Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
HEAVEN
Parte I
Sempre que sopram os ventos de Verão, ouço as flores a falarem baixinho, e as folhas a cantarem na floresta, e vejo de novo os pássaros a voarem, os peixes do rio a saltarem. Também me recordo dos Invernos; e de como os ramos nus das árvores soltam sons torturados quando os ventos frios os fustigam, obrigando os galhos a arranharem a cabana que mantém um equilíbrio precário nas montanhas alcantiladas de uma cordilheira, a que os naturais da Virgínia Ocidental chamam os Willies.
Nos Willies, o vento não se limitava a soprar, uivava e chiava, de tal maneira que todos aqueles que moravam nos Willies tinham boas razões para deitarem olhares preocupados às suas janelas pequenas e sujas. Viver nas montanhas era suficiente para enervar qualquer pessoa - sobretudo quando os lobos uivavam como o vento, os linces guinchavam e os animais selvagens da floresta andavam sem destino. Era frequente desaparecerem pequenos animais domésticos e, mais ou menos de dez em dez anos, um menino desaparecia ou uma criança que dava os primeiros passos afastava-se e nunca mais ninguém a via.
com especial nitidez, lembro-me de uma certa noite fria de Fevereiro que me revelou as minhas origens. Foi na véspera do dia em que fiz dez anos. Estava deitada ao pé do fogão, na minha esteira, a voltar-me para um lado e para o outro e a ouvir os lobos a uivarem à lua. Tinha o mau hábito de ter o sono leve e por isso o mais pequeno movimento no interior da cabana acanhada fazia-me estremecer e acordar. Na nossa cabana isolada, todos os sons eram ampliados. A avó e o avô ressonavam. O pai entrara em casa a cambalear, perdido de bêbedo, chocando com os móveis e tropeçando nos corpos adormecidos estendidos no chão, até se deixar cair na grande cama de latão, cujas molas chiaram e acordaram a mãe que, mais uma vez, se zangou e levantou a voz estridente, queixando-se de que ele voltara a demorar-se de mais em Winnerrow, no Shirleys Place. Naquela altura, eu nem percebia porque é que Shirleys Place era um sítio tão ruim, e porque é que o facto de o pai o frequentar provocava tal aborrecimento.
O soalho da nossa cabana, com espaços de um centímetro entre as tábuas dispostas de qualquer maneira, deixava entrar não só o frio como os roncos dos porcos, cães e gatos que estavam a dormir e de tudo o resto que se abrigava debaixo daquele tecto.
De repente, do escuro veio um ruído diferente. Quem se mexia na escuridão, junto do ténue clarão avermelhado da lareira? Fiz um esforço para ver e percebi que era a avó, curvada, com os longos cabelos grisalhos despenteados que lhe davam um ar de bruxa, a deslizar pelas tábuas grosseiras o mais silenciosamente possível. Não era possível que ela fosse à casinha de fora; a avó era a única de nós que tinha licença de se servir do "penico" quando a natureza a chamava. Todos nós tínhamos de percorrer os duzentos metros que nos separavam da casinha de fora. A avó tinha cinquenta e tal anos. A artrite crónica e outras dores e padecimentos não diagnosticados faziam-lhe a vida num inferno, e a perda da maior parte dos dentes fazia com que aparentasse ter o dobro da idade. Noutros tempos, segundo me haviam dito aqueles que tinham idade suficiente para se lembrarem disso, Annie Brandywine fora a rainha de beleza das montanhas.
- Anda, rapariga - segredou a avó com voz rouca, pousando no meu ombro a mão curtida pelo tempo. - Já é tempo de deixares de chorar de noite. Espero que nunca mais o faças assim que souberes a verdade sobre ti própria. Portanto, antes que o teu pai volte a acordar, tu e eu vamos dar uma volta, e antes de voltarmos, tu terás qualquer coisa a que te agarrar quando ele te fulminar com o olhar e cerrar os punhos. - Ela suspirou, e foi como se o vento sul soprasse levemente, sussurrando aos anéis de cabelo que me envolviam a cara que me fizessem cócegas, como se fossem fantasmas que chegavam, através dela.
- Quer dizer que vamos sair? Avó, está um frio horrível lá fora - avisei eu, ao mesmo tempo que me levantava e calçava um par de sapatos enormes e já gastos de tom. - Não está a pensar em ir para longe, pois não?
- Ora, custa-me muito ouvir o meu Luke a gritar com a filha mais velha - disse a avó. - Pior ainda, faz-me gelar o sangue nas veias ouvir-te chorar e despertar nele uma fúria que ainda mal começou. Rapariga, porque lhe hás-de responder?
- A avó sabe, a avó sabe - respondi em voz baixa.
- O pai odeia-me, avó, e eu não sei porquê. Porque é que ele me odeia tanto?
O luar que entrava por uma das janelas permitiu-me ver o seu rosto adorável, envelhecido e enrugado.
- Sim, sim, é altura de saberes - disse ela, entre dentes, atirando-me um xaile preto e pesado que ela própria tricotara e envolvendo os seus ombros estreitos e curvados noutro tão escuro e pardo como aquele.
Encaminhou-me para a porta e abriu-a, deixando entrar o vento frio antes de voltar a fechá-la. Na cama, do outro lado da cortina vermelha esfarrapada e descorada, a mãe e o pai gemeram como se o vento os tivesse acordado.
- Temos uma viagem a fazer, tu e eu, lá abaixo onde começou a nossa família. Há muitos anos que ando a pensar em fazer isto contigo. Não posso continuar a adiar. O tempo voa, é verdade. E depois será tarde de mais.
E foi assim que naquela noite escura e desolada, no meio do frio e da neve, ela e eu atravessámos a escuridão dos pinhais. O rio estava coberto por uma sólida camada de gelo, e os lobos pareciam agora mais próximos.
- Sim, não há dúvida que a Annie Brandywine Casteel sabe guardar segredos - disse a avó, como se falasse consigo mesma. - Não há muitas, sabes? Não há muitas como eu... Estás a ouvir-me, rapariga, não estás?
- Não tenho outro remédio, avó. Está a gritar-me aos ouvidos.
Ela pegou-me na mão e levou-me para longe de casa. Era uma loucura andar cá fora, isso era. E por que razão é que naquela noite gelada de Inverno, ela ia revelar um dos seus preciosos segredos, e a mim? Porquê a mim? Mas eu amava-a o suficiente para a ajudar a descer o carreiro íngreme da montanha. Parecia que já tínhamos andado quilómetros na escuridão fria da noite, com aquela velha lua por cima da nossa cabeça, a brilhar, cheia de más intenções.
O divertimento que ela me reservava era um cemitério, austero e lúgubre, à luz pálida e azulada da lua de Inverno. O vento soprava, selvagem e feroz, e fustigava-lhe os cabelos brancos e ralos, misturando-os com os meus, antes de ela voltar a falar:
- A única coisa que te posso dar, filha, a única coisa que vale a pena, é o que vou dizer-te.
- Não podia ter-me dito isso na cabana?
- Não - ralhou ela, teimosa como às vezes sabia ser, agarrada aos seus princípios como uma velha árvore com demasiadas raízes. - Tu não me ouvirias se eu te contasse isto lá. Aqui, lembrar-te-ás sempre.
Hesitou ao fixar a vista numa estreita pedra tumular. Levantou o braço e apontou o dedo encarquilhado para a lápide de granito. Eu observei-a e tentei ler o que lá estava gravado. Era tão estranho que a avó me tivesse levado ali, de noite, onde talvez os fantasmas daqueles que ali jaziam andassem a vaguear, à procura de corpos vivos para se alojar.
- Tens de desculpar o teu pai por ele ser como é - cantarolou a avó, encostando-se a mim à procura de calor. - Ele é o que é, e não pode deixar de sê-lo, tal como o Sol não pode deixar de nascer e de se pôr, tal como a hiena não pode deixar de cheirar mal, e tal como tu não podes deixar de seres o que és.
Oh, aquilo era fácil de dizer para a avó. As pessoas de idade já não se lembram do que é sermos jovens e termos medo.
- Vamos para casa - disse eu a tremer, puxando a avó.
- Tenho ouvido dizer e lido várias histórias sobre o que acontece nos cemitérios nas noites de lua cheia, depois da meia-noite.
- Não vale a pena termos medo de coisas mortas que não podem mexer-se nem falar.
No entanto, ela agarrou-se mais a mim e obrigou-me a olhar de novo para a sepultura estreita e submersa.
- Agora ouve e não digas nada até eu acabar. Tenho uma história para te contar que te fará sentir melhor. Existe uma boa razão para o teu pai te tratar mal quando olha para ti. Ele não te odeia. Na minha mente, juntei as peças todas, e quando o meu Luke olha para ti, não és tu que ele vê mas sim outra pessoa qualquer... Ah, filha, ele é um homem adorável. No fundo, é bom homem. Teve uma primeira mulher que amou tanto que quase morreu também quando ela morreu. Conheceu-a em Atlanta. Ele tinha dezassete anos e ela tinha apenas catorze anos e três dias, segundo me disse mais tarde. - A voz da avó desceu uma oitava. - Era bela como um anjo e, oh... o teu pai amava-a tanto. Ficou abismado quando ela fugiu de casa. Ia para o Texas. E fugia de Boston. Levava com ela uma mala de viagem maravilhosa, cheia de vestidos como tu nunca viste. Dentro daquela mala havia tudo quanto era bonito: fatos e peças de seda, escovas de prata, um pente e um espelho de prata, anéis para pôr nos dedos, jóias para pôr nas orelhas, e ela veio viver para cá, porque cometeu o erro de casar com um homem
que não era da sua condição... Porque o amava.
- Avó, eu nunca ouvi o pai falar de uma primeira mulher. Julguei que a mãe era a primeira e a única mulher dele.
- Eu não te disse para estares calada? Deixa-me acabar de contar a história à minha maneira... Ela pertencia a uma família rica de Boston. E veio viver com o Luke, o Toby e comigo. Eu não a quis receber quando ela chegou. A princípio, não gostei dela. Sabia que ela não duraria muito, desde o princípio que eu o soube. Era bom de mais que ela gostasse de nós, das montanhas, das dificuldades. Ela julgava que nós tínhamos casas de banho. Ficou escandalizada quando soube que tínhamos de ir à casinha de fora, e sentarmo-nos numa tábua com dois buracos. Depois moeu o juízo ao Luke para ele lhe construir uma casinha de fora, toda bonita, pintada de branco; ele construiu-a, e ela pôs lá dentro um rolo
de papel num suporte, e até me disse que eu poderia servir-me do seu papel cor-de-rosa comprado nos centros comerciais. A "casa de banho", era assim que ela lhe chamava. Abraçou e beijou o Luke por lhe ter feito aquilo.
- Queres dizer que o pai não era mau para ela como é para a mãe?
- Cala-te, rapariga. Os modos dela desnortearam-me. Ela veio, roubou o meu coração e talvez o de Toby, também. Tentou tanto dar o seu melhor. Ajudava a fazer a comida. Tentou alindar a nossa cabana. E eu e o Toby demos-lhes a nossa cama para que eles começassem a fazer bebés como deve ser e não no chão. Ela teria dormido no chão, lá isso é verdade, mas nós não deixámos. Todos os Casteel são feitos em camas... Espero e peço a Deus que isso seja verdade. Bem... Um dia ela apareceu toda sorridente e feliz porque ia ter um bebé. O bebé do meu Luke. E eu tive tanta, tanta pena. Sempre esperara que ela voltasse para donde viera, mas as montanhas tomaram conta dela, como acontece às pessoas fracas. Porém, ela fê-lo feliz enquanto cá esteve. Fê-lo mais feliz do que ele foi daí em diante.
A avó calou-se de repente.
- Como é que ela morreu, avó? Esta é a sepultura dela? Ela suspirou antes de continuar:
- O teu pai tinha apenas dezoito anos quando ela morreu, e ela tinha apenas catorze anos quando ele foi obrigado a sepultá-la nesta terra fria e a ir-se embora e deixá-la sozinha de noite. Ele sabia que ela detestava passar as noites frias sem ele. Ah, minha filha, ele passou a primeira noite deitado sobre a sua sepultura para a aquecer, e estávamos em Fevereiro... E é esta a história que tenho para contar acerca dela, um anjo que veio para as montanhas, para viver com o teu pai e amá-lo, e fazê-lo mais feliz do que ele nunca fora e talvez nunca venha a ser, ao que tudo indica.
- Mas porque é que me trouxe aqui para me contar tudo isso, avó? Podia ter-me contado essa história na cabana. Apesar de ser uma história triste e doce... Mesmo assim, o pai é mau como as cobras, e ela deve ter levado para o túmulo o melhor que havia nele, e deixado apenas o pior para nós. Porque é que ela não o ensinou a gostar das outras pessoas? Avó, quem me dera que ela nunca tivesse vindo! Que nem tivesse vindo. Se assim fosse, o pai gostaria da mãe, gostaria de mim, e não gostaria tanto dela.
- Oh! - exclamou a avó, perplexa. - O que se passa contigo, rapariga? O que se passa contigo? Ainda não adivinhaste? Essa rapariga a quem o teu pai chamava o seu anjo, era a tua mãe Aquela que te deu a vida, e quando tu chegaste, ela mal podia falar... E deu-te o nome de Heaven Leigh. E tu não podes dizer, isso não podes, que não te orgulhas desse nome que toda a gente diz que te fica a matar.
Eu esqueci-me do vento. Esqueci-me do cabelo que me fustigava a cara. Esqueci-me de tudo, inebriada com a descoberta de quem eu era.
Quando a Lua apareceu por trás de uma nuvem escura, um raio de luz isolado projectou-se por instantes no nome gravado na lápide:
ANGEL ESPOSA ADORADA DE THOMAS LUKE CASTEEL
É estranho o que senti ao ver aquela sepultura.
- Mas onde é que o pai encontrou a Sarah? E como é que ele se casou tão depressa?
Como se a avó estivesse ansiosa por despejar tudo enquanto tinha oportunidade para isso, começou a falar mais depressa:
- Bem, o teu pai precisava de uma mulher que lhe enchesse a cama vazia. Ele detestava as noites solitárias, e os homens têm necessidades, filha, necessidades físicas que descobrirás um dia quando tiveres idade para isso. Ele queria uma esposa que lhe desse o que o seu anjo lhe dera, e ela tentou, podes acreditar que a Sarah tentou. Foi uma boa mãe para ti, tratou-te como se fosses a sua própria filha. Cuidou de ti e acarinhou-te. E entregou-se de boa vontade a Luke, mas não tinha um espírito angelical para lhe oferecer, e isso faz com que ele continue a desejar aquela rapariga que teria feito dele um homem melhor. Naquela altura, ele era melhor, Heaven, mesmo que não acredites. Nos tempos em que a tua mãe angelical era viva, ele todas as manhãs saía cedo para o trabalho, ao volante do seu velho camião, e ia até Winnerrow, onde andava a aprender carpintaria e a construir casas e coisas desse género. E costumava vir para casa dizer coisas bonitas, que nos construía uma casa nova lá em baixo, no vale, e que quando tivesse essa casa trabalharia a terra, criaria vacas, porcos e cavalos... O teu pai, sempre teve uma queda para os animais. Gosta muito deles, é verdade, como tu, Heaven. Herdaste isso dele.
Senti-me esquisita quando a avó me levou outra vez para a cabana e, de baixo de um monte de trastes e de muitas caixas velhas de cartão onde guardávamos as nossas poucas e míseras roupas, tirou qualquer coisa embrulhada numa velha colcha. Lá de dentro retirou uma elegante mala de viagem, do género daquelas que as pessoas que vivem nas montanhas nunca podem comprar.
- Era dela - segredou a avó, para que os outros não acordassem e não se intrometessem naquele episódio da máxima intimidade. - Pertencia à tua mãe. Eu prometi-lhe
que ta daria quando chegasse a altura certa. Acho que hoje é a altura certa. Ora... Olha, rapariga, olha. Vê a mãe que tu tiveste .
Como se uma mãe que já morrera pudesse ser comprimida e enfiada numa mala de viagem bela e cara!
Todavia quando olhei, fiquei sem fôlego.
Ali, na minha frente, naquele quarto mal iluminado, estavam as mais belas roupas que eu já vira. Nem imaginava que existissem rendas tão delicadas... E, no fundo,
descobri um objecto comprido, cuidadosamente envolvido em dúzias de folhas de papel de seda. Pela expressão da avó, percebi que estava tensa e que me observava atentamente, como que para saborear a minha reacção.
À luz fraca da lenha incandescente vi uma boneca. Uma boneca? Era o que eu menos esperava encontrar. Fartei-me de olhar para a boneca, com os seus cabelos louro-platinados apanhados num penteado fantasioso. Trazia um véu de noiva, muito fino, que saía de um pequeno chapéu cravejado de jóias. Tinha uma cara excepcionalmente bonita, de lábios bem torneados, cuja fenda se ajustava com precisão ao meio dos dentes. O vestido comprido era de renda branca profusamente bordada a pérolas minúsculas e contas reluzentes. Uma boneca vestida de noiva... com véu e tudo. Até os sapatos brancos eram de renda e de cetim branco, com meias transparentes presas a um pequeno cinto de ligas, que vi ao espreitar debaixo das saias e do véu.
- É ela. A tua mãe. O anjo do Luke, que se chamava Leigh - segredou a avó. - Tal como era a tua mãe quando veio para cá depois de ter casado com o teu pai. A última coisa que ela disse antes de morrer foi: "Dê o que eu trouxe comigo à minha filhinha..." E foi isso que eu fiz agora.
Sim, o que ela fizera agora.
E, ao fazê-lo, a avó mudou o rumo da minha vida.
COMO DE COSTUME
Se Jesus morreu há quase dois mil anos para nos salvar do pior que havia em nós, falhou na nossa zona, excepto aos domingos, entre as dez horas da manhã e o meio-dia.
Pelo menos, na minha opinião.
Mas o que era a minha opinião? Valia tanto como uma casca de cebola, pensei eu, enquanto magicava na maneira ,como o pai se casara com a Sarah, dois meses depois de a minha mãe ter morrido de parto, ele que amava tanto o seu "anjo". E quatro meses depois de eu ter nascido e de a minha mãe estar sepultada, a Sarah deu à luz o filho que o pai tanto desejava quando eu apareci e pus fim à breve estada da minha mãe na Terra.
Eu era demasiado pequena para me lembrar do nascimento desse primeiro filho, que foi baptizado com o nome de Thomas Luke Casteel, filho. Segundo me contaram, meteram-no no berço comigo e embalaram-nos, cuidaram de nós e pegaram-nos ao colo como se fôssemos gémeos, mas não nos amaram da mesma maneira. Não era preciso ninguém dizer-me isso.
Eu gostava do tom, de cabelos fulvos, que herdara da Sarah, e de olhos verdes faiscantes, também herdados da mãe. Não havia nele nada que me fizesse lembrar o pai, excepto o facto de se tornar muito alto mais tarde.
Depois de ouvir a história da avó acerca da minha verdadeira mãe na véspera do dia em que fiz dez anos, tomei a decisão - assim Deus me ajude - de nunca dizer ao meu irmão tom nada diferente daquilo em que ele acreditava, ou seja, que Heaven Leigh Casteel era sua irmã de sangue. Quis manter o que havia de tão especial que fazia de nós quase uma só pessoa. Os seus pensamentos e os meus eram muito semelhantes pois tínhamos partilhado o mesmo berço e comunicado em silêncio pouco depois de termos nascido, e isso fizera de nós pessoas especiais. O facto de sermos especiais era muito importante para nós, porque receávamos muito não o ser, suponho.
A Sarah tinha um metro e oitenta de altura, descalça. Uma amazona, a companheira adequada para um homem alto e forte como o pai. A Sarah nunca estava doente. Segundo a avó (a quem tom às vezes chamava por graça a "Voz da Sabedoria"), o nascimento do tom legara a Sarah um busto maduro que aos catorze anos já era suficientemente cheio para lhe dar um ar de matrona.
- E mesmo depois de dar à luz, a Sarah levantou-se pouco depois daquilo acabar, retomou os trabalhos que não acabara, como se não tivesse passado pela mais dura provação que nós mulheres temos de sofrer sem nos queixarmos - esclareceu a avó. - Oh, a Sarah era capaz de cozinhar enquanto convencia um recém-nascido a mamar.
Sim, pensei eu, a sua saúde e robustez deviam ser aquilo que mais atraía o pai. Ele não parecia admirar muito o tipo de beleza da Sarah, mas pelo menos não era provável que ela morresse de parto e o deixasse mergulhado no desespero.
Um ano depois do tom, veio a Fanny, com o cabelo negro de azeviche como o pai, e os olhos azuis escuros que se tornaram quase pretos antes de ela fazer um ano. A nossa Fanny era uma autêntica índia, mais morena do que uma amora, mas raramente se sentia feliz fosse com o que fosse.
Quatro anos depois da Fanny veio o Keith, que herdou o nome do pai da Sarah, que já morrera há muito tempo. O Keith tinha uns cabelos muito macios, de um tom ruivo pálido, e fomos obrigados a gostar dele logo desde o princípio - sobretudo porque ele era muito sossegado, e quase não incomodava ninguém, não se queixava, não chorava e não estava sempre a fazer exigências como a Fanny fazia, e ainda faz. Por fim, os olhos do Keith ganharam a cor do topázio, e a sua pele rivalizava com a tez de gelado de pêssego que muita gente dizia que eu tinha, embora eu não soubesse verdadeiramente se era assim, por não ser muito dada a ver-me ao nosso espelho rachado e pouco nítido.
O Keith cresceu e fez-se um rapazinho excepcionalmente bom, de tal modo apreciador da beleza que quando chegou um novo bebé um ano depois de ele nascer, ele sentava-se durante horas e horas a olhar para a rapariguinha frágil que se mostrou enfermiça desde o início. Era linda como uma bonequinha essa nova irmã, cujo nome a Sarah me deixou escolher, e eu dei-lhe o nome de Jane, porque nessa altura vira uma Jane na capa de uma revista, que era incrivelmente bela.
A Jane tinha umas madeixas macias de cabelo ruivo e dourado, uns grandes olhos líquidos, umas longas pestanas encaracoladas que ela adejava quando estava deitada no berço, contrafeita, a olhar para o Keith. De vez em quando, o Keith abanava o berço, o que a fazia sorrir, um sorriso cuja doçura nos desarmava ao ponto de fazermos fosse o que fosse para o vermos, qual sol a brilhar depois da chuva.
Depois de nascer, a Jane começou a dominar as nossas vidas. Provocar um sorriso no rosto angelical da Jane transformou-se no adorável e obrigatório dever de todos nós. Fazê-la rir em vez de chorar dava-me um prazer especial. O momento era de júbilo quando a Jane conseguia sorrir em vez de chorar com dores misteriosas a que não podia dar nome. E nisto, como em tudo o resto, o que eu gostava de fazer era aquilo que a Fanny tinha de estragar.
- Dá-ma! - gritava a Fanny, correndo com as suas pernas compridas e ossudas e dando-me um pontapé nas canelas antes de se afastar e de me gritar de um sítio seguro do nosso quintal enlameado: - Ela é a "Nossa" Jane, não é tua! Nem é do tom! Nem do Keith! É NOSSA! Tudo quanto está aqui é nosso, não é só teu! Heaven Leigh Casteel!
A partir de então, a Jane passou a ser a "Nossa" Jane, até que pouco depois todos nos esquecemos de que, noutros tempos, a nossa irmã mais nova, mais doce e mais frágil tinha um só nome.
Eu percebia de nomes e daquilo que eles podiam fazer.
O meu próprio nome era simultaneamente uma bênção e uma maldição. Tentei convencer-me de que um nome tão "espiritual" tinha de ser uma bênção. Afinal, quem mais no mundo é que tinha um nome como o de Heaven Leigh? Ninguém, ninguém, sussurrou o passarinho azul da felicidade que vivia de vez em quando na minha mente, cantando para eu adormecer e dizendo que tudo, na longa caminhada, havia de correr bem... Mesmo bem. O problema é que eu também tinha um velho galo preto empoleirado no meu cérebro, a dizer-me que um nome como aquele tentava o destino a fazer o seu pior.
Depois havia o pai.
No meu íntimo, havia alturas em que eu desejava mais do que qualquer coisa no mundo amar o pai solitário que se sentava tantas vezes, com um ar solene, a olhar para o ar, como se a vida o tivesse enganado. Tinha cabelos cor de ébano, herdados de um antepassado índio que raptara uma rapariga branca e se casara com ela. Os olhos eram negros como os cabelos, e a pele conservava uma tonalidade de bronze tanto no Inverno como no Verão; a barba não era muito cerrada, ao contrário do que sucede nos homens que têm o cabelo tão escuro. Os ombros eram de uma largura magnífica. Podíamos observá-lo no quintal a manejar o machado, a cortar madeira, e ver a mais complicada exibição de músculos, todos eles grandes e fortes, de tal modo que a Sarah, inclinada sobre o tanque de lavar a roupa, levantava a cabeça e ficava a admirá-lo com tal amor e desejo no olhar que quase se me partia o coração ao ver que ele nem se importava se ela o admirava ou amava, ou se chorava sempre que ele não voltava para casa senão ao amanhecer.
Por vezes, o seu ar taciturno e melancólico fazia-me duvidar dos meus pensamentos mesquinhos. Observei-o na Primavera em que fiz treze anos, depois de saber tudo acerca da minha verdadeira mãe, e vi-o sentado numa cadeira, descontraído, a olhar para o ar, como se estivesse a sonhar ou qualquer coisa no género; eu, na sombra, ansiava por estender a mão e tocar-lhe na face, perguntando a mim própria se esta seria áspera. Eu nunca lhe tocara na face... E que faria ele se eu me atrevesse a isso? Dar-me-ia uma bofetada? Berraria, gritaria, sem dúvida que seria exactamente o que ele faria e, no entanto, havia em mim uma profunda necessidade de amá-lo e de ser amada por ele. Essa necessidade dolorosa estava sempre presente, à espera de se acender e explodir numa fogueira de amor e de afecto.
Se ao menos ele reparasse em mim, ou dissesse qualquer coisa para me levar a acreditar que gostava de mim, pelo menos um pouco...
Contudo nem sequer olhava para mim. Nunca me dirigia a palavra. Tratava-me como se eu não estivesse presente.
Porém, quando a Fanny subiu a correr os frágeis degraus do alpendre e se aninhou no seu regaço, gritando de alegria ao vê-lo, ele beijou-a. Eu fiquei desolada ao ver como ele a abraçava e lhe afagava os cabelos compridos, negros e brilhantes.
- Como é que está a minha Fanny?
- Tenho saudades suas, pai! Detesto que não venha para casa. Aqui não se está bem sem si! Por favor, pai, fique, desta vez!
- Querida! - murmurou ele. - É bom que tenham saudades nossas... Talvez seja por isso que eu me afasto.
Oh, a dor que o meu pai me causou quando afagou os cabelos da Fanny e ignorou os meus. Foi pior do que a dor provocada pelas bofetadas e pelas más palavras que ele me dirigia quando, por vezes, eu o obrigava a olhar para mim e a responder-me. De propósito, continuei a andar, com grandes passadas, emergindo da penumbra e carregando à cintura um grande cesto de roupa que acabara de tirar da corda e de dobrar. A Fanny fez um sorriso malicioso. O pai nem mexeu os olhos para indicar que percebia como eu trabalhava arduamente, mas houve um músculo junto da sua boca que estremeceu. Eu não disse nada e passei, como se ele não tivesse estado fora de casa durante três semanas e eu o tivesse visto há minutos. Tive um arrepio ao sentir-me ignorada e ao ignorá-lo.
A Fanny nunca fazia nada. A Sarah e eu é que trabalhávamos. A avó encarregava-se da conversa, o avô esculpia, e o pai ia e vinha quando lhe apetecia, vendia uísque para os traficantes e por vezes ajudava-os a fazê-lo, mas o que lhe dava mais prazer era enganar as autoridades, e era o que lhe rendia mais dinheiro, segundo afirmava a Sarah, que andava aterrorizada, não fosse ele ser apanhado e metido na cadeia, pois os destiladores profissionais não se importavam com a concorrência que lhes faziam as bebidas alcoólicas cujo teor de álcool era superior ao que a lei permitia. Era frequente ele partir e ficar por fora durante uma ou duas semanas, e quando ele partia, a Sarah desleixava-se na lavagem do cabelo, e os seus cozinhados eram piores do que era costume. Porém, quando o pai chegava à porta de casa e lhe atirava um sorriso indiferente ou lhe dirigia a palavra, ela ganhava vida, ia a correr tomar banho e vestia a melhor roupa que tinha (um naipe de três vestidos, dos quais nenhum prestava). Desejava ardentemente ter produtos de maquilhagem para usar quando o pai estava em casa e um vestido verde a condizer com a cor dos olhos. Oh, era fácil perceber que a Sarah depositava todos os seus sonhos e esperanças no dia em que a maquilhagem a sério e um vestido de seda verde entrassem na sua vida e fizessem com que o pai a amasse tanto como amara aquela pobre rapariga já morta que fora a minha mãe.
A nossa cabana perto do céu era feita de madeira velha cheia de nós, cujos buracos deixavam entrar, ou sair, o frio e o calor, o que era o sinal mais evidente da nossa miséria. Nunca soubera o que era tinta, e nunca saberia. O telhado era de zinco, o qual enferrujara muito antes de eu nascer, e que chorara um milhão de lágrimas que tinham ido manchar a velha madeira. Tínhamos algerozes e tubos para apanhar a água em que tomávamos banho e lavávamos a cabeça, depois de aquecida no fogão de ferro fundido ao qual pusemos a alcunha de Velho Fumegante. Ele arrotava e cuspia um fumo tão abjecto que nos deixava quase a chorar e a tossir quando estávamos dentro de casa e as janelas e a única porta que dava acesso ao exterior estavam fechadas.
Do outro lado da nossa cabana nas montanhas ficava o imprescindível alpendre. Todos os anos, na Primavera, eu via a avó e o avô saírem da cabana e decorarem o nosso alpendre periclitante e delapidado com as suas cadeiras de balouço gémeas. A avó a tricotar, a fazer renda, a tecer, a fazer tapetes, enquanto o avô esculpia. Às vezes, o avô tocava violino nos bailes que havia no celeiro, uma vez por semana, mas à medida que foi envelhecendo, cada vez gostava menos de tocar violino e mais de esculpir.
Lá dentro, havia duas pequenas divisões, com uma cortina esfarrapada que formava uma espécie de porta para o "quarto". O nosso fogão não só aquecia a casa como fazia a nossa comida e os nossos biscoitos e aquecia a água do banho. Uma vez por semana, antes de irmos à igreja ao domingo, tomávamos banho e lavávamos a cabeça.
Ao lado do Velho Fumegante, havia um antigo armário de cozinha equipado com latas para a farinha, o açúcar, o café e o chá. Não tínhamos dinheiro para comprar açúcar verdadeiro, café e chá, mas usávamos latas de quatro litros para a banha com que fazíamos os molhos e os biscoitos. Quando a sorte estava do nosso lado, tínhamos mel para misturar com os morangos silvestres. Quando a sorte nos bafejava, tínhamos uma vaca para nos dar leite, e havia sempre galinhas, patos e gansos para nos darem ovos e carne fresca ao domingo. Os porcos andavam por ali à vontade, abrigavam-se debaixo da nossa casa e não nos deixavam dormir com os seus sonhos maus. Lá dentro, os cães de caça do pai corriam pela casa toda, pois todas as pessoas que viviam nas montanhas sabiam que os cães eram importantes quando se tratava de garantir o fornecimento de outra carne que não fosse a das aves de capoeira.
Tínhamos uma fartura de animais, se contássemos com os gatos e os cães vadios que vinham entregar-nos centenas de gatinhos e de cachorros. O nosso quintal estava cheio de animais a vaguear e de tudo o resto que conseguisse suportar o aperto e o ruído da vida com os Casteel - a escumalha das montanhas.
Naquilo a que chamávamos o quarto, havia uma grande cama de latão com um velho colchão manchado e desengonçado, assente em molas em espiral que chiavam e guinchavam sempre que havia actividade naquela cama. Às vezes, a proximidade e o volume dos ruídos que vinham de lá eram embaraçosos; a cortina não era suficiente para amortecer o som.
Na cidade e na escola, éramos conhecidos pela escumalha das montanhas, escória dos montes e malandros. Pacóvios dos montes foi o nome mais agradável que alguma vez nos chamaram. De toda a gente que vivia nos casebres da montanha, não havia família mais desprezada do que a nossa, os Casteel, os piores de todos. Éramos desprezados não só pelas pessoas do vale como também pelos nossos, por qualquer razão que nunca entendi. No entanto... A família Casteel tinha cinco filhos na prisão, acusados de crimes maiores e menores. Não admira que a avó chorasse de noite; todos os seus filhos a tinham desiludido tanto. Só lhe restava o mais novo, o pai, e se este lhe deu alguma alegria, eu nunca soube. Era nele que depositava todas as suas esperanças, à espera daquele dia maravilhoso em que ele provaria ao mundo que os Casteel não eram a pior escumalha das montanhas.
Tenho ouvido dizer, embora seja difícil de acreditar, que existem crianças no mundo que odeiam a escola, mas o tom e eu mal podíamos esperar pelas segundas-feiras para dar um giro, pois só assim podíamos escapar aos limites da nossa pequena cabana da montanha, com as suas duas divisões malcheirosas e acanhadas e o longo carreiro que ia dar à velha e fedorenta casinha de fora.
A nossa escola era feita de tijolos vermelhos e ficava mesmo no coração de Winnerrow. Andávamos dez quilómetros para lá e dez quilómetros para cá, como se isso não fosse nada, sempre com o tom a meu lado, a Fanny mais atrás, má como as cobras, com os olhos negros do papá e o mesmo temperamento. Era bela como uma pintura, mas vivia zangada com o mundo por a família ser "pobre como Job", como sucintamente afirmava.
- ... E nós não vivemos numa bela casa pintada como eles vivem em Winnerrow, onde têm casas de banho a sério.
A Fanny tinha uma voz estridente e estava sempre a queixar-se de coisas que todos nós aceitávamos para não nos sentirmos infelizes.
- Casas de banho interiores, podem imaginar? Ouvi dizer que algumas casas têm duas, TRÊS... Todas com água corrente quente e fria! Acreditam numa coisa dessas?
- Eu acredito em tudo o que diga respeito a Winnerrow - respondeu o tom, atirando um seixo para a água do rio que nos servia de banheira no Verão. Sem aquele rio, andaríamos ainda muito mais sujos. O rio e as suas pequenas lagoas, charcos e fontes de água fresca facilitavam-nos muito a vida que, de outro modo, seria intolerável para todos, com a sua água fresca e saborosa, e uma piscina natural tão boa como a de qualquer cidade.
- Heaven, não estás a dar atenção ao que eu digo! gritou a Fanny, que tinha de ser sempre o centro das atenções. - E mais, eles têm lava-louças em Winnerrow. Lava-louças duplos e Aquecimento central... tom, o que é aquecimento central?
- Fanny, nós temos a mesma coisa, com o Velho Fumegante a estalar no meio da nossa cabana.
- tom, não creio que seja exactamente isso que significa ter aquecimento central - disse eu.
Se era raro eu estar de acordo com a Fanny em relação a outra coisa qualquer, reconhecia que seria uma maravilha viver numa casa pintada, com quatro ou cinco divisões, ter água quente e fria à discrição desde que abrisse uma torneira... E uma casa de banho que desse gosto ver.
Ah, pensar em aquecimento central, lava-louças duplos e casas de banho bem apetrechadas obrigava-me a reconhecer como éramos pobres. Eu não gostava de pensar nisso, de ter pena de mim própria, de me deixar invadir por preocupações acerca do Keith e da "Nossa" Jane. Agora, se a Fanny lavasse a roupa dela, isso ajudaria um pouco. Mas a Fanny nunca fazia nada, nem sequer varria o alpendre, embora se desunhasse a varrer as folhas secas do quintal. Porque era uma coisa divertida de fazer, na minha modesta opinião. Lá fora, podia ver o tom a jogar à bola com os gatinhos, enquanto a Sarah e eu fazíamos os trabalhos a sério e a avó conversava.
A avó tinha boas razões para não trabalhar tanto como a Sarah. Sentia dificuldade em levantar-se quando estava deitada e em deitar-se quando estava levantada. O tempo que ela levava a deslocar-se de um lado para o outro parecia uma eternidade, porque levava à frente todos os móveis que nós tínhamos. Não havia móveis suficientes para levar a avó para todo o lado onde ela queria ir.
Quando eu já tinha idade suficiente para ajudar e a avó já estava muito fraca para ajudar (e a Fanny se recusava peremptoriamente a fazer fosse o que fosse, mesmo com três, quatro ou cinco anos), a Sarah ensinou-me a mudar as fraldas dos bebés, a dar-lhes de comer e a dar-lhes banho numa pequena banheira de metal. com oito anos de idade, eu já sabia fazer biscoitos, derreter a banha para
o molho e juntar a farinha à água antes de a misturar com a gordura quente. A Sarah ensinou-me a limpar as janelas, a esfregar o chão e a usar a tábua para tirar a sujidade da nossa roupa imunda. Também ensinou o tom a ajudar-me o máximo possível, apesar de os outros rapazes lhe chamarem "maricas" por fazer "trabalhos de mulher". Se o tom não gostasse tanto de mim, teria levantado mais objecções.
Houve uma semana em que o pai veio para casa todas as noites. A Sarah andava feliz como um passarinho, cantarolando baixinho e deitando olhares tímidos e frequentes ao pai, como se ele tivesse vindo cortejá-la e não estivesse apenas cansado de traficar em bebidas alcoólicas. Talvez lá fora, algures numa auto-estrada solitária, um agente da autoridade estivesse à espera de Luke Casteel, pronto para o meter na cadeia juntamente com os irmãos.
Lá fora, no quintal, eu esfregava a roupa suja, como de costume, enquanto a Fanny saltava à corda e o pai aparava a bola que o tom lhe atirava com o seu único brinquedo, um bastão que já vinha dos tempos de meninice do pai. O Keith e a "Nossa" Jane andavam de roda de mim, à espera de pendurarem a roupa lavada. Nenhum deles chegava às cordas.
- Fanny, porque é que não ajudas a Heavenly? - gritou o tom, deitando-me um olhar preocupado.
- Não me apetece! - respondeu a Fanny.
- Papá, porque não obriga a Fanny a ajudar a Heavenly? O pai bateu na bola com tal força que esta quase atingiu o tom. Este, ao afastar-se, perdeu o equilíbrio e caiu no chão.
- Nunca te rales com trabalhos de mulher - disse o pai, soltando uma gargalhada rude.
Voltou-se para a casa, a tempo de ouvir a Sarah gritar que o jantar estava pronto:
- Venham comer!
A avó levantou-se a custo da sua cadeira de balouço. O avô fez um esforço para se erguer da sua.
- Envelhecer é pior do que eu julgava - gemeu a avó assim que se pôs de pé, tentando aproximar-se da mesa antes que a comida desaparecesse.
A "Nossa" Jane correu para ela para lhe dar a mão, pois a avó não podia fazer muito mais do que isso. Voltou a gemer.
- Isto faz-me pensar que, afinal, talvez a morte não seja assim tão má.
- Cale-se com essa conversa! - rugiu o pai. - Estou em casa para me distrair, não para ouvir falar da morte e de moribundos!
E sem dar tempo a nada, quase antes de a avó e o avô se sentarem à mesa, levantou-se, terminou a refeição que a Sarah levara horas a preparar, e saiu para o quintal, saltando para o camião e indo sabe Deus para onde.
A Sarah, com um vestido que desfizera, e que voltara a fazer com outro feitio, com mangas novas e algibeiras feitas de uma bolsa de tecido puído, ficou à porta, a olhar lá para fora e a chorar baixinho. Os cabelos lavados e perfumados com o resto da água de lilás brilhavam ao luar, com reflexos avermelhados, e tudo aquilo para nada, enquanto que aquelas raparigas do Shirleys Place usavam perfume francês do verdadeiro e maquilhagem a sério, e não o pó de arroz que a Sarah punha para tirar o brilho do nariz.
Resolvi que não havia de ser outra Sarah... Ou outro anjo descoberto em Atlanta. Eu, não. Eu, nunca.
A ESCOLA E A IGREJA
O cocorocó do nosso galo solitário com o seu harém de trinta galinhas acordou-nos a todos. O sol era apenas uma ténue faixa rosada a nascente. com o cantar do galo veio o ruído da mãe a acordar, da avó e do avô a voltarem-se e da "Nossa" Jane a choramingar porque lhe doía sempre a barriga de manhã. A Fanny sentou-se e esfregou os olhos.
- Hoje não vou à escola - anunciou, de mau humor.
O Keith levantou-se logo e foi a correr buscar um biscoito frio para dar à "Nossa" Jane e lhe acalmar as dores provocadas pela fome, que a atacavam mais do que a qualquer de nós. Já mais calma, ela sentou-se na sua esteira e deu uma dentada no biscoito, observando cada um de nós com os seus olhos lindos, à espera do leite pelo qual não tardaria a chorar.
- Mãe, a vaca desapareceu - disse o tom, chegando à porta. - Fui lá fora para mungi-la... Desapareceu.
- Raios partam o Luke! - gritou a Sarah. - Ele sabe que precisamos dessa vaca por causa do leite!
- Talvez o pai não a tenha vendido. Pode ser que alguém a tenha roubado.
- Ele vendeu-a - disse ela, imperturbável. - Ele ontem disse que talvez tivesse de vendê-la. - Vai ver se consegues amarrar aquela cabra.
- Leite, leite, leite! - choramingou a "Nossa" Jane. Corri para a "Nossa" Jane e peguei-lhe ao colo.
- Não chores, querida. Daqui a dez minutos já estarás a beber o melhor leite fresco da cabrinha.
A nossa refeição matinal era composta por biscoitos quentes feitos diariamente e cobertos de calda. Naquele dia também tínhamos papas de aveia. A "Nossa" Jane desejava o seu leite mais do que qualquer outra coisa.
- Onde está, Hev... lee? - Não parava ela de perguntar.
- Já lá vem - respondi, esperando e rezando para que isso fosse verdade.
Meia hora depois, tom apareceu com um balde de leite. Vinha corado e afogueado, como se tivesse vindo a correr durante muito tempo.
- Aqui tens, "Nossa" Jane - disse ele com um ar de triunfo, deitando-lhe leite no copo e em seguida no jarro para que o Keith pudesse beber também.
- Onde é que o arranjaste? - perguntou a mãe, desconfiada, cheirando o leite. - Aquela cabra pertence agora ao Skeeter Burl, bem sabes... E ele é mau, muito mau.
- Olhos que não vêem, coração que não sente - respondeu o tom, sentando-se e atirando-se à comida. - Quando a "Nossa" Jane e o Keith precisarem de leite eu vou roubar. E a mãe tem razão. A nossa vaca anda agora a pastar no prado do Skeeter Burl.
A Sarah deitou-me um olhar grave.
- Bem, isso é que é apostar, não é verdade? E o vosso pai perdeu, como sempre.
O pai jogava; quando ele perdia todos nós perdíamos, e não era só a vaca. Durante as últimas semanas, todas as nossas aves de capoeira tinham desaparecido, uma por uma. Tentei convencer-me de que elas voltariam logo que o pai tivesse um período de sorte.
- vou buscar os ovos - exclamou a Sarah, enquanto eu me vestia para ir para a escola. - Tenho de ir antes que ele aposte todas as nossas galinhas. Um dia destes, acordaremos sem ovos e sem nada.
A Sarah era dada ao pessimismo, enquanto que o tom e eu estávamos sempre a pensar que as nossas vidas haviam de mudar para melhor, mesmo sem vacas, cabras, galinhas ou patos.
Parecia que a "Nossa" Jane nunca mais crescia para ir connosco para Winnerrow frequentar a primeira classe. Mas por fim, naquele Outono, fez seis anos e lá ia connosco, se eu e o tom a arrastássemos todos os dias. E era o que nós tínhamos de fazer, literalmente arrastá-la, agarrando-lhe na mão para que ela não fugisse e não voltasse para a cabana. Mesmo quando eu tentava obrigá-la a andar mais depressa, ela arrastava os pezinhos, resistindo como podia, enquanto o Keith a encorajava e sossegava:
- Não é assim tão mau, não é assim tão mau.
E era tudo o que ele sabia dizer em favor da escola. Onde a "Nossa" Jane gostava de ficar era na cabana, com a Sarah e com a boneca esfarrapada, já com metade do recheio de fora. Desde o princípio que ela detestou a escola, os bancos duros sem estofos, a obrigação de estar quieta e de prestar atenção, embora adorasse estar ao pé
de outras crianças da sua idade. As idas à escola da "Nossa" Jane eram irregulares por causa da sua saúde frágil e da sua determinação em ficar em casa com a mãe.
A "Nossa" Jane era uma boneca adorável; porém, era capaz de nos pôr os nervos em franja com os seus gritos estridentes e com a comida que cuspia e que cheirava a azedo. Eu voltava-me e ralhava com ela porque sabia que ela nos faria chegar atrasados, e mais uma vez todos fariam troça de nós na escola por nem sequer sabermos ver as horas. A "Nossa" Jane sorria, estendia os braços frágeis e magros e, no mesmo instante, as minhas palavras de reprimenda gelavam-se-me na língua. Eu pegava nela e cobria o seu belo rosto de todos os beijos que ela merecia.
- Sentes-te melhor, "Nossa" Jane?
- - Sinto - respondeu ela muito baixinho -, mas não gosto de andar. Faz-me doer as pernas.
- Dá-ma - disse o tom, aproximando-se para ma tirar do colo.
Até o tom, espalhafatoso, rude e obstinado, todo orgulhoso por ser rapaz, se mostrava meigo e terno para com a "Nossa" Jane. Não havia dúvida de que a nossa irmã mais nova tinha artes de nos arrebatar o coração.
O tom pegou-lhe ao colo e olhou para a sua linda carinha, toda retorcida e pronta a desatar aos gritos se ele se atrevesse a pô-la no chão.
- Tu és mesmo uma bonequinha - disse-lhe o tom antes de se virar para mim. - Sabes, Heavenly, mesmo que o pai não possa oferecer bonecas a ti ou à Fanny no Natal ou no dia dos anos, tens sempre a "Nossa" Jane que ainda é melhor.
Eu não estava de acordo com aquilo. As bonecas podem ser postas de lado e esquecidas. Ninguém podia esquecer-se da "Nossa" Jane. E ela fazia os possíveis para que não a esquecêssemos.
O Keith e a "Nossa" Jane tinham uma relação especial, como se fossem, também "gémeos verdadeiros". Vigoroso e forte, o Keith corria ao lado do tom, olhando para a irmãzinha com adoração, da mesma maneira que corria para casa ao encontro dela, que logo sorria através das lágrimas quando ele lhe dava o que ela queria. E ela queria tudo o que ele tinha. O Keith, com ternura e delicadeza, acedia às suas exigências e queixava mesmo quando o "querer" da "Nossa" Jane teria provocado a rebeldia ostensiva do tom.
- Tu és um palerma, tom, e tu és outro, Keith - disse a Fanny. - Deus me livre se eu levava ao colo uma rapariga que pode andar tão bem como eu.
A "Nossa" Jane começou a choramingar.
- A Fanny não gosta de mim... A Fanny não gosta de mim... A Fanny não gosta de mim...
E aquilo poderia ter durado todo o caminho até chegar à escola se a Fanny, contrafeita, não tivesse tirado a "Nossa" Jane dos braços do tom.
- Ora, não és assim tão má. Mas porque é que não aprendes a andar, "Nossa" Jane, porque é que não aprendes?
- Eu não quero andar - respondeu a "Nossa" Jane, agarrando-se com força ao pescoço da Fanny e beijando-a na face.
- Estão a ver? - disse a Fanny, orgulhosa. - Ela gosta mais de mim... Não é de ti, Heaven, nem de ti, tom... Ela gosta mais de mim, não gostas, "Nossa" Jane?
Desconcertada, a "Nossa" Jane olhou para o Keith, para mim, para o tom, e depois gritou:
- Põe-me no chão! No chão! No chão!
A "Nossa" Jane caiu numa poça de lama! Soltou um grito e depois desatou a chorar, e o tom foi a correr atrás da Fanny para lhe dar uma boa surra. Tentei sossegar a "Nossa" Jane e secá-la com um farrapo que fazia as vezes de lenço de assoar. O Keith debulhou-se em lágrimas.
- Não chores, Keith. Ela não se aleijou... Pois não, querida? Estás a ver que agora já estás seca, e a Fanny vai pedir desculpa... Mas devias tentar andar. Faz-te bem às pernas. Agora dá a mão ao Keith e vamos todos a cantar até à escola.
Palavras mágicas. Se a "Nossa" Jane não gostava de andar, gostava tanto de cantar como nós e, em conjunto, ela, o Keith e eu fomos a cantar até alcançarmos o tom que fora a correr atrás da Fanny até ao pátio da escola. Seis rapazes fizeram uma fila para a Fanny se esconder, e o tom foi ultrapassado por rapazes muito mais velhos e altos. A Fanny riu-se, sem se mostrar arrependida por ter deixado cair a "Nossa" Jane e lhe ter sujado o seu melhor vestido de levar à escola, que estava molhado e se colava às pernas magras.
Enquanto o Keith aguardava pacientemente na sala de espera da escola, voltei a enxugar a "Nossa" Jane; depois vi o Keith dirigir-se para a sua sala de aula, libertei-o da "Nossa" Jane e fui levá-la à sala da primeira classe. Sentada à mesa com mais cinco meninas da sua idade, ela era a mais pequena. Era uma vergonha que todas as outras meninas tivessem vestidos mais bonitos, embora nenhuma tivesse um cabelo tão lindo ou um sorriso tão doce.
- Até logo, querida - gritei.
Ela fitou-me, aflita, com os seus olhos grandes e assustados.
O tom estava à minha espera à porta da sala de aula de Miss Deale. Entrámos os dois. Todos os alunos se voltaram para examinar a nossa roupa e os nossos pés; não interessava se estes estavam sujos ou limpos. Eles riam-se sempre em silêncio. Todos os dias vestíamos a mesma roupa, e todos os dias eles nos olhavam com escárnio. Aquilo feria-nos sempre, mas ambos tentávamos ignorá-los quando nos sentávamos nos bancos do fundo da sala de aula.
Sentada de frente para os alunos, estava a mulher mais encantadora que havia no mundo - exactamente o tipo de mulher bonita que eu esperava ser e pedia a Deus para ser quando fosse crescida. Enquanto todos os seus alunos se voltaram para fazer troça de nós, Miss Marianne Deale levantou a cabeça e fez um sorriso para nos dar as boas-vindas. O seu sorriso não podia ser mais caloroso se viéssemos enfeitados com a mais bela roupa que o mundo possuía para nos dar. Ela sabia que nós tínhamos de percorrer um caminho mais longo do que qualquer dos outros, e que o tom e eu éramos responsáveis pela segurança do Keith e da "Nossa" Jane. Ela disse mil e uma coisas bonitas com os olhos. com outro professor qualquer, talvez eu e o tom não tivéssemos ganho o mesmo apego à escola. Era ela que transformava os nossos dias de aulas numa verdadeira aventura, numa busca de conhecimento que nos tiraria, dentro de pouco tempo, das montanhas, de uma cabana miserável e nos levaria para um mundo maior e mais rico.
O tom e eu olhámos um para o outro, ambos entusiasmados por nos encontrarmos de novo na presença da nossa radiosa professora, que já nos dera a conhecer um pouco do mundo quando inspirara em nós o amor pela leitura. Eu estava mais perto da janela do que o tom, pois o facto de olhar lá para fora despertava-lhe sempre o desejo de fazer gazeta, apesar da vontade de terminar o liceu e de ganhar uma bolsa de estudo que lhe permitiria ir para a faculdade. Se não conseguíssemos entrar na faculdade com boas notas, bem teríamos de trabalhar. Tínhamos tudo planeado. Suspirei ao sentar-me. Cada dia de escola era mais uma pequena batalha ganha, que nos aproximava mais dos nossos objectivos. O meu era ser professora tal como Miss Deale.
O cabelo do meu ídolo tinha a textura e a cor do da "Nossa" Jane: um louro avermelhado e esmaecido. Os olhos eram azul-claros, e o corpo, elegante e bem torneado. Miss Deale era de Baltimore e falava com um sotaque diferente de qualquer dos seus alunos. Para dizer a verdade, eu achava que Miss Deale era absolutamente perfeita.
Miss Deale deu uma olhadela a uns quantos bancos vazios antes de olhar outra vez para o relógio, suspirando e levantando-se para fazer a chamada.
- Vamos todos levantar-nos e saudar a bandeira - disse ela. - E antes de nos voltarmos a sentar, rezaremos todos em silêncio e agradeceremos a Deus por estarmos vivos e sermos saudáveis e jovens, com o mundo à nossa espera para descobrirmos e aperfeiçoarmos.
Bolas, se ela não sabia como começar bem o dia, ninguém sabia. O simples facto de a vermos e de estarmos ao pé dela dava-nos, ao tom e a mim, motivos para sentirmos que o futuro nos reservava qualquer coisa de especial. Ela respeitava os seus alunos, mesmo nós, com os nossos fatos coçados, mas nunca cedia em questões relacionadas com disciplina, asseio e educação.
Primeiro, tivemos de entregar os trabalhos de casa. Como os nossos pais não nos podiam comprar livros, tínhamos de servir-nos dos livros da escola para completar os trabalhos de casa durante o período das aulas. Às vezes, era de mais, sobretudo quando os dias se tornavam mais pequenos e escurecia antes de chegarmos a casa.
Eu estava a tirar apontamentos do quadro a toda a pressa quando Miss Deale parou junto da minha carteira e me disse em voz baixa:
- Heaven, peço-te que tu e o tom fiquem aqui depois da aula. Tenho de falar convosco.
- Fizemos alguma coisa de mal? - perguntei eu, preocupada.
- Não, claro que não. Tu perguntas sempre isso. Heaven, lá porque te escolhi, a ti e ao tom, isso não quer sempre dizer que eu tencione repreender-vos.
As únicas alturas em que Miss Deale se mostrava desapontada com o tom ou comigo era quando nós ficávamos muito sérios e calados sempre que ela nos interrogava sobre o modo como vivíamos. Assumíamos a defesa do pai e da mãe, porque não queríamos que ela soubesse como era pobre a nossa casa, e como eram miseráveis as nossas refeições comparadas com aquelas que as crianças da cidade descreviam. Os períodos de almoço na escola eram os
piores. Metade das crianças do vale traziam lancheiras castanhas e a outra metade comia na cafetaria. Só nós, os dos montes, é que não trazíamos nada, nem sequer uns trocos para comprarmos um cachorro quente e uma cola. Na nossa casa, no cimo da montanha, tomávamos o pequeno-almoço ao nascer do Sol e uma segunda refeição ao anoitecer, antes de irmos para a cama. Nunca almoçávamos.
- O que achas que ela quer? - perguntou-me o tom quando nos encontrámos à pressa durante a hora de almoço, antes de ele ir jogar à bola e eu ir saltar à corda.
- Não sei.
Miss Deale estava atarefada a ver pontos quando o tom e eu voltámos depois das aulas, preocupados com o Keith e com a "Nossa" Jane, que não saberiam o que fazer se nós lá não estivéssemos quando eles saíssem das aulas.
- Depois explicas-me o que foi - disse o tom em voz baixa, e desapareceu para ir buscar o Keith e a "Nossa" Jane. Não podíamos estar dependentes da Fanny para olhar por eles.
De repente, Miss Deale levantou a cabeça.
- Oh, desculpa, Heaven... Estás aí há muito tempo?
- Só há uns segundos - menti, pois sabia que era há mais tempo. - O tom foi a correr buscar a "Nossa" Jane e o Keith, e trá-los para aqui. Eles assustam-se se um de nós não os for buscar.
- E a Fanny? Ela não colabora?
- Bem, às vezes a Fanny distrai-se e esquece-se - titubeei, tentando proteger a Fanny só pelo facto de ela ser minha irmã.
Miss Deale sorriu.
- Eu sei que vocês têm de andar muito até chegar a casa, portanto não vou esperar pelo tom. Falei com o conselho directivo da escola acerca de vocês dois, na esperança de os convencer a autorizarem que vocês levem os livros para casa, para estudarem, mas eles mostram-se inflexíveis e disseram que se vos concederem dois privilégios especiais, terão de oferecer livros de graça a todos os alunos. Por isso, eu vou permitir que vocês se sirvam dos meus livros.
Eu fitei-a, surpreendida.
- Mas a senhora não precisa deles?
- Não... Posso servir-me de outros. A partir de agora, vocês podem usá-los, e peço-vos que levem da biblioteca todos os livros que conseguirem ler numa semana. É claro que terão de respeitá-los e mantê-los limpos, e devolvê-los quando acabar o prazo.
Eu fiquei tão entusiasmada que exclamei:
- Todos os livros que conseguirmos ler numa semana? Miss Deale, os nossos braços não terão força suficiente para levarmos tantos!
Ela riu-se e, curiosamente, as lágrimas vieram-lhe aos olhos.
- Eu já calculava que tu dirias uma coisa dessas. Deitou um sorriso radiante ao tom quando ele apareceu com a "Nossa" Jane ao colo, que parecia exausta, e o Keith pela mão.
- tom, acho que já estás carregado e que não podes levar livros para casa.
Confuso, ele olhou para ela.
- Quer dizer que podemos levar livros para casa? Sem termos de pagar?
- Exactamente, tom. E levam também uns para a "Nossa" Jane e para o Keith, e mesmo para a Fanny.
- A Fanny não os lê - disse tom, com os olhos a brilhar. - Mas a Heaven e eu lemo-los de certeza!
Naquele dia levámos para casa cinco livros para ler e quatro para estudar. O Keith fez o seu quinhão e carregou com dois livros; portanto, nem o tom nem eu nos recusámos a pegar na "Nossa" Jane ao colo quando ela se sentiu cansada. Preocupava-me ver como ela ficava pálida depois de dar meia dúzia de passos pela encosta acima.
Mais atrás, vinha a Fanny com os seus admiradores, que lembravam um enxame de abelhas à procura da flor mais doce. Eu só tinha um irmão dedicado. O Keith ficara cerca de trinta metros para trás da Fanny e dos amigos, relutante em vir connosco, mas não pelos motivos da Fanny. O Keith era um apaixonado da Natureza, das paisagens, dos sons e dos cheiros da terra, do vento, da floresta e, acima de tudo, dos animais. Olhei para trás e vi que ele estava tão absorto a observar a casca de uma árvore que nem me ouviu chamá-lo.
- Keith, despacha-te!
Ele deu uma corrida e depois parou para apanhar um pássaro morto, examinando-o com mãos cuidadosas e olhos observadores. Se não estivéssemos sempre a recordar-lhe onde estava, ele ficaria para trás, e nunca saberia ir ter a casa. Era estranho como o Keith era distraído e nunca sabia onde estava. Só sabia onde cresciam ou viviam os alvos da sua atenção.
- O que é que é mais pesado, tom? Os livros ou a "Nossa" Jane? - perguntei, carregada com seis.
- Os livros - respondeu ele à pressa, pondo no chão a nossa frágil irmã para que eu pudesse passar-lhe os livros e pegar ao colo na "Nossa" Jane.
- O que havemos de fazer, mãe? - perguntou o tom assim que chegámos à cabana, donde saía o fumo que nos deixou logo com os olhos vermelhos. - Ela cansa-se muito, mas precisa de ir à escola.
A Sarah observou atentamente os olhos cansados da "Nossa" Jane, tocou-lhe na face pálida e depois pegou na filha mais nova com todo o cuidado, levou-a para a cama grande e deitou-a.
- Do que ela precisa é de um médico, mas não temos dinheiro para lhe pagar. É isso que me revolta no vosso - pai. Tem dinheiro para o álcool, tem dinheiro para as mulheres. .. Mas não tem dinheiro para pagar a um médico que trate dos seus.
com que amargura ela disse aquilo!
Todos os domingos à noite eu tinha pesadelos. Aquilo repetiu-se vezes sem conta até que eu passei a detestar as noites de domingo. Sonhava que estava sozinha na cabana, e que esta estava soterrada na neve. Sempre que eu tinha este sonho, acordava a chorar.
- Já passou - confortou-me o tom, arrastando-se da sua esteira no chão, junto do fogão, e abraçando-me depois de um dos meus piores pesadelos.
- Eu também tenho sonhos maus, de vez em quando. Não chores. Estamos todos aqui. Não temos outro sítio para onde ir, senão para a escola e para aqui, para a igreja e para aqui. Não seria óptimo se não tivéssemos de voltar?
- O pai não gosta de mim como gosta de ti, da Fanny, do Keith e da "Nossa" Jane - disse eu a soluçar, o que ainda me fez sentir mais fraca e envergonhada. - Sou assim tão feia e insuportável? É por isso que o pai me odeia tanto?
- Não - ralhou-me o tom, mostrando-se embaraçado.
- É qualquer coisa no teu cabelo que lhe desagrada. Uma vez ouvi-o dizer isso à Sarah. Mas eu acho que o teu cabelo é lindo, a sério. Não é tão ruivo como o meu, nem tão descorado como o da "Nossa" Jane. Ou tão preto e escorrido como o da Fanny. Acho que tu és, sem dúvida, a rapariga mais bonita dos montes, e também de Winnerrow.
Havia muitas raparigas bonitas nos montes e no vale. Abracei tom e voltei-me para o outro lado. O que percebia o tom de raparigas bonitas? Eu já sabia que existia um mundo do outro lado dos montes - um mundo vasto e maravilhoso que eu iria conhecer um dia.
- Estou contente por não ser uma rapariga que se sente feliz quando lhe dirigem cumprimentos parvos! - gritou o tom no dia seguinte, abanando a cabeça, admirado com uma irmã que oscilava com tanta facilidade entre a preocupação e o riso.
- Ontem à noite não estavas a falar a sério? - perguntei, desanimada. - Tu também não gostas de mim?
Ele virou-se e fez-me uma careta.
- Estás a ver? A tua cara é quase tão bonita como esta minha... E eu era capaz de casar contigo quando for crescido... Se pudesse.
- Dizes isso desde que aprendeste a falar.
- Como é que ti sabes? - gritou ele.
- tom, tu sabes que Miss Deale não quer que digas te. Não podes esquecer a tua dicção e a tua gramática. Dize tu em vez de te. Tens de aprender a falar como deve ser, tom.
- Porquê? - perguntou ele, com um brilho travesso nos olhos verdes.
Puxou a fita vermelha que me prendia o rabo-de-cavalo e soltou-me os cabelos que começaram a esvoaçar ao vento.
- Por estes sítios, ninguém quer saber da gramática nem da dicção, nem a mãe nem o pai, ninguém a não seres te e Miss Deale.
- E de quem é que tu gostas mais no mundo? - perguntei.
- De ti, em primeiro lugar, e de Miss Deale em segundo - respondeu o tom dando uma gargalhada. - Como não te posso ter, escolho Miss Deale. vou ordenar a Deus que a impeça de se tornar velha e feia. Depois, caso-me com ela, e ela lê-me todos os livros que há no mundo.
- Tu é que vais ler os teus próprios livros, Thomas Luke Casteel!
- Heavenly1 (ele era o único que associava os meus dois nomes próprios desta forma lisonjeira), os outros miúdos da escola andam a falar de ti porque acham que tu sabes mais
1 Heavenly, aqui um resultado da contracção de Heaven e de Leigh, significa Celeste. (N. da T.)
do que devias para a tua idade, que é também a minha. Eu não gosto disso. Como é que isso aconteceu?
- Eu tenho A e tu tens B e C porque jogas de mais à bola... E eu nem sequer jogo à bola.
tom possuía tanta sede de conhecimento como eu, mas tinha de ser como os outros do seu sexo de vez em quando, ou lutar com eles todos os dias para que não lhe chamassem o benjamim da professora. Quando regressava à cabana depois de dias de paródia nos bosques ou no rio, passava o dobro do tempo a estudar os livros que Miss Deale nos autorizara a trazer para casa.
Quando o meu orgulho e a minha autoconfiança estavam feridos, lembrava-me de outras palavras que Miss Deale me dirigira, a mim e ao tom, para me consolar.
- Olha, tu e o tom são os meus melhores alunos - dissera ela, com o seu lindo rosto sorridente. - Os melhores que qualquer professor pode desejar.
No dia em que Miss Deale nos deu autorização para levarmos os livros para casa, ofereceu-nos o mundo e tudo o que ele continha.
Ofereceu-nos tesouros inimagináveis quando depositou nas nossas mãos os seus clássicos favoritos. Alice no País das Maravilhas, Alice do Outro Lado do Espelho, Moby Dick, História de Duas Cidades e três romances de Jane Austen, todos para mim. Nos dias seguintes, o tom fez a sua própria escolha, livros para rapazes, a colecção dos Hardy Boys, em sete volumes, e quando eu começara a pensar que ele não escolhera senão livros para se divertir, ele pegou num grosso volume de Shakespeare, o que fez brilhar os olhos azuis de Miss Deale.
- Por acaso, não esperas vir a ser escritor um dia, pois não, tom? - perguntou ela.
- Ainda não sei o que quero ser - disse ele com o mais cuidadoso dos sotaques, nervoso como sempre quando estava na presença de uma pessoa tão culta e bonita como Miss Marianne Deale. - Às vezes, penso que hei-de ser piloto; depois, no dia seguinte, quero ser advogado para um dia vir a ser presidente.
- Presidente do nosso país ou de uma empresa?
Ele corou e olhou para os pés enormes que não parava de arrastar. Como eram feios os sapatos dele! Eram grandes de mais, velhos e gastos.
- Creio que presidente Casteel não soa bem, pois não?
- Pelo contrário - respondeu ela, muito séria. – Creio que soa bem. Tu decidiste o que queres ser e empregas o teu tempo nisso. Se trabalhares para alcançar o teu objectivo, e te compenetrares desde o princípio de que nada do que tem valor é fácil de conseguir, e continuares a lutar, sem dúvida que atingirás o teu objectivo, qualquer que ele seja.
Graças à generosidade de Miss Marianne De ale (soubemos mais tarde que ela fez um depósito em dinheiro para que nós pudéssemos trazer aqueles livros para casa), por meio dos livros tivemos oportunidade de ver ilustrações do mundo antigo, de fazermos viagens em conjunto ao Egipto e à índia. Através dos livros, vivemos em palácios e percorremos as ruelas estreitas de Londres. Ambos sentimos que, quando lá fôssemos, não nos sentiríamos estranhos num país estrangeiro porque já lá estivéramos.
Eu adorava romances históricos que reconstituíam o passado muito melhor do que os livros de histórias. Só quando li um romance sobre George Washington é que deixei de considerá-lo um presidente enfadonho e aborrecido... E pensar que em tempos ele fora jovem e belo e que as raparigas o achavam encantador e atraente.
Lemos livros de Victor Hugo, de Alexandre Dumas e sentimos um calafrio ao constatar que aquelas aventuras eram possíveis, mesmo que fossem horríveis. Lemos clássicos e lemos obras sem valor; lemos tudo, tudo aquilo que nos afastasse daquela maldita cabana nas montanhas. Talvez se fôssemos ao cinema, se tivéssemos o nosso próprio televisor, e outras formas de entretenimento, não nos habituássemos a gostar tanto daqueles livros que Miss Deale nos permitiu levar para casa. Ou talvez fosse apenas Miss Deale que, com a sua inteligência nos "autorizou", só a nós a levar para casa livros preciosos e caros que, segundo afirmou, outros não respeitariam tanto como nós.
E isso era mesmo verdade. Nós só líamos os livros depois de lavar as mãos.
Eu desconfiava que Miss Marianne Deale gostava bastante do nosso pai. Deus sabe porque não tinha melhor gosto. Segundo a avó, o "anjo" dele ensinara o papá a falar um inglês correcto e, com o seu bom aspecto natural, muitas aristocratas cediam aos encantos de Luke Casteel quando ele se empenhava em mostrar-se encantador.
Todos os domingos, o pai ia connosco à igreja, e sentava-se no meio da sua grande família, ao lado da Sarah. A pequena e graciosa Miss Deale sentava-se, impecável, do outro lado da nave lateral e não tirava os olhos do pai. Eu percebia que ela estava maravilhada com o bom aspecto do pai, mas decerto tinha em mente a sua falta de instrução.
Por tudo o que eu ouvira contar à avó, o pai abandonara os estudos antes de ter concluído o primeiro ano do liceu.
Os domingos passavam-se muito depressa quando não tínhamos o tipo de roupa de que precisávamos, e eu estava sempre a pensar que havia de ter um vestido novo e bonito antes de chegar o domingo seguinte; mas a roupa nova era difícil de arranjar porque a Sarah tinha sempre muito que fazer. E lá estávamos nós outra vez, na última fila, com os nossos melhores farrapos, que outros deitariam para o lixo. Levantávamo-nos e cantávamos com as famílias melhores e mais ricas de Winnerrow, e com todos os outros pacóvios dos montes, vestidos tão mal ou pior do que nós, que gostavam de vir à igreja.
É em Deus que temos de confiar, e é em Deus que temos de acreditar senão seremos uns tolos.
Naquele domingo, depois de terminado o serviço religioso, tentei manter asseada a "Nossa" Jane que lambia o gelado mesmo à saída da farmácia, não muito longe do local onde o pai estacionara o camião. Miss Deale comprara gelados para os cinco filhos da família Casteel. Estava a cerca de quinze metros de distância, de olhos postos na mãe e no pai, que discutiam sobre qualquer coisa, o que significava que o pai poderia bater-lhe a qualquer momento ou a Sarah poderia agredi-lo também. Nervosa, engoli em seco, desejando que Miss Deale mudasse de lugar, ou olhasse para outro lado, mas ela continuava a observar, a escutar, quase transfigurada.
Tive curiosidade em saber no que estaria ela a pensar, embora nunca o descobrisse.
Não se passava uma semana sem que ela escrevesse pelo menos um bilhete ao pai acerca de mim e do tom. Ele raramente estava em casa e, quando estava, não conseguia ler a sua caligrafia impecável e miudinha; mesmo que conseguisse, não responderia. Na semana anterior, ela escrevera o seguinte:
Caro senhor Casteel,
com certeza que se sente muito orgulhoso do tom e da Heaven, que são os meus dois melhores alunos. Gostaria muito que, quando fosse conveniente para si e para mim, nos encontrássemos para trocar impressões sobre a possibilidade de eles virem a ganhar bolsas de estudo.
Os meus cumprimentos,
Marianne Deale
No dia seguinte, ela perguntou-me:
- Não entregaste o bilhete ao teu pai, Heaven? com certeza que ele não seria mal-educado ao ponto de não responder. Ele é um homem tão atraente. Tu deves adorá-lo.
- Claro que o adoro - respondi com cinismo. - Podia esculpi-lo e transformá-lo numa bela peça de museu. - Punha-o numa gruta, com um cacete na mão, e uma mulher ruiva a seus pés. Sim, esse é o ambiente do pai, no Smithsonian.
Miss Deale semicerrou os seus olhos azul-celestes e fitou-me com um ar esquisito.
- Estou escandalizada, verdadeiramente escandalizada. Não gostas do teu pai, Heaven?
- Adoro-o, Miss Deale. A sério. Sobretudo quando ele vai a Shirleys Place.
- Heaven! Não devias dizer essas coisas. O que podes tu saber de uma casa de má reput... - Calou-se, embaraçada.
- Ele vai mesmo lá?
- Sempre que pode, segundo diz a mãe.
No domingo seguinte, Miss Deale não conseguiu olhar para o pai com admiração; a verdade é que nem olhou para ele uma só vez.
No entanto, apesar de o pai ter deixado de estar nas boas graças de Miss Deale, ela continuou a esperar por nós ao pé do quiosque, enquanto a mãe e o pai tagarelavam com os seus amigos da montanha. A "Nossa" Jane correu para a professora de braços abertos, atraída pela linda saia azul de Miss Deale.
- Cá estou eu! - gritou ela, deliciada. - Pronta para comer o gelado!
- Isso não se diz, "Nossa" Jane - corrigi eu imediatamente. - Devias esperar e deixar que fosse Miss Deale a oferecer-te o gelado.
A "Nossa" Jane fez beicinho, tal como a Fanny, ambas com os olhos muito abertos e sôfregos fixos na professora.
- Não faz mal, Heaven - disse Miss Deale, a sorrir.
- Porque julgas que eu vim cá? Eu também gosto de gelados e detesto comê-los sozinha... Venham daí e digam-me que sabores é que querem esta semana.
Era fácil perceber que Miss Deale tinha pena de nós e queria dar-nos mimos, pelo menos ao domingo. De certo modo não era justo, nem para ela nem para nós, porque nós precisávamos muito de mimos mas também tínhamos o nosso amor-próprio. Cada vez mais, porém, o amor-próprio era relegado para segundo plano quando se tratava de escolher entre o chocolate, a baunilha ou o morango. Deus sabe onde aquilo nos teria levado se houvesse mais sabores.
O tom respondeu prontamente que queria baunilha; eu escolhi chocolate; mas a Fanny quis morango, chocolate e baunilha, e o Keith quis o mesmo da "Nossa" Jane, e a "Nossa" Jane não conseguiu escolher. Olhou para o homem que estava do outro lado do reservatório de soda, lançou um olhar ávido aos grandes recipientes de doces, olhou para um rapaz e uma rapariga que estavam sentados a saborear um gelado com soda e hesitou.
- Olha para ela - segredou a Fanny. - Não consegue decidir porque quer todos. Miss Deale, não lhos dê todos... A menos que nos dê também a nós.
- Bem, é claro que darei à "Nossa" Jane o que ela quiser, os três sabores se ela conseguir comer um cone triplo, e um gelado de chocolate para mais tarde, e um saco de gelados para vocês todos levarem para casa. Querem mais alguma coisa?
A Fanny ficou de boca aberta, como se se dispusesse a enumerar tudo o que nós queríamos e precisávamos. Eu apressei-me a intervir:
- Já está a fazer demasiado, Miss Deale. Ofereça à "Nossa" Jane um pequeno cone de baunilha, que aliás se vai derreter todo antes de ela o comer, e um de chocolate que ela poderá partilhar com o Keith. Isso é mais do que o suficiente. Em casa temos tudo o que precisamos.
Que cara tão feia que a Fanny fez nas costas de Miss Deale. Gemeu, lamentou-se e fez uma birra terrível até que o tom a mandou calar e lhe tapou a boca com a mão.
- Talvez um dia destes vocês vão almoçar comigo - declarou Miss Deale com naturalidade, após um curto silêncio durante o qual observámos a "Nossa" Jane e o Keith a comer os gelados com tal êxtase que até dava vontade de chorar. Não era para admirar que eles gostassem tanto dos domingos; os domingos proporcionavam-lhes os únicos mimos que eles tinham conhecido até essa altura.
Estávamos quase a acabar os nossos cones quando a mãe e o pai apareceram à porta do quiosque.
- Venham - disse o pai. - Agora vamos para casa... A menos que vocês queiram ir a pé.
Em seguida, deitou uma olhadela a Miss Deale, que estava a comprar à pressa as guloseimas que a "Nossa" Jane e a Fanny escolhiam com todo o cuidado, apontando para aqui e para ali. Ele avançou para nós, com um fato creme que, segundo a avó, fora a minha mãe que lhe comprara para a lua-de-mel de duas semanas, em Atlanta. Se eu não soubesse, julgaria que o pai era um cavalheiro elegante e culto, a avaliar pelo ar que lhe dava aquele fato.
- A senhora deve ser a professora de quem os meus filhos estão sempre a falar - disse-lhe ele, estendendo a mão.
Ela afastou-se, como se todas as minhas informações sobre as visitas dele ao Shirleys Place tivessem destruído a sua admiração pelo pai.
- O seu filho e a sua filha mais velhos são os meus melhores alunos - disse ela com firmeza -, como o senhor deve saber, pois tenho-lhe escrito muitas vezes acerca deles. Não fez referência à Fanny, ao Keith ou à "Nossa" Jane, porque eles não estavam na sua aula. - Espero que o senhor se sinta orgulhoso da Heaven e do tom.
O pai ficou totalmente abismado quando olhou para o tom e depois para mim. Há dois anos inteiros que Miss Deale lhe enviava bilhetes a falar-lhe dos nossos bons resultados. A escola de Winnerrow estava tão bem impressionada com aquilo que Miss Deale fazia pelas crianças necessitadas das montanhas (às vezes consideradas meio patetas) que a autorizara a acompanhar-nos ao longo das sucessivas classes.
- Isso é muito agradável de ouvir numa bela tarde de domingo - disse o pai, tentando olhá-la nos olhos. Ela recusou-se a encará-lo, como se tivesse receio de não conseguir desviar o olhar. - Eu sempre quis continuar a estudar, mas nunca tive oportunidade - disse o pai, para se enaltecer.
- Pai - disse eu, bem alto e num tom cortante -, nós resolvemos ir a pé para casa... Portanto, pode ir com a mãe, e não se preocupe connosco.
- Eu não quero ir a pé para casa! Quero ir de carro! exclamou a "Nossa" Jane.
A Sarah, que estava à porta do estabelecimento, semicerrou os olhos, desconfiada. O pai fez uma ligeira vénia a Miss Deale.
- Foi um prazer conhecê-la, Miss Deale - afirmou ele. Inclinou-se para pegar na "Nossa" Jane com um braço e no Keith com o outro e saiu, dando a toda a gente que estava no estabelecimento a impressão de que era o único Casteel culto e encantador que existia no mundo. Todos ficaram de boca aberta, como se acabassem de presenciar um milagre.
E mais uma vez, apesar do que eu lhe dissera para a pôr de sobreaviso, um lampejo de admiração refulgiu nos ingénuos olhos azul-celestes da minha professora.
Estava um dia particularmente agradável, com os pássaros a cantar por cima de nós e as folhas de Outono a cair serenamente. Tal como o Keith, eu deixava-me arrebatar pela Natureza. Mal ouvi o que o tom estava a dizer até que reparei nos olhos escuros da Fanny, esbugalhados de admiração.
- NÃO! Estás enganado. Não era para a Heaven que aquele belo rapaz desconhecido estava a olhar! Era para mim!
- Que rapaz? - perguntei.
- O filho do novo dono do drugstore - explicou o tom.
- Não reparaste no nome de Stonewall? Ele estava na loja quando Miss Deale nos comprou os cones, e palavra de honra, estava mesmo apanhado por ti, Heavenly, de certeza.
- Mentiroso! - berrou a Fanny. - Ninguém olha para a Heaven quando eu estou presente, nunca!
tom e eu ignorámos a Fanny e. os seus gritos.
- Ouvi dizer que ele começa amanhã a frequentar a nossa escola - continuou o tom. - Senti-me esquisito quando ele olhou para ti - disse ele, embaraçado. - De certeza que vou detestar o dia em que tu te casares e nós nos separarmos.
- Nós estaremos sempre juntos - apressei-me eu a responder. - Não há nenhum rapaz que me convença de que eu preciso mais dele do que de instrução.
No entanto, naquela noite, quando estava deitada, enrolada na esteira, ao lado do Velho Fumegante, fiquei de olhos abertos no escuro até conseguir imaginar que estava a ver um belo vestido azul, novinho, que nunca ninguém usara, pendurado na parede. Estouvada, como só os jovens sabem ser, pensei que, se eu usasse vestidos bonitos, isso de algum modo mudaria o mundo à minha volta. Acordei, com a certeza de que desejava um vestido novo mais do que outra coisa qualquer... E também perguntei a mim própria se aquele rapaz novo na terra gostaria de mim mesmo que eu não tivesse nada para estrear.
LOGAN STONEWALL
Na manhã de segunda-feira, mal o tom, a Fanny, a "Nossa" Jane, o Keith e eu pisámos o pátio da escola e já o tom apontava para o rapaz novo na terra, o tal que ele vira na igreja a olhar para mim. Quando me voltei para olhar para o campo da bola onde os rapazes já estavam a jogar, sustive a respiração. Ele sobressaía de todos os outros, esse novo rapaz mais bem vestido do que os rapazes do vale. Atrás dele, o sol matinal formava uma espécie de halo faiscante por cima dos seus cabelos escuros, de tal modo que não lhe consegui ver a cara que estava na sombra, mas percebi pelo seu porte, alto e direito, sem um ar desleixado como muitos dos rapazes das montanhas que tinham vergonha da sua estatura, que gostava dele desde o primeiro momento. Era um disparate, é claro, gostar de um desconhecido só porque ele tinha um certo tipo de confiança em si próprio que não era arrogância, mas apenas uma força e uma pose evidentes. Dei uma olhadela ao tom, e percebi porque é que gostara logo de um rapaz que eu nunca vira. E Logan e o tom possuíam o mesmo tipo de graciosidade natural e de à-vontade que emanavam daqueles que sabem quem são e o que querem. Olhei de novo para o tom. Como é que ele podia caminhar com tal orgulho ao meu lado se era um Casteel?
Desejei ardentemente ter o seu porte, a sua confiança, a sua capacidade de aceitação, embora isso fosse possível se eu tivesse o amor do meu pai, como ele tinha.
- Ele está outra vez a olhar para ti - segredou o tom, dando-me uma cotovelada com força.
Isto fez com que a Fanny gritasse, com a sua voz estridente:
- Ele NÃO está a olhar para a Heaven! Ele está a olhar para MIM
Mais uma vez a Fanny me deixou numa situação embaraçosa. Porém, se o rapaz ouviu, não deu sinais disso. Lembrava uma árvore de Natal, com umas calças de flanela cinzenta bem vincadas e uma camisola verde-forte sobre uma camisa branca e uma gravata às riscas cinzentas e verdes.
Calçava uns sapatos clássicos daqueles que se usam ao domingo, impecavelmente engraxados. Todos os rapazes do vale andavam de jeans, de camisolas de lã e de ténis. Nunca ninguém vinha para a escola vestido como o Logan Stonewall.
Teria reparado que nós estávamos a olhar para ele? Devia ter reparado porque, de repente, encaminhou-se para nós, o que nos deixou alarmados! O que diria eu a uma pessoa vestida daquela maneira? Tentei reduzir-me à minha insignificância. Cada passo dele me enchia mais de pânico. Ainda não estava preparada para conhecer uma pessoa que usasse calças de flanela cinzenta (uma coisa que eu nem saberia o que era se Miss Deale não tivesse aparecido uma vez na escola com um fato cinzento do mesmo tecido; ela tentava sempre instruir-me acerca dos tecidos, da roupa e de coisas no género). Tentei afastar-me com o Keith e a "Nossa" Jane antes que ele se apercebesse do meu vestido velho e desbotado, com a bainha descosida, e dos meus sapatos gastos e quase sem sola, mas a "Nossa" Jane resistiu.
- Não me sinto bem. Quero ir para casa, Hev...lee - choramingou ela.
- Não podes ir para casa outra vez - disse eu em voz baixa. - Nunca acabarás a primeira classe se ficares sempre em casa, doente. Talvez eu te possa comprar a ti e ao Keith uma sanduíche esta tarde... E um copo de leite.
- De atum! - cantarolou o Keith, radiante, a pensar na metade de uma sanduíche de atum.
A "Nossa" Jane largou-me a mão e, com os seus passinhos lentos, entrou na sala de aula onde todos os alunos da primeira classe pareciam estar a divertir-se, excepto ela.
Estuguei o passo e fui atrás dos meus dois irmãos mais novos, mas não tão depressa que evitasse que o Logan Stonewall me apanhasse no átrio, mesmo à porta da sala de aula da primeira classe. O Logan era bem-parecido, como aquelas pessoas que eu vira nos livros e nas revistas, como alguém com anos e anos de instrução, que lhe dera uma coisa que nenhum de nós tinha nas montanhas: qualidade. O nariz era esguio e direito, o lábio inferior era muito mais cheio e mais recortado do que o superior, e até a dois metros de distância eu conseguia distinguir os seus olhos azul-escuros a sorrir-me com afecto. O maxilar era quadrado e forte, uma covinha na face esquerda aparecia e desaparecia quando ele sorria.
O seu porte confiante fez-me sentir acanhada, com receio de fazer ou de dizer qualquer coisa errada, e depois ele voltava-se de certeza para a Fanny, e se ela fizesse ou dissesse qualquer coisa errada, isso não tinha importância. Os rapazes embeiçavam-se sempre pela Fanny.
- Ouve lá, calmeirão. És o rapaz mais giro que eu já vi. Foi este o cumprimento da Fanny, que deu um salto para a frente e sorriu mesmo ao pé da cara dele. A Fanny nunca se incomodara a acompanhar a "Nossa" Jane ou o Keith até às respectivas salas de aula.
- É a minha irmã Fanny - explicou tom.
- Olá, Fanny...
No entanto, o Logan Stonewall não olhou mais para a Fanny. Esperou que o tom me apresentasse.
- E esta é a minha irmã Heaven Leigh. - Havia um tal orgulho na voz do tom, como se ele não tivesse reparado no meu vestido feio e deformado, ou pensasse que não tinha motivos para se envergonhar dos meus sapatos. - E aquela rapariguinha que está a espreitar à porta da sala de aula da primeira classe é a minha irmã mais nova, que nós tratamos por "Nossa" Jane, e do outro lado do corredor, aquele rapaz alourado que está a sorrir para nós é o meu irmão Keith. Vai sentar-te, Keith; e tu também, "Nossa" Jane.
Como é que o tom era capaz de se comportar com tanta naturalidade diante de um rapaz da cidade tão bem vestido como o Logan Stonewall? Eu estava afogueada com a excitação, enquanto aqueles olhos cor de safira, sorridentes, me observavam como nunca ninguém me observara antes.
- Mas que nome tão bonito - disse o Logan, cruzando o seu olhar com o meu. - Fica-lhe a matar. Creio que nunca vi uns olhos azuis tão parecidos com a cor do céu.
- Eu tenho olhos pretos - gritou a Fanny, pondo-se à minha frente, para o impedir de olhar para mim. - Qualquer pessoa pode ter olhos azuis... Como os da Heaven. Eu gosto mais do azul dos teus.
- Miss Deale diz que os olhos da Heaven são da cor das centáureas - esclareceu o tom, com visível orgulho. - E não há outra rapariga nas redondezas com os olhos daquele mesmo tom de azul a que eu chamo azul-celeste.
- Acredito... - murmurou o Logan Stonewall, sempre a olhar para mim.
Eu tinha apenas treze anos; ele não podia ter mais de quinze, dezasseis no máximo, mas os nossos olhos pareciam agarrarem-se uns aos outros e tocar um gongo que ecoaria para o resto das nossas vidas.
Era apenas a campainha da escola que estava a tocar.
Safei-me de ter de dizer alguma coisa por causa do turbilhão de crianças que entrou a correr nas salas de aula e se sentou antes que o professor entrasse. tom estava a rir-se quando o Logan se sentou na carteira de trás.
- Heavenly, nunca te vi mudares tantas vezes de cor. O Logan Stonewall é apenas mais um rapaz. Mais bem vestido do que a maioria, e mais bem-parecido, mas é apenas mais um rapaz.
Ele não sentia o que eu estava a sentir, mas semicerrou os olhos e fitou-me com um ar esquisito, até se voltar e baixar a cabeça, tal como eu baixei a minha.
Miss Deale entrou, e antes que eu pudesse pensar no que havia de dizer ao Logan quando voltasse a vê-lo, chegou a hora do almoço. Tinha de cumprir a minha promessa em relação à sanduíche e ao leite. Fiquei sentada na carteira enquanto os outros saíram para ir almoçar. Miss Deale levantou a cabeça.
- - Heaven, queres falar comigo?
Apeteceu-me pedir-lhe uma sanduíche para dar ao Keith e à "Nossa" Jane, mas não consegui. De pé, sorri e saí a correr, a olhar para o chão do corredor, rezando para encontrar um copo de... E foi então que vi os sapatos cinzentos do Logan.
- Estava à espera que saísses com o tom. - Parecia ansioso e os seus olhos continuavam a sorrir. - Queres almoçar comigo?
- Eu nunca almoço.
A minha resposta fê-lo franzir o sobrolho.
- Toda a gente almoça. Portanto, vem daí, e vamos comer, hamburgers com batatas fritas e beber uns batidos.
Aquilo quereria dizer que ele ia pagar o meu almoço e o seu? E meu orgulho veio ao de cima.
- Eu tenho de tomar conta da "Nossa" Jane e do Keith durante a hora de almoço.
- Está bem, eles também estão convidados - respondeu ele com um ar despreocupado -, e também posso incluir o tom e a Fanny, caso estejas a pensar neles.
- Nós podemos pagar os nossos almoços.
Por instantes, ele ficou sem saber o que havia de dizer. Deitou-me outro olhar rápido e depois encolheu os ombros.
- Está bem, se queres que seja assim.
Ora bolas... Eu não queria que fosse assim! Contudo, o meu orgulho era tão grande como qualquer das montanhas dos Willies.
Ele caminhava a meu lado na direcção das salas de aula das classes mais atrasadas. Pensei que ele a todo o momento podia voltar atrás com o seu convite. A "Nossa" Jane e o Keith estavam à espera à porta da sala de aula da primeira classe, e ambos pareciam muito aflitos. A "Nossa" Jane desatou a correr para mim, quase a soluçar.
- Agora podemos ir comer, Hev...lee? Dói-me a barriga. Nessa mesma altura, o Keith começou a falar na sanduíche de atum que eu lhe prometera.
- Miss Deale mandou-nos outra? - perguntou ele, com a sua carinha radiante e ansiosa. - Hoje é segunda-feira? Ela mandou-nos leite?
Eu tentei sorrir para o Logan, que reparou em tudo aquilo e olhou para a "Nossa" Jane e depois para o Keith com um ar pensativo. Por fim, voltou-se para mim.
- Se preferes sanduíches de atum - disse -, talvez a cafetaria ainda tenha algumas, se nos despacharmos.
Eu não pude fazer nada no momento em que o Keith e a "Nossa" Jane desataram a correr para a cafetaria como se fossem raposas atraídas pelo cheiro das galinhas.
- Heaven - disse o Logan com veemência -, eu nunca permiti que nenhuma rapariga pagasse o almoço quando eu a convido. Peço que me deixes ser eu a pagar.
Assim que entrámos na cafetaria comecei logo a reparar nos segredinhos e nas especulações. O que andaria o Logan a fazer com os piolhosos dos Casteel? O tom estava lá, como se o Logan já o tivesse convidado, e isso fez-me sentir muito melhor. Então consegui sorrir e ajudei a "Nossa" Jane a sentar-se a uma mesa comprida. O Keith chegou-se muito a ela e olhou à sua volta, intimidado.
- Então toda a gente quer sanduíches de atum e leite? perguntou o Logan, que pediu ao tom para ir com ele e ajudá-lo a trazer os nossos almoços.
A "Nossa" Jane e o Keith mantiveram as suas preferências e eu concordei em tentar o hamburger e a cola. Olhei à volta quando o tom e o Logan se afastaram, tentando descobrir a Fanny. Ela não estava na cafetaria. Isso era outro motivo de preocupação para mim. A Fanny tinha meios muito próprios de ganhar uma refeição.
À nossa volta, as pessoas continuavam a falar em voz baixa, sem se importarem se eu ouvia ou não.
- O que está ele a fazer ao pé dela! Ela não passa de uma pacóvia das montanhas. E a família dele deve ser rica.
O Logan Stonewall atraiu muito as atenções quando voltou com o tom, ambos a sorrir e contentes por trazerem sanduíches de atum, hamburgers, batatas fritas e batidos, e leite, também. A "Nossa" Jane e o Keith ficaram desorientados com toda aquela comida e queriam beber do meu batido, provar o meu hamburger, experimentar as batatas fritas; por isso, eu acabei por beber o leite e a "Nossa" Jane bebeu a minha cola, fechando os olhos, deliciada.
- Eu vou buscar outra - ofereceu-se o Logan; mas eu não deixei que ele o fizesse. Já fizera mais do que o suficiente.
Descobri que ele tinha mesmo quinze anos. Sorriu, satisfeito, quando eu lhe disse em voz baixa quantos anos tinha. Ele quis saber qual era o dia do meu aniversário, como se isso tivesse importância, e parecia que tinha; a mãe dele acreditava em astrologia. Disse-me que conseguiria ficar na sala de estudo onde eu ia sentar-me todos os dias a fazer o trabalho de casa. Eu tentava sempre acabá-lo lá, para poder levar romances para casa em vez de livros de estudo.
Pela primeira vez na minha vida, tinha um namorado a sério, um que não achava que eu era fácil só porque vivia nas montanhas. O Logan não troçava da minha roupa nem das minhas origens. No entanto, desde o primeiro dia que o Logan fez inimigos na escola, porque era diferente, demasiado bem-parecido, com roupa muito "citadina". O seu porte era demasiado incómodo, a sua família era demasiado rica, o seu pai era demasiado culto, a sua mãe era demasiado altiva. Os outros rapazes achavam que ele era um maricas. Até naquele primeiro dia o tom disse que o Logan teria de provar aquilo de que era capaz. Os outros rapazes tentaram todas as partidas disparatadas, embora não fossem assim tão inofensivas. Puseram-lhe tachas nos sapatos de ginástica; ataram-lhe os atacadores dos sapatos para ele chegar atrasado à aula depois da ginástica; puseram-lhe cola nos sapatos, e fugiram quando ele se zangou e ameaçou dar uma tareia no culpado.
Antes da primeira semana chegar ao fim, o Logan passou duas classes à frente da minha e da do tom. Nessa altura, também passou a usar jeans e camisas de xadrez, mas jeans de marcas mais caras e camisas que vinham de um sítio chamado Beans, na Nova Inglaterra. Mas destacava-se dos outros apesar da roupa. Era muito bem-falante e delicado enquanto que os outros eram grosseiros, rudes e falavam alto. Recusava-se a comportar-se como os outros rapazes, recusava-se a utilizar a sua linguagem ordinária.
Na sexta-feira, não apareci na sala de estudo, para espanto do tom. A caminho de casa, à luz clara do Sol de Setembro, ele não parou de me fazer perguntas. Como ainda estava calor, atirou-se ao rio, vestido e tudo, embora tivesse descalçado os velhos ténis. Eu estendi-me na margem arrelvada com a "Nossa" Jane enroscada a meu lado e o Keith olhava para um esquilo que estava empoleirado no ramo de uma árvore. Sem pensar, disse a tom enquanto ele chapinhava na água:
- Quem me dera ter nascido com os cabelos louro-platinados.
Em seguida, mordi a língua quando vi a maneira como o tom se voltara para olhar para mim. Abanou a cabeça para sacudir a água, tal como faria um cão. Felizmente, a Fanny ficara para trás, muito para trás, quando nós íamos para casa, e mesmo do sítio onde estávamos, ouvíamos os seus risinhos que atravessavam montes e bosques.
- Heavenly, já sabes? - perguntou o tom em voz baixa, de uma forma estranha e hesitante.
- Já sei o quê?
- Ora, porque é que queres ter o cabelo louro-platinado se o que tens é tão bonito?
- É só um desejo pateta, acho eu.
- Não, espera aí, Heavenly. Se tu e eu vamos continuar amigos, e somos mais do que apenas irmão e irmã, tu tens de ser franca. Sabes ou não sabes quem é que tinha os cabelos louro-platinados?
- E tu, sabes? - perguntei, tentando esquivar-me.
- Claro que sei.
Ele saiu da água e encaminhámo-nos para casa.
- Sempre soube - disse ele com doçura. - Desde a primeira vez que fui à escola. Os rapazes, na sala de convívio, falaram-me da primeira mulher do pai, que veio de Boston e tinha os cabelos louro-platinados e disseram-me que toda a gente sabia que ela não duraria muito a viver nas montanhas. Eu só esperava que tu nunca descobrisses, e deixasses de pensar que eu era uma maravilha. Porque eu não era essa maravilha. Não me corre nas veias o sangue de Boston, não tenho genes cultos e civilizados, como tu. Tenho cem por cento dos genes estúpidos dos pacóvios das montanhas, apesar do que tu e a Miss Deale julgam.
Custou-me ouvi-lo dizer aquelas coisas.
- Não fales dessa maneira, tom Luke Casteel! Ouviste a Miss Deale falar desse assunto no outro dia. Muitas vezes, os pais mais brilhantes do mundo geram idiotas... E os idiotas podem gerar génios! Ela não disse que competia à Natureza equilibrar as coisas? Ela não disse que às vezes os pais são espertos de mais, que parece gastarem toda a massa cinzenta com eles próprios sem deixarem nada para os filhos? Lembras-te que ela afirmou que nada na Natureza é previsível? A única razão pela qual não tens tão boas notas como eu é porque jogas de mais à bola. Tens de acreditar naquilo que a Miss Deale disse acerca de nós sermos únicos, nascidos com um objectivo que só nós podemos realizar. Thomas Luke, nunca te esqueças disso.
- E tu não te esqueças também - disse ele, abespinhado, voltando-se para mim e deitando-me um olhar duro. - E deixa-te de chorares de noite por não seres diferente do que és. Eu gosto de ti tal como és.
Os seus olhos verdes eram ternos e luminosos na penumbra dos pinhais.
- Tu és a minha linda irmã cigana, dez vezes mais importante para mim do que a minha irmã Fanny, que não quer saber de ninguém a não ser dela própria. Ela não gosta de mim como tu, e eu não posso gostar dela como gosto de ti. Tu és a única irmã que eu tenho que consegue viajar em espírito numa estrela de um outro mundo.
Ele tinha um ar tão triste que me magoou.
- tom, eu choro se dizes mais alguma coisa! Dói-me pensar que um dia tu possas partir e eu nunca mais torne a ver-te.
Ele abanou a cabeça, despenteando o cabelo ruivo.
- Eu nunca iria para lado nenhum contra a tua vontade, Heavenly. Tu e eu estaremos juntos, durante toda a nossa vida. Sabes, é como eles dizem nos livros, para o bem e para o mal, na saúde e na doença... Na escuridão da noite.
As lágrimas vieram-me aos olhos quando lhe peguei na mão e a apertei com força.
- Vamos prometer que nunca, assim Deus nos ajude, nunca seguiremos caminhos diferentes, nem nos zangaremos um com o outro, nem nutriremos sentimentos diferentes dos que temos agora um pelo outro.
Então ele abraçou-me, segurando-me como se eu fosse feita de lã de vidro e pudesse quebrar-me a todo o momento. Tinha a voz entrecortada quando disse:
- Um dia, hás-de casar-te. Eu sei que vais dizer que não, mas o Logan Stonewall já anda a olhar para ti com olhos de carneiro mal morto.
- Como pode ele gostar de mim se nem me conhece? O seu rosto inclinou-se sobre os meus cabelos.
- Basta que ele olhe para a tua cara, para os teus olhos, mais nada. Tudo o que és está escrito na tua cara, tudo brilha nos teus olhos.
Eu afastei-me e enxuguei as lágrimas.
- O pai nunca vê o que tu vês, pois não?
- Porque permites que ele te magoe assim tanto?
- Oh, tom...! - choraminguei, caindo nos seus braços e desatando a chorar a sério. - Como hei-de eu ter confiança em mim própria se o meu pai nem sequer suporta olhar para mim? Deve haver qualquer coisa de maligno que ele vê em mim e que o leva a odiar-me.
Ele acariciou-me os cabelos, as costas, e havia lágrimas nos seus olhos quando olhei para ele, como se a minha dor fosse também a dele.
- Um dia, o pai há-de descobrir que não te odeia, Heavenly. Eu sei que esse dia não vai demorar a chegar.
Eu afastei-me com um gesto brusco.
- Não chegará! Sabe-lo tão bem como eu. O pai julga que eu matei o seu anjo pelo facto de ter nascido, e nem daqui a um século me há-de perdoar! E se tu queres saber o que eu penso, eu acho que a minha mãe teve muita sorte em lhe escapar! Porque mais tarde ou mais cedo ele havia de ser tão mau para ela como é agora para a Sarah!
Ficámos ambos abalados por este acesso de franqueza. Ele puxou-me para si e tentou sorrir, mas não conseguiu disfarçar a tristeza.
- O pai não ama a mãe, Heavenly. Ele é infeliz com a mãe. De tudo o que eu tenho ouvido dizer, era a tua mãe que ele amava. Casou com a minha só porque ela estava grávida de mim, e por uma vez tentou fazer o que devia.
- Porque a avó o obrigou a fazer o que devia! - disparei eu com um grande azedume.
- Ninguém pode obrigar o pai a fazer o que ele não se dispõe a fazer, lembra-te disso.
- Bem sei - respondi, pensando que o pai se recusava a olhar para mim.
Era mais uma vez segunda-feira e estávamos todos na escola. Miss Deale expunha as alegrias proporcionadas pela leitura das peças e dos sonetos de Shakespeare, mas eu estava morta por chegar à sala de estudo.
- Heaven - disse Miss Deale, com os olhos azul-celestes fixos em mim. - Estás a ouvir ou a devanear?
- A ouvir!
- Qual era o poema de que eu estava a falar?
Para falar verdade, não me lembrava de uma só palavra que ela pronunciara durante os últimos trinta minutos, o que não era habitual em mim. Oh, tinha de deixar de pensar naquele palerma do Logan. No entanto, quando estava sentada na sala de estudo com o Logan à minha direita, tive a mais estranha das sensações no momento em que os nossos olhos se encontraram. O cabelo dele não era castanho nem preto mas uma mistura de ambos, com reflexos arruivados aos quais o sol dava um tom dourado. A verdade é que tive de forçar-me a não olhar para ele outra vez, pois sempre que o fazia ele estava a olhar para mim.
O Logan sorriu antes de dizer em voz baixa:
- Mas quem é que teve o engenho de te pôr o nome de Heaven? Nunca conheci ninguém com esse nome.
Eu tive de engolir duas vezes para conseguir responder como devia ser.
- A primeira mulher do meu pai é que me pôs este nome poucos minutos depois de eu nascer, e Leigh era o segundo nome dela. A avó disse que ela quis dar-me um nome espiritual e Heaven é o mais espiritual dos nomes.
- É o mais belo nome que eu conheço. Onde está a tua mãe agora?
- Morta num cemitério - respondi bruscamente, esquecendo-me de ser agradável e coquete, uma coisa da qual a Fanny nunca se esquecia. - Morreu pouco depois de eu nascer e, por isso ter acontecido, o meu pai não consegue perdoar-me por eu lhe ter tirado a vida.
- Não quero ouvir conversas nesta sala! - gritou Mr. Prakins. - Aquele que voltar a falar será castigado com quinze horas de detenção depois da escola!
O Logan mostrou-se apiedado e compreensivo. E assim que Mr. Prakins saiu da sala, ele voltou a dizer em voz baixa:
- Lamento que isso tenha acontecido, mas tu não disseste bem. A tua mãe não está morta num cemitério... Mudou-se para o infinito, para um sítio melhor, para o céu.
- Tenho pensado que, se existe um céu ou um inferno, é aqui mesmo na Terra.
- Que idade tens tu? Cento e vinte anos?
- Bem sabes que tenho treze! - ripostei, irritada. - Só que hoje sinto que tenho duzentos e cinquenta.
- Porquê?
- Porque é melhor do que ter treze, mais nada!
O Logan pigarreou, deitou uma olhadela a Mr. Prakins, que nos vigiava através de uma parede de vidro e arriscou-se a segredar:
- Não te importas que te vá levar hoje a casa? Nunca falei com ninguém que tivesse duzentos e cinquenta anos, e tu despertaste-me a curiosidade. Tenho a certeza de que gostaria de ouvir o que tens para dizer.
Eu fiz um sinal afirmativo, e senti-me um pouco enjoada e exuberante. Agora metera-me numa situação em que poderia desiludi-lo apenas com respostas vulgares. O que sabia eu de bom senso, de maturidade, ou de outra coisa qualquer?
Mesmo assim, ele apareceu ao canto do pátio, onde esperavam todos os rapazes que iam levar a casa as raparigas das montanhas. E lá estava a Fanny.
Andava por ali a girar, com os cabelos caídos na cara, e depois atirou-os para trás, andando à roda com força para que eles esvoaçassem em círculo; fez um sorriso rasgado quando avistou o Logan, como se estivesse convencida de que ele vinha ter com ela. A pouca distância da Fanny estavam o tom e o Keith. tom mostrou-se admirado ao ver que o Logan estava à espera junto do nosso caminho. Este era apenas um carreiro através dos arbustos, que ia dar ao bosque, e por fim à nossa cabana solitária perto do céu. Assim que a Fanny viu que eu e o Logan tomávamos aquela direcção deu um grito tão forte e embaraçoso que me apeteceu cair ali morta.
- Heaven, o que andas tu a fazer com esse rapaz? Sabes bem que não gostas de rapazes! E não disseste já um milhão de vezes que nunca passarás de uma mestra-escola velha e ressequida?
Eu tentei ignorar a Fanny, embora tivesse corado como um pimentão. Afinal, que lealdade fraterna demonstrava ela? Eu conhecia-a o suficiente para não esperar que ela tivesse tacto. Tentei sorrir para o Logan. Era sempre preferível ignorar a Fanny, se fosse possível.
O Logan olhou para ela com um ar de desaprovação, assim como o tom.
- Fanny, por favor não digas mais nada - disse eu, pouco à vontade. - Vai a correr para casa e vai tomar banho para variar.
- Eu nunca fui para casa só com um irmão - disse a Fanny dirigindo-se ao Logan, com um sorriso trocista, antes de lhe fazer o mais radioso dos sorrisos. - Os rapazes não gostam da Heaven, gostam sempre é de mim. Tu também hás-de gostar de mim. Queres dar-me a mão?
O Logan olhou para mim e para o tom, e depois disse à Fanny, muito sério:
- Obrigado, mas agora tenciono levar a Heaven a casa e ouvir tudo o que ela tem para me dizer.
- Havias de ouvir-me cantar!
- Noutra altura, Fanny, ouvir-te-ei cantar.
- A "Nossa" Jane canta... - disse o Keith a medo.
- Claro que canta! - exclamou o tom, pegando na Fanny por um braço e levando-a com ele. - Anda, Keith, que a "Nossa" Jane está em casa à tua espera.
Foi tudo o que o Keith quis ouvir para ir a correr atrás do tom, pois a "Nossa" Jane faltara à escola naquele dia devido a outra dor de barriga e a um acesso de febre.
A Fanny libertou-se do tom e voltou atrás a correr, para vociferar e gritar, antes de desatar a língua:
- És uma egoísta, Heaven Leigh Casteel! Má, magrizela e feia, também! Detesto o teu cabelo! Detesto o teu nome estúpido! Detesto tudo o que é teu! A sério! Vais ver se eu não digo ao pai o que tu andas a fazer! O pai não vai gostar que andes a aceitar obras de caridade de um rapaz da cidade, de um estranho que tem pena de ti... A comeres hamburguers e coisas dessas, e a ensinares a "Nossa" Jane e o Keith a pedir!
Oh, a Fanny estava no seu pior, invejosa, desdenhosa e pronta para cumprir as suas ameaças, e o pai ia castigar-me!
- Fanny! - exclamou o tom, correndo atrás dela para a apanhar. - Podes ficar com o meu novo estojo de aguarelas se não fores contar que o Logan nos levou a todos a almoçar...
No mesmo instante, a Fanny sorriu.
- Está bem! Eu quero aquele livro de colorir que Miss Deale te ofereceu, também! Não sei porque é que ela não me oferece nada!
- Não sabes porquê? - inquiriu o tom, com um riso escarninho, dando-lhe o que ela queria, apesar de eu saber que ele desejava tanto ter aquele estojo de aguarelas e aquele livro de colorir que até era doloroso pensar nisso. Ele nunca tivera uma caixa de aguarelas novas nem um livro de colorir com o Robin dos Bosques. Naquele ano, o Robin dos Bosques era o seu herói preferido, que ele vira num livro. - Quando aprenderes a portar-te bem na aula, talvez Miss Deale seja generosa contigo, para variar.
Mais uma vez me senti a morrer de vergonha.
A chorar, a Fanny atirou-se para o chão do carreiro da montanha que serpenteava por entre árvores tão altas que parecia tocarem no céu. Bateu com os minúsculos punhos cerrados na relva e deu um grito porque acertou numa pedra escondida e começou a sangrar. Chupando o sangue, sentou-se e fitou o tom com os olhos muito abertos e suplicantes.
- Não digas nada ao pai, por favor, por favor! O tom prometeu.
Eu prometi. Embora ainda me apetecesse desaparecer e não ver os olhos esbugalhados do Logan e absorver tudo aquilo, como se nunca tivesse presenciado uma cena tão estúpida e tacanha. Tentei evitar o seu olhar, até que ele sorriu e eu percebi que ele compreendera tudo.
- Não há dúvida de que tens uma família que talvez te faça envelhecer por dentro... Por fora, pareces mais nova do que a Primavera.
- Foste roubar essas palavras a uma canção! - gritou a Fanny. - Não tens nada que cortejar uma rapariga com palavras de uma canção!
- Oh, cala a boca! - ordenou o tom, pegando-lhe de novo por um braço e desatando a correr, de tal maneira que ela foi obrigada a correr ao lado dele, caso contrário ficaria sem o braço. Isso deu-me oportunidade de ficar a sós com o Logan.
O Keith retomava outra vez a cauda do nosso pequeno cortejo, embora tivesse parado a olhar para um pisco de peito ruivo, embasbacado, e não fosse provável que se mexesse durante dez minutos... A menos que o pássaro levantasse voo.
- A tua irmã é mesmo diferente - disse o Logan, quando finalmente ficámos sozinhos no carreiro.
O Keith vinha muito atrás de nós, muito calado. Eu guardei os meus pensamentos para mim. Os rapazes do vale julgavam que todas as raparigas das montanhas eram fáceis para qualquer rapaz que quisesse ter uma experiência sexual. Nova como era, a Fanny adoptara o espírito dos montes e a sexualidade fácil, que despertava muito mais cedo do que nos lugares situados a baixa altitude. Talvez isso se devesse a todas as cópulas a que assistíamos nos nossos quintais e nas nossas cabanas de duas divisões. Nas nossas montanhas, a educação sexual não era necessária; o sexo era-nos atirado à cara, a partir do momento em que sabíamos distinguir um homem de uma mulher.
O Logan pigarreou para me lembrar que estava ali.
- Estou pronto a ouvir o que tens para me contar sobre todos os teus anos de sabedoria acumulada. Eu tomaria apontamentos, mas é difícil escrever e andar ao mesmo tempo. Mas, da próxima vez, posso trazer um gravador.
- Estás a fazer troça de mim - lamentei-me eu, antes de me justificar. - Vivemos com os nossos avós. O avô nunca diz nada que não seja absolutamente necessário, e é raro encontrar as palavras adequadas. A minha avó anda a vaguear e sempre a falar de como a vida era boa noutros tempos e de como as coisas estão más agora. A minha madrasta resmunga porque tem muito trabalho... E às vezes quando vou para casa, para aquela cabana, e encaro todos os problemas, sinto que tenho não duzentos e cinquenta anos mas sim mil anos de idade... Embora não tenha a sabedoria correspondente.
- Aí está uma rapariga que sabe falar com sinceridade disse ele com um sorriso. - Isso agrada-me. Eu compreendo. Sou uma criança e também tenho sido criado com tios, tias e avós. Por isso, compreendo. Mas tu levas-me a palma com dois irmãos e duas irmãs.
- E isso é uma vantagem ou uma desvantagem?
- O que quiseres que seja. Do meu ponto de vista, Heaven Leigh, é uma vantagem ter uma família grande porque nunca estamos sós. Há muitas alturas em que estou só, e em que desejaria ter irmãos, irmãs. Acho o tom formidável, é muito engraçado e um bom desportista; e o Keith e a "Nossa" Jane são umas crianças adoráveis.
- E a Fanny, o que achas dela?
Ele corou e mostrou-se embaraçado, antes de responder lentamente, à cautela:
- Creio que ela vai crescer para se transformar numa beleza exótica.
- É tudo o que pensas?
Ele devia saber como era a Fanny e estar ao corrente dos seus modos promíscuos com os rapazes no vestiário.
- Não, não é tudo o que eu penso. Penso que, de todas as raparigas que conheço e que espero vir a conhecer, a que se chama Heaven Leigh é a única com potencialidades para ser mais bela do que qualquer outra. Creio que essa Heaven é excepcionalmente honesta e sincera... Por isso, se não te importares, e espero que não, gostaria de vir trazer-te a casa todos os dias, a partir de agora.
Senti-me tão feliz! Soltei uma gargalhada sonora, desatei a correr e voltei-me para trás, gritando:
- Logan, até amanhã. Obrigado por vires trazer-me a casa.
- Mas nós ainda não chegámos! - exclamou ele, apanhado de surpresa pela minha fuga repentina.
Eu não podia permitir que ele visse onde nós vivíamos nem como vivíamos. Se não, ele nunca mais quereria falar comigo. Desatei a correr.
- Noutro dia, num dia melhor, convido-te a entrar gritei, à beira de uma clareira salpicada de sol.
O Logan ficou do outro lado da pequena ponte que atravessava o nosso estreito riacho. Atrás dele havia um campo de erva amarelada, e o sol impedia-me de lhe ver o cabelo e os olhos. Mesmo que eu vivesse para sempre, nunca me esqueceria da maneira como ele sorriu e depois me disse adeus e respondeu:
- Está bem. É ponto assente. De hoje em diante, a Heaven Leigh Casteel é minha.
Até chegar a casa fui a cantar sozinha, mais feliz do que nunca, e esqueci-me por completo da promessa que fizera a mim própria de não me apaixonar antes dos trinta anos.
- Estás com um ar muito feliz - comentou a Sarah, olhando-me do tanque com um sorriso fatigado. - O dia correu bem?
- Oh, sim, mãe, correu bem.
A Fanny enfiou a cabeça de fora da cabana.
- Mãe, a Heaven anda a sair com um rapaz do vale...E a mãe sabe como eles são.
A Sarah suspirou outra vez.
- Heaven, tu não foste com ele e não deixaste que ele... Pois não?
- Mãe! - protestei. - Sabe bem que eu não faria tal coisa!
- Faria, sim, senhora! - gritou a Fanny da porta. - Ela tem um comportamento vergonhoso com os rapazes no vestiário, verdadeiramente vergonhoso!
- Que grande mentirosa!
Comecei a encaminhar-me para ela, mas o tom enxotou a Fanny para o alpendre, onde ela caiu e desatou logo a gritar.
- Mãe, não é a Heaven que namora. A Fanny é a rapariga da escola que se porta da maneira mais indecente, e isto já é dizer muito.
- Sim - disse a Sarah entre dentes, voltando-se para mim. - Claro que isso já é dizer muito. Aposto que sei qual é a pior sem ser preciso que tu me digas. É a minha Fanny de sangue índio com os seus modos endiabrados, os seus olhos marotos que mais tarde ou mais cedo a deixarão nas mesmas dificuldades em que eu estou. Heaven, dá-te ao respeito e diz não, NÃO, NÃO. Agora despe esse vestido e atira-te ao trabalho com a lavagem da roupa. Ultimamente não me tenho sentido tão bem. Só não percebo porque é que estou sempre cansada.
- Talvez devesse ir a um médico, mãe.
- Irei, quando eles forem de graça.
Acabei de lavar a roupa, e com a ajuda pronta do tom pu-la a secar. Quando acabámos, aquilo parecia um saldo de farrapos.
- Gostas do Logan Stonewall? - perguntou tom.
- Sim, acho que sim... - respondi, corando várias vezes. Ele ficou triste, como se o Logan pudesse erguer alguma barreira entre nós, quando isso não era possível, nunca.
- tom, talvez Miss Deale te ofereça outro estojo de aguarelas...
- Isso não interessa. Eu não vou ser artista. Talvez acabe por não ser nada, se não estiveres lá para me ajudares a acreditar em mim próprio.
- Mas nós estaremos sempre juntos, tom. Não jurámos ficar juntos para sempre?
Os seus olhos verdes mostraram-se mais contentes e depois ensombraram-se. - Mas isso foi antes de o Logan Stonewall te trazer a casa.
- Às vezes, vais levar a Sally Browne a casa, não vais?
- Uma vez - admitiu ele, corando, como se ignorasse que eu sabia aquilo. - Mas só porque ela é um pouco parecida contigo, não é parva nem se ri gor tudo e por nada.
Eu não sabia o que havia de dizer. As vezes, desejava ser como as outras raparigas, cheia de risinhos parvos por tudo e por nada, e menos sobrecarregada pelas responsabilidades, que me faziam sentir mais velha do que eu era.
Mais tarde, nessa mesma noite, dei à Fanny um bom ralhete pelo seu comportamento e pelas suas consequências. Ela não teve de me explicar outra vez. Já me confessara, numa rara ocasião em que nos comportámos como irmãs que precisavam uma da outra, que odiava a escola e que não se divertia com as outras raparigas da sua idade.
Mesmo com a tenra idade de onze anos, queria era sair com rapazes muito mais velhos que a teriam ignorado se não fosse a sua insistência. Ela gostava que os rapazes a despissem, que lhe enfiassem as mãos nas cuecas e começassem a despertar nela aquelas sensações que só eles podiam despertar. Eu ficara desolada ao ouvi-la dizer aquilo e ainda mais ao testemunhar como ela se portava com os rapazes no vestiário.
- Eu não volto a fazer isso, a sério que não os deixo fazer isso - prometeu a Fanny, que estava cheia de sono e pronta a aceitar qualquer sugestão, mesmo que fosse uma ordem minha para acabar com aquela situação.
Logo no dia seguinte, apesar da promessa da Fanny, aconteceu mais uma vez que eu fui à aula dela buscá-la para a levar para casa. Tive de forçar a entrada no vestiário e arrancar a Fanny das mãos de um rapaz do vale com a cara cheia de borbulhas.
- A tua irmã não é empertigada nem enfadonha como tu - sibilou o rapaz.
E eu continuava a ouvir a Fanny a rir-se.
- Deixa-me em paz! - gritou a Fanny enquanto eu a arrastava. - O pai trata-te como se fosses invisível, portanto é natural que não saibas como é bom darmo-nos com os rapazes e com os homens, e se continuas a maçar-me e a dizer que não faça isto e aquilo, deixarei que eles me façam tudo o que querem... E não me importo que vás dizer ao pai. De qualquer modo, ele adora-me e odeia-te!
Aquilo picou-me, e se a Fanny não tivesse vindo a correr passar-me os braços esguios à volta do pescoço, a chorar e a pedir perdão, eu teria voltado as costas para sempre àquela irmã insensível e cheia de ódio.
- Desculpa, Heaven, desculpa. Eu adoro-te, é verdade. É que eu gosto do que eles me fazem. Não consigo evitá-lo, Heaven. Não quero evitá-lo. E isso é natural, Heaven, não é?
- A tua irmã Fanny vai transformar-se numa prostituta disse a Sarah mais tarde, com uma voz imperturbável e sem esperança enquanto tirava dos caixotes as esteiras que nos serviam de camas. - E tu não podes fazer nada pela Fanny, Heaven. Toma apenas conta de ti.
O pai só vinha a casa três ou quatro vezes por semana, como se calculasse quanto tempo duraria a nossa comida, e trazia toda a que podia comprar de uma só vez. Ainda na semana passada eu ouvira a avó a contar à Sarah que o avô tirara o pai da escola quando ele tinha apenas onze anos para o pôr a trabalhar nas minas de carvão... E o pai detestara isso de tal maneira que fugira e não voltara senão quando o avô o encontrara escondido numa gruta.
- E o Toby jurou ao Luke que nunca mais voltaria lá para baixo para as minas, mas que faria mais dinheiro se de vez em quando...
- Eu não o quero lá em baixo - disse a Sarah, taciturna. - Não está certo obrigar um homem a fazer uma coisa que ele detesta. Mesmo que a Polícia o apanhe mais tarde ou mais cedo a vender álcool à socapa, ele morreria antes que o prendessem. Prefiro vê-lo morto do que preso como os irmãos...
Aquilo obrigou-me a encarar os trabalhadores das minas de carvão de uma forma diferente.
Muitos deles viviam do outro lado de Winnerrow, espalhados pelos cumes dos montes, mas não propriamente nas montanhas como nós. Muitas vezes, à noite, quando o vento era fraco, eu ficava acordada e imaginava que conseguia ouvir as picaretas daqueles mineiros que tinham morrido soterrados, todos a tentarem cavar um buraco para sair da montanha no cimo da qual ficava a nossa cabana.
- Estás a ouvi-los, tom? - perguntei, na noite em que a Sarah foi para a cama a chorar porque há cinco dias que o pai não vinha a casa. - Chop, chop, chop. Não os ouves?
tom sentou-se e olhou à roda.
- Não ouço nada.
Mas eu ouvia. Baixinho e muito ao longe, chop, chop, chop. E, ainda mais baixinho, socorro, socorro, socorro! Levantei-me, fui para o alpendre e o som aumentou de volume. Estremeci e depois fui chamar o tom. Juntos, procurámos o sítio de onde vinha o som... E lá estava o pai ao luar, sem camisa e a suar, empunhando um machado para derrubar outra árvore e nós podermos ter lenha para o fogão no Inverno.
Pela primeira vez na minha vida olhei para ele com um misto de espanto e de compaixão. Os pedidos de socorro ecoavam na minha cabeça... Fora ele a gritar, ou não? Afinal, que tipo de homem era ele que ia à noite cortar madeira sem passar sequer pela cabana para falar à mulher e aos filhos?
- Pai, eu quero ajudá-lo a fazer isso - disse o tom. O pai não interrompeu o seu trabalho que fazia voar as lascas de madeira e limitou-se a gritar:
- Volta para casa e vai descansar, rapaz. Dize à tua mãe que eu tenho um emprego novo que me mantém ocupado durante todo o dia, e que o único tempo livre que tenho é à noite, e é por isso que estou a deitar abaixo umas árvores para vocês depois transformarem em toros.
Ele não disse uma palavra através da qual desse a entender que me vira ao lado do tom.
- Que tipo de trabalho é que tem agora, pai?
- Estou a trabalhar numa linha de caminho de ferro, rapaz. A aprender como é que se conduz uma daquelas máquinas grandes. A carregar carvão... Amanhã aparece lá na linha por volta das sete e ver-me-ás a carregar...
- A mãe havia de gostar de o ver, pai.
Acho que ele fez uma pausa nessa altura, hesitando um pouco antes de desferir um novo golpe no pinheiro.
- Ela vai ver-me... Quando me vir.
E não disse mais nada. Eu dei meia volta e fui a correr para a cabana.
Na minha almofada tosca, cheia de penas de galinha, chorei. Não sei porque chorei, para além de ter sentido de repente muita pena do pai... E ainda mais da Sarah.
SARAH
Mais uma vez o Natal chegou e partiu sem presentes que o tornassem verdadeiramente memorável. Só nos ofereceram pequenos artigos de necessidade e sabonetes. Se o Logan não me tivesse dado uma pulseira de ouro com uma pequena safira, nem me teria lembrado daquele Natal. Eu não tinha nada para lhe dar senão um gorro que eu tricotara.
- É um gorro incrível - disse ele, enterrando-o na cabeça. - Sempre quis ter um gorro vermelho-vivo feito à mão. Muito obrigado, Heaven Leigh. Seria bom que me fizesses um cachecol vermelho para o dia dos meus anos que é em Março.
Fiquei admirada por ele usar o gorro. Era grande de mais, e ele pareceu não ter reparado que eu deixara cair duas malhas, e que a lã, de tão gasta, estava bastante encardida. Assim que acabou o Natal, comecei a fazer o cachecol. Acabei-o a tempo do dia de S. Valentim.
- É muito tarde para se usar um cachecol vermelho em Março - disse eu sorrindo, quando ele o pôs ao pescoço.
E continuou a levar aquele gorro vermelho todos os dias para a escola. Se houve qualquer coisa que me aproximou dele mais do que aquela sua dedicação àquele horrível gorro vermelho, não sei o que poderia ter sido.
Fiz catorze anos em fins de Março. O Logan deu-me outra prenda, uma linda camisola branca que fez os olhos da Fanny faiscarem de inveja. No dia seguinte ao do meu aniversário, o Logan encontrou-se comigo depois da escola no sítio onde terminava o carreiro para a montanha; foi comigo até à clareira que havia antes da nossa casa, e assim aconteceu todos os dias até chegar a Primavera. O Keith e a "Nossa" Jane aprenderam a estimá-lo e a confiar nele, e a Fanny passava o tempo todo a exibir os seus encantos mas o Logan continuava a ignorá-la. Oh, estar apaixonada aos catorze anos era tão divertido que eu conseguia rir e chorar ao mesmo tempo, de tão feliz que era.
Os dias gloriosos de Primavera passavam depressa de mais, agora que o amor estava no ar, e eu queria tempo para saborear a minha aventura amorosa, mas a avó e a Sarah eram implacáveis quando se tratava de exigirem o meu tempo. Havia a plantação para fazer, assim como as outras tarefas que eram uma obrigação minha, mas não da Fanny. Sem o grande quintal nas traseiras da nossa cabana não poderíamos andar tão bem alimentados como andávamos. Tínhamos couves, batatas, pepinos, cenouras, couves mais pequenas para o Outono, nabos e, o melhor de tudo, tomates.
Aos domingos, eu estava ansiosa por rever o Logan na igreja. Quando estávamos na igreja e ele estava sentado na nave em frente de mim, cruzando os olhares e enviando tantas mensagens silenciosas, como poderia eu não esquecer a pobreza desesperada das nossas vidas? O Logan partilhava connosco muito do que havia no estabelecimento do pai; havia pequenas coisas que ele considerava lugares-comuns e que nos enchiam de prazer, como champô num frasquinho, perfume num vaporizador, ou uma máquina e lâminas de barbear para o tom, que começava a ter mais do que uma penugem arruivada a crescer-lhe por cima dos lábios.
Num domingo à tarde, combinámos ir pescar depois da igreja, embora o Logan não dissesse aos pais com quem é que ia. Pelos rostos impassíveis que eu via quando nos encontrávamos por acaso nas ruas de Winnerrow, os pais dele não me queriam a mim, nem a nenhum Casteel, na vida do filho. O que eles queriam não parecia ter tanta importância para o Logan como tinha para mim. Eu queria que eles gostassem de mim e, no entanto, eles conseguiam sempre arranjar maneira de evitar as apresentações que o Logan queria fazer.
Um dia, estava a pensar nos pais do Logan ao mesmo tempo que me penteava às escondidas, enquanto a Fanny estava no quintal a atormentar o Snapper, o cão favorito do pai. A Sarah sentou-se em peso atrás de mim, afastou para trás as longas madeixas de cabelo ruivo e suspirou.
- Estou mesmo cansada. Estou sempre cansada. E o teu pai nunca vem a casa. Quando ele está, nem sequer repara no meu estado.
O que ela disse fez-me dar um salto, fez-me olhar para ver em que é que o pai não reparava. Dei meia volta para olhar para ela, apercebendo-me de que era raro eu olhar para a Sarah, ou então já teria reparado que ela estava grávida... Outra vez.
- Mãe! - exclamei. - Já disse ao pai?
- Se ele olhasse para mim, já saberia, não achas? - Lágrimas iridescentes de autocompaixão marejaram-lhe os olhos.
- A última coisa de que precisamos neste mundo é de outra boca para alimentar.
E no entanto vamos tê-la, quando chegar o Outono.
- Em que mês, mãe, em que dia? - perguntei, inquieta ao pensar que teria outro bebé para cuidar, precisamente quando a "Nossa" Jane já estava na escola e não nos dava tantos cuidados como até aí, e Deus sabe como fora difícil separá-la do Keith, só com um ano.
- Eu não ando a contar os dias para dizer aos médicos. Eu não vou ao médico - respondeu a Sarah em voz baixa, como se a sua voz forte estivesse enfraquecida por causa do bebé que vinha a caminho.
- Mãe! Tem de me dizer para eu poder estar aqui se precisar de mim!
- Espero e rezo para que este tenha o cabelo preto sussurrou ela como se falasse sozinha. - O teu pai gostava era de ter um rapaz com os olhos escuros, de um rapaz como ele. Oh, meu Deus, ouve-me desta vez e dá-me a mim e ao Luke um filho parecido com ele, para ele gostar de mim, como gostou dela.
Foi-me doloroso pensar nisso. De que servia um homem carpir-se durante tanto tempo - se é que ele o fazia - e quando é que ele fizera este bebé? A maior parte das vezes, eu sabia o que eles estavam a fazer, e há muito tempo que as molas da cama não chiavam daquela forma ritmada e reveladora.
com um ar muito sério, dei a notícia ao tom quando íamos a caminho do lago onde nos encontraríamos com o Logan para ir à pesca. O tom tentou sorrir, mostrar-se feliz e, por fim, esboçou um sorriso débil.
- Bem, como não poderemos fazer nada por isso, vamos tirar o melhor partido da situação, não é verdade? Talvez seja o tipo de rapaz que faça do pai um homem mais feliz. Isso seria bom.
- tom, eu não quis magoar-te ao contar-te isto.
- Eu não estou magoado. Eu sei que sempre que ele olha para mim, deseja que eu me pareça mais com ele do que com a mãe. Mas desde que tu gostes da minha aparência, ficarei satisfeito.
- Oh, tom, todas as raparigas te acham terrivelmente atraente.
- E não é engraçado que as raparigas acrescentem sempre o terrivelmente para que o atraente não tenha um significado tão forte?
Voltei-me para ele e abracei-o.
- São esses olhos verdes marotos, tom. - Inclinei a cabeça e pousei a testa no peito dele, por baixo do queixo. - Tenho tanta pena da mãe, estafada, tão grande e desajeitada e, sabes, até hoje, eu não tinha reparado. Sinto-me tão envergonhada. Podia ter feito muito mais para a ajudar.
- Já fizeste o suficiente - disse o tom, entre dentes, afastando-se de mim quando avistou o Logan. - Agora, sorri, mostra-te feliz, porque os rapazes não gostam de raparigas que tenham demasiados problemas.
De repente, apareceu a Fanny, emergindo da sombra das árvores. Correu ao encontro do Logan e atirou-se a ele como se tivesse seis anos e não treze, e o seu corpo começava já a desenvolver-se rapidamente. Logan foi obrigado a apanhá-la nos braços, pois de outro modo cairia para trás.
- Meu Deus, estás cada vez mais bonito - sussurrou a Fanny, tentando beijá-lo, mas o Logan largou-a e afastou-a à força, e depois veio ter comigo.
Naquele dia, a Fanny estava em toda a parte. Falou alto para assustar os peixes, com as suas permanentes exigências de atenção, e estragou uma tarde de domingo que podia ter sido divertida, até que, por fim, ao anoitecer, desapareceu, sem ninguém saber para onde, deixando-me a mim, ao Logan e ao tom com três peixes tão pequenos que nem valia a pena levá-los para casa. O Logan atirou-os outra vez para a água e nós vimo-los afastarem-se a nadar.
- Vemo-nos na cabana - disse o tom, antes de desatar a fugir, deixando-me sozinha com o Logan.
- O que se passa? - perguntou o Logan quando me sentei a olhar para a maneira como o sol-poente reflectia toda a espécie de tons rosados na superfície do lago.
Eu sabia que dentro de pouco tempo ele ganharia uma tonalidade carmesim como o sangue que jorraria quando o novo bebé de Sarah viesse ao mundo. As recordações dos outros nascimentos brotaram das fendas escuras da minha memória.
- Heaven, tu não estás a ouvir o que eu digo.
Eu não sabia se havia ou não de contar ao Logan uma coisa tão pessoal, mas aquilo saiu-me voluntariamente, como se eu não pudesse esconder-lhe nada.
- Estou assustada, Logan, não só pela Sarah e pelo bebé mas por todos nós. Às vezes, quando olho para a Sarah e vejo como ela está desesperada, não sei durante quanto tempo é que conseguirá aguentar este tipo de vida, e se o fizer... Ela está sempre a falar em deixar o pai... Então deixará atrás de si um novo bebé para eu tomar conta. A avó não pode fazer muito mais do que tricotar ou fazer renda, ou fazer uns tapetes.
- E tu já tens muito que fazer, compreendo. Mas, Heaven, não sabes que tudo se resolve? Não ouviste hoje o sermão do reverendo Wise sobre as cruzes que temos de transportar? Ele não disse que Deus nunca nos dá nenhuma que seja demasiado pesada?
É verdade que fora o que ele dissera, mas agora a Sarah sentia que a cruz dela pesava uma tonelada, e eu não podia censurá-la.
Fomos andando devagarinho até à cabana, sem vontade de nos separarmos.
- Não vais convidar-me a entrar... Mais uma vez? perguntou o Logan, hirto.
- Noutra altura,.. Talvez. Ele parou.
- Eu gostaria de levar-te comigo para casa, Heaven. Já disse aos meus pais que és uma rapariga maravilhosa, e bonita, mas eles têm de ver-te e de saber como é verdade aquilo que eu digo.
Eu recuei, triste por ele e por mim, perguntando a mim própria por que razão é que ele não deixava que a pobreza e a vergonha dos Casteel o afastassem. Foi então que ele avançou rapidamente, me agarrou e me deu um beijo na boca. Fiquei assustada com o contacto dos seus lábios, com o aspecto dele àquela estranha luz do crepúsculo.
- Boa noite... E não te preocupes, porque eu estarei cá quando precisares de mim.
E, com estas palavras, desceu o carreiro, encaminhando-se para as ruas asseadas e bem arranjadas de Winnerrow, onde subiria as escadas que davam acesso ao apartamento por cima do drugstore Stonewall. Em divisões de cores claras, alegres, com água corrente e casas de banho com esgotos, duas, ele veria televisão com os pais, ao serão. Olhei para o sítio onde ele desapareceu, perguntando a mim própria como seria viver numa casa limpa, com um televisor a cores. Oh, mil vezes melhor do que aqui, disso não tinha dúvida.
Se eu não tivesse estado a pensar com tanto romantismo no Logan, e no seu beijo, saberia o que estava a passar-se na cabana e não teria ficado tão admirada quando tudo explodiu à minha volta.
O pai estava em casa.
Andava de um lado para o outro no pequeno espaço da divisão da frente, deitando à Sarah uns olhares tais que parecia que a queria matar.
- Como é que te deixaste engravidar outra vez? - berrou ele, batendo com o punho fechado na palma da outra mão; depois voltou-se e bateu com os punhos na parede mais próxima, fazendo cair as chávenas que estavam na prateleira e que caíram ao chão e se partiram. E nós que tínhamos as chávenas mesmo à conta... Não havia nem uma a mais.
O pai era terrível quando estava zangado. Assustador, quando se voltou com energia de mais para se confinar a um espaço tão pequeno.
- Ando a trabalhar de noite e de dia para te manter a ti e aos teus filhos... - vociferou ele.
- Não foste tu que os fizeste, pois não? - gritou a Sarah, cujos longos cabelos ruivos se soltaram da fita que habitualmente os prendia.
- Mas eu dei-te esses comprimidos para tomares! - berrou o pai. - Paguei bom dinheiro por essas coisas, na esperança de que tu tivesses o bom senso de ler as instruções!
- Eu tomei-os! Não te disse que os tomei? Tomei-os todos, à espera que tu viesses para casa, e tu não vieste, e quando vieste já não havia comprimidos!
- Queres dizer que os tomaste todos de uma vez? Ela deu um salto, ia a falar, e depois deixou-se cair na mesma cadeira de onde se levantara, uma das seis cadeiras duras e direitas que não davam conforto a ninguém.
- Esqueci-me... Esqueci-me, portanto engoli-os todos para não me esquecer...
- Oh, meu Deus! - gemeu o pai. Os seus olhos escuros sideraram-na, cheios de escárnio e de desprezo. - Estúpida! E eu que te li as instruções!
Dizendo isto, saiu e bateu com a porta, deixando-me sentada no chão ao pé do tom, que tinha ao colo o Keith e a "Nossa" Jane. A "Nossa" Jane tinha a carinha escondida no regaço do tom e chorava como sempre que os pais brigavam. A Fanny estava em cima da esteira que lhe servia de cama, enrolada como um caracol, com as mãos nos ouvidos e os olhos fechados com força. A avó e o avô estavam sentados nas suas cadeiras de balouço, de olhos em alvo, como se já tivessem ouvido aquilo muitas vezes e estivessem preparados para ouvir muitas mais.
- O Luke há-de voltar para tomar conta de ti - disse a avó a medo, para consolar a Sarah, que continuava a chorar.
- Ele é bom rapaz. Ele há-de perdoar-te quando vir o novo bebé.
A Sarah levantou-se a gemer e começou a preparar a nossa última refeição do dia. Eu corri a ajudá-la.
- Sente-se, mãe, ou vá deitar-se a descansar. Eu posso tratar do jantar sozinha.
- Obrigada, Heaven... Tenho de fazer qualquer coisa para deixar de pensar. E eu que o amei tanto. Oh, meu Deus, como eu amava e desejava o Luke Casteel, sem saber, sem adivinhar... Ele não gosta de ninguém, só gosta dele...
Naquela noite, pouco depois de acabar o jantar, a Fanny disse-me ao ouvido:
- Temos de odiar esse novo bebé! Não precisamos dele. A mãe já é demasiado velha para ter bebés... Eu é que preciso de ter um bebé.
- Não precisas nada de ter um bebé! - disparei eu bruscamente. - Fanny, estás a fazer uma lavagem ao cérebro e julgas que ter um bebé significa que és crescida e livre... Um bebé prende-te mais do que a juventude, portanto vê lá como é que brincas com os teus namorados.
- Não percebes nada disso! Isso não acontece logo à primeira vez! Tu és dez vezes mais miúda do que eu, ou então saberias do que estou a falar.
- O que queres dizer com isso?
Ela desatou a soluçar, agarrando-se a mim.
- Não sei... Gostava tanto que nós não sofrêssemos. Tem de haver qualquer coisa que melhore a minha vida. Não tenho nenhum namorado a sério como tu tens. Eles não gostam de mim como o Logan gosta de ti. Heaven, ajuda-me, por favor, ajuda-me.
- Eu ajudo, eu ajudo - prometi eu, quando nos abraçámos, sem saber o que poderia fazer a não ser rezar.
Os dias quentes de Agosto parecia estarem a diminuir depressa de mais. As últimas semanas de gravidez da Sarah foram mais ou menos dolorosas para ela, e para todos nós, apesar de o pai aparecer com mais frequência do que até aí, e ter deixado de gritar e de andar de um lado para o outro, e parecer resignado a aceitar o facto de a Sarah poder vir a ter mais cinco ou seis filhos até já não poder.
Ela arrastava-se pesadamente pela cabana, com as mãos vermelhas e calejadas cruzadas sobre a barriga que transportava o seu quinto bebé, que ela não aguardava com muita alegria. Rezava em voz baixa ou então distribuía ordens aos berros. Era raro a Sarah dar mostras da doçura dos seus melhores dias. Depois, o pior de tudo é que a mesquinhez desbocada à qual infelizmente nós já estávamos habituados foi substituída por um silêncio alarmante.
Em vez de gritar e de lançar impropérios contra o pai, contra todos nós, calou-se, como se fosse uma velha senhora, e já nem parecia ter vinte e oito anos. Mal olhava para o pai quando ele vinha a casa, e nem sequer se incomodava a perguntar-lhe por onde andara, esquecida de Shirleys Place; esquecia-se de lhe perguntar se ele continuava a ganhar dinheiro "limpo", ou a vender aquelas bebidas alcoólicas às escondidas que representavam dinheiro "sujo". A Sarah parecia fechada em si própria, como se lutasse para tomar alguma decisão.
Cada dia que passava, a Sarah tornava-se mais distante, menos dedicada a todos nós. Aquilo doía, não ter uma mãe, sobretudo quando a "Nossa" Jane e o Keith precisavam tanto dela. O seu olhar endurecia quando o pai vinha a casa uma ou duas vezes por semana. Ele andava a trabalhar em Winnerrow, a fazer um trabalho honesto, mas ela recusava-se a acreditar nisso, como se procurasse uma razão para o odiar e desconfiar dele. Às vezes, eu ouvia-o a falar com a Sarah acerca do seu trabalho, pouco à vontade porque ela não fazia perguntas.
- Andas a fazer trabalhos esquisitos para a igreja e para as senhoras ricas, para as mulheres de banqueiros, que não querem sujar as mãos.
É claro que o pai ganhara muitos dólares a fazer trabalhos de mãos para os ricos, e a Sarah não discutira com ele. O pai sabia fazer todo o género de trabalhos de mãos.
A "Nossa" Jane apercebeu-se da depressão da Sarah e adoeceu mais do que era costume naquele Verão. Foi ela que apanhou todas as constipações que nós outros ultrapassámos com facilidade; depois teve varicela, e assim que se restabeleceu, caiu numa moita de sumagre venenoso e chorou durante uma semana inteira, de dia e de noite, o que fez com que o pai voltasse a sair a meio da noite para ir a Shirleys Place.
Houve alguns dias bons quando a "Nossa" Jane melhorou.
Quando ela sorria e se sentia feliz, não havia criança mais bela no mundo do que a "Nossa" Jane, a chefe suprema da cabana dos Casteel. Oh, de facto, todas
as pessoas do vale diziam como eram belos todos os filhos do perverso, cruel, mal-humorado e desordeiro Luke Casteel, e da sua mulher Sarah, que, segundo as mulheres roídas pelo ciúme, não só era insignificante como era enorme e muito feia.
Um dia, quando o Keith, que raramente queria alguma coisa, pediu lápis de cor, sucedeu que os únicos que havia na cabana eram os que Miss Deale oferecera à Fanny, há uns meses. (Até então, a Fanny nunca abrira a caixa para pintar fosse o que fosse.)
- NÃO! - guinchou a Fanny. - O Keith não pode servir-se dos meus lápis de cor novos.
- Dá-lhe os teus lápis de cor senão ele não te fala - insisti eu, espreitando o irmãozinho calado que, tal como o avô, tinha o hábito de se sentar em silêncio sem fazer nada.
Mesmo assim, o avô via muito mais do que qualquer de nós. Quem mais é que sabia esculpir os pêlos da cauda de um esquilo? Quem mais é que tinha uns olhos que não se limitavam a olhar e que viam mesmo as coisas?
- Não me interessa que ele nunca mais me fale! - gritou a Fanny.
O tom pegou nos lápis de cor e deu-os ao Keith enquanto a Fanny gritava e ameaçava ir afogar-se no poço.
- CALEM-SE! - berrou o pai, entrando em casa ao ver os filhos a brigar. E estremeceu como se o barulho que nós fazíamos lhe provocasse dores de cabeça.
- Tu fizeste-os, não é verdade?
Foi esta a única saudação da Sarah. Cerrou os lábios e não disse mais nada. O pai olhou para ela, furioso, e largou o fornecimento de comida em cima da nossa mesa de tábuas. Eu fui a correr verificá-lo, tentando calcular para quanto tempo é que daria um saco de vinte cinco quilos de farinha, uma lata de vinte litros de banha e os sacos de feijão verde e malhado. Faria sopa para fazer esticar as couves e o presunto...
A porta da frente fechou-se com estrondo. Desolada, levantei a cabeça. O pai atravessava o quintal, direito ao seu velho camião. Ia-se embora outra vez.
Fiquei sem pinga de sangue.
Sempre que o pai saía de casa e deixava a Sarah em necessidade, ela fazia qualquer coisa terrível, a nós ou a si própria. E às vezes, eu não o censurava por não querer ficar. Não era só a "Nossa" Jane e todos nós que fazíamos perder a paciência ao pai. Ele e a Sarah também faziam perder a paciência um ao outro. A Sarah perdera não só a aparência que tinha como a sua personalidade doce.
Os dias nasciam invernosos e os esquilos corriam de um lado para o outro, a armazenar as nozes para o Inverno, e o tom ajudava o avô a encontrar a madeira de que precisava para as suas esculturas, o que não era tarefa fácil, porque tinha de ser de uma certa qualidade, não muito dura nem muito mole, se não, partia-se com facilidade. Eu e o pai estávamos no quintal, sozinhos para variar.
- Pai - disse eu, tentando falar com ele -, estou a fazer o melhor que posso por esta família... Não pode pelo menos fazer uma coisa por mim? Dar-me uma palavra de vez em quando?
- Já te disse que me deixes em paz! - Os seus olhos cruéis fulminaram-me antes de ele me voltar as costas. - Agora desaparece, antes que eu te dê o que mereces.
- O que é que eu mereço? - perguntei, destemida. Não havia dúvida de que os meus olhos eram a permanente recordação de tudo o que ele perdera em tempos. Ela.
Os estorninhos pousavam como soldadinhos escuros nas cordas da roupa. Pássaros penugentos e ensonados, de olhos fechados, anunciavam o frio que se aproximava e esperavam o calor do sol. Dentro de pouco tempo, começaria a nevar de noite. Suspirei, enquanto empilhava a madeira, sabendo que por mais que tivéssemos, nunca conseguiríamos aquecer-nos verdadeiramente. Havia um machado a sair de um tronco de árvore derrubado, um machado que eu pensei que o pai poderia utilizar para me agredir se eu dissesse mais uma palavra. Calei-me e peguei nos toros que ele tivera o cuidado de empilhar.
- Aquilo tem de durar até eu vir a casa outra vez - disse o pai à Sarah, quando ela veio à porta.
- Onde é que vais desta vez? Tão tarde? - gritou a Sarah, que lavara a cabeça e tentara alindar-se, para variar. - Luke, uma mulher sente-se muito só sem um homem, só com os velhos e as crianças por companhia.
- Até breve - respondeu o pai, estugando o passo na direcção do camião. - Arranja-me um emprego, que eu venho para casa e passo cá a noite.
Ele não veio a casa durante uma semana inteira. Uma noite, já tarde, sentei-me nos degraus do alpendre e observei o céu cinzento, a anunciar tempestade. Atormentavam-me pensamentos sombrios. Tinha de haver um sítio melhor do que este para mim. Algures, um sítio melhor. Um mocho piou, seguido pelo uivo de um lobo errante. A noite acolhia mil sons diferentes. O vento de Outono que soprava de norte guinchava e assobiava em redor das árvores da floresta, fustigava a cabana trémula e tentava arrasá-la, mas todas as pessoas que se aglomeravam lá dentro, encostadas umas às outras para se aquecerem, seguravam a casa, ou então era o que eu pensava.
Observei a curvatura da Lua, meio escondida pelas nuvens negras, a mesma lua que iluminava o céu de Hollywood e de Nova Iorque, de Londres e de Paris. Pisquei os olhos e tentei ver para lá dos montes, o mar, e depois cerrei os olhos o mais que pude para ver o meu futuro. Um dia gostaria de ter uma cama a sério só para mim, para eu dormir, com almofadas de penas de ganso e colchas de cetim.
Também havia de ter roupeiros, cheios de vestidos novos que só usaria uma vez, como a rainha Isabel, e queimá-los-ia como ela queima os dela, para que mais ninguém os usasse. E havia de ter sapatos às dúzias, de todas as cores, e havia de comer em restaurantes de sonho, à luz de velas altas e esguias... Mas naquele momento só tinha um degrau gelado para me sentar. E as lágrimas gelaram-me nas faces e nas pestanas.
Comecei a tremer e a tossir; mesmo assim, não iria lá para dentro deitar-me naquele quarto apinhado, entre a Fanny e a "Nossa" Jane. O tom e o Keith dormiam ao pé da esteira da avó e do avô.
Enquanto os outros dormiam mais ou menos tranquilamente, ouviu-se o ruído dos pés de uma pessoa de idade a andar devagarinho. Alguém que respirava com dificuldade, que soltava roncos e gemidos, até que a avó se sentou no degrau a meu lado.
- Olha que morres se ficares aqui de noite, ao frio, e talvez julgues que o teu pai ficará arrependido, mas isso far-te-á sentir-te mais feliz na sepultura?
- Avó, o pai não tem razão para me odiar como me odeia. Porque é que a avó não lhe faz ver que eu não tenho culpa que a minha mãe tenha morrido?
- Ele sabe que a culpa não é tua, lá no fundo ele sabe. Mas se ele o admitir, vai censurar-se por ter casado com ela, por ter trazido uma rapariga como ela para este sítio a que não estava habituada. Ela tentou, oh, tentou fazer o seu melhor, e eu via-a aqui a esfregar, a dar cabo das suas lindas mãos brancas, a afastar aqueles cabelos que eram dignos de se ver... E ia a correr àquela mala dela, cheia de toda a espécie de coisas bonitas, e esfregava as mãos com creme que tirava de um tubo, a tentar, sempre a tentar manter as mãos frescas e bonitas.
- Avó, sabe que eu não consigo olhar para aquela mala e ver as coisas bonitas que lhe pertenciam? De que serve estarem ali aquelas roupas se ninguém lhes mexe? Mas uma noite destas sonhei com a boneca... Sonhei que ela era eu e que eu lhe pertencia. Um dia hei-de ir a Boston e conhecer a família da minha mãe. Devo-lhes isso, quero que eles saibam o que aconteceu à filha deles, porque eles devem julgar que ela está viva, que vive feliz em qualquer lado.
- Tens razão. Nunca tinha pensado nisso, mas tens razão. - Os seus velhos braços magros envolveram-me por instantes, e não havia força neles, nenhuma. - Decide-te a fazer o que queres, e vais conseguir, vais conseguir.
A vida nas montanhas era mais dura para a avó do que para qualquer de nós. Só eu parecia reparar na dificuldade que ela tinha em se levantar e se deitar. Era frequente parar e agarrar-se ao coração. Às vezes, ficava branca como a cal e arfava. Não servia de nada sugerir que fosse ao médico; não acreditava em médicos nem em remédios que não fosse ela a extrair das raízes e das ervas que me mandava procurar.
com a Sarah naquele estado de espírito, cada dia que , passava era uma provação à qual tínhamos de sobreviver, excepto quando eu estava ao pé do Logan; e depois, naquele dia horrível em que o sol apertava, encontrei-o ao pé do rio, e a Fanny andava a correr na margem, para cima e para baixo, sem um trapo em cima dela! A rir-se e tentando obrigá-lo a ir atrás dela.
- E quando conseguires... Eu serei tua, toda tua - escarnecia ela.
Eu fiquei gelada, horrorizada com o comportamento da Fanny, quando me voltei para o Logan e fiquei à espera de ver o que ele faria.
- Não tens vergonha, Fanny - gritou ele. - Tu não passas de uma criança que merece uma boa tareia.
- Então vem apanhar-me e dá-ma! - desafiou ela.
- Não, Fanny - gritou ele. - Tu não és do meu tipo. Voltou-lhe as costas, disposto a voltar para Winnerrow, ou então foi o que eu julguei, e foi nessa altura que eu saí de trás da árvore onde me escondera.
Ele tentou sorrir mas só conseguiu denunciar o seu embaraço.
- Quem me dera que não tivesses visto nem ouvido aquilo. Eu estava à tua espera quando a Fanny apareceu, e rasgou o vestido, e não trazia nada por baixo... Eu não tive culpa, Heaven, juro que não tive.
- Porque estás a explicar-te?
- Eu não tenho culpa! - exclamou, corado.
- Eu sei que não... - disse eu com firmeza.
Eu conhecia a Fanny e sabia da sua necessidade de me tirar qualquer coisa que eu desejasse muito. Apesar disso, de tudo o que eu ouvira dizer, a maioria dos rapazes queria raparigas livres, sem modéstia nem inibições, como a minha irmã Fanny, que viveria sem dúvida dez vidas excitantes enquanto eu lutava só por uma.
- Ouve - disse o Logan, conseguindo levantar-me a cabeça de tal maneira que a minha boca ficou perto da sua. - É o teu tipo que eu quero e do teu tipo que eu preciso. A Fanny é bonita e atrevida.... Mas eu gosto de raparigas tímidas, belas e doces, e se não conseguir casar com a Heaven, nunca me casarei.
Aquele beijo fez retinir uma série de campainhas. Eu ouvia-as a tocar como se fossem sinos a repicar para festejar um casamento no futuro. Mrs. Logan Grant Stonewall... Eu.
No mesmo instante, senti-me feliz. Nalgumas coisas, a Fanny tinha razão. A vida tinha de continuar. Toda a gente precisava de uma oportunidade para viver e para amar. Agora era a minha vez.
Agora, a Sarah dera em falar sozinha, no meio de algum sonho infeliz.
- Tenho de fugir, tenho de sair deste inferno - balbuciava ela. - Não faço mais nada senão trabalhar, comer, dormir, esperar que ele venha para casa... E quando ele vem, nada me satisfaz, nada mesmo.
"Não digas isso, Sarah, por favor... O que seria de nós sem ti?"
- Cavei a minha sepultura com o meu desejo - confessava a Sarah a si própria, noutra ocasião. - Podia ter outro homem, podia... Eu ia-me embora, mas há os miúdos.
Ela dizia isto para si própria, dia e noite; depois ficava a olhar com um ar duro para o pai quando ele vinha a casa nos fins-de-semana, só para ver que ele estava mais bonito ("raios o partam!", resmungava ela), e o seu coração emergia dos olhos cor de esmeralda e, como um relógio parado e estúpido cujos ponteiros tinham de repetir a mesma coisa vezes sem fim, voltava o seu amor por ele.
Só que era demasiado óbvio, demasiado doloroso. O pequeno mundo da Sarah tornava-se mais escuro, mais soturno. E era eu que suportava muitos dos acessos de frustração da Sarah. Exausta ao fim do dia, atirava-me para cima da minha esteira e soluçava em silêncio, molhando a minha almofada dura. A avó ouvia e punha-me a mão no ombro para me consolar.
- Chiu, não chores. A Sarah não te odeia. É o teu pai que a põe doida, mas ela está aqui e ele não está. Ela pode gritar com ele quando ele não está cá, ou disparatar com ele, o que não poderia fazer se ele cá estivesse. As pessoas de quem não gostamos não se ofendem se gritarmos com elas... E ela anda a gritar há anos e anos, e ele nem a ouve nem se importa... E ela não consegue nada; por isso, é que embirra contigo.
- Mas porque é que ele se casou com ela se não a amava, avó? - solucei. - Só para eu ter uma madrasta que me odiasse?
- Ah, Deus é que sabe porque é que os homens são como são - respondeu a avó a arfar, voltando-se e abraçando o avô, a quem tratava por Toby, com muita ternura. Dava-lhe mais amor com um só beijo e uma carícia na sua face enrugada do que qualquer de nós.
- Certifica-te de que te casarás com o homem certo, como eu, só isso. E espera até seres suficientemente adulta para teres bom senso. Digamos, pelos quinze anos.
Nas montanhas, uma rapariga que chegasse aos dezasseis anos sem estar noiva era quase um caso desesperado, estava condenada a transformar-se numa solteirona.
- Estou a ouvi-las a falarem de mim - murmurava a Sarah, de ouvido à escuta atrás da cortina vermelha fina e debotada. - A rapariga está outra vez a chorar. Porque é que eu sou tão má para ela se é a Fanny que complica tudo? Ele gosta da Fanny, detesta a outra... Porque é que eu não me atiro à Fanny? À "Nossa" Jane, ao Keith? E acima de tudo ao tom.
Aterrada, sustive a respiração. Oh, a desgraçada da Sarah a pensar em atirar-se ao tom!
Foi terrível o dia em que a Sarah deu uma sova ao tom com um chicote, como se ao bater-lhe pudesse atingir o pai por ele nunca ter sido como ela queria.
- Eu não te disse que fosses para a cidade e ganhar dinheiro? Não disse?
- Mas, mãe, ninguém me quer contratar! Eles têm rapazes que percorrem a relva com cortadores munidos de aspiradores que aspiram as folhas. Não precisam de um rapaz dos montes que nem sequer tem um cortador manual!
- Desculpas! Eu peciso de dinheiro, tom, de dinheiro!
- Mãe... Amanhã vou tentar - exclamou tom, levantando os braços e tentando proteger a cara. - Nunca conseguirei arranjar um emprego se aparecer todo inchado e ensanguentado, não é verdade?
Momentaneamente frustrada, a Sarah olhou para o chão... Infelizmente. O tom esquecera-se de limpar os pés.
- Não viste, hein? o chão estava limpo. Acabei agora de o esfregar! Olha para ele agora, todo cheio de lama!
Trás! com a mão pesada, deu uma bofetada na cara estupefacta do tom, empurrou-o contra a parede, o que fez escorregar da prateleira de cima o nosso precioso pote de mel que lhe caiu na cabeça e entornou o conteúdo pegajoso todo por cima dele.
- Muito obrigado, mãe - disse o tom, com um sorriso cómico. - Agora já posso comer todo o mel que me apetecer.
- Oh, tom... - disse ela entre soluços, sentindo-se imediatamente envergonhada. - Desculpa. Não sei o que me deu... Não ganhes ódio à tua mãe que te ama.
Um pesadelo que incluía uma bruxa ruiva e caprichosa viera viver para a nossa casa. Um pesadelo que não se ia embora ao amanhecer ou quando brilhava o sol radioso do meio-dia; a bruxa desgrenhada, desbocada e feia não tinha dó nem piedade, nem mesmo para os seus.
Estávamos em Setembro. Dentro de pouco tempo voltaríamos para a escola, e o bebé da Sarah podia nascer a qualquer momento... a qualquer momento. Mesmo assim, a Sarah não se foi embora como ameaçava de vez em quando, julgando que feria o pai se levasse o filho de cabeleira preta que se parecia com ele. O pai ficava cada vez mais na cidade.
As horas misturavam-se umas nas outras, horas horríveis, melhores do que o inferno mas longe do paraíso. No fim do Verão, estávamos visivelmente maiores, mais velhos, mais necessitados e fazíamos mais perguntas. Porém, à medida que o bebé da Sarah lhe fazia inchar a barriga, a mais velha de nós enfraquecia, calava-se e tornava-se menos exigente.
Estava a formar-se qualquer coisa. Qualquer coisa que me obrigava a voltar-me de um lado para o outro durante toda a noite, de tal maneira que, quando eu me levantava de manhã, era como se não tivesse pregado olho.
ESTAÇÃO AMARGA
O Logan estava à minha espera a meio do caminho para o vale a fim de me acompanhar no primeiro dia de escola. O tempo estava a arrefecer nas montanhas, mas no vale esta vá ainda agradável e quente. Miss Deale continuava a ser a nossa professora, pois a direcção da escola mais uma vez a autorizara a avançar com a sua classe. Eu estava encantada com ela, como sempre; mesmo assim, não parava de sonhar...
- Heaven Leigh, estás a devanear outra vez! - perguntou a voz doce de Miss Deale.
- Não, Miss Deale. Eu não devaneio na aula, só em casa.
- Porque é que toda a gente se ria à socapa, como se eu estivesse a devanear?
Entusiasmava-me o facto de voltar à escola, onde veria o Logan todos os dias, que me levaria a casa, de mão dada, e com quem eu poderia esquecer momentaneamente todos os problemas que me afligiam na cabana.
Ele seguia a meu lado a caminho de casa, e ambos discutíamos fervorosamente os nossos planos de futuro, enquanto o tom seguia com a "Nossa" Jane e com o Keith, e a Fanny ficava para trás, na companhia dos seus muitos namorados.
Bastava-me olhar à minha volta e ver que dentro de pouco tempo as noites nas nossas montanhas gelariam a água nos algerozes e que todos nós precisávamos de casacos, de camisolas e de botas novas, que não podíamos comprar. O Logan pegava-me na mão e olhava para mim muitas vezes, como se não pudesse deixar de me admirar. Nós caminhávamos, devagar, devagar. Agora a "Nossa" Jane e o Keith saltavam e riam, enquanto o tom voltava atrás a correr para verificar o que a Fanny estava a fazer com aqueles rapazes.
- Tu não falas comigo - queixou-se o Logan, parando e puxando-me para junto de um tronco apodrecido. - Daqui a pouco chegamos ao pé da tua casa, tu desatas a correr, voltas-te e dizes-me adeus, e eu nunca mais vejo a tua casa por dentro.
- Não há nada para ver - disse eu, baixando o olhar.
- Também não há nada de que te envergonhares - disse ele baixinho, apertando-me os dedos antes de me soltar a mão e de puxar a minha cara para a sua. - Se vais continuar na minha vida, e eu não consigo imaginar a vida sem ti, um dia terás de me deixar entrar, não é verdade?
- Um dia... Quando eu tiver mais coragem.
- Tu és a pessoa mais corajosa que conheço! Heaven, ultimamente tenho pensado muito em nós; no muito que nos divertimos e na solidão que sentimos quando não estamos juntos. Quando eu terminar a faculdade, estou a pensar em tornar-me cientista, um cientista brilhante, é claro. Não estarias interessada em embrenhar-te nos mistérios da vida comigo? Podíamos trabalhar em equipa como a Madame Curie e o marido. Gostarias disso, não gostarias?
- Claro, mas isso não seria maçador? Estarmos fechados num laboratório dias e dias seguidos? - respondi sem pensar. - É possível que o laboratório tenha uma porta para a rua?
Ele chamou-me tonta e abraçou-me com força. Eu pus-lhe os braços à volta do pescoço e apertei a minha cara contra a dele. Sabia-me tão bem ser abraçada daquela maneira.
- Teremos um laboratório envidraçado - disse ele em voz baixa, rouca, com os lábios ao pé dos meus -, cheio de plantas naturais... Isso faz-te feliz?
- Sim... Creio que sim...
Iria ele beijar-me outra vez? Se eu desviasse a cabeça ligeiramente para a direita isso eliminaria o problema do nariz dele chocar com o meu?
Se eu não sabia como se dava um beijo, ele sabia de certeza. Era meigo, excitante. Mas assim que cheguei a casa, tudo se perdeu nas águas encapeladas das misérias da Sarah.
Aquele sábado acordou um pouco mais claro, um pouco mais quente e, desejosos de escaparmos ao ódio amargo da Sarah no seu pior, o tom e eu fomos ter com o Logan, e atrelados a nós vieram a "Nossa" Jane e o Keith. Éramos todos bons amigos e tentávamos que a "Nossa" Jane e o Keith fossem tão felizes quanto possível.
Mal chegámos ao rio onde tencionávamos pescar, ouviu-se o grito ensurdecedor da Sarah, através dos montes, a chamar-nos.
- Adeus, Logan! - gritei, ansiosa. - Tenho de voltar para junto da Sarah; ela pode precisar de mim! tom, fica tu e toma conta da "Nossa" Jane e do Keith.
Apercebi-me do desapontamento do Logan antes de desaparecer para corresponder à exigência da Sarah, segundo a qual eu devia ir lavar a roupa em vez de perder o meu tempo a brincar com um rapaz da aldeia que não prestava para nada e que arruinaria a minha vida. Não estava certo que gostássemos de jogar e de nos divertirmos enquanto a Sarah não se pudesse sentar confortavelmente ou parar um pouco, e o trabalho não tinha fim. Sentindo-me culpada por me ter escapado por alguns minutos, levei a selha para cima do banco, trouxe água quente do fogão e comecei a esfregar na velha tábua enrugada. Através da janela aberta que tentava deixar sair o fedor do Velho Fumegante, ouvia a Sarah a falar com a avó dentro da cabana.
- Dantes pensava que seria bom crescer aqui nestes montes. Sentia-me mais livre do que uma rapariga da cidade que tinha de esconder todas as suas sensações sexuais até fazer dezasseis anos. Só frequentei a escola durante três anos, e quase não aprendi nada. Não gostava de soletrar, nem de ler, nem de escrever, só gostava dos rapazes. A Fanny é muito parecida comigo. Eu não conseguia tirar os olhos dos rapazes. Quando vi o seu filho pela primeira vez, o meu coração ficou aos pulos, e ele já era quase um homem. Eu não passava de uma criança. Costumava ir a todos os bailes que havia nos celeiros, não me escapava nenhum, e ia ouvir o seu Toby a tocar violino e o seu filho a dançar com todas as raparigas bonitas, e qualquer coisa dentro de mim me disse que o Luke Casteel tinha de ser meu; se não, eu morreria.
A Sarah fez uma pausa e suspirou, e quando eu espreitei pela janela, vi-lhe uma lágrima a escorregar pela face corada.
- Depois o Luke vai para Atlanta e conhece aquela rapariga da cidade, e casa com ela. A minha cara, quando às vezes me via ao espelho, era uma cara de cavalo comparada com a dela. Mas isso não alterava nada, Annie, nada. Casado ou não, eu continuava a querer o Luke Casteel... Queria-o tanto que faria qualquer coisa para o conseguir.
O avô estava no alpendre, sentado na cadeira de balouço, a fazer as suas esculturas, sem prestar atenção à conversa. A avó estava sentada na sua cadeira de balouço, e parecia não prestar atenção à Sarah, que falava sem parar.
- O Luke nem olhava para mim, embora eu tentasse chamar-lhe a atenção.
Eu continuei a esfregar a roupa suja, apurando o ouvido para escutar melhor. Ao pé de mim estava um barril com água da chuva, cheio de rãs a coaxar. A roupa já estava lavada e pendurada na corda, a secar. Espreitei outra vez lá para dentro e vi que a Sarah estava a trabalhar junto do fogão, a cortar biscoitos com um pedacinho de vidro, e continuava a sua ladainha como se tivesse de falar com alguém para não rebentar. .. E a avó era a pessoa que melhor sabia ouvir. Nunca fazia perguntas, como se nada do que ela dissesse alterasse fosse o que fosse. E não havia dúvida de que era assim mesmo.
Eu era toda ouvidos e continuei a aproximar-me cada vez mais da janela para ouvir melhor.
- Eu detestava tudo nela, naquela rapariga frágil a quem ele chamava o seu anjo; detestava a sua maneira de andar e de falar. Como se ela fosse mais do que nós... E ele andava de roda dela como um palerma; a tentar armar ao fino como ela. Mesmo assim, todas nós corríamos atrás dele, sobretudo quando ela engravidou; pensávamos que ele queria andar por aí a foder, e ele não nos ligava nenhuma. Resolvi que havia de ser meu de uma maneira ou de outra. Ele não podia possuí-la nessa altura, por isso deitou-se comigo três vezes, e aconteceu aquilo que eu pedi a Deus. Engravidou-me. Ele não me amava. Eu sabia disso. Talvez até nem gostasse de mim. Mostrava-se aborrecido sempre que estava comigo, e uma vez até me chamou anjo quando estava em cima de mim. Quando eu disse que vinha a caminho um filho dele, começou a atirar-me dinheiro para o bebé que eu trazia na barriga. E precisamente quando eu julgava que teria de casar com outro homem, aquela rapariga da cidade obrigou-me porque morreu...
Óh, oh, como era horrível ouvir a Sarah a rejubilar por a minha mãe ter morrido!
A Sarah falava com aquele seu tom monótono, desprovido de emoção, e eu ouvia o chiar ténue da cadeira de balouço da avó, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
- Quando ele veio pedir-me para casar com ele para que o seu filho pudesse ter um pai, eu pensei que daí a um mês a teria esquecido... Mas ele não a esqueceu. Ainda não a esqueceu. Tentei obrigá-lo a amar-me, a sério, Annie. Fui boa para a Heaven, o bebé dele. Dei-lhe o tom, depois a Fanny, o Keith e a "Nossa" Jane. Não tive mais nenhum homem depois de casarmos. E não teria mais nenhum se ele me amasse como a amava a ela... Mas isso não aconteceu. E eu já não consigo falar com ele. Não me dará ouvidos. Meteu na cabeça que havia de fazer uma loucura, e não me deixa dizer nada que o impeça de tentar. Vai-se embora e deixa-nos a todos, é o que ele tenciona fazer dentro de pouco tempo. Deixar-me aqui a lavar, a cozinhar, a limpar, a sofrer... E a tomar conta de outro bebé. Eu ficaria aqui para sempre se ele me amasse. Mas quando ele se atira a mim e me grita palavras feias, elas devoram-me a alma, e mostram-me que eu estou a ser a desgraça dele, que estou a fazer dele um homem mau, um animal horrível que agride os próprios filhos, desejando que eles fossem dela e não meus. Eu sei, eu leio nos olhos dele. Nunca me amará... Nem sequer gosta de mim. Não há nada em mim que ele admire. Excepto a minha boa saúde, e está a arruiná-la. Meu Deus, ele está a arruiná-la!
- Porque é que estás sempre a dizer isso, Sarah? Pareces gozar de boa saúde.
- Nunca julguei que aquela morta levasse consigo para o túmulo o coração dele, nunca julguei - murmurou Sarah, destroçada, como se não tivesse ouvido a pergunta da avó.
- Não quero saber mais dele, Annie. Não quero saber mais dele. Nem mesmo dos meus próprios filhos. Estou aqui apenas para fazer tempo...
O que queria ela dizer? Fiquei em pânico. Ia tropeçando na selha e na tábua de esfregar de tanto que me encostei à beira.
No dia seguinte, a Sarah andava outra vez de um lado para o outro, a falar sozinha e com todos aqueles que a quisessem ouvir. - Tenho de fugir, tenho de fugir deste inferno. Não faço mais nada senão trabalhar, comer, dormir, esperar, esperar que ele venha para casa... E quando ele chega, não tenho alegria, nem felicidade, nem satisfação.
Ela dizia isto tudo milhares de vezes, e ia ficando. Aquilo durava há tanto tempo que pensei que nunca poderia acontecer, embora às vezes eu tivesse pesadelos e visse a Sarah assassinada e cheia de sangue. Sonhava com o pai estendido no caixão, com um tiro no coração. Muitas vezes acordei sobressaltada, convencida de que ouvira um tiro. Olhava para as paredes, via as três espingardas enormes e estremecia outra vez. A morte, os assassínios e os enterros em segredo faziam parte da vida nas montanhas, que andava muito próxima da morte.
Depois chegou o dia... Aquele dia que todos nós aguardávamos com nervosismo. Começou num domingo de Setembro, de manhã cedo, quando eu me levantei e pus água a aquecer para termos água quente para nos lavarmos antes de irmos à igreja. Do quarto vieram uivos de dor, fortes, agudos.
- Annie, lá vem ele! Annie, lá vem o filho de cabelo preto do Luke!
A avó veio a correr, coxa, mas as pernas doíam-lhe e a respiração era difícil, tomando a minha ajuda mais do que necessária. E logo a partir da primeira dor, ela soube que aquele parto ia ser diferente, e mais complicado do que os outros. tom foi a correr à procura do pai e trouxe-o para casa no momento em que o avô se levantou com relutância da cadeira de balouço e partiu na direcção do rio, e eu ordenei à Fanny que tomasse conta do Keith e da "Nossa" Jane, desde que não os levasse para muito longe da cabana. A avó e a Sarah precisavam da minha ajuda. Este parto estava a levar muito mais tempo do que quando a "Nossa" Jane viera ao mundo na mesma cama em que todos nós tínhamos nascido. Exausta, a avó deixou-se cair numa cadeira e, a arfar, foi dando as suas instruções enquanto eu fervia água, onde havia de esterilizar uma faca para cortar o cordão umbilical. Tentei estancar o sangue que jorrava do corpo da Sarah como um rio vermelho da morte.
E finalmente, depois de horas e horas de esforço, com o pai no quintal, à espera, na companhia do avô, do tom, do Keith, da "Nossa" Jane, e sem saber onde estava a Fanny, enquanto a Sarah estava branca como a cal da parede, no meio daquele sangue todo apareceu, dolorosamente, lentamente, um bebé. Um bebé pequeno e azulado, excepcionalmente quieto e com um aspecto esquisito.
- É um rapaz... Uma rapariga? - perguntou a avó a arfar, com uma voz tão fraca e ténue como a brisa que agitava as nossas cortinas já gastas. - Dize-me, rapariga, é o filho que se parece com o Luke?
Eu não sabia o que havia de dizer.
A Sarah endireitou-se para ver. Olhou, olhou, tentando afastar os cabelos ensopados em suor. A cor voltou-lhe à face, como se tivesse litros de sangue de reserva. com todo o cuidado, levei o bebé à avó para ela me dizer que bebé era aquele.
A avó procurou os órgãos sexuais e nem ela nem eu os vimos.
Mal podia acreditar no que via. Era chocante ver um bebé que não tinha nada entre as pernas. Mas o que importava que aquela criança não fosse uma rapariga nem um rapaz se ela estava morta e lhe faltava o cimo da cabeça? Era um bebé monstruoso, repugnante, cheio de feridas ensanguentadas.
- UM NADO-MORTO! - gritou a Sarah, saltando da cama e tirando-me o bebé dos braços. Abraçou-o, beijou o seu pobre rosto inacabado mais de uma dúzia de vezes, antes de atirar a cabeça para trás e dar largas à sua angústia como um daqueles lobos das montanhas que uivavam à lua.
- A culpa é do Luke e das suas malditas prostitutas! Desesperada e louca, correu como uma fúria lá para fora, onde o pai estava sentado, e chamou pelo nome antes de lhe atirar o bebé para o colo. Ele conseguiu agarrar o bebé e depois observou-o com incredulidade e horror.
- Vê o QUE TU FIZESTE! - gritou a Sarah, com a única peça de vestuário disforme que trazia manchada dos fluidos do parto. - TU E o TEU SANGUE PODRE E AS TUAS IDAS Às PUTAS MATARAM O TEU PRÓPRIO FILHO! E FIZERAM DELE UM MONSTRO, TAMBÉM!
O pai deu largas à sua fúria:
- TU É QUE ÉS A MÃE! O QUE TU PRODUZES NÃO TEM NADA A VER COMIGO!
Atirou a criança morta para o chão, e depois disse ao avô que lhe desse um enterro decente antes que os porcos e os cães dessem com ele. E foi-se embora, saltou para o camião e foi para Winnerrow afogar as mágoas no álcool, como se tivesse algumas, e mais tarde decerto entraria a cambalear no Shirleys Place.
Oh, que terrível foi aquele domingo em que tive de dar banho a uma criança morta na banheira de zinco, e prepará-la para o enterro, enquanto a avó se ocupava da Sarah, que de repente perdera todas as suas forças e desatara a chorar como qualquer mulher vulgar. Desaparecera a força da amazona lutadora e ficara apenas uma mulher, uma mãe desolada e chorosa, que perguntava a Deus por que razão é que um bebé fora amaldiçoado pelos pecados do pai.
Pobrezinho, pensava eu enquanto tirava o sangue e os fluidos do nascimento daquele pobre corpinho que jazia tão flácido e imóvel. Nem me sentia obrigada a ter o cuidado de lhe segurar a cabeça fora de água, mas fi-lo. Vesti-lhe a roupa que a "Nossa" Jane e o Keith tinham usado, e talvez a Fanny, o tom e eu também.
Por fim, a Sarah deixou-se cair na cama suja, cravando os dedos no colchão e a chorar como eu nunca a vira chorar.
Nem reparei na avó senão quando acabei de tratar do bebé morto. Só quando olhei para ela duas ou três vezes é que reparei que ela não estava a tricotar, nem a fazer renda, nem a remendar, nem a entrançar, nem a tecer, nem mesmo a balouçar-se.
Estava sentada, muito quieta, com os olhos semicerrados. Nos seus lábios finos e descorados havia um sorriso ténue. Aquilo assustou-me, aquele sorriso
estranho e feliz; ela devia estar triste e chorosa.
- Avó, sente-se bem? - sussurrei a medo, deitando o nado-morto já vestido e lavado.
Toquei-lhe. Ela tombou para o lado. Pus-lhe a mão na cara, e ela já estava a arrefecer, e a carne a endurecer.
A avó morrera!
Fulminada pelo nascimento de um bebé monstruoso ou por anos e anos de luta para suportar uma vida de dificuldades! Gritei e senti um baque no coração. Ajoelhei-me junto da cadeira de balouço e apertei-a contra mim.
- Avó, quando chegar ao céu, por favor diga a minha mãe que estou a fazer os possíveis por ser como ela. Diga-lhe isso, está bem?
Ouviu-se um som arrastado vindo do alpendre na nossa direcção.
" - O que estás a fazer à minha Annie? - perguntou o avô, que voltava do rio, para onde fora para evitar saber aquilo que os homens nunca querem saber... Os homens desaparecem e só voltam quando o parto está terminado. É esta a maneira de ser dos homens dos montes: fugir dos gritos de sofrimento das mulheres e fingir para si próprios que eles nunca sofrem.
Levantei a cabeça, lavada em lágrimas, sem saber o que havia de dizer-lhe.
- Avô...
Escancarou os olhos azul-claros ao olhar para a avó.
- Annie... Estás bem, não estás? Levanta-te, Annie... Porque não te levantas?
E é claro que percebeu o que se passava quando viu os olhos dela abertos e imóveis. Tropeçou, e toda a sua agilidade fugiu, como se a vida lhe escapasse no momento em que percebeu que a sua cara-metade estava morta.
De joelhos, tirou-me a avó dos braços e apertou-a contra o peito.
- Oh, Annie, Annie - soluçou. - Há tanto tempo que eu te disse que te amava... Estás a ouvir-me, Annie, não estás? Tu sabias dizer isto melhor. Eu tinha as melhores intenções. Não sabia que isto ia ser assim... Annie.
Era horrível assistir ao seu sofrimento, ao seu terrível desgosto de perder uma esposa boa e fiel que o acompanhava desde os catorze anos. Como era estranho pensar que eu nunca os vira abraçados na sua esteira, com os cabelos compridos da avó espalhados e a servirem de almofada ao avô. Coube-me a mim e ao tom tirar o corpo da avó dos braços do avô, e a Sarah ficou deitada de costas, agora já sem chorar, de olhos em alvo numa parede.
Todos nós chorámos no funeral, até a Fanny, todos excepto a Sarah, que estava de pé, gelada e empertigada, de olhar vazio como um índio a vender charutos num armazém.
O pai nem sequer apareceu.
Estava perdido de bêbado lá em baixo, no Shirleys Place, enquanto o seu último filho e a sua única mãe iam a sepultar. O reverendo Wayland Wise apareceu com a mulher, Rosalynn, com cara de tição, para dizer umas palavras em memória de uma velha que todos haviam estimado, senão respeitado.
Nenhum de nós desceria à terra sem um funeral decente, com todas as palavras que deviam ser pronunciadas para que aquela mulher e aquela criança que nascera morta fossem para o céu.
- O Senhor dá e o Senhor tira - recitou o reverendo. Virou a cara para o Sol e disse: - bom Deus, ouve a minha prece. Aceita esta adorada esposa, mãe, avó e crente sincera, juntamente com esta pobre alma, no céu... Deixa-os entrar nos teus portões de pérolas, ABRE-LHOS! Aceita esta mulher cristã, Senhor, e esta criança, Senhor, pois ela foi honesta, simples, fiel à sua fé, e a criança é inocente, pura e sem pecado!
Voltámos para casa, em fila, sempre a chorar.
As pessoas das montanhas foram lá chorar connosco, sofrer a partida de Annie Brandywine Casteel, uma das suas, e voltaram connosco para casa, e sentaram-se ao pé de nós, e cantaram connosco, e rezaram connosco durante horas a fio. E quando aquilo acabou, trouxeram o álcool, as guitarras, os banjos e os violinos, e tocaram uma melodia animada como era costume das mulheres dos montes quando queriam homenagear alguém.
No dia seguinte, quando o Sol já ia alto, fui outra vez ao cemitério com o tom para vermos a campa rasa da avó e a outra mais pequena, com menos de trinta centímetros de comprimento. Fiquei destroçada ao ver o "filho dos Casteel" sepultado ao lado da minha própria mãe. Nem sequer havia uma data gravada na sua pedra tumular.
- Não repares nisso - disse o tom em voz baixa. - A tua mãe morreu há tanto tempo, e é da avó que vamos ter mais saudades. Só me apercebi do que ela trouxe às nossas vidas quando vi a sua cadeira vazia... Sabias?
- Não - respondi em voz baixa, envergonhada. - Eu limitava-me a aceitar a sua presença como se ela vivesse para sempre. Vamos ter de ajudar o avô, que se sente tão perdido e tão só.
- Sim - concordou o tom, pegando-me na mão e afastando-me daquele lugar triste que pouco contribuía para nos transmitir amor.
- Temos de dar valor ao avô enquanto ele estiver na nossa companhia e não lhe faltar com os nossos cuidados no dia do funeral.
Uma semana depois, o pai veio a casa. Parecia sóbrio e estava muito abatido. Empurrou a Sarah para uma cadeira, puxou outra e falou com a voz entrecortada, enquanto o tom e eu parámos do lado de fora da janela, a espreitar e a euvir a conversa.
- Fui a um médico na cidade, Sarah. Foi onde estive. Ele disse-me que eu estava doente, muito doente. Disse-me que eu andava a espalhar a minha doença por todo o lado, e que tinha de interromper o que andava a fazer. Se não, enlouquecia antes de morrer precocemente. Disse-me que não posso ter relações sexuais com nenhuma mulher, nem mesmo com a minha. Disse-me que preciso de levar injecções para me curar, mas nós não temos dinheiro para isso.
- O que é que tu tens? - perguntou a Sarah, com uma voz fria e dura, sem mostrar a mínima compreensão.
- Tenho sífilis em estado preliminar - confessou o pai com uma voz oca. - Não tiveste culpa de perder aquele bebé, a culpa foi minha. Por isso vou dizê-lo uma vez e está dito. Desculpa.
- É TARDE DE MAIS PARA PEDIRES DESCULPA. - gritou a Sarah. - É tarde de mais para salvar o meu bebé! Tu mataste a tua mãe e mataste o meu menino! Ouve bem isto! A TUA MÃE MORREU!
Até eu, que o odiava, fiquei chocada pela maneira como a Sarah lhe disse aquilo aos gritos, pois se o pai gostava de alguém que não fosse ele próprio, era da avó. Ouvi-o suster a respiração, numa espécie de gemido, e depois sentar-se em peso na cadeira que rangeu... Mas a Sarah ainda não acabara de o castigar.
- Tinhas de andar por aí a divertir-te, enquanto eu estava sempre aqui metida, desejando que precisasses de mim. ODEIO-TE, LUKE CASTEELÍ Odeio-te ainda mais por nunca teres deixado de pensar numa mulher morta que devias ter deixado em paz!
- Voltas-te contra mim? - disse ele com amargura. - Agora... que a minha mãe morreu e que estou doente?
- EXACTAMENTE! - gritou ela, levantando-se de um salto e começando a atirar a roupa dele para uma caixa de cartão.
- Aqui está a tua roupa podre e fedorenta... AGORA, DESAPARECE! Desaparece antes que todos nós fiquemos doentes como tu! Nunca mais te quero ver! Nunca mais!
Ele levantou-se, com um ar submisso, olhando à volta da cabana, como se nunca mais a visse, e eu assustei-me muito. Estremeci quando o pai parou junto da cadeira do avô e lhe pousou a mão no ombro, devagarinho.
- Desculpe, pai. Lamento sinceramente não ter estado cá no dia do funeral dela.
O avô não disse nada e limitou-se a inclinar a cabeça ainda mais, e as lágrimas caíram-lhe devagar, devagar e foram molhar-lhe os joelhos.
Em silêncio, vi o pai meter-se outra vez no seu velho camião e partir, levantando o lixo seco e espalhando folhas mortas, formando um turbilhão de pó e de lixo. Partiu e levou os cães. Agora só tínhamos gatos que caçavam apenas para si próprios.
Quando fui a correr dizer à Sarah que o pai se fora mesmo embora daquela vez e que levara os cães, ela deu um grito e deixou-se cair lentamente no chão. Eu ajoelhei-me ao lado dela.
- Mãe, era isto que queria, não era? A mãe pô-lo na rua. Disse que o odiava... Porque está a chorar dessa maneira, agora que é tarde de mais?
- CALA-TE! - bramiu ela, à maneira do pai. - Não importa! É melhor assim, é melhor assim!
Era melhor assim? Nesse caso porque chorava ela cada vez mais?
com quem podia eu falar a não ser com o tom? Não com o avô, de quem nunca gostara tanto como da avó, sobretudo porque ele vivia tão satisfeito no seu pequeno mundo fechado e parecia não precisar de ninguém senão da mulher, e esta partira.
Mesmo assim, ajudava-o a sentar-se à mesa todas as manhãs, enquanto a Sarah ficava na cama, e todas as noites, e dizia o que podia para o ajudar a acostumar-se à perda da mulher.
- A sua Annie foi para o céu, avô. Disse-me muitas vezes que olhasse por si depois de ela morrer, e é o que eu farei. E pense nisto, avô. Agora ela já não tem dores e já não sofre, e no paraíso pode comer tudo o que quiser sem se sentir mal, depois das refeições. Creio que é a recompensa dela... Não é, avô?
Pobre avô... Nem conseguia falar. As lágrimas brotavam-lhe dos olhos pálidos e cansados. Depois de ele ter comido alguma coisa, ajudei-o a voltar para a cadeira de balouço que fora da avó, aquela que tinha as almofadas melhores e que ajudava a suportar as dores nas ancas e nas articulações.
- Nunca mais ninguém me tratará por Toby - disse ele, triste como a noite.
- Eu trato-o por Toby - apressei-me a dizer.
- Eu também - disse o tom.
O avô falou mais depois de a avó morrer do que eu o ouvira falar desde que nascera.
- Oh, meu Deus! A vida está a tornar-se horrível! - exclamou a Fanny. - Se mais alguém morre, fujo!
A Sarah levantou a cabeça e ficou a olhar para a Fanny durante muito tempo antes de se esgueirar para o outro quarto, onde ouvi as molas da cama a gemerem em sinal de protesto quando ela se deitou e desatou a chorar outra vez.
Porque quando o espírito da avó deixou a nossa cabana, parece que todo o amor que nos unia desapareceu com ela.
O FIM DA ESTRADA
Quando todos estavam a dormir, fui em bicos de pés àquele local secreto onde escondera a mala da minha mãe, pela primeira vez desde que a avó ma oferecera. Puxei-a para fora de baixo de todos aqueles caixotes velhos de trastes e, com todo o cuidado, sentada atrás do Velho Fumegante não fosse a Fanny acordar e ver-me, tirei a boneca.
A boneca bela é mágica, vestida de noiva, que representava a minha mãe a meus olhos.
Agarrei naquele embrulho comprido e duro durante muito tempo, recordando aquela noite de Inverno em que a avó ma dera. Mexera na mala uma dúzia de vezes para procurar isto ou aquilo, mas nunca desembrulhara a boneca. Muitas vezes me apetecera olhar para o rosto bonito envolto naquele cabelo maravilhoso e pálido, mas tinha medo de me sentir mal por causa de uma mãe que merecia melhor sorte do que aquela que tivera. Ouvi a voz fraca da avó, como se um fantasma me segredasse ao ouvido:
- Anda, filha. Não é altura de veres o que está lá dentro? Há muito tempo que pergunto a mim própria porque não brincas com ela e não lhe vestes essa roupa linda.
Senti o seu cabelo ralo a roçar-me na face. Senti o vento frio de Inverno a soprar quando tirei a boneca vestida de noiva e a desembrulhei. A luz da lareira, examinei-lhe a cara. Como estava bonita com o seu vestido comprido e o seu véu de renda, com botões minúsculos que lhe chegavam até ao queixo, com meias brancas muito finas, sapatos de cetim e renda, que se podiam calçar e descalçar. Tinha um cinto de ligas azul, e uma pequena Bíblia branca e dourada com flores de laranjeira feitas de seda e fitas de cetim branco - uma coisa azul e uma coisa nova, como mandava a tradição.
Até a roupa interior era requintada: um pequeno corpete, para amparar os seios pequenos e duros, e em jeito de desafio, tinha uma racha entre as coxas, um sítio onde a maioria das bonecas não tinha nada.
Por que razão é que esta boneca era diferente das outras? Porque fora feita com mais realismo?
Essa era uma parte do mistério da minha mãe, a boneca e o significado que esta tivera na sua vida. Um dia, havia de descobrir. Beijei-lhe a carinha, e, ao ver bem de perto os olhos cor de centáureas azuis, verifiquei que tinham umas manchas verdes, cinzentas e cor de violeta - como os meus próprios olhos! Os meus próprios olhos!
De manhã, enquanto a Fanny foi visitar uma amiga, e o tom ensinava o Keith e a "Nossa" Jane a pescarem melhor, lembrei-me que a avó me dissera que o pai quisera destruir tudo o que a minha mãe deixara. Portanto, ela pegara na mala e no que ela tinha lá dentro e escondera-a. Agora, eu perdera a avó. A minha melhor ligação ao passado. O pai nunca me falaria como ela me falara. O avô decerto nem reparara na rapariga a que o filho chamava anjo.
- Oh - suspirei, quando o tom vinha a entrar. - Olha, tom, aqui está uma boneca que a avó disse que pertenceu à minha mãe verdadeira. Uma boneca vestida de noiva e parecida com ela quando tinha a minha idade. Vê o que ela tem escrito nos pés.
Eu peguei nela para ele ler, já que a voltara a vestir decentemente, e só não lhe calçara as meias nem os sapatos.
BONECA EXECUTADA SEGUNDO FOTOGRAFIA ORIGINAL EXEMPLAR ÚNICO
- Calça-a e esconde-a depressa - disse o tom em voz baixa. - A Fanny vem aí com a "Nossa" Jane e o Keith, e era uma vez. Não deixes que a Fanny destrua uma coisa tão bonita.
- Não estás admirado?
- Claro que estou, mas eu descobri-a há muito tempo, e voltei a pô-la no mesmo sítio como a avó me disse para fazer... Agora despacha-te, antes que a Fanny chegue.
Calcei-lhe as meias e os sapatos o mais depressa que pude e voltei a embrulhar a mala na colcha velha e suja. Escondi-a mesmo a tempo, quando estava a limpar as lágrimas.
- Ainda estás a chorar pela avó? - perguntou a Fanny, que podia estar muito triste e um segundo depois estar a rir-se à gargalhada. - Para ela foi melhor ter morrido do que estar aqui sentada todo o dia, sem fazer nada a não ser lamentar-se. Qualquer outro sítio é melhor do que este.
A minha boneca que me compensava de tanta coisa. Que me compensava, tal como pensei nessa altura, da maldade da Sarah, da doença do pai, do facto de já não ver o Logan há uma semana. Onde estava ele? Por que motivo nunca mais viera esperar-me para me levar a casa? Porque não aparecera a dizer que lamentava a morte da avó? Porque é que ele e os pais já não iam à igreja? Que espécie de dedicação era a dele agora que já me beijara?
Depois adivinhei. Os pais dele deviam saber da doença do pai, e não queriam que o seu único filho fosse às montanhas visitar escória como eu. Não era aconselhável, mesmo que eu não tivesse sífilis.
Afastei aqueles pensamentos. Era preferível pensar na boneca e na razão secreta pela qual a minha mãe quisera, com aquela idade, mandar fazer uma boneca parecida com ela.
Nada a não ser a morte nos afastaria da igreja e, orgulhosos, lá fomos, com os nossos velhos farrapos, os melhores que tínhamos, com a Sarah a comandar, agora que o pai tinha o camião e não nos viera buscar. Peguei na mão grande e ossuda do avô e arrastei-o, tal como fiz à "Nossa" Jane, que deu a outra mão ao Keith.
Na igreja, todas as cabeças se voltaram para olhar para nós, como se uma só família com tantos problemas fosse constituída por pecadores indignos.
Estavam a cantar quando entrámos, a cantar com as suas vozes gloriosas e trabalhadas, pois iam à igreja três vezes por semana e nós só íamos ao domingo.
Rochedo dos Tempos, chega-te a mim, Deixa-me esconder dentro de ti...
Esconder, como aquele termo era apropriado. Todos nós devíamos fugir e esconder-nos até que o pai se restabelecesse, e a Sarah voltasse a rir, e a "Nossa" Jane deixasse de chorar por uma avó que morrera e que já não a abraçava. Mas não havia sítio onde nos escondermos.
Depois, no dia seguinte, o Logan apareceu ao pé do meu cacifo, com um sorriso nos olhos mas sem dizer nada.
- Sentiste a minha falta na semana passada? Quis avisar-te que a minha avó estava doente e que nós tínhamos de ir visitá-la, mas não tive tempo antes de o avião partir.
Fitei-o com os olhos muito abertos e ansiosos.
- Como é que a tua avó está agora?
- Bem. Teve uma trombose sem importância, mas pareceu-me que já estava muito melhor quando nos viemos embora.
- Ainda bem - disse eu, com a voz entrecortada.
- O que disse eu de mal? Qualquer coisa foi, aposto! Heaven, não jurámos ser sempre sinceros um com o outro? Porque estás a chorar?
Baixei a cabeça e depois falei-lhe da avó, e ele dirigiu-me todas as palavras adequadas para me consolar. Chorei durante algum tempo com a cabeça no seu ombro e, com o seu braço por cima de mim, pusemo-nos a caminho de casa.
- E o que aconteceu ao bebé de que a tua madrasta estava à espera? - perguntou o Logan, satisfeito por perder de vista o tom e a Fanny que levavam a "Nossa" Jane e o Keith.
- Nasceu morto - respondi, hirta. - A avó morreu no mesmo dia... Acho que todos nós ficámos aparvalhados por perdermos duas pessoas de família, e no mesmo dia.
- Oh, Heaven, não admira que tivesses uma reacção tão estranha quando eu te disse que a minha avó recuperara. Desculpa, peço-te desculpa. Espero que, um dia, alguém me ensine quais as palavras certas para dizer num momento como este. Neste momento, não consigo... Excepto que sei que teria gostado da tua avó tanto como tu.
Sim, o Logan teria gostado da avó, mesmo que ela embaraçasse os pais dele. Tal como o avô os embaraçaria, se alguma vez...
No dia seguinte, Miss Deale pediu-me que ficasse na sala depois da aula.
- Toma tu conta da "Nossa" Jane e do Keith - segredei ao tom, antes de me dirigir à secretária dela.
Estava desejosa de chegar ao pé do Logan, e ansiosa por evitar uma professora que às vezes me fazia perguntas às quais eu não sabia se havia de responder.
Ela olhou para mim durante muito tempo, como se tivesse notado uma diferença no meu olhar, tal como o Logan. Eu sabia que estava com olheiras, sabia que estava a perder peso, mas que mais notava ela?
- Como é que vão as coisas agora? - perguntou ela, olhando-me bem nos olhos, como que para me impedir de mentir.
- Vão bem.
- Heaven, eu soube da morte da tua avó, e lamento que tenhas perdido uma pessoa de quem gostavas tanto. Vejo-te muitas vezes na igreja e portanto sei que tens a mesma fé que tinha a tua avó e que acreditas que todos temos uma alma que é eterna.
- Eu quero acreditar nisso... Quero...
- Toda a gente quer - respondeu ela com doçura, pousando a sua mão na minha.
Suspirei e fiz um esforço para não chorar. E sem querer falar de mais nem mostrar falta de sentido de lealdade familiar, fui obrigada a falar sem saber o que é que os outros já lhe tinham contado.
- A avó morreu, creio que com um ataque cardíaco disse eu, tentando evitar as lágrimas. - A Sarah teve um bebé que nasceu morto e que não tinha sexo, e o pai foi-se embora, mas para além disso, estamos todos bem.
- Sem sexo... Heaven, todos os bebés têm um sexo ou outro.
- Eu também pensava assim até ajudar este a nascer. Por favor, não diga isto a ninguém, porque a Sarah ficaria magoada se as outras pessoas soubessem... Mas este último bebé não tinha órgãos genitais.
Ela empalideceu.
- Oh... Desculpa a minha falta de tacto. Eu já ouvira uns boatos, mas tentei não lhes dar ouvidos. É claro que a Natureza às vezes cria excentricidades. Como todos os filhos do teu pai são tão bonitos, calculei que a tua mãe tivesse dado à luz outra criança perfeita.
- Miss Deale, é um milagre que não tenha ouvido falar a meu respeito. A Sarah não é minha mãe. O meu pai casou-se duas vezes. Eu sou filha do primeiro casamento.
- Eu sei - disse ela em voz baixa. - Já ouvi falar da primeira mulher do teu pai, de como era bela e de como era nova quando morreu. - Corou e sentiu-se embaraçada. Depois, começou a tirar uns fios invisíveis do seu fato caro de lã. - Calculo que gostes muito da tua madrasta e que gostes de fingir que ela é tua mãe.
- Antigamente, gostava - disse eu, a sorrir. - Agora tenho de ir a correr, senão o Logan vai para casa com outra rapariga. Obrigada, Miss Deale, por ser tão minha amiga; por nos acompanhar na escola; por contribuir para que o tom e eu sejamos bons. Ainda esta manhã, o tom e eu comentávamos que a escola seria uma maçada sem a nossa maravilhosa Miss Deale.
A gaguejar e a sorrir por entre as lágrimas, ela tocou-me na mão e esquivou-se.
- Não queiras ser mais uma daquelas raparigas que se casam cedo de mais - aconselhou.
- Não se preocupe que eu não perco de vista os meus objectivos! - disse eu a cantarolar, encaminhando-me para a porta. - Hei-de chegar aos trinta anos antes de entrar na cozinha de um homem para lhe fazer biscoitos e lavar a roupa... E de ter filhos dele uma vez por ano!
E saí da sala de aula a correr para o local onde o Logan devia estar à minha espera.
Estava um dia soalheiro e agradável, com nuvens brancas e gordas a deslizar na direcção de Londres, Paris e Roma. Avistei cinco ou seis rapazes que formavam um grupo muito cerrado e gritavam.
- Tu és um maricas da cidade! - exclamava um calmeirão chamado Randy Mark a um rapaz enxovalhado que me deixou sem respiração quando percebi que era o Logan.
Oh, finalmente eles tinham-no apanhado... E ele que dizia que não. Lá estava ele no chão, a lutar com outro rapaz da sua idade. O Logan já tinha uma manga da camisa rota, o maxilar vermelho e inchado e o cabelo caído na testa.
- - A Heaven Casteel é apenas mais uma prostituta em potência como a irmã... Mesmo que não nos permita certas coisas, permite-as a til.
- Isso é mentira! - rugiu o Logan, afogueado e tão furioso que parecia deitar fumo, no momento em que conseguiu agarrar numa das pernas de Randy e lha torceu sem dó nem piedade. - Retira todas as porcarias que disseste acerca da Heaven. Ela é a mais honrada e decente das raparigas que conheci em toda a minha vida!
- Porque tu não sabes distinguir as maçãs podres das sãs! - gritou outro rapaz.
Quem começara aquilo e o que haviam dito? Olhei à minha volta e vi uma das raparigas da minha aula que estava sempre a rir-se da minha roupa esfarrapada e que sorria com descaramento. Corri para junto do tom, que se preparava para entrar na luta.
- tom, porque não vais ajudar o Logan? - exclamei.
- Eu iria se isso não convencesse todos de que ele não sabe lutar. Heaven, o Logan tem de fazer isto sozinho, ou nunca mais se livrará da fama de precisar da minha ajuda.
- Mas os rapazes dos montes não fazem jogo limpo, bem sabes!
- Não interessa. Ele tem de fazê-lo à sua maneira, ou passará a ser apontado a dedo.
A Fanny andava aos saltos, terrivelmente excitada, como se o Logan estivesse a lutar pela sua honra, e não pela minha.
O Keith levou a "Nossa" Jane para os balouços e começou a empurrá-la para trás e para diante para ela não chorar ao ver que um dos seus amigos estava ferido.
Como o Keith era sensível, pensei, antes de olhar para os dois rapazes que rolavam no chão.
Era horrível estar ali a ver aqueles rapazes a atirarem-se ao Logan, uns atrás dos outros, sem lhe darem tempo para recobrar o fôlego, até que um outro rapaz saltou para o recinto e começou a distribuir socos. Nessa altura, o Logan já estava cheio de sangue, com a cara ferida e inchada, e o olho esquerdo quase fechado. Agarrei-me ao tom, quase a chorar.
- tom, tu tens de ir ajudá-lo agora!
- Não... Espera... Ele está a sair-se bem.
Como é que ele podia dizer aquilo se o Logan parecia estar dez vezes pior do que os outros?
- Eles estão a matá-lo, e tu dizes que ele está a sair-se bem!
- Eles não vão matá-lo, parva. Eles estão só a pô-lo à prova para verem o que é que ele vale.
- O QUE É QUE ELE VALE? - gritei, disposta a saltar eu própria lá para dentro e a ajudá-lo, mas o tom agarrou-me e segurou-me.
- Não te atrevas a envergonhá-lo oferecendo-lhe ajuda segredou ele, aflito. - Enquanto ele continuar a distribuir socos e a dar luta, eles respeitá-lo-ão. Se tu fores ajudá-lo, está tudo acabado para ele.
Enquanto eu estava ali a assistir, encolhendo-me sempre que o Logan era atingido, e gritando selvaticamente sempre que ele desferia um golpe, deitou-me uma olhadela à pressa, esquivou-se ao golpe seguinte e desferiu um rápido directo no queixo do adversário. Eu gritei para o encorajar, sentindo-me tão má como qualquer das raparigas que estavam ali.
Agora era o Logan que estava por cima e o rapaz que ficara por baixo é que gritava.
- Agora pede desculpa... Retira o que disseste da minha namorada! - ordenou o Logan.
- A tua namorada é uma Casteel... E nenhum deles presta para nada!
- Retira o que disseste, ou parto-te o braço.
O Logan torceu-lhe o braço. O rapaz que estava debaixo dele soltou um grito pedindo misericórdia.
- Eu retiro o que disse.
- Pede-lhe desculpa. Enquanto ela está aqui e de maneira que ela ouça.
- Tu não és como a tua irmã Fanny! - gritou o rapaz cujo braço estava prestes a partir-se. - Mas ela vai ser sem dúvida uma safada duma prostituta, toda a cidade o sabe!
A Fanny correu para ele e deu-lhe uma série de pontapés fortes enquanto todos os outros se riam. Só então é que o Logan soltou o braço do rapaz, voltando-o ao contrário antes de lhe dar um murro nos queixos. No mesmo instante, todos se calaram e ficaram a olhar para o rosto inconsciente do rapaz enquanto o Logan se levantava, escovava o fato e olhava triunfante para o tom e para mim.
É curioso como todos eles desapareceram, deixando-nos, a mim, ao tom e à Fanny ao pé uns dos outros, enquanto o Keith e a "Nossa" Jane continuavam a andar de balouço sem prestar atenção à luta. O tom correu a dar uma palmada nas costas do Logan.
- Foste formidável, pá, mesmo formidável! Atingiste aquele patife mesmo em cheio. Programaste o movimento da perna mesmo a tempo... Eu não teria feito melhor.
- Obrigado por me ensinares - disse o Logan em voz baixa, com um ar atordoado e terrivelmente cansado. - Agora, se não te importas, vou à escola lavar-me. Se entro em casa nesta figura, a minha mãe desmaia. - Sorriu-me e acrescentou: - Heaven, esperas por mim?
- Claro - respondi, olhando para todas as suas equimoses e para o olho negro. - Obrigada por defenderes a minha honra...
- Ora, ele defendeu todas as nossas honras, parva! gritou a Fanny.
Em seguida, precipitou-se nos braços do Logan e pespegou-lhe um beijo nos lábios inchados e ensanguentados.
Eu é que devia ter feito aquilo.
O Logan encaminhou-se para a escola enquanto o tom pegava na Fanny por um braço, chamava a "Nossa" Jane e o Keith e todos se dirigiram para o carreiro. Fiquei sozinha no pátio, à espera que o Logan saísse da sala de convívio dos rapazes.
No balouço em que a "Nossa" Jane andara, atirei-me bem para o alto, inclinando-me bastante para trás para que o meu cabelo esvoaçasse e quase arrastasse no chão. Não me sentia assim feliz desde que a avó morrera. Fechei os olhos e subi cada vez mais alto.
- Ouve... Tu que estás aí em cima no céu, desce para eu te levar a casa antes de anoitecer e podermos falar.
O Logan estava um pouco mais limpo, um pouco menos machucado e eu arrastei os pés no chão para fazer parar o balouço.
- Não estás ferido, pois não? - perguntei, preocupada.
- Não, não estou ferido - respondeu o Logan, que me espreitou pelo canto do olho e perguntou. - Importas-te, se eu estiver?
- Claro que me importo.
- Porquê?
- Bem... Não sei porquê, a não ser por me teres chamado namorada. Eu sou tua namorada, Logan?
- Se eu disse que sim, então é porque és. A menos que tenhas objecções a fazer.
Eu estava de pé e ele pegou-me na mão e puxou-me docemente para o carreiro que subia em espiral por ali acima.
Winnerrow tinha uma única rua principal, e todas as outras nasciam nela. Situada mesmo no centro da cidade, a escola ficava de costas para a cordilheira de montanhas. Não havia maneira de a cidade escapar aos Willies que a rodeavam.
- Não respondeste - insistiu o Logan depois de andarmos durante quinze minutos sem falar, só de mãos dadas e a olhar um para o outro.
- Onde foste no último fim-de-semana?
- Os meus pais queriam ver a faculdade para onde eu irei. Quis telefonar-te para te avisar, mas tu não tens telefone e eu não tive tempo de ir a tua casa.
Lá estava outra vez. Os pais dele não quiseram que ele se encontrasse comigo, de outro modo ele teria arranjado tempo. Voltei-me, pus-lhe os braços à volta da cintura e encostei a testa à sua camisa suja e rasgada.
- Sinto-me entusiasmada por ser a tua namorada, mas devo avisar-te que não tenciono casar-me senão quando tiver oportunidade de viver e de crescer à minha custa e de ser alguém. Quero que o meu nome signifique alguma coisa depois de eu morrer.
- À procura da imortalidade? - perguntou ele, arreliador, chegando-me mais para ele e aproximando a cara do meu cabelo.
- Mais ou menos. Sabes, Logan, um dia, um psiquiatra foi visitar a nossa aula e disse que havia três tipos de pessoas. Um é o daquelas que servem os outros. Outro é o daquelas que produzem as que servem os outros. O último é o daquelas que não ficam satisfeitas senão quando sobem à sua custa, não a servir os outros mas através dos seus méritos e talentos, produzindo, e não através dos filhos. Eu pertenço ao terceiro tipo. Neste mundo existe um espaço para mim e para os meus talentos inatos... E eu não o descobrirei se me casar nova.
Ele pigarreou.
- Heaven, não estás a ir depressa de mais? Eu não estou a pedir-te que sejas minha mulher, mas apenas minha namorada.
Eu recuei imediatamente.
- Então não queres mesmo casar comigo um dia? A mão dele agitou-se com desespero.
- Heaven, será possível prevermos o futuro e quem desejaremos quando tivermos vinte, vinte cinco ou trinta anos? Recebe o que eu te ofereço agora, e deixa que o futuro tome conta de si próprio.
- E o que me ofereces tu agora? - perguntei, desconfiada.
- Apenas o que eu sou, a minha amizade. Apenas o que eu sou, e o direito de te beijar de vez em quando, de te pegar na mão, de te afagar o cabelo e de te levar ao cinema, e de escutar os teus sonhos porque tu escutas os meus, e de ser parvo de vez em quando, de construir um passado que gostaremos de recordar... Mais nada.
Aquilo era o bastante.
De mãos dadas, continuámos a passear e foi agradável chegar à cabana ao crepúsculo, que favorecia a pequena habitação aninhada na encosta. O Logan só estava a ver bem de um olho, e eu sabia que ele não poderia aperceber-se verdadeiramente da inferioridade da nossa vida senão quando entrasse lá dentro.
Voltei-me para ele e envolvi-lhe a cara com as mãos.
- Logan, estaria certo, e não estaria muito parecido com o que a Fanny faz, se eu te beijasse só uma vez para fazer exactamente o que me apetece?
- Acho que conseguiria suportar uma coisa dessas.
Lentamente, os meus braços deslizaram à volta do pescoço dele. Que mau aspecto que tinha o olho dele agora que estávamos a uns centímetros de distância... Fechei os olhos, pus a boca a jeito e beijei aquele olho inchado, a face cortada e por fim os lábios. Dessa vez ele estava a tremer. E eu também.
Tive medo de dizer mais alguma coisa; tinha tanto medo que as realidades estragassem a doçura do que nos pertencia.
- Boa noite, Logan. Vemo-nos amanhã.
- Boa noite, Heaven - disse ele em voz baixa. - Este foi um grande dia, sem dúvida.
Naquela altura do dia a que a avó costumava chamar o crepúsculo, fiquei a olhar para o Logan até o perder de vista, até ele desaparecer na escuridão antes de dar meia volta e de entrar na cabana, o que degradou logo a minha elevação de espírito. A Sarah deixara de fazer qualquer esforço para manter a cabana limpa, ou mesmo arrumada. As refeições, que antes eram apropriadas, tinham-se transformado em acontecimentos ocasionais em que havia pão e molho, sem verduras nem legumes, e era raro comermos galinha ou presunto. As fatias de toucinho fumado eram uma recordação na qual era melhor nem pensar. A nossa horta lá atrás, onde a avó e eu passáramos tanto tempo a tirar ervas e a semear, estava votada ao desprezo. Os legumes maduros tinham apodrecido ou ficado na terra. No fumeiro, não havia carne de porco salgada nem presunto para dar gosto à sopa de feijões, de couves, de espinafres ou de nabos, agora que o pai já não vinha a casa. A "Nossa" Jane andava muito embirrante e recusava-se a comer ou vomitava o que comia, e o Keith estava constantemente a chorar porque nunca comia o suficiente, e a Fanny não fazia mais nada senão queixar-se.
- É a mim que compete fazer qualquer coisa! - gritei eu, andando às voltas. - Fanny, vai ao poço e enche o balde, e trá-lo cheio até cima, e não apenas com um resto de água, como é teu costume. tom, vai à horta e colhe seja o que for que nós possamos comer. "Nossa" Jane, pára com essa lamúria! Keith, entretém a "Nossa" Jane para ela se calar e eu conseguir pensar.
- Não me dês ordens! - gritou a Fanny. - Não sou obrigada a fazer o que tu me dizes! Lá porque um rapaz andou à luta por tua causa, isso não quer dizer que sejas a rainha da montanha!
- Sim, tens de obedecer à Heaven - disse o tom, vindo em meu auxílio, e enxotando a Fanny para a porta. - Vai à nascente e traze uma boa quantidade de água.
- Mas está escuro lá fora! - gemeu a Fanny. - Bem sabes que eu tenho medo do escuro!
- Está bem, eu vou buscar a água à nascente, tu vais apanhar os legumes e deixas-te de responder torto... Caso contrário, passarei eu a ser o rei da montanha e dou-te dez boas palmadas.
- Heaven - segredou o tom naquela noite, deitado na sua esteira, a olhar para mim, cheio de compaixão -, um dia, sinto-o nos ossos, tudo há-de correr bem para todos nós. A mãe voltará a ser o que era, e recomeçará a fazer boa comida. Limpará a casa e tu não terás tanto que fazer. O pai voltará para casa curado, e será melhor para nós do que até aqui. Nós cresceremos, acabaremos o liceu, iremos para a faculdade, e seremos tão espertos que faremos rios de dinheiro, e havemos de andar em grandes automóveis, viver em mansões, ter criados, e havemos de nos rir da vida dura que tivemos, sem desconfiar que tudo isto foi bom para nós. Isto obriga-nos a sermos determinados, espertos, crianças melhores do que aquelas que têm as coisas facilitadas... De qualquer modo, é o que Miss Deale diz. Muitas vezes, o melhor nasce do pior.
- Não tenhas pena de mim. Eu sei que isto há-de melhorar um dia.
E limpei umas quantas lágrimas.
Ele veio de gatas e deitou-se na esteira, a meu lado, e os seus braços jovens e fortes fizeram-me sentir bem, quente, em segurança.
- Eu posso ir procurar o pai e tu falas com a mãe.
- Mãe - disse eu na noite seguinte, na esperança de a animar com uma conversa ligeira, antes de passar a assuntos sérios -, ainda há poucas horas pensei que me tinha apaixonado.
- Bem parva és se o fizeres - resmungou a Sarah, olhando para o meu corpo, que estava sem dúvida a ganhar formas de mulher. - Sai desta montanha, vai para bem longe antes que algum homem te faça um filho - avisou ela. - Foge depressa e para bem longe antes que fiques como eu.
Desolada, abracei-me à Sarah.
- Mãe, não diga essas coisas. O pai há-de vir para casa dentro de pouco tempo e trará toda a comida de que precisamos. Ele aparece sempre em casa quando nós estamos mesmo esfomeados.
- Sim, lá isso aparece. - A expressão da Sarah toldou-se. - No momento exacto, o nosso querido Luke volta das putas e dos copos, e atira os sacos para cima da mesa como se nos trouxesse ouro puro. E é tudo o que ele faz por nós, não é verdade?
- Mãe...
- EU NÃO sou TUA MÃE! - gritou a Sarah, rubra e com um ar adoentado. - Nunca fui! Onde é que tens os miolos que julgas que tens? Não vês que não és parecida comigo?
Ela estava descalça, com as pernas afastadas, os longos cabelos ruivos num desalinho completo, por lavar, por pentear e por escovar desde que o bebé nascera morto, e não tomava banho há mais de um mês.
- Vou-me embora deste buraco e se tu tiveres miolos, vais logo a seguir.
- Mãe, por favor, não vá! - gritei, desesperada, tentando pegar-lhe nas mãos. - Apesar de não ser a minha verdadeira mãe, eu gosto de si, a sério! Sempre gostei. Por favor, não se vá embora e não nos deixe sozinhos! Como é que poderemos ir para a escola e deixar o avô? Ele não anda tão bem como quando a avó era viva. Já não consegue cortar lenha. Mal pode trabalhar. Por favor, mãe.
- O tom pode cortar a lenha - disse ela com uma calma imperturbável, como se estivesse resolvida a partir, independentemente do que nos acontecesse.
- Mas o tom tem de ir para a escola e é precisa mais do que uma pessoa para cortar lenha e aparas que cheguem para todo o Inverno, e o pai foi-se embora.
- Tu hás-de arranjar-te. Não foi sempre assim?
- Mãe, não pode ir-se embora assim sem mais nem menos!
- Eu posso fazer o que bem me apetecer... Para o Luke, chega.
A Fanny ouviu a conversa e veio a correr.
- Mãe, leve-me consigo, por favor, por favor!
A Sarah enxotou a Fanny, e ficou a olhar para nós com uma indiferença tranquila. Quem era aquela mulher com cara de morta, que não queria saber de nós? Não era a mãe que eu sempre conhecera.
- Boa noite - disse ela para a cortina que fazia as vezes de porta do quarto. - O vosso pai virá quando precisarem dele. Não é sempre assim?
Talvez fosse a fruta no meio da mesa que me fez cócegas no nariz e me acordou.
Olhem para toda aquela comida empilhada ali em cima. De onde veio ela, se ontem à noite o nosso armário estava vazio? Peguei numa maçã, dei-lhe uma dentada e fui chamar a Sarah para lhe dizer que o pai viera a casa de noite e nos trouxera de comer. À porta, arredando a cortina fina, fiquei gelada, com os dentes enterrados na maçã, de olhos muito abertos e escandalizados... Não havia sinais da Sarah. Apenas uma cama amarrotada e um bilhete em cima do colchão.
Durante a noite, enquanto dormíamos, a Sarah devia ter-se esgueirado às escuras e deixara um bilhete que nós deveríamos entregar ao pai quando ele voltasse... Se ele voltasse.
Abanei o tom para o acordar e mostrei-lhe o bilhete. Ele sentou-se, esfregou os olhos e leu-o três vezes até compreender o que dizia. Engasgou-se e fez um esforço para não chorar. Ele e eu tínhamos agora catorze anos. Os dias de aniversário sucediam-se sem festas ou qualquer tipo de festejos que assinalassem a nossa idade.
- O que estão vocês a fazer acordados tão cedo? - resmungou a Fanny, macambúzia como sempre que acordava e lhe doíam os ossos de dormir nas tábuas duras do chão e não ter um colchão que lhe amparasse o corpo. - Não me cheira a biscoitos frescos, nem a toucinho fumado a fritar... E também não vejo a banha na frigideira.
- A mãe foi-se embora - disse eu, a medo.
- A mãe não faria uma coisa dessas - retorquiu a Fanny, sentando-se e olhando à sua volta. - Ela está na casinha de fora.
- A mãe não deixa bilhetes escritos ao pai quando faz uma coisa dessas - concluiu o tom. - Todas as coisas dela desapareceram... O pouco que tinha.
- Mas a comida, a comida, eu estou a ver comida em cima da mesa! - guinchou a Fanny, que se pôs em pé de um salto e agarrou numa banana. - Aposto que o pai voltou e trouxe isto tudo, e que ele e a mãe foram caçar para qualquer lado.
Depois de pensar melhor naquilo, pareceu-me muito provável que o pai tivesse entrado na cabana à noite, deixasse a comida e em seguida se fosse embora sem dar uma palavra a ninguém; e talvez o facto de a Sarah ter encontrado a comida ali, sabendo que o pai não se incomodara a ficar nem sequer a cumprimentá-la lhe tivesse fornecido a razão final para ela partir, pensando que agora nós tínhamos comida que chegasse até ele voltar.
Foi estranha a maneira como a "Nossa" Jane e o Keith reagiram à ausência da Sarah, como se vivessem sempre em terreno instável e a Sarah nunca lhes tivesse dado nem afecto nem atenção suficientes para eles sentirem a diferença. Ambos vieram a correr ao meu encontro, a olhar para mim.
- Hev...lee, tu não vais para lado nenhum, pois não? exclamou a "Nossa" Jane.
Quanto receio havia nos seus grandes olhos rasos de água.
Como era bela aquela carinha de boneca que olhava para a minha. Afaguei-lhe o cabelo louro com tons acobreados.
- Não, querida, eu fico. Keith, vem cá para eu te dar um grande abraço. Hoje, vamos comer maçãs fritas e salsichas ao pequeno-almoço, com os nossos biscoitos...
E, vamos ver, o pai trouxe-nos margarina. Um dia destes, havemos de comer manteiga a sério, não é verdade, tom?
- Bem, espero que sim - disse ele, pegando numa caixa de óleo. - Mas já me sinto contente por termos isto. Achas que o pai veio de noite, como o Pai Natal, e que
deixou todas estas coisas?
- Quem mais havia de ser?
Ele concordou. Por muito mau e detestável que o pai fosse, esforçava-se por nos alimentar e aquecer o mais possível.
Agora a vida resumia-se às coisas básicas. A Sarah fugira e a avó morrera.
O avô não conseguia fazer mais nada senão estar sentado, de olhos em alvo, e esculpir. Eu aproximei-me da cadeira de balouço onde ele dormira toda a noite, curvado e com um ar infeliz, peguei-lhe na mão e ajudei-o a levantar-se.
- tom, vê lá se o avô vai à casinha de fora enquanto eu arranjo o pequeno-almoço, e depois de ele comer dá-lhe mais madeira para ele esculpir, pois não suporto vê-lo sem fazer nada.
Apostava que o pequeno-almoço naquele dia tão duro tornaria as coisas mais fáceis, pois tínhamos salsichas, maçãs fritas e batatas para comer, além de biscoitos com aquilo que nos sabia tão bem como a manteiga.
- Quem me dera que tivéssemos uma vaca - disse o tom, preocupado com o facto de nenhum de nós beber leite.
- Quem me dera que o pai não a tivesse perdido ao jogo.
- Podias roubar uma - foi o contributo da Fanny, que sabia tudo acerca de roubos. - O Skeeter Burl tem uma que era nossa. O pai não tem o direito de perder ao jogo a nossa vaca, portanto vai roubá-la, tom.
Eu senti-me oca por dentro, atormentada pelas preocupações que eram demasiado pesadas para a minha idade; quando pensava nisso mais a fundo, lembrava-me que havia muitas raparigas da minha idade que já tinham uma família. Mesmo assim, essas raparigas não aspiravam a frequentar a faculdade como eu. Sentiam-se felizes com a sua vida de esposas e de mães, e viviam em barracas, e se os seus homens lhes batessem uma vez por semana, elas achavam que eles estavam no seu direito.
- Heaven, não vens? - perguntou o tom, quando se preparava para ir para a escola.
Eu olhei de novo para o avô e para a "Nossa" Jane que se sentia mal. Mal tocara no melhor pequeno-almoço que tínhamos há várias semanas.
- Vai tu, tom, com a Fanny e o Keith. Não posso deixar a "Nossa" Jane quando ela não se sente bem. E quero ver se o avô não passa o dia sentado, a balouçar-se na cadeira, e se esquece de andar.
- Ele está bem. Pode tomar conta da "Nossa" Jane. Eu sabia que ele, apesar de dizer aquilo, não acreditava que fosse assim; corou, baixou a cabeça e pareceu-me tão infeliz que me apeteceu desatar a chorar outra vez.
- Daqui a uns dias, todos nos habituaremos, tom. A vida continua, vais ver.
- Eu fico em casa - ofereceu-se a Fanny. - E tomo conta da "Nossa" Jane e do avô.
- Uma solução perfeita - concordou o tom, alegremente. - A Fanny nunca acabará o liceu. Ela já tem idade suficiente para fazer coisas simples.
- Está bem - disse eu para pô-la à prova. - Fanny, primeiro, tens de dar um banho frio à "Nossa" Jane. Tens de lhe dar oito copos de água por dia e fazer-lhe a comida, e levar o avô à casinha de fora, e fazeres o possível para manteres esta casa limpa e arrumada.
- vou para a escola - respondeu a Fanny. - Não sou escrava do avô nem mãe da "Nossa" Jane. vou ter com os rapazes.
Eu já devia saber que era assim.
com relutância, o tom voltou-se para a porta.
- O que digo a Miss Deale?
- Não lhe digas que a Sarah fugiu e nos deixou! - disparei, com veemência. - Podes dizer que eu fiquei em casa a ajudar porque o avô se sente mal e a "Nossa" Jane está doente. Não tens mais nada a dizer-lhe, percebes?
- Mas ela podia ajudar.
- Como?
- Não sei como, mas aposto que ela se lembraria de qualquer coisa.
- Thomas Luke, se esperas atingir os teus objectivos na vida, não podes andar por aí a pedir. Transpões todos os obstáculos e descobres as tuas próprias soluções. Juntos, tu e eu cuidaremos desta família, e descobriremos uma maneira de ela se manter saudável. Dize o que te apetecer para que o Logan e Miss Deale não saibam que a mãe saiu de casa... Porque ela pode voltar a qualquer momento, assim que se aperceber de que agiu mal. E nós não queríamos envergonhá-la, não é verdade?
- Não - respondeu ele, a custo, mostrando-se aliviado.
- Ela bem podia voltar quando pensar melhor e chegar à conclusão de que isto não se faz.
tom pegou na mão direita do Keith, e a Fanny pegou-lhe na mão esquerda, e lá foram para a escola, deixando-me de pé no alpendre, com a "Nossa" Jane ao colo. Esta choramingou ao ver que o Keith se arrastava para a escola, enquanto que eu estava ansiosa por ir com eles.
A primeira coisa que fiz depois de dar banho à "Nossa" Jane e de a estender na grande cama de latão foi dar ao avô as suas facas de esculpir e os seus pedaços de madeira de primeira qualidade.
- Faça uma coisa de que a avó gostasse; por exemplo uma corça com uns olhos grandes e tristes. A avó gostava especialmente de corças... Não gostava?
O avô pestanejou uma ou duas vezes, olhou para a cadeira de balouço vazia, que se recusava a usar apesar de ser a melhor, e duas lágrimas grossas rolaram-lhe pelas faces engelhadas.
- Isto é para a Annie - sussurrou ao pegar na sua faca favorita.
Voltei as atenções para a "Nossa" Jane, e apliquei-lhe um remédio para a febre, como a avó teria feito, com ervas medicinais, e depois atirei-me ao trabalho, para fazer tudo o que a Sarah se recusara a fazer antes de nos voltar as costas.
O tom pareceu-me acabrunhado ao voltar da escola, quando foi ver se a mãe voltara e não a encontrou.
- Acho que chegou o momento de eu ser o homem da família - disse ele, como que subjugado por tudo aquilo que teria de fazer. - Não virá dinheiro se ninguém for lá para fora ganhá-lo. Os trabalhos de jardinagem são difíceis de arranjar quando não temos o equipamento adequado. As lojas não dão comida e a que temos já não dura muito tempo. Heavenly, tu não podes ir para a escola com os dedos de fora.
- Eu não posso ir para a escola, com sapatos ou sem eles - disse eu, indiferente, mexendo os dedos dos pés, que me saíam fora dos sapatos que eu tivera de cortar por estarem muito curtos. - Bem sabes que não posso deixar o avô sozinho e a "Nossa" Jane não se sente bem para voltar à escola. tom, se ao menos tivéssemos dinheiro para a levarmos ao médico...
- Os médicos não podem ajudá-la no que ela tem - disse o avô, de cabeça baixa. - Há qualquer coisa dentro da "Nossa" Jane que não funciona bem, e não há médico nenhum que lhe possa dar aquilo de que ela precisa.
- Mas como é que sabe, avô? - perguntei eu, com ar de desafio.
- A Annie teve um bebé, em tempos, que era assim como a "Nossa" Jane. Eles meteram-no no hospital. Isso custou-nos, a mim e à Annie, todas as nossas economias. E não lhe fez nada. Foi o filho mais meigo que eu tive e morreu num domingo de Páscoa. Eu disse para mim próprio que ele parecia Cristo na cruz, bom de mais e meigo de mais para viver neste velho mundo ruim.
- Lá estava o avô a falar como a avó, ele que quase nem falava quando a avó era viva.
- Avô, não diga essas coisas!
- Não, avô - disse o tom. apressando-se a dar-me a mão. - Os médicos podem impedir as pessoas de morrerem. Os medicamentos são cada vez melhores de ano para ano. Não é obrigatório que o que matou o seu filho mate a "Nossa" Jane.
O tom fitou-me com os olhos abertos e assustados quando nos preparávamos para ir para a cama, depois de mais uma refeição de batatas fritas, salsichas, biscoitos e molho, e de maçãs como sobremesa. Todas as energias se lhe esgotavam através dos olhos.
- O que havemos de fazer, Heavenly?
- Não te preocupes, tom. Fanny, Keith e "Nossa" Jane, vocês vão para a escola. Eu fico em casa a tomar conta do avô, a lavar a roupa e a fazer a comida - concluí, com um ar de desafio.
- Mas tu é que gostas da escola e não a Fanny.
- Isso não interessa. A Fanny não é suficientemente responsável para ficar em casa a tomar conta das coisas.
- Ela faz isso de propósito - disse o tom, com as lágrimas nos olhos. - Heavenly, digas o que disseres, eu vou. contar tudo a Miss Deale. Talvez ela tenha alguma ideia que nos possa ajudar.
- Não! Não podes fazer isso. Nós temos o nosso orgulho, tom, já que não temos mais nada. Deixa que tenhamos qualquer coisa que possamos acalentar.
O orgulho era importante para nós dois. Talvez porque implicava uma certa liberdade, qualquer coisa que nos fazia sentirmo-nos importantes. Nós, tom e eu, tínhamos de provar ao mundo e também a nós próprios que éramos capazes. A Fanny não estava incluída no nosso pacto. A Fanny já provara que não era digna da nossa confiança.
FAZENDO PELA VIDA
Todos os dias o tom vinha a correr para casa, para me ajudar a lavar a roupa, a esfregar o chão e a tomar conta da "Nossa" Jane; cortava a lenha, tinha sempre de ir cortar lenha. Às vezes, corríamos todos como loucos, a tentar apanhar os porcos que se tinham escapado da nossa cerca frágil e as nossas galinhas que foram devoradas uma a uma por linces e raposas, ou roubadas por vagabundos.
- Hoje o Logan perguntou por mim? - quis eu saber, ao fim de três dias de ausência à escola.
- Claro que perguntou. Veio ter comigo depois das aulas e quis saber onde te estavas. Como é que estavas. E porque não tinhas ido à escola. Eu disse-lhe que a Sarah continua doente, a "Nossa" Jane também e que te tiveste de ficar em casa a tratar de todos. Bolas, nunca vi ninguém tão triste como ele.
Senti-me feliz por saber que o Logan se preocupava mesmo comigo e, ao mesmo tempo, zangada por estar tão envolvida nos nossos problemas. com um pai que tinha sífilis, com uma madrasta que fugira às suas responsabilidades. Oh, a vida não era justa!
Estava zangada com o mundo e acima de tudo com o pai, por ter sido ele a começar tudo aquilo. E o que fiz foi embirrar com a pessoa de quem mais gostava.
- Deixa-te de dizer te em vez de tu e de íi! tom sorriu.
- Eu gosto de ti, Heavenly. E agora, disse bem? Aprecio o que tu fazes para transformares isto numa família... Disse bem? Ainda bem que tu és o que és, diferente da Fanny.
Eu desatei a soluçar, voltei-me e caí-lhe nos braços, a pensar que ele era o melhor que eu tinha na minha vida... E como era possível dizer-lhe agora que eu não era formidável e especial mas sim uma pessoa cínica e cheia de ódio, que detestava a minha vida e o homem que a transformara naquilo que ela era?
Duas semanas depois de a Sarah ter saído de casa, espreitei lá para fora por uma janela da frente e avistei o tom que vinha para casa, com mais livros e o Logan a seu lado! O tom quebrara a sua palavra e contara ao Logan a nossa situação desesperada!
No mesmo instante, pus-me na defensiva e corri para a porta, bloqueando a entrada do tom e do Logan.
- Deixa-nos entrar, Heavenly - ordenou o tom. - Está muito frio cá fora para tu estares aí especada como se fosses uma parede.
- DEIXA-OS ENTRAR! - gritou a Fanny. - DEIXA-OS ENTRAR PARA SE AQUECEREM!
- Tu não queres entrar aqui - disse eu ao Logan com um ar hostil. - Os rapazes da cidade ficariam transidos se entrassem aqui.
Reparei que ele cerrou os lábios, espantado; depois disse, com calma e determinação:
- Heaven, afasta-te. vou entrar. vou descobrir porque é que tu nunca mais foste à escola... E o tom tem razão, está frio lá fora. Tenho os pés que parecem gelo.
Mesmo assim, não me mexi. Atrás do Logan, o tom fez-me sinal para eu não fazer figura de parva e deixar o Logan entrar.
- Heavenly... Gastas a nossa lenha toda se deixares essa porta aberta.
Comecei a empurrar a porta para a fechar, mas o Logan obrigou-me a recuar e entrou com o tom, fechando a porta. Custou-lhes a fechá-la, porque o vento era muito forte. Tínhamos uma tábua a servir de fechadura, que descaía e segurava a porta como se fosse uma tranca.
com a cara vermelha do frio, o Logan voltou-se para mim e pediu desculpa.
- Desculpa eu ter feito aquilo, mas já não acredito no tom quando ele diz que a "Nossa" Jane está doente e que a Sarah não se sente bem. Quero saber o que se está a passar.
Ele estava de óculos escuros. Porquê, num dia cinzento de Inverno, quando o sol estava tão fraco e mal se via? Trazia um casaco quente que lhe chegava às ancas, enquanto o pobre do tom vestia apenas umas camisolas usadas, umas por cima das outras, já gastas, mas que pelo menos o aqueciam da cintura para cima.
Afastei-me, resignada.
- Entre, Sir Logan, e que o que vê lhe dê prazer - disse eu, desolada.
Ele avançou, voltou a cabeça para olhar à sua volta, enquanto o tom correu para o fogão, para aquecer as mãos e os pés antes mesmo de despir as camisolas. A Fanny, agachada junto do fogão, não se dispôs a ceder o lugar ou a esteira, embora começasse a pentear-se muito à pressa, adejasse as longas pestanas negras e sorrisse para o Logan com um ar convidativo.
- Vem sentar-te aqui ao pé de mim, Logan. O tom ignorou-a, tal como o Logan.
- Bem, isto é a nossa casa, Logan.
Como é óbvio, Logan não soube o que dizer; por isso não disse nada.
- Não precisas de usar óculos escuros aqui dentro, Logan - disse eu, pegando na "Nossa" Jane ao colo.
Depois sentei-me a embalá-la na velha cadeira de balouço da avó. Assim que o fiz, o ranger do soalho encorajou o avô -a retomar o seu trabalho e a começar a esculpir outro coelho. Via muito bem ao perto, mas a dois metros de distância não via grande coisa. Suponho que lhe devo ter parecido a avó quando era nova e tinha uma criança no regaço. O Keith veio empoleirar-se no meu colo, embora já estivesse muito crescido e pesado para esse tipo de mimo. Apesar disso, nós os três aquecíamo-nos uns aos outros.
Era muito embaraçoso para mim que o Logan estivesse ali, na fase mais pobre da nossa vida. Assoei a "Nossa" Jane, cujo nariz estava sempre a pingar, e tentei pôr-lhe em ordem os cabelos desgrenhados. Não reparei no que o Logan estava a fazer senão quando ele se sentou à mesa e se voltou para mim.
- É um caminho longo e frio até cá acima, Heaven. O mínimo que podias fazer era receberes-me bem - disse ele, num tom reprovador. - Onde está a Sarah? Quero dizer, a tua mãe?
- Nós não temos casa de banho cá dentro - respondi com rudeza. - Ela está lá fora.
- Oooh... - A voz dele era fraca, e corou com a minha informação tão directa. - Onde está o teu pai?
- A trabalhar num lado qualquer.
- Quem me dera ter conhecido a tua avó. Ainda hoje tenho pena.
E eu também.
E o avô, que parou de esculpir e levantou a cabeça, abalado por uma sombra de tristeza que dissipara o contentamento provocado por qualquer imagem do domínio das recordações.
- tom, eu tenho as mãos ocupadas. Não te importas de pôr água a aquecer para oferecermos chá ou cacau ao Logan?
O tom olhou para mim, espantado, e abriu as mãos. Ele sabia que nós não tínhamos chá nem cacau em casa.
Mesmo assim, vasculhou no armário quase vazio e aproximou-se trazendo um pouco do sassafrás da avó e deitando um olhar preocupado ao Logan antes de pôr a água a aquecer.
- Não, obrigado, tom e Heaven. Tenho pouco tempo e um longo caminho a percorrer até Winnerrow. Quero lá chegar antes de anoitecer e não conheço o caminho tão bem como vocês, pois sou um rapaz da cidade.
O Logan sorriu-me e depois inclinou-se para a frente.
- Heaven, dize-me como estás. com certeza que a tua mãe pode olhar pela "Nossa" Jane quando ela está doente. E a Fanny deixou de ir à escola... Porquê?
- Oh, sentiste a minha falta, hem? - disse a Fanny, mostrando-se mais atenta. - Mas que amável. E quem mais é que sentiu a minha falta? Alguém perguntou onde é que eu estou?
- Claro - respondeu o Logan, de improviso, sem tirar os olhos de mim. - Todos nós temos perguntado por que razão é que as duas raparigas mais bonitas da escola não têm aparecido.
O que podia eu dizer para embelezar vidas fustigadas pela fome e pelo frio? Bastava-lhe olhar à sua volta para ver a pobreza em que vivíamos. Porque se mantinha virado para mim, recusando-se a ver uma divisão desprovida de conforto, excepto aquelas esteiras de palha enroladas que estendíamos no chão?
- Porque estás de óculos escuros, Logan? Ele empertigou-se.
- Acho que nunca te disse que uso lentes de contacto. Durante a última briga que tive, atingiram-me num olho e a lente cortou-me a íris, e agora o oftalmologista não quer que a luz forte me incida nos olhos, e quando nós favorecemos um olho, temos também de favorecer o outro, ou usar uma pala. Eu prefiro usar óculos escuros.
- Nesse caso mal consegues ver, não é verdade? Ele corou.
- Não vejo grande coisa, para ser franco. Vejo-te como se fosses um vulto... E parece-me que tens a "Nossa" Jane e o Keith ao colo.
- Logan, ela não é a "Nossa" Jane para ti... Só para nós - disse a Fanny. - Chama-lhe só Jane.
- Eu quero tratá-la da mesma maneira que a Heaven.
- Consegues ver-me? - perguntou a Fanny, levantando-se e, ao fazê-lo, reparei que trazia apenas as cuecas com vários xailes velhos da avó por cima dos ombros... E por baixo daqueles xailes estava nua da cintura para cima. Os seios minúsculos começavam a empinar-se como se fossem maçãs duras e verdes. Descuidada, Fanny deixou descair o xaile ao levantar-se e saracoteou-se, descalça. Oh, que vergonha ela estar a fazer aquilo, na presença do Logan... E do tom!
- Vai-te vestir - ordenou o tom, muito corado. - Ainda não tens nada em que alguém repare.
- Mas hei-de ter! - gritou a Fanny. - E hão-de ser maiores e melhores do que a Heaven alguma vez terá.
O Logan levantou-se para se ir embora. Esperou pelo tom como se aguardasse que este o ajudasse a encontrar a porta... Que estava mesmo em frente dele.
- Já que não consegues falar comigo depois de eu percorrer este caminho todo, Heaven, não voltarei cá. Julguei que sabias que eu sou teu amigo. Vim provar-te que me interesso por ti e que me preocupo quando não te vejo há muito tempo. Miss Deale está apoquentada. Dize-me só uma coisa antes de eu sair... Estás bem? Precisas de alguma coisa? - Ele ficou à espera da minha resposta e, como eu não lha dei, perguntou: - Tens comida que chegue? Madeira? Carvão?
- Nós não temos nada que chegue! - berrou a Fanny, com espalhafato.
O Logan não tirou os olhos de mim e nem olhou para a Fanny, que se tapara outra vez e se enroscara como se estivesse quase a dormir.
- O que te leva a pensar que nós não temos o suficiente para comer? - perguntei, com um ar altivo.
- Só quero ter a certeza.
- Nós estamos bem, Logan, nós estamos bem. E é claro que temos madeira e carvão...
- NÃO TEMOS NADA! - gritou a Fanny. - Nós nunca tivemos carvão! Quem nos dera! Ouvi dizer que o carvão faz mais calor do que a madeira!
Eu apressei-me a dizer:
- Como sabes, Logan, a Fanny é gananciosa e quer tudo; portanto, ignora tudo o que ela diz. Nós estamos bem, como podes ver. Espero que melhores depressa da tua ferida na íris e que possas tirar esses óculos escuros.
Nessa altura, ele mostrou-se ofendido e aproximou-se do tom, que saiu primeiro.
- Adeus, Mister Casteel - disse ele ao avô. - Até breve, Keith e "Nossa" Jane... É melhor não te despires, Fanny.
Voltou-se para mim uma última vez, estendendo o braço como se quisesse tocar-me, ou talvez puxar-me para si. Eu sentei-me, determinada a não lhe conspurcar a vida com os problemas dos Casteel.
- Espero que voltes depressa para a escola, Heaven. E disse adeus à Fanny, ao Keith e à "Nossa" Jane, acrescentando: - Se alguma vez precisares de qualquer coisa, ou quiseres qualquer coisa, lembra-te de que o meu pai tem uma loja cheia de coisas, e o que não tivermos cá, podemos mandar vir.
- És muito amável - foi a minha resposta sarcástica, que não demonstrava gratidão. - Isso deve fazer-te sentir inchado e rico... É para admirar que te preocupes sequer com uma pacóvia das montanhas como eu.
Tive pena dele ao vê-lo ali à porta, a olhar para mim, sem saber o que dizer.
- Adeus, Heaven. Arrisquei a vista para vir ver-te, pois não vim cá acima propriamente para ver o sol a bater na neve... Mas vim. Agora, lamento tê-lo feito. Desejo-te sorte, mas não voltarei cá só para ser insultado.
"Ooooh, não te vás embora ofendido, Logan... Por favor", pensei eu, mas não pronunciei estas palavras. Limitei-me a balouçar-me na cadeira e deixei que ele batesse com a porta, com o tom atrás, e avistei-o no bosque, onde poderia perder-se, e depois lá em baixo, no troço mais seguro do carreiro que ia dar ao vale, onde nunca se perderia, mesmo com aqueles malditos óculos.
- Bolas, tu foste horrível para o Logan - disse o tom, quando voltou. - Palavra que tive pena dele, a subir isto tudo, quase cego, para ver uma rapariga cheia de ódio que o tratou mal e lhe mentiu... Tu bem sabes que nós não temos nada com fartura. E ele podia dar uma ajuda.
- tom, queres que alguém saiba que o pai tem... Tu sabes.
- Não... Mas temos de lhe falar do pai?
- Teríamos de lhe dizer porque é que ele não está cá, não é verdade? Aposto que o Logan julga que ele continua a ir e a vir e que lá nos vai dando o que é preciso.
- Sim, acho que tens razão - concordou o tom, que resvalava para o dialecto quando se sentia desalentado e com fome. - vou outra vez pescar e pôr armadilhas, portanto faz figas.
E, aquecendo à pressa as mãos e os pés, voltou a sair da cabana à procura de comida. Nunca conseguíamos conservar as galinhas que estavam a pôr ovos porque a panela exigia a sua morte prematura.
A vida não só se tornou mil vezes mais difícil depois de a Sarah sair de casa, como se tornou também muitíssimo complicada. O pai não vinha a casa. Isso significava que não havia dinheiro para comprar aquilo de que precisávamos para irmos vivendo. Tínhamos tão pouco querosene que éramos obrigados a usar velas.
As horas passavam como se fossem pedaços de eternidade, à espera que a vida começasse quando o tom voltava para casa com a Fanny e o Keith, e às vezes com a "Nossa" Jane. Eu quis convencer-me de que o assunto do avô não tinha importância e que poderia ir à escola quando a "Nossa" Jane se restabelecesse porque ele tomaria muito bem conta dela. Mas bastava-me olhar para ele e ver como se sentia perdido sem a avó.
- Vai - disse o avô um dia quando eu acabei de arrumar a cabana mas estava a pensar no que haveríamos de comer naquela noite. O dia de Acção de Graças estava a chegar. - Eu não preciso de ti. Posso arranjar-me sozinho.
Talvez assim fosse, mas no dia seguinte a "Nossa" Jane constipou-se outra vez.
- Tenho fome. Quero comer - choramingou ela, correndo a agarrar-se ao meu vestido de trazer por casa.
- Claro, querida. Vai para a cama descansar que daqui a pouco a ceia estará pronta.
A facilidade, a ligeireza com que eu disse aquilo, quando não havia nada em casa para comer senão biscoitos retardados que tinham sobrado do pequeno-almoço e meia chávena de farinha. Oh, porque é que eu não racionara a comida que tínhamos quando a Sarah saíra de casa? Porque me convencera eu de que o pai voltaria sempre, como que por magia, quando os nossos mantimentos se esgotavam? Onde estava ele afinal?
- tom, é possível pescar depois do anoitecer? - perguntei.
Ele levantou a cabeça do livro que estava a ler, admirado.
- Queres que eu saia à noite para ir pescar?
- Também podias verificar as armadilhas dos coelhos.
- Já as verifiquei quando vinha da escola. Nada. E à noite, como queres que eu descubra o que escondi tão bem?
- É por isso que tens de ir pescar agora - disse-lhe eu ao ouvido. - Senão, não haverá nada para comer além de dois biscoitos, e terei muita sorte se conseguir raspar a lata da banha para fazer o molho.
Falei em voz baixa porque, se a "Nossa" Jane ou o Keith ouvissem a conversa, levantar-se-ia um tal clamor que nenhum de nós conseguiria suportá-lo. O estômago da "Nossa" Jane precisava de ser alimentado a tempo ou começaria a doer. As dores de barriga faziam-na chorar, e quando ela chorava era impossível fazer fosse o que fosse.
O tom levantou-se e tirou uma espingarda da parede. Verificou-a para ver se estava pronta para a caça grossa.
- A época da caça ao veado abriu há pouco tempo, portanto talvez eu consiga acertar nalguma coisa... Numa corça.
- Queres dizer que não temos nada para comer se tu não caçares um veado? - gritou a Fanny. - Meu Deus, morreremos de fome se estivermos dependentes da tua pontaria!
O tom encaminhou-se para a porta, deitou à Fanny um longo olhar de desprezo e depois sorriu-me.
- Vá, vai preparar o teu molho... E dentro de meia hora, eu estarei de volta com a carne... Se tiver sorte.
- E se não tiveres?
- Não volto para casa sem trazer alguma coisa.
- Bem, aposto que nunca mais veremos o tom - disse a Fanny, voltando-se e mirando-se num espelho pequeno e barato.
O tom saiu e bateu com a porta.
A pesca e a caça faziam agora parte da nossa rotina diária. Durante o dia, uma parte do meu tempo era passada ao ar livre, a pôr armadilhas e a enfiar o isco nos anzóis para pescar à linha. O tom construía as armadilhas para apanhar coelhos e esquilos. Já tínhamos andado à procura de cogumelos que a avó nos ensinara a distinguir dos venenosos. Tínhamos apanhado amoras até ficarmos com as mãos a sangrar por causa das silvas, procurado feijões e ervilhas nos bosques e escavado a terra em busca dos nabos que havia quase a chegar a Winnerrow. Roubámos espinafres, alfaces, couves e outras coisas das hortas traseiras das casas de Winnerrow. Quando chegou o frio característico do Inverno, as silvas deixaram de dar fruto. As ervilhas e os feijões secaram.
Os coelhos e os esquilos desapareceram nos seus locais de hibernação ocultos e não eram atraídos para as nossas armadilhas e caixotes, agora que não tínhamos
isco decente. E os cogumelos gostavam tanto como nós das noites geladas de Inverno. E era por isso que a nossa despensa estava reduzida quase a zero.
- Heaven, cozinha o que puderes - queixou-se a Fanny. - Não podemos passar a noite inteira aqui sentados, à espera que o tom volte sem nada nas mãos. Tu tens feijões e ervilhas escondidos em qualquer lado, eu sei que tens.
- Fanny, se tu fizesses qualquer coisa para ajudar, de vez em quando, eu teria um fornecimento secreto de feijões e de ervilhas... Mas não tenho nada senão uns restos de banha e dois biscoitos ressequidos.
Disse tudo isto em voz baixa para os ouvidos atentos da "Nossa" Jane e do Keith não ouvirem.
Por uma vez, o avô arrebitou as orelhas. Levantou o pescoço e olhou na minha direcção.
- Há batatas semeadas no chão do fumeiro.
- Gastei-as todas na semana passada, avô. A "Nossa" Jane soltou um grito terrível.
- Tenho de comer! - uivou ela. - Dói-me! A barriga dói-me tanto... Hev... lee, quando é que comemos?
- Agora - disse eu, correndo a pegar-lhe ao colo e a sentá-la à mesa, numa cadeira alteada por dois toros de madeira colocados no assento. Beijei-lhe a parte de trás do pescoço magro e enfiei-lhe os dedos no cabelo macio. - Anda, Keith. Esta noite, tu e a "Nossa" Jane podem ser os primeiros a comer.
- O que queres dizer com isso de serem eles os primeiros a comer? E eu? - gritou a Fanny. - Eu pertenço a esta família tal como eles!
- Fanny, tu podes esperar que o tom volte.
- Hei-de envelhecer no túmulo antes que ele acerte nalguma coisa!
- Oh, tu tens pouca fé! - disse eu, atarefada a aquecer a pouca banha que tinha, a juntar água a um resto de farinha que pus numa tigela e a mexê-la até desaparecerem os grumos, antes de adicioná-la à banha aquecida, juntando-lhe sal e pimenta e mexendo, mexendo para ela não ficar granulosa. Provei-a, juntei mais sal, mexi mais, sentindo verdadeiramente o olhar esfomeado da "Nossa" Jane e do Keith a devorá-la enquanto ela aquecia no tacho. O avô continuava a balouçar-se, de olhos vítreos, com as mãos magras agarradas aos braços da cadeira, sem esperança de voltar a comer naquele dia. Se a "Nossa" Jane e o Keith eram os que mais sofriam, a seguir era o avô, que estava a perder peso tão depressa que só me apetecia chorar.
- Não há dúvida que a Annie fazia as melhores empadas de mirtilo - balbuciou o avô num tom melancólico, de olhos fechados e com os lábios finos a tremer.
- Só tens dois biscoitos para seis pessoas? - perguntou a Fanny. - O que vais fazer? Dar uma migalha a cada um?
- Não. vou dar metade ao Keith e outra metade à "Nossa" Jane, e o avô fica com a outra metade, e tu, o tom e eu partimos a outra metade em três partes.
- Uma migalha, Precisamente o que eu julgava! O avô não precisa de uma metade só para ele!
O avô abanou a cabeça.
- Não tenho fome, Heaven. Dá a minha metade à Fanny.
- Não! Já o fiz esta manhã. Ou a Fanny come a parte dela ou se esquece do que é comer até amanhã, ou quando o tom trouxer carne.
- Eu não fico à espera do tom! - berrou a Fanny, atirando-se para cima de uma cadeira que estava ao pé da mesa. - vou comer agora! Sou três vezes maior do que a "Nossa" Jane. Ela não precisa de uma metade inteira.
Eu fazia tudo o mais devagar possível, mas não é que houvesse muito a fazer. Naquele dia tinham voltado para casa dois gatos, um preto e um branco, ambos empoleirados no cimo de uma prateleira, junto dos tachos e das panelas, e ambos olhavam para mim com a esperança estampada nos olhos famintos, tão necessitados de comida como nós. E ali estava eu, a olhar para eles, perguntando a mim própria se alguma vez alguém comera gatos.
Depois observei o velho cão de caça do pai, que voltara com os gatos. Oh, era horrível admitir a hipótese de comermos os animais de que tanto gostávamos. No entanto, era precisamente isso que eu estava a fazer.
De repente, a Fanny pôs-se ao meu lado, a falar em voz baixa e a apontar para o velho Snapper, o cão preferido do pai. Tinha dezasseis anos, estava quase cego e mesmo assim conseguia sempre pilhar comida e vinha para casa gordo e bem alimentado.
- Ele tem carne no meio daqueles velhos ossos - disse a Fanny, com veemência. - Gostava tanto de comer carne outra vez. Tu podes fazer isso, Heaven, eu sei que podes. Corta-lhe o pescoço, como se faz aos porcos. Para a "Nossa"
Jane, para o Keith... E para o avô... Bem, todos nós podíamos comer...
Nessa altura, o Snapper abriu os olhos sonolentos e fitou-me com nobreza. Voltei a olhar para o sítio onde a "Nossa" Jane e o Keith estavam sentados, a gemer.
- Antes aquele velho cão do que nós - ciciou a Fanny, com mais premência. - Basta dares-lhe uma pancada na cabeça.
Estendeu-me o machado de que nos servíamos para cortar as aparas para o Velho Fumegante. Até naquele momento ele vomitava um fumo negro que nos picava os olhos.
- Vá lá. Eu sei que tu consegues - disse a Fanny para me dar coragem, empurrando-me na direcção do Snapper. - Primeiro leva-o lá para fora e depois dá-lhe o golpe.
De repente, o Snapper deu um salto, como se pressentisse a minha intenção, e correu para a porta. A Fanny soltou um grito de susto e foi atrás dele. Naquele momento, a porta abriu-se e, decidido a escapar aos nossos intentos assassinos, o Snapper desapareceu na escuridão.
O tom entrou, sorrindo, com a espingarda ao ombro e um saco pesado com qualquer coisa lá dentro, no outro ombro.
O sorriso desapareceu-lhe ao ver o machado na minha mão e o meu ar de vergonha e de culpa.
- Ias matar o Snapper! - A voz dele denotava incredulidade. - Mas eu julguei que tu adoravas aquele cão.
- É verdade que sim - disse eu, a soluçar.
- Mas tu não acreditaste, pois não? - perguntou ele com amargura. - Eu andei a correr de um lado para o outro.
O tom atirou o saco cheio para cima da mesa.
- Estão aí duas galinhas mortas. É claro que o Race MEGee vai perguntar quem é que lhe andou aos tiros na capoeira, e mata-me se descobrir quem foi, mas pelo menos morro com a barriga cheia.
Naquela noite comemos bem, devorámos uma galinha inteira e guardámos a outra para o dia seguinte. Mas no dia seguinte, depois de comermos as duas galinhas, defrontámo-nos outra vez com o mesmo problema. Não tínhamos que comer. O tom segredou-me que não me preocupasse, pois havíamos de arranjar uma solução.
- Chegou a altura de esquecermos a honra e a honestidade, e de roubarmos - disse o tom. - Não vi um único veado. Nem sequer um guaxinim. Teria alvejado um mocho, mas eles não piaram. Todas as noites, quando as pessoas de Winnerrow estiverem sentadas à mesa a comer, tu, eu e a Fanny vigiaremos o vale e roubaremos o que pudermos.
- Mas que ideia excelente! - exclamou a Fanny, deliciada. - Eles não têm espingardas penduradas na parede, pois não?
- Não sei - respondeu o tom. - Mas havemos de descobrir.
Era uma coisa medonha e assustadora aquela que tínhamos decidido fazer no dia seguinte, ao lusco-fusco, quando ainda tínhamos a galinha no estômago para nos dar coragem. Vestimo-nos de escuro, enfarruscámos a cara e caminhámos penosamente ao frio até nos aproximarmos de uma pequena quinta isolada, onde morava o homem mais pérfido que existia. E, o que era pior, tinha cinco filhos gigantescos, quatro filhas imensas e uma mulher, ao pé da qual, a Sarah parecia fraca e elegante.
A Fanny, o tom e eu procurámos a protecção dos arbustos densos e dos abetos até avistarmos todos os membros da família sentados na cozinha, a fazerem um tal burburinho que decerto abafaria qualquer ruído nosso. Tinham uma matilha de cães, iguais aos que nós costumávamos ter, assim como gatos e galinhas.
- Acalma os cães - ordenou o tom, com uma voz sibilante e assustadora. - Assim eu e a Fanny podemos atacar a capoeira sem eu me servir da espingarda. - Fez um gesto à Fanny. - Agarra-a pelas patas, duas em cada mão, que eu agarro as minhas quatro. Não nos podemos demorar.
- Elas picam? - perguntou a Fanny, com um ar estranho.
- Não, nunca ouviste dizer que uma pessoa tem coração de galinha? Elas não dão muita luta, só cacarejam.
tom atribuíra-me a tarefa de distrair os cães mais temíveis que eu já vira. Eu tinha jeito para lidar com os animais, e quase sempre eles confiavam e gostavam de mim... Mas aquele cão grande parecia um buldogue e, a avaliar pelo olhar maléfico, detestou-me assim que me viu. Eu levava comigo um saquinho cheio de pescoços, rabos e patas de galinha.
Lá dentro, os McLeroy estavam a comer e a discutir, enquanto eu atirava uma pata de galinha ao cão e dizia com meiguice:
- Cãozinho lindo... Não me tenhas raiva que eu não te faço mal... Come a patinha... Vá lá, come.
Ele farejou a pata ressequida e amarela com desdém e depois uivou. Aquilo devia ser um sinal para os outros cães.
Devia haver uns sete ou oito no quintal para proteger os porcos, as galinhas e outros animais da quinta. De repente, todos os cães se precipitaram na minha direcção! A rosnar, a ladrar e a mostrar-me os dentes mais afiados que eu já vira.
- Acabem com isso! - ordenei rudemente. - PAREM! Ouviram?
Na cozinha, uma mulher pronunciou quase as mesmas palavras, mas aos berros. Os cães calaram-se, hesitantes. Nessa altura, atirei-lhes os pescoços, os rabos e o resto das patas de galinha. Eles correram a apanhar o que puderam e depois voltaram para junto de mim, a abanar a cauda e a pedir mais.
Nesse momento, ouviu-se um cacarejar terrível vindo da capoeira. Os cães desataram a correr nessa direcção.
- PAREM! - ordenei. - FOGO!
Um dos cães hesitou e olhou para mim no momento em que eu me inclinei e peguei fogo a um monte de folhas secas que algum filho do dono da quinta deixara ali por preguiça, para varrer mais tarde e pôr na lixeira.
- Mãe! - berrou um homem gigantesco, de fato macaco. - Está alguém a incendiar o nosso quintal!
Eu desatei a correr.
Nunca correra tão depressa, com os cães todos no meu encalço. Talvez tenha percorrido uns seis metros até que o cão mais rápido estava quase a apanhar-me. Trepei o mais depressa que pude para cima de uma árvore e sentei-me num tronco grosso a olhar lá para baixo, para os cães desvairados, agora que eu mostrara medo.
- Vão-se embora! - ordenei, com uma voz firme. - Não tenho medo de vocês.
Da escuridão emergiu o velho Snapper que correu em meu auxílio e, no meio daquela matilha de cães mais novos e mais fortes, mostrou a sua força no momento em que o pai McLeroy apareceu a correr, com uma espingarda!
No mesmo instante, abriu fogo por cima da cabeça dos cães. Estes espalharam-se em todas as direcções, e deixaram-me lá em cima, encolhida, tentando não atrair as atenções.
Infelizmente, estava lua cheia.
- Tu não és a Heaven Casteel? - perguntou o homem gigantesco. com o cabelo ruivo como tinha, bem poderia ser da família da Sarah. - Não andavas a roubar as minhas galinhas?
- Um dos seus cães é que veio atrás de mim, só porque eu andava à procura do cão favorito do meu pai. Ele desapareceu há algumas semanas, e há uns dias voltou para casa... E agora fugiu outra vez.
- Desce daí! - disparou ele.
À cautela, atirei-me para o chão, esperando e rezando para que a Fanny e o tom tivessem roubado as galinhas e fossem a caminho de casa, sãos e salvos.
- Onde é que as escondeste?
- Onde é que escondi o quê?
- As minhas galinhas.
- Acha que eu conseguia subir para esta árvore com as galinhas na mão? Mister McLeroy, eu só tenho duas mãos.
Atrás dele apareceram três filhos enormes, todos com cabeleiras ruivas e hirsutas. Todos usavam barbas espessas e ásperas, e dois deles traziam pilhas que apontaram à minha cara. Uma delas percorreu demoradamente o meu corpo até chegar aos pés e depois subiu outra vez.
- Veja, pai, como ela está crescida e se parece mesmo com a mãe, como aquela rapariga bonita da cidade.
- Ela é uma ladra de galinhas!
- Vê-me com alguma galinha na mão? - perguntei, com atrevimento.
- Bem, ainda não te vimos bem - disse um dos rapazes, pouco mais velho do que o Logan. - Pai, eu vou revistá-la.
- Não vais nada! - ripostei. - Eu só andava à procura do cão do meu pai, e isso não é ilegal!
Meu Deus, eu estava a aprender a viver, dando tempo ao tom e à Fanny para fugir para os montes.
Aqueles gigantes acompanharam-me até à orla do bosque, convencidos de que eu não era uma ladra de galinhas mas sim uma grande mentirosa.
O tom e a Fanny tinham conseguido fugir com cinco galinhas, e o tom metera seis ovos na algibeira, embora só três chegassem inteiros à cabana.
- Vamos guardar duas galinhas - disse eu assim que lá cheguei, afogueada e sem fôlego -, para porem ovos e a "Nossa" Jane e o Keith comerem ovos todos os dias.
- Onde é que estiveste durante todo este tempo?
- Em cima de uma árvore, com os cães por baixo de mim. Tornámo-nos exímios a roubar, e nunca íamos duas vezes ao mesmo sítio. Deixávamos o avô a tomar conta dos dois mais novos e saíamos todas as noites. Aprendemos todos os estratagemas para agarrar no que podíamos. Na obscuridade própria do anoitecer dos dias de Inverno, esperávamos que as mulheres tirassem dos porta-bagagens dos automóveis os sacos das compras. Algumas iam quatro e cinco vezes lá dentro... E isso dava-nos oportunidade de nos aproximarmos a correr, pegarmos num saco e desaparecermos depressa. Aquilo era roubar, sem dúvida, mas nós convencíamo-nos de que estávamos a salvar a vida e de que um dia havíamos de recompensar aquelas mulheres.
Uma noite, cada um de nós conseguiu trazer um saco e mal escapámos a uma mulher que gritou:
- Socorro, ladrões!
E o que eu trazia no meu saco eram só guardanapos de papel, papel de cozinha e dois rolos de papel higiénico. A Fanny fartou-se de rir.
- Parva, devias ter procurado os sacos pesados.
Pela primeira vez na nossa vida, tivemos papel higiénico a sério, guardanapos de papel e papel de cozinha. O que havíamos de fazer com ele? Não tínhamos nada para embrulhar nem para meter no frigorífico.
O tom e eu estávamos deitados lado a lado nas nossas esteiras, a pensar que agora devia ser o avô a servir-se da cama para dar conforto aos seus velhos ossos, para variar.
- Sinto-me mal a roubar pessoas que trabalham muito para ganhar dinheiro. Tenho de arranjar um emprego, nem que só volte a casa à meia-noite. E sempre posso roubar alguma coisa dos jardins dos ricos. De qualquer modo, eles não precisam de extras.
O problema é que as pessoas do vale não acreditavam que os rapazes dos montes não roubassem, e encontrar trabalho não era fácil. No fim, todos nós éramos obrigados a ir a Winnerrow às escondidas, de vez em quando, para roubar. Depois chegou o dia em que o tom roubou uma tarte que viu a arrefecer no parapeito de uma janela, e foi a correr até à cabana para partilhá-la connosco. Eu nunca tinha visto uma tarte com um aspecto tão delicioso, com a crosta muito bem recortada toda à volta, e o suco a escorrer dos orifícios abertos em forma de flor na parte de cima.
Era uma tarte de maçã, e soube-me tão bem que nem me apeteceu ralhar com ele por estar a tornar-se um ladrão profissional.
- Oh, não faz mal - disse o tom a rir-se, com os olhos semicerrados. - Esta tarte que acabámos de comer foi feita pela mãe do teu namorado, e tu bem sabes que o Logan desistiria de tudo para fazer feliz a família da Heaven.
- Quem é o Logan? - murmurou o avô, quando eu tinha a boca ainda quente do sabor da tarte que excitara as minhas papilas gustativas.
- Sim, quem é o Logan? - grunhiu uma voz grossa e nossa conhecida da soleira da porta. - E onde diabo está a minha mulher? Porque é que esta casa parece uma pocilga?
Era o pai!
Entrou, trazia ao ombro um grande saco de serapilheira cheio de coisas que só podiam ser mantimentos, e atirou tudo o que trouxera para cima da mesa.
- Onde diabo está a Sarah? - gritou outra vez, olhando para nós, um por um.
Nenhum de nós encontrou palavras para lhe dizer o que acontecera. Lá estava o pai, alto e esguio, com o rosto cor de bronze bem barbeado e mais pálido do que era costume, como se tivesse passado por uma grande provação. Perdera pelo menos cinco quilos, e no entanto tinha um ar mais fresco, mais limpo e de certo modo mais saudável do que quando eu o vira pela última vez. Parecia um gigante de cabelos escuros, a tresandar a uísque e com aquele cheiro estranho e dominador que era estritamente masculino. Estremeci ao ver que ele voltara; ao mesmo tempo, senti-me extremamente aliviada. Por muito mau que ele fosse, salvara-nos de morrer à fome, agora que o Inverno estava no auge, e todos os dias nevava, e o vento assobiava à roda da nossa cabana frágil, arranjando todas as maneiras de entrar e de nos enregelar os ossos.
- Ninguém aqui sabe falar? - perguntou ele, com sarcasmo. - Eu julgava que tinha mandado os meus filhos para a escola. Eles não aprenderam nada? Nem mesmo a cumprimentar o próprio pai e a dizer que estão contentes por o verem em casa outra vez?
- Nós estamos contentes - disse o tom.
Eu levantei-me e voltei-me de novo para o fogão, pronta a preparar outra refeição, agora que tínhamos comida com fartura, a avaliar pelo aspecto do saco. E, à minha maneira, tentei ferir o pai como ele me ferira tantas vezes com a sua indiferença.
- Onde está a minha mulher? - berrou ele outra vez.
- SARAH! - gritou. - Estou de volta!
O grito dele ouviu-se lá em baixo no vale... Mas não lhe trouxe a Sarah.
Vasculhou o quarto, e ficou de pé, a segurar nas cortinas, de pernas abertas, olhando lá para dentro sem compreender.
- Ela está na casinha de fora? - perguntou, voltando-se outra vez para o tom. - Onde está a mãe?
- Terei o maior prazer em lhe dizer o que aconteceu disse eu quando o tom se atrapalhou.
O pai fulminou-me com os seus olhos escuros.
- Eu fiz a pergunta ao tom. Responde-me, rapaz... Onde está o diabo da tua mãe?
Como se eu tivesse nascido para viver aquele momento e aquela oportunidade de lhe espicaçar o orgulho, preparei-me para o ataque. A avaliar pela sua expressão, naquele momento ele julgava que a Sarah talvez estivesse morta - tal como a avó morrera na ausência dele - e por instantes hesitei antes de continuar, falando com rudeza.
- A sua mulher deixou-o, pai - disse eu, fulminando-o com o olhar. - Ela não conseguiu suportar mais a dor e o sofrimento depois de o bebé ter nascido morto. Não conseguiu suportar esta cabana nem as privações, nem um marido que tinha de se divertir enquanto ela não tinha nada. Portanto, foi-se embora e deixou-lhe um bilhete.
- Eu NÃO ACREDITO EM TI! - rugiu ele.
Ninguém disse nada, todos ficaram a olhar para ele, até mesmo a Fanny.
Depois, foi o avô que arranjou forças para se levantar da cadeira de balouço e encarar o filho.
- Agora já não tens mulher, filho.
A sua voz parecia cheia de compaixão por aquele filho que já perdera duas mulheres, e que sem dúvida deitaria a perder toda a sua vida, e não seria senão por culpa sua. Este foi o meu pensamento mesquinho, na noite em que o pai apareceu em casa depois de ter desaparecido durante quase um mês.
- A tua Sarah pegou nas suas coisas e fugiu de noite concluiu o avô com grande dificuldade, pois as palavras fáceis há muito que o tinham abandonado.
- Alguém que me vá buscar o bilhete - disse o pai em voz baixa, como se tivesse perdido as forças naquele momento, e, de repente, se sentisse tão velho como o avô.
Em silêncio, com um prazer malévolo, aproximei-me da prateleira mais alta, onde guardávamos os nossos poucos objectos de valor, e de uma tigela de açúcar toda lascada que, segundo a avó me dissera uma vez, o pai trouxera ao seu anjo, tirei o pequeno bilhete, dobrado em quatro.
- Lê-mo - ordenou o pai, atordoado e com um ar esquisito.
E eu li.
Querido marido,
Não posso ficar mais tempo com um homem que não se importa com coisa nenhuma. vou para onde a vida for melhor. Boa sorte e adeus.
Tanto como te amei em tempos, odeio-te agora.
Sarah
- E isto é tudo, TUDO? - berrou o pai, tirando-me o bilhete da mão e tentando ler aquela letra infantil e cheia de rabiscos. - Ela foge-me, deixa-me com cinco filhos, e ainda me deseja boa sorte?
Fez uma bola do bilhete e atirou-o para o interior do fogão. Enfiou os dedos compridos numa madeixa de cabelos escuros.
- Raios a partam! - disse ele, com desalento, antes de dar um salto e desatar aos berros, batendo com o punho fechado no tecto da cabana. - Quando a encontrar, hei-de torcer-lhe o pescoço, ou dar-lhe uma facada no coração... Se a encontrar. Ir sabe-se lá para onde, deixar cinco crianças pequenas sozinhas, raios te partam, Sarah,
eu esperava mais de ti, palavra!
Pouco depois, saiu, e eu convenci-me de que ele iria naquele preciso momento à procura da Sarah para a matar, mas daí a pouco estava de volta e despejou mais mantimentos em cima da mesa. Trouxe mais dois sacos com farinha, sal, fatias de toucinho fumado, feijões, ervilhas secas, uma lata enorme de banha, molhos de espinafres, maçãs, batatas, batatas doces, pacotes de arroz e muito mais coisas que nós nunca tínhamos visto, como caixas de bolachas e de bolinhos, manteiga de amendoim e geleia de uvas.
A mesa ficou cheia e parecia que aquilo ia durar um ano inteiro. E quando o pai acabou de espalhar aquilo tudo, voltou-se para todos nós e para ninguém em particular.
- Lamento que a vossa avó tenha morrido. Lamento ainda mais que a vossa mãe tenha fugido de mim, o que significa que fugiu também de todos vocês. Tenho a certeza de que ela teve pena de vos ferir quando queria apenas atingir-me a mim.
Fez uma pausa e depois continuou:
- Vou-me embora hoje e não volto senão quando estiver curado. Estou quase bem e gostaria de ficar e de tomar conta de vocês, mas se eu ficar será pior para vocês do que se eu partir. E tenho um emprego que me convém. Portanto, arranjem-se com esta comida, pois não haverá mais senão quando eu voltar.
Consternada, apeteceu-me chorar e dizer-lhe que não se fosse embora, porque não conseguiríamos sobreviver aos rigores do Inverno sem ele.
- Vocês não imaginam para onde ela foi?
- Oh, pai! - exclamou a Fanny, tentando correr para os seus braços, mas ele levantou a mão para a impedir de se aproximar.
- Não me toques - avisou. - Tu não percebes muito bem o que eu tenho, mas isto é uma coisa nojenta. Estão a ver como eu pedi a um homem que metesse tudo em sacos? Queimem os sacos todos quando eu me for embora. Tenho um amigo que há-de fazer o possível para encontrar a Sarah e obrigá-la a voltar. Aguentem até que ela volte, ou eu... Aguentem.
E, mau como era, pérfido e cruel como sabia ser às vezes, mesmo assim fartara-se de trabalhar a vender álcool para nos comprar os alimentos essenciais, alguns mimos e algumas roupas para vestirmos que, se não eram boas, pelo menos eram quentes.
Porque eu estava a olhar para as roupas usadas que a Fanny manuseava desajeitadamente. Camisolas e saias, blue jeans para o tom e para o Keith, roupa interior para todos nós, e cinco pares de sapatos, embora ele tivesse que adivinhar quais eram os números que calçávamos. As lágrimas correram-me pela cara abaixo. Não havia casacos, botas ou chapéus, e nós precisávamos de tudo isso. Mesmo assim, senti-me agradecida ao ver as camisolas pesadas e feias, já deformadas por outros as terem usado.
- Pai! - gritou o tom, correndo atrás dele. - Não pode deixar-nos sozinhos! Eu estou a fazer o que posso para ajudar, mas não é fácil quando ninguém em Winnerrow confia num Casteel, e a Heaven já nem pode ir à escola... E eu tenho de ir, pai. Tenho de ir senão não consigo respirar! Pai! Está a ouvir? Está a ouvir-me?
O pai continuou a andar, fechando os ouvidos aos lamentos de um filho que eu sabia que ele amava. E o choro da Fanny deve tê-lo perseguido durante muito tempo. Mas houve uma filha chamada Heaven que não suplicou nem chorou, nem disse uma palavra. Senti apenas a mão fria e viscosa do destino a expulsar-me o sangue do coração. Estava sozinha, tal como nos meus pesadelos.
Estávamos sozinhos na cabana. Sem pais, sem ninguém que nos apoiasse.
Sozinhos enquanto o vento soprava, enquanto a neve caía, enquanto os carreiros que iam dar ao vale desapareciam debaixo do gelo e da neve.
Nós não tínhamos sapatos, casacos ou esquis para andar na neve, nenhuma dessas coisas que nos fariam chegar rapidamente ao vale, à escola ou à igreja. E aquele monte de comida, tão alto, desapareceria num instante. E depois?
O pai estava ao pé do camião, a olhar para nós, para todos menos para mim. Era doloroso que nem naquele momento ele conseguisse encarar comigo.
- Tenham cuidado - disse ele.
E desapareceu na escuridão. Ouvimos o ronco do velho camião quando ele arrancou e desceu os carreiros escuros que iriam levá-lo ao seu destino, fosse este qual fosse.
Eu fiz o mesmo que a Sarah teria feito. Resolvi ir arrumar as coisas, sem uma lágrima, com um sorriso nos lábios quando encarei as responsabilidades inerentes ao facto de orientar aquela cabana até o pai voltar outra vez.
MISÉRIA E ESPLENDOR
Por um momento breve e maravilhoso, antes de o pai desaparecer na noite, deixando-nos sós outra vez, a esperança brilhara nos nossos corações, e fizera-nos subir muito alto só para nos mergulhar num desespero ainda maior quando ele partiu, e nós ficámos sós, outra vez.
Amarrados ao nosso pesadelo, aproximámo-nos todos uns dos outros, e escutámos os ruídos solitários da noite quando deixámos de ouvir o camião dele a afastar-se.
Tínhamos comida na mesa, para provar que ele se preocupara um pouco connosco, senão o suficiente. Amaldiçoei-o por ele não ficar, amaldiçoei-o por mil razões.
Observei a mesa cheia do que ele trouxera e pareceu-me que era muita coisa. Duraria até ele voltar outra vez?
Dentro do caixote que estava no alpendre e que nos servia de frigorífico durante o Inverno guardámos a carne que não comeríamos naquele dia. De certo modo, era uma bênção que fosse Inverno e não Verão, caso contrário teríamos de devorar tudo antes que se estragasse com o calor. Quando a avó era viva, contando com a Sarah e o pai, éramos nove, e nunca se estragara nada.
Só mais tarde é que reparei que o pai viera no dia de Acção de Graças para nos trazer o jantar.
A fome é que ditava as nossas ementas. Pouco tempo depois, tudo aquilo que o pai trouxera para durar até ele voltar ficou reduzido a feijões, ervilhas e o eterno sustentáculo das nossas vidas: biscoitos e molho.
O vento ululante não acrescentava nada à nossa felicidade, nem tão-pouco o frio que nos obrigava a estar reunidos à volta do Velho Fumegante. O tom e eu passávamos horas e horas no quintal a cortar madeira, a derrubar árvores de pequeno porte e a procurar ramos partidos durante as tempestades de vento.
A vida na cabana voltou a ser o mesmo pesadelo que já nos era familiar e que nem a manhã mais luminosa conseguia dissipar. Deixei de ouvir os pássaros a cantar logo de manhã (os poucos pássaros corajosos que se atreveram a ficar) e deixei de admirar o glorioso entardecer do Inverno. Não estava tempo para nos demorarmos lá fora quando poderíamos encontrar a morte, e não havia ninguém com sabedoria suficiente para nos devolver a saúde. Não estava tempo para nos demorarmos à janela. Só havia tempo de sobra para nos reunirmos à lareira e pensarmos nas amarguras da vida.
Todos os dias me levantava com o nascer do Sol e prosseguia a luta diária para fazer tudo o que a Sarah fazia antigamente. Só quando a minha madrasta se foi embora é que me apercebi a quanto eu fora poupada, mesmo quando ela tinha preguiça de fazer certas coisas. O tom tentava, tentava mesmo ajudar, mas eu insistia para que ele continuasse a ir à escola, embora a Fanny se sentisse muito satisfeita por ficar em casa.
O problema é que a Fanny ficava em casa, não para ajudar aos trabalhos mas para ir roubar e para se encontrar com aquele tipo de rapazes que nunca iam para lado nenhum a não ser para a cadeia, ou para a sepultura, demasiado cedo - aqueles que se escusavam sempre aos seus deveres, que já estavam ligados ao contrabando de álcool, a expedientes, a jogos de azar... E a raparigas.
- Eu não preciso de instrução, já tenho que me chegue! exclamou a Fanny, com desdém.
Afirmou aquilo vezes sem conta enquanto se mirava no espelho de prata que pertencera à minha mãe; infelizmente, a Fanny tirara-mo logo da mão quando eu caíra na asneira de o tirar do seu esconderijo e ela tentara reclamá-lo para si. O espelho estava oxidado e ela não lhe reconhecia qualquer valor. Mais do que lutar por ele de vez em quando, e deixar que os biscoitos se queimassem no forno, resolvi que, mais tarde, quando ela estivesse a dormir, eu reaveria o meu espelho e escondê-lo-ia melhor. Pelo menos ela ainda não dera com a mala onde estava a boneca.
- O pior é que na escola está mais calor do que aqui. Heaven, porque és tão orgulhosa? Também já me pegaste uma parte e eu só consigo falar verdade quando tu estás ao pé de mim para dizeres que é mentira, senão eu diria a toda a gente que temos fome! Frio! Que somos infelizes e que estamos a morrer!
A Fanny chorava a valer.
- Há-de chegar o dia em que eu não terei fome nem frio... Vão ver! - exclamava ela com a voz entrecortada pelos soluços. - Detesto este sítio! E o que eu tenho de fazer para não estar sempre a chorar? Detesto chorar! Detesto não ter o que têm as raparigas da cidade!... Heaven, abdica do teu orgulho para eu poder abdicar do meu.
Eu desconhecia que ela possuía o seu orgulho até chegar aquele momento espantoso.
- Está bem, Fanny - disse eu com doçura. - Continua a chorar. Eu acho que um bom acesso de choro te permite libertar o teu orgulho... E isso ajudar-nos-á a sermos melhores, mais fortes. A avó sempre disse isso.
O luar já ia alto quando o tom regressou da escola, com o vento feroz a açoitá-lo. A porta fechou-se antes de ele atirar dois esquilos para cima da mesa, dois pequenos esquilos cinzentos que ele esfolou imediatamente enquanto eu escondia a cara da "Nossa" Jane, e o Keith ficava de olhos esbugalhados e cheios de lágrimas ao ver os "amigos" despojados das suas lindas peles. Pouco depois, eu punha a carne ao lume para fazer um guisado, acrescentando as batatas e as cenouras que nos restavam. O Keith agachou-se a um canto e disse que não tinha fome.
- Tens de comer - disse o tom com ternura, pegando-lhe ao colo e trazendo-o para a mesa. Sentou-o ao lado da "Nossa" Jane, na almofada dela.
- Se não comeres, a "Nossa" Jane também não come e ela já está muito fraca e magra... Portanto, come, Keith, mostra à "Nossa" Jane que gostas do guisado da Heaven.
Os dias sucediam-se e o Logan não voltou, nem o tom o viu nos corredores da escola. O tom era mais novo do que o Logan e portanto não andavam na mesma classe.
Dez dias depois da visita do Logan, o tom disse-me:
- O Logan partiu com os pais para qualquer lado. O tom fizera um esforço enorme para descobrir o que acontecera ao Logan Stonewall. - O pai arranjou outra pessoa para ficar a trabalhar na loja até eles voltarem para casa. Talvez tenha morrido alguém na família.
Esperava que não, mas suspirei de alívio. O meu receio era que o Logan se mudasse, me esquecesse e, ainda que não o fizesse, estivesse tão zangado comigo que nunca mais me olhasse para a cara. Era preferível pensar que o Logan estava de férias, que fora a um funeral ou visitar uma avó doente do que desaparecera por já não gostar de mim. Dentro de pouco tempo ele voltaria para casa. Um dia havia de aparecer, falaríamos um com o outro, eu pediria desculpa, ele sorriria, e diria que compreendia, e tudo ficaria bem entre nós. Havia remendos a fazer e trabalhos de costura. Antigamente, a Sarah arranjava tecidos nos saldos, tecidos feios e baratos que mais ninguém queria; rasgava os vestidos velhos e utilizava os modelos para fazer fatos que se podiam vestir, embora não assentassem bem e fossem horríveis. Eu não sabia fazer vestidos para a "Nossa" Jane e para a Fanny, e muito menos para mim. As camisas do tom iam-se rasgando, e não havia dinheiro para comprar camisas novas. Eu fazia remendos; cosia tiras de tecido com pontos enormes e imperfeitos, tentava tecer as linhas de modo a que preenchessem os pequenos buracos. Punha de lado vestidos velhos que já não me serviam e tentava arranjar um vestido para a "Nossa" Jane, que ficava muito feliz quando tinha qualquer coisa nova e bonita. Estava um frio de rachar dentro da cabana e, por muito que eu detestasse fazê-lo, fui à mala mágica, procurei entre todos os belos vestidos de Verão, e retirei uma camisola cor-de-rosa e macia. Tinha mangas a três quartos e mesmo assim era grande de mais para a "Nossa" Jane usar como vestido. Mas assim que ela a viu, quis logo ficar com ela.
- Agora, espera que eu a adapte ao teu corpo.
E foi o que eu fiz, pondo elástico no decote para puxar os ombros para cima. Agora a "Nossa" Jane tinha um belo vestido cor-de-rosa, comprido e quente, feito de uma camisola.
- Onde é que foste arranjar esse tecido? - perguntou a Fanny ao chegar dos bosques, logo desconfiada quando avistou a "Nossa" Jane a saltar de alegria na cabana, mostrando o vestido novo. - Eu nunca vi esse tecido cor-de-rosa... Onde é que o tinhas, hem?
- Fui eu que o encontrei a voar ao vento - respondeu o tom, que tinha uma imaginação formidável para inventar histórias. - Estava deitado de barriga para baixo, bem enterrado na neve, à espera que um peru selvagem levantasse a cabeça, para nós termos uma ceia de Natal bem saborosa. Estava de olho no arbusto atrás do qual ele estava escondido, com a espingarda a jeito, à espreita, quando apareceu esta coisa cor-de-rosa a esvoaçar. Por pouco não a atingi, é verdade, mas ela foi aterrar num arbusto, e macacos me mordam se não era uma camisola que fazia de vestido com o nome da "Nossa" Jane na etiqueta.
- Estás a mentir - ripostou a Fanny. - É a mentira maior e mais estúpida que alguma vez disseste... E já disseste um milhão delas.
- Tu deves saber porque já disseste dez milhões delas.
- Avô, o tom está a chamar-me mentirosa! Diga-lhe que se cale!
- Pára com isso, tom - disse o avô, aborrecido. - Não devias importunar a tua irmã Fanny.
E era assim que as coisas se passavam - a Fanny e o tom a discutirem, o Keith e a "Nossa" Jane calados, o avô a esculpir e a descansar os pés, dos quais dizia constantemente que estavam doridos por causa dos calos, dos joanetes e de outras calosidades que, na minha opinião, se curavam com água e sabão. Mas o avô não gostava muito de água e sabão; mesmo aos sábados à noite, tínhamos de obrigá-lo a tomar banho. O avô tentava não fazer mais nada senão esculpir.
A Fanny servia-se de qualquer desculpa para não fazer a sua parte do trabalho, mesmo quando não ia à escola, de tal modo que, pouco tempo depois, desisti, e concluí que, se o objectivo dela era ser ignorante, então ela já tinha uma licenciatura. O tom é que tinha de terminar a sua educação e ambos nos dedicávamos a isso.
- Está bem - disse-me ele com um sorriso triste e comovente. - Eu continuo a estudar, e tento aprender pelos dois, portanto poderei ensinar-te quando estou em casa. Mas não seria melhor se eu dissesse a Miss Deale, e ela poderia mandar trabalhos para tu completares? Não seria melhor, Heaven?
- Se tens a certeza de que ela não sabe que nós estamos aqui sozinhos, a sofrer, com fome, com frio e sem carinho. Não queremos que ela saiba isso, pois não?
- Seria assim tão mau? Talvez ela pudesse dar uma ajuda... - disse ele, para me experimentar, como se tivesse medo que eu explodisse.
- Olha, tom, Miss Deale ganha aquilo a que o Logan chama uma miséria e gastaria tudo connosco porque é muito generosa. Não podemos permitir que ela o faça. Além disso, não nos fez ela um dia uma palestra na aula, em que disse que a pobreza e as dificuldades fortalecem os ossos e favorecem as personalidades fortes? Vais ver que acabaremos por ter uma espinha de ferro e uma personalidade forte e inflexível!
Ele observou-me com uma grande admiração.
- Livra, tu já tens personalidade, além de uma espinha de ferro! Se tivesses mais ainda, talvez morrêssemos de fome.
Todos os dias o tom ia para a escola, com o trabalho de casa feito na perfeição. Nada o detinha, nem as chuvas frias que lhe ensopavam o corpo, nem o granizo, nem o vento, nem o frio. Tal como o correio, ele lá ia, fosse o que fosse que houvesse. Andava de cá para lá e nunca tinha roupa apropriada. Precisava de um novo casaco de Inverno para se aquecer; não havia dinheiro para isso. Precisava de uns sapatos novos e de umas botas altas para manter os pés secos, porque os sapatos que o pai trouxera não serviam a ninguém. Às vezes, para fugir à monotonia horrível da cabana, a Fanny ia atrás do tom, sentava-se na aula e não aprendia nada, mas tinha tempo para namoriscar com os rapazes. O Keith ia à escola quando a "Nossa" Jane estava de tal modo doente que nem chorava ao vê-lo sair.
Continuámos a tomar banho ao sábado à noite, na banheira de zinco que puxávamos para junto da lareira. A água quente, tirada do poço, era aquecida no fogão para podermos lavar a cabeça. Preparávamo-nos para o único entretenimento que nos restava: ir à igreja.
Todos os domingos de manhã, quando o tempo estava razoável, saíamos ao alvorecer, com os nossos fatos miseráveis que eram os melhores que tínhamos.
O tom levava a "Nossa" Jane ao colo durante metade do caminho. Eu ia com ela a pé durante a outra metade ou então pegava-lhe ao colo. Se ela não tivesse imagens de gelados na cabeça, não creio que se tivesse tornado tão voluntariosa. O Keith saltava e dançava ao lado de quem tomava conta da pessoa que ele mais amava: a irmã. A Fanny ia sempre a correr à frente. Muito atrás, em último lugar, vinha o avô, que nos demorava mais do que a "Nossa" Jane. O avô usava agora uma bengala, e muitas vezes o tom tinha de ficar para trás para ajudá-lo a transpor uma árvore derrubada ou um pedregulho. A última coisa de que nós precisávamos era que o avô caísse e partisse algum osso.
Era preciso uma ou duas horas para o avô descer até ao vale, e isso significava que quatro de nós ficávamos ao frio durante todo aquele tempo, só para lhe fazer companhia. A quinta, a Fanny, enfiava-se na igreja muito antes de nós lá chegarmos, escondida nalgum cubículo escuro, fruindo as delícias proibidas dos adultos. O tom ia logo procurá-la, dava um estalo no rapaz que estava com ela, arrastava a Fanny, obrigava-a a esticar a saia e todos nós chegávamos atrasados
- como de costume éramos os últimos a entrar - e sentíamo-nos alvo do escrutínio geral, o que nos indicava que éramos os piores dos montes, a escumalha da escumalha, os Casteel.
No entanto, o facto de irmos àquela pequena igreja branca com o campanário muito alto dava-nos esperança. Fazia parte de nós acreditarmos, termos fé e confiarmos.
Por muito árduos que esses passeios de domingo fossem para nós, ir à igreja não só nos dava prazer como também nos permitia conversar e anular um pouco os nossos longos períodos de solidão. O facto de nos sentarmos no banco do fundo, olharmos à volta e vermos toda a gente muito bem vestida, de sentirmos durante umas horas que constituíamos uma pequena parte da raça humana, ajudava-nos a suportar as torturas do resto da semana.
Tentei evitar Miss Deale, que nem sempre vinha à igreja, mas naquele dia lá estava ela, voltando-se para nós e sorrindo-nos com alívio nos seus lindos olhos, cumprimentando-nos e fazendo sinal para que nos sentássemos ao lado dela. Partilhando comigo o livro dos cânticos, na gloriosa celebração da vida, Miss Deale ergueu a sua bela voz e cantou. A "Nossa" Jane levantou a carinha e contemplou Miss Deal com tal arrebatamento e adoração que as lágrimas vieram-me aos olhos.
- - Como é que consegue fazer isso? - segredou ela, quando estávamos sentados e o reverendo Wise se encontrava no púlpito.
- Falaremos disso quando sairmos da igreja - segredou Miss Deale, inclinando-se para pegar na "Nossa" Jane e sentando-a ao seu colo.
De vez em quando, reparava que ela observava a "Nossa" Jane, tocando-lhe no cabelo sedoso e passando-lhe um dedo delicado pela face meiga.
Estar de pé, segurar no livro dos cânticos e cantar era a melhor parte. O pior veio quando fomos obrigados a sentar-nos e a escutar todos aqueles sermões aterradores sobre actos que eram tão pecaminosos. O Natal estava à porta e inspirava o reverendo Wise a mostrar-se particularmente fervoroso, o que correspondia a sermões inflamados e aterradores, que me provocavam pesadelos horríveis.
- Qual de vós é que não pecou? QUE SE LEVANTE e deixe que o contemplemos com respeito, com admiração... E com incredulidade! TODOS nós somos pecadores! Nascemos para pecar! Nascemos através do pecado! Nascemos para o pecado! E MORREREMOS em pecado!
O pecado estava à nossa volta, dentro de nós, espreitava-nos à esquina, na zona obscura da nossa natureza, e apanhar-nos-ia por certo.
- DÉEM E SERÃO os ALVOS ! - gritava o reverendo Wise, batendo com o punho cerrado no púlpito e fazendo-o estremecer.
- Dêem e serão arrancados aos braços de Satanás! Dêem aos pobres, aos necessitados, aos acossados e aos despojados... E da vossa torrente de riqueza brotará toda a bondade que inundará as vossas vidas. DÊEM, DêEM, DÊEM!
Nós tínhamos uns trocos que o tom ganhara a fazer uns trabalhos esquisitos para algumas mulheres do vale, mas decerto valeria a pena prescindir de algum dinheiro, na esperança de que aquela torrente de riqueza fluísse para nós, lá em cima nos montes.
Sentada ao colo de Miss Deale, a "Nossa" Jane tossia, espirrava, e precisava que alguém a assoasse e levasse à casa de banho.
- Eu vou - disse eu em voz baixa, levando-a lá para fora, onde ela poderia deixar-se cativar pela casa de banho das senhoras bonitas, com uma fila de lavatórios muito brancos, sabonetes líquidos e toalhetes para limpar as mãos. Ela entrou num pequeno compartimento onde se podia sentar sem ter de suportar "maus" cheiros, e depois teve o prazer de puxar o autoclismo. Agradava-lhe verdadeiramente deitar papel lá para dentro e vê-lo descer, aos remoinhos. Quando voltámos, não a deixei sentar-se outra vez ao colo de Miss Deale para não lhe amarrotar o lindo vestido. A "Nossa" Jane queixou-se de dores nos pés, enfiados nuns sapatos que eram pequenos de mais, e de que estava frio lá dentro. Além disso, porque é que aquele homem lá em cima estava a gritar e falava tanto? E quando é que nos levantávamos para cantar outra vez? A "Nossa" Jane adorava cantar, embora não conseguisse afinar.
- Chiu - disse eu, sentando ao colo a minha irmãzinha adorada. - Isto está quase a acabar e daqui a pouco vamos cantar outra vez, e depois vamos comer gelado ao quiosque.
Por um cone de gelado, a "Nossa" Jane seria capaz de caminhar sobre carvões em brasa.
- Quem é que paga? - perguntou o tom em voz baixa, preocupado. - Não podemos permitir que seja Miss Deale a pagar outra vez. E não teremos dinheiro se o deitarmos na bandeja das esmolas.
- Não deites. Finge que deitas. Nós somos os pobres, os necessitados, os acossados e os despojados... E os rios não correm para cima, pois não?
O tom concordou, com relutância, embora desejasse apostar na generosidade divina. Tínhamos de guardar o dinheiro que nos sobrasse para comprarmos gelados ao Keith e à "Nossa" Jane, mesmo que não comprássemos mais nada. Pelo menos, poderíamos fazer isso por eles.
A bandeja das esmolas passou por nós.
- Eu dou por todos nós - segredou Miss Deale quando o tom meteu a mão no bolso. - Fiquem com o que têm para vocês.
E palavra de honra que ela depositou dois dólares na bandeja!
Quando acabou o último cântico e Miss Deale estava de pé a pegar na carteira, a calçar as suas belas luvas de couro e a pegar no seu livro de cânticos, segredei à "Nossa" Jane:
- Agora, vai a correr para a porta e não hesites por nada deste mundo!
A "Nossa" Jane resistiu e começou a arrastar os pés. Obriguei-a a levantar-se rapidamente e ela gritou:
- GELADO! Hev... lee, GELADO!
E isso deu a Miss Deale a oportunidade de vir juntar-se a nós quando nos esgueirávamos ao lado do reverendo Wise e da sua austera mulher.
" - Parem, esperem aí! - exclamou Miss Deale, a correr atrás de nós, com os saltos altos a tilintarem no pavimento escorregadio.
- Não vale a pena, tom - segredei, tentando amparar o avô para ele não cair. - Vamos inventar uma boa desculpa, não vá ela cair e partir uma perna.
- Oh, graças a Deus - arfou Miss Deale quando nos voltámos e esperámos por ela. - Que pressa era essa se vocês sabem que eu prometi um gelado à "Nossa" Jane e ao Keith? Vocês não continuam a gostar de guloseimas?
- Nós adoramos sempre gelados! - declarou a Fanny com fervor, enquanto a "Nossa" Jane estendia os braços à sua fada-madrinha dos gelados. A "Nossa" Jane agarrou-se à professora como se fosse um ouriço.
- Agora vamos para um sítio mais quente, sentar-nos, descontrair-nos e divertir-nos um pouco.
Miss Deale deu meia volta e começou a andar na direcção do drugstore dos Stonewall, arrastando o Keith pela mão e a Fanny, que se comportava quase como se tivesse a mesma idade do Keith e da "Nossa" Jane... E ainda há pouco estava pronta a seduzir qualquer rapaz borbulhento do vale se ele lhe desse conversa.
- E como está o vosso pai? - perguntou Miss Deale, voltando-se para o estabelecimento. - Não o tenho visto ultimamente.
- Um dia destes volta para casa - respondi a medo, rezando para que ela nunca soubesse qual era a doença dele.
- E a tua mãe, a Sarah, porque é que ela não veio hoje?
- Está em casa, não se sente muito bem e ficou a descansar.
- O tom disse-me que tu tens estado doente; estás com bom aspecto embora muito mais magra.
- Qualquer dia volto para a escola, dentro de pouco tempo...
- Heaven, eu quero que sejas franca. Sou tua amiga. Um amigo é uma pessoa em quem nós podemos confiar, sempre, que está sempre pronto a ajudar-nos quando precisamos. Um amigo compreende. Eu quero ajudar, preciso de ajudar, portanto se não há nada que eu possa fazer, quero que tu ou o tom me digam do que precisam. Não sou rica, mas também não sou pobre. O meu pai deixou-me uma pequena herança quando morreu. A minha mãe vive em Baltimore e não se tem sentido muito bem ultimamente. Portanto, antes de eu ir a casa passar as férias do Natal, quero que me digas o que posso eu fazer para ajudar a tornar a vossa vida mais feliz e mais fácil de suportar.
Ali estava a minha oportunidade dourada. A sorte raramente batia duas vezes à mesma porta... Mas o orgulho fez-me um nó na garganta e gelou-me a língua, e como eu não falei, o tom e o avô calaram-se. A Fanny, a descarada e sem vergonha, feliz ou infelizmente, afastara-se e estava a folhear revistas.
E enquanto eu, lá dentro, me debatia sem saber se havia de confessar tudo, Miss Deale voltou-se para o avô que se sentara tristemente num banco estofado atrás da mesinha.
- Pobre homem! Sente tanto a falta da mulher, não sente? - perguntou ela, muito compadecida. - E vocês também devem sentir. - Depois, olhou para mim e sorriu-me com um ar afectuoso. - Acabo de ter uma ideia maravilhosa. Concordo com o gelado, mas isso não é uma refeição a sério. Tenciono ir almoçar a um restaurante. E detesto comer sozinha, porque toda a gente começa a olhar... Por favor, dêem-me o prazer de almoçar comigo, e assim terão tempo de me contar o que se passa convosco.
- Nós adorávamos! - gritou a Fanny, com sofreguidão. Aparecera de repente, com um sorriso muito rasgado.
Parecia um cão a farejar uma refeição gratuita.
- Muito obrigada, mas não podemos aceitar - disse eu bruscamente, apanhada na armadilha da minha própria teimosia diabólica, sempre desejosa de deitar o orgulho para trás das costas e de ser como a Fanny. - Foi muito amável em nos convidar, mas temos de ir para casa antes de escurecer.
- Não lhe dê ouvidos, Miss Deale - gritou a Fanny.
- Nós temos fome desde que o pai se foi embora! A mãe fugiu, a avó morreu e o avô vai levar o resto do dia a fazer a viagem de regresso. E quando lá chegarmos não teremos quase nada para comer. E será de noite antes de lá chegarmos!
- Mas o pai pode chegar em qualquer altura, não é, tom? - acrescentei à pressa.
- Sim, em qualquer altura - confirmou o tom, deitando um olhar ansioso ao restaurante que havia do outro lado da rua.
Era um daqueles para o qual costumávamos olhar muitas vezes, desejando que ao menos um dia nos pudéssemos sentar a uma mesa redonda com uma toalha branca e grossa, com uma rosa vermelha numa jarra de cristal, com criados vestidos de preto e branco, e lindas cadeiras estofadas de veludo vermelho. Oh, como era encantadora a combinação do branco, do vermelho e do dourado! Como devia cheirar bem lá dentro, já para não falar do ambiente aquecido e da comida deliciosa que deviam servir.
- E a vossa mãe fugiu?... - perguntou Miss Deale, com uma expressão estranha. - Tenho ouvido boatos na cidade segundo os quais ela se foi embora para sempre. Isso é verdade?
- Não sei - respondi, lacónica. - Ela pode mudar de ideias e voltar. Ela é assim mesmo.
- ELA NÃO É ASSIM! - gritou a Fanny. - Ela nunca mais volta! Deixou um bilhete a dizer isso. O pai leu-o e ficou furioso como tudo! Depois saiu e foi à procura dela... E nós é que sofremos, Miss Deale. todos nós... Não temos mãe, não temos pai e nem sequer temos o suficiente para comer, nem roupa quente para vestir, e quase nunca temos lenha para nos aquecer... Oh, é horrível, horrível!
Apeteceu-me matar a Fanny ali mesmo. A Fanny tinha revelado, aos gritos, a nossa situação humilhante naquele lugar, onde talvez uns vinte pares de ouvidos escutaram tudo aquilo que ela dissera.
Fiquei afogueada, com vontade de me enfiar pelo chão abaixo ou de subir como o fumo, de tão embaraçada e envergonhada que me sentia ao ver expostos todos os nossos segredos. Era a mesma coisa que ficar nua em público. Apeteceu-me mandar calar a Fanny, que continuava a falar da nossa vida e dos segredos da nossa família. Depois, deitei um olhar ao avô, e em seguida ao Keith e à "Nossa" Jane, e suspirei. O que era o orgulho comparado com o facto de vermos uns olhos enormes, esfomeados e olheirentos? Quem era eu para cair na asneira de rejeitar a amabilidade daquela mulher terna e maravilhosa? Uma idiota, concluí. A Fanny era dez vezes mais ajuizada.
- Anda, Heaven, se a Fanny quer comer num restaurante, e o tom também me parece estar de acordo, e a "Nossa" Jane e o Keith estão tão magros, votas contra a maioria? Foste eliminada e está decidido. A família Casteel é minha convidada para este jantar de domingo, e para todos os jantares de domingo até que o vosso pai volte para tomar conta de vocês.
Oh! Fui obrigada a engolir em seco para não chorar.
- Só na condição de permitir que lhe paguemos um dia, quando pudermos.
- com certeza que sim, Heaven.
O destino chegara, com um vestido caro e uma gola de marta... E quando o destino vinha vestido daquela maneira, quem é que podia resistir-lhe?
Qual Moisés à frente da sua horda esfomeada, Miss Deale atravessou Main Street, com a "Nossa" Jane agarrada à sua mão enluvada. Mais orgulhosa do que um daqueles pavões que eu nunca vira, entrou naquele restaurante de sonho, onde os criados vestidos de preto e branco nos miraram como se fôssemos monstros de circo, esperando ardentemente que desaparecêssemos. Outras pessoas que estavam a jantar olharam para nós, torceram o nariz e fizeram um ar de desdém, mas Miss Deale sorriu a toda a gente.
- Boa tarde, Mister e Mistress Holiday - cumprimentou amavelmente, acenando a um casal bem-parecido e vestido com tanto requinte como ela. - Que prazer em vê-los! O vosso filho está a sair-se muito bem na escola. Sei que têm orgulho nele. É uma maravilha ter uma família a almoçar comigo.
Passou como um navio que navegava para o seu porto de abrigo, apesar da tormenta que deixou atrás de si, dirigindo-se para a melhor mesa que havia no restaurante.
Assim que lá chegou, fez um gesto arrogante a um empregado mais velho e admirado, ordenou-lhe que nos acomodasse devidamente e explicou-nos:
- Esta mesa é a que tem melhor vista para a vossa montanha.
Eu fiquei esmagada, receosa e embaraçada. Como que em sonhos, sentei-me numa bela cadeira dourada estofada de veludo carmesim, no assento e nas costas. O nariz da "Nossa" Jane estava a pingar outra vez. O tom apressou-se a pegar no Keith e perguntou onde era a casa de banho dos homens mais próxima. A Fanny sorria para toda a gente como se pertencesse verdadeiramente àquele local, por muito mal vestida que estivesse. Ainda antes de se sentar, quando o criado lhe segurou na cadeira, ela despiu as três camisolas que trazia, uma a uma. Toda a gente olhou, admirada e desdenhosa, sem dúvida a pensar que a Fanny se dispunha a despir a própria pele, tal como eu pensei. No entanto, parou quando chegou ao seu vestido usado e, radiante, sorriu a Miss Deale.
- Nunca me senti tão feliz na minha vida como neste momento.
- Oh, Fanny, que amabilidade a tua. Ouvir-te dizer isso faz-me sentir igualmente feliz.
O Keith não gostava tanto de puxar o autoclismo como a "Nossa" Jane. O tom e ele voltaram, apressados, como se receassem perder qualquer coisa de maravilhoso. O tom sorriu-me, feliz.
- Isto é uma prenda de Natal, não é, Heaven? Não é?
Oh, sim! Faltavam apenas cinco dias para o Natal. Observei a árvore enorme e esplêndida que estava ao canto e para as estrelas de Natal dispostas à volta da sala.
- Não é bonito, Heaven? - disse a Fanny, muito alto.
- Quando eu for rica e famosa, hei-de almoçar assim todos os dias, todos os dias do ano!
Foi a vez de Miss Deale nos mostrar o seu contentamento.
- Assim não é mais agradável? É muito melhor do que vocês seguirem o vosso caminho e eu seguir o meu. Digam-me, cada um de vocês, o que gostariam mais de comer. Vamos começar por si, Mister Casteel.
- Eu quero o que sobrar das outras pessoas - balbuciou o avô, que parecia acabrunhado e pouco à vontade.
Tentou tapar a boca com a mão, com receio de que os outros vissem que lhe faltavam dentes, e manteve-se de cabeça baixa para esconder os olhos lacrimosos, como se não se sentisse bem por estar onde estava.
- Miss Deale - disse a Fanny, sem hesitações -, mande vir o melhor que há aqui, aquilo de que gostar mais, e é isso que todos nós queremos. E sobremesa. Deixe lá as couves, os biscoitos e o molho.
Mesmo depois destas palavras, Miss Deale conseguiu manter o seu ar compadecido.
- Está bem, Fanny - concluiu. - Devo dizer que é uma boa ideia eu escolher para mim aquilo que mais gostaria para todos vocês. Há aqui alguém que não goste de rosbife?
Rosbife! Nós nunca comíamos rosbife em casa, e isso iria dar cor às bochechas da "Nossa" Jane e do Keith.
- Eu adoro rosbife! - gritou a Fanny, com arrebatamento.
O avô concordou, a "Nossa" Jane sentou-se a observar tudo à sua volta, com os olhos muito abertos, e o Keith só tinha olhos para a irmã mais nova, enquanto o tom se limitou a corar.
- Qualquer coisa de que goste estará bem para nós respondi com humildade, eternamente grata por estar ali, e ao mesmo tempo com muito medo de que a envergonhássemos com as nossas maneiras à mesa.
Miss Deale pegou no guardanapo, que estava dobrado em forma de flor, abriu-o e pousou-o no regaço. Eu apressei-me a fazer o mesmo, enquanto dava um pontapé na canela da Fanny, por baixo da mesa e ajudava o Keith a tratar do seu guardanapo e Miss Deale ajudava a "Nossa" Jane com o dela. O avô lá conseguiu fazer o mesmo; e o tom, também.
- Agora, como entrada, teremos salada ou sopa. O primeiro prato será carne com legumes. Se preferirem marisco, cordeiro ou carne de porco, digam.
- Vamos comer rosbife - declarou a Fanny, quase a babar-se.
- Muito bem, toda a gente está de acordo?
Todos nós dissemos que sim, mesmo a "Nossa" Jane e o Keith.
- Agora... Teremos de decidir se queremos o rosbife mal passado, assim-assim ou bem passado... Ou preferem bife?
De novo atrapalhado, o tom olhou para mim e eu para ele.
- Rosbife - respondi em voz baixa.
Nos meus livros favoritos, todos os homens que eram verdadeiramente românticos comiam rosbife.
- Óptimo, eu também adoro rosbife, nem bem nem mal passado, creio eu, para todos nós. E todos nós queremos batatas... E legumes...
- Eu não quero legumes - informou a Fanny à pressa.
- Dê-me só carne, batatas e sobremesa.
- Isso não é uma refeição equilibrada - disse Miss Deale, sem tirar os olhos da sua ementa enquanto o criado retirava as nossas e as sacudia delicadamente. - Vamos todos comer uma salada mista e feijão verde. Havemos de gostar, não acha, Mister Casteel?
O avô fez um sinal afirmativo, com um ar triste e tão assustado que eu duvidava que ele comesse alguma coisa. Tanto quanto eu sabia, o avô nunca comera "fora".
Aquilo não era uma refeição... Era um banquete!
Puseram à nossa frente uns pratos enormes cheios de salada. Nós ficámos a olhar até eu espreitar qual era o garfo que Miss Deale usava, e depois peguei no meu. O tom fez o mesmo, mas a Fanny escolheu o que lhe apeteceu com os dedos até que eu lhe dei outro pontapé debaixo da mesa. A "Nossa" Jane pegou no garfo dela, e o Keith mostrou-se atrapalhado ao fazer o possível por engolir, sem chorar, comida que ele não conhecia. Miss Deale barrou dois pãezinhos com manteiga e estendeu um à "Nossa" Jane e outro ao Keith.
- Experimentem comer isto com a salada; ajuda muito. Até morrer, nunca me esquecerei daquela salada tão verde como eu nunca vira, e com tomates naquela época do ano, e tirinhas de milho, pimenta verde, cogumelos e tantas outras coisas que eu não conhecia. O tom, a Fanny e eu devorámos a. nossa salada em pouco tempo, e fartámo-nos de tirar pão quente de um cesto coberto, que foi substituído três vezes.
- Isto é manteiga a sério, tinha de ser - segredei eu ao tom.
Antes de a "Nossa" Jane, o Keith e o avô acabarem de comer a salada, chegou o primeiro prato.
- Come assim todos os dias? - perguntou a Fanny, com os olhos escuros a brilhar de felicidade. - É para admirar que não pese uma tonelada.
- Não, não como assim todos os dias, Fanny. O domingo é o dia em que como melhor e, a partir de agora, quando eu estiver na cidade, será o dia que vocês passarão comigo.
Era bom de mais para acreditar. Bem podíamos viver toda a semana do que comíamos e, com uma grande determinação, decidi que comeria tudo, mesmo que fosse uma quantidade enorme. Creio que a Fanny, o tom e mesmo a "Nossa" Jane e o Keith tomaram a mesma decisão. Só o avô teve problemas com o rosbife por ter tão poucos dentes.
Apeteceu-me chorar de felicidade ao ver a "Nossa" Jane a comer com tanto prazer. Em pouco tempo, o Keith limpou o prato, apesar de ter exagerado quando se inclinou sobre o prato e lambeu a última gota do molho escuro.
Miss Deale pôs-me a mão no braço para me impedir de ralhar com ele.
- Deixa-o fazer sopinhas de pão no molho, Heaven; fico tão contente por ver que todos vocês estão a gostar do almoço.
E sorriu, radiante.
Quando todos esvaziámos os pratos, deixando-os tão limpos que até brilhavam, ela disse:
- É claro que todos vocês querem sobremesa.
- Nós adorávamos comer sobremesa! - gritou a Fanny, obrigando outras pessoas a olharem para nós outra vez. - Eu quero daquele bolo de chocolate maravilhoso - disse ela apontando para o carrinho das sobremesas.
- E o senhor, Mister Casteel? - perguntou Miss Deale, com a mais suave das vozes e um olhar enternecido. - O que quer de sobremesa?
Eu sabia que o avô não se sentia à vontade, e que estava cheio de gases por o estômago não estar habituado a comer tanta coisa de uma só vez, quase sem mastigar.
- Qualquer coisa... - disse ele em voz baixa.
- Acho que vamos comer tarte de chocolate - disse Miss Deale. - Mas eu sei que a "Nossa" Jane e o Keith vão adorar o pudim de chocolate que eles servem aqui. Mister Casteel, Heaven, tom, escolham vocês o que vos apetecer, porque eu e a Fanny sentir-nos-íamos muito mal a comer doces se ninguém nos acompanhasse.
Tarte, bolo, pudim de chocolate? Qual deles? Eu escolhi a tarte porque Miss Deale devia saber melhor do que ninguém. A grande fatia de bolo que a Fanny escolheu, coberta de creme e com uma cereja, encantou-me enquanto eu devorava a tarte. Mas o avô, o tom, a "Nossa" Jane e o Keith comeram o pudim de chocolate servido em belos pratos de pé que me fizeram desejar ter feito uma escolha diferente.
Como se o paraíso tivesse finalmente descoberto o caminho para a boca dela, a "Nossa" Jane meteu o pudim de chocolate na boca com tal rapidez que acabou primeiro do que o Keith. E fez o sorriso mais rasgado da sua vida a Miss Deale.
- Mas que bom! - disse ela.
Várias pessoas que estavam sentadas ao pé de nós sorriram.
Tudo correra razoavelmente até àquele momento, excepto o facto de o Keith ter lambido o prato.
Eu devia saber que a nossa sorte não podia durar muito.
De repente, sem o mais pequeno aviso, a "Nossa" Jane engasgou-se, mudou de cor e depois vomitou tudo, mesmo em cima da saia de lã cor de vinho de Miss Deale! Uma parte do vomitado espalhou-se na toalha e em cima de mim.
A "Nossa" Jane abriu muito os olhos antes de desatar a chorar em altos gritos, assustada. Tentou esconder a cara no meu colo enquanto eu pedia desculpa e esfregava a saia de Miss Deale com o meu grande guardanapo.
- Oh, Heaven, não fiques tão aborrecida - disse Miss Deale tranquilamente, não se mostrando minimamente perturbada e limpando a saia malcheirosa. - Eu mando o fato para a lavandaria e ele volta como novo. Agora, não quero ver ninguém triste. Acalmem-se que eu vou pagar a conta enquanto todos vocês se agasalham; depois levo-vos a casa de carro.
As outras pessoas desviaram o olhar e ignoraram a cena. Nem os criados se mostraram incomodados, como se tivessem assumido, desde o momento em que entráramos no restaurante, que acabaríamos por fazer uma coisa daquelas.
- Eu fiz uma maldade - soluçou a "Nossa" Jane enquanto Miss Deale assinava o cheque. - Eu não queria, Hev...lee. Não consegui evitar, Hev...lee.
- Pede desculpa a Miss Deale.
A "Nossa" Jane era muito tímida para falar e desatou de novo a chorar.
- Não faz mal, querida Jane. Eu recordo-me de ter feito a "mesma coisa quando era da tua idade. Essas coisas acontecem a todos nós, não é verdade, Heaven?
- Sim, sim - respondi eu, nervosa. - Sobretudo quando temos um estômago pequeno que não está acostumado a comer tanto.
- Eu nunca vomitei em cima de ninguém - proclamou a Fanny. - O meu estômago sabe comportar-se.
- A tua língua é que não sabe - disparou-lhe o tom.
Eu levei a "Nossa" Jane lá para fora e enfiei-a no automóvel preto e caro de Miss Deale. À medida que Miss Deale subia, na direcção das nuvens sombrias onde nós vivíamos, começavam a cair uns flocos de neve. Durante todo o caminho fui aflita, com medo que o estômago nauseado da "Nossa" Jane se soltasse outra vez e estragasse o interior daquele magnífico automóvel; mas a "Nossa" Jane conseguiu manter o que restava e chegámos a casa sem sujarmos mais nada.
- Não sei como hei-de agradecer-lhe - disse eu com humildade, de pé no alpendre desconjuntado, ainda com a minha irmã ao colo. - Lamento muito o que sucedeu ao seu belo fato. Espero que a nódoa saia.
- Vai sair, tenho a certeza.
- Por favor, convide-nos outra vez no próximo domingo implorou a Fanny.
Em seguida, abriu a porta da cabana e desapareceu lá dentro, batendo com a porta. Pouco depois, a porta abriu-se.
- E muito obrigada, Miss Deale. - Gritou a Fanny.
- A senhora sabe mesmo como fazer uma festa.
E bateu com a porta.
- A senhora é única - disse o tom com rudeza, inclinando-se para beijar a face fria de Miss Deale. - Obrigado por tudo. Mesmo que eu viva até aos cento e dez anos, nunca me esquecerei deste dia, nem da senhora, nem do seu almoço, o melhor que comi até hoje, sem desrespeito por ti, Heayenly.
É claro que aquela era a altura indicada para convidarmos Miss Deale a entrar e mostrarmos a nossa hospitalidade. Deixá-la entrar, porém, fornecer-lhe-ia muitas informações e eu não podia fazer isso. Embora percebesse que ela estava à espera de um convite, e da oportunidade de ver como é que nós vivíamos. A cabana vista por fora já tinha um aspecto lamentável, mas se ela visse o interior ficaria sem fala.
- Mais uma vez, obrigada, Miss Deale, por tudo o que fez. E peço-lhe que desculpe a Fanny por ser tão agressiva. A "Nossa" Jane está desolada, mesmo que não o diga.
Eu convidava-a a entrar, mas deixei a casa numa desordem enorme...
E não era mentira.
- Eu compreendo. Talvez o teu pai esteja lá dentro, a pensar onde é que vocês estão. Se assim for, gostaria de falar com ele.
A Fanny meteu a cabeça de fora outra vez.
- Ele não está cá, Miss Deale. O pai está doente e...
- Esteve doente - apressei-me a interromper. - Está muito melhor e esperamo-lo amanhã.
- Oh, mas que alívio ouvir isso.
Miss Deale sorriu e abraçou-me com força, e o seu perfume encheu-me o nariz ao mesmo tempo que os seus cabelos me faziam cócegas na cara.
- Tu és muito corajosa e muito nobre, mas demasiado nova para suportar tanta coisa. Voltarei amanhã à tarde, pouco depois de a escola acabar, para vos trazer os presentes que hão-de pôr debaixo da vossa árvore de Natal.
Eu não lhe disse que nós não tínhamos árvore de Natal.
- Não posso permitir que faça uma coisa dessas - protestei, sem convicção.
- Ai isso é que podes; tens de permitir. Cá estarei amanhã por volta das quatro e meia.
Mais uma vez a Fanny pôs a cabeça de fora; era evidente que estivera a escutar a conversa toda através da porta frágil.
- Ficaremos à espera. Não se esqueça.
Miss Deale sorriu e ia começar a falar mas pareceu mudar de ideias e tocou-me na face ao de leve.
- És uma rapariga encantadora, Heaven. Nem quero pensar que não acabarás o liceu, tu que gostas tanto de aprender.
De repente, uma vozinha fraca falou. Eu não estava à espera que o Keith dissesse alguma coisa de livre vontade.
- Sim. A "Nossa" Jane pede desculpa - disse ele em voz baixa, agarrado à minha saia.
- Eu sei que sim.
Miss Deale tocou ligeiramente na face redonda da "Nossa" Jane e depois no lindo cabelo preto e encrespado do Keith, antes de se ir embora.
Dentro da cabana estava quase tanto frio como lá fora e o tom enfiou mais lenha no Velho Fumegante. Eu sentei-me e embalei a "Nossa" Jane, sentindo o vento gélido a entrar pelas frinchas das paredes, a subir pelas fendas do soalho, a infiltrar-se nos caixilhos das janelas, mal calafetados. Pela primeira vez, aquela cabana pareceu-me totalmente irreal, não me pareceu uma casa. Veio-me à ideia o restaurante com as suas belas paredes brancas, o tapete carmesim, o esplêndido mobiliário; aquele era o mundo que eu desejava para todos nós. E pensar que aquela fora a melhor refeição da minha vida fez-me meditar na nossa miséria, tanto que desatei a chorar.
Naquela noite, eu faria a minha mais longa e sincera prece, de joelhos. Ficaria ali durante horas e horas, e dessa vez Deus ouvir-me-ia e atenderia a minha prece, e traria o pai de novo para casa.
No entanto, no dia seguinte levantei-me ao nascer do Sol e comecei o meu dia a cantar enquanto cozinhava. Vi o tom sair para a escola e, naquele momento, resolvi limpar e arrumar a cabana o melhor possível, com a ajuda da Fanny.
- Tu não podes pô-la bonita! - queixou-se ela. - Bem podes esfregar, limpar o pó e varrer, que ela continua a cheirar mal!
- Não, isso não é verdade. Não, quando tu e eu acabarmos, esta casa vai ficar a brilhar, mesmo a brilhar, portanto prepara-te, mandriona, e faze a tua parte, ou não haverá mais mimos para ti!
- Ela não me desprezará, eu sei que não!
- Queres que ela se sente numa cadeira suja?
Foi remédio santo. A Fanny esforçou-se por ajudar, embora pouco mais de uma hora depois se deitasse e se preparasse para ir dormir.
- Isto faz o tempo passar mais depressa - balbuciou ela.
Quando olhei para o avô, ele estava a dormitar na sua cadeira de balouço, também à espera do milagre de Miss Deale que viria por volta das quatro e meia.
Chegaram as quatro e meia e nem sombras de Miss Deale. Era quase noite quando o tom chegou a casa, com um bilhete de Miss Deale.
Querida Heaven,
Ontem à noite, quando cheguei a casa, tinha um telegrama debaixo da porta. A minha mãe está gravemente doente num hospital, portanto vou apanhar um avião para ir ter com ela. Se precisares de mim por qualquer razão, por favor telefona para o número indicado, e dize que a chamada é para pagar no destino.
Mandarei um paquete a tua casa com tudo aquilo que julgo que tu precisas. Por favor, aceita os meus presentes para as crianças, que estimo como se fossem meus filhos.
Marianne Deale
Ela acrescentara um número de telefone com o código local, esquecendo-se talvez de que nós não tínhamos telefone. Suspirei e olhei para o tom.
- Ela disse mais alguma coisa?
- Muita coisa. Quis saber se o pai vinha para casa. Quis saber do que nós precisávamos, e de que número eram os nossos fatos e os nossos sapatos. Ela insistiu comigo, Heavenly, para que eu lhe dissesse do que precisávamos mais. Como lhe podia eu dizer que a lista teria um quilómetro de comprimento? Nós precisamos de tudo, principalmente de comida. Sabes? Eu fiquei ali como um idiota, pedindo a Deus que fosse como a Fanny, e gritasse tudo bem alto, e não tivesse orgulho... E não me sentisse humilhado, para levar o que pudesse... Mas não consegui, e ela foi-se embora. A única amiga que nós temos foi-se embora.
- Mas de qualquer modo ela vai mandar os presentes. Ele riu-se.
- Ouve lá... Onde está todo esse orgulho? Passaram-se três dias e o caixote com os presentes não apareceu.
Na antevéspera de Natal, o tom chegou a casa com más notícias.
- Fui à loja de que Miss Deale me falou, perguntar onde estavam as coisas que ela mandara entregar, e eles disseram que não fazem entregas nesta região. Eu discuti com eles, mas eles insistiram que têm de esperar que ela volte para pagar uma taxa extra. Heavenly, eles não lhe devem ter falado nisso, senão ela teria resolvido tudo. Tenho a certeza.
Eu encolhi os ombros, tentando aparentar indiferença. Estava bem, havíamos de nos arranjar. Mas fiquei sem pinga de sangue.
O tempo invernoso característico das montanhas escolheu aquele dia para atacar com uma ferocidade que nos apanhou completamente de surpresa. Fomos a correr enfiar uns farrapos nas fendas aonde chegávamos. Pusemos trapos debaixo das portas, entre as tábuas do soalho e à volta dos vidros das janelas que abanavam. O interior da nossa cabana parecia um cachecol de lã esfarrapado, que oferecia bons ninhos às pulgas, às baratas e às aranhas, mesmo que tivessem frio. O pôr do Sol era sempre fugaz nas montanhas, e a noite caía sempre com uma rapidez alarmante. com a noite, vinha o frio intenso que se instalava nas montanhas como se fosse um manto de gelo. Mesmo quando nós enrolávamos as esteiras que nos serviam de cama e dormíamos no meio delas, nem assim aquecíamos porque o soalho ao pé do fogão estava muito frio. O avô dormia na grande cama de latão quando se lembrava de deixar a sua cadeira de balouço, e era lá que eu queria que ele descansasse os velhos ossos e não no soalho que era duro e frio.
- Não - objectou o avô, com obstinação. - Não está certo, quando os mais novos precisam mais da cama do que eu. Não respondas, Heaven, faze o que eu digo. Põe a Jane e o Keith na cama, e se vocês outros se juntarem uns aos outros sempre se aquecem.
Custou-me tirar a cama ao avô, mas ele conseguia ser teimoso em relação às coisas mais estranhas. E eu que sempre julgara que ele era egoísta.
- A cama é para os mais novos - insistiu ele. - Para a "Nossa" Jane e para o Keith, é claro.
- Ora, esperem aí! - berrou a Fanny, servindo-se da sua voz de alce. - Se os mais novos merecem camas macias e quentes, eu venho a seguir na fila. Há muito espaço para mim, também.
- Se há espaço para ti, então também há muito espaço para a Heaven - insistiu o tom.
- E se há espaço para mim, tom, também há espaço só para mais um - acrescentei eu.
- Mas não há espaço para o tom! - berrou a Fanny. Houve.
O tom arranjou um lugar aos pés da cama, com a cabeça no sítio onde a "Nossa" Jane e o Keith estavam deitados, portanto não ficou com pernas compridas nem com pés descalços perto da cara... Nem com pés frios.
Antes de ir para a cama, o tom teve de ir cortar mais madeira para fazer uma fogueira mais quente que derretesse o gelo destinado a transformar-se em água. O Velho Fumegante continuava a cuspir fumo fedorento.
Foi o tom que se levantou de noite para ir deitar mais lenha no fogão. A lenha não rendia nada. Todos os momentos livres depois da escola, até ser noite escura, e todos os sábados e domingos, o tom ia lá para fora cortar madeira para o velho fogão que devorava lenha como os elefantes devoram amendoins.
Ele cortava a lenha com determinação, e os braços e as costas doíam-lhe tanto que não conseguia dormir sem se virar para um lado e para o outro e chorar com dores. Os músculos doíam-lhe tanto que ele tinha o sono leve. Levantei-me para lhe esfregar as costas com óleo de castor, quente, que a avó usava para fazer as suas rezas, e que era bom para qualquer indisposição. Uma boa quantidade dele fazia abortar, e eu não tinha dúvidas acerca disso. Uma boa quantidade de óleo de castor cá dentro, e tudo o que cá estava se desfazia e desaparecia. No entanto, aliviava o tom das dores musculares.
Quando eu não ouvia o tom a gemer, ouvia outras coisas de noite: a respiração difícil e o chiar no peito do avô, os constantes ataques de tosse da "Nossa" Jane, as tripas do Keith a fazerem barulho por causa da fome; mas acima de tudo ouvia passos no alpendre escorregadio.
Era o pai que voltava para casa?
Ursos no alpendre?
Lobos que se aproximavam cada vez mais para nos comerem a todos?
O tom acreditava piamente que o pai não nos deixaria morrer de fome nem de frio.
- Penses o que pensares, ele gosta de nós, Heavenly, mesmo de ti.
Eu estava deitada de lado, enroscada, com os pés encaixados nas costas do tom, mas tinha a cabeça voltada de tal maneira que estava a olhar para o tecto baixo, para lá do qual ficava o céu que eu não via, a rezar para que o pai voltasse para casa outra vez, saudável e forte, implorando a nossa compreensão.
No dia seguinte, era a véspera de Natal. No nosso armário havia apenas meia chávena de farinha, uma colher de sopa de banha e duas maçãs secas. Nessa manhã acordei com uma sensação destruidora, cujo peso era tal que eu mal podia mexer-me. Fiquei a olhar para a comida que sobrara, com as lágrimas a escorrerem-me pela cara abaixo; a "Nossa" Jane podia comer todo o molho que eu fizesse e mesmo assim não ficaria satisfeita. O soalho chiou por baixo de mim
quando o tom me passou os braços à roda da cintura.
- Não chores, Heavenly, por favor não chores. Não desistas agora. Há-de haver qualquer coisa que nos salve. Talvez consigamos vender na cidade alguns dos animais esculpidos pelo avô, e, se assim for, teremos dinheiro para comprar muita comida.
- Quando deixar de nevar - segredei com voz rouca, sentindo um latejar doloroso e permanente provocado pela fome.
- Olha - disse ele, voltando-se para a janela e apontando para um feixe de luz no céu plúmbeo -, o tempo está a clarear. Até parece que já vejo o sol a espreitar. Heavenly, Deus não se esqueceu de nós. Ele há-de mandar o pai para casa, sinto-o nos meus ossos. Nem mesmo o pai nos deixaria aqui sozinhos a morrer à fome, bem sabes.
Eu já não sabia nada.
PRENDA DE NATAL
Eu e o tom teríamos levado menos tempo a percorrer cem quilómetros num dia de sol do que levámos a trepar ao fumeiro, na véspera de Natal, agarrados um ao outro, enquanto o vento nos uivava aos ouvidos e a neve nos batia na cara com tanta força que quase nos cegava. Mas quando voltámos, trazíamos na algibeira uma dúzia das melhores esculturas do avô, de que ele já não se lembrava porque estavam no fumeiro há muito tempo.
O alívio ao sentir o alpendre debaixo dos meus pés permitiu-me abrir os olhos pela primeira vez e ver como estava branca a nossa região, não da neve recente mas da neve antiga que o vento acumulara à volta da cabana. tom conseguiu abrir a porta, empurrou-me lá para dentro e entrou à pressa.
Eu iaa cambalear e a princípio não consegui focar a vista por causa da neve acumulada nas pálpebras. A Fanny estava a chorar e havia muito barulho. Assustada, olhei à volta... Fiquei gelada com o choque e depois senti o calor instantâneo da esperança.
Era o pai! Viera a casa passar o Natal...? As nossas preces tinham sido ouvidas, finalmente, finalmente!
Ele estava de pé no aposento mal iluminado pelo fogo, a olhar para o sítio onde o Keith e a "Nossa" Jane estavam aconchegados um ao outro para se aquecerem. Mesmo com a Fanny a dançar e a gritar à volta, eles continuavam a dormir, tal como o avô na sua cadeira de balouço.
O pai pareceu não dar pelo tom e por mim quando entrámos devagarinho, afastando-nos dele o mais possível. Qualquer coisa na sua posição e no modo como olhava para os dois mais novos me deixou de sobreaviso.
- Pai, voltou para junto de nós! - exclamou o tom alegremente.
O pai voltou-se, imperturbável, como se não reconhecesse aquele rapaz enorme, de cabelos fulvos.
- Vim trazer-vos um presente de Natal - disse ele com um ar taciturno, sem alegria no olhar.
- Pai, onde esteve? - perguntou o tom, enquanto eu recuava e me recusava a saudá-lo, tal como ele se recusou a olhar na minha direcção e a notar a minha presença.
- Em sítio nenhum que te interesse.
Foi a única coisa que ele disse antes de se deitar no chão, ao lado da cadeira de balouço do avô, que acordou e lançou um sorriso débil ao filho. Pouco depois, estavam ambos a ressonar.
Em cima da mesa havia pacotes, sacos e caixotes de comida. Podíamos comer outra vez, mas só naquela noite quando estava na cama é que me interroguei sobre o tal magnífico presente que o pai trouxera para casa, tão grande que nem pudera carregar com ele. Seria roupa? Brinquedos? Ele nunca nos trazia brinquedos nem doces, embora eu desejasse ardentemente tudo isso.
No dia seguinte era dia de Natal.
- Obrigada, meu Deus - disse eu em voz baixa, cheia de gratidão, quando acabei de fazer as minhas orações, ajoelhada ao pé da cama. - Tu mandaste-o mesmo na altura certa, é verdade.
Na manhã do dia de Natal, estava eu a cozinhar os cogumelos que o tom descobrira na véspera, numa ravina do bosque, quando o pai se levantou do chão, foi à casinha de fora e depois voltou para dentro, com a barba por fazer e um aspecto desmazelado, e tirou a "Nossa" Jane e o Keith da sua cama quente e aconchegada. com os braços robustos, pegou neles com facilidade, olhando-os com afecto, enquanto eles o miravam com os olhos muito abertos e um ar assustado, como se já não o conhecessem. Agora, eles eram os meus filhos, já não eram dele. Ele não os amava como eu, caso contrário não os teria deixado sem comida durante tanto tempo. Apelando à minha força de vontade, dobrei a língua e continuei a cozinhar os cogumelos.
Excepcionalmente, tínhamos ovos, mas eu guardei o toucinho fumado para quando o pai se fosse embora outra vez. Não gastaria com ele nem uma fatia.
- Despacha-te com o pequeno-almoço, rapariga - ladrou o pai. - Temos companhia.
- Companhia?
- Onde está o presente de Natal? - perguntou o tom, entrando em casa, depois de uma hora passada a cortar lenha.
O pai aproximou-se da janela mais próxima, sem reparar que ela estava reluzente de limpeza, e olhou lá para fora.
- Veste esses dois, e despacha-te! - ordenou ele sem olhar para mim e pondo no chão a "Nossa" Jane e o Keith.
Porque brilhavam os olhos dele daquela maneira? Quem seria a companhia? A Sarah? Podia ser... Seria ela o nosso presente? Que maravilha, mas que maravilha!
A "Nossa" Jane e o Keith correram para mim, como se eu fizesse as vezes de mãe deles e personificasse a sua segurança, as suas esperanças e os seus sonhos, e eu apressei-me a limpar-lhes a cara. Pouco depois estavam vestidos com os seus melhores fatos, que eram muito pobres.
Em breve a vida iria melhorar, pensei eu. Ainda possuía aquele optimismo infantil que recusava tudo o que era horrível e deprimente durante o dia. Agarrei-me firmemente à esperança, apesar do que eu via nos olhos do pai se sentir no ar e nos meus ossos. Era qualquer coisa, qualquer coisa de mau. Ele deitou-me um olhar frio e duro antes de se concentrar no tom, na Fanny, e por fim no Keith e na "Nossa" Jane.
Dos cinco filhos ele preferia o tom, e a seguir a Fanny.
- Anda cá, querida - disse ele a Fanny, com um sorriso terno. - Não há outro abraço para o pai?
A Fanny riu-se. Tinha sempre um sorriso e um abraço para dar a quem reparasse que ela existia.
- Pai, eu rezei todas as noites, todos os dias para que o pai voltasse. Tinha tantas saudades suas que até doía.
Ela fez um ar amuado e perguntou-lhe onde é que ele estivera.
Ouvi o ruído de um automóvel a chegar e a parar. Aproximei-me da janela e avistei um homem forte e a mulher à espera, dentro do carro, como se aguardassem um sinal do pai. Ao olhar para ele, percebi que estava a tomar uma decisão difícil. Pegou na Fanny ao colo e afagou-lhe os longos cabelos negros.
- Agora, vocês têm de encarar a dureza dos factos começou ele a dizer, num tom áspero, com a dor estampada no rosto. - A vossa mãe nunca mais volta. As pessoas dos montes são assim. Quando resolvem fazer uma coisa, não há nada que as faça desistir. Nunca. Além disso, eu nunca mais a quero ver. Se ela aparecer por cá, pego na espingarda e dou-lhe um tiro.
Ele nem sorriu para mostrar que não estava a brincar. Nenhum de nós disse nada.
- Eu descobri uns tipos ricos que não podem ter filhos, e querem tanto ter um que estão dispostos a pagar bom dinheiro por ele. Querem uma criança pequena. Portanto, será o Keith ou a "Nossa" Jane. Agora, não gritem nem digam que não, porque isto está decidido. Se vocês querem vê-los crescer saudáveis e fortes, e terem coisas bonitas que eu não posso comprar-lhes, calem a boca e deixem que este casal escolha.
Eu senti-me gelada por dentro. Todas as minhas esperanças se desvaneceram ao saber o que o pai ia fazer. O pai era o pai e nunca, nunca se modificaria. Um Casteel que não prestava, abjecto, podre e bêbedo! Um homem sem alma nem coração, nem mesmo para os seus.
- Compete-me dar ao Keith ou à "Nossa" Jane o melhor presente de Natal... E que ninguém comece a gritar e a chorar nem estrague tudo. Vocês pensam que eu não vos tenho amor, mas eu tenho. Vocês pensam que eu não me preocupo com o que se passa nesta cabana, mas eu tenho-me preocupado. Tenho estado doente por dentro e por fora, a tentar arranjar uma maneira de vos salvar a todos. E uma noite destas, em que me sentia mais doente do que um cão a morrer de fome numa sarjeta, tive esta ideia.
Lançou um sorriso caloroso à Fanny e depois ao tom, ao Keith e à "Nossa" Jane, mas nem sequer olhou para mim.
- Já disse ao vosso avô. Ele acha que é uma boa ideia. Lentamente, a Fanny desceu do colo do pai e aproximou-se de mim, que tinha a "Nossa" Jane ao colo, e do tom que tinha as mãos apoiadas nos ombros estreitos e frágeis do Keith.
- Pai, o que tenciona fazer? - perguntou a Fanny, empalidecendo e mostrando-se preocupada, contra o que era costume.
O pai voltou a sorrir com um ar triunfante. (Na minha opinião, ele tinha um ar excepcionalmente manhoso.)
- Tenho andado a pensar quanto é que essa gente está disposta a pagar pelo que quer. Quanto a mim, tenho filhos a mais e não posso tomar conta deles. Há outros
que querem tê-los e não podem. Há muitos tipos ricos por aí que querem o que eu tenho a mais... Por isso é que eu vendo.
- Pai, está a brincar, não está? - perguntou o tom com um ar firme, começando a tremer.
- Cala a boca, rapaz - avisou o pai, em voz baixa mas forte. - Eu não estou a brincar. Estou a falar muito a sério. Cheguei à conclusão de que isto é o melhor que tenho a fazer. É a única saída. Pelo menos um de vocês não morrerá de fome.
Era aquele o nosso presente de Natal? A venda do Keith ou da "Nossa" Jane?
Senti-me nauseada. Os meus braços apertaram a "Nossa" Jane com força e escondi a cara nos seus cabelos macios e encaracolados.
O pai encaminhou-se para a porta e mandou entrar o casal que saíra do automóvel preto.
Uma senhora gorda com uns sapatos de salto alto entrou na cabana, seguida por um homem ainda mais gordo. Ambos traziam casacos quentes e pesados com golas de pele, luvas e uns grandes sorrisos que se desvaneceram quando viram a hostilidade estampada nas nossas caras. Em seguida, deram meia volta, lentamente, e contemplaram com um terror abjecto toda a nossa pobreza.
Ali não havia árvore de Natal, nem presentes, nem enfeites, nem embrulhos à vista. Nada que indicasse que não se tratava de mais um dia em que teríamos de penar.
E ali estava o pai, resolvido a vender um dos que lhe pertenciam.
É incrível, parecia dizer o olhar expressivo e escandalizado daquela gente da cidade.
- Oh, Lester - exclamou a mulher gorda e muito bonita, ajoelhando-se e tentando aconchegar o Keith ao seu peito enorme. - Ouviste o que ele disse quando nos aproximámos dos degraus? Não podemos deixar esta criança encantadora morrer à fome! Olha para os olhos dele, tão grandes, tão bonitos. Olha para este cabelo fino como a seda. E está limpo. Tem um ar encantador. E aquela menina que a mais velha tem ao colo... É um amor, não é, Lester?
A única coisa que eu sentia era pânico. Oh, porque é que eu havia de lhes ter dado banho e lavado a cabeça com champô na véspera? Porque é que eles não haviam de estar sujos para ela não os querer? Desatei a soluçar e agarrei-me à "Nossa" Jane que se abraçou a mim a tremer de medo. Talvez fosse melhor para a "Nossa" Jane e para o Keith irem-se embora... E para mim? Eles eram meus, não eram dela. Ela não passara as noites com eles, a embalá-los, a dar-lhes de comer, não gastara horas e horas, que poderiam ter sido passadas a brincar.
Apeteceu-me gritar: "Vão-se embora, vão-se embora.", mas o que disse eu? Isto:
- A "Nossa" Jane tem apenas sete anos. - A minha voz era rouca, quando me resolvi a salvar a "Nossa" Jane daquela mulher e daquele homem. - Ela e o Keith nunca estiveram fora de casa. Eles não podem separar-se um do outro; senão choram, gritam e morrem de tristeza.
- Sete anos! - murmurou a mulher, visivelmente chocada. - Julguei que ela era mais nova. Eu queria uma criança mais nova. Lester, acreditas que ela tenha sete anos... E que idade tem o menino?
- Oito! - exclamei eu. - É demasiado crescido para ser adoptado. E a "Nossa" Jane é doente - continuei eu, cheia de esperança. - A verdade é que ela nunca foi aquilo a que se pode chamar uma criança saudável. Vomita muitas vezes, apanha as doenças todas, constipa-se constantemente e tem febres altas...
E eu teria continuado a tentar arruinar as hipóteses da "Nossa" Jane, porque não podia suportar vê-la partir, quer fosse ou não para seu bem... Mas o pai ralhou comigo e mandou-me calar.
- Então levaremos o menino - disse o homem gordo chamado Lester, puxando da sua carteira de couro muito cheia. Eu sempre quis ter um filho, e aquele menino tem bom aspecto e vale bem o preço que o senhor pede, Mister Casteel.
-Quinhentos, não é verdade?
A "Nossa" Jane começou a chorar.
- NÃO, NÃO, NÃO! - gritou-me ela ao ouvido. Libertou-se de mim e correu para o Keith, abraçou-se a ele
e continuou a gritar. Eram gritos terríveis que exprimiam o tipo de angústia que uma criança nunca deveria sentir. O Keith viu a sua aflição e agarrou-se à irmã.
- O Keith não é o que o senhor espera de um filho - disse eu, desesperada. - É muito calado, tem medo da escuridão, está quase sempre assustado... Não suporta estar longe da irmã. Tu não queres ir, pois não, Keith?
- Eu não quero ir! - gritou o Keith.
- NÃO, NÃO, NÃO! - chorou a "Nossa" Jane.
- Oh, Lester... Isto não é de partir o coração, de partir o coração? Não podemos separar estes dois anjinhos. Lester, porque não levamos os dois? Nós temos dinheiro para isso, e assim eles não choram nem sentem tanto a falta da família, se se tiverem um ao outro. E tu terás o teu filho, e eu terei a minha filha, e seremos muito felizes, uma família de quatro pessoas.
Oh, meu Deus! Ao tentar salvar cada um deles, perdera os dois!
Contudo, ainda havia esperança, porque Lester estava hesitante, apesar da insistência da mulher. Se ao menos o pai estivesse calado, mas ele disse com um ar triste e preocupado:
- A isso é que eu chamo qualidade, uma senhora com um coração de ouro, que quer levar os dois em vez de um.
Aquilo bastou para que Lester tomasse a sua decisão, e lá estava ele a puxar de uns documentos e a acrescentar uma ou duas linhas antes de assinar. O pai inclinou-se para apor a sua assinatura com esmero.
Por muita dificuldade que o pai tivesse em escrever, e por muito lento que fosse, percebi, quando ele acabou, que a sua assinatura estava tão bonita como qualquer outra. Tal como para muitas outras pessoas ignorantes, para o pai contava mais a aparência do que o conteúdo.
Durante aquela cena, recuei até ao fogão e peguei no pesado atiçador de ferro. Assim que peguei nele, levantei-o bem alto e tive a coragem de gritar ao pai:
- Acabe com isso! Não consinto que faça uma coisa dessas! Pai, se as autoridades souberem, metem-no na cadeia, se o pai vender quem é da sua carne e do seu sangue! O Keith e a "Nossa" Jane não são porcos nem galinhas que estejam à venda, são seus filhos!
O pai mexeu-se com a rapidez de um relâmpago, apesar de o tom vir a correr proteger-me. Torceu-me o braço até me fazer doer e eu fui obrigada a largar o atiçador, caso contrário, ele partia-me o braço. O atiçador caiu ao chão, com estrondo.
O homem forte olhou para mim, alarmado.
- Mister Casteel, o senhor disse que falara nisto aos seus outros filhos. Eles concordaram, não é verdade?
- Claro que concordaram - mentiu o pai. O seu encanto e a sua sinceridade criaram uma espécie de aura magnética de integridade que convenceu o casal com facilidade. - O senhor sabe como são as crianças, concordam com uma coisa num dado momento e a seguir fazem barulho. Daqui a pouco tempo, quando eles virem o que este dinheiro pode comprar, toda a gente aqui em casa vai reconhecer que eu dei o passo certo.
NÃO, NÃO, gritou uma voz dentro de mim. Não acreditem nele, que é um mentiroso! Mas fiquei sem fala, apanhada no horror de saber que talvez nunca mais visse o meu irmão e a minha irmã.
Num ápice, o Keith e a "Nossa" Jane foram vendidos, como porcos no mercado, e o homem chamado Lester disse ao pai:
- Esperamos que perceba, Mister Casteel, que esta venda constitui um acto legal, e que nunca poderá tentar recuperar os seus dois filhos a partir do momento em que sairmos daqui. Eu sou advogado e redigi um contrato que diz que o senhor está plenamente consciente do que está a fazer, e das consequências deste acto, e este contrato refere firmemente que o senhor, de sua livre vontade, sem altercação, discussão, persuasão ou uso da força, concordou em vender os seus filhos mais novos a mim e a minha mulher, e que desiste irrevogavelmente de todos os direitos a voltar a vê-los, ou de contactá-los no futuro, seja de que maneira for.
Eu dei um grito. O pai talvez nem soubesse o que irrevogavelmente queria dizer.
Ninguém me prestou atenção, mas o tom veio para o meu lado e puxou-me para si.
- Isso não vai acontecer, Heavenly - segredou ele. Depois de ouvir isto tudo, o pai não vai aceitar.
- E, através dele, o senhor cede-nos o direito - continuou o advogado, apontando para o sítio onde ele e a mulher tinham assinado - de tomarmos todas as decisões relacionadas com o futuro dos seus dois filhos, Keith Mark Casteel e Jane Ellen Casteel, e se o senhor procurar, por via legal ou ilegal, tirá-los a mim e à minha mulher, será condenado a pagar todas as custas do processo e honorários do advogado, e todas as despesas suportadas por nós durante o período em que as crianças estiverem ao nosso cuidado, e é claro que haverá muitas outras coisas a pagar, como despesas médicas e do dentista, pois tencionamos levar as duas crianças ao médico e ao dentista quanto antes, para fazerem exames. Além disso, vamos mandá-las para a escola, comprar-lhes roupa nova, livros, brinquedos e mobiliário adequado para os seus quartos. E haverá outros pontos de que não me lembro agora...
Oh, meu Deus.
O pai nunca teria dinheiro para os comprar outra vez! Nem daí a um milhar de anos!
- Eu compreendo perfeitamente - respondeu o pai, sem se mostrar minimamente preocupado. - É uma das razões pelas quais eu faço o que faço. À "Nossa" Jane precisa de cuidados médicos, e talvez o Keith precise também. É por isso que, apesar de a minha filha mais velha ter reagido com emoção, ela disse a verdade; portanto, os senhores sabem exactamente com o que contam.
- Uma menina amorosa que vai dar-se muito bem - cantarolou a senhora gorda, que agarrou no braço frágil da "Nossa" Jane para impedir que ela se soltasse e corresse de novo para mim. - Um menino adorável! - acrescentou ela, dando uma palmadinha na cabeça do Keith que estava, como sempre, o mais perto possível da "Nossa" Jane, de mão dada.
Se ela não fugisse, ele também não fugiria.
Eu chorava. Ia perder o irmão e a irmã que ajudara a criar. Vieram-me à memória todas as recordações sobre a sua aparência e o modo como se comportavam em bebés e quando começaram a andar, e os olhos encheram-se-me de lágrimas. Vieram-me à ideia certas imagens: todos nós nas montanhas, a ensinarmos a "Nossa" Jane a andar; e como ela era engraçada com as pernas arqueadas e os dedinhos dos pés, de braços estendidos para se equilibrar. O tom e eu a orientarmos os primeiros passos do Keith, também. Eu a ensinar-lhes como deviam falar com clareza, com correcção, e a Fanny sempre muito ciumenta porque eles gostavam mais de mim, e a seguir do tom.
Eu sentia-me atordoada, gelada pelo olhar proibitivo que o pai deitara na minha direcção, avisando-me para não voltar a falar, enquanto ele arrecadava mais dinheiro do que noutra altura qualquer da sua vida.
Mil dólares.
O entusiasmo fez chispar os seus olhos escuros como se fossem brasas.
- Fanny, está a começar a chover - disse o pai, mostrando-se preocupado com aqueles dois, com os seus fatos caros e quentes, quando não demonstrara qualquer preocupação connosco. - Vai buscar aquele chapéu de chuva velho que temos aí para a senhora não estragar o seu belo penteado.
O pai juntou o Keith e a "Nossa" Jane e ordenou-lhes que parassem de chorar, e eu fui a correr buscar uma manta para os embrulhar.
Voltei, com a melhor manta que tínhamos, e que fora cosida à mão pela avó, há vários anos.
- Eles não têm casacos, nem chapéus, nem botas, nem nada - disse eu à senhora, com veemência. - Por favor, trate-os bem... Dê-lhes muito sumo de laranja e de outros frutos. E carne, sobretudo carne. Nós nunca comemos carne suficiente, nem mesmo de galinha ou de porco. A "Nossa" Jane adora fruta e não come muito de outras coisas. Mas o Keith tem muito apetite, apesar de se constipar com frequência, e ambos têm pesadelos. Portanto, não os deixe completamente às escuras para eles não se assustarem...
- Cala-te - disse o pai, entre dentes.
- Olha, minha filha, eu serei boa para o teu irmão e para a tua irmã - disse a senhora, com delicadeza, tocando-me ao de leve na face e mostrando ter pena de mim.
- Tu és muito dedicada, pareces mesmo uma mãe em ponto pequeno.
Não, não te preocupes com eles. Eu não sou má, nem o meu marido. Seremos meigos para eles. Vamos dar-lhes roupa nova, e a manhã do dia de Natal espera-os em nossa casa, com tudo o que os seus corações podem desejar. Não sabíamos se havíamos de levar o menino ou a menina, portanto comprámos coisas para ambos os sexos... Um cavalinho de pau, um triciclo, uma casa de bonecas, uma série de camionetas, carrinhos e roupa... Não chegam para os dois, mas eles poderão partilhá-las até nós irmos às compras outra vez. Amanhã iremos comprar-lhes tudo aquilo de que eles precisarem. Portanto, fica descansada, querida. Não chores. Não te preocupes. Faremos o possível por sermos uns pais maravilhosos. Não é verdade, Lester?
- Sim - respondeu Lester à pressa, desejoso de se ir embora. - Vamo-nos embora, querida. Está a fazer-se tarde, e temos um longo caminho à nossa frente.
O pai estendeu a "Nossa" Jane à mulher, e o homem levou o Keith, que já dera luta e que agora estava só a chorar, tal como a "Nossa" Jane.
- Hev... lee... Hev... lee! - soluçava a "Nossa" Jane, estendendo-me os bracinhos magros. - Eu não quero ir, não quero ir...
- Despacha-te, Lester. Não suporto ver esta criança a chorar.
Saíram os dois à pressa com as duas crianças a chorar, e o pai a correr atrás, com um ar servil, e a segurar no chapéu de chuva por cima da cabeça da senhora e da "Nossa" Jane.
Eu deixei-me cair no chão e desatei a soluçar.
O tom foi a correr à janela e, apesar de não querer ver, eu dei um salto e fui a correr pôr-me ao lado dele. De cócoras, a Fanny olhava lá para fora.
- Quem me dera que eles me tivessem escolhido - dizia. - Oh, Jesus que estás na Sagrada Cruz, quem me dera ter aquilo tudo na manhã do dia de Natal! Porque é que eles não me quiseram em vez da "Nossa" Jane, que está sempre a chorar? E o Keith não é muito melhor, e faz chichi na cama. Porque é que não lhes disseste isso, Heaven, porquê?
Eu limpei as lágrimas e tentei dominar as minhas emoções. Tentei dizer a mim mesma que não era assim tão mau perder a "Nossa" Jane e o Keith, já que eles teriam tantas coisas boas: laranjas para comer, e brinquedos para brincar, e um médico para tratar a "Nossa" Jane.
Em seguida, corri para o alpendre para gritar, sem fôlego, no preciso momento em que o automóvel preto se preparava para arrancar:
- E ponham-nos em boas escolas... por favor! A senhora abriu um vidro da janela e acenou.
- Por favor, não te preocupes, querida - gritou ela.
- Eu escrevo-te de vez em quando a dizer como é que eles estão, mas sem remetente.
E fechou o vidro outra vez, abafando o choro angustiado da "Nossa" Jane e do Keith.
O pai nem sequer se incomodou a entrar outra vez na cabana para perguntar aos filhos a opinião deles sobre o "presente de Natal" que acabara de lhes oferecer.
Desatou a correr, como se fugisse do meu olhar acusador; de mim e de todas as palavras amargas que tinha prontas para lhe gritar na cara. Saltou para o velho camião e partiu, deixando-me a pensar que em breve dissiparia os seus mil dólares em prostitutas, em álcool e no jogo. E naquela noite, quando se deitasse, não pensaria uma só vez na "Nossa" Jane, no Keith e em nenhum de nós.
Como um bando de galinhas paralisadas por estranhos acontecimentos que ultrapassavam a nossa compreensão, chegámo-nos uns aos outros, com o avô sentado, em silêncio, a esculpir como se nada tivesse acontecido, e depois trocámos olhares. Pouco depois, a Fanny desatou a chorar. Abraçou-me e disse, entre soluços:
- Eles ficarão bem, não é verdade? As pessoas gostam de todas as criancinhas, mesmo daquelas que não lhes pertencem, não é verdade?
- Sim, claro que sim - disse eu, tentando estancar as lágrimas e guardar a minha angústia para mais tarde, quando estivesse sozinha. - E nós havemos de voltar a vê-los. Se a senhora escrever cartas muito compridas, havemos de saber como eles estão, e um dia a "Nossa" Jane e o Keith saberão escrever cartas. Não será uma maravilha... Não será... uma maravilha?
Tive outro ataque de choro, e as lágrimas começaram a rolar-me pela cara, antes de eu conseguir fazer uma pergunta muito importante.
- tom, tomaste nota da matrícula do carro deles?
- Claro que tomei - respondeu ele com voz rouca. - São de Maryland. Mas não tive tempo de ver os três últimos números. Os primeiros eram nove, sete, dois. Fixa isso.
Tom reparava sempre nessas coisas. Eu, não.
Agora, os pequeninos que me davam tantas preocupações tinham partido. Não haveria choros durante a noite nem de manhã. Não haveria camas nem colchas molhadas, nem tanta roupa para lavar e haveria muito espaço na cama de latão.
Como a pequena cabana pareceria vazia, como seriam tristes as horas, os minutos e os segundos que se seguiriam à partida da "Nossa" Jane e do Keith! E talvez, na longa caminhada que os esperava, fosse melhor para eles terem partido, sobretudo porque aquelas pessoas pareciam ser muito ricas. Mas... e nós? O amor não tinha valor nenhum? Não era o sangue o laço que nos unia, e não o dinheiro?
- Avô - disse eu, sempre com a voz rouca -, agora temos lugar para si na cama.
- Não é próprio nem saudável misturar os velhos com os novos.
O avô falou, falou em voz baixa, com as mãos enrugadas e a tremer, como se sofresse de uma antiga sezão. Os seus olhos sem vida suplicaram-me que compreendesse.
- O Luke é bom rapaz, a sério. Ele tinha boas intenções. Embora vocês não saibam. Ele só queria ajudar, mais nada. Agora não comecem a pensar mal do vosso pai, quando ele fez tudo o que sabia fazer.
- O avô diria bem dele fosse o que fosse que ele fizesse, "porque ele é seu filho, o único que lhe resta. Mas de hoje em diante, ele não é meu pai! De hoje em diante, não lhe chamo pai. Ele passa a ser Luke Casteel, um homem feio, mau e mentiroso, e um dia ele há-de pagar por todo o sofrimento que nos causou! Odeio-o, avô, odeio as entranhas dele! Odeio-o tanto que até me sinto agoniada!
O seu pobre rosto engelhado, que já era pálido e enfermiço, ficou lívido, atravessado por um milhão de rugas, e ele não era assim tão velho.
- A Bíblia manda que honremos pai e mãe... Lembra-te disso, Heaven, minha filha.
- Porque é que a Bíblia não manda que honremos os filhos, avô, porquê?
Desencadeou-se outra tempestade, que se transformou num nevão. A neve chegava ao cimo das janelas e cobria o alpendre. As placas de gelo impediam-nos de ver através do vidro ondulado e barato, mesmo depois de o tom ter ido lá fora afastar a neve com uma pá. Felizmente, o pai trouxera comida que nos daria para alguns dias.
A tristeza reinava na cabana, sem o chilrear alegre da "Nossa" Jane e o silêncio doce do Keith. Esqueci todas as preocupações que a "Nossa" Jane me dera, esqueci o choro lamuriento, o estômago tempestuoso que era tão difícil de contentar. Só me lembrava do corpinho terno, da doçura da sua nuca, cheia de caracóis húmidos quando ela estava a dormir. Pareciam dois anjos quando se aconchegavam na cama e fechavam os olhos; lembrei-me do Keith e de como ele gostava que o embalassem até adormecer e queria que lhe contassem histórias que já lera centenas de vezes. Lembrei-me dos seus doces beijos de boas-noites, da suas pernas fortes; ouvi a sua vozinha a rezar, e vi a "Nossa" Jane ao lado dele, ambos ajoelhados, descalços, com os dedos dos pés encaracolados; nunca tinham tido uns pijamas bonitos. Solucei, senti-me nauseada, má, odiosa, e tudo aquilo de que me lembrava se transformava em balas de aço que mais cedo ou mais tarde haviam de abater o homem que me tirara tanta coisa.
O pobre do avô esquecera-se de falar. Agora andava tão calado como no tempo em que a avó era viva, e não esculpia, não tocava violino, e limitava-se a olhar para o ar e a balouçar-se, para trás e para a frente, para trás e para a frente, para trás e para a frente. De vez em quando, dizia uma prece que nunca era atendida.
Todos nós dizíamos preces que nunca eram atendidas.
Em sonhos, vi a "Nossa" Jane e o Keith a acordarem para uma fantasia que eu acreditava ser a mais alegre das manhãs de Natal. Vi-os enfiados nuns lindos pijamas de flanela vermelha, a brincarem numa sala de estar elegante, onde uma magnífica árvore de Natal abrigava todos os brinquedos e roupa nova que tinha por baixo. Rindo-se, envoltos na alegria silenciosa dos sonhos, os meus irmãos mais novos correram a abrir todos os presentes, dentro de automóveis em miniatura. A "Nossa" Jane cabia na casa de bonecas; e as meias compridas e coloridas estavam cheias de laranjas, de maçãs, de doces e pastilhas elásticas, e de caixas de bolinhos; e finalmente veio uma refeição servida numa longa mesa com uma toalha branca, reluzente de cristais e de pratas. Um peru enorme e dourado chegou numa travessa de prata, rodeado de todas aquelas coisas que tínhamos comido no restaurante, e havia torta de abóbora, saída directamente de uma das revistas de papel lustroso que eu vira. Oh, as coisas que os meus sonhos ofereciam à "Nossa" Jane e ao Keith!
Sem o Keith nem a "Nossa" Jane para me distraírem, eu dava mais ouvidos à Fanny, que estava sempre a lamentar-se por não ter sido a escolhida para ir com aquela gente rica, com os seus belos fatos e o carro grande.
- Podia ter sido eu e não a "Nossa" Jane que aquela senhora rica queria, se eu tivesse tido tempo de lavar a cabeça e de tomar um banho - disse ela pela centésima vez. – Tu gastaste a água quente toda com eles, Heaven. Uma egoísta, é o que tu és! Aquela gente rica não gostou de mim porque eu estava mal arranjada. Porque é que o pai não nos avisou para estarmos prontos?
- Fanny! - exclamei, perdendo por completo a paciência. - O que se passa contigo? Ires assim com estranhos que nem sequer conheces. Só Deus sabe o que aconteceria...
Depois soçobrei e desatei a chorar. O tom veio consolar-me.
- Vai correr bem. Eles tinham aspecto de ser ricos e boas pessoas. Um advogado tem de ser inteligente. E pensa nisto: não teria sido horrível se o pai os tivesse vendido a gente tão pobre como nós?
Tal como eu esperava, o avô tomou o partido do filho.
- O Luke só faz o que julga ser melhor... E tu cala-te, rapariga, quando voltares a vê-lo, não vá ele fazer-te mal. Este sítio não é próprio para crianças, de modo nenhum. Foi preferível eles terem partido. Pára de chorar e aceita o que não pode ser alterado. A vida é isso, mantermo-nos firmes contra o vento.
Eu já devia saber que o avô, tal como a avó, não nos ajudava sempre que se falava no pai. Ela tinha sempre desculpas para explicar o comportamento brutal do filho. Era bom homem, tinha bom coração. Por baixo daquela crueldade toda, era um homem frustrado que não conseguia encontrar o caminho certo.
Um monstro ao qual só um pai poderia ter amor, na minha opinião.
Eu estava muito distante do velho que me desiludia de tantas maneiras. Porque é que o avô não era mais forte e não defendia os nossos direitos? Porque é que ele não abria a sua boca silenciosa e fazia bom uso da língua? Porque é que os seus pensamentos saíam sob a forma de pequenas e encantadoras figurinhas de madeira? Ele podia ter dito ao filho que não vendesse os filhos. Todavia, não dissera uma palavra, uma só palavra.
Como eu me sentia amarga ao pensar que o meu avô ia à igreja todos os domingos, sempre que podia, cantar, levantar-se e rezar de cabeça baixa, e depois voltava para uma casa onde as crianças eram vergastadas, mal alimentadas, brutalizadas e depois vendidas.
- Vamos fugir - segredei ao tom quando a Fanny adormeceu e o avô estava na sua esteira. - Quando a neve derreter, antes de o pai voltar outra vez, pegamos na nossa roupa e vamos ter com Miss Deale. Ela já deve ter voltado de Baltimore. De certeza. Ela dir-nos-á o que havemos de fazer, e como havemos de recuperar a "Nossa" Jane e o Keith.
Sim, Miss Deale havia de saber, se é que alguém sabia, como contrariar o pai e impedi-lo de nos vender a desconhecidos. Miss Deale sabia muitas coisas que o pai nunca havia de saber; ela tinha conhecimentos.
Há três dias que nevava sem parar.
Depois, de repente, de uma forma dramática, o Sol apareceu por trás das nuvens. A luz forte e difusa quase nos cegou quando o tom abriu a porta da frente para espreitar lá para fora.
- Acabou - murmurou o avô com voz fraca. - É assim que faz Nosso Senhor. Salva os seus quando nós pensamos que não podemos viver nem mais uma hora.
Como é que nós estávamos salvos? Não estávamos salvos pela luz do Sol, apenas um pouco mais quentes. Voltei-me de novo para o armário velho e desconjuntado onde guardávamos a nossa miserável reserva de alimentos. Mais uma vez, não havia nada para comer excepto umas nozes colhidas no Outono.
- Mas eu gosto de nozes - disse o tom alegremente, instalando-se para mastigar a sua ração de duas. - E quando a neve derreter o suficiente, podemos vestir a nossa roupa mais quente e fugir. Não seria bom irmos para ocidente, para o lado do sol? íamos dar à Califórnia, vivíamos de tâmaras e de laranjas e bebíamos leite de coco. Dormíamos na erva dourada, a contemplar as montanhas douradas...
- Eles têm ruas douradas em Hollywood? - perguntou a Fanny.
- Desconfio que em Hollywood tudo é de ouro. Ou então de prata - respondeu o tom, pensativo, sempre a olhar lá para fora.
O avô não disse nada.
Vivíamos numa região caprichosa. A Primavera podia chegar tão depressa como um relâmpago e provocar exactamente os mesmos estragos. Os dias primaveris aqueciam a terra em Dezembro, Janeiro e Fevereiro, faziam desabrochar as flores antes de tempo, enganavam as árvores, que eram obrigadas a dar folhas; depois o Inverno voltava, matava as folhinhas novas, e quando chegava a verdadeira Primavera, aquelas árvores e aquelas flores não repetiam os seus processos, pois já tinham sido enganadas uma vez, e não se deixariam enganar de novo, pelo menos naquela estação.
Agora o sol transformava os montículos de neve acumulada numa papa lamacenta que dentro de pouco tempo se derreteria e correria na direcção dos ribeiros, arrastando as pontes na corrente... E os carreiros perdiam-se nos bosques. Não era possível fugir naquela altura em que a ponte desaparecera. Exausto e extremamente cansado da sua longa busca para encontrar uma saída, o tom voltou para casa e relatou a perda da ponte mais próxima.
- A corrente vai muito rápida e forte, senão podíamos atravessar a nado. Amanhã será melhor.
Eu pousei Jane Eyre, o romance que estava a reler, e aproximei-me do tom. Estávamos ambos calados quando a Fanny veio a correr ter connosco.
- Vamos fazer um juramento solene - segredou o tom, para o avô não ouvir. - Fugiremos na primeira oportunidade que tivermos. Ficaremos juntos para o bem e para o mal, um por todos e todos por um... Heavenly, nós já dissemos isto um ao outro em tempos. Agora, temos de contar com a Fanny. Fanny, põe a tua mão em cima da minha. Mas primeiro jura, e morrerás se permitires que nos separemos.
A Fanny pareceu hesitar, e depois, com uma camaradagem fraterna que era rara nela, pôs a mão por cima da minha, que estava por cima da mão do tom.
- Juramos solenemente... - repetimos eu e a Fanny.
- Estar sempre juntos, cuidarmos uns dos outros nas alegrias e nas tristezas...
A Fanny hesitou outra vez.
- Porque falas em tristezas? Isto até parece um casamento, tom.
- Está bem, na saúde e na doença, para o bem e para o mal, até que a "Nossa" Jane e o Keith se juntem a nós outra vez... Isto basta para vocês as duas?
- Está bem, tom - respondi eu, depois de repetir os seus votos.
Até a Fanny ficou impressionada, e mais parecia uma verdadeira irmã, como nunca fora, quando se aconchegou a meu lado, e falámos do nosso futuro, no grande mundo lá de fora sobre o qual nada sabíamos. A Fanny até me ajudou a mim e ao tom a procurar amoras no bosque, enquanto esperávamos que a corrente abrandasse e pudéssemos reconstruir a ponte.
- Olhem, lembrei-me agora de uma coisa - disse o tom de repente, passadas umas horas. - Há outra ponte a trinta quilómetros e poderemos lá chegar se formos suficientemente determinados. Heavenly, se tivermos de andar trinta quilómetros ou mais, precisaremos de mais de uma noz por cabeça, já te digo.
- Achas que nos podemos arranjar com duas nozes por cabeça? - perguntei eu, que fizera uma reserva para uma emergência como esta.
- Bem, com toda essa energia, talvez vamos a pé até à Florida - respondeu o tom, soltando uma gargalhada.
- O que seria quase tão bom como a Califórnia.
Vestimos a melhor roupa que tínhamos e reunimos tudo o que nos pertencia. Eu tentei não pensar que iríamos deixar o avô sozinho. A Fanny estava desejosa de fugir de uma cabana onde só a tristeza, a velhice e o desespero tinham vindo para ficar. com um sentimento de culpa e uma determinação eivada de relutância, beijámos o avô e despedimo-nos dele.
Levantou-se, muito a custo, sorriu-nos, e disse-nos adeus como se a vida nunca lhe reservasse surpresas.
Eu levava na mão a mala da minha mãe que a Fanny vira finalmente, embora o seu entusiasmo tivesse esmorecido pelo facto de saber que íamos partir... Para qualquer lado.
- Adeus - gritámos os três em uníssono, mas eu voltei para trás enquanto o tom e a Fanny corriam lá para fora.
- Avô - disse eu, embaraçada, mesmo ferida por dentro. - Perdoe-nos por lhe fazermos isto. Eu sei que não está certo deixá-lo sozinho, mas tem de ser. Se não, seremos vendidos como o Keith e a "Nossa" Jane. Por favor, compreenda.
Ele olhou bem de frente, com a navalha numa mão e um pedaço de madeira na outra, para aparar, e os cabelos ralos a voarem ao vento.
- Havemos de voltar um dia, quando formos crescidos e velhos de mais para o pai nos vender.
- Está bem, filha - respondeu o avô, com a cabeça muito baixa para eu não lhe ver as lágrimas. - Toma cuidado.
- Gosto muito de si, avô. Talvez nunca lhe tenha dito isto, e não sei porquê, porque sempre gostei de si.
Aproximei-me dele para o abraçar e beijar. Ele cheirava a velho, a azedo e a pele dele picou-me os braços.
- Nós não o abandonaríamos se houvesse outra solução, mas temos de tentar encontrar um sítio melhor.
Mais uma vez ele sorriu por entre as lágrimas, fez um aceno de cabeça como se acreditasse nas minhas palavras, e voltou a sentar-se na cadeira de balouço.
- O Luke há-de voltar depressa com comida... Por isso, não te preocupes. Desculpa os disparates que eu disse, mas foi sem intenção.
- Que disparates é que disse? - berrou uma voz grossa, vinda da porta aberta.
DESPEDIDAS A MAIS
O pai apareceu à porta, enorme e com um ar furibundo. Trazia um espesso casaco encarnado que lhe chegava até às ancas. Novinho em folha. As botas eram as melhores que eu lhe vira alguma vez, assim como as calças; o chapéu tinha uma tira de pele que o atravessava de um lado ao outro, com protecções para as orelhas nas extremidades. Trazia mais caixotes de comida.
- Voltei - disse ele com uma voz indiferente, como se tivesse partido na véspera. - E trouxe comida.
E depois voltou-se para sair, ou pelo menos foi o que eu pensei.
A pouco e pouco foi trazendo para dentro o que tinha no camião. De que nos valia agora fugir, se as pernas compridas do pai nos apanhariam e ele nos traria de novo para casa... Se é que não resolvia ir atrás de nós no camião?
Acima de tudo, a Fanny não quis fugir.
- Pai! - gritou ela, feliz e entusiasmada, dançando à roda dele e tentando arranjar maneira de abraçá-lo e beijá-lo antes de ele tirar os mantimentos todos do camião.
Tantas vezes tentou atirar-se para os braços dele que conseguiu.
- Oh, pai. Veio salvar-nos outra vez! Eu sabia que viria, eu sabia que gostava de mim! Agora, já não temos de fugir! Nós tínhamos fome e frio e íamos à procura de comida, ou roubá-la, e esperar que a neve derretesse e que as pontes se vissem outra vez, e eu sinto-me tão feliz por não termos de fazer nada disso!
- com que então iam fugir à procura de comida, hem? perguntou o pai, de lábios cerrados e olhos quase fechados.
- Vocês não podem fugir para lado nenhum sem que eu vos descubra. Agora sentem-se e comam, e preparem-se para a companhia que está a chegar.
Ia acontecer outra vez!
O rosto da Fanny iluminou-se, como se se tivesse ligado um interruptor.
- Oh, pai, desta vez sou eu, não sou? Não sou? Deixe que seja eu!
- Prepara-te, Fanny - ordenou o pai, deixando-se cair numa cadeira com tal força que quase a derrubou. - Encontrei uns novos pais para ti, tal como me pediste, e tão ricos como aqueles que levaram a Jane e o Keith.
Aquela informação fê-la guinchar de prazer. Foi a correr aquecer um tacho com água no fogão. Enquanto a água aquecia, puxou para fora o velho alguidar de alumínio que nos servia a todos de banheira.
- Oh, preciso de roupa melhor! - lamentou-se a Fanny, quando a água começou a ferver. - Heaven, não podes fazer nada de um vestido teu, que me fique bem?
- Não farei nada para te ajudar a partir - respondi, com uma frieza tal que me gelou a garganta, no momento em que as lágrimas me vinham aos olhos. A Fanny ralava-se tão pouco por nos deixar e quebrar o seu juramento.
- tom, vai a correr buscar-me água que chegue para encher o alguidar e lavar a cabeça! - chamou ela, com a sua voz mais doce.
O tom obedeceu, embora com relutância.
Talvez o pai me lesse os pensamentos. Olhou na minha direcção, apercebeu-se do meu olhar duro e penetrante, e talvez tenha percebido pela primeira vez por que razão é que me odiava, eu que era tão diferente do seu anjo. Eu teria mais juízo e não me apaixonaria por um homem das montanhas, um ignorante que vivia numa cabana e contrabandeava bebidas alcoólicas. Parece que ele leu na minha mente, porque a sua boca abriu-se num sorriso trocista que lhe deixou à mostra os dentes de cima e o desfeou.
- E agora, vais fazer alguma coisa, rapariga? Vá! Faze! Estou à espera.
Inconscientemente, peguei outra vez no atiçador. O tom entrou, pousou o balde de água à pressa, e deu um salto para me impedir de usar o atiçador.
- Ele mata-te se fizeres isso - segredou-me ele, assustado, obrigando-me a recuar para um sítio mais seguro.
- Tu és o campeão, não és? - perguntou o pai, olhando para o tom com desdém.
com um movimento casual, levantou-se, bocejou, como se não tivessse acontecido nada que nos levasse a odiá-lo.
- Eles estão a chegar. Despacha-te, Fanny. Vais ver como o pai gosta de ti quando vires quem é que vem buscar-te para te tratar melhor do que a uma princesa.
Mal ele pronunciou estas palavras, um automóvel entrou no nosso quintal imundo. Não era um automóvel que nos fosse estranho, era um automóvel que conhecíamos muito bem, porque já o víramos muitas vezes nas ruas de Winnerrow. Era um Cadillac preto, comprido e reluzente, que pertencia ao homem mais rico de Winnerrow, o reverendo Wayland Wise.
Finalmente, finalmente! Miss Deale descobrira uma forma de nos salvar!
Guinchando ainda mais, a Fanny cruzou os braços sobre os seios pequenos e deitou-me um olhar convencido e deliciado.
- EU! Eles querem-me a MIM!
Pouco depois enfiava aquilo que até aí fora o meu melhor vestido.
O pai abriu a porta de par em par e cordialmente convidou a entrar o reverendo e a mulher, de rosto magro, que não sorriu nem abriu a boca, com um ar azedo e infeliz. Ela não reparou naquilo que teria constituído um choque para pessoas tão ricas, mas depois percebi que ela já devia estar à espera que nós vivêssemos naquelas condições. Quanto ao atraente reverendo, não perdeu um momento.
Eu enganara-me ao pensar que fora Miss Deale que os enviara para nos salvar, e muito menos fora Deus a fazer um dos seus milagres. A Fanny estava muito mais consciente da realidade do que eu. O representante de Deus já sabia qual de nós três é que queria, apesar de me ter deitado um olhar demorado e lascivo quando nos observou de perto.
Eu recuei, muito assustada com o santo homem. Deitei um olhar furioso ao pai e reparei que ele abanava a cabeça, como se não quisesse que eu ficasse a viver tão perto da sua casa.
E confirmei-o quando o pai disse:
- A minha mais velha só arranja sarilhos, tem a resposta pronta, é teimosa, estúpida e má, reverendo Wise e Mistress Wise. Vão por mim, esta rapariga mais nova, a Fanny, é a melhor escolha. A Fanny é fácil de levar, bonita e meiga. Eu até lhe chamo a minha pomba, a minha corça, a minha linda, a minha querida Fanny.
Mas que mentira! Ele nunca chamara a nenhum de nós aqueles nomes carinhosos.
Desta vez não haveria gritos, nem lutas, nem resistências. A Fanny não podia sentir-se mais feliz. O seu sorriso era a prova de que ela se sentia feliz. O reverendo ofereceu a todos nós umas caixas de chocolate e também ofereceu à Fanny um belo casaco encarnado, mesmo do tamanho dela, com uma gola preta de pele. A Fanny ficou rendida. Era o que faltava!
Nem os ouviu falar no belo quarto que eles tinham mandado decorar ao gosto dela e de outras coisas que tencionavam proporcionar-lhe, tais como lições de dança e de música.
- Eu serei o que os senhores quiserem! - gritou a Fanny, com os olhos negros a brilhar. - O que quiserem! Estou pronta, desejosa, ansiosa por me ir embora! E obrigada por terem vindo, por me quererem a mim, obrigada, obrigada.
Fanny correu a abraçar-se ao reverendo.
- Deus o abençoe... Deus me abençoe a mim! Mil vezes obrigada! Nunca mais passarei fome nem terei frio. Já vos tenho amor, é verdade... Por me escolherem a mim e não à Heaven.
"Fanny! Fanny!", gritei eu em silêncio. "Já te esqueceste do teu juramento de ficarmos juntos para o bom e para o mau? Deus não tinha estes planos, separar as famílias e dar um a este e outro àquele. Fanny, eras como se fosses minha filha!"
- Estão a ver, estão a ver? - exclamou o pai, orgulhoso. - Foi a melhor escolha, esta. É uma criança adorável e meiga, da qual nunca se envergonharão.
E atirou-me outro daqueles olhares trocistas quando eu olhei em frente com vergonha da Fanny, receosa pela Fanny. O que sabia uma pessoa de treze anos fosse do que fosse? O tom estava a meu lado, de mão dada comigo, pálido, de olhar sombrio, assustado e amargurado.
Era como se estivéssemos a brincar aos índios.
Todos desapareciam, um por um. Restavam dois.
Quem seria da próxima vez? O tom ou eu?
- Sinto-me orgulhosa por me terem escolhido - declarou a Fanny alegremente, como se não conseguisse ultrapassar o seu deslumbramento. Depois de vestir o casaco novo, disse em voz baixa, num tom ofegante e comovente: - vou viver numa casa grande e rica, e vocês podem vir visitar-me.
Fungou uma ou duas vezes, o suficiente para mostrar pelo menos um certo arrependimento, e depois lançou-me vários olhares de súplica, a mim e ao tom. Em seguida, pegou na sua caixa de chocolates e sorriu antes de nos voltar as costas e de entrar para o automóvel grande.
- Ver-vos-ei na cidade - gritou ela, sem olhar para trás nem mesmo para o pai.
Uma vez terminada a parte burocrática, o reverendo pagou ao pai quinhentos dólares em dinheiro, aceitou um recibo cuidadosamente manuscrito pelo pai, deu meia volta
e foi atrás da Fanny, com a mulher um ou dois passos atrás dele. E, como um cavalheiro que se prezava, o reverendo ajudou a Fanny e a mulher a entrarem para o automóvel. Todos se sentaram no banco da frente, com a Fanny ao meio.
Pás! A pesada porta do automóvel fechou-se.
Senti de novo uma dor aguda, não tão forte como a que sentira pela "Nossa" Jane e pelo Keith. A Fanny quisera partir, e não chorara nem gritara, nem esperneara ou esbracejara como os mais pequenos, que queriam ficar. Quem poderia afirmar qual era a decisão certa?
E a Fanny ia apenas para Winnerrow. A "Nossa" Jane e o Keith tinham partido para Maryland, e o tom só se lembrava de três dos algarismos da placa de matrícula. Isso seria suficiente para nos fazer chegar até eles... um dia?
Agora era altura de sentirmos a falta da Fanny, aquela que me atormentava, aquela que de vez em quando era minha amiga e minha irmã. Da Fanny que era também a minha vergonha quando eu estava na escola e ouvia os seus risinhos vindos do vestiário. Da Fanny com o seu sexo disponível, a sua herança desinibidora das montanhas.
Desta vez, o pai não saiu atrás da Fanny. Como se a informação que a Fanny deixara escapar quando ele entrara o tivesse posto de sobreaviso, não se iria embora para não nos encontrar, a mim e ao tom, quando voltasse. Tanto eu como o tom estávamos ansiosos por vê-lo partir para fugirmos antes de sermos vendidos também. Ficámos à espera, sem dizer nada, sentados no chão, lado a lado, junto do fogão. Estávamos tão próximos que eu sentia o seu calor, como ele devia sentir o meu. Eu ouvia a sua respiração, como decerto ele ouvia a minha.
O pai nunca nos daria uma oportunidade para fugir. Sentou-se numa cadeira dura, do outro lado do fogão, inclinou-a para trás e semicerrou os olhos, como quem estava à espera de qualquer coisa. Tentei convencer-me de que os dias haviam de passar antes que aparecesse alguém. Assim teríamos tempo de fugir. Muito tempo...
Mas não tivemos tanta sorte.
Um camião castanho, cheio de lama e tão velho e gasto como o do pai parou de repente no nosso quintal, deixando-me em pânico que fez eco no olhar do tom. Ele pegou-me outra vez na mão, apertou-a com força, e ambos recuámos até à parede. A Fanny partira apenas há duas horas e já ali estava outro comprador.
Ouviram-se passos nos degraus do alpendre. E uns pés pesados a atravessar o alpendre. Três pancadas fortes. Mais três. O pai abriu os olhos; levantou-se de um salto, correu para a porta e abriu-a. E nós vimos um homem baixo e entroncado, de barba hirsuta, que entrou e observou a cabana de sobrolho carregado. Olhou para o tom, a quem dava pelo ombro.
- Não chores, Heavenly, por favor não chores - suplicou o tom. - Eu não conseguirei aguentar isto se chorares. - Apertou-me a mão outra vez, limpou-me as lágrimas com a outra mão e deu-me um beijo ao de leve. - Não posso fazer nada, pois não? Muito menos quando pessoas como o reverendo Wise e a mulher não acham reprovável que se comprem crianças. Bem sabes que já não é esta a primeira vez, sabes tu e sei eu. E não será esta a última, bem sabes.
Atirei-me para os seus braços e apertei-o muito. Não iria chorar, não iria permitir que me doesse tanto dessa vez. Era o melhor que eu tinha a fazer. Ninguém era mais cruel do que o pai, ninguém era mais inflexível e mesquinho. Era preferível que todos nos fôssemos embora. Teríamos casas mais bonitas, e comeríamos mais e melhor. Decerto seria maravilhoso sabermos que todos nós comeríamos três refeições por dia como qualquer pessoa que vivesse nesse país livre chamado Estados Unidos.
Foi então que eu soçobrei e desatei a gritar:
- tom, foge! Faze alguma coisa!
O pai avançou para bloquear qualquer hipótese de o tom fugir, embora este nem tentasse fazê-lo. Só tínhamos uma porta, e as janelas eram demasiado pequenas e altas.
O pai não viu as minhas lágrimas, recusou-se a ver a angústia estampada na cara do tom antes de correr a apertar a mão do homem encorpado, que vestia um fato-macaco velho e sujo. Tinha uma cara grosseira, do pouco que se podia ver. As barbas densas e hirsutas escondiam tudo excepto o nariz bulboso e os olhos pequenos e piscos.
O cabelo espesso e grisalho dava a impressão de que a cabeça lhe assentava directamente sobre os ombros largos, como se ele não tivesse pescoço; depois seguia-se o peito proeminente, e uma barriga enorme e inchada de cerveja - tudo isto meio oculto pelo fato-macaco muito largo.
- Venho buscá-lo - disse ele sem preliminares, olhando logo para o tom, sem olhar sequer para mim. Estava a cerca de um metro de distância, e entre ele e nós estava o pai. - Se ele é o que você disse que ele é, está resolvido.
- Repare nele - disse o pai, dessa vez sem sorrir. A sua maneira de falar àquele agricultor era a de um homem de negócios. - O tom tem catorze anos e já mede quase um metro e oitenta. Olhe para estes ombros, para estas mãos e estes pés; assim é que você percebe o tipo de homem que este rapaz vai dar. Olhe para os músculos dele, desenvolvidos por trabalharem com a enxada. Sabe fazer medas de feno tão bem como qualquer homem adulto.
Era nojento, cruel e nojento, vê-lo a referir-se ao tom como se este fosse uma vitela para vender.
Aquele lavrador vermelhusco puxou o tom mais para si, segurou-o e observou-lhe a boca, inspeccionou-lhe os dentes, apalpou-lhe os músculos, as coxas e as canelas, fez-lhe perguntas íntimas sobre problemas de eliminação, se ele tinha alguns. Fez-lhe outras perguntas embaraçosas, às quais o pai respondia quando o tom se recusava a fazê-lo. Como se o pai soubesse, ou se ralasse sequer, se o tom tinha ou não dores de cabeça e ejaculações precoces.
- Ele é um rapaz saudável e tem de estar sexualmente desperto. Eu estava, com a idade dele, desejoso e pronto a fazer o melhor que podia e sabia pelas raparigas.
Para que é que ele quereria o tom, afinal? Para moço de estrebaria?
O lavrador entroncado referiu qual era a sua ocupação; criava gado destinado ao fabrico de lacticínios e chamava-se Buck Henry. Precisava de ajuda, segundo disse. Precisava de alguém jovem, forte e desejoso de ganhar um bom salário.
- Não quero gente fraca, instável, mandriona ou que não saiba obedecer a ordens.
O pai ofendeu-se com aquilo.
- O meu tom nunca teve um dia de preguiça na vida. E olhou para o tom com orgulho, enquanto este franziu o sobrolho, com um ar infeliz, e tentou ficar a meu lado.
- bom, o rapaz tem ar de ser forte - disse Buck Henry, com um ar aprovador.
Estendeu ao pai quinhentos dólares em dinheiro, assinou os documentos que o pai aprontara, aceitou o seu recibo, pegou no tom por um braço e puxou-o para a porta. O tom tentou oferecer resistência com os pés, mas o pai, que ia atrás dele, deu-lhe um encontrão e pontapés nas canelas quando ele começou a andar devagar de mais. O avô continuava a balouçar-se na cadeira, e a esculpir.
Quando chegou à porta, o tom explodiu.
- Eu não quero ir! - gritou ele, tentando libertar-se. O pai fez um movimento rápido e pôs-se mesmo atrás de mim; embora eu tentasse fugir, era demasiado tarde. O pai apanhou-me pelos cabelos. As suas mãos enormes apoiaram-se nos meus ombros, com os dedos esticados de tal maneira que lhe bastava mexê-los ligeiramente para me agarrar o pescoço.
O tom ficou gelado ao vê-lo tratar-me como se eu fosse uma galinha à qual se preparavam para torcer o pescoço.
- Pai! - gritou ele. - Não lhe faça mal! Se vender a Heaven como nos fez a nós... Arranje-lhe uns bons pais! Se não o fizer, eu voltarei um dia e fá-lo-ei arrepender-se de ter tido um filho! - O seu olhar desvairado cruzou-se com o meu. - Eu hei-de voltar, Heavenly! - gritou ele. - Prometo que não me esquecerei do nosso juramento. Adoro o que tentaste fazer por mim e por todos nós. Hei-de escrever muitas vezes, e estarei em contacto contigo para que nunca sintas a minha falta... E hei-de ir ter contigo onde quer que tu estejas! Faço este voto solene que nunca quebrarei.
Os meus olhos estavam cansados, inchados, como se eu tivesse dois sóis descorados e tristes por trás da mais negra das luas.
- tom... Escreve, por favor, por favor. Havemos de voltar a ver-nos... Tenho a certeza. Mister Henry, onde é que vive?
- Não lhe diga - avisou o pai, apertando-me a garganta. - Esta só arranja é sarilhos, e não deixe o tom escrever. Pelo menos não a esta, que se chama Heaven. Ela devia era chamar-se Hell.1
- Pai! - gritou o tom. - Ela é a filha melhor que tem e o pai não sabe.
O tom já estava lá fora, e a porta ficara aberta. Tentei gritar mas a voz saiu-me rouca:
- Há sempre uma ponte mais à frente, Thomas Luke, lembra-te sempre disso. E hás-de conseguir realizar o teu sonho, tenho a certeza!
Voltando-se para trás, ele ouviu e entendeu as minhas palavras, acenou, sorriu e depois entrou no camião, deitando a cabeça de fora e gritando-me:
1 Heaven significa céu e hell significa inferno. (N. da T.)
- Onde quer que estejas e por muito que alguém tente separar-nos, hei-de encontrar-te, Heavenly! Nunca te esquecerei! Juntos havemos de encontrar a "Nossa" Jane
e o Keith, tal como combinámos!
O camião velho e sujo arrancou, dirigindo-se para a estrada tosca, e desapareceu, Eu fiquei sozinha com o pai e o avô. Sentindo-me atordoada e num estado de choque que raiava o desespero, deixei-me cair para o chão assim que o pai me largou.
Estava mesmo a adivinhar o que esperava o tom.
Não havia mais escola para o tom, nunca mais iria à caça nem à pesca, nunca mais jogaria basebol, nunca mais brincaria com os cachorros, só trabalho, trabalho e mais trabalho.
O tom, com o seu espírito brilhante, com os seus sonhos e aspirações, seria sepultado no meio das pastagens, viveria como um lavrador, teria a vida que tantas vezes dissera que nunca teria.
Também o que me esperava... me assustava da mesma, maneira.
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