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Helena 2 / Machado de Assis
Helena 2 / Machado de Assis

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Helena

CAPÍTULO VII

APEARAM-SE os dous no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter à varanda. Pisando o primeiro degrau, disse Estácio:

— Helena, explique-me suas palavras de há pouco.

— Quais?

E como Estácio levantasse os ombros, com ar de despeito, continuou Helena:

— Perdoe-me; a pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confissões; mas, neste caso, a confissão inteira seria imprudência maior. Se se tratasse de fatos, creia que a ninguém melhor podia confiá-los do que a você; mas por que motivo irei perturbar-lhe o espírito com a narração de meus sentimentos, se eu própria não chego a entender-me?

Estácio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam Dona Úrsula dando as ordens daquele dia a dous escravos. Estácio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara à jovialidade de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma espécie de comediante que recebera da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vestuário. D. Úrsula viu-a entrar risonha e ir a ela dar-lhe os costumados — bons dias— ; que eram sempre um beijo, — ou antes dous, — um na mão, outro na face.

— Demorei-me muito? perguntou ela voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relógio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! Que passeio, senhor meu irmão!

Estácio olhava para ela silencioso e não lhe respondeu. Foram logo depois mudar de roupa, e o almoço reuniu a família. D.Úrsula propôs, durante ele, algumas mudanças na disposição a chácara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Úrsula desceu à chácara com Estácio .As alterações foram ainda estudadas e combinadas no próprio terreno, com assistência do feitor. Logo que acabou a deliberação e que o projeto de D. Úrsula foi definitivamente assentado, Estácio reteve-a e lhe disse:

— Preciso falar-lhe um instante.

—Também eu.

— Quais são os seus sentimentos atuais em relação a Helena? Oh! não precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento.Tudo são meras aparências. Não creio que seja absolutamente amiga dela; mas não pode negar que a antipatia desapareceu ou diminuiu muito.

— Diminuiu, talvez.

— E com razão. Pensa que também eu não tive repugnâncias depois que ela aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem desaparecido, — desapareceriam hoje de manhã.

— Como?

Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena. D. Úrsula sorriu ironicamente.

— Não a impressiona isto? perguntou Estácio.

— Não, respondeu D. Úrsula com decisão; a frase de Helena é achada em algum dos muitos livros que ela lê. Helena não é tola; quer prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que começo a gostar dela; é dedicada, afetuosa, diligente; tem maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é naturalmente simpática. Já vou gostando dela; mas é um gostar sem fogo nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cansada. Helena preenche essa lacuna. Se alguma cousa, entretanto, a podia prejudicar nas nossas relações é esse dito.

Estácio tomou calorosamente a defesa da irmã.

— O que eu lhe contei, disse ele, foram apenas as palavras. Não pude nem poderei reproduzir a expressão sincera com que ela as proferiu, e a profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vê-la mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de dúvida, mas passou logo. Ela tem o poder deconcentrara amargura no coração; também a dor tem suas hipocrisias...

— Mas que dor? que amargura? interrompeu D. Úrsula. A dor de ser legitimada? a amargura de uma herança?

Estácio protestou calorosamente contra aquele caminho que a tia dava às suas idéias; enfim pediu-lhe que interrogasse com cautela a irmã.

— Um homem, concluiu ele, é menos apto para obter tais confissões; uma senhora, respeitável e parenta, está mais no caso de lhe captar a confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?

— Pedes muito, respondeu D. Úrsula. Verei se te posso dar metade disso. Era só o que tinhas para dizer?

— Só.

— Uma criancice! Eu tenho cousa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me; trata-se...

— Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estácio; lá vem ele.

Camargo aparecera efetivamente a vinte passos de distância.

— Doutor, disse D. Úrsula, logo que este se aproximou deles, chegaum pouco fora de propósito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho,que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.

— Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me aprova.

— Completamente.

— Trata-se.... disse Estácio.

— De uma conspiração; todos conspiramos em seu benefício.

D. Úrsula retirou-se para casa; os dous ficaram sós. Uma vez sós, Camargo pousou a mão no ombro de Estácio, fitou-o paternalmente, enfim perguntou-lhe se queria ser deputado. Estácio não pode reprimir um gesto de surpresa.

— Era isso? disse ele.

— Creio que não se trata de um suplício. Uma cadeira na Câmara! Não é a mesma cousa que um quarto no Aljube...

— Mas a que propósito....

— Esta idéia apoquentava-me há algumas semanas. Doía-me vê-lo vegetar os seus mais belos anos numa obscuridade relativa. A política é a melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrução, caráter, riqueza; pode subir a posições invejáveis. Vendo isso, determinei metê-lo na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. Para facilitar-lhe o sucesso, entendi-me com duas influências dominantes. O negócio afigura-se-me em bom caminho.

Estácio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.

— Mas, doutor, disse ele depois de curto silêncio, houve de sua parte alguma precipitação. Pelo menos, devia consultar-me. Do modo por que arranjou as cousas, quase me acho desobrigado de lhe agradecer a intenção. Quanto a aceitar, não aceito.

Camargo não perdeu a tramontana; deixou passar por cima da cabeça a primeira onda do desagrado, surgiu fora e insistiu tranqüilamente:

— Vejamos as cousas com os óculos do senso comum. Em primeiro lugar, não creio que tenha outros projetos na cabeça...

— Talvez.

— Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A ciência é árdua e seus resultados fazem menos ruído. Não tem vocação comercial nem industrial. Me dita alguma ponte pênsil entre a Corte e Niterói, uma estrada até Mato Grosso ou uma linha de navegação para a China? É duvidoso. Seu futuro tem por ora dous limites únicos, alguns estudos de ciência e os aluguéis das casas que possui. Ora, a eleição nem lhe tira os aluguéis nem obsta a que continue os estudos; a eleição completa-o, dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A única objeção seria a falta de opinião política; mas esta objeção não o pode ser. Há de ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades públicas, e...

— Suponha, — é mera hipótese, — que tenho alguns compromissos com a oposição.

— Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na Câmara — embora pela porta dos fundos. Se tem idéias especiais e partidárias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe der a mão, — se não for o seu, — ficará consolado com a idéia de ter ajudado um adversário talentoso e honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda entre os dous partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande número de jovens políticos seguem, não uma opinião examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas afeições, a que os pais ou amigos imediatos honraram e defenderam, a que as circunstânciaslhe impõem. Daí vêm algumas legítimas conversões posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circunstâncias da origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnífico lírio saquarema ou luzia. Demais, a política é ciência prática; e eu desconto de teorias que só são teorias. Entre primeiro na Câmara; a experiência e o estudo dos homens e das cousas lhe designarão a que lado se deve inclinar.

Estácio ouviu atento estas vozes com que a serpente lhe apontava para a árvore da ciência do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a discutir filosoficamente com o reptil.

— Entra-se na política, disse ele, por vocação legítima, ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. Nenhum desses motivos me impele a dobrar o cabo Tormentório...

— Da Boa Esperança, emendou Camargo rindo; não suprima três séculos de navegação.

Estácio riu também. Depois falou ao médico da sua índole e ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia políticas, nem todas eram da mesma estatura. Os espíritos, disse ele, nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras espécies intermédias. A uns é necessário o horizont evasto, a elevada montanha, de cujo cimo batem as asas e sobem a encarar o sol; outros contemplam-se com algumas longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. Estes eram os obscuros, e, na opinião dele, os mais felizes. Não seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a História em suas páginas luminosas ou sombrias ; o vão do telhado em que abrigaram a prole, a árvore em que pousaram são as testemunhas únicas e passageiras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os colhe, vão eles pousar no regaço comum da eternidade, onde dormem o mesmo perpétuo sono, tanto o capitão que subiu ao sumo estado por uma escada de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão ínfimas como seriam as do cabreiro; eram as do proprietário do campo que o capitão atravessasse. Um bom pecúlio, a família, alguns livros e amigos, — não iam além seus mais arrojados sonhos.

Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.

— Meu caro Estácio, disse ele depois, esse trocadilho de andorinhas e cabreiros é a cousa mais extraordinária que eu esperava ouvir a um matemático. Sabia que detesto igualmente a filosofia da obscuridade e a retórica dos poetas. Sobretudo, gosto que me respondam em prosa quando falo em prosa.

— Parece-lhe que poetei? perguntou Estácio rindo.

— Despropositadamente! Ora, eu falo de cousas sérias; e convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã.

— Eu serei ideólogo.

— Não tem direito de o ser.

— Pois bem, deixe-me com as minhas matemáticas, as minhas flores, as minhas espingardas.

— Não! Há de intercalar tudo isso com um pouco de política.

Puxando-o familiarmente pela gola do paletó, Camargo fê-lo sentar ao pé de si, no banco que ali estava mais próximo. Depois falou. O novo discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma complacência de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da política, e não só as reais, mas as fictícias ou duvidosas, foram inventariadas, pintadas, douradas e iluminadas pelo médico. A palavra revelou um poder de evocação, uma veemência, uma energia, que ninguém era capaz de supor-lhe. O taciturno desabrochou tagarela. Para falar tanto e com tal força era preciso que o animasse um grande sentimento ou um grande interesse.

Estácio, lisonjeado com a afeição que ele lhe mostrava, não teve ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; adotou o alvitre de diferir a resposta para outra ocasião.

— Já lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou pronto a refletir, e a consultar o Padre Melchior e Helena.

O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente, não passou o efeito de um sorriso sardônico e dissimulado. Interveio uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a extrair de uma boceta de tartaruga, presente do ConselheiroVale.

— Helena! disse ele com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã neste negócio?

— É um voto, redarguiu Estácio; e menos leve do que lhe parece. Há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa harmonia com as suas outras qualidades feminis.

Entre as sobrancelhas de Camargo projetou-se uma longa ruga, e foi toda a expressão de seu espanto e desgosto. A resposta de Estácio revelara-lhe uma situação nova na família: o voto de Helena, consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Esta solução; que porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a previra o médico. Limitou-se a notá-la de si para si; e, terminando subitamente a conversa, disse:

— Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguém lhe poderá afirmar que não é a amizade, a longa amizade...

Estácio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe afetuosamente a mão. Tinham-se levantado. Era quase meio-dia; Camargo despediu-se ali mesmo; ia ver dous doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido. A política, na sua opinião, era uma noiva importuna; mas, se todos conspirassem a favor dela, não seria ele obrigado a desposá-la? A esta reflexão respondeu a voz do Padre Melchior, do alto de uma janela:

— Venha cá, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?

CAPÍTULO VIII

D. ÚRSULA tinha já confiado ao velho capelão a proposta de Camargo. Consultado por Estácio, respondeu o padre:

— Consulte as suas forças e a responsabilidade do cargo, e escolha.

— Já escolhi, disse Estácio; pedia-lhe conselho para apoiar melhor a minha própria decisão. Não é esse o destino de todos os conselhos? Decidi que não aceito a candidatura. A vida política é turbulenta demais para o meu espírito.Estou pronto para a ação, mas não há de ser exterior. Dado o meu temperamento, que iria eu buscar à Câmara, além de algumas prerrogativas e um papel acessório? Eu só me meteria na política se pudesse oficiar; mas ser apenas sacristão...

— Entre o oficiante e o sacristão, observou Melchior, está o pregador, que é cargo nobre e influente.

— Mas o tema do sermão, padre-mestre? retorquiu Estácio rindo; falta-me o tema.

D. Úrsula, a quem seduziam exclusivamente a posição e o rumor público em favor do sobrinho, viu naquelas razões um pretexto ou uma puerilidade. Defendeu, como pôde, a causa de Camargo; instou com o sobrinho para que refletisse maduramente, antes de qualquer resposta definitiva. Estácio prometeu como prometera ao médico, por simples condescendência; mas sobretudo para pôr termo ao assunto e ir saber a causa do sorriso quase imperceptível que viu roçar os lábios de Helena. A moça erguera-se e dirigira-se para uma das janelas; Estácio foi até ali.

— Adivinhei, pelo seu sorriso, disse ele, que tudo isto lhe parece pueril,e que eu faço bem em não aceitar o que se me oferece.

Helena olhou um pouco espantada para ele, mas respondeu com tranqüilidade:

— Pelo contrário, penso que deve aceitar. Além de haver consentimento de minha tia, parece ser um grande desejo do pai de Eugênia.

Era a primeira vez que Helena aludia ao amor de Estácio, e fazia-o por modo encoberto e oblíquo. Estácio escapou dessa vez à regra de todos os corações amantes: resvalou pela alusão e discutiu gravemente o assunto da candidatura. Era pesado demais para cabeça feminina; Helena intercalou uma observação sobre dous passarinhos que bailavam no ar, e Estácio aceitou a diversão, deixando em paz os eleitores.

Durante dous dias não saiu ele de casa. Tendo recebido alguns livros novos, gastou parte do tempo em os folhear, ler alguma página, colocá-los nas estantes, alterando a ordem e a disposição dos anteriores ,com a prolixidade e o amor do bibliófilo. Helena ajudava-o nesse trabalho,— um pouco parecido com o de Penélope, — porque a ordem estabelecida ao meio-dia era às vezes alterada às duas horas, e restaurada na seguinte manhã. Estácio, entretanto, não ficava todo entregue aos livros; admirava a solicitude da irmã, a ordem e o cuidado com que ela o auxiliava. Helena parecia nãoandar; o vulto resvalava silenciosamente, de um lado para outro, obedecendo às indicações do irmão, ou pondo em experiência uma idéia sua. Estácio parava às vezes fatigado; ela continuava imperturbavelmente o serviço .Se ele lhe fazia algum reparo, a moça respondia erguendo os ombros ou sorrindo, e prosseguia. Então Estácio segurava-lhe nos pulsos e exclamava rindo:

— Sossega, borboleta!

Helena parava, mas eram só poucos minutos; volvia logo ao trabalho com a mesma serena agitação. Era assim que as horas se passavam na intimidade mais doce, e que a recíproca afeição ia excluindo toda a preocupação alheia; era assim que a influência de Helena assumia as proporções de voto preponderante.

No terceiro dia, D. Tomásia e Eugênia foram jantar a Andaraí. Eugênia estava nesse dia mais sisuda e dócil que nunca; dissera-se que trazia a alma tão nova como o vestido, e menos enfeitada que ele. Estácio sentiu-se satisfeito; o ideal reconciliava-se com o real. Puderam falar sozinhos, mais de uma vez; todas as pessoas da casa pareciam conspiradas para lhes deixar a solidão. Foi ela quem recordou a proposta política do pai, da qual soubera casualmente, ouvindo a narração que este fizera a D. Tomásia. O desejo de Eugênia era pela afirmativa; e Estácio, receoso de despertar os caprichos adormecidos da moça, frouxamente resistiu, e consentiu ainda mais frouxamente em reconsiderar o assunto.

— Deputado! exclamava Eugênia com os olhos no céu.

Estácio acompanhou Eugênia e D. Tomásia na carruagem que as levou ao Rio Comprido. O dia fora mais ou menos alegre; a viagem foi divertida e palreira como um regresso de romaria. Os cavalos mostravam-se tão lépidos como as pessoas que iam no carro, e encurtaram alguns minutos o caminho, com desgosto de Eugênia.

Voltando a Andaraí, Estácio trazia a alma pura de todas as más impressões que lhe deixavam usualmente as visitas à casa de Camargo. Nenhum dissentimento houvera naquele dia. Eugênia parecia modificada. Em casa esperava-o, porém, uma desagradável notícia: a tia sentira-se incomodada pouco depois que ele saíra e recolhera-se ao quarto. O caso afligiu-o, mas não tardou a aparecer Helena, que o tranqüilizou,dizendo-lhe que D. Úrsula tinha apenas uma forte dor de cabeça, já diminuída com o emprego de um remédio caseiro.

No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia sossegadamente, Estácio abriu uma das janelas do quarto e relanceou os olhos pela chácara. A alguns passos de distância, entre duas laranjeiras, viu Helena a ler atentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas quatro laudas escritas. Seria alguma mensagem amorosa?

Esta idéia molestou-o muito. Afastou-se da janela, conchegou as cortinas, e pela fresta procurou observar a irmã. Helena estavade pé, no mesmo lugar, e percorria rapidamente as linhas, até ao final da última página. Ali chegando, deu dous passos, tornou a parar, volveu ao princípio da carta, para a ler de novo, não já depressa, mas repousadamente. Estácio sentiu-se movido de imperiosa curiosidade, à qual vinha misturar-se uma sombra de despeito e ciúme. A idéia de que Helena podia repartir o coração com outra pessoa desconsolava-o, ao mesmo tempo que o irritava. A razão de semelhante exclusivismo não a explicou ele, nem tentou investigá-la; sentiu-lhe somente os efeitos, e ficou ali sem saber que faria. Duas vezes saiu da janela para ir tercom a irmã, mas recuou de ambas, refletindo que a curiosidade pareceria impolidez, se não era talvez tirania. Ao cabo de alguns minutos de hesitação, saiu do quarto e dirigiu-se à chácara.

Quando ali chegou, Helena passeava lentamente, com os olhos no chão. Estácio parou diante dela.

— Já fora de casa! exclamou em tom de gracejo.

Helena tinha a carta na mão esquerda; instintivamente a amarrotou como para escondê-la melhor. Estácio, a quem não escapou o gesto, perguntou-lhe rindo se era alguma nota falsa.

— Nota verdadeira, disse ela, alisando tranqüilamente o papel, e dobrando-o conforme recebera; é uma carta.

— Segredos de moça?

— Quer lê-la? perguntou Helena, apresentando-lha.

Estácio fez-se vermelho e recusou com um gesto. Helena dobrou lentamente o papel e guardou-o na algibeira do vestido. A inocência não teria mais puro rosto; a hipocrisia não encontraria mais impassível máscara. Estácio contemplava-a, a um tempo envergonhado e suspeitoso;a carta fazia-lhe cócegas; o olhar ambicionava ser como o da Providência que penetra nos mais íntimos refolhos do coração. Vieram, entretanto, dizer a Helena que D. Úrsula lhe pedia fosse ter com ela. Estácio ficou só. Uma vez só, entregou-se a um inquérito mental sobre a procedência da misteriosa missiva. Um indício havia de que podia conter alguma cousa secreta; era o gesto com que ela a escondeu. Mas não podia ser de alguma antiga companheira do colégio, que lhe confiava segredos seus? Estácio abraçou com alvoroço esta hipótese. Depois, ocorreu-lhe que, ainda provindo de uma amiga,a carta podia tratar de algum idílio de colégio, em que Helena fosse protagonista, idílio vivo ou morto, página de esperança ou de saudade. Ainda nesse caso, que tinha ele com isso?

Fazendo esta última reflexão, Estácio sacudiu do espírito o assunto e seguiu a examinar as novas obras da chácara, entre as quais figurava um vasto tanque. Já ali estavam os operários; ia começar o trabalho do dia. Estácio viu a obra feita e deu várias indicações novas. Algumas eram contrárias ao plano assentado; como lhe fizessem tal observação, Estácio retificou-as. Depois admirou-se de não ter um vaso, que aliás dous dias antes mandara remover; enfim, recomendou a rega de uma planta, ainda úmida da água que o feitor lhe deitara nessa manhã.

D. Úrsula não estava de todo boa, mas pôde almoçar à mesa comum. O sobrinho apareceu aborrecido, a sobrinha triste; odiálogo foi mastigado como o almoço. No fim deste, recebeu Estáciouma carta de Eugênia. Era uma tagarelice meio frívola, meio sentimental, mistura de risos e suspiros, sem objeto definido a não ser pedir-lhe que escrevesse se não pudesse ir vê-la.

Acabava ele de ler a carta, quando Helena lhe apareceu à porta do gabinete.Não a escondeu; lembrou-lhe mostrá-la à irmã, na esperança de que esta, pagando-lhe com igual confiança, lhe mostrasse a sua. Helena percorreu com os olhos a carta de Eugênia e esteve algum tempo silenciosa.

— Permite-me um conselho? perguntou ela.

E como Estácio respondesse com um gesto de assentimento:

— Vá ter com Eugênia, solicite licença para ir pedi-la a seu pai, e conclua isso quanto antes. Não é verdade que se amam? Dela creio poder afirmar que sim; de você...

— De mim?

— Penso que é mais duvidoso; ou você é mais hábil. Há de ser isso. Naturalmente parece-lhe fraqueza amar, — istoé, a cousa mais natural do mundo,— a mais bela, — nãodirei a mais sublime. Os hornens sérios têm preconceitos extravagantes.Confesse que ama, que não é indiferente a esse sentimento inexprimível que liga, ou para sempre, ou por algum tempo, duas criaturas humanas.

"Ou por algum tempo!" repetiu mentalmente Estácio.

E estas quatro palavras, tão naturais e tão comuns, tinha mares de uma revelação nova no estado de espírito em que ele se achava. Se Helena tivesse propósito de lhe lançar a perplexidade na alma, não empregaria mais eficaz conceito. Seria na verdade aquele amor, tão travado de desânimos, dissentimentos e alternativas, tão discutido em seu próprio coração, uma afeição destinada a perecer no ocaso da primeira lua matrimonial?

— Pois sim, concordou ele, ao cabo de alguns instantes, é verdade. Eugênia não me é indiferente; mas, poderei estar certo dos sentimentos dela? Ela mesma poderá afirmar alguma cousa a tal respeito? Há ali muita frivolidade que me assusta; ilude-a, talvez, uma impressão passageira.

— Pode ser; mas ao marido cabe a tarefa de fixar essa impressão passageira... O casamento não é uma solução, penso eu; é um ponto de partida. O marido fará a mulher.Convenho que Eugênia não tem todas as qualidades que você desejaria; mas, não se pode exigir tudo: alguma cousa é preciso sacrificar,e do sacrifício recíproco é que nasce a felicidade doméstica.

As reflexões eram exatas; por isso mesmo Estácio as interrompeu.O filho do conselheiro achava-se numa posição difícil. Caminhara para o casamento com os olhos fechados; ao abri-los, viu-se à beira de uma cousa que lhe pareceu abismo, e era simplesmente um fosso estreito.De um pulo poderia transpô-lo; mas, se não era irresoluto nemdébil, tinha ele acaso vontade de dar esse salto?

Insistindo Helena, prometeu ele que nessa tarde iria visitar Camargo. De tardedesabou um temporal violento. A força do vento e da trovoada abrandou; mas a chuva continuou a cair com a mesma violência; era impossível ir ao Rio Comprido. Estácio estimou aquele obstáculo; era melhor adorar de longe a imagem da moça do que ir colher algum desgosto junto a ela.

De pé, encostado a uma das vidraças da sala de visitas, via cair as grossas toalhas de água. Ao lado estava sentada Helena, não alegre, mas taciturna e melancólica.

— E tão bom ver chover quando estamos abrigados! exclamou ele. Tenho lá na estante um poeta latino que diz alguma cousa neste sentido... Que tem você?

— Estou pensando nos que não têm abrigo ou o têm mau; nos que não têm, neste momento, nem tetos sólidos nem corações amigos ao pé de si.

A voz da moça era trêmula; uma lágrima lhe brotou dos olhos tão rápida que ela não teve tempo de a dissimular. Surpreendida nessa manifestação de sensibilidade, inexplicável talvez para o irmão, ergueu-se e procurou gracejar e rir. O riso parecia uma cristalização da lágrima, e o gracejo tinha ares de responso. Estácio não se iludiu; nada daquilo era claro, ou era tão claro como a carta. O olhar, severo e frio, interrogou mudamente a moça. Helena, que tivera tempo de se tranqüilizar, voltou o rosto para a rua, e começou a rufar com os dedos na vidraça.

CAPÍTULO IX

NAQUELA mesma noite, D. Úrsula, que não havia de todo melhorado, adoeceu deveras. A família, mal convalescida da perda do velho chefe, via-se agora ameaçada de uma nova dor, em todo o caso, exposta a novos receios. O Dr. Camargo declarou que o caso era grave, e deu princípio a rigoroso tratamento.

Helena era naquela ocasião a natural enfermeira. Pela primeira vez patenteou-se em todo o esplendor a dedicação filial da moça. Horas do dia, e não poucas noites inteiras, passava-as na alcova de D. Úrsula, atenta a todos os cuidados que a gravidade da enferma exigia. Os remédios e o pouco alimento que esta podia receber, não lhe eram dados por outras mãos. Helena velava à cabeceira, durante o sono leve e interrompido da doente, achando em suas próprias forças a resistência que a natureza confiou especialmente às mães.Quando dava algum repouso ao corpo, não era ele ininterrupto nem longo; e mais de uma vez, alta noite, erguia-se do leito, colocado provisoriamente no quarto contíguo, para ir espreitar a mucama que em seu lugar, acompanhava a enferma. As prescrições do médico era ela que as recebia e cumpria. A voz seca e dura com que Camargo lhe falava, não era própria a torná-lo amável e aceito; mas Helena cerrava os ouvidos à antipatia do homem para só obedecer ao médico. Este não tinha outra pessoa a quem interrogasse acerca dos fenômenos da doença, nem podia achar quem melhor os observasse e referisse; força lhe era aceitá-la. Assim, essas duas pessoas que se repeliam e detestavam, iam de acordo, desde que se tratava da vida de um terceiro.

O que completava a pessoa de Helena, e ainda mais lhe mereceu o respeito de todos, é que, no meio das ocupações e preocupações daqueles dias, não fez padecer um só instante a disciplina da casa. Ela regeu a família e serviu a doente, com igual desvelo e benefício. A ordem das cousas não foi alterada nem esquecida fora da alcova de D. Úrsula; tudo caminhou do mesmo modo que antes, como se nada extraordinário se houvesse dado. Helena sabia dividir a atenção sem a dispersar.

De si é que ela não curou muito. O vestido era singelo. Os cabelos, colhidos à pressa e presos por um pente no alto da cabeça, não receberam, em todo aquele tempo, a forma elegante e graciosa com que ela os sabia realçar. Acrescia o abatimento, que era impossível evitar no meio de tanta fadiga, certo cansaço dos olhos, que os fazia moles e talvez mais adoráveis, um rosto sem riso nem viveza, um silêncio atento e laborioso.

A doença durou cerca de vinte dias. Afinal, venceu a própria natureza de D. Úrsula, robusta apesar dos anos. A convalescença começou; com ela volveu a satisfação da família. O papel de Helena não estava acabado; diminuía, contudo,e Estácio interveio para que a irmã tivesse, enfim, alguns dias de absoluto repouso. Ela recusou, dizendo que o repouso perdido aos poucos seria aos poucos recuperado.

Havia no coração de D. Úrsula uma fonte de ternura, que Helena devia tocar, para jorrar livre e impetuosamente. A dedicação, em tal crise, foi a vara misteriosa daquele Horeb. A afeição da tia era até então frouxa, voluntária e deliberada. Depois da moléstia, avultou espontânea. A experiência do caráter da moça dera esse resultado inevitável. Toda a prevenção cessou; a gratidão da vida ligou fortemente o que tantas circunstâncias anteriores pareciam separar. Não o ocultou a irmã do conselheiro; já não tinha acanhamento nem reserva, as palavras subiam do coração à boca sem atenuação nem cálculo; fez-se carinhosa e mãe.

No dia em que ela pôde sair do quarto pela primeira vez, Helena deu-lhe o braço e levou-a até à sala de costura edas reuniões íntimas. Estácio amparou-a do outro lado. Ali chegando, foi ela sentada numa poltrona. Estácio abriu um pouco a janela, para penetrar, além da luz, um pouco de ar. D. Úrsula respirou à larga, como lavando o pulmão com aquela primeira onda de vida. Depois, segurando as mãos de Helena, que ficara de pé a seu lado, fê-la inclinar a fronte, e imprimiu-lhe um beijo longo e verdadeiramente maternal. Estácio aproximara-se; aquela manifestação encheu-o de júbilo.

— Bem merecido beijo! exclamou ele. Helena foi um anjo em todo este tempo.

— Bem sei, retorquiu D. Úrsula; foi um verdadeiro anjo, foi mulher, mãe e filha. Obrigada, Helena! Pode ser que a medicina tenha ajudado a cura, mas o principal mérito é só teu.

Helena abraçou a convalescente.

— Estácio, disse esta, agradece à tua irmã, como eu fiz.

Estácio inclinou-se para Helena, a fim de lhe pousar na fronte o casto ósculo de irmão. Não o conseguiu, porque Helena, desviando o busto, estendeu-lhe sorrindo a mão esquerda e disse:

— Não foi serviço que merecesse tanta paga; basta um aperto de mão e o afeto de todos.

Estácio apertou-lhe a mão, e sentiu-lha trêmula. Aquele movimento de castidade não lhe pareceu exagerado nem descabido; achou-a assim mais bela. Uma criatura tão ciosa de si mesma, que nem admitia a carícia do irmão, não era digna de honrar o nome da família?

A convalescença de D. Úrsula foi lenta, e não a houve mais rodeada de cuidados e atenções. Os dous sobrinhos não a deixaram um instante sozinha, e inventaram toda a sorte de recreio com que pudessem distraí-la: jogos de família ou leitura, música ou simples palestra íntima. Uma vez, lembraram-se de representar, só para ela, uma comédia de duas pessoas. Outra vez, Helena organizou um sarau musical, em que tomaram parte Eugênia Camargo e mais três moças da vizinhança. Foi a primeira vez que a ouviram cantar. O sucesso não podia ser mais completo. Como o aplauso que lhe deram pareceu desconsolar um pouco a filha do médico, Helena preparou-lhe habilmente um triunfo, fazendo-a executar ao piano uma composição brilhante, sua favorita. Estácio, que quase não tirava os olhos da irmã, precebeu-lhe a intenção, e disse-lho. Helena esquivou-se à alusão; mas, insistindo ele:

— Não há nada que admirar, disse ela; Eugênia toca perfeitamente; era justo que também fosse aplaudida. Se há arte no que fiz, parece-me que é a mais singela do mundo. O melhor modo de viver em paz é nutrir o amor-próprio dos outros com pedaços do nosso. Mas, olhe; Eugênia nem precisa disso; tem a primazia da beleza. Veja se há criatura mais deliciosa.

Estácio dirigiu os olhos para onde Helena lhe indicava. Era um grupo de duas moças e dous rapazes. Eugênia, pelo braço de um deles, estava de pé, ouvindo sem atender as palavras que ali diziam, porque os olhos inquietos derramavam-se-lhe por toda ela e pela sala. Admirava-se e espreitava a admiração dos outros. A figura era realmente graciosa; mas Estácio quisera-a mais inconsciente, menos preocupada do efeito que produzia.

— Há cem belezas como aquela, disse ele.

— Estácio! exclamou Helena com ar de repreensão.

— A beleza é como a bravura; vale mais se não a metem à cara dos outros.

Naquela noite ficou mais patente que nunca a preponderância ganha por Helena, que se tornara a verdadeira dona da casa, a diretora ouvida e obedecida. D. Úrsula cedera, em poucas semanas, o que lhe negara durante meses.

Por que razão, pensando em todas as cousas, não conseguira ela apressar o casamento de Estácio? Estácio continuava a hesitar, a recuar, a adiar; pedia tempo para refletir. Ia agora menos ao Rio Comprido; os dias, quase todos, eram desfiados no remanso da família. Mas Helena insistiu tanto que ele prometeu fazer o solene pedido no primeiro dia do ano.

Estácio não havia esquecido a carta lida pela irmã; entretanto, por mais que a espreitasse e estudasse, nada descobria que lhe fizesse supor afeição encoberta. Nenhum dos homens que iam ali, - e eram poucos, - parecia receber de Helena mais do que a cortesia comum. D. Úrsula, a quem ele incumbira de interrogar a irmã acerca das palavras que esta lhe dissera na manhã do primeiro passeio, não obteve resposta mais decisiva.

A promessa de ir pedir Eugênia, fê-la Estácio na segunda semana de dezembro, em uma noite sem visitas, que eram as melhores noites para ele. No dia seguinte de manhã, erguendo-se tarde, soube que Helena saíra a cavalo.

— Sozinha?

— Com o Vicente.

Vicente era o escravo que, como sabemos, se afeiçoara, primeiro que todos, a Helena; Estácio designara-o para servi-la. A notícia do passeio não lhe agradou. O tempo andava com o passo do costume, mas à ansiedade do mancebo afigurava-se mais longo. Estácio chegava à janela, ia até o portão da chácara, com ar de aparente indiferença, que a todos iludia, a começar por ele próprio. Numa das vezes em que voltou à casa, achou levantada D. Úrsula; falou-lhe; D. Úrsula sorriu com tranqüilidade.

— Que tem isso? disse ela. Já uma vez saiu a passeio com o Vicente e não aconteceu nada.

— Mas não é bonito, insistiu Estácio. Não está livre de um ato de desatenção.

— Qual! Toda a vizinhança a conhece. Demais, Vicente já não é tão criança. Tranqüiliza-te, que ela não tarda. Que horas são?

— Oito!

— Dez ou quinze minutos mais. Parece-me que já ouço um tropel...

Os dous estavam na sala de jantar; passaram à varanda, e viram efetivamente entrar no terreiro Helena e o pajem. Helena deu um salto entregou a rédea de Moema ao pajem que acabava de apear-se. Depois subiu a escada da varanda. Ao colocar o pé no primeiro degrau, deu com os olhos no irmão e na tia. Fez-lhes um cumprimento com a mão,e subiu a ter com eles.

— Já de pé! exclamou abraçando D.Úrsula.

— Já, para lhe ralhar, disse esta sorrindo. Que idéia foi essa de bater a linda plumagem? É a segunda vez que você se lembra de sair sem o urso do seu irmão.

— Não quis incomodar o urso, replicou ela voltando-se para Estácio. Tinha imersa vontade de dar um passeio, e Moema também. Apenas hora e meia.

Aquele dia foi o de maior tristeza para a moça. Estácio passou quase todo o tempo no gabinete; nas poucas ocasiões em que se encontraram, ele só falou por monossílabos, às vezes por gestos. De tarde, acabado o jantar, Estácio desceu à chácara. Já não era só o passeio de Helena que o mortificava; ao passeio juntava-se a carta. Teria razão a tia em suas primeiras repugnâncias? Como ele fizesse essa pergunta a si mesmo, ouviu atrás de si um passo apressado e o farfalhar de um vestido.

— Está mal comigo? perguntou Helena com doçura.

Ao ouvir-lhe a voz, fundiu-se a cólera do mancebo. Voltou-se; Helena estava diante dele, com os olhos submissos e puros. Estácio refletiu um instante.

— Mal? disse ele.

— Parece que sim. Não me fala, não se importa comigo, anda carrancudo... Seria por eu sair de manhã?

— Confesso que não gostei muito.

— Pois não sairei mais.

— Não; pode sair. Mas está certa de que não corre nenhum perigo indo só com o pajem?

— Estou.

— E se eu lhe pedir que não saia nunca sem mim?

— Não sei se poderei obedecer. Nem sempre você poderá acompanhar-me; além disso, indo com o pajem, é como se fosse só; e meu espírito gosta, às vezes,de trotar livremente na solidão.

— Naturalmente a pensar de cousas amorosas... acrescentou Estácio cravando os olhos interrogadores na irmã.

Helena não respondeu; tomou-lhe o braço e os dous seguiram silenciosamente uns dez minutos. Chegando a um banco de madeira, Estácio sentou-se; Helena ficou de pé diante dele. Olharam um para outro sem proferir palavra; mas o lábio de Estácio tremera duas ou três vezes como hesitando no que ia dizer. Por fim, o moço venceu-se.

— Helena, disse ele, você ama.

A moça estremeceu e corou vivamente; olhou em volta de si, comoassustada, e pousou as mãos nos ombros de Estácio. Refletiu ela no que disse depois? É duvidoso; mas a voz, que nessa ocasião parecia concentrar todas as melodias da palavra humana, suspirou lentamente:

— Muito! Muito! Muito!

Estácio empalideceu. A moça recuou um passo, e, trêmula, pôs o dedo na boca, como a impor-lhe silêncio.A vergonha flamejava no rosto; Helena voltou as costas ao irmão e afastou-se rapidamente. Ao mesmo tempo, a sineta do portão era agitada com força, e uma voz atroava a chácara:

— Licença para o amigo que vem do outro mundo!

CAPÍTULO X

ESTÁCIO dirigiu-se ao portão. Abriu-o; um moço que ali estava entrou precipitadamente. Era Mendonça. Os dous mancebos lançaram-se nos braços um do outro. Helena, a alguma distância, presenciou aquela infusão, e não lhe foi difícil adivinhar quem era o recém-chegado.

A efusão cessou, ou antes interrompeu-se, para repetir-se. Quando os dous rapazes se julgaram assaz abraçados, tomaram o caminho da casa. Helena, que estava um pouco adiante deles, foi apresentada a Mendonça. Ao ouvir que era irmã de Estácio, Mendonça ficou espantado. Cortejou cerimoniosamente a moça, e os dous seguiram até à casa, onde pouco depois entrou Helena.

Mendonça era da mesma estatura que Estácio, um pouco mais cheio, ombros largos, fisionomia risonha e franca, natureza móbil e expansiva. Vestia com o maior apuro, como verdadeiro parisiense que era, arrancado de fresco ao grand boulevard, ao Café Tortoni e às récitas do Vaudeville. A mão larga e forte calçava fina luva, cor de palha, e sobre o cabelo, penteado a capricho, pousava um chapéu de fábrica recente.

Estácio, antes de entrar, explicou ao amigo a situação de Helena, cujas qualidades e educação louvou, com o fim de lhe fazer compreender o respeito e a afeição que ela de todos merecia. Helena adivinhou esse trabalho preparatório do irmão, logo que entrou na sala.

Mendonça divertiu a família uma parte da noite, contando osmelhores episódios da viagem. Era narrador agradável, fluente e pinturesco, dotado de grande memória e certa força de observação. Espírito galhofeiro, achava facilmente o lado cômico das cousas e mais se comprazia em dizer os acidentes de um jantar de hotel ou de uma noite de teatro que em descrever as belezas da Suíça ou os destroços de Roma.

A visita durou pouco mais de hora. Estácio quis acompanhá-lo até à cidade; ele não consentiu que fosse além do portão. Atravessando a chácara, falaram do passado, e umpouco do futuro, a trechos soltos, como o lugar e a ocasião lhes permitiam. Mendonça, vendo que Estácio não tocava em um ponto essencial, foi o primeiro que o aventou.

— Falaste-me em uma de tuas cartas de certa Eugênia...

— A filha do Camargo.

— Justo. Negócio roto? Quase terminado. Terminado... na igreja, suponho? Tal qual. Quando?

— Brevemente.

— Marido, enfim! Era só o que te faltava. Nasceste com a bossa conjugal, como eu com a bossa viajante, e não sei qual de nós terá razão.

— Talvez ambos.

— Creio que sim. Tudo depende do gosto de cada um. O casamento é a pior ou a melhor cousa do mundo; pura questão de temperamento. Eu vi algumas vezes essa moça; era então muito menina. Não te pergunto se é um anjo...

— É um anjo.

— Como todas as noivas. Feliz Estácio! Segues a carreira de tua vocação, enquanto que eu...

— Tu?

— Interrompo a minha, e talvez para sempre. Preciso cuidar da vida; não sou capitalista, nem meu pai tampouco. Adeus, viagens!

— Tanto melhor! Arranjo-te noiva. Não é a tua vocação, mas não serás o primeiro que a erre, sem que daí venha mal ao mundo.

— Pois arranja lá isso... Em todo caso não será tua irmã.

— Oh! não, disse vivamente Estácio.

— Na verdade, é bonita; mas... se permites a franqueza de outrora, acho-lhe uma costela de desdém...

— Que idéia! a mais afável criatura do mundo. Verás mais tarde; hoje estava, talvez, preocupada. Em todo o caso, não havias de querer que ela saltasse a dançar contigo na sala, de mais a mais sem música.

Mendonça acabava de acender um charuto; apertou a mão de Estácio e saiu. Estácio acordou de um sonho. A realidade pôs-lhe as mãos de chumbo e repetiu-lhe ao ouvido a confissão interrompida de Helena. Ansioso por saber o resto, entrou ele imediatamente em casa. A diligência foi estéril, porque a irmã se recolhera ao quarto. Estácio imitou-a. Era forçoso esperar uma noite inteira, demora que afligia, porque, dizia ele consigo mesmo, cumpria-lhe velar pela sorte de Helena, como irmão e chefe de família, indagar de seus sentimentos, e ordenar o que fosse melhor. Uma noite não era muito; contudo, a preocupação retardou-lhe o sono. Aconfissão súbita, lacônica e eloqüente da irmã ficara-lhe no espírito, como se fora o eco perpétuo de uma voz extinta.

Nem no dia seguinte, nem nos subseqüentes alcançou o que esperava. Helena, ou evitava ficar a sós com ele, ou esquivava-se a maior explicação. Nos passeios matinais, que eram freqüentes, procurou Estácio, mais de uma vez, tratar do assunto que o preocupava. Helena ouvia com um sorriso, e respondia com um gracejo; depois dava de rédea à conversação e galopava na direção oposta. Como a fantasia era campo vasto, nunca mais o moço lograva trazê-la ao ponto de partida.

Um dia, a insistência de Estácio teve tal caráter de autoridade, que pareceu constranger e molestar Helena. Ela replicou com um remoque; ele redargüiu com uma advertência áspera. Iam ambos a pé, levando os animais pela rédea. Ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa. Estácio possuía estas duas cousas, a retratação do erro e a generosidade do perdão. Viu que cedera a um mau impulso, e confessou-o; mas, confessou-o com palavras tais que Helena travou-lhe da mão e lhe disse:

— Obrigada! Se me não dissesse isso, ver-me-ia disparar por este caminho fora até ao fim do mundo ou até ao fim da vida.

— Helena!

— Ah! não é vão melindre, é a própria necessidade da minha posição. Você pode encará-la com olhos benignos; mas a verdade é que só as asas do favor me protegem... Pois bem, seja sempre generoso, como foi agora; não procure violar o sacrário da minha alma. Não insista em pedir a explicação de palavras mal pensadas e ditas em má hora...

— Mal pensadas? Pode ser; mas por isso é que são verdadeiras; se você tivesse tempo de as meditar, guardá-las-ia consigo, avara de seus segredos e suspeitosa de corações amigos. Meu fim era somente ajudá-la a ser venturosa, destruir...

— É tarde! interrompeu a moça, consultando o reloginho preso à cintura. Vamos?

Estácio sorriu melancolicamente; ofereceu-lhe o joelho, ela pousou nele o pezinho afilado e leve e saltou no selim. A volta foi menos alegre do que costumava ser. Eles falavam, mas a palavra vinha aos lábios, como uma onda vagarosa e surda; nenhuma cólera, mas nenhuma animação. Assim correu aquele dia; assim correriam outros, se não fora a vara mágica de Helena. O natural influxo era tão forte que o irmão voltou desde logo às boas, sendo as melhores horas as que passava ao pé dela, a escutá-la e a vê-la, ambos contentes e felizes. O episódio da confissão vinha às vezes, como hóspede importuno, projetar entre eles o nebuloso perfil; mas o espírito de Estácio repelia-o, e a alegria da irmã fazia o resto.

Entretanto, graças ao amigo recém-chegado, o filho doconselheiro saiu um pouco de suas regras habituais, e começou a provar alguma cousa mais da vida exterior. Mendonça buscava realizar, em miniatura, o seu esvaído ideal parisiense; havia nele o movimento, a agitação, a galhofa, que absolutamente faltavam a Estácio, e vieram dar-lhe à vida a variedade que ela não tinha. Alguns espetáculos e passeios, uma ou outra ceia alegre, tal foi o programa de uma parte íntima da existência de Estácio. Para contrastar com ela, tinha ele as manhãs do Andaraí e algumas noites do Rio Comprido. Ao amigo e à sua consciência, dizia o moço que estava a despedir-se da liberdade.

A influência de Mendonça estendeu-se à própria casa de Estácio. Mendonça gostava sobretudo da variedade no viver; não tolerava os mesmos prazeres nem os mesmos charutos; para os apreciar tinha necessidade de os alternar freqüentemente. Se fosse possível, era capaz de fazer-se monge durante um mês, antes do carnaval, trocar o habito por um dominó, e atar as últimas notas das matinas com os prelúdios da contradança. A fidelidade à moda custava-lhe um pouco, quando esta não ia a passo coma impaciência. Em sua opinião, o que distinguia o homem do cão era a faculdade de fazer que uma noite se não parecesse com outra. O Rio de Janeiro não lhe oferecia a mesma variedade de recursos que Paris; tendo o gênio inventivo e fértil, não lhe faltaria meio de fugir à uniformidade dos hábitos.

O pior que lhe acontecia era a disparidade entre os desejos e os meios. Filho de um comerciante, apenas remediado, não teria ele podido realizar a viagem à Europa nas proporções largas em que o fez, a não ser a intervenção benéfica de uma parenta velha, que se incumbira de lhe ministrar os recursos de que ele carecesse durante aquela longa ausência. Nem a parenta continuaria a abrir-lhe a bolsa, nem o pai queria criar-lhe hábitos de ociosidade.Tratava este, portanto, de obter-lhe um emprego público. Mendonça estavalonge de recusar; pedia somente que o emprego o não deslocasse da Corte.

Inquieto, amigo da vida ruidosa e fácil, inteligente sem largos horizontes, possuindo apenas a instrução precisa para desempenhar-se regularmente de qualquer comissão de certa ordem, Mendonça, com todos os seus defeitos e boas qualidades, era homem agradável e aceito. Os defeitos eram antes do espírito do que do coração.A variedade que ele pedia para as cousas externas e de menor tomo, não a praticava em suas afeições, que eram geralmente inalteráveis e fiéis. Era capaz de sacrifício e dedicação; sobretudo se lhe não pedissem o sacrifício deliberado ou a dedicação refletida, mas aquele que exige uma circunstância imprevista e súbita.

Não admira que a presença de tal homem viesse modificar o tom da sociedade de que era centro a família de Estácio, quando ele ali fazia alguma aparição. Era o sal daquela terra. Não tinha a rijeza do figurino, nem o ar do estrangeirado. A tesoura do alfaiate não lhe dissimulara a índole expansiva e franca.Acolhido como um filho, achava ali uma porção de casa. Que melhor aspecto podia ter a vida em tais condições, naquela família ligada por um sentimento de amor?

A noite do último dia do ano veio turvar a limpidez das águas.

CAPÍTULO XI

NAQUELE DIA fazia anos Estácio, e D. Úrsula assentara receber algumas pessoas a jantar, e outras mais à noite, em reunião íntima. Ela e Helena tomavam a peito fazer que a pequena festa de família fosse digna do objeto. Estácio opinou pela supressão do sarau; mas era difícil alcançar a desistência decorações que o amavam.

Logo de manhã, como ele se levantasse cedo, encontrou Helena que o convidou a segui-la à sala de costura.

— Quero dar-lhe o meu presente de anos, disse ela.

Ali entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andaraí, a mesma por onde eles costumavam passear, mas com algumas particularidades do primeiro dia. Dous cavaleiros, ele e ela, iam subindo a passo lento; aolonge, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro plano,desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data: 25 de julho de 1850.

Estácio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das linhas, a exação das circunstâncias locais, as impressões de uma hora fugitiva que o lápis da irmã tivera a arte de fixar no papel.

— Não podia fazer-me presente melhor, disse ele; dá-me uma parte de si mesma, um fruto de seu espírito. E que fruto! Não há muita moça que desenhe assim. Era talvez por isso que você saía algumas vezes sozinha com o pajem?

Estácio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos lábios. O beijo acertou de cair na cabeça da cavaleira. Foi o original que corou.

— Andavam a gabar os meus talentos, disse Helena após um instante; tive a vaidade de dar uma pequena amostra...

— Excelente amostra! Não acha, titia? disse o moço a D. Úrsula, que nesse instante aparecera à porta, trazendo o seu presente, numa bocetinha de joalheiro.

D. Úrsula não tinha, decerto, o instinto da arte; maso amor da família lhe ensinara uma estética do coração, e essa bastou a fazê-la admirar o trabalho de Helena.

— Mas que digo eu todos os dias? exclamou D. Úrsula. Esta pequena sabe tudo!

— Quase tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de agradecer...

— O quê, tontinha? interrompeu a tia. Algum disparate, naturalmente, impróprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.

Enquanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, Estácio mandou selar o cavalo e saiu. Queria comparar ainda uma vez o desenho de Helena com o sítio copiado. A fidelidade era completa, e o quadro seria absolutamente o mesmo, se se dessem algumas circunstâncias da primeira ocasião. Helena não ia ao lado dele; mas a vinte braças de distância flutuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estácio afrouxou o passo do cavalo, como saboreando as recordações da primeira manhã, quando Helena se lhe mostrara tão singularmente comovida. Volveu a refletir na situação dela, e na paixão que lhe confessara, dias antes, com tamanha veemência. Se se tratava de uma felicidade possível, embora difícil, Estácio prometeu a si mesmo alcançar-lha. Não era isso servir o sangue do seu sangue?

A casa do alpendre, até ali indiferente a Estácio, criava agora para ele um interesse especial. À medida que se aproximava, ia achando no edifício a fiel reprodução do desenho.Este não apresentava todas as particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições exteriores, como se fora feito diante do original.

A uma das janelas estava um homem, com a cabeça inclinada, atento a ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa atitude não era fácil examiná-lo; afigurava-se, entretanto, uma criatura máscula e bela. A duas bracas de distância, o indivíduo levantou a cabeça, e cravou em Estácio um par de olhos grandes e serenos; imediatamente os retirou, baixando-os ao livro.

" Mal sabes tu, filósofo matinal, disse Estácio consigo, mal sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bela mão do mundo!"

O filósofo continuou a ler, e o cavalo continuou a andar. Quando Estácio regressou daí a alguns minutos, achou somente a casa; o morador desaparecera; circunstância indiferente, que escapou de todo à atenção do moço. Nem ele pensava mais naquilo; o espírito trotava largo, à inglesa, como o ginete, e ambos bebiam o ar como anciosos de chegar ao ponto de partida.

CAPÍTULO XII

A FESTA ocorreu animada, posto a reunião fosse restrita. Alguns giros da valsa, duas ou três quadrilhas, jogo e música, muita conversa e muito riso, tal foi o programa da noite, que a encheu e fez mais curta.

Se as honras da casa foram feitas por Helena, a alma da festa era Mendonça, cujo espírito havia já recebido e colhido o sufrágio universal. Eugênia dera-lhe, antes de todos, o seu voto. Havia entre ambos tal ou qual afinidade de índole, que naturalmente os aproximava. Mendonça lisonjeava os caprichos de Eugênia, aplaudia-a, compreendia-a, obedecia-lhe sem constrangimento nem reparo. Quando Mendonça valsava com Eugênia, todos os olhos se concentravam neles. Eram valsistas de primeira ordem. As ondulações do corpo de Eugênia,e a serenidade e segurança de seus passos adaptavam-se maravilhosamente àquela espécie de dança. Era belo vê-los percorrer o vasto círculo deixado aos movimentos; vê-los enfim parar com a mesma precisão e sem o menor sintoma de cansaço. Eugênia punha toda a atenção no gesto de braço com que, logo que interrompia ou cessava de todo a valsa, conchegava ao corpo a saia do vestido. O prazer com que fazia esse gesto, e a graça com que o acompanhava de uma leve inclinação do corpo mostravam que, mais ainda a faceirice do que a necessidade, lhe movia o corpo e a mão.

Esta sorte de triunfos enchia a alma de Eugênia; e, porque ela não possuía nem a modéstia nem a arte de a simular,via-se-lhe no rosto o orgulho e a satisfação. A dança não era para a filha de Camargo um gozo ou um recreio somente; era também um adorno e uma arma. Daí vinha que o valsista mais intrépido e constante era também o principal parceiro do seu espírito; e ninguém disputava esse papel ao filho do comerciante.

— Sua filha é a rainha da noite, murmurou o Dr.Matos ao ouvido de Camargo, em um intervalo do voltarete.

— Não é verdade? acudiu o médico.

E a alma do pai voava enrolada nas pontas da fita que apertava a cintura de Eugênia, não regressando ao domicílio senão quando a moça parava. Então volvia Camargo um olhar em torno de si, como pedindo igual admiração. Depois, ficava sombrio,e mais do que usualmente, caía em longos e mortais silêncios.Três ou quatro vezes aproximara-se de Helena sem lograr detê-la, nem achar em si mais que duas palavras triviais. Insistia; não a perdia de vista, parecia ansioso de a conversar sobre alguma cousa.

Helena repartia-se entre todas as pessoas, atenta aos mil cuidados que a noite requeria. Cantou uma vez, dançou uma quadrilha, e não valsou. Em vão Mendonça insistira com ela; a moça desculpou-se dizendo que a valsa lhe fazia vertigens. Na opinião do filho do coronel esta razão encobria somente a ignorância de Helena. Estácio pensava antes que era a castidade selvagem da irmã que lhe não permitia o contacto de um homem, idéia que lhe fez bem ao coração.

Pela volta da meia-noite, terminada a ceia, começou aquela hora de repouso que precede a total dispersão. As senhoras trocavam impressões e comentários, os rapazes fumavam, os jogadores decidiam as últimas remissas. A noite não refrescara, e a agitação aumentara o calor. Helena, tão cansada como D.Úrsula, retira-se por alguns instantes para a sala contígua à principal; ali sentou-se num sofá, e derreou levemente o corpo, deixando cair os cílios, não sei se pensativos, se pesados de sono. O espírito não tivera tempo de encadear duas idéias ou esboçar um sonho,quando uma voz a acordou:

— Já dormindo!

Era Camargo.

Helena abriu os olhos sobressaltada. A voz de Camargo produzira-lhe a impressão de desagrado que lhe fazia sempre. Sorriu a moça contrafeitamente, e vendo que ele se dispunha a sentar-se no sofá, não arredouo vestido, como se quisesse deixar entre ambos larga distância. Camargo sentou-se.

— Parece que se assustou? disse ele.

— Um pouco.

Camargo agitou entre as mãos os perendengues do relógio, tão numerosos como eles se usavam naquele tempo; depois pegou familiarmente no leque da moça, abriu-o, contou as varetas, tornou a fechá-lo e restituiu-o com um elogio. Helena respondeu-lhe com um sorriso. Ia levantar-se, quando ele a deteve com estas palavras:

— Estimei achá-la só, porque precisava pedir-lhe um conselho.

A testa de Helena contraiu-se interrogativamente.

— Um conselho e um favor, continuou o médico. Não será, creio eu, a primeira vez que a velhice consulte a mocidade. Demais, trata-se de assunto em que a gente moça lê de cadeira.

Helena olhou para ele desconfiada. Nunca vira o médico tão afável, e essa mudança de maneiras e de tom é que lhe fazia medo. Verdade é que ele ia pedir-lhe alguma cousa. Camargo não se deteve.Fez uma exposição rápida de suas relações com a família do conselheiro, da amizade que o ligava a ela.

— A perda do meu finado amigo, concluiu ele, não pôde ser suprida por nenhuma cousa; mas, há alguma compensação na afeição sobrevive e me faz considerar esta família como minha própria. Estou certo de que seu irmão e D. Úrsula sentem a meu respeito do mesmo modo. Quanto à senhora, é recente na família, mas não tem menor direito que ela. Vi-a tão pequena!

— A mim? perguntou Helena.

Camargo fez um gesto afirmativo, enquanto a moça olhava em voltada sala, receosa de que alguém tivesse entrado e ouvido. Uma vez segura de que ninguém havia, recebeu impressão contrária à primeira; envergonhou-se daquele receio. A vergonha aumentou quando o mesmo acrescentou em voz baixinha:

— Não falemos nisso...

— Pelo contrário! exclamou ela. Pode falar com franqueza; diga tudo. Era minha mãe. Não o sei o que foi para o mundo; mas, se me perdoaram a irregularidade do nascimento, não creio que me pedissem em troca a renúncia do meu amor de filha; a lei que o pôs em meu coração é anterior à lei dos homens. Não repudio uma só das minhas recordações de outro tempo. Sei e sinto que a sociedade tem leis e regras dignas de respeito; aceito-as tais quais; mas deixem-me ao menos o direito de amar o que morreu. Minha pobre mãe! Vi-a expirar em meus braços; recolhi o seu último suspiro. Tinha apenas doze anos; contudo, não consenti que outra pessoa velasse à cabeceira a última noite que passou sobre a Terra... Oh! não a esquecerei nunca! nunca! nunca!

Helena proferiu estas palavras num estado de exaltação que até ali se lhe não vira. Em vão Camargo procurou duas ou três vezes interrompê-la, receoso de que a ouvissem fora, porque a moça tinha levantado a voz. Helena não obedeceu; não viu sequer o gesto suplicante do médico. O seio, castamente velado pelo corpinho, que subia até ao pescoço, estava ofegante e onduloso como a água do mar. A última palavra saiu-lhe como um soluço.Camargo sentiu-se surpreendido com aquela explosão de ternura. Era evidente que ele esperava outra cousa. Seguiu-se um breve silêncio,durante o qual Helena mordia a ponta do lenço, como para conter a palavra que lhe tumultuava no coração. O médico prosseguiu enfim:

— Ninguém lhe pede que a esqueça, disse ele, todos respeitam esses sentimentos de piedade filial. O passado morreu, e o menos que se deve aos mortos é o silêncio. A senhora temo direito de lhe dar o amor e a saudade. Mas falemos dos vivos; e perdoe-me se lhe toquei, sem querer, em tão dolorosa recordação.

— Não! não é dolorosa! disse ela, abanando a cabeça.

— Falemos dos vivos. Não está certa do amor de sua família?

Helena fez um gesto afirmativo.

— Não poderia encontrar outra melhor nem tão boa. D. Úrsula é uma santa senhora; Estácio, um caráter austero e digno. Venhamos agora ao conselho. Há muito tempo ando com idéia de ir à Europa; estou caminhando para a velhice; não quero deixar de ir ver alguma cousa, além do nosso Pão d`Açúcar. Já desfiz o projeto mais de uma vez. Cuido que agora vou definitivamente realizá-lo. Dá-se, porém,uma circunstância grave. Sabe que minha filha ama seu irmão? Meus olhos descobriram desde muito tempo essa inclinaçãode um e outro, porque também seu irmão ama minha filha. Merecem-se e de algum modo continuam a afeição dos pais; a natureza completa a natureza. Esta é a situação. O que eu desejava, porém, é que me dissesse se devo partir já, levando-a; ou se é melhor esperar que eles se casem.

Helena ouvira o médico sem olhar para ele; quando ele acabou, fitou-o admirada e curiosa. A puerilidade da pergunta era tão evidente que a moça procurou ler no rosto do interlocutor o pensamento verdadeiro e oculto. Camargo apressou-se a explicar-se.

— Estácio, disse ele, pode amar Eugênia com idéias matrimoniais; mas também pode não passar isto de um capítulo de romance, como o que se lê em uma viagem da Corte a Niterói. O caráter é sério; o coração tem leis especiais. Confesso que o procedimento de Estácio nada me afirma a tal respeito. Há nele umas mudanças pouco explicáveis. O tempo decorrido é mais que muito suficiente para que... Está refletindo?

— Estou.

— E...

— Suponho que pede mais do que me disse. Quer que eu indague a tal respeito as intenções de Estácio?

— Isso.

— Mas por que não se dirige a ele mesmo?

— Não havia inconveniente; estabeleceu-se, porém, que um pai não deve ser o primeiro a falar em tais cousas. É preciso respeitar a dignidade paterna. Acresce que Estácio é rico, e tal circunstância podia fazer supor de minha parte um sentimento de cobiça, que está longe de meu coração. Podia falar a D. Úrsula; creio, porém, que ela não tem a sua habilidade, e... por que o não direi? a sua influência no espírito de Estácio.

— Eu!

— Oh! influência incontestável! A senhora veio completar a alma de seu irmão. É visível a afeição e o respeito que ele lhe tem. Demais em tais assuntos uma irmã é natural confidente e conselheira.

Helena deu três pancadinhas no joelho com a ponta do leque, e enfiou os olhos pela porta de comunicação entre aquela ea sala principal. Depois voltou-se para o médico.

— Sei que eles se amam, disse ela, e já dei a minha opinião a tal respeito. Eugênia parece ser minha amiga; meu irmão é meu irmão; desejo-lhes todas as felicidades. Há, porém, um limite à intervenção de uma irmã; e não desejo ir além. Demais, seu pedido é ocioso.

— Por quê?

— Anuncie a viagem, e Estácio se apressará a pedir-lhe sua filha. Se o não fizer, é porque a não ama, conforme ela merece, e em tal caso mais vale perder um casamento do que o fazer mau.

— Sim? perguntou Camargo.

— Naturalmente.

— O conselho é excelente, disse o médico depois de um instante, mas tem o defeito substancial de suprimir a sua intervenção, que me é necessária. Vejamos o meio de combinar as cousas. Suponhamos que, anunciada a viagem, Estácio não corresponde às minhas esperanças. Que devo fazer?

— Embarcar.

— Embarcar é arriscar o casamento. Ora, este casamento... é um de meus sonhos. Desejo que os filhos continuem a afeição dos pais. Se Estácio recuar, minhas esperanças esvaem-secomo fumo; o tempo cavará um abismo entre os dous; Eugênia amará outro... Enfim, conto com a senhora.

— Comigo?

— A senhora tem uma força de resolução, uma fertilidade de expedientes, um espírito capaz de empresas delicadas; e, tratando-se da felicidade de um irmão, creio que empenhará todas as forças para levar a cabo a mais pura das ambições. Não lhe peço um absurdo, peço-lhe a felicidade de minha filha.

Helena não respondeu; olhou de revés para ele, e cravou depois os olhos na águia branca tecida no tapete, sobre o qual pousava o pé impaciente e colérico. Podia referir mais detidamente qual o seu papel junto de Estácio, a respeito de Eugênia, os pedidos que lhe fez e a promessa do irmão, que deveria ser cumprida, se o fosse, em algum dos seguintes dias. Mas, nem quis dar esperanças que os acontecimentos podiam dissipar, nem o coração lhe consentia mais larga confidência. Ambos eles viam que se detestavam cordialmente; mas, se em Helena havia cólera abafada, em Camargo havia tranqüilidade e observação. Ele contemplava a moça, com o olhar fixo e metálico dos gatos; a mão esquerda, pousada sobre o joelho, rufava com os dedos magros e peludos. Nada dizia; todo ele era uma interrogação imperiosa. Helena olhou ainda uma vez para o médico.

— Dá-me o seu braço até à sala? perguntou.

Camargo sorriu.

— Só isso? Eu dizia comigo outra cousa.

— Que dizia então? perguntou Helena.

— Dizia que muito se devia esperar da dedicação de uma moça, que acha meio de visitar às seis horas da manhã uma casa velha e pobre, não tão pobre que a não adorne garridamente uma flâmula azul...

Helena fez-se lívida; apertou nervosamente o pulso de Camargo. Nos olhos pareciam falar-lhe ao mesmo tempo o terror, a cólera ea vergonha. Através dos dentes cerrados Helena gemeu esta palavra única:

— Cale-se!

— Falo entre nós e Deus, disse Camargo.

Uma onda de sangue invadiu a face da moça, com a mesma rapidez com que ela lhe empalidecera. Helena quis erguer-se, mas sentiu-se exausta. Ninguém da sala pôde perceber a impressão e o movimento; ninguém olhava para ali. Camargo, entretanto, inclinou-se para Helena e proferiu algumas palavras de animação, que ela interrompeu, murmurando com amargura:

— O senhor é cruel!

— Sou pai, respondeu o médico; pai extremoso e discreto, mais discreto ainda que extremoso. Conto com a senhora.

CAPÍTULO XIII

DISSOLVIDA a reunião, Helena recolheu-se à pressa como pretexto de que estava a cair de sono, mas realmente para dar à natureza o tributo de suas lágrimas. O desespero comprimido tumultuava no coração, prestes a irromper. Helena entrou no quarto, fechou a porta, soltou um grito e lançou-se de golpe à cama, a chorar e a soluçar.

A beleza dolorida é dos mais patéticos espetáculos que a natureza e a fortuna podem oferecer à contemplação do homem. Helena torcia-se no leito como se todos os ventos do infortúnio se houvessem desencadeado sobre ela. Em vão tentava abafar os soluços, cravando os dentes no travesseiro. Gemia, intercortava o pranto com exclamações soltas, enrolava no pescoço os cabelos deslaçados pela violência da aflição, buscando na morte o mais pronto dos remédios. Colérica, rompeu com as mãos o corpinho do vestido; e o jovem seio, livre de sua casta prisão, pôde à larga desafogar-se dos suspiros que o enchiam. Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vagidos de sua dor.

Calar somente, não adormecê-la, porque ela aí lhe ficou, companheira daquela noite cruel, para velarem ambas. Quando os olhos cansaram, e foram mais intervalados os soluços, Helena jazeu imóvel no leito, com o rosto sobre o travesseiro, fugindo com a vista à realidade exterior. Uma hora esteve assim, muda, prostrada, quase morta, uma hora longa, longa, longa, como só as tem o relógio da aflição e da esperança.

Quando a tormenta pareceu extinta, a moça sentou-se na cama e olhou vagamente em torno de si. Depois ergueu-se; dirigiu-se trôpega ao quarto de vestir; ali parou diante do espelho, mas fugiu logo, como se lhe pesasse encarar consigo mesma. Uma das janelas estava aberta; Helena foi ali aspirar um pouco do ar da noite. Esta era clara, tranqüila e quente. As estrelas tinham uma cintilação viva que as fazia parecer alegres. Helena enfiou um olhar por entre elas como procurando o caminho da felicidade. Esteve à janela cerca de meia hora; depois entrou, sentou-se e escreveu uma carta.

A carta era longa, escrita a golfadas, sem nexo nem ordem; continha muitas queixas e imprecações, ternura expansiva de mistura com um desespero profundo; falava daqueles que, tendo nascido sob a influência de má estrela, só tem felicidades intermitentes e mutáveis; dizia que para ela própria felicidade era um gérmen de morte e dissolução, — idéia que repetia três vezes, como se tal observação fosse o transunto de suas experiências certas. A carta falava também de um homem, cujo egoísmo de pai não conhecia limites, e que a todo o transe queria que a filha desposasse uma grande riqueza e uma grande posição, — "homem, dizia ela, que me viu a princípio com olhos avessos, pela diminuição que eu trazia à herança". No fim dizia que havia naquelas linhas muito de obscuro e incompleto, que oportunamente contaria tudo, mas que desde já podia dar a triste notícia de que lhe era forçoso abster-sede sair.

Helena releu o escrito e meditou longo tempo sobre ele; acrescentou ainda algumas linhas; depois, rasgou o papel em dous pedaços, chegou-os à vela, e os destruiu. Como arrependida, voltou a escrever outra carta, mas não chegou a acabar seis linhas; rasgou-a como fizera à primeira,e só então recorreu ao remédio melhor de uma alma ulcerada e pia: rezou. A prece é a escada misteriosa de Jacó: por elas o bem os pensamentos ao Céu; por ela desce mas divinas consolações.

Entretanto, a noite começava a inclinar a urna das horas às mãos da madrugada. O sono fugira dos olhos de Helena; mas era forçoso repousar. Assim mesmo vestida, atirou-se sobre o leito. Não dormiu, não se pode dizer que dormisse; ficou ali num estado que não era vigília nem sono, até que a manhã rompeu inteiramente. Abrindo os olhos, pareceu acordar de um sonho; a imaginação recompôs as fases todas do acontecimento da véspera. Depois suspirou, e ficou longo tempo a olhar para o chão, com a fixidez trágica e solene da morte.

"Era justo!" murmurava de quando em quando.

Levantou-se enfim; levantou-se abatida e cansada. Viu-se ao espelho; a descor da face e a linha roxa que lhe circulava as pálpebras dificilmente podiam deixar de impressionar a família. Helena disfarçou como pôde esses vestígios da tempestade; explicou-os do modo mais verossímil: o cansaço da véspera e a insônia de toda uma noite. A explicação não achou obstáculo no ânimo da tia e do irmão. Somente o Padre Melchior, presente a ela, fitou na moça um olhar dubitativo, que a obrigou a baixar os cílios.

Se Helena padecia, o lugar de Estácio não era ao pé dela? Assim pensou o sobrinho de D. Úrsula, que em todo esse dia resolveu não sair de casa. Cercou-a de cuidados, buscou distraí-la, pediu-lhe que fosse repousar um instante. Para justificar a explicação que dera, Helena obedeceu às instruções do irmão. Este foi encerrar-se no gabinete, onde se ocupou em examinar e colecionar alguns papéis. Era o dia marcado para solicitar de Eugênia o consentimento matrimonial, e ele não cogitava em ir ao Rio Comprido. Na irmã, sim; na irmã pensava ele, ora relendo as páginas de sua predileção, ora mandando saber se dormia sossegada,ora contemplando o desenho com que ele o presenteara na véspera. Sentia-setão feliz naquela aurora do ano.

Pouco antes do jantar, ouviu no corredor um rumor de saias, e não tardou que a irmã aparecesse à porta. Vinha como fora; mas a Estácio pareceu que efetivamente o descanso e o sono lhe haviam restaurado as forças. A razão era o sorriso estudado que lhe avivava o rosto. Helena parou e Estácio foi ter com ela, travou-lhe da mão, fê-la entrar.

— Estás melhor? perguntou.

— Estou boa.

— Não dizia eu que era melhor desistir da idéia da reunião? Essas festas prolongam-se, fatigam, sobretudo as pessoas franzinas...

Helena ergueu os ombros.

— Anda sentar-te um pouco.

— Primeiro há de responder-me a uma cousa.

— Que é?

— Que dia é hoje? perguntou ela.

— Ano-bom.

— Lembra-se do que me prometeu?

— Perfeitamente. Vês estes papéis? disse ele mostrando sobre a secretária uma porção de papéis classificados e postos por ordem. Ocupei-me até agora em liquidar o passado; faltam-me umas últimas contas, que o procurador há de trazer amanhã. Depois, irei...

Helena abanou a cabeça com ar de desaprovação.

— Não, disse ela; não há de ir depois, há de ir hoje mesmo. Que têm as contas com a autorização que deve pedir a Eugênia? Vá logo de noite. Sou supersticiosa; creio que o pedido feito no dia de hoje é de excelente agouro. Dará um ano feliz.

— Minha intenção era ir dentro de quatro ou cinco dias, respondeu Estácio, depois de um silêncio; mas não tenho dúvida em fazê-lo já. Uma vez preenchida a formalidade...

— Pedi-la-á imediatamente ao pai?

— Não!

— Por quê?

— Porque precisarei meditar ainda vinte e quatro horas, pelo menos. Vinte e quatro horas não é muito para quem tem de amarrar-se eternamente. Quero sondar o meu próprio espírito, e...

— Mas tudo isso é uma extravagância! interrompeu Helena sentando-se na borda da rede em que Estácio costumava ler. Pretenderá você recuar depois de lhe falar, a ela?

— Oh! não! Mas, uma vez que caminho para a solução tão grave, não há inconveniente em ir pé ante pé. Admiras-te? perguntou ele, vendo que a irmã fazia um gesto de impaciência.

— Zango-me.

— Mas...

— Você é insuportável. Falta ao que prometeu.

— Já disse que hei de cumprir.

— Não recuará?

— Não.

— Irá pedi-la hoje mesmo?

— A ela.

— A ela e ao pai.

— Ao pai escreverei uma carta.

— Pois seja uma carta! Contanto que acabe com isso. O casamento será...

— Quando convier ao Dr. Camargo.

— Antes do fim do mês.

— Tão cedo!

— Dou-lhe mês e meio. Nem uma hora a mais! Estou morta por vê-los casados, tanto por você como por ela, coitada! que o ama tanto...

— Crês? Perguntou vivamente Estácio.

— Se creio! Posso afirmá-lo. Não será amor como você quisera que fosse, mas é o amor que ela lhe pode dar, e é muito... Está dito! Palavra?

Estácio estendeu silenciosamente a mão, que Helena apertou.

— Vou confiar todo o meu destino à cabeça mais leve do universo, disse Estácio, com os olhos fitos no chão. Não é de seu coração que me queixo; mas de seu espírito, que nunca deixou as roupas da infância. Demais, à medida que me aproximo da hora solene, sinto que me repugna o estado conjugal. É tão boa a minha vida de solteiro! tão cheios os meus dias...

Helena tapou-lhe a boca com uma das mãos; com a outro fez-lhe um gesto para que se calasse. Depois, fugiu. Uma vez só, Estácio refletiu longamente na situação em que se achava; reconheceu que estava moralmente obrigado a pedir Eugênia, desde que seus corações se tinham aberto um para o outro, celebrando um contrato, que ele só não podia romper. A consciência rebelou-se contra as irresoluções do coração, e a decisão foi curta.

Naquela mesma noite, ouviu Eugênia a esperada palavra. A alegria que se lhe derramou nos olhos, foi imensa e característica. Um pouco mais de recato não era descabido em tal ocasião. Não houve nenhum; o primeiro ato da mulher foi uma meninice. Eugênia ignorava tudo, até a dissimulação do sexo. Concedendo a mão a Estácio, não era uma castelã que entregava o prêmio, mas um cavaleiro que o recebia com alvoroço e submissão.

Transposto a Rubicon, não havia mais que caminhar direito à cidade eterna do matrimônio. Estácio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr. Camargo, pedindo-lhe a mão de Eugênia, carta seca e digna, como as circunstâncias a pediam. Antes de a remeter, mostrou-a a Helena, que recusou lê-la. Não a leu, nem lhe pegou. Ele teve-a alguns instantes na mão, sem se atrever e dá-la ao escravo que esperava por ela. Por fim, deitou-a sobre a secretária.

— Amanhã, disse ele sorrindo para Helena.

Helena lançou mão da carta e deu-a ao escravo.

— Leva à casa do Sr. Dr. Camargo, ordenou a moça. Não tem resposta.

                                                                                            

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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