma coisa.

Virou ao portão do presbitério, para entrar, mas no mesmo instante viu alguém parado, à sua espera. Não era um homem, não era Martin. Era uma mulher. Joan agarrou a mão trémula que se estendia para ela; apertou-a e reconheceu-a.

- Netta Weeks! - exclamou, com forçado entusiasmo.

Pobre Netta, para quem estava sempre muito atarefada!Nunca tinhám tido a conversa prometida.

- Tive de vir, Joan... precisava de te ver, ...

- Porquê, Netta ?

- Toda a gente diz... fala...

A voz estrangulou-se-lhe e a mão trémula quis libertar-se; mas Joan apertava-a com força.

-Toda a gente diz o quê?

- Tu e o Martin... E eu vi-os uma vez... quando me apeei do comboio vi-o... Oh, Joan, nunca o disse a ninguém, mas costumávamos sair juntos e eu pensava, tinha a certeza de que se ele um dia casasse seria comigo.

A força voltou a Joan, uma força boa, desdenhosa, cheia de orgulho. Conseguiria alguma vez purificar-se dos seus beijos?

- Sim?

-Ouviu a sua própria voz perguntar, muito clara e fria. - Também estou certa de que o faria. Não há nada entre mim e o Martin Bradley.

- Oh, Joan - A cabeça de Netta apoioú-se no seu ombro na escuridão, ouviu-a soluçar e sentiu-a agarrar-lhe outra vez na mão. - Oh, Joan, estou tão aliviada!

Desviou-se do peso da cabeça e da mão mole e quente. Não queria que lhe tocassem. Ninguém lhe devia tocar!

- Absolutamente nada! - repetiu, em tom despreocupado. Boas noites - despediu-se, e encaminhou-se para casa.

Mas não fez confissão nenhuma à mãe. Nessa noite não foi capaz de falar, com aquela dor seca e estéril a roer-lhe o corpo roubado. Era uma dor tão seca que lhe causava febre. Secava-lhe a boca e secavam-se-lhe as palmas das mãos quando pensava que nunca mais o veria. Nunca mais! Se ele voltar, recordar-me-ei do momento em que o odiei, esta tarde. Tenho de me agarrar com força a esse ódio, de me escudar com ele, pois Martin nunca me teve amor, nunca quis casar comigo. Enquanto eu o amava loucamente, ele limitava-se a brincar.

Mal via os outros, à luz do candeeiro, e sentia-se imensamente só, sentada ao lado da lareira, com eles. Via-os e ouvia-os como se estivessem muito longe.

- Tive uma boa assistência na missão, Mary - disse o pai. Creio que o Espírito está a conquistar aquela gente.

Na sala contígua, Francis assobiava e afiava um lápis, sentado à mesa do jantar, a preparar-se para fazer os trabalhos de casa. Joan conhecia a melodia que o irmão assobiava. Ouvira-a muitas vezes, naquele Inverno, e cantara-a à volta de uma fogueira, encantada por saber que a sua voz se erguia, clara e vibrante acima de todas as outras. No entanto, não conseguia lembrar-se, agora, do nome da canção.

A mãe lia em voz alta uma carta de Rose, mas Joan não compreendia as palavras. Tão-pouco compreendeu quando, ao dobrar a carta, a mãe comentou, satisfeita:

-Ainda bem que o vestido de casimira ficou bom. O tom dourado é quase o dos olhos dela.

Dir-se-ia que se passava tudo muito longe. Encolhida na velha poltrona azul, de olhos fixos nas chamas, perguntava-se:

Como me purificarei dos seus beijos? E, de súbito, admirada, ouviu o coração gritar-lhe outra pergunta: Que farei se ele nunca mais me beijar? Estremeceu, com o livro aberto e esquecido nos joelhos. Onde estavam os outros? Porque não se aproximavam de si aqueles que eram seus? Porque não vinha calor do lume?

A mãe reparou na sua expressão e o seu instinto despertou, como uma ave assustada por uma súbita rajada de vento.

-Estás doente, Joan!

- Não, não estou doente - apressou-se a negar. – Estou apenas fatigada. Vou-me deitar.

Deixou-os. Não era capaz de falar naquela noite, com duas vozes a gritar dentro de si. Como calar uma delas? Como não dizer o que queria calar? Devia esperar que a confusão do seu espírito se dissipasse, esperar até ter a certeza de que não queria que Martin lhe voltasse a tocar. Deitada na cama, começou, de súbito, a soluçar, docemente, com a cabeça enterrada na almofada.

A porta abriu-se e Joan susteve os soluços e a respiração. Era a mãe, preocupada.

Tens a certeza que estás bem, filha?

Joan engoliu os soluços, virou a cabeça, na escuridão, e respondeu, esforçando se por dar á voz um tom sereno e descuidado:

-Tenho apenas sono.

A mãe aproximou-se da cama e inclinou-se para lhe dar um dos seus raros beijos, mas joan não se mexeu para o receber e os lábios da mãe tocaram-lhe nos cabelos. A mãe riu-se.

-Onde estás tu? Boas noites, querida.

Deu uma palmadinha na roupa e aguardou ainda um instante, mas Joan respondeu-lhe, no mesmo tom:

-Boas noites, mãe.

A mãe saiu e fechou a porta. Talvez de manhã lhe pudesse dizer; naquela noite sentia o coração duro, frio e fechado. Tinha de chorar para se libertar daquela opressão, de chorar o mais que pudesse para, no fim, conseguir dormir.

Acordou-a uma pancada leve e hesitante na porta, uma pancada que não conhecia. Ouviu-a através do torpor do sono e pareceu-lhe ter percorrido uma grande distância e vencido um longo silêncio quando ouviu a sua voz responder, sonolenta:

- Quem é? Entre.

Mas não estava acordada. Só acordou quando a porta se abriu e viu o pai parado no limiar, a aconchegar ao corpo o roupão de algodão cinzento. Achou-o excessivamente alto e magro, com o pescoço curvado e fino a sair da gola, como um pescoço de ave. A cabeça, de fronte branca e larga, pareceu-lhe grande de mais para um pescoço tão delgado.

- É melhor levantares-te, Joan. A tua mãe está doente, esta manhã.

Então, sim, acordou definitivamente.

- Vou já.

Mas apesar da ansiedade que lhe oprimiu o peito, sô saltou da cama depois de o pai fechar suave e silenciosamente a porta e de lhe ouvir os passos abafados, no corredor. O pai tivera sempre acanhamento de mostrar o corpo diante dos fílhos. Até mesmo de roupão era raro vê-lo, a não ser a sair ou a entrar constrangidamente na casa de banho, com uma toalha no braço. Se, por acaso, a filha o via num desses momentos, o pái não lhe falava. Por atenção para com ele, Joan demorou-se a apertar bem o quimono na cintura e a procurar os chinelos. Depois correu, preocupada, pelo corredor fora. Pressentia que ia acontecer qualquer coisa, naquela hora matinal, sentia a vida suspensa, enorme, gigantesca, desconhecida. Hesitou à porta da mãe, menos por receio de entrar do que por pensar que, entrando, iniciaria qualquer coisa que ia mudar tudo. Tenho de entrar, disse para consigo, a meia-voz, e abriu a porta, cheia de medo.

Acto contínuo, o seu medo exacerbou-se e concentrou-se no rosto da mãe. Dir-se-ia que no quarto não havia mais nada além dele, deitado na almofada e virado para a porta, à espera de que ela se abrisse. A mãe tinha os cobertores repuxados até ao pescoço e o seu corpo quase não fazia volume, debaixo deles.

Mas havia vida no seu rosto, apesar de parecer definhado e singularmente amarelo á cruel luz da manhã. Davam-lha os grandes olhos escuros, desanimados.

- Tive de desistir, Joan... São as minhas pernas, que não me sustêm. Levantei-me para tomar banho e elas foram-se abaixo como galhos velhos e podres.

Joan fitava a cara da mãe, horrorizada com a mudança que nela se operara. Com certeza não podia ter tido aquele aspecto na véspera. A culpa era, por força, da almofada e da colcha brancas, do cabelo grisalho afastádo da testa... Sentiu-se, de novo, amedrontada. Que hei-de fazer?

- Vai para baixo em meu lugar, quando te vestires. - Reconfortou-a indizivelmente o facto de ser a mãe a decidir. - Vê se o pequeno alrnoço está em condições. Hoje é segunda-feira... Diz à Hannah que não compre muita carne; sobrou uma grande quantidade, de ontem. Pode fazer feijão para o almoço de amanhã e um picado da carne para o jantar de hoje. O Frank gosta de feijão. Vê se o teu pai bebe as duas chávenas de café, pois é capaz de se esquecer. Outra coisa: na minha secretária encontrarás uma carta que comecei a escrever à Rose. Acrescenta-lhe uma nota,

a dizer que hoje não me sinto muito bem, mas que amanhã me levantarei e a levarei ao correio, para a receber sem demora. Agora apressa-te, querida.

- Sim, mãe.

Sentiu-se mais aliviada. Ao ouvir as instruções da mãe, ditas na sua voz forte e clara, o quarto voltou a parecer-lhe natural.

A mãe virou-se para o outro lado e fechou os olhos. Agora tinha um ar mais normal, como se dorrnisse. Com os grandes olhos sombrios fechados, o rosto voltava a ser o seu.

-Não quer comer nada?

- Não - respondeu-lhe, solenemente. - Quero apenas descansar. Hoje descanso um pouco e amanhã já me levanto. É uma grande ajuda poder contar contigo...

A voz enfraqueceu-lhe, num murmúrio, e Joan saiu. Mas, quando chegou á porta, a voz da mãe deteve-a, tão forte e clara que Joan parou e se voltou imediatamente.

-Se a Hannah cozer ovos para o pequeno almoço, e cozê-los-á, a não ser que lhe digas que não coza, descasca o do Frank. Ele não gósta de coisas quentes; tem a pele muito delicada.

Joan reparou que a mãe reabrira os olhos e que só os voltou a fechar quando lhe respondeu:

-Sim, mãe, descascarei.

Sentiu-se estranha, no lugar da mãe. Na realidade, tudo lhe parecia estranho porque a mãe estava ausente. Era ela que os unia, e quando não estava no seu lugar sentiam-se desunidos alheios uns aos outros e criticavam-se.

- Adoçaste-me de mais o café - disse o pai, num leve tom de surpresa e de censura.

- Oh, desculpe! - exclamou, igualmente surpreendida.

Afinal, ele não se limitava a comer fosse o que fosse que lhe pusessem à frente, como parecia. A mãe é que lhe servia sempre o que ele gostava e como gostava. Quando os ovos cozidos chegaram, descascou dois para o Frank, mas não póde evitar uma irritação, ao sentir os dedos queimados. Que era o irmão mais do que ela para não poder queimar os dedos?

Frank já estava atrasádo, como de costume. Devia tê-lo chamado. Só agora se lembrava de que a mãe o chamava diversas vezes, mas ela esquecera-se por completo. Levantou-se, para remediar o lapso, mas no mesmo instante Francis apareceu á porta.

- Eh, que se passa? - perguntou, indignado, e estacou, surpreendido, de olhos fixos em Joan. - A mãe?

- Está doente - respondeu-lhe, com frieza.

Mas, ao olhar-lhe para o rosto tempestuoso, começou a sentir o que a mãe devia sentir. Francis estava corado, com um ar saudável, e pusera a gravata vermelha.

- Esqueci-me de que ela te costuma chamar - disse-lhe, em tom mais brando. - Aqui tens os teus ovos. Despacha-te, pois já é tarde.

Recordou-se de tudo quanto a mãe fazia pelo irmão e compreendeu que, inconscientemente, sempre reparara nessas pequenas atenções, com secreta inveja. No entanto, fez o mesmo, meio contrafeita: espalhou-lhe manteiga na torrada, deitou-lhe o açúcar e o leite no café, pós o boião da marmelada ao seu alcance...

Até a sua voz se assemelhou à da mãe, ao dizer:

- Hannah, traz torradas frescas para o Francis... Fran, passa-me a chávena do pai.

Depois, perversamente, tudo aquilo lhe causou prazer, o prazer de ter qualquer coisa que fazer. Na véspera, chorara até adormecer; na véspera, encontrara-se com Martin no vale, onde não o voltaria a encontrar, nunca mais. Mas naquela manhã a vida modificara-se para ela, tinha de tratar da casa, da família, de uma doente... Depois de Francis, engolido o pequeno almoço, ter corrido pela escada acima para se despedir da mãe, antes de ir para a escola, e do pai limpar os lábios, meter meticulosamente o guardanapo na argola de prata que tinha desde pequeno e ir como de costume, para o gabinete, soube-lhe bem ficar sentada no lugar da mãe e responder a Hannah.

-São horas de ir ao talho, Miss Joan.

- Creio que hoje não precisas ir, Hannah. Amanhã comemos feijão - o Francis gosta - e hoje faz-se um picado da carne que sobrou.

- Pois sim, menina - respondeu-lhe Hannah, tão dócil que nem parecia a mesma que uma vez lhe batera, por ter despejado uma lata de café na pia, e voltou para a cozinha, com uma pilha de pratos.

Agora, enquanto ali estava sentada no lugar da mãe, a sala apareceu-lhe de modo diferente. Quase se diria uma sala desconhecida, doutra casa. Durante toda a sua vida vira do seu lugar a mesa, as cadeiras, os quadros e o velho armário entalhado, formando um determinado conjunto de ângulos e superfícies planas.

Agora era tudo diferente, mudara tudo. Até o jardim, visto através da janela. Do lugar onde se encontrava via o que não vira antes, do seu lugar à mesa - o canto norte do relvado, os dois grandes bordos e a frente e o campanário da igreja, mas sem o telhado. Sentia toda a casa cerrar-se à sua volta, de modo estranho, como se naquele dia -a sua pessoa representasse mais para ela do que representara na véspera. Na véspera, a casa olhara para a mãe; agora, olhava para ela. Reciprocamente, a casa também representava mais para Joan do que representara em toda a sua vida. Ainda na véspera fora apenas um lugar de onde lhe apetecera fugir.

A tarde, após o pesado almoço dominical, sentira-a enfadonha e sufocante, à sua volta, o seu ar sombrio impacientara-a e levara-a a procurar o sol e a luz. Depois, contra a sua vontade, os pés tinham-na levado para o vale. Mas agora não lhe apetecia fugir, queria, antes, percorrer a casa toda, arranjá-la, pôr flores novas nas jarras. Era quase a sua própria casa.

A porta abriu-se e Francis meteu a cabeça pela abertura.  

-Ainda aí estás sentada, Joan? Não quis acordar a mãe.   

Está pegada no sono e parece cansadíssima, mesmo a dormir. Além disso, não lhe quis dizer que vinha tarde, esta noite... Vamos dar uma volta, vários rapazes...

Joan deu consigo a falar como a mãe, cheia de preocupação:   

- Mas, Frank, as lições...

Para ele, porém, ela continuava a ser o que sempre fora.  

- Isso é comigo - respondeu-lhe, e bateu com a porta.

Joan levantou-se, furiosa com ele - uma fúria de irmã -, mas o pai entrou, atarantado, e ela parou.

-Que foi, pai? 

- Às segundas-feiras à tarde faço, geralmente, algumas visitas pastorais, e perdi o meu livrinho de capa preta. Não consigo lembrar-me aonde fui a última vez. Costumo assinalar os nomes.

A tua mãe escreveu-me uma lista completa, por ordem alfabética, num livrinho de capa preta, que não encontro...

O facto de ser outra vez precisa fê-la esquecer a independência de Francis.

- Onde o costuma guardar? - perguntou, numa voz rica de generosidade, como a da mãe, quando algum deles precisava dela.

O pai levou a mão à testa, num gesto de desânimo.

- Não me consigo lembrar - confessou, preocupado. - A tua mãe...

O pai pareceu-lhe, naquele momento, tão diferente como a casa. Seria possível que a criatura simples que tinha à sua frente fosse o sacerdote de Deus, o padre que todos os domingos de manhã via sair da sacristia, radiante de confiança, para lhes pregar?   

- Deve estar no seu gabinete. em qualquer lado - disse, no tom em que falaria a uma criança, para a consolar. – Vou procurá-lo.

O pai seguiu-a, cheio de esperança, e Joan encontrou o livrinho debaixo de um monte de papéis.

- É isto? - perguntou, a sorrir.

- É - respondeu o pai, com um riso silencioso, e no mesmo instante sentou-se à secretária e esqueceu-a.

Joan voltou à casa de jantar e começou a levantar a mesa, numa azáfama apressada e feliz. Havia muito que fazer.

Durante toda a manhã a casa tornou-se-lhe, simultâneamente, mais estranha e mais real. Joan foi diversas vezes ao quarto da mãe, em bicos de pés, mas encontrou-a sempre imóvel, a dormir.

Até então, o seu quarto fora a única parte da casa real para ela. Arrumara-o sempre com minúcia, colocando os móveis a seu gosto e estudando o efeito de cada quadro e ornamento.

Mas o resto da casa revestira-se de um carácter neutro, como um lugar para viver e compartilhar a vida dos outros. Havia alguns quadros de que não gostava e desejara secretamente que a mãe os retirasse da parede, quando regressara a casa, da universidade.

Se alguma vez tiver oportunidade, tirá-los-ei eu, pensara muitas vezes. Agora olhava-os, hesitante. A Esperança sentada em cima do mundo, Cristo a entrar em Jerusalém, Samuel no templo...

Mas não. no dia seguinte a mãe levantar-se-ia. A casa não era inteiramente sua, afinal.

No dia seguinte, porém, a mãe não se levantou. Quando Joan entrou no quarto nessa segunda manhã, já não a surpreendeu ver a mãe deitada. Notou, no entanto, que nos seus olhos havia, agora, medo.

- Acho melhor mandares chamar o Dr. Crabbe, Joan - disse-lhe, e acrescentou: - Não me sinto com coragem para me levantar e lavar-me. Traz-me para aqui a bacia, querida.

Não se tratava de uma simples fadiga. Inquieta, Joan viu a mãe lavar-se devagar, parando muitas vezes para descansar. A pele da sua cara e das suas mãos tinha um brilho amarelado, e quando se recostou e fechou os olhos, as suas pálpebras pareceram sombras a marcar-lhe o rosto. Joan saiu do quarto em bicos de pés, com a bacia e as toalhas, depois largou tudo e foi a correr ter com o pai:

Aquela hora, sete da manhã, ele estava onde estivera sempre, durante trinta anos. Joan bateu furiosamente à porta do gabinete, pois nem naquele momento especial lhe passaria pela cabeça entrar sem bater. Vira a mãe fazer o mesmo; por isso, bateu, impaciente e assustada. Depois, sem esperar, empurrou a porta e entrou. O pai estava de joelhos junto da velha poltrona de couro castanho, com a cabeça apoiada numa das mãos, e levantou os olhos, ao senti-la entrar.

- Pai! - gritou: - Pai, a mãe está realmente doente, esta manhã! Deve ir chamar o Dr. Crabbe!

Olhou-a, perplexo. A mudança fora demasiado brusca para ele; num momento estava mergulhado na radiância que se desprendia de Deus e no seguinte encontrava-se de novo no modesto e triste gabinete.

- Ela pareceu dormir tranquilamente toda a noite - protestou com brandura. - Mal se moveu, embora às vezes me incomode com as suas voltas e reviravoltas. Deixei-a ainda a dormir sossegadamente, quando me levantei. - Estava tão perturbado que se esqueceu de se levantar.

Joan achou-o absurdo, assim ajoelhado, a fitá-la com os seus olhos azuis muito claros e ínfantis. Repetiu, ríspida:

-Ela está muito doente, agora. O pai ou o Francis devem ir chamar o Dr. Crabbe... Creio que mandarei, antes, o Francis.

Saiu precipitadamente. Claro que o irmão seria muito mais rápido do que aquele velho. Era a primeira vez que tinha consciência de que o pai era, de facto, velho.

- Frank! Frank! - chamou, a correr pela escada acima. Frank!    

O irmão dormia profundamente. O sol entrava pela janela batia-lhe na cama e na cara, o que o fazia enrugar um pouco a testa e franzir a boca num amuo, obstinado em continuar a dormir. Era bonito assim, a dormir ao sol. Apesar da sua ansiedade, Joan teve consciência daquele momento de beleza, cheio de juventude e de rebeldia. Sacudiu o irmão, agarrando-lhe num ombro, e disse-lhe:

-Levanta-te, Frank! Veste-te depressa e vai chamar o Dr. Crabbe. Leva o carro e trá-lo contigo.

Sob o clarão forte do sol, Joan viu a leve penugem do lábio superior e do queixo do irmão, e compreendeu que já fora rapada. Francis barbeava-se! Nunca dissera nada, ninguém se apercebera da metamorfose que o transformava de rapaz em homem. Comprara uma máquina e barbeava-se em segredo, sem que nenhum deles desse por isso - excepto a mãe, talvez.

- Que é? - Abriu os olhos e, ao vê-la, compreendeu.

- a mãe.

- Sai daqui para fora! - gritou-lhe, saltando da cama. Como queres que me vista se não saíres?

Joan saiu, confortada. A impaciência e a pressa do irmão davam-lhe forças. Considerara-o sempre um rapaz, um garoto.

Lembrava-se dele quando era um bebé forte e impetuoso, um rapazinho de testa franzida e faces coradas. Durante anos parecera não ter feito outra coisa senão cair da escada abaixo, comer vorazmente, exigir em alta gritaria as suas pequenas liberdades, sempre a pensar em se divertir. Agora tudo isso acabara, agora era a única pessoa para quem ela se podia voltar. Saltara da cama, alto, um homem. Era forte, corria-lhe nas veias o mesmo sangue que corria nas dela.

Joan parou à porta do quarto da mãe e escutou. Ouviu os passos precipitados do irmão e, instantes depois, o roncar do motor. Espreitou pela janela do corredor. Francis partira num turbilhão de fumo e de saibro levantado.

Na sala de estar, no rés-do-chão, o Dr. Crabbe colocou nos ombros de Joan o fardo da vida da mãe. O pequeno almoço em que ninguém tocara arrefecia, na casa de jantar, e Hannah fungava e escutava, à porta. O pai estava presente, de rosto solene e olhos graves, puros e exaltados. Nos seus lábios pairava a prova severa da sua prece constante: É esta a Tua vontade, Senhor: Seja feita a Tua vontade. Francis estava junto da janela, a olhar para fora, de rosto oculto de todos eles e mãos furiosamente enfiadas nas algibeiras. Estavam todos presentes, mas era com Joan que o Dr. Crabbe falava, em voz alta e a sublinhar cada palavra:

-Ela devia ter-me dito há muito tempo, Joan. Agora não posso tomar a responsabilidade. Temos de chamár alguém para uma conferência médica. Que ideia a sua, arrastar-se por aí com dores de morrer!   

Dores de morrer! As palavras eram uma espada acusadora, que cortava em dois o coração de Joan. Enquanto ela andara absorta no seu amor idiota, enquanto não ouvira outra voz senão a de Martin, não vira outra cara senão a de Martin, não sonhara nem vivéra para mais nada, a sua mãe padecera dores de morrer.

Afastou Martin do pensamento, voltou-se e perguntou apaixonadamente, em voz estrangulada:

-Há quanto tempo pensa que ela sofre?

- Meses... talvez um ano... Não consigo arrancar-lhe a verdade. Aquela maldita energia! Foi sempre assim. . Ainda tu não tinhas uma hora de nascida e já estava a papaguear: Preciso de me levantar depressa, doutor. assim que puder. O Paul tem de ir para o presbitério... , E embora estivesse à morte da última vez, por causa daquele calmeirão ali da janela, foi a mesma coisa.

Tenho de me levantar o mais depressa possível. por isto ou       por aquilo... Bem, Joan, na minha opinião, agora passará muito tempo antes que ela se levante. Precisamos de descobrir se pode ou não aguentar a operação ou se já é demasiado tarde, façamos o que fizermos.   

A voz de Francis ergueu-se, esganiçada e cortante, no silêncio de túmulo que se seguiu:

-Porque não chama o outro médico? Porque estão para aí todos parados, sem fazer nada? - Olhou-os, com o rosto franzido numa careta, devido ao esforço que fazia para não chorar, e depois virou outra vez a cara, muito depressa.       

O Dr. Crabbe continuou a falar, como se não o tivesse ouvido nem visto, e Joan escutou as suas palavras e a responsabilidade que lhe conferiam.

-Chamarei o especialista da cidade, ainda esta tarde ou amanhã. De qualquer modo, serão dias e dias, ou anos, talvez, de tratamentos e cuidados. Este género de doença arrasta-se, mesmo quando não há esperança. Ela tem uma constituição forte, muita vida... A não ser que decidam operar e qualquer coisa corra mal...

Dias e anos, dias e anos... Joan olhava para o rosto envelhecido e cabeludo do Dr. Crabbe, mas não o via. Via, antes, a sua vida passar, inexoràvelmente. Dias e anos, anos e anos feitos de dias e dias... Resignou-se a perdê-los, sem hesitar:

- Eu própria cuidarei dela - declarou.

O Dr. Crabbe levantou-se e disse, com inesperada animação:

-Ainda bem que estás em casa, rapariga, e que és robusta e forte! Agora vou andando, para chamar o tal médico. Tenham coragem, os três, pois faremos tudo quanto pudermos.

               Deu uma palmada no joelho grosso, tocou delicadamente, com o indicador curto, na cara de Joan, bateu nos ombros descaídos de Francis, inclinou secamente a cabeça ao pai deles e saiu, de repelão.

Ficaram sós, os três. Estavam sós e separados, porque a mãe, que os unira, não estava presente. A mãe unira-os dando a cada um uma parte de si mesma e reunindo-os num todo por aquilo que lhes dera. Agora deixara-os. Lutava por si mesma, e eles só poderiam voltar a estar unidos se se lhe entregassem. Cada um devia pensar em fazer qualquer coisa por ela... Joan viu o pai levar a mão à cabeça, no gesto familiar que exprimia perplexidade. Tinha o olhar vago e fixo no chão.

- Sim... sim murmurou, esquecido da presença dos filhos. - Sim, ó Deus! - e levantou-se bruscamente e saiu.

Ouviram-no fechar a porta do gabinete. Estava no seu refúgio.

- Não posso ir para a escola - disse Francis. - Não posso sentar-me lá, como noutro dia qualquer... - Mantinha-se na mesma posição, virado para a janela, com os ombros descaídos e as mãos enfiadas nas algibeiras.

Joan sentiu uma grande tranquilidade, repassada de tristeza.

Viu a cara magoada de Francis, e o que nela havia da mãe tentou confortá-lo.

- Haverá tantas vezes em que precisarei de ti, como precisei de ti para ires buscar o Dr. Crabbe! Mas neste momento tenho de lhe fazer coisas que não podes fazer. Cada um de nós terá de fazer por ela uma coisa especial, pois a mãe quererá que tudo continue, na casa, como até agora.

Joan olhou à sua volta. Na parede, à sua frente, estava o quadro que representava a Esperança apoiada num mundo cinzento e árido. Detestava-o, e ainda na véspera planeara tirá-lo dali, para tornar a casa mais sua. Agora sabia que nunca o tiraria, pois aquela casa jamais seria sua. Era e seria sempre a casa da mãe. Só poderia viver nela enquanto representasse a mãe, chamasse a si as suas funções.

- Creio que tens razão - disse Francis. - Bem. - suspirou muito fundo e saiu da sala.

Era a primeira vez que Joan o ouvia suspirar. Sorriu, com uma ternura triste pelo irmão, e subiu, devagar a escada. Enquanto subia preparou-se para o que a esperava; para tudo quanto nunca planeara.

A mãe chamou a si as vidas dos filhos, captou-as por um domínio obstinado, pela catástrofe da sua fraqueza e pelas suas pequenas alegrias. Joan nunca sabia, embora abrisse a porta do quarto dezenas de vezes por dia, que mulher encontraria. Entrou depois de Francis partir e encontrou a mãe sentada na cama, lavada e fresca. Enquanto, no andar de baixo, o Dr. Crabbe a condenava, levantara-se num súbito ímpeto de coragem, pusera a melhor roupa na cama e vestira um casaco de dormir, cor de orquídea, que Joan lhe oferecera num Natal. Nunca o vestira, por causa da delicadeza da seda e das rendas, mas conservara-o como um tesouro. Havia dois anos que o tinha na gaveta, ao de cima, a ocultar com a sua beleza as peças de roupa velhas e passajadas que se encontravam por baixo. Tinha-o ali porque lhe dava prazer vê-lo sempre que abría a gaveta.

Quando Joan abriu a porta, encontrou-a encostada às almofadas, cansada mas triunfante, a arquejar um pouco.

- Amanhã levanto-me! - afirmou. - Podes dizê-lo ao Dr. Crabbe. Descanso apenas hoje. O Francis deve ir para a escola e tu não deves dizer nada à Rose, pois antes de a carta lhe chegar às mãos já estarei a pé. Diz à Hannah que quero tomar o pequeno almoço. Não estou bonita? É a primeira oportunidade que tenho de o usar.

Joan deixou-se enganar, de bom grado. O casaco cor de orquídea, os olhos brilhantes e sorridentes, o cabelo branco bem penteado e as mãos morenas e fortes em cima da colcha, quase a iludiram. Desceu a escada a correr, gritou o recado a Hannah e foi ao jardim colher um raminho de violetas de pé curto, para enfeitar o tabuleiro. Levou-o ela própria e entrou no quarto quase alegre. No fim de contas, podiam estar todos enganados.

Por enquanto, não diria nada à Rose.

Os olhos da mãe enterneceram-se, quando viram as violetas.

- És a única que pensaria nisto - afirmou. - Poucas pessoas sabem que uma flor num tabuleiro dá melhor sabor a toda a comida. Eu nunca to ensinei, Joan, mas tu soubeste-o sempre. A Rose seria cuidadosa, mas esquecer-se-ia das flores. Quanto aos homens, não pensam nessas coisas.

Começou a comer, bem disposta.

-Que disse o Dr. Crabbe? Que eu precisava apenas de descansar um pouco, não? Senta-te um bocadinho, filha. É tão agradável conversar!

A energia da voz da mãe e a luz matinal tornavam o quarto agradável, mas sentada na cama, perto da sua cara, Joan não se podia iludir. Se os olhos deixavam, por um instante que fosse, de cintilar, ficavam baços e doentios. A mãe conseguia fazê-los brilhar, mas o esforço era excessivo e, de vez em quando, os seus olhos lembravam os de um pássaro doente.

- Porque não nos disse que tinha essas grandes dores - perguntou-lhe, de súbito, Joan. - Porque permitiu que continuássemos a depender de si?

A mãe largou o bocado de torrada que tinha na mão e inquiriu:

-Ele disse que eu tinha grandes dores?

- Disse.

- É verdade - confirmou, devagar. - Tenho, com frequência, dores muito grandes, mas como nunca me curarei delas, aprendi a suportá-las.

- Mas pode curar-se! - afirmou Joan, apaixonadamente, compadecida daquela mulher que era sua mãe. - O Dr. Crabbe       vai cá trazer, esta tarde, um médico da cidade, para a observar.     

A mãe fitou-a, assustada, e empurrou o tabuleiro.

- Não o receberei! - declarou, em voz alta. - Estás a ouvir, Joan? Não permitirei que um desconhecido espreite para dentro de mim! O Dr. Crabbe é diferente, assistiu-me quando todos vocês nasceram. Além disso, eu conheço-me, Sei... - O seu lábio inferior começou a tremer, olhou tristemente para a filha e a sua cara pareceu mirrar, tornar-se cinzenta por cima do alegre casaco de dormir. - Não me deixes morrer! - suplicou, num murmúrio.       

- Não, não! - exclamou Joan apaixonadamente, através dos dentes cerrados, a sentir as lágrimas queimá-la, debaixo das pálpebras.

Mas ao fim da tarde a mãe estava outra vez obstinada contra o novo médico. Joan, que esperava a seu lado, viu-a tornar-se momentâneamente forte, com a força da teimosia. Estava recostada nas almofadas, bem penteada e a olhar para a porta. Os seus olhos fitaram os do novo médico, num assomo de vida.

- Mary, este é o Dr. Beam. Mrs. Richards. . , - apresentou o Dr. Crabbe.

- Como está? - cumprimentou-a o Dr. Beam, lânguidamente, a observar-lhe com atenção a cara e as mãos.    

- A paciente tem vitalidade - disse, em tom fatigado, ao Dr. Crabbe.

Era um homem alto e curvado, que conservava o chapéu e as luvas na mão porque ninguém lhos tirara, para os arrumar.

- Tem vitalidade, mas não é física - resmungou o Dr. Crabbe. - Sente-se.

- Vontade de viver, talvez - sugeriu o doutor.

Pôs o chapéu nos joelhos, deixou-o cair. e por fim decidiu-se a colocá-lo no chão, ao lado da cadeira. Tinha os grandes olhos vagos fitos na doente, sem reparar em Joan.

- Não tenho nada de especial - afirmou a paciente em tom animado. - Não sei para que o mandaram chamar.     

Endireitou a roupa da cama, com brusquidão, e pareceu de súbito cheia de saúde. com as mãos vigorosas, como de costume:     

- Claro - murmurou o Dr, Beam. ao mesmo tempo que se levantava, inesperadamente atento. - Deixe-me observar-lhe oabdómen.

A sua languidez desaparecera, agora mostrava-se alerta, ávido de a conhecer... Não, de a conhecer, não. Que era ela para ele? Nada. O que lhe interessava era o que se passava no seu corpo. Se fosse uma mulher saudável, não existiria para ele - e mesmo agora, só existia como possuidora daquela vida maligna, daquele monstro que dela se alimentava. Apalpou- lhe o ventre com os dedos compridos e finos, delicadamente investigadores. O seu rosto tornou-se ainda mais atento, os seus olhos semicerraram-se, cheios de curiosidade, e a pele tornou-se esbranquiçada e seca, à volta dos seus lábios. O que descobrira excitava-o.

- Hum. . . - murmurava amiúde, para consigo. - Hum. Por fim, soube tudo quanto queria saber. Cobriu ràpidamente o corpo exausto da doente e perguntou a Joan:

- Onde posso lavar as mãos? - já à porta do quarto, ordenou:

- Traga o meu chapéu e as minhas luvas; não precisarei de voltar. Crabbe, espere-me lá em baixo.

Joan esperou com o velho doutor, no andar de baixo, a ouvi-lo falar de outros assuntos.

-Miss Kinney está de cama. com aquela estranha febre que trouxe de África. Não creio que consiga alguma vez livrar-se dela.

Coitada! A mãe, sã como um pero, há-de sobreviver a todos nós. Eu, pelo menos, não me atrevo a ter esperança de ir ao seu funeral... Mr. Parsons tem bronquite, precisava de viver ao ar livre, em vez de passar a vida metido num escritório, como passa. . .

E inesperadamente: - Onde está o teu pai? Costuma dedicar a tarde de hoje à missão.

O Dr. Crabbe tossiu, de súbito. foi ao alpendre e cuspiu para a roseira amarela, debaixo da janela.

- Sim, compreendo - disse, e voltou a sentar-se. - Dir-lhe-ás, quando ele voltar. Aí temos o Dr. Beam.

O Dr. Beam parou à porta, apressado.

- Suponho que não preciso de me demorar, Crabbe. Tenho o carro à espera. Você tem razão, é inútil. O órgão está todo endurecido e tudo irremediàvelmente afectado. Se vier daí. falaremos no caminho.

Eu depois volto,minha querida - prometeu o Dr.Crabbe a Joan. 

A rapariga viu-os encaminhar-se para a rua,da janela,um alto,esguio e curvado e o outro,o Dr. Crabbe, baixo,robusto     gingão como um marinheiro. Falavam excitadamente.Joan viu o rosto do Dr.Beam,ávido e animado,quando entrou no automóvel, e um dos seus dedos compridos a fustigar o ar,enquanto falava.

O Dr.Crabbe,pelo seu lado,abria as mãos quadradas e curtas.  

Dir-se-ia que atiravam a vida da mãe de um para o outro .De      súbito, deixou-se cair numa cadeira e chorou amargamente. 

Mas não pôde chorar durante muito tempo. A casa reclamava-a,agora,como reclamara a mãe.Hannah veio da cozinha, ruidosamente e teve o condão de lhe secar as lágrimas.           

- Que quererá o seu pai para jantar, Miss Joan? - perguntou-lhe,em tom pesaroso.       

- Deve vir cansado.da missão...Uma sopa de leite e uns bolinhos de milho.Ele gosta.

- Sobrou um bocado de frango.     O Frank gosta de frango - sugeriu a criada.

Sim,havia também o Frank.          

-A sua mãe...         

- Vou-lhe perguntar - decidiu Joan, na escada.porém,hesitou,a arrastar os pés,desejosa de não      precisar de entrar no quarto.Os olhos vivos da mãe estariam  virados para a porta,à espera, perscrutadores.Seria inútil mentir-lhe,fingir que não ouvira aquelas terríveis palavras: irremediàvelmente afectado.

Pôs a mão no puxador e respirou fundo.Tinha a boca seca.

Temia ver os olhos da mãe.

Mas quando entrou,o quarto estava mergulhado em penumbra.  Não reparara que o sol se pusera.no curto espaço de tempo em que estivera ausente.O corpo da mãe parecia mirrado,um pequeno monte,e Joan aproximou-se cautelosamente da cama.

- Filha? - disse-lhe a mãe, em voz fraca e cansada.           

-Assustou-me! - confessou, aliviada. - Não a via. Que deseja para o jantar, queridinha?

- Joan - murmurou a mãe, na mesma voz fraca. - Joan, poderás fazer-me uma coisa... só uma coisa.

- Com certeza, mãe, tudo o que quiser - respondeu-lhe, surpreendida e terna.

Tacteou à procura da mão da mãe e encontrou-a. Não era pequena. Acordada, era bem feita, bonita e forte; agora dormia.

Sem vida, a mão parecia maior do que era, inerte, hirta, difícil de segurar, com os dedos mortos e abertos. De súbito, a mãe levantou a cabeça e os seus olhos procuraram os de Joan, na penumbra.

- Não o deixes vir para aqui, para junto de mim. Faz a cama do quarto de hóspedes. Estou muito... cansada.

Joan deixou cair a mão hirt. e perguntou:

-Refere-se ao pai?

- Sim.

A mãe recostou-se outra vez na almofada e Joan deixou de lhe ver os olhos, fechados e vagamente esboçados na lividez do rosto.

- Diz-lhe... diz-lhe que estou cansada - pediu-lhe, quase numa súplica.

Joan, que se sentara na cama, levantou-se, de novo consciente de uma sensação de repulsa. As discussões abafadas, que julgara ouvir de noite, tinham relação com aquilo? Não pensaria nisso.

- Pois sim - respondeu, resolutamente, e voltou-se para a porta.

Mas a mãe ainda não estava tranquila.

- Não o deixes, sequer, entrar... esta noite. Diz-lhe que estou a dormir, diz-lhe...

       - Eu digo-lhe, mãe - prometeu Joan, e saiu e fechou a porta.

Não queria ouvir mais nada, aquilo não era para os seus ouvidos.

Mas tinha de dizer ao pai. Como hei-de dizer-lhe? perguntava-se, enquanto as suas mãos faziam a cama onde ele passaria a dormir sòzinho. Como dizer a um homem que dormira com a sua mulher durante trinta anos que não se podia deitar mais a seu lado? Antes de chegar a uma conclusão, ouviu-lhe os passos na escada. Passos leves, com o pé esquerdo a arrastar um pouco.

Correu ao seu encontro, no patamar.   

-Que disseram os médicos?

-O Dr. Crabbe prometeu que voltaria, mas não voltou respondeu, deixando-o perplexo.

O pai hesitou e depois encaminhou-se para o quarto. Tinha       de falar, tinha de lhe dizer agora, antes de ele entrar. Parou à sua frente, a detê-lo, com o sangue a latejar-lhe nos ouvidos.

- Pai! - gritou, para ouvir a sua voz acima do tumulto do seu sangue. - Não... não deve entrar!    

- Não devo entrar... no meu próprio quarto? - perguntou, estupefacto.       

- Não, pai... Eu explico...       

- Foram os médicos...

- Não... A mãe... ela prefere que não entre... quer dormir, estar só. Fiz a outra cama para si. A mãe está muito cansada.

Entreolharam-se, pai e filha. O coração da filha gritava-lhe:

Que fez para a deixar tão cansada? E o pai respondia-lhe, com o seu olhar calmo e virtuoso: Não fiz nada que não tivesse o direito de fazer.     

Mas a filha era mais forte do que o pai. Sem uma palavra, ele virou-se e desceu de novo a escada.    

Já não era ela própria, já mão era a Joan, uma jovem mulher que regressara da universidade, cheia de esperança. Era uma estranha e complexa criatura, mais do que irmã, para Francis, mais do que filha, para o pai, menos do que ela própria. A mãe, deitada na sua cama, fechada no seu quarto, era a sua vida secreta, era aí que vivia, em segredo. Embora, exteriormente, lhe chamassem Joan, embora, exteriormente, fizesse as coisas que a mãe sempre fizera, em casa, a sua vida secreta e intensa decorria no quarto do primeiro andar. Dir-se-ia que uma parede se erguia à sua volta e tornava tudo mais irreal. A única realidade era, agora, aquela mulher cujo corpo morria enquanto o seu cérebro estava cheio de vida feroz. Essa era a realidade, uma realidade que a isolava de tudo o mais.

Isolava-a, até, da recordação de Martin. Às vezes, como num eco distante, ouvía música, vinda da igreja, mas não se detinha e continuava a tratar do que estava a tratar. Não abria nenhuma janela para ouvir um acorde ou o fragmento de uma melodia.

Pusera a música de lado, até mesmo a sua. Porque havia de perder tempo a escutar os ecos da dele? Também nunca mais ouvira pronunciar o seu nome. A mãe esquecera que esse nome fora motivo de discórdia entre elas - podia esquecer, pois agora tinha de novo a filha em casa, completamente recuperada. No coração de Joan também não havia nenhum nome.

Uma manhã, a campainha da porta tocou e Joan, que ia a passar a caminho do primeiro andar, atendeu e encontrou-o à sua frente, a envolvê-la no seu leve e melancólico sorriso. Por instantes, foi tão familiar como ver inesperadamente a sua própria cara reflectida num espelho.

- Esperei... pensei que me darias um sinal, que voltarias. .

Conhecia-lhe a voz. Outrora ouvira-a com um desejo extasiado e penoso; agora ouvia-a apenas como algo que conhecera, uma voz que escutara, mas que não queria ouvir mais. Martin apoiava-se na bengala com ambas as mãos, com o chapéu entre os dedos e as folhas de música enroladas debaixo do braço. Joan olhou, fixamente, a sua cara estreita e morena, que envelhecia, o cabelo liso, encanecido aos lados, os olhos tristes, cor de avelã, e a boca fina e bonita:

- Volta para mim. Joan! Não mudei... nunca mudarei.

Era singular, mas os seus olhos, profundamente mergulhados nos dela, não passavam dos olhos de uma fotografia, agora posta de lado! Sim, na verdade ele não mudara nem nunca mudaria. Por isso, não chegava.

-Tenho de tratar da mínha mãe, que está muito doente - respondeu-lhe com rudeza, como uma criança.

Quis acrescentar qualquer coisa que suavizasse as suas palavras, mas não encontrou nada, por mais que pensasse. Olhou para além dele, para o jardim, e viu o que antes não vira, que estava uma bonita manhã, soalheira e docemente primaveril. Passado um momento, fechou a porta, de mansinho e sem cólera. Sentiu, até, um certo remorso, o receio de ter sido demasiado rude. O interesse que Martin lhe despertava já não chegava, sequer para ser rude com ele ou para o magoar.

Subiu ao primeiro andar.

Ao princípio, as pessoas da aldeia iam ver a mãe. Miss Kinne aparecia frequentemente à porta, com flores.             

-Trago umas flores, querida Joan. Se houver alguma coisa que eu possa fazer. ficar um pouco eom ela, enquanto sais.

-Obrigada, Miss Kinney.                

Mrs. Bradley- levou-Lhe geleia de mão de vaca.         

- É muito saborosa - explicou. - O Martin gosta. Como está ela, Joan.              

-Obrigada, Mrs. Bradley.

Mas não deu a geleia à mãe; aproveitou um momento em que a criada estava noutra casa e deitou-a no lixo.             

Batiam-lhe todos à porta - todos os velhos - a perguntar pela mãe, cuja falta sentiam. Ao princípio,     apareciam muitas vezes, na esperança de lhe fazer um bocadinho de companhia, e Joan, que tinha sido criança quando eles já eram pessoas de meia-idade, achava que devia condescender. Parecia-lhe impossível dizer a Mrs. Winters, que ficara com a presidência da sociedade missionária e das Obras das Senhoras, que não podia entrar para ver a mãe. Tenho a certeza de que a tua mãe gostará de saber como decorreu a reunião. Não me denorarei nada.

Mas Joan percebeu que a mãe já não se interessava pelas reuniões missionárias nem queria ouvir Mrs. Winters, que todo o seu pensamento se concentrava na sua própria vida. Pela  primeira vez, absorvia-a o que lhe iria acontecer. Olhava Mrs. Winters de modo desinteressado e vago e dizia, em voz apagada:

Muito bonito, sem dúvida. . Estou muito contente. Joan.     

- Tem de se curar. Mrs. Richards - recomendava-lhe Mrs Winters, com simpatia. -Sentimos muito a sua falta. Nunca a conseguirei substituir junto das senhoras. Tem um jeito muito        especial; faz-nos rir tanto que quando a recolha de donativos começa nem damos por isso. - Inclinava-se, beijava a doente, com o corpete a estalar no amplo busto, e acrescentava: - Faça o que lhe digo, cure-se depressa!

Mas depois de ela sair, Joan viu os olhos da mãe fixos na parede, cheios de perplexidade.

-Nada daquilo tem interesse para mim. Acabou-se tudo - murmurou, baixinho. - Tudo quanto costumava fazer perdeu o interesse, está muito longe. Não sou mais do que este corpo aqui deitado.

Por isso, Joan passou a mantê-las todas afastadas. Não tardaram a esquecer e a tratar da sua vida, lembrando-se apenas, de quando em quando, de perguntar como ela estava. Oh, lamento muito!, exclamavam sinceramente, ao ouvir a sua resposta. As vezes, ao domingo, quando era natural pensar em boas acções, escreviam-lhe bilhetinhos: Lembramo-nos de si nas nossas orações, querida amiga.

Orações! Joan sorria amargamente. Ao princípio, as orações tinham sido como fumo a subir para o céu, na aldeia. Por toda a parte havia gente a rezar pela mãe. O pai regressava a casa, depois das reuniões de quarta-feira à noite, confortado com as preces dos seus paroquianos. Ia direito ao quarto da doente e dizia:       

-Mary-. gostava que tivesses ouvido a prece de Mrs. Parsons em tua intenção, esta noite, e o ámen que se lhe seguiu!

       Talvez o Senhor se sirva da tua doença para insuflar nova vida na alma das pessoas.

Falava mais depressa do que de costume, com uma expressão feliz e os olhos pálidos e ingénuos a brilhar. Era capaz de suportar até a doença da sua querida mulher se via nela a vontade de Deus. Em seguida descia apressadamente a escada, para louvar o Senhor e agradecer-lhe. Joan ouvia-o descer e tinha dúvidas acerca do valor das orações.       

- A mãe reza? - perguntou uma vez, timidamente.        Já não havia constrangimento físico entre elas. Cuidava do corpo da mãe como cuidava do seu. Mas não penetrara ainda      

na alma da mãe. Não ousava. Saberia que ia morrer? - Não, não rezo. Creio que não - respondeu-lhe, simplesmente. - Já não. Comecei a perder o hábito quando vocês eram pequenos. Obrigavam-me a acordar muito cedo, de manhã, e quando chegava a noite estava a cair de fadiga. Aliás, nunca me pareceu valer a pena rezar por mim própria.

Foi o que aconteceu, passado algum tempo, a todas as preces.

Tornou-se enfadonho rezar por uma mulher que enfraquecia de dia para dia. Continuar a rezar quando era evidente que ela não se curaria pareceu rebeldia contra Deus. Por fim, até o pai resumia as suas preces a: Seja feita a Tua vontade, Senhor, ou Ajuda-nos a estar preparados para o desgosto.

Só Miss Kinnenada tinha já a ver com os outros.

Continuara a levar-lhe fielmente flores.

A Primavera passou, chegou o Verão e veio de novo o Outono. Dir-se-ia que a mãe estivera sempre assim, inválida e precisada de que cuidassem dela, e que Joan ocupava havia        anos o seu lugar. Rose veio de férias, o Verão passou e no Outono voltou para a universidade.

Joan e a mãe viviam, agora, sózinhas as duas. Se o Frank, o pai ou, até, o Dr Crabbe, queriám ver a mãe, Joan era a porta através da qual tinham de passar.

Duas vezes por dia o pai perguntava-lhe: A tua mãe quererá ver-me? E ela ia perguntar à mãe: Quer ver o pai?

A mãe pensava sempre, antes de responder, por muito longe que o seu espírito andasse. A sua disposição ressentia-se logo, mudava, e mesmo que, antes, estivesse bem disposta, tornava-se irritável. Quero dormir, resmungava. Outras vezes perguntava, desconfiada: Que quer ele? Mas com mais frequência a resposta era: Um bocadinho, talvez. E depois suspirava, sem dar por isso.

O pai entrava no quarto e conversavam.

-Então, Mary, como estás hoje?

-Mais ou menos como de costume, Paul, obrigada.

-Queres que te leia alguma coisa?

- Não, Paul, obrigada. A Joan lê-me muito.

O pai pensava, à procura de qualquer coisa para lhe dizer, e depois começava, cauteloso:   

- Gostarás de saber, minha querida, que na missão de South End baptizei...        

- Sim, querido Paul - respondia, e fechava os olhos.   

Pouco depois o pai saía em bicos de pés e ia dizer a Joan:       

-Está a dormir. Parece dormir muito. Talvez seja melhor...

- É melhor, com certeza - afirmava a filha, compadecida daquele homem virtuoso. Devia tê-la concebido num momento de ternura humana, mas agora não possuia nenhum calor humano. Nada restava dele no quarto do primeiro andar, era como se nunca lá tivesse entrado. O quarto pertencia, agora, à mãe.

À noite, depois do jantar, Francis levantou-se apressadamente da mesa e perguntou:

- A mãe está pronta para mim?     

Joan acenou com a cabeça, pois nunca descia para jantar sem deixar a mãe pronta para Francis. Escovava-lhe o cabelo, vestia-lhe um casaco de dormir lavado e punha-lhe um bocadinho de rouge nas faces. Uma noite, a mãe pedira-lhe o espelho.

- Quero ver como estou - disse. - Não desejo que o meu filho me veja feia, nas suas recordações. - Olhou-se ao espelho tristemente. - Estou pavorosa.        

- Podia remediar isso com um bocadinho de rouge - sugeriu Joan, brincalhona.        

A mãe nunca pusera rouge.  

Sentir-se-ia envergonhada, se imitasse uma mundana. Mas daquela vez olhou a filha com uma sombra do antigo espírito travesso a brincar nos olhos e replicou-lhe: - Porque não? O que fizer agora não pode ter muita importância. Serei julgada pelo que já fiz. Uns pózinhos de rouge a   mais ou a menos não influenciarão muito a balança.        

Ambas a rir, com certa tristeza, deitaram mãos á obra. Joan foi buscar a sua caixa de rouge e pôs um nadinha de cor nas faces pálidas da mãe, enquanto esta empunhava o espelho:

- Fica-me bem - murmurou a mãe, muito interessada. -        Parece, até, que ainda sou um bocadinho bonita.

Olhou timidamente a filha, cujos olhos se encheram de lágrimas. Inclinou-se para beijar a mãe e, ao fazê-lo, chegou-lhe às narinas o cheiro a morte que se desprendia do seu corpo e que não havia sabonetes perfumados nem essências que conseguissem disfarçar. Mas a mãe ignorava que tinha esse cheiro, pois ele fazia parte da atmosfera em que devia, agora, viver. Naquele momento, sentia-se animada.

- Não me denuncies! - pediu, alegremente.

Assim, o rouge era guardado todas as manhãs e todas as noites a filha lho espalhava, numa tonalidade de pêssego, nas faces mortalmente lívidas.

Mas Joan denunciou-a um bocadinho, só um bocadinho, ao pedir ao irmão:

-Frank, diz à mãe que a achas bonita. Diz-lho muitas vezes.

O irmão pareceu surpreendido e o pai, admirado, censurou

com brandura:

-A tua mãe detesta lisonjas, Joan.        

- Diz-lho, Frank - insistiu a rapariga. - Diz-lho, e v como reage.

- Com certeza, se achas que isso lhe fará algum bem - prometeu o irmão, já a correr pela escada acima.

Dez minutos depois, Francis espreitava pela pórta da cozinha, onde Joan estava a cortar carne para caldo, e exclamtou:   

-Com a breca, ela gostou! Parecia uma garota, quando afirmei, e ficou com a cara toda corada.  

-O rapaz hesitou e a       irmã viu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. - Também não lhe disse nenhuma mentira! - acrescentou, e bateu com a porta. De manhã, o Dr. Crabbe irrompeu pela porta da frente e gritou-lhe:

-Joan, ela está preparada para mim?

Depois, quando a encontrou sòzinha no vestíbulo, à sua espera, disse-lhe, esforçando-se por reduzir o vozeirão a um murmúrio rouco:

- Já não pode durar muito, agora. Dá-lhe tudo quanto ela pedir. Já não tem importância. O que interessa é conservá-la contente.

-Quanto tempo, Dr. Crabbe?

- Um mês ou dois. talvez seis. Tem tanta vitalidade! Não lhe digas... - E saiu apressado, como um furacão.

Joan, num rodopio, a subir e a descer a escada, a levar à mãe vinho, caldos e deliciosas sopas de leite, dizia para consigo, obstinadamente: Ela há-de ter toda a minha força. Sou forte, transmitir-lhe-ei a minha força! Farei com que viva meses, um ano, talvez dois anos...

Esforçava-se por transferir para o corpo da mãe toda a sua enorme vitalidade. Incansàvelmente, lavava a carne gasta e massajava com azeite os músculos lassos, para a alimentar. Concentrava o coração nas mãos, punha nelas todas as suas forças, comprimia as palmas contra a carne da mãe até quase se convencer de que passava uma corrente, de que algo saía do seu corpo robusto e saudável para o que definhava. Empurrava a cama para junto da janela e destapava a mãe, para que recebesse o sol e o calor do meio-dia, enquanto ela vigiava, de relógio em punho, empenhada em aproveitar até ao último momento o sol e o vento.

Queria que penetrassem no corpo da mãe toda a força do vento       

e todo o calor do sol. Comida, sol, ar e a sua própria energia juvenil, tudo desejaria transmitir ao corpo doente, para combater a morte que dele se apossara. Mas a morte crescia, também, anulava todos os seus esforços.        

À noite não havia sol e era difícil rir. A noite todos dormiam isoládos, a casa mergulhava no silêncio e ela ficava só com a mãe, na escuridão. Para além das paredes cheias de sombras do quarto, havia o universo, o infinito espaço vazio. Em breve, muito em breve, a mãe deixá-la-ia e perder-se-ia nesse espaço vazio. Joan, deitada no pequeno divã, ao lado da cama, escutava, á espera dessa partida. Se adormecia, exausta, bastava um movimento da mãe para acordar imediatamente.

Uma noite, ouviu-a murmurar:

- Vou morrer, Joan?

- Não a deixarei morrer! - gritou apaixonadamente, em voz alta e forte.

- Toca-me, deixa-me sentir-te...

Joan agarrou a mão da mãe e apertou-a, acariciou-a com amor.

Desprendia-se dela o mesmo cheiro. A voz da mãe voltou a soar, fraca, como vinda de muito longe:    

- Estou sempre meio adormecida... Não me deixes escapar, enquanto dormir.

- Não, não! - prometeu. - Tenho-a bem segura.   

No silêncio da noite, escutava a respiração da mãe. Se se tornava fraca e irregular, administrava-lhe um estimulante, mas só se era absolutamente necessário. Seriam muito mais precisos no fim, quando as dores fossem tantas que tivessem de lhos administrar constantemente. Interrogara com minúcia o Dr. Crabbe e sabia como tudo se passaria e o que seria preciso fazer. Encolhida      junto da cama, às escuras, ajoelhada no chão e a segurar a mão da mãe, lutava com o universo.

No meio do sono, a mãe acordava umavez e outra, para se agarrar á vida. Lutava contra aquela sonolencia constante, insidiosa e mortal, forçava os olhos a abrir-se, franzia a testa, pensava em qualquer coisa que queria fazer.        

- Diz ao Paul que venha cá - ordenou, em voz alta e estranha; como o seu ouvido enfraquecera, agora falava alto, para se ouvir a si própria. - Tenho qualquer coisa na ideia para lhe dizer.

Joan foi chamar o pai, que entrou, timidamente. Nos últimos tempos, mostrava-se muito acanhado e consttrangido, na presença daquela morte. Acorrera triunfante à beira de -muitos leitos, para encaminhar uma alma para Deus, mas não podia fazer nada por aquela alma. Aquela alma que o conhecia não lhe reconhecia nenhum poder especial e, sem fé, ele não o tinha. Sentia-se perturbado e, às vezes, atrevia-se a dizer-lhe:

-Mary, não achas que devíamos falar de coisas espirítuais? Sou o teu pastor, além do teu marido, responsável por ti perant Deus.

Mas agora que a mulher se separara de todos eles, não o respeitava. Não se lembrava, sequer, de que ele era o pai dos seus filhos. Recordava-o apenas como um homem contra o qual tinha uma queixa mais profunda do que a sua alma. Mary lutou contra o sono insidioso, para lhe dizer o que tinha a dizer.

- Cala-te! - ordenou-lhe naquela estranha voz ríspida, em que se lhe dirigia, agora. - Há uma coisa. Cem dólares. Olhou-a, estupefacto. Cem dólares! Delirava. -Quais cem dólares?

Mas o sono voltara a exercer os seus direitos. A doente debateu-se, a mover os lábios e a tentar abrir as pálpebras pesadas. O sono venceu, porém, e o seu- rosto imobilizou-se, numa gravidade vazia.

A luta repetiu-se diversas vezes, até que Joan não pôde suportar mais e suplicou:

- Deixe lá, mãe. Não se importe. não se importe. Mas a mãe não desistia.

- Diz ao Paul.

Por fim, um dia, venceu:

- Cem dólares. no sótão. Na arca velha. Joan e Rose. .

- Cem dólares. no sótão! - repetiu o pai. - Onde arranjaste?

Esqueceu-se de que a mulher estava doente. Cem dólares! Cem dólares escondidos, quando ele precisava tão desesperadamente dinheiro para a sua missão!

- Poupei-os. dinheiro da casa. Poupei. dólar a dólar. Joan e Rose.

Lutava de novo com o sono. Estava quase a vencê-la outra vez, a cerrar-lhe as pálpebras e a tornar-lhe os lábios hirtos.

Mas ele ajudou-a, ele acordou-a com uma chicotada. Levantou-se e gritou-lhe:

- Roubaste-os!

Os olhos da doente escancararam-se, os seus ouvidos enfraquecidos captaram o som e retiveram-no. Acordou porque, uma vez mais, estava furiosa. Ele ainda a conseguia enfurecer.

-Roubei-os? Roubei-os, a trabalhar como uma escrava para ti e para a tua igreja, todos estes anos? Sem nunca ter nada meu, nada, nada -Voltou-se para Joan, patèticamente, com o rosto a tremer de choro contido, como o de uma criança. -Joan, ele está a dizer... está a dizer...

Joan correu para ela, envolveu-a nos braços e acalmou-a.        

-Oh, querida não te importes! Não te importes, minha queridinha!

Apertou a cabeça da mãe contra o ombro, a murmurar-lhe palavras ternas, a apaziguá-la. Mas o sono implacável voltou,

agora misericordiosamente reduzindo tudo a silêncio. O rosto adormecido estava molhado de lágrimas, e foi por cima desse rosto e dessas lágrimas que Joan olhou o pai como nunca olhara:    

Odiava-o. Mas ele não reparou, pois saía apressadamente. Joan ouviu-lhe os passos rápidos, a subir a escada do sótão.

De manhã, a não ser que fosse domingo, o pai tinha apetite, depois da hora passada no gabinete. Quando a sua alma estava revigorada, todos os seus impulsos fisicos se aceleravam, sentia-se leve e à vontade e sabia que isso acontecia porque estava bem com Deus. Por isso, também, tinha fome. Era agradável entrar na alegre sala de jantar e tomar e tomar o pequeno almoço. O café sabia bem, nas manhãs frias, e era agradável juntar-se aos outros.        

A voz de Joan interrompeu aquele agradável silêncio, o conforto, o prazer com que mexia o café doce e quente. Levantou a cabeça, ofendido com o tom áspero da sua voz. Não estava habituado a aspereza da parte da filha. As singulares e insensatas cóleras de Mary, sim, estava acostumado. Confiara a Deus os caprichos da mulher e Deus respondera-lhe: Resigna-te à tua cruz. Por isso ele resignara-se e fora recompensado, pois à medida que ela envelhecera tornara-se menos tempestuosa, menos exigente, zangava-se menos vezes com ele.   

Quando era nova, Mary estava sempre a querer qualquer coisa dele, mais qualquer coisa. A noite, ouvia-a chorar, porque lhe faltava qualquer coisa.

Que tens, Mary?, perguntara-lhe vezes sem conta, pacientemente. Pelo menos agora, que ela morria,

não tinha nada de que se censurar; fora sempre paciente. Mary respondera, invariàvelmente, à sua pergunta: Pensava que havia mais qualquer coisa. E ele, sem nunca perder a paciência: Não compreendo. Na realidade, não era possível compreendê-la, apesar de ser, em tantos sentidos, uma boa esposa para um sacerdote, pois as pessoas gostavam dela. Mostrava-se sempre agradável e alegre com todos, mas quando como homem estava sòzinho com ela, que mulher diferente e difícil encontrava!

- Não estás ao corrente das circunstâncias - disse, cauteloso, a Joan. - A tua mãe sabia que, há quase um ano, tenho andado preocupado, a tentar arranjar por todos os modos dinheiro para a renda do ano que vem, da sala da missão. Deus garantira-me que procedia bem e eu sabia que havia de arranjar o dinheiro, mas os paroquianos têm-se mostrado avessos a dar, avarentos, como se lhes roubasse parte dos serviços que lhes devia. E a tua mãe sabia que não precisava de todo o dinheiro que eu lhe dava, ela sabia...

-Mas ela poupou-o, economizou pouco a pouco, do que o pai lhe dava!

A voz de Joan era como a voz de Mary, a gritar na noite.

De súbito, a sua própria voz pareceu-lhe a que ouvia à noite, através da porta fechada. Porque pensava na noite se era dia claro e o sol brilhava no jarro de prata, na toalha branca e nos pratos azuis? Hannah trouxe um prato de torradas e esperaram que ela saísse, para reatarem a conversa. O pai falou pacientemente, em voz tranquila, na mesma voz que, à noite, soava sempre serena:

- Coloquei sempre o serviço do Senhor acima de tudo. Feito o serviço do Senhor, Ele velará para que não falte alimento aos meus e a mim. Estará bem pouparmos para nós quando outros não têm nada, nem mesmo uma casa aonde ir buscar alimento para a alma?

De súbito, enquanto o olhava, ouviu vibrar na voz do pai uma cólera humana e apaixonada. Naquele momento, deixou de ser um padre.

-Além disso, Joan, ela foi dura. Sabia que não tinha para onde me voltar, aonde ir buscar o pouco dinheiro de que precisava, sabia que a obra frutificava e que abandoná-la agora sería perder tudo. Ela sabia, ela ouvia-me rezar! A noite, quando orávamos juntos, ouvira-me falar a Deus na falta do dinheiro... e tinha-o escondido sem dizer- nada! Como pôde estar comigo de joelhos, diante de Deus, e calar-se, sabendo que na minha própria casa havia aquilo de que eu precisava, havia dinheiro que era, na realidade, meu?

Era aquela a mágoa do pai. Joan baixou os olhos e suspirou.

O reverendo prosseguiu, ansiosamente, com uma súplica nos olhos azuis:        

- Que fará ela. agora, com o dinheiro? Tem tudo quanto precisa...     

Esquecera por completo a voz da mulher a lutar contra o sono da morte:

- Joan e Rose... Joan e Rose...    

Joan não lho iria recordar. Deitou-lhe o café, em silêncio, e não lhe respondeu. No fim de contas, não era para ele que o queria; era para Deus. No entanto, agora, isso parecia a mesma coisa.

A mãe dizia, quase todos os dias: Não digam à Rose, não estraguem tudo por minha causa... , Mas não lhe podiam continuar a dar ouvidos, embora faltasse menos de um mês para o Natal. O Dr. Crabbe fez sinal com o indicador a Joan, ao sair do quarto, e quando ela o seguiu ao rés-do-chão segredou-lhe:

- É melhor mandar vir a Rose. Não posso responsabilizar- me por estes dias. O mais provável será ela ficar-se, no sono. Tanto pode durar um mês como uns dias. Tem o corpo todo cheio de veneno, está tudo a ceder ao mesmo tempo. Manda vir a Rose:

Não precisas de dizer à tua mãe; ela já perdeu a noção do tempo e pensará que começaram as férias.     

Joan acenou tristemente com a cabeça e subiu a escada, fatigada.

Seria agradável ter a Rose em casa. Talvez ela a pudesse render, de noite... O Dr. Crabbe falara numa enfermeira especializada, mas as enfermeiras especializadas levavam muito dinheiro e, além disso, a gente da aldeia não compreenderia que o padre pagasse a uma enfermeira quando tinha em casa duas raparigas crescidas. Joan foi para o quarto, sentou-se à secretária e escreveu a Rose. De vez em quando, mordiscava a caneta, a pensar na maneira de não atormentar muito a irmã. Rose não vira operar-se a mudança, aproximar-se a morte inexorável que nenhuma vitalidade conseguia deter mais do que uma pequena fracção de tempo.

Por isso, Joan escrevia com cuidado, para a poupar.

À noite, depois de mandar a carta, disse ao pai e ao irmão.

O pai levantou a cabeça do livro e a gravidade do seu rosto adquiriu uma profundidade sombria.

- Já receava que ela estivesse pior - murmurou, e voltou a ler.

Mas de vez em quando suspirava e, por fim, fechou o livro, marcou cuidadosamente a página onde ia e saiu.

- O Dr. Crabbe... eles pensam que ela morrerá em breve?

perguntou Francis, assim que o pai os deixou.

Andava de um lado para o outro, inquieto, mas no fim não a deixou responder:

- Não me digas! Não quero ouvir! - E soltou um soluço alanceado, que o sacudiu todo.

       Tossiu, para disfarçar, voltou-se para uma estante e, depois de hesitar, tirou um livro, abriu-o e ficou a olhá-lo.

- A Rose deve chegar na terça-feira à noite - murmurou.     Irei esperá-la; escusas de te preocupar.

- Obrigada, Francis - redarguiu-lhe, agradecida.

Desejaria tocar-lhe, apertar-lhe as mãos e apoiar-se um pouco nele, mas sentia-o a resistir ao seu contacto, a pedir-lhe veementemente que não lhe tocasse. Andava tão estranho, nos últimos tempos! Mas Joan não tinha vagar para lhe prestar atenção, nem para lhe perguntar o que se passava e porque se mostrava tão arisco, tão mal-humorado e comuma tal predisposição para se zangar com ela e com todos. Por isso deixou-o e voltou para junto da mãe.

Rose chegou e foi agradável tê-la em casa. Joan só avaliou     

quanto seria boa a sua companhía quando desceu a escada e a viu no vestíbulo, calma, ainda de luvas e com o casaco castanho abotoado. Desceu os últimos degraus a correr, abraçou-a e apoiou o rosto na sua gola de pele, sentindo a face fria e acetinada da irmã contra a sua carne quente. Rose conservou-se imóvel, enquanto a abraçava. Era bom, era bom ter outra vez a família completa!

- Aqui tens a tua mala, pequena - disse Frank, que entrou

nesse momento e pôs a mala no chão.        

Ficaram parados um instante, a olhar-se em silêncio, a sentir-se reunidos. Mas aquela era uma nova espécie de comunhão.

Processava-se na ausencia dos pais, sem a presença dos mais velhos.

Agora eram eles os fortes, os aptos. Os outros dois estavam velhos e doentes, os outros dois eram os que precisavam, agora, de cuidados e protecção.

A porta do gabinete abriu-se e o pai saiu. Estivera a dormir no sofá e o cabelo branco, ralo, caía-lhe, despenteado, para a testa.       

- Como está, pai? - cumprimentou-o Rose, calmamente.    

Aproximou-se, em bicos de pés e, com a boca vermelha, tocou nos lábios do pai. Era costume dele ficar muito direito, de lábios franzidos, e beijar como se fizesse uma coisa aprendida havia pouco tempo e que, portanto, lhe custava fazer.      

- A tua mãe está muito mal - disse, sem rodeios.

- Eu sei - respondeu Rose, a desabotoar o casaco.    

A vinda do pai não interrompeu aquele momento de comunhão dos filhos. Sentiram-se enternecidos por ele, secretamente embaraçados com essa ternura e um pouco impacientes.  

- Eu levo a mala para cima - disse, de súbito, Francis.       

- Obrigada, Frank - agradeceu Joan, e depois de ele se afastar disse a Rose: - Até custa a acreditar como cresceu e se modificou.  

- Sim, dantes não se ofereceria para levar a mala para cima a nenhuma de nós - concordou Rose, pegando nas luvas, no chapéu e na carteira e encaminhando-se, com a irmã, para a escada.    

Agora Joan devia dizer a Rose... Antes de entrarem no quarto da mãe, devia preparar a irmã, prepará-la para ver a morte num rosto humano ainda vivo, para a ver espreitar de uns olhos negros onde ainda havia vida. A morte habitava o corpo da mãe, espreitava dos seus olhos, exalava o seu hálito fétido pelas suas narinas.

Joan tentou adiar o mais possível o momento terrível e disse,

em tom ligeiro:

- É verdade, vais achar o Frank irreconhecível... Até já descasca os ovos, ao pequeno almoço!

       Rose estava no patamar, com as mãos cheias das suas coisas, a olhar para Joan, dois degraus mais abaixo. Esboçou o seu sorriso frio, perante a ideia da transformação de Frank, e depois colocou brutalmente diante da irmã o momento doloroso que ela procurava adiar:

- Agora conta-me.

-Vem primeiro ao meu quarto.

Rose estava estranha, diferente do que Joan supusera. Não precisava de ser poupada, não obstante os seus modos brandos e a sua voz suave e delicada. Olhava firmemente a irmã, a ouvi-la, e foi esta quem se deixou vencer pela emoção. Joan deitou a cabeça na almofada da cama onde estavam sentadas e chorou como ainda não chorara, nem mesmo sòzinha.

- Vai morrer... tem de morrer. Tenhwlhe dito e repetido que não a deixarei morrer, mas tenho de deixar... não podemos fazer nada!

Sentiu a mão macia de Rose afagá-la, devagarinho. No entanto, não havia ternura, não havia calor naquele afago. Qualquer pessoa desconhecida, de bom coração, a afagaria assim, se a visse chorar. Sentou-se, de súbito e puxou para trás o cabelo despenteado.

- Creio que estou fatigada...

- Sem dúvida que estás fatigada - concordou Rose. – Agora ajudar-te-ei. - O seu rosto estava sério e exprimia bondade, mas tinha os olhos secos, sem lágrimas. - Vamos?

Entraram no quarto da mãe e Rose dirigiu-se logo para a cama. Joan vestira a doente de lavado e escolhera-lhe um novo casaco de dormir, cor-de-rosa. Agora a mãe tinha muitos casacos de dormir bonitos, pois Joan dissera ousadamente a Mrs. Winters, a Miss Kinney e a Mrs. Parsons, quando lhe perguntaram se precisava de alguma coisa: Se querem, realmente, dar-lhe alguma    coisa, déem-lhe um bonito casaco de dormir. Ela adora coisas bonitas. Por isso as senhoras faziam-lhe belos casacos, de renda e seda, e Joan estendia-os diante dos olhos meio cegos da mãe e escolhiam, as duas, um para cada dia.  

- O novo, cor-de-rosa, para a Rose ver! - exclamara a mãe com uma alegria infantil.   

Conseguira afastar o sono um bocado -quase quinze minutos-, depois de vestida, e Joan tirara uma flor de sardinheira cor-de-rosa de um vaso, pusera-lha no cabelo branco e fora buscar um espelho. Colocara-lho à frente, mas alto, para que visse o belo cabelo cor de neve, a flor, a testa e os olhos, mas tivesse ocultos os lábios murchos e as faces devastadas.

- Estou mesmo bonita! - exclamara a mãe, contente, com as pálpebras a fechar-se.

- Está encantadora! - afirmara Joan, comovida.   

Mas o sono apoderara-se dela, enquanto esperava. Dormia profundamente, com a flor no cabelo, e as duas filhas observaram-na. Joan olhou para Rose, mas esta não disse nada. Olhava tranquilamente a cara da mãe e não dizia nada, aspirava o mau cheiro que se desprendia do corpo doente e não dizia nada. De súbito, a mãe abriu os olhos e brilhou neles uma expressão de reconhecimento, como uma luz a romper águas profundas e escuras.

- É a Rose...

- Sim, querida mãe. - Rose inclinou-se e beijou-a na testa.

- Estou toda embonecada. Roupa nova... a joan pôs-me uma flor no cabelo... - Adormeceu de novo e as filhas observaram-na em silêncio, enquanto dormia.

- O sono vai-lhe consumindo a vida - murnìurou Joan. -      Mas se não fosse assim teria dores, segundo diz o Dr. Crabbe. É melhor dormir do que sofrer. Sóé pena que o sono pareça levá-la para tão longe... já.   

Rose acenou com a cabeça e continuou calada. Joan não podia suportar aquele silêncio. Seria possível que a irmã não

chorasse, não gemesse, uOh, Joan, Joan!? Mas Rose não chorou nem gemeu.

- Precisas de ir tirar as coisas da mala - disse-lhe, por fim,

Joan. e Rose obedeceu, dòcilmente.

De novo sòzinha, Joan sentou-se na velha cadeira de balançoe balouçou-se devagar, para trás e para diante, enquanto a mãe dormia. Olhou para fora, para aquele fim de tarde invernosa, e viu apenas os ramos negros e nus das árvores, recortados no céu cor de laranja pálido, com uma faixa esverdeada. O sol já morrera e aquilo era o poente.

No fim de contas, continuavam as duas sozinhas, Joan e a mãe. Rose, apesar dos seus cuidados, da sua vontade de ajudar e da sua brandura, não se lhes podia reunir. Entrava e saía, trazia o que era preciso e poupava muitos trabalhos a Joan, mas era esta que tinha de dormir junto da mãe e de estar sempre perto dela.

Agora, no meio do sono, despertavam-na ondas de dor profunda, e a mãe gritava por Joan:

- joan... Joan... Onde está a Joan? Dor, Joan!

Esquecia todos os seus filhos, excepto Joan, e esquecia que esta era sua filha. Joan era a sua enfermeira, a sua mãe, a pessoa com quem contava. Agora até esquecia Francis. As vezes, quando o filho a ia ver, fitava nele os olhos pequenos e afundados no rosto inchado pelo veneno que a matava.

       -Quando o Frank era pequeno, fazia-lhe fatinhos encarnados - dizia, na sua voz rouca e alta.

- Sim, mãe - gritava Frank. - Lembro-me deles. Encarnados, com uma âncora nas mangas e estrelas na gola.

Mas ela não o ouvia.

-Onde está a Joan? Joan...

-Estou aqui, querida.

Tinha de estar sempre ali, sempre ali até ao fim.

.       - Agora temos de arranjar uma enfermeira diplomada, minha querida - disse-lhe, um dia, o Dr. Crabbe. - Não se trata de desfazer em nenhuma de vocês, minhas filhas, mas agora são precisas injecções diferentes e outras coisas.    .

Contrataram uma enfermeira, mas mesmo assim Joan tinhade estar sempre perto, perto da mãe e perto deles todos, enquanto esperavam. Agora a mãe quase nunca acordava, excepto quando o pai entrava no quarto. Por muito profundamente que dormisse, acordava quando ele entrava e gritava, inquieta, na sua voz rouca e seca:

- Quem é? Vai-te embora...   

- É Paul, Mary - respondia-lhe o marido, timidamente.

Todos a podíam olhar e suportar o que viam, mas ele nãopodia. Olhava para aquela criatura inchada e disforme e a fronte branca perlava-se-lhe de suor. Uma vez, encheu-se de coragem e pegou-lhe numa das mãos tumefactas, mas ela gritou e ele largou-a.       

- Vai-te embora, Paul - ordenou, abrindo de súbito os olhos e ele obedeceu-lhe, perplexo.

Porque o odiava? Fora um bom marido, estava, agora a serum bom marido... Foi para o gabinete e desvendou a sua alna a Deus, perdoando á mulher.

Jesus! -exclamou a enfermeira, e sorriu maliciosamente a Joan, enquanto metia uma botija de água quente na cama. - Vê-se bem que não havia muito amor entre os dois!

Mas Joan não lhe respondeu.       

Nenhum deles era capaz de pronunciar a palavra morte.

A morte estava em casa com eles, tinham de pensar nela e de fazer planos a seu respeito, mas não se atreviam a pronunciar o seu nome.

- Com que vestido a enterrarão? - perguntou, um dia, Hannah, parando de varrer e de gemer e olhando tristemente paraJoan. - Com o vestido cor de alfazema ou...

- Cala-te! - ordenou-lhe a rapariga, vivamente. - Ela ainda cá está.   

Subiu a escada, sem dizer mais nada. Morte má e cruel, que não vinha depressa e simplesmente! A morte devia chegar brusca e subitamente, pelo raio ou pela espada, pelo mar ou por acidente,    e não converter-se naquele morrer lento e planeado. O corpo devia ser consumido pela morte imediata, desfeito em átomos, reduzido a cinzas, destruído absoluta e completamente.

- Tenho de sair! - gritou Frank, desesperado e pálido. Tenho de me afastar daqui, não posso suportar esta... esta espera! Se tem de acontecer, porque não acontece? Detesto esperar...

Joan agarrou-lhe num braço e sacudiu-o.

- Suportarás o que nós todos tivermos de suportar! - gritou         furiosa. - Estou tão cansada que se me sento adormeço, mas devo aguentar e tu também...

Francis soltou-se, saiu de casa e bateu com a porta. Agora estava sempre ausente, não se sabia onde. Joan, ainda furiosa, foi para o quarto da mãe. Não estava preocupada com o irmão; sabia que se meteria em qualquer canto, mas que à noite voltaria.

Sentia-se tão fatigada que não se continha e se mostrava irritada com Rose - com a boa e condescendente Rose, sempre

disposta a tudo, cujas boas e brancas mãos eram tão desajeitadas que até deixavam cair uma simples agulha hipodérmica que lhe mandassem segurar. Depois ficava tão pesarosa que era quase impossível ralhar-lhe. Mas às vezes a fadiga de Joan era tanta que não se podia dominar e barafustava. Como podes ser tão estúpida, Rose? Estes desabafos, porém, não lhe causavam satisfação. Os suaves e superficiais olhos castanhos da irmã abriam-se um pouco máis, mas Rose não dizia nada. Em vez disso, na primeira oportunidade esgueirava-se para o seu quarto para rezar. Joan sabia.

Numa ocasião, arrependida do seu destempero, seguiu a irmã e abriu a porta. Rose estava de joelhos junto da cama, com a cara na curva do braço e os olhos fechados, e mexia, devagar, os lábios. Joan fechou bruscamente a porta. A irmã não precisava do seu arrependimento: tinha o seu conforto. Pouco depois voltou para junto dela, de olhar plácido e expressão tranquila.

       -Queres que encha a botija da água quente, Joan?

Joan sentiu vontade de lhe gritar: Porque me perguntas? Por que não a enches e pronto?, mas respondeu-lhe, docemente:

-Sim, Rose, por favor.

- As intenções dela são boas - observou a bem disposta enfermeira. - Mas há muitas pessoas cheias de boas intenções que, quando se trata de fazer alguma coisa, são umas desajeitadas. Tirou a botija das mãos de Rose, quando ela chegou. - Eu ponho-a, para não lhe queimar os pés. Ela agora já não os sente.

No fim, foi nessa mulher baixinha e de nariz arrebitado queJoan se apoiou. A enfermeira bateu-lhe no ombro, cordialmente, e disse-lhe:

- Se não tem calma, será a minha próxima paciente. Anime-se! Quando sabemos o que tem forçosamente de acontecer, não  temos outro remédio senão aceitá-lo.

Aquela bem-humorada desconhecida foi boa para todos. Sabia afastar o pai, sem o ferir, com uma habilidade invejável.

- Ouça, reverendo - dizia-lhe, compreensiva -, não é aquipreciso. Volte para as suas orações, para não nos atrapalhar.

A doente está a dormir e eu prometo avisá-lo, se precisarmos de si.

Enquanto a moribunda dormia, imaculada à espera da morte, segredou a Joan:

- No seu lugar, deixaria o jovem Frank dar uma volta; quando tudo isto acabasse: Deixe-o ir para qualquer parte, pois o rapaz está muito abalado. Ou isto ou qualquer outra coisa atingiu-o em cheio. Não o consigo compreender. A Rose é diferente, a essa nada a atingirá em cheio. Nem a ela, nem ao seu pai. Estão todos concentrados em si mesmos. Não compreendo, mas não é a primeira vez que vejo acontecer semelhante coisa. A religião é egoísta. quem é religioso não sente. Deixe o rapaz dar uma volta e não se preocupe com os outros dois; pense em si, também, por uns tempos. Não tem um namorado ou alguém que lhe proporcione um pouco de distracção? Isto aqui é um buraco dos demónios. Não pode ausentar-se para qualquer lado onde aconteçam coisas?      

Ausentar-se? Joan esquecera-se de que existiam outras terras, lugares aonde as pessoas podiam ir. Abanou a cabeça.

-Não sei. Terei de tomar conta do meu pai e dos outros.    

A enfermeira balouçou-se na cadeira, a pensar. Era a saúde naquele antro de doença, tornava o ar fétido respirável e vivo, como se um vento limpo varresse o quarto. Joan estava-lhe grata.    

Sabia bem poder contar com alguém que possuía aquela franqueza, aquela simplicidade, aquela compreensão bem disposta.       

A mãe gemeu e mexeu-se, no sono profundo em que estava mergulhada. A dor voltava. A enfermeira levantou-se e, num segundo, espetou a agulha no braço inchado.

- Pronto, queridinha - murmurou alegremente. - Sabe sempre qual é o minuto exacto, não sabe?

Ao observar aquela figura compacta e forte que se movia perto da cama, com competência e brandura, Joan teve consciência da vida que existia para além daquele quarto. Aquela mulher ia de morte em morte, sempre activa, sempre acompanhada pela sua atmosfera pessoal de vida exterior, simples e azafamada. A naturalidade do seu procedimento bastava para que colocasse a morte no lugar que lhe competia e a tornasse parte da vida. Perante a sua alegre trivialidade, o desespero fundia-se. Para além daquele quarto saturado de dor e desgosto, para além daquela hora, havia uma vida forte, de todos os dias, uma vida que, esquecendo a morte, seguia alegremente a senda do trabalho e do prazer. Devia ter coragem para enfrentar a morte, olhando para além dela. Mas no fim não foi corajosa. Nem ela, nem o Frank. A Rose e o pai foram-no, contudo. Estavam todos no rés-do-chão, à espera. A enfermeira avisara-os, durante todo o dia: Agora será de um momento para o outro. Não venham; eu posso tratar do que for preciso. .

Abandonou o ar brincalhão e o sorriso pronto. Por aquele dia. Era uma pessoa calma, serena e nsensível; por isso, voltaram-se para ela. O Dr. Crabbe entrava e saía, enfiava furiosa mente o chapéu na cabeça e acenava-lhes, mudo. - Não posso fazer nada - resmungou, por fim. - Arranjei as coisas de maneira que ela não saberá. A enfermeira tratará de tudo. dir-lhes-á.

Por isso esperavam, atentos. Mas não podiam esperar juntos. quando estavam juntos a espera tornava-se intolerável. Tinham de se separar para a suportar, cada um sabendo que os outros estàvam perto, mas não tanto que se pudessem ver. O pai fechou-se no gabinete, sòzinho. à escuta, de cabeça baixa e mãos abandonadas nos joelhos. Francis enroscou-se na grande e velha poltrona encarnada, na sala de estar, com um livro na mão. Virara a poltrona para a janela e o espaldar alto ocultava-o todo, com excepção do topo da cabeça morena. Rose estava tranquilamente sentada à secretária da mãe, a escrever num pequeno diário. Escrevia com firmeza, na sua letra pequena, clara e cerrada, e parava de vez em quando para pensar ou para escutar.

Mas Joan saíra para o jardim. Faltavam dois dias para o Natal. O ar estava quente, sem vento, mas o jardim morria.      

estava morto. Andava de um lado para o outro, ao sol, atenta e à espera, com os passos a perturbar as folhas caídas. Tinham-se esquecido de as recolher. Nos outros anos era sempre a mãe quem dizia: Ésta semana temos de apanhar as folhas velhas.

Mas naquele ano ninguém as apanhara.     

O jardim estava cheio da mãe. Ali estavam os lírios amarelos que ela plantara, havia anos, com um único bolbo. Agora formavam úm grande maciço, que não morria. Na Primavera rebentariam de novo, vigorosos e cheios de flores. Era estranho e triste que sòmente as pessoas vivessem apenas uma vez, que sòmente os corpos humanos tivessem de morrer e desfazer-se em pó, após uma única Primavera! Havia um segredo naqueles bolbos fortes e bem enraizados, que viviam inúmeras vidas e floriam todos os anos. Um pássaro surpreendido pelo fim da tarde piou, no ar    sereno, e, ao ouvi-lo, Joan ouviu também o cantar monótono do do último Outono, que despertava, sonolento, ao calor do sol de Inverno.

Depois a voz que todos esperavam soou, a enfermeira chamou-os, com energia:  

- Ela agora está pronta para partir...    

Os pés de Joan correram para a levar a sua mãe, correramguiados pelo hábito de todos aqueles meses. Mas o seu coração estava assustado e gritava: Não, não! Não quero ver! Ao passar, a correr, pela porta da casa de jantar, ouviu Rose chamar o irmão:      

-Não vens, Francis?      

E Francis respondeu, em voz trémula, a chorar: - Não posso, meu Deus, não posso! - e começou a soluçar.      

Mas Joan continuou a correr. A porta encontrou-se com o pai

e Rose, que a ultrapassaram e entraram juntos. Segui-los-ia. Segui-los-ia, evidentemente... Encostou-se á ombreira da porta, a ofegar.

Segui-los-ia num instante. Naquele momento, havia qualquer coisa que a cegava. Não, não eram lágrimas; não estava a chorar. Sentia a garganta seca, os olhos enevoados, o coração a bater-lhe, como doido, em todo o corpo. Tinha medo. Voltou-se, cega, para a janela e ficou a olhar para a igreja. Acalmar-se-ia, tinha de se acalmar...

Depois entraria. As pessoas iam enfeitar a igreja para o Natal.

Estavam lá todas, carregadas de verdura para fazer coroas. O órgão começou a tocar. Ela ouvia-o, ouvia os acordes enormes, profundos, a sair em catadupas dos tubos. Alegria para o mundo, gritava o órgão. Alegria! Estranha e singular palavra, palavra sem significado, falsa e mentirosa!

- Partiu - murmurou a voz de Rose. - Oh, Joan, porque não entraste?

Joan voltou-se e olhou para a irmã. Havia lágrimas nos olhos de Rose e censura na sua voz, mas Joan não chorou. Não, naquele momento não chorou. Foi alívio que sentiu, numa onda que a percorreu toda. Agora não precisava de entrar, pois o momento passara.

- Porque não entraste? - repetíu Rose, e acrescentou, depois de limpar delicadamente os olhos: - Não acordou. Dormiu até ao último segundo, sorriu e suspirou. Mais nada. Devias tê-la visto sorrir, Joan.

Mas Joan gritou, apaixonadamente:

- Ainda bem que não vi!

Correu para o seu quarto, atirou-se para cima da cama e gritou, muitas vezes, com o rosto afundado na almofada:

- Não a quero ver morta! Não a quero ver morta!

Mas não a deixaram fazer a sua vontade. Num instante, apoderaram-se da casa onde a mãe vivera tanto tempo. As mulheres vieram de todos os cantos da aldeia, encheram a casa, cordiais, bondosas, ávidas de curiosidade, e a casa teve de lhes dar todos os seus segredos. Mrs. Winters, num roçagante e velho vestido de tafetá preto, afastou-os firmemente, reuniu-os e disse-lhes, com autoridade:

-Agora vão-se todos embora; nós trataremos do que for necessário. Mr. Blum está á espera. A Obra das Senhoras encarregar-se-á das flores e de tudo.        

Atrás dela, Mr. Blum, baixo, gordo e todo de preto, declarou, esforçando-se por não parecer galhofeiro:

- Claro, amigos, nós trataremos de tudo. É o nosso trabalho.

compreendem? Sempre tenho dito que pode ser um trabalho morto, mas... - Calou-se e tossiu, ao lembrar-se de que estava na presença da familia enlutada.        

Assim, voltaram a estar todos juntos. na sala. Não tinham outro lado para onde ir, excepto aquela sala que lhes fora destinada. A casa não era sua, até no gabinete do pai havia casacos e chapéus de mulher, empilhados em cima da secretária. Hannah chorava e afadigava-se, na cozinha, a fazer café para todos. Pela porta aberta entravam coroas e ramos de flores e, de súbito, a sombra de uma grande caixa preta.

- Cuidado, rapazes - recomendou o vozeirão de Mr. Blum.

-Cuidado com as esquinas!   

Francis, de pé junto da janela, virou-se, a morder as unhas.

saiu e bateu com a porta. Atravessou a cozinha na direcção do quintal e meteu pela rua que seguia para sul.    

Rose sentara-se de novo à secretária, com o diário aberto à sua frente. Recomeçou a escrever, a chorar em silêncio. Registava a história da morte da mãe. Enxugou cuidadosamente as palavras, com o mata-borrão, e disse a Joan:      

- Gostava que tivesses visto o seu sorriso, no fim...    

O pai ocupava a poltrona de couro, envolto no roupão de   cetim acolchoado, cor de ameixa. O sol do fim da tarde batia-lhe no rosto e envelhecia-o.     

Joan estava sentada num banco, defronte da lareira que Hannah acendera, e fitava as chamas. Estendeu as mãos para o calor, pois tinha frio. Lá em cima, cuidavam do corpo de que ela cuidara durante tanto tempo. Mas os seus cuidados não tinham chegado, a sua luta não conseguira deter a morte. Lavavam a carne que, graças aos cuidados que lhe dedicara, se transformara na sua própria carne. No fim, estava nas mãos de estranhos.    

A voz melancólica do pai interrompeu a sua angústia, dolorosamente surpreendida: -Creio que sou o primeiro de toda a minha família a ficar viúvo, Joan.

- Sim, pai? - Uma chamazinha azul irrompeu de um dos toros e subiu, esguia e direita como um punhal.

-Sim - confirmou, no mesmo tom de triste surpresa. O John era mais novo do que a mulher, Annie, e morreu antes dela, o Isaac nunca recuperou a saúde, depois da guerra, e morreu como consequência de antigos ferimentos, e o David morreu de febre tifóide. O Frederick ainda vive...

       - Meus queridos - chamou Mrs. Winters, da porta -, venham vê-la! Está tão bonita! Venham, nunca a vi tão bonita, com uma expressão tão doce... - Sem saberem como, reuniu-os outra vez. - Onde está o Francis? Oh, virá atrasado! Queremos acabar com toda esta tristeza antes do Natal... Creio que ele podia ter ficado com a família nesta hora derradeira... Desejava que tivesse escutado...

Entretanto, empurrava-os para cima. Rose, Joan e o pai. O sacerdote tropeçou e Mrs. Winters agarrou-lhe firmemente num cotovelo e guiou-o.

- Então, doutor? Não me admiro que sofra. mas o Senhor dá

e tira. Joan, vestimos-lhe o casaco de dormir cor de orquídea e uma... Foi difícil de vestir, como calculas... Bem, o que importa é que está bonita, com o encantador cabelo todo branco e ainda encaracolado. Mr. Blum retocou-a apenas um bocadinho. .

       - Não posso - murmurou Joan, sufocada.

-Oh, querida. ela está tão agradável à vista! E é a tua própria mãe. Lamentarás sempre...

Entrou no quarto, empurrada. mas o quarto já não era o mesmo, estava cheio de estranhos. Mr. Blum limpava as mãos a uma toalha de linho.

       -Quero perguntar uma coisa que pergunto sempre à família - murmurou, em voz rouca e desagradável. - Devemos tirar a aliança de casamento?

Contra vontade, os olhos de Joan procuraram-na. aterrorizados, e encontraram uma boneca alta e hirta, deitada numa grande caixa, vestida e pintada para dar a ilusão de vida. As mãos fortes e bonitas estavam cruzadas no peito e a aliança de casamento brilhava-lhe no dedo. Nos últimos dias não lha poderiam ter tirado, mesmo que quisessem, mas agora o monstruoso inchaço desaparecera misteriosamente. A mãe voltara a ser ela mesma, mas ela mesma morta, com as mãos em cruz no peito, como só se cruzam as mãos dos mortos.  

- Deixem-na em paz! - O grito irrompeu-lhe do peito e, para seu horror, desatou a chorar, num soluçar alto e infantil, diante de todos aqueles estranhos.      

Foi assim que perdeu o corpo da mãe. Arrebataram-lho mal morreu, deixou de ser dos seus filhos. Pertencia aos outros. Até no funeral, a mãe foi pertença de outros. Joan só a recuperou por um instante, no momento em que falou pela mãe. Ao fazê- lo, recuperou-a. A igreja, disseram-lhes, perturbadas, as senhoras, estava decorada para o Natal. As grinaldas de pinheiro e de azevinho e uma estrela de prata eram para o Natal. Amavam-na todas e queriam que tudo fosse feito como devia ser pela querida esposa do seu pastor, mas as grinaldas eram pesadas e tão difíceis de pôr e tirár!. .

- Deixem tudo como está! - gritou Joan às mulheres da Obra das Senhoras, reunidas na sala, cheias de inquietação e de bondade.      

- Não queremos dar a impressão de falta de respeito - afirmaram, solenes.        

Joan abriu os braços e gritou-lhes, de novo:       

-Esqueceram como ela amava o Natal? Na manhã do dia de Natal, corria à igreja antes do pequeno almoço. para admirar as decorações. Para ela, a igreja nunca era tão bonita como na manhã de Natal. Embora passasse dias a confeccionar as grinaldas e fosse ela própria quem pendurasse a estrela e admirasse tudo, na véspera à noite, de manhãzinha dava uma saltada, sòzínha, à igreja. Não gostaria que tirassem as grinaldas por sua causa, e muito menos a estrela.

Ainda duvidosas, tinham deixado ficar as grinaldas verdes e a grande estrela prateada, a brilhar na capela-mor, por cima do caixão.

Mas tudo pareceu estranho e errado. Era estranho o pai estar

sentado com eles, no banco, em vez de a mãe. Ele estava ali deslocado, enquanto o ministro metodista, baixo e atarracado, se erguia no púlpito e elogiava a morta.

Sentia-se espoliado e constrangido. Ao ouvir aqueles elogios até a memória da mulher se tornava irreal. Uma esposa boa e

fiel; dizia uma voz desconhecida, uma luz brilhante na comunidade, uma amiga de todos nós. Sentiremos a sua falta. Parecia indecente ouvir comentar assim, pùblicamente, a sua mulher. O reverendo encolheu-se dentro de si mesmo. Mary. O seu espírito estava cheio de Mary. Mary a lidar pela casa, no seu passo apressado, Mary à mesa, a cuidar de todos eles, Mary... Singularmente, não se recordava bem da sua cara. Nunca tivera boa memória para rostos. Sabia que os seus olhos tinham sido castanhos. Lembrava-se disso porque, quando à noite estavam sozinhos e ela se metia na cama primeiro do que ele, o que sempre sucedia, visto Mary ser muito desembaraçada, fitava-o, deitada. com os olhos escuros e serenos, e esse olhar incomodava-o, embora não soubesse porquê. Era tão estranha, quando estavam sós os dois! Ele quería a luz apagada, porque a estranhava menos quando não a via. O seu corpo quente e presente era-lhe familiar, mas com a vela acesa os seus olhos escuros e parados tornavam-na de novo estranha.

Tinham discutido por causa de a vela ficar acesa de noite. Deixa-me acender z vela, Paul. Preciso de luz. a escuridão deprime-me.

Mas ele não respondia, abraçava-a e apressava-se. Não era apenas por os olhos dela serem escuros e estranhos; a luz envergonhava-o do que queria fazer. De dia discutia o assunto consigo mesmo, no seu gabinete, enquanto preparava o sermão, com a Bíblia aberta à sua frente. Porque se envergonhava, se a sua união era legal? Porque quereria esconder-se na escuridão? Mas se ela vencia, e às vezes assim acontecia, o desejo abandonava-o e sentia-se magoado e impotente. Não compreendia porquê, pois parecia-lhe vergonhoso exprimir semelhantes coisas por palavras.

- Por isso o Senhor deu o sono à Sua querida filha...

declarou a voz do púlpito, com emoção.      

Mas a sua mãe não quisera dormir, gritou apaixonadamente o

coração de Joan. Queria estar acordada, viver, correr, trabalhar e rir. Nem sequer à noite gostava de dormir! Levantava-se todas as manhãs muito cedo, desejosa de estar acordada. Não pedia nada, só desejava não ter de dormir. Mas Deus só lhe dera sono.

Estavam todos perdidos naquela força, impotentes no oceano revolto e irracional da força de Deus. Lágrimas furiosas encheram os olhos de Joan. Olhou para a sua família e reuniu-a toda no seu coração.  

O pai, Rose, Francis. Todos eles a enterneciam assim tristes e abandonados. Deus roubara-os. O pai estava muito pálido. até os seus lábios se tinham tornado, de súbito, lívidos e secos. Não escutava, abrira o livro dos hinos e lia um salmo, no fim. Rose, a bonita Rose, a sua irmãzinha, estava imóvel, de mãos unidas, e de vez em quando humedecia os lábios. E Francis. . o Francis fora o amor da mãe. Joan era, agora, responsável por ele e por tudo quanto ele fizesse. O irmão tinha o rosto congestionado, devido ao esforço que fazia para não chorar, e era o único dos três que olhava, rígido para o que se encontrava debaixo da estrela de Natal.

Afinal a sua mãe morrera. Agora já não precisava de lhedizer. Jamais. Nunca chegaria aquele momento em que entraria em casa, veria o seu rosto e compreenderia que ela sabia. Ela percebia tudo quanto se passava com ele, percebia-o pela vista, pelo olfacto e pelo tacto. E Francis sabia quando ela sabia. Desesperava-o, amava-a e odiava-a ao mesmo tempo por lhe ser tão íntima, por estar tão unida a si. Por vezes rebelara-se contra essa intimidade e quisera libertar-se dela, arrancar-se ao seu domínio, embora contra a sua vontade queria obedecer-lhe porque desejava dar-lhe prazer, mas sentia-se impelido a desobedecer-lhe porque a sentia demasiádo chegada a si e a amava mais do que queria.

Agora que ela partira, metade de si mesmo morrera, também.

Queria que voltasse. queria-a de novo chegada a si. Nele não

havia, na realidade, ninguém, excepto ela, a mãe. Assim que aquele maldito pregador se calasse, iria procurar Fanny.

Não. não podia ir procurar Fanny no próprio dia do funeral da mãe. Isso seria pior do que quanto fizera até ali, pior do que procurar Fanny quando a mãe estava a morrer. Mas Fanny era a única pessoa que lhe permitia esquecer. Tremia todo, com necessidade de chorar, e Fanny era a única pessoa diante da qual o podia fazer sem se sentir envergonhado. Quando apoiara a cabeça no seu peito e gritara: Fanny, ela vai morrer!, Fanny apertara-o nos braços e murmurara, docemente: Chora, querido, chora e desabafa. Chora, chora, querido rapaz. Não é vergonha chorares na minha frente... Agora Frank tremia, com necessidade de chorar outra vez.

Joan viu-o torcer as mãos húmidas e trémulas e agarrou-lhe num braço, ternamente. Teria de tomar conta de todos eles, do pai, da Rose e do Frank. Eram todos seus, agora. Cuidaria deles, defendê-los-ia, confortá-los-ia. amá-los-ia, protegê-los-ia contra tudo: Até contra Deus!

As outras pessoas levantaram-se e Joan levantou-se, também.

O órgão tocava, docemente: Para todos os santos que descansam dos seus trabalhos... Não significáva nada para si que Martin estivesse a tocar. nada que as pessoas cantassem suave e tristemente a acompanhar a música. Continuaria a vida da sua mãe, não descansaria nunca. Continuaria a percorrer a mesma senda laboriosa que a mãe percorrera, trabalharia, trabalharia, faria com que a vida da mãe prosseguisse.

- Adeus, Joan - segredou-lhe a enfermeira, quando o cântico terminou num ámen. - Tenho de apanhar o comboio, para ir tratar de outro doente. Quase não tive tempo de assistir ao funeral, mas quando posso gosto sempre de assistir, sobretudo quando me afeiçoo ao doente, como neste caso. Hoje estou com sorte... Recebi um telegrama, esta manhã, a chamar-me para a cabeceira de um artrítico. São doenças que se costumam prolongar... Não esqueça o que lhe disse e procure divertir-se um bocadinho. A sua mãe devia ser uma pessoa formidável e eu lamento que tivesse morrido, mas. agora não fique de braços cruzados, a lamentá-la.

- Terei muito que fazer - respondeu-lhe Joan, com firmeza.        

Agarrou a mão grossa e forte da enfermeira e apertou-a ummomento, cheia de gratidão. Era algo a que se podia agarrar, momentâneamente. Mas a mão abandonou a sua, quase no mesmo instante, e a cara redonda, vermelha e cordial desapareceu no mar de caras que se reuniam à volta de Joan. O contacto áspero daquela mão amiga perdeu-se no contacto suáve de muitas outras mãos. Querida Joan, deixa-nos fazer o que pudermos... sentiremos todos muito a sua falta, reverendo... Francis, meu rapaz, o Ned manda dizer que te vai buscar de manhãzinha, para irem dar uma volta, se te apetecer. Disse-lhe que não sabia se seria acertado...       

Joan sentiu na cara o hálito quente de Mr. Billipgs, e ouviu-o murmurar, de modo sibilante, ao seu ouvido:     

-A sua mãe era uma verdadeira senhora. Nunca desfazia nas coisas, comprasse ou não comprasse, não estava sempre aprotestar, como algumas que conheço... Mandarei a carne como dantes, o melhor lombo de borrego que tiver... Ainda hoje disse à Mollie que, este Natal, não queriam, com certeza, peru.

Havia lágrimas nos olhinhos pretos, lágrimas que brilharamnas montanhas inescaláveis das suas bochechas e depois deslizaram, rentes às orelhas. O coração de Joan voou para ele.   

- Obrigada! Obrigada, sobretudo, pelos seus sentimentos - agradeceu-lhe e, pela primeira vez, sentiu-se um pouco confortada.

Habituada a saltar muitas vezes do divã, todas as noites, pareceu-lhe estranho encontrar-se de novo na sua cama e no seu quarto, sossegadamente. Tão estranho que durante muito tempo não conseguiu adormecer. Quando, por fim, os olhos se lhe fecharam, foi por pouco tempo. Acordou de repente, de pé na escuridão da noite, a tactear à procura da cama da mãe.        

- Estou aqui... estou aqui... - ouviu-se murmurar.

Mas a sua mão não encontrou nada e Joan acordou e lembrou-se, de súbito, do que sucedera. Tinham enterrado a mãe no cemitério, do outro lado da igreja, longe de casa. A mãe jazia agora na absoluta e cerrada escuridão da terra, a dormir para sempre.

Por instantes, foi como se estivesse, também, na caixa estreita em que a tinham enterrado. Viu o rosto triste, intensamente adormecido, e levou as mãos ao peito. A mãe ainda não devia ter mudado. Tinha de arranjar maneira de a tirar de lá, de a trazer de novo para o ar, para a vida!

De súbito, ouviu tossir no quarto ao lado, no quarto da mãe.

O pai estava lá, voltara logo para lá, naquela noite. Metera-se na mesma cama onde se habituara a dormir e onde, agora, dormia sòzinho. Joan escutou. Estava acordado. Ouviu-o tossir de novo e sentiu por ele uma compaixão diferente, esqueceu que estivera furiosa com ele. Estava sòzinho. também, e ela devia fazer-lhe companhia. Abriu a porta de mansinho, uma greta apenas, e viu-o deitado na cama, com a vela acesa na mesa-de-cabeceira, os cobertores presos debaixo dos braços e as mãos grandes e magras entrelaçadas no peito. Olhava fixamente, em frente, mas Joan não teve a certeza de que não dormisse. Abrira as janelas de par em par e, agitada pela corrente de ar, a chama da vela punha-lhe sombras irrequietas na cara.

- Pai - chamou Joan, docemente, quase a medo.

Ele voltou a cabeça e olhou-a, como se estivesse muito longe.

       - Que é?

- Ouvi-o tossir. . , Precisa de alguma coisa?

       O pai hesitou, antes de responder, serenamente:

- Não, não preciso.

Joan esperou, mas ele não disse mais nada e ela acabou por fechar a porta e regressar ao quarto. A sua compaixão mantinha-se, mas agora tornara-se fria.

Não admirava, pois Joan sentia-se toda fria. Tinha o corpo e os pés frios. O ar arrefecera muito, e ela encolheu-se na cama, súbitamente gelada até aos ossos. A piedade que experimentara pelo pai experimentou-a por si mesma, e por si mesma chorou, chorou, até o sono se compadecer dela.

Mas foi bom chorar, de noite. Acordou de madrugada, numa quietude de esgotamento, exausta e consciente de que, por uns tempos, chorara quanto tinha a chorar. Levantou-se muito calma apaziguada, já sem experimentar a necessidade imperiosa de chegar a tempo, vestiu-se e desceu.        

- Bons dias, Hannah - cumprimentou a criada, docemente.

Hannah estava atrasada e não se arranjara. Não se penteara

e andava pela casa devagar, com olhos de quem chorara muito e ostensiva expressão de dor.  

-Tentemos tornar tudo o mais alegre possível, esta manhã, annah - propôs Joan. - A mãe quereria que o fizéssemos.   

Foi buscar uma toalha lavada e pô-la na mesa, e entre as muitas flores que havia em casa escolheu umas rosas vermelhas que Miss Kinney oferecera. Comprei-as, dissera Miss Kinney, num murmúrio dorido, sem enxugar as lágrimas que lhe deslizavam pela cara pequena e envelhecida. Mas Mr. Blum não se mostrara disposto a usar flores que não fossem brancas.      

Joan pôs as rosas vermelhas na mesa. O sol, despreocupado e bonito; entrava pelas janelas, como sempre, e comunicava a sua alegria à sala. Joan preparou tudo com esmero, para todos eles, empenhada em afastar a tristeza. Nem sequer os lábios trémulos de Hannah conseguiam, já, trazer lágrimas aos seus olhos. Esperou que a criada enxugasse o pranto ao avental e escutou-a com atenção, quando ela lhe perguntou:

- Deseja que passe revista às coisas da sua mãe e as arrume?

Lembrou-se, então, do que procurara esquecer. Sim, havia as

coisas que tínham pertencido à mãe, os seus vestidos... - A Rose e eu trataremos disso...

Não o podia esquecer, agora que Hannah falara; mas também   não podia suportar a ideia de que teria de se encarregar dessa tarefa. Adiá-la-ia uns dias. Por enquanto, ainda era agradável ter em casa o que fora da desaparecida. Deixaria ficar tudo nos cabides enas gavetas, queria conservar as coisas o mais possível como a mãe deixara: Agarrava-se com desespero a tudo quanto restava dela. Um por um, desceram todos para tomar o pequeno almoço.  

Rose, Francis e o pai, este cuidadosamente vestido, pois era o dia das suas visitas pastorais e nem sequer lhe passara pela cabeça adiar o cumprimento dos seus deveres. Joan ocupou, sem hesitar, o lugar da mãe. Serviu-os em silêncio, e eles aceitaram em silêncio o que Lhes serviu.

No dia seguinte, abriu, com a irmã, as gavetas da cômoda da mãe. Abriram os armários e retiraram tudo quanto lhe pertencera. Pouco havia, além dos bonitos casacos de dormir: os seus poucos vestidos de trazer por casa. O fato castanho, o melhor vestido, de seda escura, acastanhada, o casaco preto. de Inverno. Já muito usado, e o chapéu de veludo castanho, que ela própria fizera. Mas como todas as peças de vestuário tinham muito uso, como lhas tinham visto usar tantas vezes, eram ainda parte dela.

Havia as luvas, também muito usadas e que conservavam a forma das suas mãos, e os sapatos, remendados nos saltos e com uma ou outra pequena passagem. O velho Mr. Pegler, o sapateiro, costumava consertar-lhos de graça. Não ia à igreja porque, dizia, era partidário de Ingersoll. Mas consertava-lhe os sapatos que ela lhe levava e não aceitava dinheiro. Note, . salientava, sempre, com os óculos puxados para a cabeça calva, não o faço por o seu marido ser o reverendo e, sim, porque quero. E a mãe, como era orgulhosa, levava-lhe de vez em quando um bolo, pois a mulher do sapateiro morrera havia muito tempo e ele governava-se sòzinho. Adorava os bolos de chocolate e os deliciosos papos-de-anjo com que o obsequiava. e dizia-lhe. com as bochechas carnudas todas engelhadas num sorriso: Sou capaz de fazer tudo menos os doces. Para os doces é preciso uma mulher.

Ao escolher os sapatos, Joan reconheceu, de súbito, alguns pares seus, sapatos que pusera de parte porque já não estavam em condições de ser usados - ou assim julgara. pelo menos. A mãe não dissera nada. Levara-os a Mr. Pegler. que lhos consertara, e usara-os, para poder juntar mais umas moedas ao dinheiro economizado em segredo. Doeu-lhe o coração ao ver o que a mãe fizera sem que nenhum deles reparasse. Começou a convencer-se de que, afinal, nenhum a compreendera. Tinham-se limitado todos a receber, cada um aceitara dela aquilo de que precisava para a sua vida, sem ver que ela também precisava que lhe dessem qualquer coisa, para si. Agora, porém, era tarde...

Ao olhar para todas aquelas coisas, Joan perguntou à irmã.      

em voz baixa - Que vamos fazer disto? Chego a pensar que, se enterrámos o seu corpo, devíamos também ter enterrado as suas coisas.       

Rose, que estava ajoelhada junto de uma gaveta. levantou a cabeça e respondeu no seu tom prático:

-Podíamos dá-las à missão de South End. Seriam lá muito úteis as coisas que ela fez e usou, andariam no corpo daquela escumalha.      

Agarrou num monte de vestidos, em todos quantos os seus braços puderam conter, e acrescentou:   

-Por agora, vou guardá-los naquela arca de tampa abaulada, no sótão, onde ela guardava as coisas de quando éramos pequenos. Haverá espaço para isto. É tão pouco.   

Subiu a escada do sótão, à engolir lágrimas e a sobraçar apreciosa carga. Oh, mãe, mãe. mãe!, gritava o seu coração. Da roupa desprendia-se o cheiro da desaparecida. Não se tratava de   perfume, que nunca o usara; era o odor do corpo da sua mãe.

Como fora outrora, um odor a carne limpa e saudável. Conhecia-o, recordava-o. Quando era pequena e se sentava no seu colo aconchegada nos seus braços, respirava aquele cheiro leve e especial. Gostava dele, pois aumentava o conforto do abraço. Uma vez, era ela muito pequena, a mãe ausentara-se um dia inteiro e deixara-a com Hannah. em intolerável solidão. Lembrava-se de que fora ao guarda-vestidos, o abrira e afundara o rosto na roupa da mãe. O odor era o mesmo e confortara-a.    

Confortava-a agora, também, recordava-lhe a saúde da mãe e o seu antigo vigor. Esqueceu o cheiro a morte do seu leito de doente e recordou-a como ela fora, a sua fronte ampla e lisa, os seus grandes e francos olhos escuros, o bronzeado do rosto misturado com o rosado das faces... Parou à entrada do sótão, a recordar... a recordar e a sorrir, enquanto recordava.   

De súbito, viu que a arca de tampa abaulada estava aberta.

Aproximou-se e deparou com as roupinhas de bebé desarrumadas no tabuleiro, numa confusão de peúgas, botinhas e casaquinhos de malha, de bebé. Compreendeu, acto contínuo. Fora ali que a mãe guardara o dinheiro amealhado, e fora dali que o pai o levara. Mas agora já não tinha importância. Isso acabara, também. Sentia-se grata, apenas; por a mãe não chegar a saber, por o sono a não ter deixado ouvir os passos do marido, apressados pela escada do sótão acima. Joan colocou os vestidos numa cadeira, tirou o tabuleiro da arca, pô-lo no chão, ajoelhou-se e começou a arrumar tudo. Umas botinhas do Francis e um casaco encarnado, também dele: Lembrava-se de lho ver, porque fora a mãe que o fizera e gostara de lho vestir. Pegou-lhe para o dobrar e viu um sobrescrito com o seu nome, escrito pelo punho da mãe.

Joan Richards. O seu nome e a letra da mãe. Era como se lhe ouvisse a voz. Rasgou o sobrescrito, com o coração a bater muito depressa.

Querida Joan, minha adorada filha. Era próprio da mãe começar assim, um pouco formalmente, e depois continuar com todo o calor e toda a ternura do seu coração.

Dirijo-te esta carta porque és a mais velha. Tenho-me preocupado tanto por saber que é difícil iniciar a vida de mãos vazias e, porque o sei, comecei, há alguns anos, a pôr de parte tudo quanto conseguia poupar do dinheiro da casa. Há sempre maneira de economizar, quando se deseja muito uma coisa. Tem sido uma aleg8ria para mim fazê-lo. Hoje formaste-te e senti-me tentada a pegar neste dinheiro - já são quase cem dólares - e gastar algum numa bonita prenda para ti. Um relógio! sempre achei bonito uma senhora ter um relógio de ouro, talvez porque sempre desejei um. Mas sinto-me cansada, sinto que irei morrerei cedo e não deixarei nada aos meus queridos filhos. Direi ao teu pai que é para vocês.

Mãe.

A mãe falou-lhe, assim, mas tarde de mais. Dobrou a carta guardou-a no vestido e continuou a arrumar a arca. Oculta no seio, a carta magoava-a. Rose chegou, de braços cheios, e disse- lhe:     

- Creio que não há mais nada. Arrumamos tudo no fundo da arca?

-Sim. Dobra os vestidos e arruma- os.  

Não falaria a Rose nem a Frank na carta. Não compreenderiam. Talvez o Frank odiasse o pai pelo que fizera, e eles não se deviam odiar. Nenhum deles devia odiar qualquer dos outros. Joan compreendia e arranjaria maneira de ajudar os irmãos, se alguma vez fosse preciso. Arranjaria maneira...

Levantou-se, arrumou os vestidos da mãe na arca e depois tapou-a e fechou-a à chave, depressa. A sua infância e a dos irmãos, a vida da mãe, estavam ali fechadas, agora, para sempre.

Atravessou-lhe o pensamento a ideia de que não se encontrava ali nada do pai; ele levara o que quisera e não deixara ficar nada seu.

O pai não possuía nada que pertencesse ali, que ficasse ali bem com os vestidos da mãe e as roupinhas que tinham vestido em crianças. Voltou-se e sorriu a Rose, embora a carta lhe alanceasse o coração de dor.

- Acabou tudo para ela, não acabou? - murmurou. - Agora vamos arrumar as coisas dele nos armários e nas gavetas.     

Sentava-se todos os dias no lugar da mãe, às refeições. Sem dar por isso, começou, até, a      empregar as palavras e os modos da mãe, a fazer tudo quanto ela costumava fazer. Cuidava da casa como a mãe cuidara, e nem sequer lhe passou pela cabeça tirar os quadros de que não gostava. Estava tão fundida na mãe que a casa e a família tornaram-se a sua casa e a sua familia. Pensava neles possessivamente, ciosa do bem de cada um. Não tinha vida própria.  

O pai dava-lhe semanalmente a pequena quantia que dera àmulher. e Joan governava-a com mil cautelas, para conseguir     que chegasse para comerem e se vestirem. Uma noite, deitada na cama e com o quarto banhado da luz fria da Lua, planeou fazer mais do que isso: pouparia ainda mais, para conseguir refazer, moeda a moeda, as economias que o pai levara. Fá-lo-ia pela mãe.       

Saltuu da cama, sentou-se à escrivaninha e escreveu á mãe em resposta á carta que encontrara na arca:

Mãe, não sei se o vou conseguir ou não, mas vou continuar a fazer o mealheiro. Se a Rose ou o Frank precisarem, tê-lo-ão.

Voltou para a cama a pensar na melhor maneira de reduzir as despesas, de cortar uns cêntimos na carne e na manteiga. O pai não daria por isso. No dia seguínte, guardou as duas cartas numa caixinha onde a mãe guardara os lenços, uma pequena caixa de sândalo que alguém lhe trouxera de Itália. Para começar, tirou vinte e cinco cêntimos do dinheiro da casa. Arranjaria maneira de os poupar durante a semana.

Pouco a pouco, umas semanas apenas um cêntimo e outras um dólar inteirinho, o pé-de-meia foi crescendo, na caixa de sândalo, ao lado da sua carta e da da mãe. Guardava a caixa no sótão, no tabuleiro da arca. O pai não voltaria a ir lá procurar, convencido de que levara tudo. O conhecimento daquele pequeno pecúlio, que crescia semana a semana, tornou-se um secreto con forto para ela, como fora um secreto conforto para a mãe.

Mas não era fácil ser a mãe. Faltavam-lhe os anos que a mãe levara a aperfeiçoar-se, a temperar u carácter e a adquirir paciência. Joan sentia-se impaciente e ávida por ser útil, a sua força jovem e ilimitada queria fazer pelos familiares mais do que eles desejavam que fizesse. Úma vez, arrumou as gavetas do irmão e ele ficou furioso.

       -Agradeço-te que deixes as minhas coisas em paz.

Sentiu-se magoada, tão magoada que se surpreendeu. Francis nunca se importara, quando a mãe lhe arrumava as gavetas.

- Não mexas nas minhas gavetas, ouviste? - repetiu o rapaz. - Assim não consigo encontrar nada.

- Mas eu só pus os teus colarinhos lavados...

-Eu sei pôr as minhas coisas onde as quero.

Havia Rose, também, com a sua estranha e branda obstinação.

Quando as compridas férias do Natal estavam quase no fim, Joan disse-Lhe, um dia:

-Temos de começar a preparar as tuas coisas para voltar à universidade. Precisamos de dar uma vista de olhos ás tuas roupas...

Pensou, contente, no segredo da caixa de sândalo. Se Rose precisasse de um chapéu novo ou de qualquer bagatela, teria com que lha comprar. Também lhe podia dar alguma roupa sua, pois na aldeia de pouco precisava. Por exemplo, aquele vestido de noite, azul... Em Middlehope não necessitava de vestido de noite para nada, pois quando muito iria jantar com o pai a casa de uma ou outra família da igreja, uma coisa simples, sem cerimónia.       

Se aparecesse de vestido de noite pensariam que se queria dar ares. Não, na aldeia não havia motivo para usar vestido de noite.    

- Quero que leves o meu vestido azul, quando voltares para       a universidade. Não preciso dele.   

-Não volto para a universidade, Joan.  

Estavam sòzinhas, a fazer a cama de Francis. Joan parou, estupefacta, e perguntou, estùpidamente:   

- Não voltas? 

Mas Rose entalou a roupa, cuidadosamente, sem levantar a cabeça.       

- Não - repetiu calmamente. - Tenho outros planos.    

- Não me tinhas dito nada, Rose.  

Sentia-se magoada e apetecia-lhe censurar Rose, que nunca

se aproximava, nunca dizia nada. Era a sua única irmã, estavam sós as duas, a trabalhar na lida da casa, e Rose nunca lhe dissera o que planeara.     

- O Rob Winters e eu vamos casar - informou Rose, plácida       e sem hesitar. com absoluta certeza. - Ele acaba o curso da seminário em Junho e nós casaremos e partiremos como missionários.       

Aceitaram-no para trabalhar na China.         

Joan ficou estática, ferida, e resmungou, hostil:

-Não me tinhas dito nada.

Rose endireitou-se e fitou a irmã com o seu olhar inocente, cândido e claro.

-Só agora é que recebi o chamamento, joan. Ontem ouvi a voz de Deus dizer-me, claramente: Vai por esse mundo... Só ontem, quando estive a coser, adquiri a certeza. Estava sòzinha  no quarto. a pensar em Rob, e Deus chamou-me. Compreendi então que o devia acompanhar.

-Mas. vais casar com ele só para seres missionária?

És uma uma criança. não sabes...        

-Faço vinte anos em Setembro. E não deves ver as coisas dessa maneira, Joan. Nunca compreendeste o que penso da minha vida, o que sinto. Quero obedecer a Deus, quero salvar almas.

Fez uma pausa e repetiu, docemente: Vai por esse mundo...

-Desejas casar com o Rob, Rose? -perguntou Joan, e viu mentalmente o rapaz, alto, magro, ascético, com os olhos a arder no rosto pálido, firme e jovem.

-Se Deus me diz que o faça...

Um leve rubor tingiu as faces brancas da irmã, que continuou a fazer a cama, tentando deixar os cantos bem vincados e direitos. Por muito que se esforçasse, porém, nunca os conseguiria deixar como a mãe.

Era tão difícil falar com Joan! A irmã queria sempre sondá-la, descobrir coisas que não dizia a ninguém, coisas que não podia traduzir em palavras, sentimentos inexprimíveis. Era confusa, nela, aquela doce e terna necessidade de devoção. Queria oferecer-se. Dera-se a Jesus, entregara-se, sentira-se arrebatada e fundida n'Ele. no Seu ser. Conversara com Rob a esse respeito e ele sabia o que ela sentia. Olhara-a com tanta adoração que, de súbito, lhe apetecera chorar, "És uma santa, Rose!", murmurara. "Não sabia que pudesse haver uma rapariga como tu, tão pura, tão... tão santa." Quando ele lhe pegara na mão, Rose sentira aquele turbamento familiar, uma doce comoção que lhe dissera que fazia bem em amar Rob. O seu amor era belo e conservavam-no belo. Ao beijarem-se, Rose dissera: "Conservemos sempre o nosso amor puro e belo." E Rob beijara-a docemente, com brandura. Nos braços dele, quando a abraçava com toda a pureza, Rose podia pensar em Jesus, com a alma cheia de ternura e de unção. Isso dava-lhe a certeza de que fazia bem em casar com Rob.

Não compreendo - declarou Joan, secamente. - Não percebo que isso tenha a ver com o Rob.

Recomeçou a trabalhar. Estavam caladas, agora, mas Joan sentia na alma uma tempestade de desagrado e surpresa. Desagrado porquê? Porque sentiria a falta de Rose? Não... Era singular, mas o que sentia não tinha nada a ver com Rose. Era Martin que lhe acudia ao espírito, o rosto de Martin que se lhe desenhava, de súbito, na memória, a recordação dos seus lábios nos lábios dela. Afastou, irritada, a fugaz recordação. Martin não tinha nada a ver com o casamento.

Tornou-se ponto aceito que Rose casaria e iria para a China. Ao ouvir a notícia, o pai ficou, inesperadamente, alegre. À noite, quando estavam sentados junto da lareira, disse-lhes o que nunca lhes dissera:

-Quando era novo, também pensei servir Deus em terras estrangeiras. Recebi o chamamento quando estava casado havia um ano e tu eras um bebé, Joan. Ouvi-o claramente. Lembro-me tão bem! O Dr. Peter Davidson, da China, falava do meu púlpito, naquela noite de sábado, e a congregação era muito pequena. Já então os meus paroquianos se interessavam menos do que eu desejaria pela salvação das almas. Enquanto eu, preocupado, pensava nisso, a voz de Deus falou-me, através da do pregador. O Dr. Peter Davidson, um homem alto e magro, que o sol do Oriente deixara quase preto, debruçou-se do púlpito, apontou-me com um dedo e perguntou: "Porque não você?" Tive a certeza de que era a voz de Deus e, ao chegar a casa, contei a Mary... - O seu rosto pareceu envelhecer, de súbito, ao prosseguir:Respondeu-me que Deus teria de a chamar, também, a ela. Toda a minha vida lamentei não ter ido.

Nunca lhes revelara tanto como naquele momento, e os filhos ficaram sem saber que dizer. Francis levantou a cabeça do livro que estava a ler, fechou-o bruscamente e disse, mal-humorado:

- Vou-me deitar.

Saiu e bateu com a porta, mas ninguém deu por isso. Joan cosia, com o cesto da mãe cheio de roupa, e Rose estava sentada, com ar sonhador, na sombra, junto da lareira. No silêncio que se seguiu, Joan achou que devia defender a mãe:

-Creio que ela pensou em mim... em nós - começou. mas o pai não a ouviu, de olhos fixos nas brasas.

- Deus castigou-me - murmurou, tristemente. - Passei toda a minha vida a trabalhar nesta terra pequena, salvei algumas dezenas de almas, quando podia ter salvado milhares. É por isso que me interesso tanto pela missão de South End. Não obedeci ao chamamento de Deus e Ele castigou-me, mas agora a Sua cólera abrandou. Nos últimos anos, as pessoas têm vindo até mim, por salvar e ignorantes do amor de Deus. O Senhor é generoso.

A sua voz tornou-se mansa, calma, e no silêncio do serão falou-lhes um pouco mais de si, revelando-se-lhes melancólicamente, obedecendo talvez a um desejo recalcado durante uma vida inteira.

- Durante todos estes anos acordaram-me, de noite, os gemidos daqueles que nunca fui salvar, além-mar. Devia ter ido... Quantas horas insones tenho passado, a ouvi-los chamar!

Joan levantou os olhos da costura e observou-o. Era, então, naquilo que ele pensava, quando o via estendido na cama, sòzinho, com as mãos cruzadas no peito... Escutava as vozes que o chamavam. Quando, durante todos aqueles anos, levantava de súbito a cabeça do que fazia e ficava de olhos perdidos, a olhar sem ver, não era a eles, à sua família, que escutava e, sim, aos outros, àqueles que nunca tinha visto. Passara a vida entre fantasmas.

Rose já partira. Embora ainda andasse pela casa, na Primavera, embora as suas mãos bonitas e singularmente desajeitadas ajudassem aqui e ali, embora a sua voz doce continuasse a dar as doces respostas de sempre-"Sim, Joan, obrigada, mais um bocadinho de pão... Do branco, por favor..."; "A carne branca, pai, por favor..."; "Eu limpo a sala, Hannah..."-, Rose já partira. Separara a sua vida da vida daquela casa, concentrara-a na espera dos anos que viriam, numa vida que Joan não conseguia imaginar.

Não era capaz de visionar a vida de Rose longe de Middlehope e de todos os conhecidos. Juntas, planearam o que seria preciso comprar, no capítulo de vestuário, para o casamento de Rose. Nesses momentos falavam e olhavam-se de modo fraternal e prático.

-Precisarás disto... e mais daquilo... E de um vestido de noiva, de cetim branco, certamente?

A voz de Joan suplicava, mas Rose abanou a cabeça, numa

recusa obstinada:

-Para que me serviria, depois, o cetim branco? Castanho, um vestido de crepe castanho.

Joan teve de se resignar ao crepe castanho, embora perguntasse a si mesma como poderia haver um verdadeiro casamento sem vestido de cetim branco. "Miss Joan Richards casou hoje com... O vestido era de cetim branco, de cauda comprida.

-Um vestido escuro, leve, para a viagem -continuou Rose,

de lápis em punho-; um ou dois de voile, para o calor...      

O difícil não eram os preparativos para o casamento e, sim, para o que se seguiria. O facto de Rob e Rose irem casar parecia apenas uma conveniência, antes de partirem juntos para viverem como missionários. O que eram missionários?

Joan, alta, imóvel e irresoluta ao lado de Rose, na loja de Mr. Winters, deixou a irmã escolher o voile de riscas, simples, e o crepe castanho. Não eram tecidos escolhidos para Rose, a noiva; eram para Rose, a colaboradora, para uma Rose aprumadinha e obediente, companheira do jovem missionário.

Mr. Winters atendeu-as cheio de atenções, a mostrar-lhes, pressuroso, uma coisa e outra.

- Tenho aí umas novidades bonitas - disse, enquanto procurava nos caixotes. - Demónio, onde as meti? Ainda há bocado as tive na mão... Chamam-lhes jóias de fantasia. Parecem quase verdadeiras.

-Não, Mr. Winters, obrigada -atalhou Rose.

Não tratava os pais de Rob por mãe e pai nem se mostrava mais terna com eles do que sempre fora.

Cortaram e fizeram os vestidos as duas, sem entusiasmo. Era como costurar debaixo de um céu plúmbeo. A mãe teria detestado aquelas cores tristes.

-Onde está aquele vestido de flores que a mãe te fez? - perguntou, de súbito, Joan, ao lembrar-se de ver o tecido deslizar pela cabeça da irmã, como uma chuva de flores.

- Ainda o tenho. Não o usei muito. Era pouco prático...

Joan não respondeu. Rebelava-se contra aquele trabalho de costura feito sem alegria. contra aquele casamento e aquela vida que Rob escolhera. Sentia as mãos hirtas de contrafeitas. Levantou-se bruscamente e o tecido, as linhas e a tesoura caíram ao chão.

- Lembrei-me de repente de uma coisa que esqueci! - exclamou, ao ver Rose levantar calmamente os olhos, e saiu da sala, em grandes passadas apressadas.

Mas antes de chegar ao quarto ouviu a porta principal abrir-se e uma voz perguntar, ruidosamente: -Onde está a Rose? Rose! Rose!

Era Mrs. Winters. Quando viu Rose sair do quarto, chamou Joan, que parara e se debruçava do corrimão. Mrs. Winters batia com a mão esquerda -tão gorda que a aliança de casamento se lhe enterrava profundamente na carne -numa carta que segurava na direita.

- Joan, que vem a ser isto acerca do Rob e da Rose? Não digo nada- acerca do casamento, assim como nunca disse uma palavra acerca do desejo de Rob de ser sacerdote. Ele será sempre pobre, pois eu e o pai não temos nada para lhe deixar. Mas quanto a ir para a China o caso fia mais fino! Não acredito que a ideia tenha sido do meu filho. Foi a Rose!

A sua voz ecoava na sala, estridente e irritada, e subia pela escada acima. Na cozinha, os pratos que Hannah lavava deixaram de tilintar. De súbito, a porta do gabinete abriu-se e o ministro de Deus emudeceu a voz irada. O reverendo parou no limiar, alto e severo, de mão erguida a exigir silêncio.

-Quer dizer que não deseja que o seu filho obedeça ao seu chamamento? - perguntou.

Depois do calor estridente da voz de Mrs. Winters, a voz do reverendo foi como uma espada de gelo, a silenciá-la. Mas Mrs. Winters não estava habituada ao silêncio.

- O senhor é um homem bom, mas não compreende - redarguiu. - Rob é o meu único filho. Foi sempre excessivamente apaixonado e emotivo, como o pai. Se não fosse eu, Mr. Winters não pararia em lado nenhum. Uma vez, quando tinha a idade do Rob, quis participar numa corrida ao ouro. Doutra, imagine, quis abandonar o bom negócio da loja e dedicar-se aos automóveis! O Rob é como ele. Detestam ouvir o que se lhes diz.

- Acautele-se, não seja hipócrita - recomendou o ministro de Deus, em tom gelado e lento. -Preside às reuniões missionárias, na igreja, mas não quer dar o seu filho a Deus.

- Oh, pai, não fale assim! - pediu Joan. - Entre, Mrs. Winters, por favor... Rose, não sabia que o Rob não dissera nada à mãe.

- Tem medo dela - murmurou Rose, ofegante. – Sempre teve medo dela.

Joan lançou um olhar de censura à irmã e depois correu pela escada abaixo, a tremer. Como lhe custava ver pessoas magoadas, até mesmo Mrs. Winters! Agarrou no braço gorducho da senhora, puxou-a ansiosamente para a sala vazia, sentou-a numa cadeira e fechou a porta.

- Sente-se, sente-se... Podemos conversar acerca do assunto. Discutir, não. Detesto discutir.

Só compreendeu quanto era forte quando Mrs. Winters caiu na cadeira, incapaz de resistir à sua força.

- Francamente, Joan! - protestou a visita, ofegante, mas quando viu a cara comovida e perturbada da rapariga os seus lábios tremeram. - Custa muito, é dolorosíssimo - gemeu, tirando o lenço do cinto. - Claro que acredito nas missões... Fui educada nessa crença, sempre fui cristã... Não me lembro, nunca, de não pertencer à igreja. Mas jamais supus que isto me pudesse acontecer, a mim. Já foi um rude golpe quando o meu filho quis ser pregador. Os pregadores são sempre muito pobres e, assim, não nos poderia ajudar na loja... O Rob é um rapaz sensato, no fundo, mas não me dá ouvidos. No entanto, não acredito, não posso acreditar, que tenha sido ele a pensar em tal coisa. A Rose foi sempre um pouco esquisita e exerce uma grande influência nele. -Os seus lábios cheios e arroxeados começaram a tremer tanto que Mrs. Winters os tapou com um lenço.

-Eu sei-murmurou Joan, compreensiva. - É terrível.

Também me custa muito, muito, deixar partir a Rose.

Debruçava-se sobre Mrs. Winters, trasbordante de compreensão. Seria o mesmo que ver Rose morrer no dia do casamento.

A sua fértil imaginação deu um pulo no tempo, viu-os nesse dia, no comboio, e viu o comboio afastar-se, tornar-se mais e mais pequeno, perder-se na distância, roubar-lhos durante anos e anos.

Em casa de Mrs. Winters não ficaria nenhum filho, e ali, naquela casa, ficariam sem Rose. Era terrível como a morte. A mãe levara-a a morte; a Rose levá-la-ia uma vida mais estranha e mais difícil de compreender do que a morte. Os olhos de Joan encheram-se de lágrimas. As pessoas deviam manter-se unidas, os membros de uma família deviam conservar-se unidos até a morte chegar. Não podiam evitar a morte, mas podiam evitar separar-se em vida.

- Mrs. Winters... - murmurou, -. Mrs. Winters, tenho a certeza de que a minha mãe não quereria que a Rose partisse.

- Claro que não quereria! - murmurou, também, Mrs. Winters, com as bochechas gordas a tremer, do esforço que fazia para dominar os soluços. - A tua querida mãe... Joan, eu não sou hipócrita, sinto realmente o que digo nas reuniões missionárias... embora os Chineses sempre me tenham causado calafrios. As vezes via alguns nas ruas de Nova Iorque, quando ia com Mr. Winters comprar coisas para a loja. Mas deitar um níquel na bandeja, ou mesmo dez cêntimos, uma vez por outra, não é a mesma coisa que deixar partir, de vontade, o único filho.

-Pois não, pois não...

Joan ajoelhou-se e envolveu nos braços compridos o corpo volumoso e espartilhado de Mrs. Winters. Esta apoiou, por momentos, a cabeça no seu ombro e chorou ruidosamente, sem peias.

-Não faço isto... desde que a minha filhinha morreu, ainda o Rob não sabia falar.

Joan bateu-lhe ternamente nas costas. Como era possível que Rob tivesse medo daquela mulher? Sentiu debaixo da mão um novelo de carne dura, que saía de um corpete, mas isso não a repeliu. Compreendeu, de súbito, que Mrs. Winters, aquela mulher activa, autoritária e ríspida, não passava, afinal, de uma criança. Era estranho como ninguém crescia. A mãe, ao morrer, não passava, na realidade, de uma criancinha, e ela só a compreendera totalmente ao ter consciência dessa verdade. A partir de agora, passaria a conhecer, também, Mrs. Winters, a conhecê-la bem, melhor do que conhecia o seu próprio pai ou a sua irmã Rose, que nunca se mostravam como eram, nunca se davam.

De súbito, Mrs. Winters suspirou, endireitou-se e limpou os olhos.

- Não sei quando... - titubeou.

- Não tem importância - apressou-se a interromper Joan. - Compreendo perfeitamente.

Sei que compreendes, sinto-o, apesar de não passares de uma rapariga. Mas hei-de opor-me sempre, Joan, hei-de opor-me enquanto tiver alento! Tenho sido sempre uma boa mulher e servido bem o Senhor, não é justo que me exijam este sacrifício.

Joan levantou-se, delicadamente consciente de que Mrs. Winters estava envergonhada de ter chorado daquela maneira.

- Sim, Mrs. Winters -concordou, dócil.

A mãe de Rob levantou-se, também, tirou as travessas dos lados do cabelo; penteou-se e enfiou-as de novo, uma de cada lado do carrapito que tinha no alto da cabeça.

-Ninguém me dá ouvidos.-Quase não se percebia, já, que estivera a chorar.-Tenho de ir; deixei um bolo no forno. Não sei que ideia me deu... Vou escrever uma carta enérgica ao Rob, e tu fala com a Rose, Joan. Diz-lhe o que a tua mãe lhe diria. Foi a rapariga dos Kinneys que meteu tais ideias na cabeça da tua irmã. Jurava-o! Foi sempre uma criança esquisita, desde o princípio. Tiveram de a tirar a ferros e talvez tenha sido isso que a tornou um pouco estranha. Bem... - Aproximou-se da porta e espreitou para o vestíbulo, que estava deserto.

Joan sentiu-se, de súbito, constrangida.

-Adeus - despediu-se, docemente.-Não direi a ninguém como se sentiu.

Nos olhos pequenos e opacos de Mrs. Winters surgiu uma expressão de alívio. Estendeu os lábios e beijou a rapariga debaixo de uma orelha.

- És uma boa pequena -declarou, e foi-se embora.

Joan viu-a descer a rua, competente e determinada, cruzar-se

com Francis, que regressava do liceu e batia com os livros, descuidadamente, na cerca, e detê-lo um instante.

- Que te disse ela? - perguntou Joan, quando o irmão entrou, desdenhoso.

- Que não era maneira de tratar os meus livros. Gatinha velha! Parece convencida de que ainda sou um miúdo!

Joan subiu a escada para o seu quarto, a sorrir. Como as pessoas eram! Compreendia que o facto de falar como falara a Francis ajudara Mrs. Winters a sentir-se, de novo, ela mesma.

Mas assim como não pudera afastar, com as suas duas mãos, a morte da mãe, também não podia afastar de Rose a vida por ela escolhida. A Primavera terminou. Os vestidos escuros, práticos, foram arrumados na mala quadrada que a mãe lhe comprara, quando entrara na universidade, e que depois servira a Rose, ao chegar a sua vez. A última vez que vira a mãe ajoelhada junto dela fora para dobrar e guardar o vestido de pano florido. Agora era Joan quem se ajoelhava, sentindo-se quase no corpo da mãe, e dobrava os vestidos práticos, sem flores. Ajoelhava em silêncio e guardava as peças de vestuário que Rose empilhara no chão, em cima de um jornal. Onde seriam retiradas da mala? Não o conseguia imaginar, sentia apenas que Rose ia para muito longe, para sempre. Quando terminou, levantou-se e ficou de cabeça baixa.

-Haverá espaço, no tabuleiro, para mais alguns livros?perguntou-lhe Rose, do quarto.

-O que não falta é espaço.

Sim, sobrava espaço, pois era pouquíssimo o que a irmã levava. Dias antes, fora ao sótão buscar os poucos dólares que poupara, para comprar um presente de casamento para Rose. Mas era tão difícil dar-lhe uma prenda! Não queria nada. "Quero comprar-te qualquer coisa bonita, querida", insistira Joan, suplicante, mas Rose mostrara-se obstinada, como sempre. "Não seria próprio, Joan. Muito obrigada, mas não seria próprio." Joan acabara por lhe meter o dinheiro na mão. "Toma, então, querida. Poderá servir-te, se alguma vez precisares de qualquer coisa... mesmo que seja qualquer coisa bonita."

Mas agora, apesar de já ter dado tudo, ainda não era capaz de fechar a mala. Tinha de lá meter mais qualquer coisa... qualquer coisa em intenção da mãe, ainda que não o fosse de Rose.

A mãe jamais deixaria partir uma mala assim, apenas com coisas úteis. Todos os anos, quando abria-a mala, na universidade, encontrava pequenas surpresas agradáveis, que ela escondera a um canto: um saquinho com folhos de renda, um par de meias de seda... Mas Rose vetara as meias de seda e comprara de fio-de-escócia.

A porta abriu-se e o pai entrou, com um livro pequeno, de capa de couro.

Há espaço para isto? -perguntou, aproximando-se e olhando, hesitante, para a mala. - Comprei-o pequeno, para não ocupar muito espaço. - Joan pegou no livro e meteu-o na mala. - É para se guiarem, no começo da sua vida -declarou gravemente o pai. - " A Tua palavra é.. uma luz a guiar os meus pés."

Joan não lhe respondeu. Deixou-o sòzinho, foi aoo seu quarto e começou a procurar na última gaveta da cómoda, com um nó na garganta. Era aí que guardava as suas poucas e preciosas coisas bonitas, que raramente usava. Algumas eram, até, demasiado bonitas para as usar já. Entre elas havia uma camisa de dormir de cetim muito claro, cor de pêssego, que Mary Robey lhe oferecera, no dia da formatura. "Usa-a na tua noite de casamento, Jo", dissera-lhe, trocista. Joan pusera-a de parte, com o saquinho de renda, meio decidida a seguir o conselho da amiga. Pegou na camisa e voltou, a correr, para junto da mala. O pai falava com a irmã, no quarto desta. "Num momento de apuro...", ouviu-o dizer. Joan levantou o vestido escuro, para a viagem, e meteu a camisa de cetim brilhante debaixo dele. Voltou ao quarto, pegou num bocado de papel e escreveu, depressa: Veste-a na tua noite de núpcias, minha muito querida Rose. Pregou o bilhete, com um alfinete, ao corpo de renda da camisa.

"É a coisa mais bonita que tenho", pensou, e tapou apressadamente a prenda com o vestido escuro. Acto contínuo, sentiu uma saudade quase intolerável da camisa de dormir.

No entanto, sentia-se, também, confortada. O seu gesto confortou-a, até, quando o modesto e grave casamento se efectuou, na igreja. O templo estava cheio de gente, mais interessada em assistir a partida do casal do que à cerimónia. Olhavam para o rapaz e para a rapariga que sempre tinham conhecido e a quem nunca haviam achado nada de especial. Olhavam para o rapaz alto e magro, de feições delicadas e olhos cinzentos que pareciam já demasiado afundados no rosto, e para a rapariga séria, baixa e roliça que se encontrava a seu lado, castanha como uma codorniz no seu vestido simples. O casamento não os maravilhava, mas era maravilhoso olhá-los e imaginá-los a cruzar o mar e países estrangeiros. Ninguém da aldeia cruzara os mares, excepto Martin Bradley e Miss Kinney, e mesmo esses havia muito tempo. Além disso, tinham regressado e ficado entre eles, como se nunca se tivessem ausentado.

Acorreu gente de todos os cantos da aldeia, para ver o casamento. "Que assim seja", disse o servo do Senhor, "que a congregação testemunhe tão grande dedicação." Deus tocaria os seus corações. Joan, ao entrar na igreja com a irmã, viu que viera toda a gente e, até, alguma que não conhecia.. Chamou-lhe a atenção o olhar fixo de um rapaz abrutalhado, de pescoço forte e olhos pequenos e cobiçosos sob o cabelo encrespado e ruivo. Apertou com força a mão de Rose, secretamente. Não devia chorar, pelo menos enquanto eles não tivessem partido. Mrs. Winters, hirta e fria, olhava para fora, por uma das janelas, mas Joan compreendeu que, a despeito da aparência, a mãe de Rob também dizia a si mesma que não devia chorar. Os dedos de Martin Bradley tocaram delicadamente a marcha nupcial, talvez, até, com certo desdém. Martin tocava com cuidado, como se fizesse um exercício, sem expressão, completando as frases uma por uma, sacudindo-as dos dedos.

Parou com Rose diante do pai, depois Rose deixou-a e Rob deixou Francis e pararam lado alado. O pai, ministro de Deus, cumpria o seu dever, alto e solene. Mas Joan, com a sua exacerbada sensibilidade, juraria que se desprendiam dele emanações de êxtase. Liam-se-lhe no rosto, nos olhos azuis muito claros, no cabelo branco. Ministrava um sacramento. A sua voz subiu, alta e clara como luz, acima dos dois para quem olhava. Arrancou-os do mundo para o lugar onde se encontrava e onde ficaram os três, sozinhos.

-Estamos aqui reunidos diante de Deus para testemunhar a consagração destas duas...

Joan observava Rose, muito calma e segura. Não parece nada uma noiva, pensou, tristemente, e voltou um pouco a cabeça. Pela janela aberta, do outro lado da nave, via-se um retalho de céu limpo e azul. Corria o mês de Junho, mas Rose não quisera flores na igreja. Apenas as velas acesas e, no vestido castanho, um raminho de lírios amarelos que Joan colhera para ela no último instante. Os lírios amarelos... Tinha a vaga sensação de que, se a mãe estivesse presente, a cerimónia não seria assim, tão grave. Estou contente por ter metido a camisa de cetim na mala, pensou, apaixonadamente. Estou contente, estou contente!      

Se aquilo era mais consagração do que casamento, talvez à noite, quando Rob visse a mulher com uma camisa de dormir tão bonita, Rose se parecesse mais com uma noiva e ele a visse como tal. Assim seria, afinal, um casamento.    

Tocou depressa, demasiado depressa. Saíram, ao som da música tocada com perfeição, mas sem alegria. As pessoas reuniram-se à volta dos noivos e, um ou outro, meteu-lhes dinheiro nas mãos. Em vez de prenda de casamento... Como vão para tão longe, não quereriam vidros nem pratos... Miss Kinney abriu caminho por entre o grupo, agarrou Rose e entregou-lhe um grande álbum.  

-São as minhas fotografias de África. Faltam algumas, mas mesmo assim são muitas. Quis dar-lhes aquilo que mais amava.

Oh, meus queridos, que Deus vos abençoe! Que sorte, que sorte!    

Beijou Rose nos lábios, com as lágrimas a correrem-lhe pelas

faces e, de súbito, pôs-se em bicos de pés, beijou Rob e afastou-se, a correr. Após um momento de espanto, as pessoas que assistiram à cena lembraram-se de que era apenas Sarah Kinney e esqueceram-na.

De noite, depois de tudo acabado, Joan acordou, de repente. Que horas eram? Passava da meia-noite, pois via a Lua baixa, da janela. Rose já devia ter encontrado e vestido a camisa de dormir. Afastou do pensamento a inesperada visão de Rose diante de Rob. Que aconteceria? Devia ter falado com a irmã. Mas que lhe poderia ter dito? Que podia ter dito a Rose, que sabia ela para lhe dizer, excepto o que se passara nas poucas horas ardentes e estéreis, vividas com Martin Bradle ?

Lembrou-se de que, ao sair-da igreja, ouvira a mãe de Martin dizer a Mrs. Winters: É um conforto ter um filho como o Martin, que gosta da sua casa e da sua mãe. Franzira a boca seca, complacente, e Mrs. Winters abrira a sua, mas fechara-a logo a seguir. Joan correra para junto dos noivos e forçara, finalmente, um sorriso, ao entrar no velho Ford que os levaria a todos à estação. Depois, Rose partira com Rob e o comboio ficara mais e mais pequeno, até desaparecer. Joan seguira-o com o olhar e parecera-lhe que a composição rompia as nuvens. Conseguira, mesmo, imaginar um buraquinho aberto no céu, por onde o comboio entrara, levando-os consigo. Ficara à espera, com os pais de Rob, de olhos postos no buraquinho vazio, e por fim regressara com eles, a pé.

- Palavra que não compreendo! - disse, a certa altura, Mrs.

Winters, a suspirar. Geralmente falava muito, mas naquele momento caminhava em silêncio e dava a impressão de que nem tinha consciência da mão de Joan no seu braço.

- Confesso que nunca esperei isto, quando o dei à luz e o tratei durante a infância delicada. - Parou junto dos degraus de casa e olhou acusadoramente o marido. - Ele saiu sempre a ti!

Mr. Winters olhou-a, absorto. Não dissera nada toda a tarde, nem mesmo quando Rob lhe pegara na mão para se despedir.

Adeus, pai. Escreva e diga-me como correm as coisas, na loja.

Mr. Winters limitara-se a acenar com a cabeça.

- Entra e toma uma gemada - disse a mulher.

Tinham-se esquecido ambos de Joan, que os viu entrar em casa e fechar a porta. Em seguida voltou-se e desceu a rua sossegada, banhada pelos últimos raios de sol. Que podia ter dito a Rose, ela que quisera tudo da vida e ficara na aldeia?

Devia, ao menos, ter-lhe comprado um livro qualquer... pensou, na escuridão do quarto, vagamente repesa por um dever não cumprido. Devia ter feito mais pela Rose, censurou-se.

O antigo e profundo sentimento de família, de necessidade de se sacrificar pelos seus, avassalou-a mais uma vez. Jamais conseguirei fazer por eles o suficiente, tanto quanto a mãe faria. " Rose partira. Joan pensara que só a morte podia tirar e separar, mas agora a vida fizera-o do mesmo modo inexorável. Dos cinco que eram, já faltavam dois, um levado pela morte e outro pela vida. Agora devo fazer tudo quanto puder pelo Francis e pelo pai", pensou, apaixonadamente, para se confortar, na escuridão fria que antecede a aurora. As paredes da casa continuavam a envolvê-la numa sensação de segurança.

Dos dois que lhe restavam, Francis era, sem dúvida, o que mais precisava dela. O pai tinha Deus. Se lhe davam a comida de que gostava - e Joan via, agora, o que não vira antes, que ele gostava de comer e que, mesmo quando as suas mãos recusavam um prato, os olhos ficavam presos à comida -, se ninguém mexia nos seus papéis, se ninguém entrava no seu gabinete quando ele lá estava sòzinho e se o seu vestuário era posto nos lugares costumados, onde o encontraria pela força do hábito, nada mais o coração humano podia fazer por ele. Não sentia a falta de ninguém, ou pelo menos parecia que não sentia, nem mesmo a de Mary.     

E, na realidade, não sentia, pois agora encontrava-se mais perto dele do que jamais estivera. O seu corpo inconstante e inquieto não estava presente para o tentar e perturbar, para o fazer desejar e repelir e perguntar-se, perturbado, o que devia

fazer um homem escolhido por Deus. S. Paulo dissera claramente nas Epístolas: É melhor casar do que consumir-se. Mas subentendia-se, no tom desdenhoso, que consumir-se era ignóbil: E o     reverendo não se consumia; não estava no seu temperamento pensar em mulheres. Desejava olhar para o rosto das mulheres sem se lembrar de que eram mulheres. Mas Mary, viva, deitada a seu lado, conservara-o em guerra consigo mesmo. Por isso, agora que Mary partira, podia pensar nela tranquilamente e em paz. Deus achara conveniente atormentá-lo. Abençoada fosse a vontade de Deus! Joan, a sua filha, cuidava dele quase como Mary fizera. As vezes quase se esquecia de que a mulher morrera e levantava a cabeça do prato para lhe dizer qualquer coisa, mas via Joan e ficava calado. . Nada se entrepunha, agora, entre si e o trabalho.

- Podia estudar secretos mistérios e pregar os evangelhos às almas por salvar, agora que a capela de South End fora reparada. Querida Mary, que não imaginava o bem que fizera com o dinheiro que poupara para ele! Esquecera havia muito tempo todos os desentendimentos; Mary, no Céu, compreendia-o como Mary, na Terra, não o pudera compreender. As mãos de Mary, no Céu, eram frescas e cheias de bênçãos, a sua voz serena e repassada de aprovação... Via-a lá, tranquila como raramente a vira em vida.

Agora ela compreendia, pois agora vêmo-nos num espelho, obscuramente mas cara a cara... Conheceremos como somos conhecidos. Cada vez se recolhia mais em si mesmo, feliz, a deambular pela casa como um fantasma. Só no púlpito se tornava real para qualquer criatura humana. Então o povo era o seu povo, a quem transmitia de novo o que Deus lhe dissera. Deus, que no Princípio...

Cada dia se assemelhava mais ao que ansiava ser, cada dia lhe era mais fácil negar a carne e já quase dominara o seu corpo faminto. Era capaz de pegar num prato de comida fumegante e apetitosa e de o abandonar firmemente e levantar-se, com fome, da mesa.

- O seu pai parece precisar de carne vermelha - disse Mr. Billings, ofegante, numa manhã de sábado, em Julho.

Estendia a Joan, que acorrera ao ouvir a sua carroça parar à porta, um naco de carne de vaca a pingar sangue.

-Vitela é fraco de mais para ele, embora estejamos no Verão. Vi-o na igreja, no último domingo, quando falava do Espírito Santo, e disse para comigo: Do que ele precisa é de carne vermelha. Aqui está ela!

- Muito obrigada! É o mais bondoso dos homens - disse Joan agradecida.

- Deixe-a em sangue, quando a cozinhar – recomendou Mr. Billings, da carroça. - Mal passada...

Mas, no fim, quem comeu a maior parte do bife foi Francis.

O pai comeu, apenas, uma das pontas mais passadas, embora Joan dissesse:

-Mr. Billings trouxe esta carne especialmente para si, pai.

Achou-o pálido, no domingo, na igreja.

O reverendo esboçou um sorriso e redarguiu:     

-Teria, com certeza, melhor aspecto se Mr. Billings aparecesse na igreja com mais frequência. Nunca o vejo nas reuniões de quarta-feira à noite, por exemplo.

- Pois eu comerei mais um bocado, graças a Mr. Billings - declarou Francis, e estendeu o prato. - Gosto da carne assim,

em sangue, Joan! A Hannah passa-a sempre de mais, mas esta está formidável!

O pai não levantou os olhos do seu prato mal cheio. Não come nem gosta de ver os outros comer, pensou Francis, a odiá-lo.

-Quero mais - repetiu, em voz alta.       

Hannah queixava-se de que, ùltimamente, não havia nada que enchesse o Francis. Crescia tanto que não tinha roupa que lhe servisse. Joan compreendeu-o quando o censurou por trazer as calças azuis-escuras, dos domingos, num dia de semana.    

- Não me posso sentar com as velhas calças de riscas - queixou-se. - Com os diabos, Joan, não estreio um fato desde... desde...

Não estreava um fato desde que a mãe morrera, mas não foi capaz de o dizer. Nunca falava da mãe, e se alguém o fazia na sua presença ia-se embora.        

Joan observou-o, com atenção, Estava tão alto como ela e mais forte. De corpo já era um homem, um homem moreno, atraente e robusto. No lábio superior e no queixo via-se, cada vez mais escura e cerrada, a sombra da barba constantemente escanhoada. Não estava um instante parado, o seu corpo movia-se sempre, cheio de graça. Quando falava, o seu rosto transformava-se, como o da mãe, e até o olhar era o dela. Mas era reservado como ela nunca o fora. Tornava-se impossível conhecê-lo.

E Joan desejava, agora, conhecê-lo. Para bem de si própria, desejava cuidar dele, adivinhar as suas necessidades para o poder conhecer e, conhecendo-o, encontrar uma espécie de camaradagem, de companheirismo. Era triste ser a única mulher da casa além da velha Hannah, que trabalhava melhor quando estava sòzinha.

-Saia da minha cozinha, Joan. A sua mãe nunca se metia debaixo dos meus pés, como a menina. É tão grande que nem me posso mexer quando cá está.

Tudo quanto Joan tinha de Francis eram as pequenas coisas que lhe podia fazer: arrumar-lhe o quarto, coser-lhe a roupa e

arrumá-la nas gavetas e outras coisas do mesmo género. Agora o irmão não parava em casa. Saía, no tempo de aulas por causa da escola; e no tempo de férias por serem férias. À noite, se ficava com eles, tirava um livro após outro, inquieto, e subia cedo para o quarto. Pouco a pouco, apoderara-se da sua liberdade e, agora, saía de casa despreocupadamente, quando lhe apetecia, como se não tivesse de dar contas a ninguém. O pai não lhe chamava a atenção para esse facto, pois ele continuava a ir á igreja todos os domingos, de sua livre vontade. Se a mãe vivesse, já lhe teria gritado, havia muito: Estou farto de ir à igreja consigo! Mas como a mãe não existia e não se podia rebelar contra ela, ia uma vez por semana à igreja e sentava-se onde ela costumava sentar-se. O pai via-o lá e deixava-o em paz, sereno na íntima certeza de que o seu filho estava salvo. Ainda bem que o Francis está a assentar, disse, um dia, a Joan.

Francis, sentado na igreja, não ouvia nada do que o pai dizia, pois não ia à igreja para escutar o pai nem para ouvir falar de Deus. Ia apenas, às cegas, para encontrar a mãe. Às vezes tentava lembrar-se de coisas que ela desejaria que ele fizesse, mas não recordava nenhuma exigência ou ordem sua. além do desejo de que a acompanhasse à igreja. Era a única rebelião contra ela de que se lembrava, e ainda se rebelava e odiava a imposição; mas, porque estava viva na sua memória, tinha a impressão de que via melhor a mãe na igreja do que em qualquer outro lado. Em casa, ela fizera parte tão integrante da atmosfera que o rodeava que o seu rosto já começava a enevoar-se. Mas na igreja via a claramente, sentada no banco, com o chapelinho castanho na cabeça. Durante muito tempo usara um raminho de violetas no chapéu, do lado que ficava virado para ele, e Francis gostava de ver as violetas junto do cabelo encaracolado e grisalho da mãe.

Uma noite, no princípio da Primavera, Fanny apanhara um raminho de violetas, no bosque, e metera-o nos caracóis escuros.

Não o pudera suportar. Não havia, não podia haver, nada semelhante entre a mãe e Fanny. Nem sequer pensava nesta na igreja, onde se ia encontrar com a mãe. Não tinham nada a ver uma com a outra. A sua mãe era real, sólida como a própria vida.

Apesar de morta, era real, era real porque vivera. A vida de Francis nascera da vida dela, a mãe era o alicerce, a base de tudo quanto fizesse. Embora houvesse entre Fanny e ele algo semelhante, Francis sabia que isso não podia ter relação com o que a mãe representara e representava; não era real, portanto não podia durar.      

Nem ele queria que durasse. Ansiava por se libertar, por cortar o nó que o prendia. Se tivesse algum dinheiro... Mas não      tinha nada, excepto a bicicleta, e se a vendesse talvez não conseguisse fugir. Partiria sem dizer uma palavra a Fanny, a quem nunca prometera absolutamente nada. Ela costumava aninhar a rebelde cabeça preta debaixo do braço dele e segredar-lhe: Querido rapaz, não me deixarás nunca! Se me deixares, encontrar-te-ei e arrastar-te-ei para baixo, para baixo, para baixo... Promete que não me deixarás! Mas ele nunca prometera. Nunca prometera        nada a ninguém porque detestava mentiras. Puxava a cabeça de Fanny para trás, a agarrá-la pelo cabelo curto, e beijava- a, mas nunca prometia nada. As mulheres passavam a vida a querer promessas. Primeiro fora a mãe e, agora, era Fanny.

Agora até Joan esperava, também, qualquer coisa dele. Falava-lhe, fazia-lhe perguntas, queria saber coisas que nem ele próprio sabia. Como lhe poderia dizer aonde ia depois do jantar?   

Quando fugia de casa não sabia para onde ia. Talvez fosse apenas até à loja do Winters, ver se alguns dos rapazes lá estavam...

Como queria que lhe dissesse aonde ia? Mais tarde, se se sentisse inquieto; iria encontrar-se com Fanny, no bosque que ficava ao sul da aldeia.

Sentia um desejo furioso de sair de Middlehope. Tinha de partir fosse como fosse, pois precisava de se afastar de Fanny. Quando, naquela tarde de domingo, fora com o Jack Weeks a South End, não lhe passara pela cabeça que se meteria num sarilho daqueles. Só pensara em se distrair um pouco e esquecer que a mãe tinha de morrer. A casa tornara-se tão diferente e vazia, com ela deitada no quarto! Não se sentia lá bem, depois do almoço e da igreja, não tinha nada que fazer e o Jack dissera-lhe: Há uma casa formidável, em South End. Tinham ido e Fanny estava lá, a dançar. Dançava quando ele entrara e Francis não pudera ter a certeza de que não era branca. Possuía uma pele tão clara!

Lembrava as rosas cor de creme que a mãe tinha no alpendre, não só na cor, mas, também, no tacto. A pele da sua cara era macia e firme como as pétalas dos botões de rosa. As vezes, quando a mãe arranjava rosas para pôr na mesa, Francis obserrvava-as e tocava-lhes. Conhecia-lhes a cor e a sensação que causavam, ao tocar-lhes.

A sua única intenção fora distrair-se, mas Fanny tivera outras ideias, desde o princípio. Dançara para ele, a tentá-lo, e Jack Weeks percebera e rira-se. Por fim aproximara-se da mesa e inclinara-se para ele.

-Querido rapaz, como te chamas? Tenho de saber o teu nome.

A sua voz era preta. Nenhuma mulher branca podia ter uma voz assim, profunda, suave, négra. Viu-lhe os seios, quando ela se inclinou. Era a primeira vez que via uns seios de mulher, mas ela queria que ele olhasse. Assim que Jack foi para a sala ao lado jogar, a rapariga deu o braço a Francis e começou a adulá-lo: Ele queria ir ver o amigo, embora não tivesse dinheiro e, por isso, não pudesse jogar, mas ela estava ali. Por muito pouco que soubesse, sabia o suficiente para abanar a cabeça e recusar ir ao seu quarto, quando ela lho propôs.

-Nesse caso, vamos dar um passeio, querido rapaz. Não gostas do bosque e do rio? Sei de um lago, muito sossegado e bonito.

Tinham ido para o bosque. Era difícil dizer o que ela era. Tinha a pele tão branca como a dele e mais branca, até do que a dele, nos pontos onde o sol o queimara.

Na realidade, nunca a amara. Amava a mãe e, por isso, sabia

que não era amor o que sentia por Fanny. Queria-lhe e odiava-a       ao mesmo tempo, desejava estar onde não a pudesse encontrar quando a quisesse. Mas ela era como terra para ele, era um sedimento, um barro. Se pudesse fugir, seria como água limpa, clara, a libertar-se de um lago enlameado. As vezes, quando estava com ela, confundido nela, desejava poder erguer-se e subir no céu escuro. Nessas ocasiões, quando regressava a casa, mesmo depois de tomar banho e de se deitar, limpo, na sua cama, não era nela    que pensava e, sim, em voar pelo céu puro e imaculado. Erguer-se da terra quente, escura e abafada e subir no vácuo, subir para onde até as nuvens grandes têm espaço para se cruzar sem se tocarem. Porque desejaria estar perto de Fanny, tocar-lhe e ser tocado pelas suas mãos, confundir-se nela, e a seguir só queria libertar-se dela, odiava o seu contacto e ansiava por se encontrar quilómetros acima dela, acima de todos, no céu?  

Não conseguia esquecer a mãe, embora o desejasse. Na escuridão do bosque, na escuridão densa e quente, via-lhe a cara. Não  estava zangada nem sequer sabia que ele a via, era apenas a sua cara normal, de quando vivia. No momento em que o seu rosto emergia das trevas, Francis queria ir-se embora, queria subir, subir, no céu frio e limpo, deixar tudo quanto conhecera.

Joan arrancou-lhe as palavras. Estava sempre a fazer planos, agora que a Rose se fora embora. Como já não os podia fazer       acerca do casamento e do vestuário de Rose, começava a querer fazê-los para ele. Do que ela precisava era de uns seis miúdos, para se entreter. Uma noite encontrou-a sentada no alpendre. quando regressou a casa, depois de estar com Fanny. O velho já se deitara. Não lhe perguntou donde vinha, mas começou a falar inesperadamente, às escuras, quando o irmão se sentou no degrau, porque tinha calor e não lhe apetecia deitar-se já. Jurara a si mesmo que não voltaria a encontrar-se com Fanny, mas de súbito tivera de abandonar os amigos e de a ir procurar, apesar de a razão lhe gritar, prudentemente: É melhor deixares de ir enquanto ninguém sabe! É agora a ocasião de pôr fim a tudo, enquanto ainda ninguém sabe.

Mas Fanny tinha as mãos negras nele, sentia-as a agarrá-lo com força. Fora, mas agora acabara. Voltara e, ao sentar-se, viu Joan.

- Ainda não te deitaste? - perguntou, em voz ríspida.

Aprendera o truque com a mãe: se se mostrasse suficientemente ríspido ela não começaria a fazer-lhe perguntas.

-Está calor, lá em cima.

De súbito, Joan começou a falar, a sua voz modificou-se e tornou-se tal qual a da mãe. Francis nunca notara a semelhança, mas agora, ouvindo-a sem a ver, oculta pela roseira, assustou-o ouvir o que lhe pareceu a voz da mãe.

-Que planos tens para a tua vida, Frank? Que tencionas fazer?

Era característico da mãe fazer-lhe perguntas francas e directas. Quase ouviu o eco de outras palavras: Que estás tu a fazer? Oh, meu filho!... As palmas das suas mãos ficaram, de súbito, húmidas. Com a breca, se fosse verdade o que o velho estava sempre a dizer, que os mortos vivem e sabem! Ainda naquela noite tinham conversado a tal respeito, na loja. Na minha opinião, dissera Mr. Pegler, não temos razão nenhuma para pensar que sobra qualquer coisa quando a combinação química a que chamamos corpo humano se desfaz. É tudo um processo químico. Francis mal os ouvia, enquanto falavam. Dizia a si mesmo que nunca mais se aproximaria de Fanny, mas o seu sangue começava a minar a sua decisão. Sentia-o fervilhar, no coração. Havia na serenidade e no calor abafado de uma noite de Verão algo que o obrigava a pensar em Fanny. Uma cigarra cantou. No fundo do seu pensamento, por detrás da atenção que prestava à conversa, via as formas de Fanny, a maneira como se levantava e estremecia. Sentira-se contente por ouvir dizer que os mortos não sabiam, pois só a sua mãe adivinharia nele o tumulto que o consumia. Talvez ela não soubesse... Nesse instante experimentou de novo o desejo de saltar da Terra, de se erguer no céu e subir para muito, muito longe...

- A única coisa que, de facto, desejo fazer - respondeu a Joan, apaixonadamente-, é ser aviador. Quero voar.

- Voar? - repetiu Joan, estupefacta. - Mas como poderemos mandar-te aprender?

Aliviado, verificou que era, outra vez, a voz de Joan. A mãe ter-lhe-ia respondido, enèrgicamente: Que tolice, Frank! E, se ele insistisse, afirmaria: Se o quiseres muito, consegui-lo-ás.

Mas a verdade é que, até àquele momento, nunca pensara em ser aviador. Sonhara apenas com o espaço vazio, puro e deserto, desejara libertar-se da terra, como um pássaro. Mas agora a ideia surgira sem saber como, aquilo em que antes nunca pensara apresentou-se, claro e sem hesitação, no seu espírito.

-Podíamos pedir ao Martin Bradley. Ele esteve na aviação, durante a guerra. Deitava bombas.

Joan não lhe respondeu logo. Quando o fez, a sua voz soou     

de novo diferente, fraca e ofegante.     

-Não gostaria de lhe pedir nada.   

-Porquê? Pensei que andavas com ele... Até ouvi os tipos rir a esse respeito, no Winters.    

- Consentiste que se rissem de mim? - perguntou-lhe Joan, furiosa.  

- Nunca o fizeram na minha frente, mas ouvia-os cochichar.      

Numa terra como esta sabe-se tudo.    

Joan não respondeu. Por fim, Francis levantou-se, bocejo ruidosamente e disse, no tom ofendido que empregava, às vezes, ao falar com a mãe:

-Bem, se não queres pedir não peças.

Foi para o seu quarto e despiu-se. Quanto mais pensava, mais lhe parecia que ninguém o poderia ajudar, a não ser Martin Bradley. E Joan não lhe queria pedir... Inconstante como todas as mulheres. Pensou, por momentos, nas mulheres e na sua inconstância. Nem a mãe escapara à regra. Aprendera a observá-la, quando lhe queria pedir alguma coisa, para saber se o dia era ou não propício. Só Fanny não mudava. Essa estava invariàvelmente no bosque, à noite, junto do lagozinho ou da árvore caída, cujos ramos formavam uma tenda que os cobria. Querido rapaz, não me deixes nunca. Procurar-te-ei em toda a parte, arrastar-te-ei para baixo, se alguma vez me deixares. Ouvia sempre a sua voz misturada com o murmurar da água, uma voz doce, espessa e cantante. Começou a suar, atirou-se, de bruços, para cima da cama e sentiu-se afundar num abismo negro e insondável. Estava perdido, não tinha ninguém que o salvasse, que o ajudasse a fugir.

Joan, ao passear sòzinha na estrada do sul, na tarde seguinte, passou pela casinha de pedra onde Mrs. Mark vivia e ouviu-a chamar esganiçadamente o seu nome, da janela.

Gostara sempre daquela casinha de pedra. Estava isolada da

aldeia e tinha um ar firme e idoso, com as janelas de vidros pequenos cerradas contra o vento e a tempestade. Outrora, dizia Mr. Pegler, havia diversas casas de pedra em Middlehope. Todas as mais antigas eram assim, mas na euforia do fim do século as pessoas tinham adquirido certas ideias citadinas, deitado abaixo as boas casas construídas pelos avós e feito imitações de tijolo vermelho. Fora nessa época que os Bradleys tinham construído a sua grande casa quadrada, de tijolo. A fábrica prosperava, nesses tempos, e os negócios corriam bem. Mas Mrs. Mark não quisera saber para nada da moda do tijolo e a sua casa lá estava, com mais de cem anos. Joan parava sempre a admirá-la e a acenar ao rosto de Mrs. Mark, atrás dos vidros da janela. As vezes entrava, um instante. Agora, ao ouvir o seu nome, meteu pelo carreiro invadido pelas ervas e abriu a porta. Teve o cuidado de não cumprimentar Mrs. Mark, pois toda a gente conhecia a sua aversão por aquilo a que chamava palavras ocas, sem significado. Se lhe davam os bons-dias ou as boas-tardes, respondia sempre: Diga o que tem a dizer e despache-se.

- Esperei até ter a certeza, e já a tenho - disse, bruscamente,

a Joan. - O matulão do teu Francis passou por esta casa a noite passada e encontrou-se com uma rapariga. como eu tinha a certeza que sucederia. Mas não era assunto da minha conta. A rapariga pertence a esse rebotalho de cor. Não é a primeira vez que assisto a tais coisas e desagrada-me que brancos e negros se misturem. Desagrada-me tanto que o teu pai lhes vá pregar como que o teu irmão se vá divertir com eles.

Deixem-nos em paz!

Joan fitava Mrs. Mark, sem compreender. A voz desagradável da velha soava aos seus ouvidos, seca e áspera, mas ela olhava, fixamente, as pálpebras sem pestanas e os ossos pontudos do queixo e das faces. Aquela não era a cara de Mrs. Mark, era uma estranha combinação de linhas, ângulos, sombras e planuras, donde as orelhas saíam, como membranas transparentes.

- É inútil não ver o que tem de ser visto - prosseguiu a velha. - Sabendo-se o que se passa, pode-se remediar o mal. Já vi muitos passar para South End - avô, pai, filho... Vão todos.

South End é como um barco para esta aldeia de Middlehope, todos embarcam nele. Não indico nomes, mas gostava da tua mãe...

Tira aquele rapaz desta terra. Pareces-te com a tua mãe, embora sejas grande como uma casa. É difícil para uma mulher ser assim, do teu tamanho, mas cada um é como nasce.

Os ângulos e as planuras voltaram a ser de súbito a cara de Mrs. Mark.   

- Tem a certeza de que era o Francis?- perguntou-lhe Joan.

- Não o conheço desde garotinho? Agora vai-te embora. - Recostou-se e fechou os olhos. -Estas minhas pernas... Estou morta até aos quadris, todos os anos morrem três centímetros do     meu corpo... Até posso dizer, com exactidão, o mês e o ano em que morrerá o resto. - Riu-se entre dentes, sarcástica, e depois       acrescentou, rispida: - Vai-te embora, pequena! Já sabes o que tens a fazer, não sabes?

- Sei - redarguiu-lhe Joan. - Desceu a estrada em grandes passadas, deixando impressas no pó enormes pegadas, como as de um homem. Tinha a cara vermelha, do calor do sol de Agosto, e sentia a pele transpirar. Mas isso não importava. Que faria a mãe pelo Frank? E ela, que devia fazer?

A imaginação fugia-lhe, abandonava-a... Aproximou-se de casa, mas retrocedeu. Não queria ver o irmão, pelo menos enquanto não pensasse em qualquer solução. Claro que ele tinha de se ir embora dali. Francis confessara-lhe o seu desejo de voar e ela respondera-lhe que não podia pedir nada a Martin Bradley...

Seguiu para oeste e virou para a estação de caminho de ferro, onde a rua acabava. O comboio do fim da tarde chegara e partira, mas Joan viu, à sua frente, um vulto alto e magro, no qual reconheceu Martin. Que fazia ela ali? Virara para oeste, pensara no seu nome e os seus pés tinham-na conduzido pelo antigo caminho. Afrouxou o passo, a ofegar um pouco. Francis dissera que Martin Bradley o podia ajudar. só Martin o podia ajudar.

- Martin! - chamou, em voz alta. - Martin! Martin Bradley!

Ele parou, voltou-se e esperou por ela, elegante e imóvel. Quando se aproximou, Joan viu-o sorrir, ao de leve, e compreendeu, acto contínuo, que devia estar afogueada e suja de pó. Mas que importava o seu aspecto?

- Não se trata de mim - declarou, sem preâmbulos. - O meu irmão, Francis, quer ser aviador e disse-me que talvez tu soubesses como o poderia conseguir.

Fitou-a, surpreendido.

-Nunca se sabe o que esperar de ti, Joan!

A sua voz era fria, tolerante e um pouco desdenhosa, mas isso não importava. Como era possível que um homem trabalhasse todo o dia na cidade e regressasse a casa sem uma partícula de pó no fato escuro e imaculado?

- Não se trata de mim - repetiu Joan, obstinadamente, e viu que tinha as mãos sujas.

- Não se trata de ti. - murmurou Martin, devagar. Joan percebeu que ele recordava e sentiu-se agoniada, mas continuou à espera, teimosamente.

Havia muito tempo que não se lembrava da aviação, pensou Martin, a olhar para Joan. Nem mesmo quando estava nas nuvens, por cima dos campos inimigos, pensava em voar. Todos os seus pensamentos se concentravam na máquina que tinha de manejar com precisão, delicada e instantâneamente, quando o momento chegasse, para soltar aqueles dardos de morte. Bair, um companheiro de esquadrilha, estava sempre a pedir chuva. uMeu Deus, não as posso ver quando há nuvens, não vejo onde caem... Bair atormentava-se todos os dias, mas ele não permitia que o seu pensamento ultrapassasse aquele momento em que apontava e disparava. A bomba atingira o ponto escolhido? Então dera na mouche...

Não se preocupava mais com o assunto. Era como arrancar uma nota certa, ao órgão. Batia na tecla, ouvia a ressonância apropriada e passava à nota seguinte.        

- Quer ser aviador? - repetiu. - Agora não sei nada acerca de aviação.      .

- Estiveste na guerra - insistiu Joan.    

Afastou apaixonadamente do pensamento a ideia de que beijara aquele homem, de que beijara as suas mãos, os seus lábios, as manchas brancas do seu cabelo, aos lados. Se pensasse nisso, agoniar-se-ia. E, agora, não era ela que importava e, sim, o Francis. Aquele homem parecia-lhe velho, mais pequeno, mirrado. Ela era mais alta do que ele, embora então não o fosse, com certeza.

Devia ter crescido. Ou talvez não...

- Mas se conheceres alguém... - teimou. - Deves conhecer um piloto.       

- Conheci o Bair, evidentemente - redarguiu, pensativo. Roger Bair. Voei com ele... Não sei, mas creio que continua a voar. Não nos escrevemos nem nada, mas eu podia. . .

-Onde o poderá Francis encontrar?      

- Não sei, talvez...

- Onde é que ele voa ?  

-Creio que trabalha num aeródromo, à entrada de Nova Iorque...      

- Dá-me um bilhete para ele, a apresentar o Frank - insistiu, implacável, sem querer saber do seu pouco interesse. - Ele deve lembrar-se de ti, com certeza não te esqueceu. Tens um

cartão? Talvez possas escrever: Apresento-te Francis Richards. Em        memória dos velhos tempos, tudo quanto fizeres por ele será apreciado... " Qualquer coisa deste género.

Agora que pedira um pouco, era capaz de pedir muito. Instigou-o com os olhos, com a ansiedade da sua voz, com o ímpeto e o vigor do seu corpo robusto. Abriu ràpidamente a mala e tirou um lápis pequeno, pois tinha o hábito de roer os lápis. Ao vê- lo, Martin sentiu-se repugnado.

- Tenho uma caneta, obrigado - disse friamente, e tirou da algibeira interior uma caneta de tinta permanente, com um aro de ouro.       

Em seguida tirou da carteira um pequeno cartão, no qual escreveu, com a sua letra bonita: Apresento-te Francis Richards.

Parou, hesitante.

- Não gosto de abusar de antigos conhecimentos - declarou.

Mas agora Joan era capaz de o abrir de alto a baixo, para lhe arrancar qualquer coisa. Ele nunca lhe dera nada, que lhe desse agora!

-Podes escrever muito recomendado, não podes? É meu irmão e um rapaz muito inteligente. Vá, escreve.

Respirava, ofegante, encostada ao ombro dele. Martin sentia-a ali, enorme, implacável na sua exigência. Queria ir para casa, afastar-se dela, jantar. Agora desagradava-lhe, fugia de a recordar. Passado um momento, escreveu, cuidadosamente: Recomendado. Porque a comparara a um rapaz encantador? Era uma mulher e ele odiava mulheres, sobretudo quando tinham cabelo comprido. Além disso, era mais alta do que ele.

Joan arrancou-lhe o cartão da mão e correu para casa. Levava consigo a libertação do Frank! Subiu a escada, a gritar por ele.

- Creio que está no quarto - disse-lhe Hannah, da cozinha.

       Joan entrou no quarto do irmão e encontrou-o deitado na

cama, de olhos fixos no tecto, mãos debaixo da cabeça, cara corada e amuada, frouxa de desespero. Virou os olhos para ela, ao ouvi-la.

-Tenho aqui uma apresentação para Roger Bair, Frank - gritou-lhe Joan. - Podes ir imediatamente!

Francis sentou-se na cama, emocionado.

- Posso ir ?

- Podes - respondeu, sùbitamente exausta, e sentou-se.

- Não tenho dinheiro - murmurou, assustado.

-Eu tenho quase dezoito dólares. Dou-tos.

Olhou-o, e sentiu um nó na garganta. Que aconteceria, se não tivesse sabido?

- Que tens? - perguntou-lhe o irmão. - Estás branca como a cal.

Joan levantou-se e abanou a cabeça. Não lhe podia dizer que sabia, não lhe podia falar.

-Arruma as tuas coisas. Quero que partas esta noite. O avião dele talvez levante voo de manhã cedo; ouço-os no céu, antes de me levantar. Vou buscar o dinheiro.

Subiu a correr a escada do sótão, abriu a arca e tirou a caixa de sândalo, cheia até meio de cêntimos, níqueis e alguns quartos de dólar. Estes dava-lhos o pai, para a colecta das reuniões missionárias. Dava-lhe um todos os meses, no dia da reunião.

- A tua mãe costumava dar todos os meses vinte e cinco cêntimos à sociedade missionária estrangeira. Gostava que continuasses a fazer o mesmo.

- Sim, pai.

Em vez disso, porém, metia as moedas na caixa. Rose levara seis, as restantes levá-las-ia, agora, o Francis. Viu os olhos da mãe brilhar, na sepultura.

Para bem do irmão, era preciso que fosse para longe, para muito longe, e que não se demorasse nem mais uma noite. Arrumou-lhe febrilmente a mala: camisas lavadas, gravatas, a gravata vermelha de que a mãe tanto gostava e toda a sua outra roupa. Ele andava de um lado para o outro, despenteado e de olhos brilhantes. Mas não estava alegre. Tinha o rosto grave, tenso, preocupado. O ar amuado da boca vermelha, ainda de lábios grossos como os de uma criança, desaparecera, contudo. Não falavam. Joan receava gritar-lhe, se abrisse a boca: "Como pudeste fazer o que fizeste?" E Francis não falava porque no seu pensamento só ele cabia, naquele momento. Todas as outras pessoas do mundo se encontravam abaixo do horizonte do seu espírito. Sòzinho, ia tentar conquistar a liberdade, aproveitar a oportunidade que se lhe oferecia. Se a irmã falasse, seria capaz de lhe gritar que o deixasse em paz. Doía-lhe e nauseava-o a complicação em que se metera, mas sentia que se libertava dela e subia ao céu, com largas asas de prata.

-Pronto -disse Joan, levantando-se.- Está tudo na mala, menos a escova de dentes. Janta e lava os dentes antes de partires.

Podes apanhar o comboio das nove horas e chegar a Nova Iorque às onze. Procura logo uma Y. M. C. A. (') e, de manhãzinha, vai ao aeródromo e pergunta por ele. Escreve-me a contar como tudo se passar, Frank. Escreve-me amanhã à noite, sim?

- Com certeza - resmungou Francis.

Custava-lhe a crer que fosse, realmente, abandonar aquele quarto. Vivera ali tanto tempo que não lhe parecia possível que pudesse dormir noutra cama. Mas naquela mesma noite dormiria num leito estranho e desconhecido, numa cidade que nunca vira. Não fora uma única vez a Nova Iorque, e agora, de súbito, ia dormir lá.

- Vende a minha bicicleta! - disse, de repente, a Joan. - O Jack Weeks quere-a e talvez te dê quinze dólares por ela. Mas acautela-te e recebe o dinheiro antes de lhe dares a bicicleta, pois ele só não te enganará se não puder.

-Vendê-la-ei e mandar-te-ei o dinheiro - prometeu-lhe Joan. -Se não arranjar o emprego...

-Se não arranjares um emprego, arranjarás outro-interrompeu-o, com firmeza.-Não voltes. Mas eu tenho a certeza de que arranjarás.

O irmão olhou-a, numa interrogação muda. Saberia alguma coisa? Mas como poderia alguém saber se ele nunca dissera nada? Até mesmo na loja, quando os outros rapazes se gabavam das raparigas que conheciam, ele se calava. Nunca ninguém o vira com nenhuma rapariga, pois nunca passeava com elas. Encontrava-se com a Fanny e despedia-se dela na escuridão do bosque, para lá da casa da velha Mrs. Mark, ela seguia para o sul e ele para o norte. Nunca falara. O silêncio era o melhor. Não dizendo nada, ninguém podia saber.

- O jantar está pronto e o seu pai à espera - gritou Hannah, de baixo.

-Vou dizer ao pai-decidiu Joan. - Ele não compreenderá, mas tem de saber.

Dirigiu-se para a casa de jantar, onde a mesa estava posta

 

(') Young Men's Christian Association-Associação de Jovens Cristãos. (N. da T.)

 

para três. Em breve seriam apenas dois. A ideia aterrorizou-a. Como tudo mudava depressa, como a vida era incerta! Aquela casa parecera-lhe, durante muitos anos, tão permanente como o seu próprio corpo. A mãe, o pai, Rose, Francis e ela própria, cinco pessoas cuja existência em comum parecia tão certa e imutável como o nascer e o pôr do Sol.

O pai entrou na sala e, naquele momento, Joan viu-o diferente, melhor. Era um velho frágil e representava, para ela, tudo quanto lhe restava da segurança da sua infância.

-Onde está o Francis? -perguntou o reverendo, e olhou vagamente à sua volta.-Tenho de me sentar; estou fatigado, hoje.-Sentou-se no seu lugar, à cabeceira da mesa, apoiando-se nos braços da cadeira.

- Vem já - respondeu Joan, e sentou-se também; dir-lhe-ia agora, depressa, antes que o irmão descesse. - Pai, o Frank arranjou um emprego. Pelo menos tudo indica que o arranjou... Vai para Nova Iorque.

O pai começara a meter a colher no prato da sopa espessa, ansioso pelo reconforto do seu calor, mas ao ouvir a filha parou e olhou-a.

-Um emprego? Mas ele ainda não acabou de estudar! Que queres dizer? Ele não vai para a universidade? Será estranho, se o meu filho não frequentar a universidade. Além disso, eu pensava que ele começava a prestar atenção a Deus. Tem ido à igreja com tanta regularidade que pensei que...

-Arranjou um emprego - interrompeu-o Joan, levantando a voz e pronunciando claramente as palavras.-Quer ir. Parte esta noite.

- Esta noite! - repetiu o velho, estupefacto. - Não me disseram nada...

-Ele só o soube esta noite. Os empregos têm de se aproveitar quando aparecem.

-De que emprego se trata?

- O Martin Bradley vai ajudá-lo.

O pai começou a comer a sopa, em silêncio. Falaria com o Francis, pensou. Com a Joan pouco adiantava falar, pois as mulheres pouco ou nada sabiam. O que o rapaz não dissera à irmã diria ao pai. Esperou que o filho entrasse e, nesse momento, levantou os olhos do prato e viu-o, o que não acontecia havia muito tempo. Francis tinha as faces muito coradas e os olhos lembravam os de Mary. O filho entrou, sentou-se sem perda de tempo e começou a comer á pressa, sem dizer, afinal, nada ao pai.

O velho sentiu-se separado daqueles dois jovens, isolado. Não lhe diziam nada, estavam cheios de planos dos quais não lhe falavam. Limpou a boca e começou, brandamente:

- A Joan disse-me que vais partir...

- Esta noite. Hannah, traz-me bolo de passas! - gritou, sùbitamente eufórico. - Despacha-te, minha velha, pois é a tua última oportunidade. Vou-me embora.

-Não vai nada! - exclamou a criada, antes de sair. Mas ele gritou-lhe:

- Vou-me embora esta noite mesmo! Arranjei um emprego na grande cidade!

- Ora adeus, quem o queria? - replicou a mulher, enternecida, pondo-lhe o bolo à frente.

- É verdade, Hannah -disse Joan.

Para Nova Iorque, não! - exclamou Hannah, de cara franzida, como se lhe tivessem atado um fio à boca.

-Sim -insistiu Joan.

- A sua mãe não quereria ouvir falar em tal coisa, dizia que o Frank devia estudar até aos vinte e dois anos. Lembro-me porque ela, coitadinha, contava os anos que faltavam para ficarem os três despachados.

-Vou ser aviador! - gabou-se Francis, com a boca cheia de bolo.

-Para partir o pescoço? -resmungou Hannah, incrédula.Não é capaz de descer a escada sem dar um trambolhão!

-Aviador! -exclamou, de súbito, o velho.-Não me disseram nada.

Pensou, vagamente, que os filhos diziam mais coisas à criada do que a ele próprio. No entanto, fizera sempre tudo quanto pudera por eles, rezara muito em sua intenção, sofrera agonias profundas, com receio de que as suas almas estivessem em perigo. "O Deus, meu Pai, salva as almas dos meus filhos e faz com que Te conheçam!

E agora estavam ali sentados, jovens e intoleràvelmente cruéis, desconhecedores de quanto por eles fizera, sempre a gracejar acerca de coisas que ele não compreendia. Naquele momento, por exemplo, Francis apoiava o polegar no nariz e fazia caretas absurdas à criada.

Como ninguém lhe dissesse nada, o reverendo suspirou e murmurou, paciente:

-Creio que deves fazer o que te parecer melhor..

Pela primeira vez, sentia, sem dúvida nenhuma, a falta de Mary. Ela teria falado ao filho, enquanto ele não sabia que lhe dizer. Ficou à mesa, a beber chá, até Francis acabar a sobremesa e ir ao quarto buscar as suas coisas. Ao vê-lo de mala, soergueu-se da mesa para o ajudar, para lhe demonstrar que sentia a sua partida. Mas Hannah antecipou-se-lhe. Percebera que não se tratava de brincadeira e apressara-se a arranjar-lhe umas sanduíches.

-Deixe ver a mala. A viagem há-de fazer-lhe fome. Tem sempre fome, quando anda de comboio. Mas a sua mãe não consentiria que isto acontecesse, não! Desde que ela partiu, ninguém teve mão em si. Pronto, vá-se embora. Eu levo-lhe a mala. Levei a da Joan quando foi para a universidade, a de Rose quando partiu para os pagãos e agora levarei a sua.

- Não se apresse, pai - disse Joan, enquanto punha o chapéu. - Acabe o seu chá em paz. Eu levo-o ao comboio, no carro, e volto logo. No fim de contas, ele vai só para Nova Iorque. Não é longe.

Nova Iorque será apenas o lugar donde saltarei! - afirmou o rapaz, a rir.

Estava livre, livre! Talvez naquele momento Fanny o esperasse no bosque, junto do lago, na quente e escura noite de Verão, mas ele fugia-lhe. Não precisava de voltar, não voltaria nunca!

- Adeus. Hannah! Manda-me bolinhos uma vez por outra! - e despediu-se da criada com um grande beijo.

Hannah choramingava, mas fingiu-se zangada e replicou-lhe:

-Gostava de saber para onde quer que lhos mande. Sendo Nova Iorque tão grande como é!

-Se os mandares, saberei, pelo cheiro, que estão a chegar -

respondeu-lhe, alegremente. - Adeus, pai. - Sentiu a mão velha, fria e seca agarrar por momentos a sua, e apressou-se a largá-la. - Escreverei.

O     velho levantou-se e acompanhou-os, entristecido, à porta. - Vai à igreja, sim? - rogou-lhe. - Tens sido um frequentador tão certo.

-Adeus, adeus...     despediu-se Frank, sem responder.

O velho ouviu o saibro saltar, no pátio, e o carro desapareceu.

Adeus, Frank - disse Joan, em tom brusco, na estação.

O comboio estava prestes a partir e o vapor erguia-se, branco, na noite. Fitou o irmão, com os olhos à altura dos dele. Francis era, agora, da sua altura e tinha os ombros largos, como os de um homem. Assim, à sombra, a sua cara era, também, a cara de um homem e havia experiência nos seus olhos. Joan retraiu-se dessa experiência que adivinhou e não o quis beijar. Mas ele mudou, de repente, modificou-se num instante, diante dos seus olhos. Abraçou-a, apoiou a cabeça no ombro dela e Joan sentiu o rosto do irmão a tocar no seu pescoço.

- Joan... murmurou o rapaz, baixinho.

Ele estava com medo, Joan sentia-o medroso! Que tola fora, ao julgá-lo um homem! Não passava de um rapazinho, afinal. Fosse o que fosse que tivesse feito, era um garoto. Passou um braço pelo seu corpo jovem e forte e apertou-o a si. Logo a seguir, porém, Francis endireitou-se e sorriu, de olhos húmidos.

- Ë... é estranho sair de casa!

-Eu sei.

Largou-o. Devia saber, sempre, exactamente, quando o devia

soltar, para que ele não sentisse que se revelara, que mostrara alguma coisa de si mesmo e sofresse por isso.

-Mas estou contente por ir, sinceramente contente, -Eu sei-repetiu, com firmeza.

O comboio apitou e Francis subiu o primeiro degrau da carruagem.

-Vamos partir!-avisou o condutor.

- Lembra-te -murmurou Joan, desejosa de fazer pelo irmão tudo quanto pudesse-, lembra-te de que poderás contar sempre comigo, como podias contar com a mãe...

Francis fitou-a, um segundo, mas depois o comboio levou-o, sem que ela ouvisse a sua resposta.

Agora tinha de descobrir uma vida qualquer, para si, naquela casa vazia. Parecera tão pequena e atravancada, quando lá estavam todos... Habituara-se a ir para o seu quarto, se lhe apetecia estar sòzinha para sonhar, ler ou escrever a sua música. Era uma casa barulhenta, e a mãe, que gostava de barulho, nada fazia para o evitar. "Gosto de ouvir passos", costumava dizer. "Gosto de pensar, ao ouvi-los: Ë a Joan, ou é a Rose, ou vem aí o meu rapaz. E chegava a increpar o marido: "Porque sobes tão sorrateiramente a escada, Paul? Porque andas sempre com esses chinelos? Gosto de ouvir passos de homem, fortes e vigorosos!" Uma vez, depois de costurar durante muito tempo em silêncio, dissera a Joan: ,O teu pai é um bom homem, mas gostava que assobiasse ou cantasse. Gosto de ouvir um homem. Ainda bem que o Frank anda sempre a fazer barulho, cá em casa!"

Agora Joan já não precisava de ir para o seu quarto, quando queria estar só. Podia sentar-se em qualquer sala e ficar só, pois ninguém entraria nem voz nenhuma se ouviria - a não ser a de Hannah, da cozinha: "Acho melhor dizermos a Mr. Billings que não mande tanta carne, mesmo dada. Ë aborrecido levar uma semana inteira a comer da mesma peça de vaca ou de porco!) E Joan respondia-lhe, donde se encontrasse. As suas vozes ecoavam pela casa silenciosa.

Eram cada vez em menor número os membros da igreja que os iam visitar. Lembrava-se que, no tempo da mãe, entrava e saía gente, constantemente, a fazer perguntas e a pedir conselhos.

Oh. Mrs. Richards, só lhe quero perguntar mais uma coisa! Acha que sirva sorvete de morango, ao jantar, ou torta de maçã? Creio que os homens gostam de torta, mas..." "Mrs. Richards, a minha mãe pede o favor de lá ir num instantinho ver a garganta do Danny, pois ela não sabe se deve chamar o médico ou não.

Mrs. Richards, lembra-se se foi na última Páscoa ou na anterior que o coro cantou...

Mas agora poucos vinham. Às vezes, se estava no jardim a apanhar flores, parava uma ou outra senhora. Mrs. Winters, por exemplo, perguntava-lhe: "Tiveste notícias deles esta semana, Joan? Eu recebi uma carta, a semana passada. Já chegaram à sua missão. numa terra cujo nome não sei pronunciar. O Rob diz que há lá muito calor e muitas moscas e mosquitos. Está todo preocupado com os cegos... Que diz a Rose?" E Joan respondia-lhe: "Ùltimamente não tenho tido notícias dela, Mrs. Winters. A Rose nunca gostou muito de escrever cartas..." Mrs. Winters suspirava e, pouco depois, aconselhava: "Esses lírios deviam ser cortados antes de darem semente, Joan. Os bolbos estragam-se, quando não se cortam as plantas."

Joan prometia que as mandaria cortar e via Mrs. Winters descer a rua. A mãe de Rob demitira-se da sociedade missionária e não assistia, sequer, às reuniões. "O que tenho para dar", confessara, uma vez, em segredo, a Joan, "será para o Rob. Já não me posso dar ao luxo de distribuir o meu dinheiro por toda a gente. Devemos fazer tudo o que pudermos pelos nossos." As vezes, preocupava-se: "Tenho o pressentimento de que o Rob não gasta consigo o que lhe mandamos. Quando escreve, não faz outra coisa senão falar nos pobres. Já lhe disse que pobres haverá sempre e que o que lhe mando é para ele, mas ninguém me dá ouvidos.. Que diz a Rose?"

Sim, que dizia a Rose? Era tão pouco o que diziam as suas cartas! A sua letra grande enchia as páginas e deixava-as quase tão vazias como antes. "Esta manhã, o Senhor abençoou-nos outra vez com o baptismo de mais sete pessoas, quatro mulheres e três homens. O trabalho prospera. a despeito da grande oposição que nos fazem, mas nós lembramo-nos de que Deus abençoa os perseguidos e...

Joan gritava-lhe, através do mar: "Rose, onde é a tua casa e qual é o seu aspecto? Usaste a camisa de dormir, de cetim? Tu e o Rob amam-se? Passeiam à noite no vosso jardim, de mãos dadas. comem juntos, dizem graças, de vez em quando, e esquecem, por momentos, os cegos, os aleijados é os pobres?" Mas as cartas de Rose não continham nada que não pudesse ser lido em voz alta nas reuniões missionárias, onde eram escutadas com seriedade e delicadeza e, por fim, com indiferença. Não eram pessoas verdadeiras, aqueles convertidos... Joan não conseguia imaginar as suas caras, mas não duvidava de que essas distantes e amareladas criaturas estivessem salvas.

-As coisas parecem correr tão bem - comentava Mrs. Parsons, bondosamente.

Era agora a presidente, mas as outras senhoras tinham de estar sempre a espicaçá-la e a emendá-la. Interrompiam-na meia dúzia de vezes, em cada reunião. "Não podemos aprovar uma moção sem a votar. Mrs. Parsons., quero dizer, senhora presidente... "Ah, sim, murmurava Mrs. Parsons e, corada, tentava meter na ordem o seu irrequieto pensamento, que andava sempre longe dali. Geralmente sonhava, feliz, enquanto as outras falavam, sonhava com a história que estava a escrever, uma linda história acerca de uma rapariga e de um homem... Quiçá desta vez, certamente desta vez... Quando ouvia ler as cartas de Rose, pensava que aqueles dois corajosos jovens missionários podiam ser os heróis de uma bonita história. O seu espírito enchia-se de imagens: dois vultos brancos, semelhantes a nuvens, a abençoar os negros, multidões devotamente ajoelhadas diante deles... Se conseguisse escrever tudo tal como o via, talvez alguém quisesse, finalmente, publicar...

Ouviu-se um murmúrio de assentimento na pequena sala cheia de mulheres que tricotavam, cosiam e faziam croché. Mrs. Billings passajava sempre. "Tenho tantos rapazes!", dizia, a rir. "Têm pernas como centopeias!, Tinham o espírito cheio do trabalho manual a que se dedicavam. "Uma de meia, duas de reverso, virar, duas de meia e uma de reverso...", murmurava Mrs. Weeks, entre dentes, e observava, em voz alta: "È bom terem tanta vontade de escutar os Evangelhos... Uma de meia, duas de reverso, virar..., Só Miss Kinney não tinha nada que fazer. Sentava-se, a sorrir, de olhos imensos e brilhantes, a repuxar os lábios com uma das mãos.

Quando estive em África... começava, amiúde, mas havia sempre quem se apressasse a interrompê-la: "Senhora presidente, não lhe parece que devemos estudar o assunto do próximo bazar? O nosso orçamento... E depois explicava, a quem lhe estivesse

ao lado: Se não calamos a Sarah Kinney, nunca mais saímos

daqui.

Nas caras daquelas mulheres casadas, já nada jovens, via-se a mesma expressão, que parecia dizer: ,Pobrezinha! Não lhe podemos ligar importância... Está a ficar tão esquisita!"

Sim, as cartas de Rose liam-se bem nas reuniões missionárias, mas não quebravam o silêncio que reinava em casa.

Francis garatujara a sua primeira carta:

Querida Joan: Arranjei emprego, mas ainda não voo. Sou uma espécie de moço de recados e tenho de fazer tudo quanto me mandam, mas ontem deixaram-me ajudar a limpar um avião. Se continuar a portar-me bem, talvez um dia aprenda a voar. Disseram-me que todos começam assim, do princípio. Manda-me para aqui o dinheiro da bicicleta. Moro num quarto defronte do campo, com um tipo que conheci cá. Estou bem.

O silêncio da casa tornou-se mais profundo. Que podia Joan fazer naquela casa deserta? Dava brilho às mesas e às cadeiras e mudava as flores todos os dias, e aprendeu a preocupar-se com a simples sombra do pó. Tornou-se importante, para ela, se uma cortina não caía a direito ou se um livro não estava bem arrumado. Mas a única mão que podia desalinhar uma cortina era a do vento, a única mão que tocava em tudo era a sua. O pai ia do gabinete para a sala de jantar e desta para o quarto, e se entrava, por momentos, na sala, nunca lá se demorava. Se lá entrava, ou era para esperar enquanto a filha lhe procurava o chapéu, ou para descansar um momento, quando regressava a casa. Entrava e saía, mas a sua passagem não deixava rasto.

Ned Parsons bateu uma ou duas vezes à porta: "Joan. queres ir ao piquenique de terça-feira? Queria ir? No primeiro Verão fora a toda a parte. Tentou ainda uma vez, mas eram todos mais novos do que ela e pareciam muito, muito mais novos. Entre o seu regresso à aldeia e aquele momento, tinham crescido novos rapazes e raparigas, ao lado dos quais se sentia velha. Tratavam-na com muita cortesia: Miss Richards, quer salada de batata?" ,Miss Richards, importa-se se escalarmos a encosta do monte? Joan tinha vontade de lhes responder: ,Vou com vocês. Adoro escalar montanhas!" Mas via o exemplo da Netta Weeks, da pobre e lívida Netta Weeks, que se esforçava por ser como os mais novos, barulhenta e alegre, se recusava a ficar com as pessoas mais idosas e teimava em brincar e seguir os pares jovens. Joan, atenta, sentia-se apunhalada pelo desdém e pela irritada tolerância daqueles. Compreendia que, atrás dos seus rostos frios, jovens e tolerantes, rangiam os dentes, desejosos de perguntar uns aos outros: Porque não nos deixa a idiota da solteirona em paz?"

Por isso, Joan respondia-lhes: "Não, claro que não me importo. Prefiro ficar a conversar com as vossas mães."

Não passeava com Ned Parsons; sabia que já não serviria de nada. Agora queria ouvir a autêntica voz do amor. A sua cara pálida e angulosa, de empregado de escritório, os seus olhos protuberantes, de expressão aguada e romântica... Não, o Ned não! Coitado, mal lhe chegava ao ombro.

-Estou fatigada, Ned - respondia-lhe, tranquilamente. - Porque não convidas a Netta? Netta! - Chamava, decidida a obrigá-la a deixar em paz os garotos. - Netta, passeia, por mim, com o Ned. Estou cansada.

Netta vinha logo, com um ar de timidez na cara redonda e pateta, deformada pelos óculos, toda sorrisos e falsa relutância.

-Oh, não quero roubar o teu moço! -exclamava, a rir ruidosamente.

Acanhava-se de Joan desde aquela noite em que a esperara, às escuras. Agora cumprimentavam-se com frequência, de longe: Olá, Netta!" Como estás, Joan? Faz-me uma visitinha, um destes dias. "Passa por cá tu, também." Mas a visita nunca se fazia.

Joan olhava-a serena e gravemente, enquanto ela soltava a sua gargalhada idiota. e respondia-lhe, com simplicidade:

-Ele não é meu. - E ficava a vê-los afastar-se. Netta já dependurada no braço de Ned.

Porque não? Ambos procuravam o mesmo.

Ia para casa sòzinha. Andavam todos à procura do mesmo. Entrava, ao fim da tarde, na casa intoleràvelmente deserta e silenciosa. Não havia vida em parte nenhuma, excepto no seu próprio corpo. De súbito, via-se reflectida no espelho, ao fundo do corredor. Ali estava, grande, forte, corada, cheia de maturidade.

"Nem uma única vez me pediram em casamento", pensava, de olhos fixos no seu corpo. Estava mais pesada, com os seios mais redondos, a boca cheia e vermelha. "Não conheço nenhum homem..." Como a descobriria, algum, ali? Mas era ali que tinha de ficar. ali, naquela casa, enquanto o pai vivesse. Tinha de cuidar do seu velho corpo, alimentá-lo e vesti-lo, conservá-lo quente, enquanto ele cuidava da sua alma. Era essa a vida que lhe estava reservada. Estava amarrada a ele. Foi para o quarto, tirou o chapéu, despiu o casaco e o vestido, deitou-se e sentiu-se invadir por uma febre de desejo que a aterrou.

De olhos fixos no tecto, no silêncio morto da casa, sentiu o seu corpo rebelar-se contra ela, acusá-la, febril de desejo e solidão.

"Creio que seria capaz de casar fosse com quem fosse", pensou, desesperada. "Menos com o Ned Parsons. Quero ter filhos meus!

A casa silenciosa e vazia encheu-se da sua ansiedade e do seu desassossego. Já não tinha importância para si que uma cortina estivesse torta ou que as flores murchassem em determinada jarra. Quem via essas coisas, excepto ela própria, e que apaziguamento era esse para o seu corpo rebelado? Queimavam-na cem pequenas irritações.

-Não quero saber do que havemos de comer, Hannah! - gritava à surpreendida criada.

-Não precisa de me berrar dessa maneira! -protestava a mulher, friamente.

- Oh, Hannah, desculpa! - suplicava, desesperada. - Não sei que tenho, nestes últimos tempos!

-Nem eu! -resmungava a criada, a espetar um gancho no carrapito do alto da cabeça. -Só sei que nunca teve o feitio da menina Rose.

-Pai, vamos a qualquer lado, gozemos umas férias! - suplicou. um dia, ao reverendo.

O pai andava tranquilamente de um lado para o outro do alpendre. Nos dias de chuva, como aquele, em que não tinha de sair, andava sessenta vezes de um lado para o outro, para fazer exercício. Detestava tanto a chuva como os gatos. Desagradava-lhe sentir as solas dos pés molhadas. Se chovia num dia em que tinha de ir à igreja, resignava-se e saía sem uma queixa, com o grande chapéu-de-chuva preto. Mas era agradável se nesses dias não chovia, e ele não se esquecia de mencionar o facto, com gratidão, na sua oração solitária da manhã seguinte.

Joan estava sentada na balaustrada, debaixo das telhas, a ver chover. O pai parou, ao ouvi-la, e registou mentalmente que ia na 23 volta.

-Férias? -repetiu, admirado.-Nunca tive férias!

-Por isso mesmo, goze-as agora.

"Vinte e três... vinte e três..."

-Mas férias de quê?

-Do trabalho- respondeu-lhe a filha, alegremente.

- Que faria eu?

- Passearia, conversaria, veria coisas diferentes...

Começou a 24.' volta.

-Teria de pagar a um substituto -disse, ao passar de novo pela filha. - Além disso, não sinto necessidade de nenhuma mudança. O meu trabalho dá-me tudo quanto preciso.

Iniciou a 25.' volta e quando passou de novo a filha desaparecera.

Quando reapareceu, vinha de impermeável e com o velho chapéu azul na cabeça. Saiu para a chuva. Chovia tanto que, num momento, teve a sensação de estar envolta em lençóis de prata. A água entrou-lhe nos sapatos e bateu-lhe na cara. Comprimiu o corpo contra a chuva, obstinadamente, e levantou a cara para a receber. Batia-lhe nos lábios, como um beijo dado com força, e ela lutava com gosto contra o vento e a chuva, a extenuar o corpo, louca de impaciência. O seu desassossego era tão grande que não conseguia pensar. Só era capaz de sentir. Enquanto andava, em longas passadas, debaixo da chuva, a pisar a erva dos campos e o musgo à volta das árvores, o seu espírito estava cheio de imagens. Francis e a tal rapariga, Martin a encontrar-se com ela no vale oculto... Imagens de amor. Andou até a fadiga lhe deixar o cérebro vazio, e depois, no crepúsculo húmido, regressou a casa.

Quando entrou, o pai esperava-a na casa de jantar. A noite arrefecera e Hannah acendera a lareira e pusera a mesa. O pai estava sentado junto do lume, com as grandes mãos pálidas estendidas para o calor, transparentes à luz das chamas.

- Vens muito molhada - observou, sério.

- Venho. Mudo de roupa num instante. Não espere.

Estava tão fatigada que era capaz de ser, de novo, paciente com ele. Claro que o pai esperaria sem uma palavra, inexorável e obstinadamente dócil, até ela se sentar no seu lugar. Dominava-a pela sua docilidade despida de compreensão. Quando ela estivesse no seu lugar e tudo corresse como de costume, sentir-se-ia satisfeito. Então inclinaria a cabeça e daria as habituais graças a Deus.

Oh, mas agora não havia nada em lado nenhum! -pensava, na sua nova impaciência. A fadiga não durou muito no seu corpo forte e sadio. O sono prostrou-a, revigorador e profundo, acordou faminta, comeu com apetite e o seu corpo ficou de novo inquieto, o seu espírito febril e impaciente.

Na igreja, no domingo de manhã, agarrou-se desesperadamente ao banco, a lutar contra a vontade incontida de saltar, dançar, correr, ser tola e idiota, correr pela estrada abaixo e encontrar um companheiro, gritar a qualquer homem que visse: "Está um dia maravilhoso, as árvores são ouro e o ar é vinho. Venha, venha comigo!" Correriam, passeariam, gritariam...

Escondeu a cara nas mãos entrelaçadas e sorriu. O pai orava: "Desce sobre o Teu povo, ó Deus..." Sorriu, a desdenhar Deus. Não, naquela manhã não queria Deus! Levantou-se depressa, quando o hino foi anunciado.

- "Há uma fonte cheia de sangue..." -, cantou descuidadamente, deixando o seu vozeirão vibrar, apressando-os a todos um bocadinho, apressando Martin Bradley.

Viu-o a olhá-la, pelo espelho existente acima da sua cabeça, obediente ao ritmo e irritado com ela. Mas Joan trasbordava de malícia, parecia não caber na pele, apetecia-lhe arreliar, atormentar, ser estouvadamente caprichosa. Misturava riso à sua voz, a apressá-los, a desorientá-los a todos um bocadinho, entre o órgão e aquela voz travessa, sem saberem ao certo o que não estava bem. No fim sentou-se, fechou o livro e baixou a cabeça para a bênção, enquanto o seu coração dançava, feliz, numa estrada cheia de sol. Oh, tinha de acontecer qualquer coisa, faria com que acontecesse qualquer coisa! Levantou-se, voltou-se e ficou à espera, a sorrir um pouco, a observá-los a todos enquanto reuniam livros e casacos. Faria com que acontecesse qualquer coisa!

Do outro lado da coxia, viu um rapaz alto e forte e reconheceu o jovem camponês abrutalhado que vira no casamento de Rose. Sorriu-lhe, travessa e caprichosa, a fitá-lo nos olhos pequenos e cobiçosos. A cara do rapaz ficou quase da cor do seu cabelo ruivo, enquanto as suas manápulas viravam e reviravam o chapéu de palha, que segurava encostado ao peito. Tinha a boca um pouco entreaberta. Aproximou-se dela e disse-lhe:

-Tenho querido falar-lhe... -A sua voz era arrastada e pastosa e as palavras saíam-lhe, depressa, da boca grande, de lábios rígidos, grossos e lívidos.

-Então porque não fala?- perguntou-lhe, caprichosa, com uma vontade doida de arreliar, de atormentar, de desabafar com alguém.

-Não sabia se você queria... - respondeu-lhe o rapaz, passado um momento, a olhá-la fixamente.

-Parece que não me importo, pois não?-replicou, ainda a sorrir.

Detestou a sua boçalidade, o avermelhado cru da sua pele, mas continuou a sorrir, atrevidamente, aos seus gulosos olhos castanhos. Queria que acontecesse qualquer coisa, fosse o que fosse!

O rapaz deu outro passo na sua direcção e perguntou-lhe, baixinho:

- Se eu fosse à sua casa esta noite, depois da ordenha, sentava-se comigo um bocado, no alpendre?

-Talvez -respondeu-lhe, a rir.

O rapaz inclinou-lhe a cabeça e afastou-se. Joan observou-lhe as costas largas e os braços musculosos, que pareciam querer rebentar o fato azul, barato. Por cima do colarinho branco, duro, tinha o casaco do fato.

À noite surgiu no alpendre, de acordo com o que propusera durante a manhã.

- O seu jardim é muito bonito - disse ele.

-Deu rosas encantadoras, encantadoras! Só foi pena terem tanto piolho. Ele escutava-a, a fitá-la intensamente.

-Na Primavera, pulverizo-lhas com insecticida - prometeu-lhe.

Olhava-lhe fixamente as mãos, o pescoço e os seios. Joan sentiu aquele olhar simples e guloso e, inconscientemente, puxou a saia mais para baixo, para os joelhos, e cruzou os braços no peito.

Como se conversava com um labrego?

- Já fomos apresentados? - perguntou-lhe, em tom alegre. Onde mora ?

-Lá em cima na estrada, para oeste.

Tinha voz dura, desagradável, que parecia sair-lhe desgovernadamente da boca. Parava entre as frases, à espera que a seguinte saísse e os seus lábios hirtos e secos pareciam não estar habituados a articular palavras. Quando falava, juntava-se-lhe aos cantos da boca um pouco de saliva, que não se dava ao trabalho de limpar.

- Não fomos apresentados. nunca nos falámos. No entanto, há muito tempo que vou à igreja, para a ver. - Fez uma pausa e tentou enfiar as mãos nas algibeiras das calças escuras, de ver a Deus, mas não conseguiu; as suas coxas grossas esticavam a fazenda, até quase a rebentar pelas costuras. - A família vai à igreja de Chipping Corners, mas eu mudei, depois de a ver, uma vez. Foi quando passei de carro pela aldeia, para ir vender um vitelo.

- Sim ?

Riu-se, um nadinha divertida. Ia à igreja domingo após domingo, para a ver! Invadiu-a um ligeiro enternecimento e um bocadinho de coquetismo. Aquela enorme e simples criatura era, apesar de tudo, um homem. O rapaz viu-lhe o sorriso fugaz e chegou-se mais para ela, no degrau do alpendre onde estavam sentados, e os seus olhos pequenos fixaram-se nas mãos de Joan, cruzadas nos joelhos. Moveu uma das suas e abandonou-a, como por acaso, no espaço que os separava. Joan adivinhou-lhe o pensamento, o seu único e simples pensamento. Não tardaria a pôr a sua mão na dela. Porque visitaria uma rapariga, a não ser para disso colher alguma simples e directa satisfação? Não se mexeu, sequer, mas impregnou a voz de alegria, deixou que os seus olhos brilhassem de escárnio e que vibrasse amargura no seu riso.

-E eu que não sabia! Tanta fidelidade desperdiçada!

O rapaz esperou, imóvel, enquanto Joan ria, e quando ela se calou redarguiu-lhe:

- Não creio que tenha sido desperdiçada. Foi apenas o princípio de uma coisa que impus a mim próprio fazer. Calculei que um dia me sentaria, assim; no alpendre, consigo. E aqui estou.

Joan olhou-o, agora assustada.

- Calculei - prosseguiu, na sua voz arrastada, emitida pelos beiços rígidos - que viria o dia em que colocaria a minha mão nas suas, assim. - Paralisada, Joan viu a enorme manápula mover-se e descer sobre as suas mãos entrelaçadas. - Assim - repetiu o rapaz.

Sentiu a mão dura e grossa contra a sua carne tenra e olhou-a.

Era larga, com os dedos grossos até às pontas, a palma carnuda e o dedo pequeno dobrado, como se tivesse sido partido.

- Partiu o dedo pequeno? - perguntou-lhe, em voz alta.

Porque perguntava se não lhe interessava, se aquela mão a enchia de repugnância?

- Não - respondeu, sem tirar a mão, que continuava a cobrir as dela, pesada como pedra. - Foi o trabalho que fez isto, só o trabalho. Este está na mesma.

Levantou a outra mão; para lhe mostrar, e Joan viu-a em toda a sua monstruosidade. Viu, até, apesar da pouca luz, as grandes sardas do antebraço, que a manga demasiado curta não tapava por completo, e os pêlos duros e vermelhos que cobriam a carne.

Nas costas da mão tinha o mesmo matagal rebelde e ruivo. Quis sacudi-la, libertar a sua daquele contacto que a repugnava, mas ele continuou a apertar-lha.

- Tire a mão! - disse-lhe Joan, violentamente. - Não gosto que me toquem.

O rapaz esperou ainda um momento; e depois afastou a mão,

sem responder. Joan sentiu-o à espera. Retirara a mão, mas ficara à espera. Certamente voltaria a pô-la.

- Tenho de ir para dentro - disse-lhe Joan, e levantou-se, brusca. - Tenho umas coisas que fazer.

O rapaz levantou-se desajeitadamente, um brutamontes enorme, ainda mais alto do que ela.

Fitou-a um instante, teimoso, e Joan teve, de novo, medo dele.

Mas o rapaz despediu-se, calmamente.

- Então, boas noites. Voltarei, se achar bem.

- Boas noites - respondeu Joan, já à porta. - Boas noites. Correu para o quarto sem olhar para trás. Nunca lhe diria que voltasse, nunca! Sabia bem estar de novo em casa, naquela casa solitária. Onde estaria o pai? Desceu outra vez a escada e bateu à porta do seu gabinete.

- Quem é? Entra.

Joan entrou, depressa.

-Pai...

- Diz.

Estava sentado na velha poltrona, junto da lareira quase apagada, e tinha as mãos entrelaçadas no colo. Vestia o velho e remendado roupão cor de ameixa e tinha o cabelo branco um pouco desordenado, por cima do rosto magro. Joan compreendeu que devia ter terminado a oração da noite. Fitou-a, com o seu olhar místico, e ela murmurou:

- Pai, senti-me, de súbito, um bocadinho. um bocadinho só. Nunca dissera semelhante coisa e o pai olhou-a, constrangido. Parecia a mãe, pensou, alarmado. Quando era mais nova, Mary costumava entrar, assim, no seu gabinete, quando ele já a supunha deitada e a dormir.

-Paul, Paul, sinto-me tão só!

-Só? Mas eu estou aqui, Mary.

-Não consigo sentir-te perto de mim, Paul. Pareces sempre ausente. Vives tão longe de mim!

-Tenho de tratar dos negócios do meu Pai, Mary.

Sentiu a mão da filha no braço; o que aumentou o seu constrangimento. Era um contacto leve, mas possuía o calor trémulo de Mary, sobretudo quando ela era nova.

-Estás doente, joan?

Horrorizado, viu-a cair de joelhos e descansar a cara no seu braço. Não se mexeu. Sentia a cabeça da filha tremer e oúvia-a murmurar:

- Sòzinha. Sòzinha.

Compreendeu que devia fazer qualquer coisa. A medo, levantou a outra mão e tocou no cabelo da filha. Sentiu-o quente e encaracolado à volta dos dedos e apressou-se a retirar a mão. Devia pensar em qualquer coisa para lhe dizer.

- Querias. Pensas que gostarias de me ajudar na missão? Sempre terias em que te ocupar.

Haveria alguém capaz de compreender as mulheres? Joan levantou vivamente a cabeça, olhou-o durante muito tempo e depois desatou a rir, tanto e tão alto que os olhos se lhe encheram de lágrimas. O pai esperou, magoado. Quisera ajudá- la. Por fim, Joan parou de rir e limpou os olhos:

- Está bem, ajudá-lo-ei. Sim, talvez isso me entretenha. Boas noites, meu pobre querido.

Deu-lhe um beijo leve na testa alta e pálida e saiu. Devia sentir-se melhor, pensou o pai, feliz. O riso fizera-lhe bem, embora ele não o compreendesse. Mas se lhe fizera bem. Lembrava-se de ouvir, uma vez, um médico dizer que o riso era um remédio. Porquê, no entanto, aquele pobre querido?

Que fora que Martin prometera e nunca dera, que tocara, nela, sem lhe tirar, que animara sem despertar de todo? Havia qualquer coisa que desabrochava, agora, no seu ser, isolada como uma flor berrante no meio de um campo, solitária. Alcançara uma espécie de maturidade, e aquele homem que a perseguia obstinadamente não tinha mais responsabilidade nisso do que uma abelha que tropeçasse numa bela flor e forçasse as suas pétalas a uma espera ansiosa e perturbada, porque a hora chegara. Agora ele já não fazia segredo dos motivos que o traziam. Vinha todos os domingos, teimosamente, sem pedir, sequer, licença. Cada domingo, Joan adivinhava-o, trazia o seu plano para dar mais um passo em frente. Da primeira vez tocara-lhe nas mãos, mas na segunda agarrou-lhe uma delas e aprisionou-a na sua, de uma maneira que parecia dizer que tinha o direito de fazer aquilo. Na visita seguinte, colocou a mão na cintura de Joan. Ela afastava-se, nauseada, mas perturbada por cada novo movimento.

Se se zangava com ele, e zangava-se sempre com ele a cada novo ultraje à sua dignidade, o bruto esperava, paciente, ou respondia-lhe através dos beiços hirtos, que pareciam nem se mover.

- Não me toque assim, Bart Pounder! - ordenava-lhe, em voz baixa, embora soubesse que, no gabinete, o pai não ouviria; nunca ouvia nada.

- Não? - redarguia-lhe Bart, mas não se mexia.

Então Joan agarrava-lhe na enorme manápula e afastava o seu braço de si, como se fosse uma cobra. Bart consentia, mas antes de se ir embora voltava a tentar. E Joan, sentindo a pressão pesada e teimosa, ficava silenciosa e a tremer. Sabia que, uma noite, ele lhe tocaria no seio e, noutra, lhe beijaria os lábios. Sabia que seria assim, mas ignorava qual seria o fim. Qual seria o fim, quando ele lhe beijasse os lábios?

De noite, depois de Bart sair, acordava, gelada e quente ao mesmo tempo, a perguntar-se qual seria o fim. Tinha medo da noite na casa vazia, apenas com o velho adormecido por companhia, Rose, Francis e a mãe eram como se nunca tivessem existido. Estava sòzinha e não tinha ninguém perto, ninguém em quem o seu coração pudesse confiar. Queria os seus, a sua família. Oh, onde estavam os seus? À roda da sua vida havia profundo, tremendo, remoto silêncio, e ela movia-se, só, em todo esse silêncio, ela que gostava do calor, da proximidade e da segurança da intimidade humana. Envelheceria, envelhecia á espera, como Miss Kinney. Os velhos pareciam viver eternamente, enquanto os novos esperavam. Era má. Não esperava que o pai morresse, amava aquela casa, a aldeia, as pessoas que sempre conhecera. Oh, mas eles nunca a tinham conhecido! Tinham-na visto, apenas, crescer, uma garota alta. Como tu cresces, Joan! Vais ser uma raparigaça! Sim, ela crescera, crescera mais do que todos. Agora já não a conheciam. Viviam nas suas casinhas, satisfeitos, e ela queria tudo. Que poderia ser o fim?

Chegou Novembro. Não podia permanecer dentro dos confins da casa, daquela casa que estava cheia dela. Se se sentava numa sala, fosse em qual fosse, o aposento ficava logo cheio dela, a rebentar, e Joan sentia-se tão desassossegada que não podia ficar. A época sonhadora, do Outono, passara, o calor do S. Martinho abandonara as noites serenas.

Também não podia ficar nos confins do jardim. O jardim que cultivara estava morto, acabado, e a sombra do campanário da igreja projectava-se, vivamente recoxtada, na erva acinzentada pela geada. Mas lá fora, nos bosques ao longo da estrada, ainda havia beleza selvagem. Havia plenitude nas maçãs vermelhas, nas uvas pretas, bravas, a espreitar pelos muros de pedra, nas nozes que caíam e nas peras tardias, amarelas. A energia de cada cor, avivada pelo frio agreste, era uma chicotada que aumentava o seu desassossego.

Procurou o pai e pediu-lhe:

-Dê-me o trabalho que me queria confiar. Estou pronta e preciso de fazer qualquer coisa.

Era um pretexto para sair para os campos, para percorrer quilómetros de encantadoras e poeirentas estradinhas, até South End.

- Preciso que me ajudem com a gente nova - explicou-lhe o pai, num entusiasmo comedido.

Claro que não o confessaria a Joan, mas aquilo representava a resposta a uma prece. Não lho confessaria porque, uma vez, era o filho, Francis, pouco mais do que uma criança, dissera-lhe, a propósito de qualquer coisa que ele fizera -já nem se lembrava o quê -, é uma resposta a uma prece, e o rapaz respondera-lhe violentamente: Então não o faço! A gente nova era tão difícil de compreender! Constituíam um problema tão grande para si, na missão, aqueles rapagões negros e aquelas raparigas negras e pintadas! Quando se tratava de cantar, não sabia que fazer com eles. Eram capazes de agarrar num hino e de o enfeitiçar de tal modo, na maneira como o cantavam, que deixava, acto contínuo, de ser um hino. Ainda por cima acompanhavam a música a bater os pés e as mãos. -Havia, sobretudo, uma rapariga que estalava os dedos, como um chicote, cada vez que o ritmo se intensificava.

Um dia, levantara-se e começara a cantar sozinha uma canção que ele não anunciara e que nunca, sequer, ouvira: A cantar com uma espada na minha mão, ó Senhor... Cantava de mãos nas ancas, a bambolear-se, como se dançasse, e ele não tivera outro remédio senão dizer apressadamente a fórmula da bênção e sair. O Senhor não estava satisfeito. Mas talvez Deus se quisesse servir de Joan, se ela aceitasse. Olhou a filha, com um inesperado sentimento de dependência. Era tão alta e tão forte! Oh, os jovens eram todos tão fortes! Gostaria de estender a mão e tocar no braço da filha, mas retraiu-se, porque nunca o fizera. Limitou-se a sorrir docemente, sem se atrever a olhá-la bem nos olhos.

- Verás o que é preciso - murmurou. - Quando chegares, verás o que é preciso fazer. Tenho a certeza de que serás guiada.

Os seus olhos perderam-se, melancólicos, no espaço.

Joan foi a pé para South End, numa tarde cheia de sol. Apetecia-lhe andar ao longo da estrada acidentada, procurar apaixonadamente toda a beleza que porventura lá houvesse. Viu um enorme carvalho morto, em tempos abatido por um raio, envolto, como torre incandescente, em folhas escarlates, de videira virgem. Numa pedra, uma trepadeira rastejava, como uma cobra vermelha. O sol descia do céu dourado e os montes distantes eram azuis. Nas ruas de South End, o sol brilhava em todas as latas, estilhaços de vidro e vestidos vermelhos. Ali gostavam do encarnado. Os bebés usavam bibes encarnados e as raparigas novas vestiam blusas encarnadas e punham fitas da mesma cor no cabelo entrançado. Floriam sardinheiras vermelhas em latas ferrugentas e as últimas flores do ano brotavam, cor de cereja e escarlates, de sementes espalhadas ao acaso.

Comprimiam-se na capela, numa confusão de peles escuras,

fitas encarnadas e olhos pretos, inquietos e indisciplinados. Era uma mistura de peles pretas, castanhas e âmbar. Chamavam-se, eufóricos de alegria, uns aos outros, e só sossegaram quando o reverendo começou a falar. Então escutaram-no num silêncio sem tranquilidade, que lembrava o silêncio de uma tempestade, antes de o vento começar a assobiar. Quando o pai anunciou o hino, um pequeno órgão começou a tocar e, acto contínuo, desataram todos a cantar, numa fúria ruidosa e sincopada, prenhe de música selvagem. A paz perfeita de Deus é como um rio maravilhoso... cantavam, a gingar-se, a oscilar como uma onda impetuosa.

Mas não havia paz, eles não queriam paz. Oh, quem desejava paz?! Joan sentiu a excitação comunicar-se ao seu próprio sangue.

Como podia haver paz quando se vibrava de vida? O melhor era deixar a vida derramar-se sobre ela, submergi-la... Oh, Senhor, deixa a vida toda vir ao meu encontro! gritou o seu coração.

De súbito, lembrou-se de Francis. Seria vida, também, o que ele tivera? O irmão encontrara ali uma espécie de vida. Os olhos de Joan percorreram, rápidamente, a multidão. Não, ainda bem que não conhecia ninguém. Compreendeu que não podia fazer nada por eles, absolutamente nada: Era imperioso deixá-los viver, deixar a vida toda prosseguir, seguir o seu curso. Não ouviu uma palavra do que o pai disse.

Quando ele se sentou, levantou-se e saiu, apressada. Atrás de si, saíam todos os outros, também com pressa, desejosos de voltar a rir e a falar. Alcançaram-na e Joan reparou que se tinham descalçado e caminhavam de pés nus pela estrada poeirenta, com os sapatos na mão, presos pelos atacadores. Riam, cantavam fragmentos de canções e paravam, em grupos de dois e de três, junto de casas velhas e em ruínas. Joan saiu da vila e seguiu pela estrada entre os campos. Ao vê-la passar, Mrs. Mark bateu na vidraça e mandou-a entrar.

- Onde estiveste? - perguntou-lhe a doente, da cama.

-Disse ao meu pai que o ajudaria na missão, mas parece-me que não posso. - Não sabia porquê, mas tinha de responder sempre com inteira franqueza a Mrs. Mark.

-Mas para que hão-de vocês querer ajudar? Eles não precisam de ajuda nenhuma, levam uma rica vida! Vai para casa e trata mas é de descobrir qualquer coisa que te dê, ao menos metade da felicidade que eles têm.

Olhou, irritada, para a rapariga. Já não podia mexer a perna direita. Agora, para chegar às muletas, tinha de a agarrar com

ambas as mãos, como um cepo.

- Vai, anda, e faz o que te digo.

-Sim, Mrs. Mark.

Hesitou, pois custava-lhe sempre muito abandonar uma criatura tão desamparada como a velha paralítica.

- Vai-te embora - insistiu Mrs. Mark. - Tenho de me levantar, para mexer o meu jantar.

Nunca ninguém via Mrs. Mark levantar-se, e por isso Joan obedeceu-lhe e saiu. Desceu a estrada, enquanto o sol brilhava, avermelhado, entre as árvores.

O ar estava absolutamente parado, frio, embora sem gelar.

No próximo domingo - pensou, de súbito, Joan -, devia estar muito frio para se sentarem no alpendre. Teria de acender a lareira da sala e de o deixar entrar. Por enquanto, não quisera que ele entrasse; primeiro com um pretexto e depois com outro, fizera-o esperar.

Continuava a não querer abrir-lhe a porta da sua casa. Mas com aquele frio. Se ele entrasse para a sala da frente e ela dissesse ao pai venha aquecer-se para juntto de nós, na sala, o homem não a poderia beijar, com o pai presente. Sim, porque Joan sabia que ele planeava beijar-lhe os lábios, da próxima vez. Arrepiou-se, ao imaginar a sua boca grossa e lívida, de beiços secos, gretados pelo vento. Sentiu, de novo, a pressão forte e rude dos seus braços, à volta da sua cintura, da última vez. Mas se o pai estivesse presente, nada lhe aconteceria. No entanto, talvez ela não quisesse, na realidade, que não lhe acontecesse nada. Por enquanto, não tomaria nenhuma decisão. Que acontecesse o que tivesse de acontecer.

Mrs. Mark tinha razão, diria ao pai que não o podia ajudar, na missão. A gente de lá era mais forte do que ela. Sugá-la-iam, absorvê-la-iam como absorviam no seu ritmo mais rico os acordes dos hinos. Se ficasse entre eles, se estivesse frequentemente perto deles e a ouvi-los cantar; não tardaria a cantar com eles e não contra eles. Sorriu, sozinha pela estrada abaixo, ao recordar com que obstinação o pai se agarrara ao ritmo e ao compasso, de olhar absorto e voz fina e aguda a suster com firmeza o ímpeto das outras vozes palpitantes. No suave crepúsculo de Novembro ouviu de novo o compasso, o ritmo e os gritos da turba negra. O seu corpo adaptou-se inconscientemente a esse ritmo, enquanto caminhava, e o sangue latejou-lhe nos ouvidos. Era inútil tentar salvar alguém, pois ela própria não tinha salvação possível. Desejava a terra e não o céu, a vida e não a salvação. Os seus pés pisavam a estrada poeirenta ao compasso de antigo desejo. Sentia-se leve como o ar, a percorrer em grandes passadas a noite sem vento.

Ouviu, ao longe, o trote de um cavalo, parou e chegou-se para a berma da estrada. O ritmo parou um momento, à espera.

Passados instantes, viu o vulto desajeitado de um homem escarranchado num cavalo de lavoura e soube, acto contínuo, quem era.

-Olhem quem ela é!

Era a frase que dizia sempre que a via. Joan desviou-se um pouco mais do seu caminho.

- Boas tardes, Bart - respondeu-lhe.

Como o modo de ele falar a escandalizava, mostrava-se ainda mais delicada na maneira como lhe falava a ele. Mas Bart não deu por isso, nem reparou que se desviara do seu caminho. Saltou do cavalo e foi ao seu encontro. Joan notou, de súbito, contrafeita, que o aspecto dele era muito melhor ali, no meio da estrada invadida pelo crepúsculo, com os campos àsua volta. Vestia roupa de trabalho, calças de ganga e camisa azul, grossa, aberta no pescoço e com as mangas arregaçadas. A luz mortiça do entardecer ocultava-lhe os lábios lívidos e secos e o nariz grosso e achatado, revelando apenas os contornos dos seus ombros quadrados, das súas coxas e das suas pernas. Parecia enorme, magnificente como um touro, com a cabeça bem assente no pescoço largo e forte. Ali, no seu ambiente, era um homem escorreito, um belo animal.

Quando ele se aproximou, Joan aspirou um cheiro a feno e terra, um cheiro saudável e limpo. Recuou mais um pouco, sufocada.

- Donde vem? - perguntou-lhe Bart, em voz alta. – Que sorte, encontrá-la assim!

Joan adivinhou o seu movimento instintivo para lhe tocar, para a envolver nos braços, e não se enganou. Sentiu-o agarrá-la pela cintura e, depois, a sua mão subir, para lhe tocar no seio.

Nunca o fizera. Ficou imóvel, a desprezar-se, dividida entre o desejo e a repugnância, na expectativa de que ele lhe tocasse, de facto, no seio. No entanto, quando o fez, desviou-se, brusca, do seu contacto.

- Tenho de ir para casa - pretextou, em voz rouca, sentindo o sangue ensurdecê-la num tumulto. - Tenho de ir para casa. Largue-me!

- Sim! - redarguiu, em tom de zombeteira surpresa. - Quem a está a agarrar?

- Você - respondeu-lhe, desesperada, mas não se mexeu.

- Quem, eu ? - comprimiu-lhe, devagar, o seio.

- Sim - afirmou, nauseada e, ao mesmo tempo, desejosa. Bart retirou, de súbito, a mão.

- Quem, eu? - repetiu, e riu-se.

Joàn olhou-o e, contra vontade, viu-o, viu um homem forte e perfeito, um homem atraente, ali, no seu ambiente próprio. Sem uma palavra, desatou a correr, desesperada, na direcção de casa.

Depois de entrar, parou, com a mão na porta que acabara de fechar. A casa envolveu-a num silêncio absoluto. As salas familiares, o mobiliário, o relógio do vestíbulo, estava tudo como sempre conhecera. Intolerávelmente parado, intolerávelmente modesto, vazio, desesperado. No entanto, ao olhá-las agora, todas aquelas coisas lhe pareciam estranhas e alheias.

Como pude consentir que me tocasse?, perguntou-se, colérica. A casa continuou silenciosa, à sua volta, a excluí-la de toda a vida que nela havia.

- Hannah! - gritou. - Hannah!

A voz da criada respondeu-lhe do sótão, fraca e distante:

- Que deseja?

- Onde está o meu pai? Ainda não chegou? - Não lhe restava mais ninguém.

-Não, ainda não chegou.

- Vou procurá-lo.

Saiù outra vez de casa e, no mesmo instante, o velho Ford parou à porta e o pai apeou-se, a recuar, à sua - maneira cautelosa e absurda. Nunca se habituara por completo ao automóvel.

- Pai! Pai!

- Que é, Joan? - perguntou-lhe, admirado, e começou a reunir os livros.

Apeteceu-lhe correr para ele e apoiar-se no seu corpo, desejosa de sentir alguém perto de si. Nunca se apoiara no pai como naquele momento desejava fazer, mas limitou-se a agarrar-lhe na mão.

-Ainda bem que chegou! Estava um bocadinho preocupada.

- Não é mais tarde do que de costume - lembrou-lhe, um pouco admirado. - É raro chegar antes das seis. Fiquei um bo cado a falar com eles.

A sua mão abandonava-se na da filha, delicada, exangue, fria.

-O que interessa é que já chegou! Venha jantar. Abrirei um boião de cerejas e acenderemos a lareira. Talvez tenha chegado alguma carta da Rose ou do Frank.

O pai não respondeu. Apetecia-lhe soltar a mão, mas não queria ser desagradável. Deixou-a ficar mais um instante, contrafeito, e depois retirou-a. Joan não se opôs; era impossível reter aquela mão.

Quando acordou, verificou que a noite se tornara quente e húmida e que o bater cadenciado da chuva era o único som a quebrar o silêncio. De súbito, sentiu-se de novo em segurança naquela casa onde nascera. A chuva isolava-a, protegia-a contra qualquer intrusão. Adormeceu outra vez, profundamente, e acordou, de manhã, apaziguada e serena. O dia decorreu modorrento, todo chuva e silêncio, e a semana passou, numa enfiada de dias iguais. Joan sentava-se junto da janela, a coser. Passou revista a todos os seus vestidos, um por um. Continuava a não precisar de nada novo. Ainda não havia motivo para comprar fosse o que fosse, para si.

O sábado amanheceu cheio de sol, a convidar ao riso e à alegria. No dia seguinte diria a Bart que não voltasse mais. Não queria nada dele; o que tinha chegava. Era uma idiota. Afinal eles, a sua família, continuavam a precisar dela como sempre. Rose dizia-lhe, na sua última carta:

Agradecia-te que me comprasses dois pares de meias pretas, uma carteira de alfinetes, e três carrinhus de linha branca. São coisas que não se podem comprar aqui. Agora usamos vestuário nativo, mas as agulhas são rombas, curtas e difíceis de se enfiar. Alegrar-te-á saber que, no domingo, mais quatro pessoas - três mulheres e um homem - foram recebidas.

Iria comprar o que a irmã lhe pedia. Iria à loja do pai de Rob e dir-lhe-ia: Tudo isto vai para a China, Mr. Winters, para casa do Rob e da Rose. Ele quereria acrescentar qualquer coisa à encomenda, pois era um bom homem e estava sempre ansioso por fazer coisas bonitas, mesmo que parecessem patetas. Andava constantemente a oferecer frascos de perfume a Mrs. Winters ou, quando ia a Nova Iorque comprar mercadorias, trazia-lhe um anel vistoso ou um colar de fantasia. Mrs. Winters irritava-se com essa mania e, se achava o que ele lhe trazia excessivamente caro, dizia-     lhe, sem hesitar: Vou devolver isto, Henry Winters. Eu, de brincos! As vezes só aceitavam o objecto se o trocasse por outro e ela optava por talheres de prata. Tinha uma grande quantidade de talheres de prata.

Sim, Mr. Winters quereria, com certeza, acrescentar um presente para Rose. Joan reviu mentalmente a grande loja, de uma só divisão. Que mais agradaria à irmã? Rose nunca aludira à camisa de dormir cor de pêssego, embora Joan, ao recordá-la, ainda sentisse um ressaibo de pena. Era tão bonita! Provávelmente nunca teria outra tão bonita.

Saltou da cama e sentiu-se alegre. A casa voltara a ser a sua casa, Rose e Francis viviam, precisavam dela. E o seu querido e velho pai também. Mostrou-se brincalhona com ele, ao pequeno almoço, e riu-se do seu espanto.

- Estou apenas a brincar, pai! - afirmou-lhe, a rir, e depositou um beijo leve nas pontas do seu cabelo branco: - Deixou de chover!

- A tua mãe também tinha os seus dias. - observou o reverendo, cheio de paciência.

O coração de Joan entristeceu.

- Pronto, não o arrelio mais - prometeu, com remorsos. Iria comprar as coisas para a Rose e acrescentaria, também um presentezinho seu. Tinha alguns dólares amealhados. Podia comprar fita. Mas os vestidos nativos levariam fitas? Rose devia ter-lhe dito como eram os vestidos nativos. Talvez um par de meias de seda... Era-lhe impossível acreditar que, secretamente, Rose não adorasse meias de seda. Pôs o chapéu, vestiu o velho casaco castanho e foi pela rua abaixo, a cantarolar baixinho.

Num dos lados da loja, entre os artigos de algodão, viu Ned Parsons é virou a cabeça. Não lhe apetecia incomodar-se com ele, naquele dia, mas provàvelmente não teria outro remédio; Ned chamá-la-ia ou viria ao seu encontro. Mas não aconteceu assim.

Quando voltou a olhar na sua direcção, pareceu-lhe absorto numa lista que conferia. Não a devia ter visto. Joan procurou Mr. Winters e acabou por o encontrar no armazém, rodeado de caixotes e embrulhos abertos e por abrir. Estava de pé, alto e magro, com os ombros demasiado estreitos pendentes. Sabia-se que ele era tísico e que só a força de vontade e os cuidados de Mrs. Winters o conservavam vivo. Se ninguém lho lembrasse, nunca tocaria em leite, manteiga ou ovos, mas a mulher vinha à loja duas vezes por dia, com um copo de gemada, e não saía enquanto ele não a bebia toda. Todos sabiam, também, que uma vez, quando era novo, Mr. Winters despejara a gemada num fardo de pano de lençol, num momento em que a mulher olhava para outro lado; mas ela descobrira-o, porque ele procedera com precipitação e os ovos tinham ficado a escorrer pelo pano. Mrs. Winters nunca o esquecera. O criminoso desperdício! gritara centenas de vezes, ao recordar o episódio, e centenas e centenas de vezes ficara a pé firme, a vê-lo beber a gemada até ao fim, incapaz de confiar nele. Uma vez, espicaçado pelos sorrisos dos empregados, o marido resmungara: Escusas de ficar aí à espera. Já bebi isto tantas vezes que não tens motivo para desconfiar. Mas ela replicara, implacável: Nunca soube, ao certo, do que tu és capaz, Henry Winters! Se não fosse eu, já estarias na sepultura há muito tempo. A vida do marido, salva assim por ela diáriamente, pertencia-lhe.

- Mr. Winters! - chamou Joan, sorridente. -Venho comprar umas coisas para a Rose. Calculei que estivesse interessado...

O rosto dele enrugou-se todo, num sorriso, e Joan enterneceu-se. Era tão bondoso!

- Ora vamos lá ver, vamos lá ver! - exclamou, muito animado, com o corpo ossudo a mover-se em movimentos convulsivos. - Estou a tirar uns perfumes dos caixotes. Ficam tão bem às senhoras! Transformam-nas em flores perfumadas. Foi sempre essa a minha opinião, pelo menos.

- Mas mandá-lo para tão longe. O frasco podia partir-se.

-Tens razão, tens razão. Que estupidez a minha! Ora deixa-me pensar. Um alfinete? Recebi umas jóias de fantasia muito bonitas.

Porque pareceria Mr. Winters tão nervoso? Mexeu num embrulho, desajeitadamente, tirou uma caixa de cartão e abriu-a. As suas mãos tremiam e parecia fugir de encontrar os olhos de Joan.

-É bonito, não é? Um adereço de granadas. Á granada é uma das minhas pedras favoritas. Isto é ametista. vidro. Mas parece verdadeiro, não parece? Bonito. E estas contas azuis. Tocou nas contas de vidro com um indicador comprido e delicado, de unha curta e partida.

- Bem. - murmurou Joan, hesitante; era difícil dizer-lhe que Rose não usava jóias de espécie nenhuma. - Parece-me que talvez seja melhor escolhermos umas meias de seda - sugeriu, esforçando-se por não ferir as suas susceptibilidades. - São tão fáceis de mandar!

Mr. Winters fechou imediatamente a caixa.

- Tens razão - concordou, e saiu do armazém, à frente dela. Começava a chegar gente à loja, para as compras diárias. Como era sábado, vinham mulheres dos campos, as mais velhas de blusas de chita, saias escuras e colarinhos tesos, as mais novas de vestidos laváveis, do género que Mr. Winters pendurava num cabide e vendia por um dólar: Três ou quatro raparigas admiravam esses vestidos e viravam-nos de um lado e do outro, cheias de avidez.

Joan ouvia os seus comentários:

-Este é muito bonito.

- Mas eu não gosto de quadrados. Lembra riscado de aventais. Uma delas, uma mulher gorducha e baixa, de cara grosseira, mas bonitota, declarou:

-Quando estou vestida a rigor, gosto de me sentir vestida a rigor! Além disso, o Joe gosta que eu use qualquer coisa especial, aos domingos, e tem um capricho pelas rendas.

Joan ouvia-as e observava-as, sorria, mas sentia-as estranhas. Mostravam-se acanhadas na sua presença, porque ela era educada e a filha do reverendo. Impulsiva, disse a Mr. Winters:

-Atenda-as primeiro. Não tenho pressa.

- De modo nenhum! - protestou, acalorado, ele que em qualquer outro dia teria obedecido sem hesitar.

Que teria o bom homem? Joan sorriu às mulheres, quando Mr. Winters acabou por as ir atender, mas elas não retribuíram o sorriso. Os seus olhos fitaram-na, inexpressivamente, e embora aceitassem a delicadeza não a reconheceram. Joan ficou à espera, sentindo-se estúpidamente magoada.

Talvez, pensou para consigo, depois, fosse por já me sentir magoada que achei Mrs. Bradley fria, quando entrou na loja, passado um bocado. Mas que importava que Mrs. Bradley se mostrasse fria ou não? Que importava que Mrs. Bradley se limitasse a inclinar a cabeça na sua direcção, sem um sorriso, sequer? Talvez alguém lhe tivesse dito, passado tanto tempo, que Martin e ela tinham. Mrs. Bradley detestava sempre qualquer rapariga de quem o filho gostasse, o que era motivo de risos e chacotas. Mas depois chegou Netta e essa não se mostrou fria. Pelo contrário, pareceu excessívamente cordial e penalizada. Netta acenou-lhe e, a seguir...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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