Biblio "SEBO"
Moisés Herzog, um professor de Filosofia cuja carreira começou brilhantemente mas que se estancou nos últimos tempos, é abandonado pela sua segunda mulher. Madalena, que encetou uma relação com o melhor amigo dele, Valentim. Herzog revê então o seu passado - os seus dois casamentos, os filhos, a sua carreira académica, as suas infidelidades - e escreve obsessivamente cartas - a maior parte jamais enviada - às pessoas da sua vida, bem como a diversas personagens públicas. Assim se apresenta a crise de Herzog e o modo como tenta recompor a sua vida e identificar o caminho a seguir a partir desse ponto.
Posso não estar bom da cabeça, mas tudo me parece claro, pensou Moisés Herzog.
Algumas pessoas julgavam-no louco, e durante um certo tempo ele próprio duvidou da sua integridade. Mas agora, embora o seu comportamento fosse ainda estranho, sentia-se confiante, alegre, clarividente e forte. Um feitiço envolvera-o, e começara a escrever cartas a toda a gente. Estava tão excitado com estas cartas que desde o fim de Junho andava dum lado para o outro com uma mala cheia de papéis. Levara essa mala de Nova Iorque para Martha's Vineyard, mas regressou de Vineyard imediatamente; dois dias mais tarde voou para Chicago, e de Chicago dirigiu-se para uma aldeia na zona oriental de Massachusetts. Escondido no campo, escreveu incessante, fanaticamente, para os jornais, aos homens públicos, a amigos e familiares e até aos mortos, aos seus próprios mortos obscuros, e finalmente aos mortos famosos.
Era o pino do Verão nos Berkshires. Herzog estava sozinho na grande e velha casa. Normalmente esquisito com a alimentação, comia agora pão de Silvercup do invólucro de papel, ervilhas da lata e queijo americano. De quando em quando, colhia framboesas no jardim invadido pelas ervas bravias, levantando as hastes espinhosas com um distraído cuidado. Quanto a dormir, dormia num colchão, sem lençóis — a sua abandonada cama de casado — , ou na rede, coberto com o casaco. A relva alta, os gafanhotos e rebentos de carvalho silvestre rodeavam-no no pátio. Quando abria os olhos de noite, as estrelas pareciam corpos espirituais. Fogos, decerto; gases: minerais, calor, átomos, mas eloquentes às cinco da manhã para um homem deitado numa rede, envolto no sobretudo.
Se algum pensamento novo o assaltava, dirigia-se para a cozinha, seu quartel-general, para o escrever. A tinta branca estava a descascar-se das paredes de tijolo e Herzog por vezes limpava a mesa de excrementos de ratos com a manga, perguntando a si próprio calmamente porque seria que os ratos do campo teriam uma tal paixão por cera e parafina. Faziam buracos em conservas tapadas com parafina; roíam velas de aniversário até aos pavios. Um rato comia dum embrulho de pão, deixando a forma do seu corpo nas camadas de fatias. Herzog comia a outra metade do pão barrada com compota. Podia compartilhar com ratos também.
Sempre, um canto do seu espírito permanecia aberto ao mundo exterior. Ouvia o cantar dos galos na manhã. O seu chamamento agreste era delicioso. Ouvia os tordos ao pôr-do-sol. À noite havia um mocho. Quando caminhava no jardim, excitado com uma carta imaginada, via rosas agitadas pelo vento junto às goteiras da chuva; ou amoras — pássaros debicando na amoreira. Os dias estavam quentes, as tardes brilhantes e empoeiradas. Olhava para tudo ardentemente, mas sentia-se semi-cego.
O seu amigo, o seu ex-amigo, Valentim, e a mulher, a sua ex-mulher, tinham espalhado o boato de que perdera a razão. Seria verdade?
Estava a dar uma volta à casa e viu a sombra da própria cara numa janela cinzenta, com teias de aranha. Parecia mais que humanamente tranquilo. Uma linha radial estendia-se-lhe do meio da testa até ao nariz rectilíneo e aos lábios cheios, silenciosos.
No final da Primavera apoderara-se de Herzog a necessidade de se explicar, de se abrir, de se justificar, de elaborar uma perspectiva, de se clarificar, de se corrigir.
Dava, por essa altura, aulas de educação de adultos numa escola nocturna de Nova Iorque. Estava relativamente lúcido em Abril, mas no fim de Maio começou a divagar. Tornou-se evidente para os estudantes que nunca aprenderiam muito sobre As Raízes do Romantismo, mas que veriam e ouviriam estranhas coisas. Uma após outra, as formalidades académicas desapareceram. O Prof. Herzog tinha a franqueza inconsciente dum homem profundamente preocupado. E próximo do fim do trimestre as suas aulas conheciam grandes pausas. Detinha-se murmurando «Desculpem», procurando no casaco a caneta.
Com a mesa a ranger, escrevia em pedaços de papel, com uma pressão de arrebatamento na mão; estava absorto, de olheiras escuras debruando os olhos. A sua face branca revelava tudo — tudo. Raciocinava, debatia-se, sofria, pensava, numa brilhante alternativa — estava escancarado, à mercê do exterior; os seus olhos, a boca, tornavam tudo silenciosamente claro — saudade, intolerância, cólera amarga. Podia-se ver tudo isso. A aula esperava três minutos, cinco minutos, em absoluto silêncio.
A princípio não dava qualquer estrutura às notas que rabiscava. Eram fragmentos — sílabas sem sentido, exclamações, provérbios contorcidos e citações ou, no ídixe da sua mãe, há muito morta, Trepverter — , respostas demasiado tardias, afloradas já ao descer das escadas.
Escrevia, por exemplo, Morte — morrer — viver de novo — morrer de novo — viver.
Ninguém, nenhuma morte.
E, De joelhos com a alma? Também podia ser útil. Esfregar o chão. Depois, Responder a um louco de acordo com a sua loucura, não vá ele ser ajuizado dentro dos seus caprichos.
Não respondera um louco de acordo com a sua loucura, não vá julgar-te seu igual. Escolher um.
Anotou também, vejo por Walter Winchell quej. S. Bachpôs luvas negras para compor uma missa de requiem.
Herzog não sabia que dizer deste seu rabiscar. Entregava-se à excitação que o inspirava e suspeitava por vezes de que poderia ser um sintoma de desintegração. Isso não o assustava. Deitado no sofá do pequeno apartamento que alugara na 17a Rua, imaginava-se por vezes como uma indústria que produzia história pessoal, e observava-se do nascimento até à morte. Admitia num pedaço de papel: Não posso justificar.
Ao considerar toda a sua vida, tomava consciência de que estragara tudo — tudo. A sua vida estava, como se costuma dizer, arruinada. Mas como nunca fora grande coisa, não tinha muito que lamentar. Instalado no sofá desagradável, pensando nos séculos, no dezanove, no dezasseis, no dezoito, voltou para o presente, do último, com um dito de que gostou:
A mágoa, Senhor, é uma espécie de preguiça.
Continuou com o seu inventário, deitado de cara para baixo no sofá. Seria um homem inteligente ou um idiota? Bem, neste momento não podia considerar-se inteligente. Podia ter tido outrora os elementos dum carácter inteligente, mas preferira ser sonhador, e o estado de alerta constante dera cabo dele. Que mais? Estava a perder o cabelo. Lia os anúncios do Centro de Especialistas de Calvície Thomas, com o cepticismo exagerado de um homem cujo desejo de acreditar era profundo, desesperado. Especialistas de Calvície! Pois... era antigamente um homem elegante. O rosto revelava a derrota que sofrera. Mas também pedira para ser derrotado e dera força aos atacantes. Isso levou-o à análise do seu carácter. Que espécie de carácter seria? Bem, na moderna terminologia, era narcisista; era masoquista; era anacrónico. O seu quadro clínico era depressivo — não do tipo mais grave; não um depressivo maníaco. Havia piores à sua volta. Se se acreditasse, como hoje aparentemente todos acreditavam, que o homem era o animal doente, então seria ele espectacularmente doente, excepcionalmente cego, extraordinariamente degradado? Não. Seria inteligente? O seu intelecto teria sido mais eficaz se tivesse tido um carácter paranóico, ávido de poder. Era invejoso, mas não excepcionalmente competitivo, não um verdadeiro paranóico. E quanto à sua cultura? — Tinha de admitir, agora, que também não era um grande professor. Sim, era sério, tinha uma certa, ampla, imatura sinceridade, mas podia nunca conseguir tornar-se sistemático. Iniciara-se brilhantemente com a sua tese de doutoramento em Filosofia — O Estado de Natureza na Filosofia Política Inglesa e Francesa nos Séculos XVII e XVIII. Tinha a seu crédito igualmente vários artigos e um livro, Romantismo e Cristianismo. Mas o resto dos seus projectos ambiciosos anulara-se, um após outro. No auge do seu precoce sucesso jamais deparara com dificuldades para encontrar lugares e obter bolsas para investigação. A Corporação Narragansett pagara-lhe quinze mil dólares durante alguns anos para continuar os estudos sobre Romantismo. Os resultados estavam no gabinete, numa velha mala — oitocentas páginas de discussão caótica que nunca conseguira estruturar-se. Era doloroso pensá-lo.
No chão, a seu lado, havia folhas de papel, e casualmente inclinou-se para escrever.
Anotou agora, Não essa longa doença, a minha vida, mas essa longa convalescença, a minha vida. A revisão liberal-burguesa, a ilusão do progresso, o veneno da esperança.
Pensou por um momento em Mitridates, cujo sistema ensinava a vencer pelo veneno. Enganou os seus assassinos, que cometeram o erro de usar pequenas doses, inebriando-o e não o destruindo. Tuttofa brodo.
Voltando ao seu auto-exame, admitiu que fora um mau marido — duas vezes. A Daisy, a primeira mulher, tratara-a miseravelmente. Madalena, a segunda, fizera o possível por o aniquilar. Para o filho e a filha, fora um pai dedicado mas mau. Para os pais, fora um filho ingrato. Para o país, um cidadão indiferente. Para os irmãos e a irmã, afectuoso mas distante. Com os amigos, um egoísta. Com o amor, preguiçoso. Com o brilhantismo, apagado. Com o poder, passivo. Com a sua própria alma, evasivo.
Satisfeito com a auto-severidade, gozando positivamente da rigidez e rigor factual das suas apreciações, deitou-se no sofá, de braços erguidos para trás, de pernas estendidas à toa.
Mas que encantadores continuamos, no entanto. O pai, pobre dele, era capaz de chamar os pássaros das árvores, os crocodilos da lama. Madalena também tinha um grande encanto assim como beleza pessoal, e um espírito brilhante. Valentim Gersbach, o amante, era um homem igualmente encantador, embora de um estilo mais pesado, brutal. Tinha um queixo espesso, cabelo de cobre flamejante que jorrava literalmente da cabeça (esse não precisava do Centro de Especialistas de Calvície Thomas) e andava com uma perna de pau, inclinando-se graciosamente e endireitando-se como um gondoleiro. O próprio Herzog não deixava de ter bastante encanto.
Mas a sua potência sexual fora prejudicada por Madalena. E sem capacidade de atrair mulheres, como havia de se recompor? Era a esse respeito que mais se sentia como um convalescente.
A mesquinhez destes esforços sexuais.
Com Madalena, havia vários anos, Herzog iniciara a vida de novo. Afastara-a da Igreja — quando se conheceram, tinha acabado de se converter. Com vinte mil dólares herdados do seu encantador pai, para agradar à mulher, abandonou uma posição académica que era perfeitamente respeitável e comprou um velho casarão em Ludeyville, Massachusetts. Nos calmos Berkshires, onde tinha amigos (a família de Valentim Gersbach), seria fácil escrever o segundo volume sobre as ideias sociais dos Românticos.
Herzog não deixou a vida académica por esta lhe correr mal. Pelo contrário, criara boa reputação. A sua tese exercera influências e fora traduzida para francês e alemão. O livro anterior, que quase passara despercebido ao ser publicado, figurava agora em muitas listas de leituras, e a geração mais jovem de historiadores aceitava-o como modelo duma nova espécie de história, «história que nos interessa» — pessoal, engagée — e olha para o passado com uma profunda necessidade de uma relacionação contemporânea. Enquanto Moisés esteve casado com Daisy, levara a vida perfeitamente normal dum assistente de Faculdade, respeitada e estável. O seu primeiro trabalho mostrava, por uma investigação objectiva, o que era o Cristianismo para o Romantismo. No segundo afirmava-se mais forte, mais dogmático, mais ambicioso. Havia bastante firmeza, realmente, no seu carácter. Possuía uma vontade poderosa e talento para polémicas, um gosto pela filosofia da história. Ao casar com Madalena e demitir-se da Universidade (porque ela pensava que ele assim devia proceder), investigando em Ludeyville, demonstrou talento e gosto pelo perigo e pelo extremismo, pela heterodoxia, por ensaios, uma atracção fatal pela «Cidade da Destruição». O que planeava era uma história que realmente tivesse em conta as revoluções e convulsões de massas do século XX, aceitando, com De Tocqueville, o desenvolvimento universal e duradouro da igualdade de condições, o progresso da democracia.
Mas não podia enganar-se acerca deste trabalho. Estava seriamente a perder confiança nele. A sua ambição sofreu um rude golpe. Hegel estava a dar-lhe muito trabalho. Dez anos antes tinha a certeza de compreender as suas ideias sobre consenso e poder civil, mas algo tinha deixado de bater certo. Sentia-se angustiado, impaciente, irado. Simultaneamente, ele e a mulher estavam a reagir duma forma muito peculiar.
A princípio, ela não quisera que ele fosse um simples professor, mas mudou de opinião após um ano no campo. Madalena considerava-se demasiado jovem, demasiado inteligente, demasiado viva, demasiado sociável para se enterrar nos remotos Berkshires. Decidiu terminar os seus estudos universitários de línguas eslavas. Herzog escreveu para Chicago, procurando empregos. Tinha também de arranjar uma situação a Valentim Gersbach. Valentim era locutor de rádio em Pittsfield. Não se podiam deixar pessoas como Valentim e Phoebe metidos nesta triste terriola da província, sozinhos, dizia Madalena. Foi escolhido Chicago porque Herzog aí crescera, e estava bem relacionado. Assim, deu aulas no Colégio de Downtown e Gersbach fez-se director pedagógico duma emissora de frequência modulada no Loop. A casa perto de Ludeyville foi fechada — uma casa que valia vinte mil dólares, com livros, porcelanas inglesas e novos adereços abandonados às aranhas, às toupeiras e aos ratos do campo — o dinheiro que tanto custara a ganhar ao pai!
Os Herzogs mudaram-se para o Midwest. Mas após um ano desta nova vida de Chicago, Madalena decidiu que ela e Moisés se não podiam entender afinal — e exigiu o divórcio. Teve de o conceder, pois que outra alternativa lhe restava? E o divórcio foi doloroso. Estava apaixonado por Madalena; não podia suportar a ideia de deixar a filha. Mas Madalena recusava-se a estar casada com ele, e os desejos das pessoas têm de se respeitar. A escravatura
acabou.
O golpe do segundo divórcio foi demasiado para Herzog. Sentiu que não aguentava — que estava a desintegrar-se — , e o Dr. Edvig, o psiquiatra de Chicago que tratava ambos os Herzogs, concordou que talvez fosse melhor para Moisés abandonar a cidade. Chegou a um acordo com o deão do Colégio de Downtown de que poderia voltar quando se sentisse melhor, e com dinheiro emprestado pelo irmão Shura, seguiu para a Europa. Nem todos os ameaçados de neurose têm à mão o remédio de uma viagem à Europa.
A maior parte das pessoas vêem-se na contingência de continuar a trabalhar; apresentam-se ao trabalho todos os dias, continuam a recorrer ao metropolitano. Ou então bebem, vão ao cinema e sentam-se lá a sofrer. Herzog devia sentir-se grato. A não ser que se esteja completamente arrasado, há sempre alguma coisa por que estar grato. De facto estava grato.
Na Europa, também não esteve exactamente sem fazer nada. Realizou uma viagem cultural por conta da Corporação Narragansett, proferindo conferências em Copenhaga, Varsóvia, Cracóvia, Berlim, Belgrado, Istambul e Jerusalém. Mas em Março, ao regressar a Chicago, o seu estado era ainda pior do que fora em Novembro. Disse ao deão que talvez fosse preferível ficar em Nova Iorque. Não viu Madalena durante esta visita. O seu comportamento era tão estranho e, para ela, tão ameaçador, que o avisou por intermédio de Gers-bach de que se não aproximasse da casa da Avenida Harper. A polícia tinha um retrato dele e prendê-lo-ia se fosse lobrigado no quarteirão.
Estava a tornar-se claro para Herzog, ele próprio incapaz de fazer planos, como Madalena se preparara tão bem para se ver livre dele. Seis semanas antes de o mandar embora, fizera-o alugar uma casa em Midway por duzentos dólares mensais. Quando se mudaram, ele arranjou prateleiras, limpou o jardim e consertou a porta da garagem; instalou os vidros nas estufas. Só uma semana antes de pedir o divórcio, apresentou as coisas dele lavadas e engomadas, mas no dia em que ele deixou a casa, atirou-as todas para dentro duma caixa de cartão que empurrou para a cave. Precisava de mais espaço. E mais coisas se passaram, tristes, cómicas, ou cruéis, conforme o ponto de vista. Até mesmo ao último dia, o tom das relações de Herzog com Madalena foi bastante sério — ou seja, ideias, personalidades, argumentos, foram respeitados e discutidos. Quando ela lhe deu a notícia, por exemplo, exprimiu-se com dignidade, naquele seu maravilhoso, poderoso estilo. Vira a questão de todos os ângulos, afirmava, e tinha de aceitar a derrota. Não podiam entender-se os dois. Estava preparada para admitir algumas culpas. Claro que Herzog não se encontrava completamente desprevenido. Mas convencera-se de facto de que a situação estava a tornar-se melhor.
Tudo isto aconteceu num dia claro e colorido de Outono. Tinha estado no pátio das traseiras a colocar os vidros nas estufas. A primeira geada atingira já os tomates. A relva estava densa e macia, com a beleza peculiar que adquire quando chegam os dias frios e as teias de aranha estão pousadas nela pela manhã; o orvalho é espesso e duradouro. Os tomateiros tinham escurecido e os globos vermelhos tinham rebentado.
Vira Madalena na janela das traseiras, em cima, deitando June para dormir, e mais tarde ouviu o banho a correr. Agora estava a chamar da porta da cozinha. Uma rajada vinda do lago fez o vidro emoldurado tremer nas mãos de Herzog. Colocou-o cuidadosamente de encontro à entrada e tirou as luvas de lona, mas não o barrete, como se pressentisse que iria sair logo após.
Madalena odiava violentamente o pai, mas não deixava de reconhecer nele o grande empresário, por vezes chamado o Stanislavsky americano. Preparara o acontecimento com um certo génio teatral próprio. Tinha meias pretas, saltos altos, um fato cor de alfazema com brocado índio da América Central. Usava os brincos de opala, as pulseiras, e estava perfumada; o cabelo, trazia-o repuxado dum lado, e as pestanas brilhavam com um cosmético azul. Os seus olhos eram azuis, mas o fundo da cor era curiosamente afectado pelo matiz inconstante das escleróticas. O nariz, que lhe descia numa linha recta e elegante das sobrancelhas, movia-se ao de leve quando estava particularmente agitada. Para Herzog mesmo este tique era precioso. Havia um sabor de subjugação no seu amor por Madalena. Dado que ela era dominadora, e dado que a amava, tinha de aceitar o que lhe era oferecido. Nesta acareação, na salinha em desalinho, duas espécies de egoísmo estavam presentes, e Herzog, do seu sofá, em Nova Iorque, contemplava-os agora — o dela, triunfante (tinha preparado o grande momento, ia fazer aquilo de que mais gostava, dar um golpe), e o dele, na expectativa, todo convertido em passividade. O que ia sofrer, merecia-o; pecara larga e longamente; merecera-o. Aqui estava.
Na janela, em prateleiras de vidro, encontrava-se uma colecção ornamental de pequenas garrafas de vidro. Pertenciam à casa. O sol tocava-lhes agora. A luz penetrava-as. Herzog via as ondas, as linhas de cor, as barras espectrais entrecruzadas, e especialmente uma grande mancha de branco flamejante no centro da parede, sobre Madalena. Esta dizia: — Não podemos viver juntos por mais tempo.
O seu discurso continuou durante vários minutos. As frases eram bem construídas. O discurso fora ensaiado e parecia que também ele tinha estado à espera que o espectáculo começasse.
O casamento não podia durar. Madalena nunca o amara. Estava a confessar-lho. — É doloroso ter de dizer-te que nunca te amei. Mais do que isso, nunca te amarei — afirmava ela. — Portanto não há razão para continuarmos.
Herzog disse: — Amo-te, Madalena.
A cada momento, Madalena crescia em distinção, em brilhantismo, em penetração. As suas faces ganharam uma cor viva, e as sobrancelhas, bem como aquele seu nariz bizantino, elevavam-se, moviam-se; os olhos azuis tornaram-se-lhe mais belos com o arrebatamento cada vez mais profundo que lhe subia do peito e da garganta. Passava por um êxtase de consciencialização. Herzog pensou na ocasião que ela o tratara tão mal, que o seu orgulho ficara tão completamente satisfeito, que uma superabundância de força lhe transparecia na inteligência. Reconheceu que estava a presenciar um dos grandes momentos da vida dela.
— Devias ter mão nesse sentimento — disse ela. — Acredito que seja verdadeiro. Amas-me. Mas julgo que também compreendes a humilhação que é para mim admitir que este casamento falhou. Pus nele tudo o que tinha. Estou esmagada por isto.
Esmagada? Nunca parecera mais triunfante. Havia algo de teatral naquele olhar, mas muito mais ainda de paixão.
E Herzog, sólida figura de homem, embora pálido e sofredor, deitado no seu sofá na tarde que se arrastava de uma Primavera de Nova Iorque, tendo por fundo a energia tremente da cidade, uma sensação e perfume de água fluvial, uma franja de sujidade embelezadora e dramática com que Nova Jersey contribuía para o pôr-do-sol, Herzog, na prisão da sua intimidade e ainda forte de corpo (a sua saúde era realmente uma espécie de milagre; tinha feito todo o possível para estar doente), imaginava o que teria acontecido se, em vez de ouvir tão atenta e pensativamente, tivesse esbofeteado Madalena. O quê, se a tivesse atirado ao chão, puxando-a pelo cabelo, se a tivesse arrastado, gritando e lutando em volta da sala, e açoitado até as nádegas lhe sangrarem.
Que sucederia se o tivesse feito? Devia ter-lhe rasgado a roupa, arrancado o colar, esmurrado a cabeça. Rejeitou a violência mental, suspirando. Temia ter secretamente tendência para esta espécie de brutalidade. Mas supondo mesmo que lhe tivesse dito a ela para deixar a casa. No fim de contas, era a casa dele. Se não podia viver com ele, porque não partia? O escândalo? Não havia necessidade de fugir a um pequeno escândalo. Teria sido doloroso, grotesco, mas um escândalo era, afinal, uma espécie de serviço feito à comunidade. Somente Herzog nunca se lembrara, naquela pequena sala de garrafas flamejantes, de se manter firme. Pensava talvez ainda que poderia ganhar pela força da passividade, da personalidade, por ser, afinal, Moisés — Moisés Elkanah Herzog — , um bom homem, e especial benfeitor de Madalena. Fizera tudo por ela — tudo!
— Discutiste esta decisão com o Dr. Edvig? — perguntou ele. — Que pensa?
— Que me interessa a opinião dele? Não pode dizer-me o que devo fazer. Limita-se a ajudar-me a compreender... Fui a um advogado — confessou.
— Que advogado?
— Bem, Sandor Himmelstein. Porque é um amigo teu. Diz que podes ficar com ele até tratares da tua situação.
A conversa acabara, e Herzog regressou para junto das estufas, para a sombria humidade verde do pátio das traseiras — para o seu obscuro sistema de idiossincrasias. Pessoa de tendências irregulares, praticava a arte de circular ao acaso em torno de factos para chegar aos dados essenciais. Esperava frequentemente atingir o essencial por surpresa, por um curioso estratagema. Mas nada disso aconteceu enquanto mexia no vidro tilintante, de pé, entre os tomateiros pendentes queimados da geada, presos às estacas com tiras de farrapos.
O aroma da planta era forte. Continuou a trabalhar nas estufas, porque não podia permitir-se ficar para ali, amarfanhado. Temia a profundidade do sentimento que eventualmente teria de enfrentar, quando não pudesse mais procurar alívio nas excentricidades. Na sua posição de desânimo no sofá, de braços abandonados sobre a cabeça e pernas estendidas, deitado sem mais compostura que um chimpanzé, de olhos mais brilhantes que normalmente, olhava para o seu próprio trabalho no jardim com desapego, como se estivesse a mirar, pela parte da frente de um telescópio, uma pequena imagem clara. Aquele brincalhão sofredor.
Dois pontos a notar, portanto: Sabia que os seus rabiscos, as suas cartas, eram ridículos. Eram involuntários. As excentricidades dominavam-no completamente.
Há alguém dentro de mim. Prende-me. Quando falo dele sinto-o na minha cabeça, exigindo ordem. Vai dar cabo de mim.
Foi comunicado, escreveu ele, que vários grupos de cosmonautas russos se perderam; desintegrados, segundo temos de admitir. Um foi ouvido a pedir «S.O.S. — Terra S.O.S.». Não se obteve confirmação soviética.
Querida Mãezinha-, Quanto à razão por que não visito há tanto tempo a sua campa...
Querida Wanda, Querida Zinka, Querida Libbie, Querida Ramona, Querida Sono, preciso de ajuda no pior dos transes. Tenho medo de estar a enlouquecer.
Caro Edvig o facto é que me foi negada a loucura. Não sei porque lhe hei-de escrever. Caro Senhor Presidente, o regime do Fisco Interno fará de nós uma nação deguarda-livros. A vida de todos os cidadãos está a transformar-se numa entidade comercial. Isto, parece-me, é uma das piores interpretações do sentido da vida humana a que a história jamais assistiu. A vida do homem não é um facto comercial.
E como assinarei isto?, pensou Moisés. Cidadão indignado? A indignação é tão cansativa que a devemos guardar para a maior das injustiças.
Querida Daisy, escreveu, dirigindo-se à primeira mulher, sei que é a minha vez de visitar Marco no acampamento no Dia dos Pais, mas este ano temo que a minha presença o possa perturbar. Tenho-lhe escrito e posto a par das suas actividades. É infelizmente verdade, contudo, que ele me culpa do rompimento com Madalena e sente que abandonei a irmãzinha. É demasiado novo para compreender a diferença entre os dois divórcios. Chegado aqui, Herzog perguntou a si próprio se seria adequado discutir mais o assunto com Daisy e, imaginando o seu rosto elegante e irado ao ler esta sua carta ainda inacabada, decidiu-se contra tal ideia. Continuou — Penso que seria melhor para Marco não me ver. Tenho estado doente. Sujeito a tratamento médico. Notou com desagrado o seu tique de apelar para a compaixão. Uma personalidade tinha as suas próprias características. Um espírito podia observá-las sem aprovar. Herzog não se importava com a sua personalidade, e de momento não havia maneira de controlar os seus impulsos. Restabelecendo a minha saúde e força gradualmente — como pessoa de princípios sãos e positivos, moderna e liberal, notícias do seu progresso (se real) deveriam alegrá-la. Como vítima de tais impulsos devia ir procurando no jornal o seu nome na página da necrologia.
A força da constituição de Herzog trabalhava obstinadamente contra a sua hipocondria. No começo de Junho, quando o renascer geral da vida perturba muita gente, lembrando-lhe as rosas novas, mesmo nas montras, o seu insucesso, a esterilidade e a morte, Herzog submeteu-se a um exame médico. Dirigiu-se a um velho refugiado, o Dr. Emmerich, no Bairro Ocidental, diante do Parque Central. Um porteiro desalinhado, cheirando a velhice, com um boné da campanha dos Balcãs de havia meio século, fê-lo entrar para a caverna a desfazer-se que era a sala de espera. Herzog despiu-se no gabinete de consulta — de um confuso, medonho verde; as paredes escuras pareciam inchadas com a doença dos velhos edifícios de Nova Iorque. Não era um homem alto, mas de constituição robusta, de músculos desenvolvidos pelo trabalho árduo que fizera no campo. Era vaidoso dos seus músculos, da largura e força das mãos, da macieza da sua pele, mas uma tomada de perspectivas levava-o a temer incluir-se na categoria de homem considerado elegante, em vias de envelhecer. Velho tolo, chamou a si próprio, afastando o olhar do pequeno espelho, do cabelo a tornar-se grisalho, das rugas de divertimento e amargura. Através das frestas da persiana passou a fixar as rochas castanhas do parque, salpicadas de mica, e o optimista verde de Junho que em tudo se infiltrava. Em breve se cansaria, à medida que as folhas alastrassem e Nova Iorque impregnasse com a sua fuligem o Verão. Era, contudo, especialmente belo agora, pleno de vida em todos os pormenores — os rebentos, os pequenos ramos e as formas verdes subtilmente intumescendo. A beleza não é uma invenção humana. O Dr. Emmerich, curvado mas enérgico, examinou-o, auscultou-lhe o peito e as costas, apontou-lhe uma luz aos olhos, tirou-lhe sangue, apalpou-lhe a glândula da próstata, ligou-lhe os fios do electrocardiógrafo.
— Bem, você é um homem saudável; já lá vão os vinte e um anos, mas forte.
Herzog ouviu isto com satisfação, decerto, mas no entanto sentia-se levemente infeliz. Tinha depositado esperanças numa doença a sério que o mandasse para o hospital por algum tempo. Não teria de cuidar de si próprio. Os irmãos, que se tinham, mais ou menos, desligado dele, reatariam relações e talvez a irmã, Helena, viesse para o tratar. A família encarregar-se-ia das despesas e pagaria a pensão de Marco e June. Estava fora de questão, agora. Exceptuando a pequena infecção que apanhara na Polónia, a sua saúde era excelente, e mesmo essa infecção, agora curada, não lograra um diagnóstico específico. Podia ter sido devida ao seu estado mental, a depressão e fadiga, e não a Wanda. Durante todo um dia horrível pensara que fosse gonorreia. Tinha de escrever a Wanda, pensou, puxando as fraldas da camisa e abotoando os punhos. Chère Wanda, começou, Bonnes nouvelles. Ten serás contente. Era mais um dos seus sombrios casos amorosos em francês. Por que outra razão gastara as páginas do seu Frazer e Squair no liceu, e lera Rousseau e De Maistre na Universidade? As suas realizações não eram apenas escolares mas sexuais. E seriam isso realizações? Era o seu orgulho que tinha de ser satisfeito. A carne ficaria com os restos.
— Que tem então? — perguntou o Dr. Emmerich. Um velho, de cabelo grisalho como o seu, cara estreita e arguta olhava-o nos olhos. Herzog julgava compreender a sua fala. O médico dizia-lhe que naquele gabinete decadente examinava os verdadeiramente fracos, os desesperadamente doentes, mulheres caquéticas, homens moribundos. Que pretendia Herzog dele? — Parece muito excitado — disse Emmerich.
— Sim, é isso, estou muito excitado.
— Quer Miltown? Serpentária? Tem insónias?
— Não muitas — retorquiu Herzog. — Os meus pensamentos andam fora dos eixos.
— Quer que lhe recomende um psiquiatra?
— Não, já experimentei toda a psiquiatria que podia.
— E o que me diz a umas feriazitas? Leve uma senhora consigo ao campo, à praia. Ainda tem a casa em Massachusetts?
— Se quiser tornar a abri-la.
— O seu amigo ainda lá vive, o locutor de rádio? Como se chama esse tipo alto de cabelo ruivo e perna de pau?
— Valentim Gersbach é o nome dele. Não, mudou-se para Chicago ao mesmo tempo que eu... que nós.
— É um homem bastante divertido.
— Sim. Muito.
— Ouvi falar do seu divórcio... Quem é que me contou? Lamento muito. À procura de felicidade — devia estar preparado para maus resultados. Emmerich pôs os óculos à Ben Franklin e escreveu algumas palavras na ficha. — A criança está com Madalena em Chicago, segundo suponho — disse o médico.
-Sim...
Herzog tentou que Emmerich lhe revelasse a sua opinião sobre Madalena. Fora também doente dele. Mas Emmerich nada deixou escapar. Claro que não; um médico não deve discutir os seus doentes. Contudo, podia reconstruir-se uma opinião a partir das alusões que proferia diante de Moisés.
— É uma mulher violenta e histérica — contou a Emmerich. Viu pelos lábios do velho que este ia responder; mas Emmerich decidiu nada dizer, e Moisés, que tinha o hábito antigo de completar as frases dos outros, tomou mentalmente uma nota da sua própria personalidade perplexionante.
Um estranho coração. Nem eu mesmo posso explicá-lo.
Compreendia agora que viera consultar Emmerich para acusar Madalena, ou simplesmente para falar dela com alguém que a conhecesse e dela pudesse ter uma visão realista.
— Mas você deve ter outras mulheres — disse Emmerich. — Não há ninguém? Tem de jantar hoje sozinho?
Herzog tinha Ramona. Era uma mulher encantadora, mas também com ela havia problemas, decerto — tinha de haver problemas. Ramona era uma mulher de negócios, possuía uma loja de flores na Avenida Lexington. Não era nova — estaria provavelmente na casa dos trinta; não dizia a Moisés a sua idade exacta — , mas era extremamente atraente, levemente estrangeirada, bem educada. Quando herdara o negócio estava a tirar um curso superior de História de Arte em Colúmbia. De facto, estava inscrita no curso da noite de Herzog. Por princípio, era contra problemas com as alunas, mesmo com alunas, como Ramona Donsell, que fossem claramente feitas para tal.
Fazendo tudo o que um libertino faz, anotou, e permanecendo sempre uma pessoa séria. Terrivelmente séria.
Claro que foi justamente esta seriedade que atraiu Ramona. As ideias excitavam-na. Gostava imenso de falar. Era uma excelente cozinheira também, e sabia preparar lagostins Arnaud, que servia com Pouilly Fuissé. Herzog ceava com ela várias noites por semana. No táxi em que iam da monótona sala de aulas para o grande apartamento de Ramona no Bairro Ocidental, tinha-lhe ela dito quanto gostava que sentisse como o seu coração batia. Ele pegou-lhe no pulso para lhe contar as pulsações, mas ela murmurou: — Já não somos crianças, Professor — e pôs-lhe a mão noutro sítio.
Dentro de alguns dias, Ramona dir-lhe-ia que este não era um caso vulgar. Reconhecia, afirmava, que Moisés se encontrava numa situação especial, mas havia nele algo de tão maravilhoso, de tão afectivo, de tão saudável e basicamente tão estável — como se, tendo sobrevivido a múltiplos horrores, houvesse sido expurgado de todos os absurdos neuróticos — , que talvez, em todo o seu processo, tudo tivesse sido questão de não encontrar a mulher adequada. O seu interesse por ele em breve se tornou sério, e, consequentemente, ele começou a preocupar-se com ela, a meditar. Contou-lhe, alguns dias após a consulta com Emmerich, que o médico o aconselhara a fazer umas férias. Ramona retorquiu: — Claro que precisas dumas férias. Porque não vais para Montauk? Tenho aí uma casa, e poderia ir lá nos fins-de-semana. Talvez pudéssemos passar juntos todo o mês de Julho.
— Não sabia que tinhas uma casa — comentou Herzog.
— Estava à venda há alguns anos, e era realmente grande demais para mim, sozinha, mas tinha acabado de me divorciar de Harold, e precisava de mudar
de ambiente.
Mostrou-lhe slides da vivenda, a cores. Olhando pelo pequeno aparelho, confirmou: — É muito bonita. Tantas flores! — Mas sentiu-se deprimido, terrivelmente.
— Pode-se lá passar um tempo óptimo. E devias realmente arranjar roupa de Verão mais alegre. Porque usas tu essas coisas tristonhas? Ainda tens uma
figura jovem.
— Emagreci o ano passado, na Polónia e em Itália.
— Ora... porque dizes isso? És um homem com belo aspecto. E tens mesmo orgulho em o seres. Na Argentina chamar-te-iam macho — másculo. Por baixo desse ar sonsinho gostas de esconder o diabo que há dentro de ti. Para quê esconder esse diabo? Porque não te fazes amigo dele... sim, porquê?
Em vez de responder, escreveu mentalmente: Querida Ramona — Muito querida Ramona. Gosto muito de ti — tão querida para mim e verdadeira amiga. Podia mesmo ir mais longe. Mas porque será que eu, umpreleccionador, não gosto que me preleccionem? Acho que a tua sensatez me vence. Porque és cem por cento sensata. Talvez excessivamente. Não gosto de me recusar a corrigir-me. Tenho muito em que ser corrigido. Quase tudo. E sei reconhecera boa sorte quando a vejo... Era esta a verdade literal, palavra por palavra. Amava Ramona.
Tinha vindo de Buenos Aires. De origem internacional — espanhola, francesa, russa, polaca e judia. Frequentara um colégio na Suíça e falava ainda com laivos de um sotaque encantador. Era baixa, mas tinha uma figura cheia, vigorosa, belas ancas roliças, seios firmes (tudo isto tinha importância para Herzog; podia julgar-se um moralista, mas a forma dos seios duma mulher importava-lhe muito). Ramona estava insegura quanto ao queixo, mas tinha confiança na linda garganta e, por isso, trazia a cabeça bastante erguida. Andava com rápida eficiência, batendo os tacões num enérgico estilo castelhano. Herzog ficava inebriado com este ruído. Entrava numa sala, provocante, quase insolente, com uma mão na coxa, como se usasse uma navalha na liga. Parecia ser a moda de Madrid, e encantava Ramona desempenhar, brincando, o papel de uma forte moçoila espanhola — una navaja en la liga; ensinou-lhe a expressão. Pensava frequentemente nessa navalha imaginária ao observá-la em roupa interior, extravagante e negra, num modelo sem alças chamado Viúva Alegre, apertado na cintura, bordejado em baixo de fitas vermelhas. As suas coxas eram curtas, mas fartas e brancas. A pele escurecia nos sítios em que era comprimida por elástico. Pendiam pontas de seda e presilhas do cinto de meias. Os seus olhos eram castanhos, sensíveis e ousados, eróticos e calculadores. Sabia o que fazia. O perfume quente, os braços macios, o belo busto, excelentes dentes brancos e pernas levemente arqueadas — todos estes elementos exerciam a sua função. Moisés, sofrendo, sofria em estilo. A sorte nunca o abandonava. Talvez tivesse mais sorte do que pensava. Ramona disso o tentava convencer. — Essa cabra fez-te um favor — comentava. — Ficarás muito melhor longe dela.
Moisés!, escreveu ele, ganhando quando choras, chorando quando ganhas. Evidentemente não podes crerem vitórias.
Atribui a tua agonia a uma estrela.
Mas no momento em que enfrentava Ramona escreveu, incapaz de replicar excepto por uma carta mental: És para mim um grande conforto. Vivemos entre elementos mais ou menos estáveis, mais ou menos controláveis, mais ou menos buços. É verdade. Tenho em mim um espírito selvagem embora pareça submisso e calmo. Achas que o prazer sexual é tudo o que este espírito quer e, se lhe estamos a dar esse prazer sexual, porque não há-de tudo ficar bem? Então subitamente veio-lhe à ideia que Ramona se tornara uma espécie de profissional (ou sacerdotisa) do sexo. Estava nos últimos tempos habituado a lidar com vis amadoras. Não sabia que haveria de conhecer uma verdadeira artista.
Mas será este o destino secreto da minha vaga peregrinação? Vejo-me, após longas loucuras, como um filho não reconhecido de Sodoma e Dionísio — um tipo órfico (Ramona gostava de falar de tipos órficos). Um dionisíaco
pequeno-burguês?
Anotou: Diabos levem todas estas categorias!
— Talvez compre umas roupas de Verão — respondeu a Ramona.
Gosto de belos fatos, continuou. Costumava esfregar os meus sapatos de cabedal com manteiga, quando era pequeno. Ouvia a minha mãe russa
chamar-me «Krasavitz». E quando me tornei um estudante melancólico, de rosto elegante e suave, gastando o meu tempo com ares arrogantes, pensava muito em calças e camisas. Foi só depois como universitário, que me fiz desleixado. Comprei um colete garrido na Arcada de Burlington no último
Inverno, e um par de botas suíças do género que os maricas adoptaram.
Angustiado? Sim, continuou a escrever, e bem vestido, também. Mas a minha
vaidade já não me faz ir muito longe e, para te dizer tudo, nem mesmo
muito me afecta o coração torturado. Começa a parecer-me outra perda de tempo.
Deliberando sobriamente, Herzog decidiu que seria melhor não aceitar a oferta de Ramona. Teria uns trinta e sete ou trinta e oito anos, reconheceu perspicazmente, e isto significava que andava à procura de marido. Isto, em si mesmo, não era mau, nem sequer divertido. Condições humanas simples e gerais prevaleciam sobre as aparentemente mais sofisticadas. Ramona não aprendera aquelas momices eróticas num manual, mas sim na aventura, na confusão, quantas vezes deprimida, em abraços brutais, quem sabe se estranhos. Portanto, devia desejar ardentemente uma estabilidade. Queria dar o coração de uma vez para sempre, tornar-se companheira dum homem bom, tornar-se mulher de Herzog e deixar de ser uma aventureira. Tinha com frequência um olhar sério. Os seus olhos comoviam-no profundamente.
Nunca ocioso, o seu espírito imaginava Montauk — praias brancas, luz ardente, ondas refulgentes, caranguejos morrendo nas carapaças, pintarroxos marítimos e plectógnatos. Herzog tinha saudades de se estender em fato de banho, e aquecer a barriga pesada na areia. Mas como o poderia? Aceitar demasiados favores de Ramona era perigoso. Talvez tivesse de pagar com a sua liberdade. Claro que não precisava dessa liberdade agora; precisava de descanso. Contudo, depois de descansar, podia querê-la de novo. Não estava certo disso também. Mas era uma possibilidade.
Umas férias darão mais força à minha vida neurótica.
Contudo, observou Herzog, apresentava um aspecto terrível, de olhos encovados; estava a perder mais cabelo, e considerava este rápido envelhecimento como uma rendição a Madalena e ao seu amante, Gersbach, bem como a todos os inimigos. Tinha mais inimigos e ódios do que se poderia imaginar pela sua expressão pensativa.
O período das aulas nocturnas aproximou-se do fim, e Herzog convenceu-se de que o mais sensato era afastar-se de Ramona também. Decidiu ir para Vineyard, e, julgando que não seria aconselhável permanecer completamente sozinho, mandou à noite um telegrama a uma mulher de Vineyard Haven, uma velha amiga (tinham em tempos encarado a hipótese dum amor entre eles, mas tal nunca se havia concretizado, e em vez disso unia-os uma mútua consideração carinhosa). Explicava-lhe a situação, e a sua amiga Libbie Vane (Libbie Vane-Erikson-Sissler; tinha-se casado de fresco pela terceira vez e a casa no Haven pertencia ao marido, um químico industrial) telefonou-lhe em seguida e, muito emocionada e sinceramente, convidou-o para ir e ficar o tempo que quisesse.
— Aluga-me um quarto que fique perto da praia — pediu Herzog.
— Fica connosco.
— Não, não, não posso fazer tal. Pois tu acabaste de te casar.
— Oh, Moisés, por favor... não sejas tão romântico. Sissler e eu vivemos juntos há três anos.
— No entanto, estão em lua-de-mel, não estão?
— Oh, deixa de dizer parvoíces. Magoas-me se não ficas cá. Temos seis quartos. Vem depressa; contaram-me os maus bocados por que tens passado.
Finalmente, era inevitável, aceitou. Sentia, contudo, que não estava a proceder bem. Telegrafando, tinha-a praticamente forçado a convidá-lo. Ajudara muito Libbie haveria uns dez anos e teria ficado mais satisfeito consigo próprio se não a obrigasse a retribuir. Sabia que fazia mais que pedir ajuda. Estava a tornar-se um maçador — a fazer o que atribuía aos fracos, aos corruptos.
Mas pelo menos, pensou, não hei-de agravar a situação. Não aborrecerei Libbie com os meus problemas, nem passarei a semana inteira a chorar sobre o seu peito. Convidá-los-ei para jantar fora, a ela e ao novo marido. Tens de lutar pela vida. É essa a condição fundamental de que dependes. Porquê ser tão indiferente? Ramona tem razão. Arranja uns fatos claros. Podes pedir mais massa ao teu irmão Shura — ele gosta disso, e sabe que pagarás. É assim que se vive pelos bons princípios — pagam-se as dívidas.
Portanto, foi comprar roupas. Examinou os anúncios em The New Yorker e Esquire. Estes apresentavam agora homens mais velhos, com rugas na face, bem como jovens activos e atletas. Em seguida, depois de se barbear com mais esmero que de costume e de escovar o cabelo (suportaria o teste de se ver nos brilhantes espelhos triplos duma loja de confecções?), tomou o autocarro para o centro. Começando na 59.a Rua, caminhou pela Avenida Madison abaixo até ao número quarenta e voltou para a Praça da 5.a. Então o sol rompeu através das nuvens cinzentas. As montras reluziam e Herzog contemplou-as com ar envergonhado e agitado. Os novos modelos pareciam-lhe atrevidos e berrantes — casacos almofadados, calções com explosões de cores de Kandinsky, com os quais homens de meia idade ou barrigudos ficariam ridículos. Antes o recatamento puritano que a exibição de joelhos enrugados de fazer dó e varizes, ventres de pelicano e a indecência de caras macilentas sob bonés de desporto.
Sem dúvida Valentim Gersbach, que o suplantara junto de Madalena, superando o handicap de uma perna de pau, podia usar aquelas riscas elegantes e radiosas como confeitos. Valentim era um janota. Tinha uma cara larga e pesados maxilares; Moisés achava que de certo modo se parecia com Putzi Hanfstaengl, pianista de Hitler. Mas Gersbach tinha uns olhos extraordinários para um ruivo, uns olhos castanhos, profundos, quentes, cheios de vida. As pestanas também eram vivas, dum avermelhado-escuro, longas e infantis. E aquele cabelo medonhamente farto. Valentim, além disso, sentia uma profunda confiança na sua aparência. Notava-se. Sabia que era um homem terrivelmente elegante. Esperava que as mulheres — todas as mulheres — perdessem a cabeça com ele. E muitas perdiam, pois não perdiam? Incluindo a segunda Sra. Herzog.
— Usar isso? Eu? — disse Herzog ao vendedor num estabelecimento da 5.a Avenida. Mas comprou um casaco com riscas carmesins e brancas. Depois confessou, por cima do ombro, ao vendedor que na Europa a família usara gabardinas negras até ao chão.
Devido ao acne juvenil, o empregado exibia uma pele irregular. A sua cara era vermelha como um cravo, e tinha um hálito que cheirava a carne, um hálito de cão. Foi um pouco rude para Moisés, pois, quando lhe perguntou a medida do peito e Herzog respondeu: — Trinta e quatro — , o vendedor retorquiu: — Não seja fanfarrão! — A exclamação escapara e Moisés era demasiado bem educado para lho fazer notar. O seu coração batia com a dolorosa satisfação do constrangimento. De olhos baixos, caminhou pela carpete cinzenta até à sala de provas, e aí, despindo-se e entregue ao trabalho de fazer as calças novas passarem pelos sapatos, escreveu ao indivíduo uma nota. Caro Mack. Calejado em gracejos. Orgulho masculino. Descaramento. Presunção. Vê-se obrigado a ser agradável e simpático. Tarefa difícil se acontece ser-se um indivíduo antipático e colérico. A candura das pessoas de Nova Iorque! Benza-o Deus, você não é simpático. Mas numa situação falsa nós somos assim. É necessário assumir uma certa sociabilidade. Uma situação mais sincera bem podia tornar-se insuportável para todos nós. Devido à boa educação tenho agora certas dores de barriga. Quanto a gabardinas, acho que há imensas barbas e gabardinas já ao dobrar da esquina, no bairro dos diamantes. Meu Deus, concluiu, contritamente, desculpai todas estas ofensas. Não me conduzi à Estação de Penn.
Envergando umas calças italianas dobradas em baixo e um casaco desportivo de lapelas estreitas, evitava expor-se completamente no espelho triplo iluminado. O corpo parecia não ser afectado pelos seus problemas, sobreviver a todos os temporais. Era a cara que estava escavacada, especialmente em torno dos olhos, de forma que o próprio facto de se mirar o fazia empalidecer.
Preocupado, o vendedor, entre cabides de roupas silenciosas, não ouvia as passadas de Herzog. Estava meditabundo. Negócio fraco. Mais uma pequena crise. Só Moisés gastava hoje. Dinheiro que tencionava pedir emprestado ao irmão que ganhava bem. Shura não era agarrado. Nem o irmão Willie, para esse efeito. Mas Moisés achava mais fácil aceitar de Shura, também um pouco aventureiro, que de Willie, mais respeitável.
— As costas assentam bem? — indagou Herzog.
— Como se fossem cortadas por medida — respondeu o alfaiate.
Não podia ter mostrado maior desprezo. Era perfeitamente óbvio. Não consigo captar-lhe o interesse, reconheceu Herzog. Pois passo bem sem ele e vou pagar-lhe da mesma moeda. Decidirei por mim. É a mim que compete julgar. Logrando assim novo vigor, avançou por entre os dois espelhos, olhando para o casaco. Parecia satisfatório.
— Embrulhe-o — ordenou. — Levo as calças também, mas quero-as hoje. Já.
— Não pode ser. O alfaiate está ocupado.
— Hoje, ou não o quero — insistiu Herzog. — Tenho de deixar a cidade. Nunca há um teimoso sozinho.
— Vou ver se consigo que o despachem — disse o vendedor. Saiu, e Herzog desabotoou os botões cunhados. Tinham usado a cabeça de um imperador romano qualquer para enfeitar um casaco de veraneante, notou ele. Sozinho, deitou a língua de fora a si próprio e afastou-se em seguida do triplo espelho. Recordou-se do prazer que Madalena experimentava a provar vestidos em lojas e quanto entusiasmo e orgulho havia nela ao mirar-se, mexer, ajustar, com a face radiosa e contudo severa, os grandes olhos azuis, as madeixas reluzentes, o perfil de medalhão. A satisfação que colhia de si própria era positivamente plural — imperial. E dissera a Moisés numa das suas crises que se contemplara mais uma vez, nua, no espelho da casa de banho. — Ainda jovem — dissera, fazendo o inventário — , jovem, bela, cheia de vida. Porquê desperdiçar tudo isto contigo?
Porquê, valha-me Deus! Herzog procurou qualquer coisa onde pudesse tomar uma nota, tendo deixado o papel e o lápis na sala de provas. Escreveu nas costas do bloco do vendedor: — Uma cadela acaba por suscitar desprezo.
Olhando através de pilhas de trajos de praia, agora rindo de si próprio como se o coração se lhe aliviasse, Herzog comprou um par de malas para o Vineyard, e em seguida uma quantidade de chapéus de palha antiquados chamaram-lhe a atenção e decidiu arranjar também um deles.
E estaria a comprar tudo isto apenas porque o velho Emmerich lhe aconselhara descanso? Ou estaria a preparar-se para novas aventuras? Preveria outra ligação em Vineyard? Com quem? Como saber com quem? Há imensas mulheres em toda a parte.
Em casa, experimentou as compras. Os calções de banho estavam um pouco justos. Mas o chapéu de palha oval agradou-lhe pousado sobre o cabelo que lhe nascia farto ainda dos lados. Com ele parecia-se com o primo do pai, Elias Herzog, o negociante de farinha, que palmilhara toda a zona norte de Indiana ao serviço do general Mills nos anos vinte. Elias, com a sua cara bem barbeada e séria, americanizada, comia ovos cozidos e bebia cerveja proibida
— piva polaca fabricada em casa. Dava aos ovos uma pancada firme na balaustrada do alpendre e descascava-os escrupulosamente. Usava ligas coloridas nas mangas, um chapéu de abas largas como este, colocado nesta mesma cabeça e sobre estes mesmos cabelos, partilhados também pelo pai dele, Rabi Sandor-Alexander Herzog, que usava igualmente uma bela barba, uma barba brilhante e espessa que lhe escondia a linha do queixo bem como o colarinho de veludo da sobrecasaca. A mãe de Herzog tinha tido um fraco por judeus com barbas elegantes. Na sua família, também todos os antepassados tinham barbas fartas e ricas, cheias de religião. Queria que Moisés viesse a ser rabi, mas este parecia agora a si próprio tão medonhamente diferente de um rabi, de calções e chapéu de palha, rosto carregado de uma pesada tristeza, de uma enorme e louca saudade de que a vida religiosa talvez o tivesse expurgado. Aquela boca! — plena de desejo e raiva irreconciliável, o nariz rectilíneo por vezes cruel, os olhos escuros! E a sua figura! — as longas veias ondeando nos braços e enchendo-lhe as mãos pendentes, um antigo sistema, mais antigo que os próprios judeus. O chapéu de copa baixa, uma crosta de palha, tinha uma banda vermelha e branca, a dar com o casaco. Tirou o papel de seda das mangas e vestiu-o, avolumando as riscas. De pernas nuas, parecia um hindu.
Considerai como crescem os lírios do campo, recordou ele, não trabalham nem fiam. E digo-vos todavia que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu jamais como um deles...
Tinha oito anos e estava na enfermaria de crianças no Hospital Vitória Real, em Montreal, quando aprendera estas palavras. Uma senhora cristã vinha uma vez por semana e fazia-o ler alto a Bíblia. Lia: Dá e receberás: uma boa medida bem pesada e transbordante será dada pelos homens ao teu coração.
Do telhado do hospital pendiam pingentes de gelo, como dentes de peixe, com gotas claras chamejando nas pontas. Ao lado da sua cama, estava sentada a senhora Goysche, com as suas longas saias e sapatos abotinados. O alfinete do chapéu projectava-se-lhe para trás da cabeça como um trólei. Um cheiro a massa desprendia-se-lhe da roupa. E depois mandava-o ler: Deixai vira mim as criancinhas. Parecia-lhe uma boa mulher. As suas feições, contudo, tinham um aspecto fatigado e carrancudo.
— Onde moras tu, menino?
— Na Rua Napoleão. Onde vivem os judeus.
— Que faz o teu pai?
O meu pai faz contrabando de bebidas alcoólicas. Tem um alambique em Point-St. Charles. A polícia anda atrás dele. Não tem dinheiro.
Mas Moisés nunca lhe contara qualquer destas coisas. Mesmo aos cinco anos já sabia como proceder. A mãe tinha-o ensinado. — Nunca deves contar.
Havia nisso uma certa sensatez, pensou, como se, cambaleando, pudesse recuperar o equilíbrio, ou, admitindo um pouco de loucura, voltar à razão. E divertia-se a troçar de si. Agora, por exemplo, metera na mala a roupa que não tinha dinheiro para comprar e fugia de Ramona. Sabia o rumo que as coisas tomariam se fosse com ela para Montauk. Conduzi-lo-ia, como a um urso domesticado, para Easthampton, de cocktail em cocktail. Podia imaginá-lo — Ramona rindo, falando, de ombros nus, com uma das suas blusas de campo (eram ombros maravilhosos, femininos, não podia deixar de admitir), o cabelo em caracóis negros, a cara, a boca pintada; cheirava-lhe o perfume. No mais profundo de um homem havia algo que respondia com um cuac a um tal perfume. Cuac! Um reflexo sexual que nada tinha que ver com idade ou subtileza, sensatez, experiência, história, Wissenschaft, Bildung Wahrheit. Na doença ou na saúde, rompia o velho cuac-cuac perante o aroma de uma pele feminina, perfumada. Sim, Ramona levá-lo-ia, com as suas calças novas e casaco às riscas, a tomar um martini.
...Os martinis eram para Herzog veneno e nem podia ouvir falar deles. E contra a vontade o engoliria e permaneceria de pé, com dores nos pés — ele, o professor cativo, ela, a mulher madura, cheia de sucesso, risonha, sexual.
Cuac!, cuac!
Tinha a mala feita, fechou as janelas e puxou as cortinas. Sabia que o apartamento cheiraria mais que nunca a mofo quando regressasse das suas férias de celibatário. Dois casamentos, dois filhos, e ia partir para gozar uma semana de descanso sem cuidados. Era doloroso para os seus instintos, os seus sentimentos familiares de judeu, o facto de os filhos crescerem longe dele. Mas que podia fazer? Para o mar! Para o mar! — Que mar? Era a baía — entre o East Chop e o West Chop, não era mar; a água era parada.
Saiu, lutando contra a tristeza que lhe causava a vida solitária. Dilatou o tórax e susteve a respiração. — Por amor de Deus, não chores, idiota! Vive ou morre, mas não envenenes tudo.
Não sabia para que havia a porta de ter um fecho de segurança. A criminalidade estava a aumentar, mas nada possuía que justificasse um roubo.
Só um rapazote insensato tal poderia imaginar, ficando à espera sorrateiro, para lhe desfechar um golpe na cabeça. Herzog enfiou o pé metálico do fecho na ranhura do chão e deu volta à chave. Verificou em seguida se não se teria esquecido dos óculos. Não, estavam no bolso do lenço. Tinha as canetas, agenda, livro de cheques, um pedaço de toalha da cozinha que cortara para fazer de lenço, e a embalagem plástica dos comprimidos de Furadantin. Os comprimidos eram para a infecção que apanhara na Polónia. Estava agora curado, mas tomava de vez em quando uma pílula para ficar mais seguro. Tinham sido uns momentos terríveis, em Cracóvia, no quarto de hotel, quando apareceram os primeiros sintomas. Pensara: A blenorragia, finalmente! Ao cabo de tantos anos. Com a minha idade! — Sentia-se desesperado.
Consultou um médico inglês, que o repreendeu severamente. — Que tem feito? É casado? — Não.
— Bem, não é gonorreia. Puxe as calças para cima. Acho que precisa de uma dose de penicilina. Todos os americanos precisam. Bem, mas não lha receitarei. Tome estas sulfamidas. Nada de bebidas alcoólicas, está a ouvir? Beba chá.
Não perdoam em questões sexuais. O indivíduo estava zangado, irascível, aquele ranhoso médico bife. E eu tão vulnerável, acabrunhado com as minhas culpas.
Devia ter sabido que uma mulher como Wanda não me infectaria com gonorreia. Era sincera, leal, devotada ao corpo, à carne. Tem a religião das pessoas civilizadas, que é o prazer, o prazer criador e polimorfo. A sua pele é delicada, branca, sedosa, cheia de vida.
Querida Wanda, escreveu Herzog. Mas ela não sabia inglês e mudou para francês. Chère Princesse: Je me souviens assezsouvent... Je pense à la Marszalskowska, au brouillard. Um homem, qualquer que seja a sua categoria, sabe como requestar uma mulher em francês, e assim o sabia Herzog. Embora não fosse esse o seu género. Os sentimentos que pretendia exprimir eram autênticos. Fora extremamente simpática consigo quando estivera doente, perturbado, e o que fazia a sua simpatia ainda mais significativa era a sua radiosa e submissa beleza polaca. Tinha um farto cabelo dum louro arruivado, e um nariz levemente arrebitado, mas de linhas muito finas, com uma ponta extraordinariamente delicada para uma pessoa tão bem provida de carne. A tez era branca, mas dum branco saudável e forte. Vestia-se como a maior parte das mulheres em Varsóvia, com meias altas pretas e sapatos italianos afilados e compridos, mas o seu casaco de peles estava gasto quase até à pelica.
Na minha aflição saberia eu o que estava afazer?, assentou Herzog numa página à parte, enquanto esperava pelo elevador. A Providência, acrescentou, protege os que têm fé. Pressentia que encontraria uma tal pessoa. Tive uma sorte fantástica. «Sorte» estava muitas vezes sublinhada.
Herzog conhecera o marido dela. Era um pobre homem, com olhar reprovador e uma doença de coração. A única falta que Herzog descobrira em Wanda fora a sua insistência em que conhecesse Zygmunt. Moisés não tinha ainda atingido o significado de tal atitude. Wanda rejeitava a sugestão dum divórcio. Estava perfeitamente satisfeita com o seu casamento. Dizia que lhe dera tudo o que um casamento podia dar. lei tout estgâché.
Une dizaine dejours à Varsovie — pas longtemps. Se se pudessem reviver aqueles dias intervalares no Inverno enevoado. O sol estava fechado numa garrafa vazia. A alma fechada dentro de mim. Enormes cortinados de feltro defendiam das correntes de ar a sala do hotel. As mesas de madeira estavam manchadas, empenadas, escaldadas de chá.
A pele dela era branca e permanecia branca em todas as gamas da emoção. Os seus olhos esverdeados pareciam ter sido incrustrados no seu rosto polaco pela natureza, essa joalheira. Mulher cheia, de peito macio, demasiado pesada para os elegantes sapatos afilados que calçava. De pé, sem saltos, com as suas meias pretas, era na verdade muito sólida. Sentia a falta dela. Quando lhe pegava na mão, ela murmurava: — Ah, ne tous chaypas. C'est dangeray. — Mas não pretendia significar nada disso. (Como estava afectivamente preso às recordações! Que estranha ave sensual que era! Extravagante na sua tendência para rememorar? Para quê usar palavras duras? Era o que era.)
Contudo, tivera ininterruptamente consciência da Polónia parda, gelando por toda a parte, parda e de um cinzento avermelhado, com pedras cheirando ainda a assassínios do tempo da guerra. Parecia que lhe cheirava a sangue. Foi muitas vezes visitar as ruínas do ghetto, com Wanda como guia.
Abanou a cabeça. Mas que podia ele fazer? Voltou a premir o botão do elevador, desta vez com o canto da sua mala de Gladstone. Escutou o som regular na caixa do elevador - eixos lubrificados, poder, eficiente maquinaria negra.
Guéri de cette petite maladie. Não devia tê-la mencionado a Wanda, pois esta ficara francamente chocada e magoada. Pas grave du tout - escreveu ele.
Fizera-a chorar.
O elevador deteve-se e ele terminou - fembrasse ces petites mains, amie. Como se dirá nozinhos almofadados dos dedos em francês?
No táxi, através de ruas quentes, densas de edifícios de tijolo e cantaria, Herzog agarrava a correia e tinha os grandes olhos fixos nos panoramas de Nova Iorque. As formas rectangulares eram vivas, não inertes, e davam-lhe uma sensação de movimento fatal, quase de intimidade. De certo modo, sentia-se como uma parte de tudo isto — nos quartos, nas lojas, nas caves — e simultaneamente tinha consciência do perigo destas múltiplas excitações. Sentia-se super-estimulado. Tinha de acalmar estes nervos galopando sob demasiada tensão, apagar este fogo tenebroso dentro de si. Desejava ardentemente o Atlântico — a areia, a maresia, a terapêutica da água fria. Sabia que pensaria melhor, pensamentos mais claros, depois de se banhar no oceano. A mãe acreditara nos efeitos benéficos dos banhos. Mas morrera tão nova. Ele não podia permitir-se morrer ainda. Os filhos precisavam dele. A sua obrigação era viver. Ser são de espírito, e cuidar das crianças. Era por isso que fugia agora da cidade, acalorado, de olhos doridos. Estava a afastar-se de todos os cuidados, dos problemas práticos e também de Ramona. Há alturas em que nos desejamos encafuar num esconderijo, como um animal. Embora não soubesse o que esperava, excepto o próximo comboio, que lhe imporia descanso (não se pode correr num comboio) através de Connecticut, Rhode Island e Massachusetts, até Woods Hole, o seu raciocínio era certo. As praias são boas para os loucos — desde que não sejam demasiado loucos. Estava pronto. Os trapos alegres arrumados na mala, sob os pés; e o chapéu de palha com a banda vermelha e branca? Tinha-o na cabeça.
Mas de súbito, com o assento do táxi aquecendo ao sol, teve consciência de que o seu espírito insatisfeito avançara de novo sub-repticiamente, e que ia escrever cartas. Caro Smithers, começou. No outro dia, ao almoço — aqueles almoços burocráticos, que são para mim um horror; o meu traseiro fica paralisado, o sangue enche-se-me de adrenalina; o meu coração! Tento aparentar um ar correcto e decente, mas nota-se-me no rosto um aborrecimento mortal, a minha imaginação entorna sopa e molho em cima de toda a gente, e apetece-me gritar ou desfalecer — ,pediram-nos que sugeríssemos temas para novos cursos e propus uma série de aulas sobre o casamento. Podia antes ter dito "Groselha" ou "Framboesa". O Smithers encontra-se extremamente satisfeito com a sua sorte. O nascimento é uma interrogação. Quem sabe o que pode acontecer? Mas calhou-lhe ser Smithers, e isso foi uma sorte fantástica. Parece-se com Thomas E. Dewey. O mesmo intervalo entre os dentes da frente, o bigode esmerado. Olhe, Smithers, tenho uma boa ideia para um novo curso. Vocês, homens de organizações, têm de depender de outros como eu. As pessoas que aparecem nas aulas nocturnas só ostensivamente procuram a cultura. A sua grande necessidade, a sua fome, é de bom senso, clareza, verdade — mesmo de um pequeno átomo disso. As pessoas morrem — e não é metáfora — por falta de algo de real que levem para casa quando termina o dia. Veja como aceitam de tão boa vontade a mais rotunda insensatez. Oh Smithers, meu irmão, de bigodinho!, com que responsabilidade arcamos, neste nosso próspero país! Pense no que a América podia significar para o mundo. Veja depois o que ela é. Que filhos podia ter produzido. Mas olhe para nós — para si, para mim. Leia o jornal, se conseguir.
Já o táxi tinha passado a 30.a Rua, onde havia à esquina uma tabacaria em que Herzog entrara havia um ano para comprar uma caixa de Virgínia Rounds para a sogra, Tennie, que vivia um quarteirão adiante. Lembrava-se de entrar na cabina de telefone para lhe dizer que ia aparecer. Estava escuro e o revestimento interior de estanho estava negro do muito uso nalguns pontos. Cara Tennie, talvez vá ter uma conversa consigo quando voltar da pxaia. O recado que me mandou pelo advogado Simkin, de que não compreendia porque é que eu já não a vinha visitar, é, para não dizer mais, pouco compreensível. Sei que a sua vida tem sido dura. Perdeu o marido. Tennie e Pontritter estavam divorciados. O velho empresário vivia na 57.a Rua, onde dirigia uma escola de actores, e Tennie tinha as suas duas assoalhadas na 31.a, que pareciam um palco armado e estavam cheias de recordações dos triunfos do seu ex-marido. Todos os cartazes eram dominados pelo nome dele.
PONTRITTER
DIRIGE EUGENE O'NEILL TCHEKOV
Embora tivessem deixado de ser marido e mulher, mantinham relações. Pontritter levava Tennie no seu Thunderbird. Assistiam a estreias, iam jantar fora juntos. Ela era uma mulher esguia de cinquenta e cinco anos, um pouco mais alta que Pon. Mas ele era entroncado, voluntarioso, havia uma certa impertinência e inteligência na sua cara morena. Gostava de trajes espanhóis, e quando Herzog o vira pela última vez usava calças brancas à toureiro e alpercatas. Fortes e isolados fios de um branco intenso cresciam-lhe na cabeça crestada. Madalena herdara os olhos dele.
Nem marido. Nem filha, escreveu Herzog. Mas recomeçou: Cara Tennie, fui consultar Simkin, e ele disse-me-. «A tua sogra está magoada contigo.»
Simkin, sentado no escritório, ocupava uma grande cadeira de Sykes, por baixo de enormes fileiras de livros de direito. Um homem nasce para ser órfão e para deixar órfãos, mas uma cadeira, como aquela cadeira, se se tem dinheiro para a comprar, é um grande conforto. Com as suas coxas cheias, pequenas e tisnadas, a cabeça hirsuta e agressiva e as mãos fechadas, pequenas e tímidas sobre o ventre, falava a Herzog num tom tímido e quase meigo. Chamava-lhe «Professor», mas não por troça. Embora Simkin fosse advogado arguto e muito rico, respeitava Herzog. Tinha um fraco pelas pessoas confusas de espírito elevado, pelas pessoas com impulsos morais como Moisés. Desesperados! Provavelmente olhava para Moisés e via um homem infantil, angustiado, tentando manter a sua dignidade. Observou o livro pousado nos joelhos de Herzog, pois Herzog trazia, caracteristicamente, um livro para ler no metropolitano ou no autocarro. Que seria naquele dia? Simmel, acerca da religião? Teilhard de Chardin? Whitehead? Há anos que não consigo concentrar-me. De qualquer forma, ali estava Simkin, baixo, mas corpulento, de olhos sombreados de pêlos retorcidos, fitando-o. Em conversa, a sua voz era muito baixa, tímida, quase fraca, mas quando respondia ao sinal da secretária e ligava o telefone interno, engrossava subitamente. Disse alto e asperamente: — Está?
— O Sr. Dienstag ao telefone.
— Quem? Essa bela prenda? Estou à espera da declaração escrita. Diga-lhe que o queixoso o trama se não a apresentar. Ele que veja se a arranja esta tarde, esse belo palerma — Amplificado, o seu tom era oceânico. Depois desligou, e com a antiga timidez voltou-se para Moisés. — Ai, ai! Estou tão farto destes divórcios. Que situação! Isto está cada vez mais corrupto. Há dez anos pensava que ainda podia suportar tudo isso. Achava-me suficientemente com os pés na terra — realista, cínico. Mas enganei-me. É de mais. Este tipo calista — com que bruxa foi casar. Primeiro dizia que não queria filhos, depois queria, queria, não queria. Finalmente, atirou-lhe o diafragma à cara. Foi ao banco. Tirou-lhe trinta mil dólares de poupanças. Disse que ele tentara empurrá-la para a frente de um carro. Lutou com a mãe por causa dum anel, de peles, de uma galinha, sei lá de que mais. E depois o marido encontrou cartas que outro lhe mandava. — Simkin esfregou a sua cabeça astuta e imponente com as mãos diminutas. Depois mostrou os pequenos dentes regulares, escuros como ferro, como se fosse sorrir, mas isto não passava de um preâmbulo à reflexão. Exalou um suspiro compadecido. — Sabe, Professor, Tennie está magoada com o seu silêncio.
— É provável. Mas ainda não tenho coragem de ir lá.
— Mulher simpática. E que família dos diabos! Limito-me a dar o recado, porque ela me pediu.
— Sim.
— É uma boa pessoa, a Tennie...
— Bem sei. Fez-me um cachecol em tricot. Levou um ano. Recebi-o pelo correio mais ou menos há um mês. Devia agradecer-lho.
— Sim, porque não o faz? Não é sua inimiga.
Simkin gostava dele; Herzog não duvidava. Mas, como homem prático e realista, tinha de exercer funções, e uma certa malícia mantinha-o em forma.
Um indivíduo como Moisés Herzog, um pouco sonhador ou nada prático, mas mentalmente ambicioso, um tanto arrogante também, um indivíduo farto e fútil, cuja mulher lhe tinha sido tirada em circunstâncias muito curiosas (muito mais curiosas que no caso do calista, que fizera Simkin juntar as mãozinhas com um pequeno grito de horror trocista) — este Moisés era irresistível para um homem como Simkin, que adorava lamentar e troçar simultaneamente. Era um Instrutor da Realidade... Há muitos assim. Descubro-os. Himmelstein é outro, mas cruel. É a crueldade que me afecta, não o realismo. Claro que Simkin sabia tudo sobre a ligação de Madalena com Valentim Gersbach, e o que não sabia contar-lhe-iam os seus amigos Pontritter e Tennie.
Tennie levara uma vida de boémia durante trinta e cinco anos, seguindo o marido como se tivesse casado com um merceeiro e não com um génio teatral, e continuava a ser uma mulher amável, género irmã mais velha, com pernas compridas. Mas as pernas estavam envelhecidas, e o cabelo pintado tornara-se áspero e espigado. Usava óculos em forma de borboleta, e jóias «abstractas».
Que se passaria se eu a fosse ver?, perguntou Herzog. Sentar-me-ia na sala, fazendo-me simpático, enquanto me sentiria explodir com o mal que a sua filha me fez. Os mesmos males que aceitou de Pontritter, e lhe perdoou. Preenche-lhe os impressos das contribuições, ocupa-se de todo o seu arquivo, lava-lhe as peúgas. Da última vez, vi as meias dele a secar no irradiador da casa de banho dela. Tinha estado a contar-me como era agora feliz depois de se ter divorciado — livre para seguir o seu caminho e expandir a sua personalidade. Tenho pena de si, Tennie.
Mas aquela sua bela filha apareceu-lhe no apartamento com Valentim, não apareceu? e mandou-a para o Jardim Zoológico com a sua neta enquanto se amavam na sua cama. Ele com o farto cabelo ruivo, ela com os olhos azuis, por baixo. Que julgam que vou fazer agora — chegar e sentar-me, falando de peças e restaurantes? Tennie falar-lhe-ia daquela casa grega na 10.a Avenida. Já lhe falara dela meia dúzia de vezes. — Um amigo (o próprio Pontritter, claro está) levou-me a jantar ao Maratona. Era tão fora do vulgar. Sabe, os Gregos cozinham carne e arroz em folhas de videira, com especiarias muito curiosas.
Quem quiser pode dançar sozinho. Os Gregos são muito desinibidos. Haveria de ver aqueles gordos a tirarem os sapatos e a dançarem diante da multidão. — Tennie falava-lhe com uma doçura e afeição de rapariga, gostando intimamente dele. Os seus dentes pareciam os dentes desajeitados da segunda dentição duma criança de sete anos.
Ah, sim, pensava Herzog. A situação dela é pior que a minha. Divorciada aos cinquenta e cinco anos, mostrando ainda as pernas, sem consciência de que estão descarnadas. É diabética. É a menopausa. É maltratada pela filha. Se, como autodefesa, Tennie apresenta uma certa maldade, hipocrisia, e uma astúcia própria, como acusá-la? Claro que nos deu, ou emprestou — era por vezes um empréstimo, outras um presente de casamento — aquele faqueiro de prata lavrado à mão, e quere-o de novo. Foi por isso que mandou uma palavrinha por Simkin acerca dos sentimentos magoados. Não quer perder as suas pratas. Também não é propriamente cínica. Ela precisa de ter amigos, e precisa também das pratas. É o seu tesouro. Está no cofre, em Pittsfield. Demasiado pesado para levar para Chicago. Devolvo-lha, decerto. Na primeira oportunidade. Nunca consegui prender-me a coisas valiosas — prata, ouro. Para mim, o dinheiro não é um meio. Eu sou um meio de dinheiro. Passa por mim — impostos, seguro, hipoteca, pensão para os filhos, renda, salários legais. Todos estes dignos disparates custam muito. Se me casasse com Ramona, talvez fosse mais fácil.
O veículo foi interrompido por camionetas no bairro das lojas de modas. As máquinas eléctricas travejavam nos sótãos e toda a rua tremia. Parecia que se estava a rasgar roupa, não a cosê-la. A rua estava mergulhada, afogada, nestas ondas trovejantes. Através delas um negro puxava um carrinho com roupas de senhora. Tinha uma bela barba e tocava uma trombeta dourada, de brincar. Era impossível ouvi-lo.
Depois o trânsito abriu-se e o táxi matraqueou em primeira e meteu em segunda. — Por Deus, vamos a ver se recuperamos o tempo — disse o motorista.
Viraram rapidamente para a Avenida do Parque e Herzog manipulou o fecho partido da janela. Não abria. Mas se abrisse o pó entraria. Estavam a demolir e a erguer edifícios. A Avenida encontrava-se pejada de camiões, misturadores de betão, cheiros de areia molhada e cimento em pó. Estrépito, o ruído dos bate-estacas, em baixo, e, mais acima, o ferro das estruturas, interminável e sequiosamente subindo para o azul mais fresco, mais delicado. Vigas cor de laranja estavam suspensas dos guindastes como se fossem palhas. Mas na rua, onde os autocarros expeliam pelo escape o veneno de combustíveis baratos, e os automóveis se engarrafavam, estavam abafados, esmagados, a algazarra das máquinas e as multidões desesperadamente rasgando o seu caminho — horrível! Tinha de chegar à praia, onde poderia respirar. Devia ter reservado um lugar de avião. Mas fartara-se de aviões no ano anterior, especialmente na companhia aérea polaca. Os aparelhos estavam velhos. Partira do aeroporto de Varsóvia no assento da frente dum bimotor107", retesando as pernas contra o tabique divisório na sua frente e segurando o chapéu. Não havia cintos de segurança. As asas estavam cobertas de mossas, os motores chamuscados. Havia malas de correio e cestos escorregando atrás. Voaram através de iradas nuvens fiando neve por sobre florestas polacas, campos, abismos, fábricas, rios lambendo as suas margens, e um terreno com diagramas brancos e castanhos.
De qualquer forma, umas férias deviam começar com uma viagem de comboio, como quando era miúdo em Montreal. Toda a família tomava o carro eléctrico para a Grande Estação Central com um cesto (frágil madeira a lascar) de pêras, maduras de mais, uma pechincha comprada por Jonas Herzog no mercado da Rua Rachel. A fruta tocada, boa para as vespas, quase a apodrecer, mas maravilhosamente perfumada. E dentro do comboio, sobre o gasto estofo verde dos assentos, o pai Herzog sentava-se a descascar a fruta com a sua faca russa de cabo cor de pérola. Descascava, fazia rodar e cortava com uma eficiência europeia. Entretanto, a locomotiva apitava e as carruagens cravejadas de pregos começavam a mover-se. O sol e os postes dividiam geometricamente a fuligem. Junto às paredes da fábrica crescia uma erva encardida. Um cheiro de malte exalava-se das fábricas de cerveja.
O comboio passava o S. Lourenço. Moisés premia o pedal e através do funil sujo da retrete via o rio a espumar. Depois punha-se à janela. A água brilhava e ondeava por sobre grandes rochas limosas, rodopiando em espuma nas correntes de Lachine, onde redemoinhava e bramia. Na outra margem ficava Caughna-waga, onde os índios viviam em cabanas erguidas sobre estacas. Depois vinham os campos crestados pelo Verão. As janelas estavam abertas. O eco do comboio voltava, da palha, como voz através duma barba. A máquina semeava cinzas e fuligem sobre as flores garridas e os tufos fartos de ervas bravias.
Mas isso fora havia quarenta anos. Agora o comboio era talhado para a velocidade, um tubo segmentado de aço luzente. Não havia pêras, nem Willie, nem Shura, nem Helena, nem a mãe. Ao deixar o carro, lembrou-se de como a mãe humedecia o lenço na boca para lhe limpar a cara. Para quê pensar nisto?, e voltou para a Grande Central, de chapéu de palha. Pertencia agora à geração madura, e era senhor da vida para fazer alguma coisa com ela, se pudesse. Mas não esquecera o cheiro da saliva da mãe no lenço, naquela manhã de Estio na atarracada e escavada estação canadiana, o ferro negro e o latão resplandecente. Todas as crianças têm maçãs do rosto e todas as mães as limpam ternamente com um lenço humedecido de saliva. Estas coisas têm ou não têm importância. Depende do universo, do que ele é. Recordações assim vivas são provavelmente sintomas de desordem. Para ele, o perpétuo pensamento da morte era um pecado. Conduz a tua carroça e o teu arado por sobre os ossos dos mortos.
Entre as multidões da Grande Estação Central, Herzog, apesar de todos os esforços para proceder da melhor maneira, não conseguia permanecer racional. Sentia tudo escapar-se-lhe entre o bramido subterrâneo das máquinas, vozes, e pés nas galerias com luzes como pingos de gordura em caldo amarelo e o forte perfume sufocante de Nova Iorque sob a terra. O colarinho humedeceu-se-lhe e o suor desceu-lhe das axilas, pelas costelas, ao comprar o bilhete, pegou depois num número do Times, e estava mesmo para comprar uma tablete de caramelo de Cadbury, mas não o fez, pensando no dinheiro que gastara em roupa nova que não lhe serviria se comesse hidratos de carbono. Daria a vitória ao outro lado, se se deixasse engordar, tornar-se carrancudo, taciturno, com ancas largas e barriga, custando-lhe a respirar. Ramona também não gostaria, e aquilo de que Ramona gostava importava-lhe bastante. Encarava seriamente a hipótese de se casar com ela, embora parecesse, precisamente agora, estar a comprar um bilhete para lhe escapar. Mas era no interesse dela também, pois se estava tão confuso — visionário e simultaneamente toldado como se sentia agora, febril, arruinado, implicativo e vacilante. Ia falar-lhe para a loja, mas nos trocos tinha apenas uma moeda de cinco centavos e nenhuma de dez. Teria de comprar qualquer coisa, e não queria bombons nem pastilhas elásticas. Então pensou em lhe telegrafar, mas viu que aparentaria fraqueza se lhe enviasse um telegrama.
Na plataforma abafada da Grande Estação Central abriu o volumoso Times com as pontas cortadas, após ter colocado a mala sobre os pés. Os comboios eléctricos passavam num ruído surdo a grande velocidade com malas postais, e ele fixava as notícias com particular esforço. Era um conjunto hostil de negra letra de imprensa.
LuacorridaKruchtchevberlindainformacomissãogalácticaraioXPhouma. Via a vinte passos o rosto branco e suave e o ar independente duma mulher de brilhante chapéu negro de palha que lhe mergulhava na sombra a cabeça e os olhos de tal forma, que mesmo na obscuridade salpicada de sinais chegavam até ele com uma força de que ela nunca poderia ter consciência. Aqueles olhos podiam ser azuis, talvez verdes, mesmo cinzentos — jamais o saberia. Mas eram olhos de cadela, disso estava certo. Exprimiam uma espécie de arrogância de fêmea que exercia sobre ele um imediato poder sexual; experimentava-o de novo naquele preciso momento — uma face redonda, a mirada clara de pálidos olhos de cadela, um par de pernas orgulhosas.
Tenho de escrever à tia Zelda, decidiu bruscamente. Não hão-de pensar que se escapam — depois de escarnecer de mim de tal forma, de me preparar armadilhas. Dobrou o papel espesso e apressou-se a entrar na carruagem. A rapariga de olhos de cadela estava noutra paragem, e tanto melhor! Subiu para uma composição com destino a New Haven, e a porta vermelha com os seus eixos pneumáticos fechou-se sobre ele, implacável, silvando. O ar lá dentro estava frio, era ar condicionado. Fora o primeiro passageiro e podia escolher o lugar.
Sentou-se numa posição pouco cómoda, apertando contra o peito a mala, a sua secretária de viagem, e escrevendo rapidamente no bloco de notas.
Querida Zelda, claro que deve ser leal para com a sua sobrinha. Sou apenas um estranho. Você e Herman disseram que eu pertencia à família. Se fui suficientemente ingénuo para ser afectado (na minha idade) por esta espécie de «sinceras» parlapatices familiares, então tenho o que mereço. Sentia-me lisonjeado pela afeição de Herman, tendo em conta as suas antigas relações nas grandes esferas. Dominava-me um orgulho feliz de ser considerado «um tipo fixe». Pensava que a minha confusa vida intelectual, como pobre soldado da cultura, não destruíra as minhas simpatias humanas. Que fazia ter escrito um livro sobre os Românticos? Um político da organização Democrática Distrital de Cook que conhecia o Sindicato, a grande Finança, os reis da Política, Cosa Nostra e todos os grupos não deixava de me considerar uma boa companhia, levava-me a corridas, a jogos de hóquei. Mas Herman está ainda mais à margem do sindicato que o pobre Herzog do mundo prático e ambos apreciam um agradável ambiente heimisch e adoram os banhos russos, chá e peixe fumado, bem como arenques. Com mulheres impacientes conspirando em casa.
Enquanto fui o bom marido de Mady, consideraram-me uma pessoa encantadora. De repente, porque a Madalena decidiu que queria romper — de repente, transformei-me num louco. Avisaram a polícia da minha perigo-sidade e falou-se em entregarem-me aos cuidados de uma instituição. Sei que o meu amigo e advogado de Mady, Sandor Himmelstein, consultou o Dr. Edvigpara lhe perguntar se eu estaria suficientemente doido para ser internado em Manteno ou Elgin. Você aceitou a opinião de Madalena acerca da minha saúde mental e o mesmo fizeram outros.
Mas você sabia o que ela pretendia — sabia porque é que trocou Ludey-villepor Chicago, porque é que eu tive de arranjar lá um emprego para Valentim Gersbach, sabia que andei à procura de casa para os Gersbachs e arranjei um colégio para o pequeno Ephraim Gersbach. Deve ser muito profundo e primitivo o sentimento que as pessoas — as mulheres — têm contra um marido enganado, e sei que você ajudou a sua sobrinha fazendo com que Herman saísse comigo para ver os desafios de hóquei.
Herzog não estava zangado com Herman — não acreditava que ele fizesse parte da conspiração. Os Falcões Negros contra os Folhas de Acer. O tio Herman, pacífico, bom, esperto, natural, de mocassins negros e calças sem cinto, com o chapéu à ministro, erguendo-se à frente como um elmo de bombeiro, a camisa com uma pequena gárgula na algibeira sobre o peito. No ringue os jogadores misturavam-se como vespões — rápidos, com as suas caneleiras, amarelos, negros, vermelhos, correndo, rematando, rodopiando no gelo. Sobre o ringue, o fumo do tabaco formava como que uma nuvem de pólvora, explosiva. Pelo altifalante a direcção pedia aos espectadores que não atirassem moedinhas porque se agarravam às lâminas dos patins. Herzog, olheirento, tentava descontrair-se na companhia de Herman. Chegara mesmo a ganhar uma aposta e levara-o ao Fritzl por causa do bolo de queijo. Todos os grandes nomes de Chicago lá estavam. E o que teria pensado o tio Herman? Supondo que também ele sabia que Madalena e Gersbach estavam juntos? Apesar da frescura do ar condicionado da carruagem com destino a New Haven, Herzog sentiu o suor inundar-lhe a cara.
No último mês de Março, quando regressei da Europa, numa pilha de nervos, e me dirigi para Chicago para ver o que poderia fazer, se é que alguma coisa podia fazer, para restaurar um pouco de equilíbrio, estava realmente num terrível estado. Talvez em parte fosse devido ao tempo, e o tempo muda. Havia Primavera na Itália. Palmeiras na Turquia. Na Galileia, anémonas vermelhas entre as pedras. Mas em Chicago, vi-me envolvido numa tempestade em pleno Março. Encontrou-me Gersbach, nessa altura ainda o meu mais estimado amigo. Usava um casacão de Inverno, galochas negras, um cachecol de Kelly-green, e trazia Junie nos braços. Abraçou-me. Junie beijou-me na cara. Dirigimo-nos à sala de espera e eu desembrulhei os brinquedos e vestidinhos que comprara, um alforge florentino para Valentim e contas de âmbar para Phoebe Gersbach. Como já passava da hora de Junie se deitar e o nevão aumentava, Gersbach levou-me ao Hotel Surf. Disse-me que não conseguira reservar-me um quarto no Windermere, mais perto de casa, a dez minutos a pé. Pela manhã caíra neve da altura de dez polegadas. O lago elevava-se, iluminado por alva neve sob um horizonte quase de um cinzento de tempestade. Telefonei a Madalena, mas desligou-me; a Gersbach, mas não estava no escritório; ao Dr. Edvig, mas não podia receber-me senão no dia seguinte. A própria família, a irmã, a madrasta, Herzog evitava-as. Fora ver a tia
Zelda.
Não havia táxis nesse dia. Meteu-se em autocarros, gelando ao mudar duns para outros, com o seu casaco leve e sapatos de finas solas. Os Umschands viviam num novo subúrbio nos confins do Inferno, para lá do Parque Paios, junto às Matas Nacionais. A tempestade havia cessado quando lá chegou, mas o vento era cortante, e flocos de neve tombavam dos ramos. A geada selava as montras das lojas. No supermercado, Herzog, que não era grande apreciador de bebidas, pegou numa garrafa de Guckenheimer86. Era de manhã cedo, mas tinha o sangue gelado. Assim, falou à tia Zelda com um hálito de uísque. — Vou aquecer o café. Deves estar que nem um bloco de gelo — disse ela. Na cozinha dos subúrbios, de esmalte e cobre, as formas femininas moldadas em branco sobressaíam por toda a parte. O frigorífico, como se tivesse um coração, e o fogão, com chamas gencianas por baixo da panela. Zelda maquilhara-se e envergava umas calças douradas e chinelas com saltos de plástico — transparentes. Sentaram-se. Olhando através da mesa com tampo de vidro podia ver-lhe as mãos presas entre os joelhos. Quando começou a falar, ela baixou os olhos. Tinha um tipo louro, mas as pestanas sobressaíam, mais escuras, mais quentes, mais castanhas, descoloradas, mas com uma espessa linha azul em cada pálpebra, desenhada a lápis cosmético. A princípio Herzog tomou os seus olhos baixos por expressão de concordância ou compaixão; mas descobriu como estava errado ao observar-lhe o nariz. Irradiava desconfiança. Pela maneira como se movia descobriu que rejeitava tudo quanto-lhe contava. Mas sabia que era imoderado — pior do que isso, estava temporariamente transtornado. Tentou dominar-se. Semiabotoado, com os olhos vermelhos, por barbear, apresentava um aspecto vergonhoso. Indecente. Estava a contar a Zelda a sua perspectiva do caso. — Sei que ela a virou contra mim. Envenenou o seu espírito, Zelda.
— Não. Ela respeita-te. Deixou de te amar, eis tudo. As mulheres também deixam de amar.
— Amar? Madalena amou-me? Isso são mesmo parlapatices burguesas. — Já esteve doida por ti. Sei que em tempos te adorou, Moisés.
— Não, não! Não me diga isso. Sei perfeitamente que não é verdade. É doente. E uma mulher doente — tratei dela.
— Admito que assim seja — replicou Zelda. — A verdade é a verdade. Mas que doença...?
— Ah! — disse Herzog, rispidamente. — Com que então gosta da verdade?
Via nesta conversa uma influência de Madalena; estava sempre a falar da verdade. Não suportava mentiras. Nada conseguia encolerizar Madalena tão rapidamente como uma mentira. E medira Zelda pela mesma craveira — Zelda, com o cabelo pintado, seco como serradura e as linhas purpúreas nas pálpebras, estas formas de lagartas — Oh!, pensou Herzog no comboio, que coisas as mulheres aplicam na sua própria carne! E temos de as admitir, temos de olhar, falar, observar, respirar. E agora Zelda, com o rosto um pouco enrugado, as narinas suaves mas fortes, dilatadas pela desconfiança, e fascinada pelo estado dele (havia agora uma realidade em Herzog, não perceptível enquanto era afável), falava-lhe da verdade.
— Não estive sempre ao vosso nível? — disse ela. — Não me limito a ser mais uma hausfrau dos arredores.
— Lá porque Herman diz que conhece Luigi Boscolla, o patife?
— Não finjas que não me consegues compreender...
Herzog não pretendia ofendê-la. Era-lhe de súbito muito evidente a razão que assim a levava a falar. Madalena convencera Zelda de que também ela era excepcional. Toda a gente próxima de Madalena, todos os que se envolvessem no drama da sua vida se tornavam excepcionais, profundamente dotados, brilhantes. Acontecera-lhe a ele também. Ao ser afastado da vida de Madalena, reenviado para a escuridão, de novo se tornava um espectador. Mas via que a tia Zelda estava inspirada por um novo sentido de si própria. Herzog invejava-a mesmo nesta proximidade de Madalena.
— Bem, sei que não é como as outras senhoras casadas daqui...
A sua cozinha é diferente, os seus candeeiros italianos, as suas carpetes, a sua mobília rústica francesa, o seu Westinghouse, os seus visons, o seu clube, o seu cérebro atrofiado são diferentes de todos os outros.
Estou certo de que foi sincera. Não insincera. A verdadeira insinceridade é difícil de encontrar.
— Madalena e eu temos sempre sido quase como irmãs — dizia Zelda. — Continuaria a gostar dela, o que quer que ela fizesse. Mas estou satisfeita de poder dizer que ela tem sido uma pessoa terrivelmente séria.
-Ora!
— Tão séria como tu.
— Devolvendo um marido como um prato de bolos ou uma toalha de banho ao Field’s.
— Falhou. Tu também tens as tuas culpas. Estou certa de que não o vais negar.
— Como poderia?
— Altivo, melancólico. Pensas muito.
— É bem verdade.
— Muito exigente. Tens de te governar. Ela diz que a gastaste, pedindo-lhe
ajuda, apoio.
— Tudo isso é certo. E mais. Sou violento, irascível, estou estragado. Que mais?
— Tens sido egoísta com as mulheres.
— Desde que Madalena me abandonou. Tento recuperar a confiança em
mim próprio.
— Não, enquanto eras ainda casado. — A boca de Zelda apertou-se. Herzog sentiu-se corar. Uma tensão espessa, quente, doentia-, sufocava-lhe
o peito. Sentiu-se doente do coração e a testa orvalhou-se-lhe instantaneamente. Ele murmurou: — Foi dura para mim. Sexualmente.
— Bem, sendo mais velho... Mas isso são coisas passadas — disse Zelda. — O teu grande erro foi enterrares-te no campo para levares a cabo aquele teu projecto — aquele estudo de whatchamajig. Nunca chegaste a publicá-lo, pois não?
— Não — respondeu Herzog.
— Então sobre que era isso?
Herzog tentou explicar do que tratava — que o seu estudo deveria terminar por uma nova perspectiva das condições modernas, mostrando como a vida podia ser vivida renovando as relações universais; derrubando o último dos erros Românticos sobre a unicidade do Mesmo; revendo a velha ideologia Ocidental, Fáustica, investigando o significado social do Nada. E mais. Mas censurou-se, pois ela não compreendia, e isto ofendia-a, especialmente porque julgava que não era uma simples dona de casa. Ela dizia: — Parece uma coisa magnífica. Claro que deve ser muito importante. Mas não é aí que quero chegar. Foste doido em enterrares-te a ti e a ela, uma mulher nova, nos Berkshires, sem ninguém com quem falar.
— Excepto Valentim Gersbach e Phoebe.
— Isso mesmo. Foi mal. Especialmente os Invernos. Devias ser mais sensato. Aquela casa fez dela uma prisioneira. Deve ter sido pura e simplesmente horrível, lavar e cozinhar e fazer calar o bebé, senão deitavas abaixo céus e infernos, contava ela. Não conseguias pensar quando June chorava, e saías do quarto a vociferar.
— Sim, fui estúpido... um parvo. Mas era um dos problemas sobre que eu estava a trabalhar, bem vê, o de que as pessoas podem actualmente ser livres, mas que a liberdade não tem qualquer conteúdo. É como um vazio ululante. A Madalena compartilhava dos meus interesses, pensava eu — é uma pessoa estudiosa.
— Ela afirma que tu eras um ditador, um belo tirano. Intimidava-la.
Pareço uma espécie de rei destronado, pensava ele, como o meu pai, imigrante principesco e inábil contrabandista de bebidas alcoólicas. E a vida era muito má em Ludeyville — terrível, admito. Mas então não comprámos a casa porque ela quis, não nos mudámos quando ela quis? E não tratei eu de tudo, mesmo para os Gersbachs — para que pudéssemos todos deixar os Berkshires juntos?
— De que mais se queixava ela?
Zelda fixou-o por um momento, como que a avaliar a própria ousadia, e disse:
— Tu eras egoísta!
Ah, isso! Compreendia. A ejaculação precoce! O olhar tornou-se-lhe tempestuoso, o coração começou a bater, e confirmou. — Houve certos problemas, durante algum tempo. Mas não nos dois últimos anos. E quase nunca com outras mulheres. — Eram explicações humilhantes. Zelda não era obrigada a acreditar nele, e isso transformava-o num advogado de defesa de si mesmo e dava-lhe uma terrível desvantagem. Não podia convidá-la a subir para uma demonstração, ou apresentar testemunhos de Wanda ou Zinka. (Lembrando, no comboio ainda parado, o arrebatamento frustrado e colérico destas tentativas de explicações, não pôde deixar de rir. Mas apenas um pálido sorriso lhe aflorou aos lábios.) Que trapaceiras eram elas — Madalena, Zelda... outras. Algumas mulheres não se importam de como nos prejudicam. Uma rapariga, do ponto de vista de Zelda, tinha direito a esperar do marido prazer erótico todas as noites, segurança, dinheiro, seguros, peles, jóias, mulheres a dias, adornos, vestidos, chapéus, clubes nocturnos, clubes desportivos, automóveis, teatro!
— Nenhum homem pode satisfazer uma mulher que o não deseja — retorquiu Herzog.
— Bem, é essa a tua resposta?
Moisés começou a falar, mas pressentiu que cairia noutra insensatez. A cara empalideceu-lhe de novo e manteve-se calado. Sentia uma terrível dor. Era tão intensa que deixava de evocar a sua capacidade de sofrer como tantas vezes fizera. Estava sentado em silêncio e sentia a máquina de secar roupa, zunindo, em baixo.
— Moisés — disse Zelda — , quero que uma coisa fique certa.
— O quê?
— As nossas relações. — Já não lhe contemplava as pálpebras escurecidas, pintadas, mas os olhos, brilhantes e castanhos. As narinas contraíam-se-lhe suavemente. Mostrava-lhe o rosto inundado de simpatia. — Ainda somos amigos — continuou ela.
— Bem.. — titubeou Moisés. — Gosto de Herman. De si.
— Sou tua amiga. E sou uma pessoa leal.
Mirava-se na janela da carruagem, ouvindo nitidamente as suas próprias palavras. — Considero-a uma pessoa digna.
— Acreditas-me, ou não?
— Quero acreditar em si, naturalmente.
— Devias fazê-lo. Também zelo pelos teus interesses. Vou olhando pela June.
— Estou-lhe grato por isso.
— Mas a Madalena é uma boa mãe. E não terás de que te preocupar. Não anda por aí com homens. Passam o tempo a falar-lhe, a procurá-la. Bem... ela é uma beleza, e um tipo de pessoa muito rara, tão brilhante. Lá em baixo, no Hyde Park — mal souberam do divórcio, haverias de ficar surpreendido com a quantidade de gente que começou a falar-lhe.
— Bons amigos meus, é o que quer dizer.
— Se ela não passasse duma leviana, poderia bem ter tido por onde escolher. Mas sabes como é séria. De qualquer forma, pessoas como Moisés Herzog não andam por aí aos encontrões nos autocarros. Com a tua cabeça e o teu encanto não serás fácil de substituir. De qualquer forma, passa a vida em casa. Está a repensar tudo — toda a existência. E não há mais ninguém. Sabes bem que podes acreditar em mim.
Claro que se me considerava perigoso, o seu dever era mentir. E sei que tinha mau aspecto, com a cara inchada, os olhos vermelhos e inquietos. A impostura das mulheres, contudo, é um tema profundo. Estremecimentos de malícia. Cumplicidade sexual, conspiração. Estou a habituar-me. Vi-a bravatear com Herman para ter um segundo carro, e sei do que é capaz, cadela! Pensou que eu podia matar Mady e Valentim. Mas quando descobri, porque é que não fui a uma loja de penhores comprar uma pistola? Mais simples ainda, o meu pai deixara um revólver na secretária. Ainda lá está. Mas não sou um criminoso, não me está isso na massa do sangue; sou terrível para mim, em contrapartida. De qualquer modo, Zelda, vejo que experimentou um tremendo prazer, uma dupla emoção, mentindo-me com um coração transbordante.
Num repente, a composição deixou a plataforma e entrou no túnel. Temporariamente na escuridão, Herzog levantou a caneta. Suavemente, as paredes gotejantes passaram. Em nichos poeirentos rebrilhavam luzes. Sem religião. Depois vinha um longo declive e a composição subiu do subsolo e entrou, subitamente iluminada, na estação sobre o bairro pobre, ao cimo da Avenida do Parque. Por volta do número noventa, do lado nascente, uma boca de incêndio aberta borbotava e miúdos de cuecas coladas à pele saltavam gritando. Depois surgia o Harlem Espanhol, pisado, escuro e quente, e Queens à distância, à direita, um espesso documento de tijolo, velado de poeira atmosférica.
Herzog escreveu — Nunca compreenderei o que querem as mulheres. Que querem elas? Comem salada verde e bebem sangue humano.
Sobre Long Island o ar aclarou. Foi-se gradualmente tornando muito puro. A água estava calma e lisa, de um azul suave, a relva refulgente, salpicada de flores selvagens — murta abundante entre as rochas e morangos silvestres, florindo.
Agora conheço toda a verdade, ridícula, sórdida, perversa, sobre Madalena. Dá-me muito que pensar. Terminara.
Mas, à mesma grande velocidade, Herzog reiniciou o seu trabalho, escrevendo a um velho amigo de Chicago, Lucas Asphalter, zoólogo da Universidade. Que te aconteceu? Leio muitas vezes parágrafos de «interesse humano», mas nunca espero que sejam acerca dos meus amigos. Podes imaginar como me chocou ver o teu nome no Post. Enlouqueceste? Sei que adoravas o meu macaco, e tenho pena que tenha morrido. Mas não devias tentar reanimá-lo com respiração boca a boca. Especialmente, visto que Rocco morreu tuberculoso, havia o perigo de inalares uma chusma de micróbios. Asphalter era curiosamente afeiçoado aos seus animais. Herzog suspeitava de que pretendia humanizá-los. Aquele seu macaco, Rocco, não era uma criatura engraçada, antes obstinada e débil, descorado, como um velhote judeu mal-humorado. Mas decerto, se estava a morrer lentamente tuberculoso, não podia aparentar um aspecto optimista. Asphalter, ele próprio tão alegre e indiferente a interesses práticos, uma espécie de assistente universitário à margem dos quadros, sem doutoramento, ensinava anatomia comparada. De sapatos de espessa sola de crepe, usava uma camisa manchada; era além disso calvo desde jovem, o pobre Lucas. A súbita queda do cabelo deixara-o com um único caracol à frente, e tornara-lhe os belos olhos, as sobrancelhas arqueadas e proeminentes e as narinas mais escuras e peludas. Espero que não tenha apanhado os bacilos de Rocco. Há uma vaga duma espécie nova, mais mortífera, e a tuberculose está a regressar. Asphalter era solteiro aos quarenta e cinco anos. O pai possuíra uma pensão barata na Rua Maddison. Na sua juventude, Moisés estivera lá com frequência, de visita. E embora durante um intervalo de dez ou quinze anos ele e Asphalter não tivessem sido amigos íntimos, tinham descoberto, repentinamente, muito de comum. De facto, fora por Asphalter que Herzog soubera o que fazia Madalena, e o papel que Gersbach desempenhava na sua vida.
— Detesto contar-te isto, Moisés — disse Asphalter, no seu escritório — , mas andas metido com uns bons trastes.
Isto fora dois dias após o nevão de Março. Ninguém diria a força do Inverno que grassara naquela mesma semana. A janela abria-se sobre o Quadrangle. Os sombrios algodoeiros renasciam, e flores vermelhas rompiam-lhes das bainhas. Estas tremulavam por toda a parte, perfumando o pátio cinzento com a sua claridade fechada. Rocco, com olhos doentios, sentava-se na sua cadeira de palha, de olhar baço, de pelagem cor de cebolas estufadas.
— Não te posso ver dares cabo de ti — disse Asphalter. — Vale mais contar-te... Tenho uma assistente no laboratório que às vezes está com a tua filha, e esteve a falar-me sobre a tua mulher.
— Que há sobre ela?
— E Valentim Gersbach. Passa o tempo lá, na Avenida Harper.
— Claro. Bem sei. É a única pessoa digna de confiança em tudo isto. Confio nele. Tem sido um grande amigo.
— Sim, bem sei... bem sei, bem sei — retorquiu Asphalter. Tinha a cara pálida e redonda salpicada de sardas, os olhos grandes, fluidos, escuros e, devido a Moisés, amargos no seu devaneio. — Claro que sei. Valentim é quase indispensável à vida social de Hyde Park, ao que dela resta. Nem sei como pudemos viver sem ele. É tão genial — tão barulhento, com aquelas imitações escocesas e japonesas, e aquela voz rolada. Abafa todas as conversas. Cheio de vida! Sim, está cheio dela. E porque o trouxeste para cá, todos o julgam o teu grande amigo. Ele próprio o diz. Só que...
— Só que o quê?
Tenso e imóvel, Asphalter indagou. — Não sabes? — empalideceu profundamente.
— Que hei-de eu saber?
— Tinha por certo, como és tão inteligente, tão fora de série... que soubesses alguma coisa ou suspeitasses.
Algo de terrível estava prestes a desabar sobre si. Herzog preparou-se. — A Madalena, queres tu dizer? Claro que percebo que, dentro em pouco, como é ainda nova, tem de... há-de.
— Não, não — retorquiu Asphalter. E desabafou, atabalhoadamente — Já o fez.
— Quem! — exclamou Herzog. O sangue subiu-lhe à cabeça para logo rápida e pesadamente lhe deixar o cérebro.
— Referes-te a Gersbach?
— Isso mesmo. — Asphalter deixara de exercer domínio sobre os nervos da face; serenara com a dor que sentia. A sua boca parecia fendida, riscada a negro.
Herzog começou a gritar. — Não podes falar assim! Não podes dizer isso! — Fixava Lucas, ultrajado. Uma sensação obscura, doentia, frouxa; apoderou-se dele. O corpo parecia afundar-se-lhe, abruptamente esgotado, surdo, tolhido. Quase perdeu a consciência.
— Desaperta o colarinho — aconselhou Asphalter. — Jesus, não estás a desmaiar, pois não? — começou a baixar a cabeça de Herzog. — Entre os joelhos — recomendou.
— Deixa-me levantar — pediu Moisés, mas tinha a cabeça escaldante e húmida e estava sentado, dobrado para a frente, enquanto Asphalter lhe prestava os primeiros socorros.
Durante todo o tempo, o grande macaco castanho, com os braços em torno do peito, e olhos vermelhos e secos, observava, silenciosamente manifestando o seu espanto. A morte, pensou Herzog. A realidade. O animal estava moribundo.
— Estás melhor? — perguntou Asphalter.
— Abre uma janela. Estes edifícios da zoologia fedem.
— A janela está aberta. Vá, bebe um bocadinho de água. — estendeu a Moisés um copo de papel. — Toma um destes. Primeiro este e depois o verde e branco. — Prozine. — Não consigo tirar o algodão do frasco. As minhas mãos tremem.
Herzog recusou as pílulas. — Lucas... É realmente verdade isso da Madalena e do Gersbach? — indagou.
Imensamente nervoso, pálido, quente, fitando-o com os seus olhos escuros, Asphalter disse: — Jesus! Não vais pensar que eu ia inventar tal coisa. Talvez não tenha tido muito tacto. Pensei que tivesses uma ideia... Mas é absolutamente certo. — Asphalter, com o seu casaco do laboratório manchado ia-o informando com um complicado gesto de desespero que parecia dizer «estou a contar-te tudo.» A respiração tornara-se-lhe ofegante. — Não sabias de nada?
— Não.
— Mas não tem sentido? Não se compreende agora?
Herzog pousou o pulso na secretária, apertando com força os dedos. Fitou as flores ondulantes, vermelhas e violetas. Não rebentar, não morrer — permanecer vivo, eis tudo quanto podia esperar. — Quem te contou? — pretendeu saber.
— Geraldina.
— Quem?
— Gerry... a Geraldina Portnoy. Pensei que a conhecesses. A Mady chama-a para tomar conta da miúda. Trabalha no laboratório de anatomia.
-O quê...?
— Anatomia humana, na Faculdade de Medicina, ao virar da esquina. Saio com ela. Realmente, tu conhece-la, andava numa das tuas cadeiras. Queres falar
com ela?
— Não — retorquiu Herzog violentamente.
— Bem, ela escreveu-te uma carta e disse que me deixava a decisão de a mandar ou não.
— Posso lê-la agora.
— Toma-a. Podes preferir lê-la depois. Herzog enfiou o sobrescrito na algibeira.
Estava admirado, ali, naquele banco de peluche do comboio, segurando a mala que lhe servia de secretária, e deixando o Estado de Nova Iorque às sete da tarde, de como não tinha chorado no escritório de Asphalter. Afloravam-lhe facilmente as lágrimas, e não se inibia com Asphalter, eram amigos tão antigos, tão parecidos nas suas vidas — nos seus passados, nos hábitos, nos temperamentos. Mas quando Asphalter levantou a tampa, revelou a verdade, algo de mau se soltou no seu escritório que dava para o Quadrangle; como que um cheiro quente e vivo; ou um estranho facto humano, quase palpável. As lágrimas não eram adequadas. A causa era demasiado perversa, demasiado singular para quantos envolvia. Também Gersbach chorava frequentemente com um distinto poder emocional. Lágrimas quentes assomavam-lhe muitas vezes aos olhos magnânimos, dum castanho-ruivo. Ainda havia poucos dias, quando Herzog descera em O'Hare e apertara nos braços a filhinha, Gersbach lá estivera, figura poderosa e entroncada, com lágrimas de compaixão nos olhos. Sem dúvida, pensou Moisés, anda para aí a chorar por mim. Por vezes maça-me ter uma cara, um nariz, lábios, porque ele os tem.
Sim, a sombra da morte pairava sobre Rocco, então.
— Que coisa desagradável — dizia Asphalter. Tirou uma fumaça e apagou o cigarro. O cinzeiro estava cheio de pontas ainda grandes — gastava dois ou três maços por dia. — Vamos beber qualquer coisa. Podemos jantar todos juntos. Vou levar Geraldina à Vaga Alta, um pouco ao norte. Não podes ajuizar como ela é.
Agora Herzog tinha de considerar alguns factos estranhos relativos a As-phalter. É possível que eu o influenciasse, a minha emotividade comunicou-se-lhe. Afeiçoou-se àquele Rocco melancólico e peludo. De que outro modo se podia explicar uma tal agitação — agarrar Rocco e abrir-lhe os lábios, fazendo-lhe respiração boca a boca? Suspeito de que Lucas não esteja nada bem. Tenho de tentar pensar nele tal como é — com o que tem de estranho e tudo.
Mais vale fazeres a prova da tuberculina. Não tinha ideia de que... Herzog interrompeu-se. Um empregado do vagão-restaurante chamou para o almoço, mas Herzog não tinha tempo para comer. Ia começar mais uma carta.
Caro Professor Byzhkovski, quero agradecer-lhe a sua amabilidade em Varsóvia. Devido ao meu estado de saúde, o nosso encontro foi decepcionante para si. Estava eu sentado no seu apartamento fazendo chapéus e barcos de papel com o Trybuna Ludu enquanto ele tentava manter uma conversa. O professor — aquele homem forte, com um fato de caça de tweed cor de areia, de calções e casaco de Norfolk — deve ter ficado admirado. Estou convencido de que tem uma natureza afável. Os seus olhos azuis são dos bons. Uma cara gorda mas equilibrada, pensativa e viril. Eu continuava a fazer os chapéus de papel — devia ter estado a pensar nas crianças. A Sra. Byzhkovski perguntou-me se queria geleia no chá, inclinando-se hospitaleiramente. A mobília era ricamente polida, antiga, duma época passada da Europa Central — mas também esta época está a passar, e talvez mais depressa que as outras. Espero que me desculpe. Tive agora oportunidade de ler o seu trabalho sobre a Ocupação Americana da Alemanha Ocidental. Muitos dos factos são desagradáveis. Mas nunca fui consultado pelo presidente Truman, nem por McCloy. Devo confessar que não estudei a questão alemã tão de perto como devia. Nenhum dos Governos diz a verdade, em minha opinião. Há também um problema sobre a Alemanha Oriental que nem sequer é tocado na sua monografia.
Passeei em Hamburgo no bairro dos cabarés, ou seja, disseram-me que devia vê-lo. Algumas prostitutas, com roupa interior de renda preta, usavam botas militares alemãs e dirigiam-se-nos com pancadinhas nos vidros das janelas. Raparigas coradas, chamando e rindo. Um dia frio, triste.
Caro Senhor, escreveu Herzog. Tem tido muita paciência com os vadios da Bowery que lhe entram na igreja, caem de bêbedos, defecam nos bancos, quebram garrafas nas pedras tumulares, e cometem mais distúrbios. Eu sugeriria que, visto que do portal da sua igreja pode ver a Wall Street, preparasse um panfleto para explicar que a Bowery lhe confere um significado adicional. SkidRow é a instituição oposta, portanto necessária. Faça-os recordar Lázaro e Dives. Por causa de Lázaro, Dives experimenta uma alegria superior, um bónus, pelas suas luxúrias. Não, não acredito também que Dives esteja a gozar tanto. Se ele se quiser libertar, a condenação do Skid Row o espera. Se houvesse uma bela pobreza, uma pobreza moral na América, isso seria subversivo. Portanto tem de ser feia. Portanto os vadios trabalham para a Wall Street — abertamente. Mas o reverendo Beasley, onde é que ele vai buscar a sua massa?
Pensámos muito pouco sobre isto.
Depois escreveu. Departamento de Crédito, Marshall Field & Co. Deixo de ser responsável pelas dívidas de Madalena P. Herzog, pois a 10 de Março deixámos de ser marido e mulher. Portanto não me mandem mais contas. — Fui surpreendido pela última — mais de quatrocentos dólares. De compras feitas após a separação. Claro que devia ter escrito mais cedo — ao chamado centro nervoso do crédito. — Haverá uma tal coisa? Onde ficará? — mas perdi temporariamente a paciência.
Caro Professor Hoyle, julgo que não compreendo o mecanismo da Teoria de Gold-Pore. Como os metais mais pesados — ferro, níquel — vão para o centro da Terra, parece-me compreendê-lo. Mas quanto à concentração dos metais mais leves? Também, na sua explicação da formação dos planetas menores, incluindo a nossa trágica Terra, se refere a materiais-adesivos que ligam os aglomerados de matéria precipitada...
As rodas das carruagens rolavam tempestuosamente. Bosques e pastagens surgiam, velozes, e ficavam para trás, os carris das vias laterais envoltos em ferrugem, os fios, em corrida, mergulhando e emergindo, e à direita o azul do braço de mar, mais profundo, mais forte que atrás. Depois as conchas esmaltadas dos carros para trocas, os corpos amontoados dos carros para sucata, as formas de antigos moinhos da Nova Inglaterra com janelas estreitas, austeras; aldeias, conventos; rebocadores movendo-se na água que, de picada, mais parecia trama de tecido. E depois pinhais, caruma pelo chão em tons de vermelho pleno de vida. Assim, pensou Herzog, reconhecendo como era elementar a sua imaginação do universo, eram as estrelas flamejantes e os mundos nascentes, os invisíveis eixos magnéticos que mutuamente mantinham os corpos em órbita. Os astrónomos apresentavam o facto como um agitar de gases dentro dum frasco. Depois, passados vários biliões de anos, anos-luz, surgia esta criatura infantil, mas de modo algum inocente, de chapéu de palha na cabeça e coração no peito, parcialmente pura, parcialmente perversa, que havia de tentar formar a sua imagem vacilante desta magnífica teia.
Caro Dr. Bbave, recomeçou, li referências ao seu trabalho no Observer e na ocasião pensei que gostaria de me integrar no seu movimento. Sempre me interessou viver uma vida moral, útil, activa. Não soube nunca por onde começar. Não nos podemos tornar utópicos. Isso só dificulta a descoberta de qual o verdadeiro dever. Persuadir os latifundiários a darem uma parte das suas terras a camponeses pobres, contudo... Estes homens escuros palmilhando a índia. Na sua visão Herzog vislumbrava-lhes os olhos brilhantes e a luz do espírito que os animava. Temos de começar por injustiças óbvias para todos, não por grandes perspectivas históricas.
Vi recentemente Pather Pancali. Suponho que o conheça, uma vez que o seu tema é a índia rural Duas coisas nele me tocaram profundamente — a velha fazendo papas de farinha com as mãos, que mais tarde se embrenha na selva para morrer; e a morte da rapariga à chuva. Herzog, quase sozinho no cinema da 5.a Avenida, chorara com a mãe da criança ao começar a histérica música da morte. Um músico, com um cornetim indígena, imitando soluços, tocando um estertor de morte. Chovia também em Nova Iorque, como na índia rural. Sentia um aperto no coração. Também ele tinha uma filha, também a sua mãe fora uma pobre mulher. Dormira em lençóis feitos de sacos de farinha. Os melhores para tal efeito eram os de Ceresota.
Pensava vagamente em oferecer a sua casa e propriedade de Ludeyville ao movimento de Bhave. Mas de que serviriam ao Bhave? Não ficaria bem. De qualquer forma, havia uma hipoteca. Um presente deve ser feito sem acarretar encargos e para isso eu teria de arranjar mais oito mil dólares, e o Fisco não mos descontaria. A caridade para o estrangeiro provavelmente não conta. Bhave far-lhe-ia um favor. Aquela casa era um dos seus grandes erros. Fora comprada num sonho de felicidade, uma velharia em ruínas com imensas possibilidades — grandes árvores antigas, jardins formais que poderia restaurar nas horas vagas. Permanecera ao abandono durante anos. Caçadores de patos e namorados entravam e serviam-se dela; e quando Herzog pôs lá a tabuleta de propriedade privada os namorados e caçadores faziam-lhe partidas. Alguém entrou de noite e deixou uma folha de papel higiénico usada num prato coberto sobre a secretária, onde havia montes de notas para os seus estudos sobre o Romantismo. Foi esta a recepção que os autóctones lhe dispensaram. Um lampejo momentâneo de auto-ironia perpassou-lhe pela face enquanto o comboio rompia por entre prados e pinheiros banhados de sol. Supondo que eu aceitava a provocação. Podia ser Moisés, o velho judeu de Ludeyville, de barba branca, cortando a relva por baixo dos estendais com a minha velha segadoura. Comendo marmotas.
Escreveu ao primo Asher, em Beersheba, Referia-me a uma velha fotografia do teu pai no seu uniforme do tempo do czar. Pedi à minha irmã Helena para a procurar. Asher fora incorporado no Exército Vermelho e ficara ferido. Era actualmente soldador electrónico, homem de aspecto taciturno com dentes fortes. Fora com Moisés visitar o mar Morto. Estava um tempo abafado. Sentaram-se à entrada duma mina de sal para se refrescarem. Asher perguntara — Não tens uma fotografia do meu pai?
Prezado Senhor Presidente, ouvi o seu recente discurso optimista na rádio e pensei que, quanto aos impostos, pouco havia que justificasse o seu optimismo. A nova legislação é altamente discriminatória e muitos crêem que virá apenas agravar os problemas do desemprego pela aceleração da automação. Isto significa que mais bandos de adolescentes virão a dominar as ruas pouco policiadas das grandes cidades. A ênfase dada ao excesso de população, a questão racial...
Prezado Professor Doutor Heidegger, gostaria de saber o que pretende significar com a expressão «a queda no quotidiano». Quando ocorreu esta queda? Onde estávamos nós quando se deu?
Ex."" Sr. Emmett Strawforth, Departamento Público de Saúde dos E. U.A., escreveu. Caro Emmett, vi-te na televisão fazendo uma triste figura. Dado que fomos condiscípulos (M. E. Herzog'38) sinto-me à vontade para te dizer o que penso da tua filosofia.
Herzog riscou estas linhas passando a endereçar a carta para o New York Times. Mais uma vez um cientista do governo, o Dr. Emmett Strawforth, apresentou uma Filosofia de Risco na controvérsia sobre as poeiras radioactivas a que agora se adicionou o problema dos pesticidas químicos, contaminação da água, etc. Estou tão profundamente interessado na argumentação social e ética de cientistas como o estou nessas outras formas de envenenamento. ODr. Strawforth sobre Rachel Carson, oDr. Teller sobre os efeitos genéticos da radioactividade. Recentemente o Dr. Teller afirmou que a nova moda das calças apertadas, aumentando a temperatura do corpo, podia afectar mais asgónadas que as poeiras radioactivas. Algumas pessoas profundamente respeitadas na sua época revelam-se lunáticos perigosos. Tomemos como exemplo o marechal de campo Haig. Afogou centenas de milhares de homens nos pântanos da Flandres. Lloyd George teve de sancionar isto, visto Haig ser um chefe tão importante e respeitado. A tais individualidades é, pura e simplesmente, permitido fazer o que bem lhes passa pela cabeça. Como é paradoxal que um homem que toma heroína possa apanhar uma sentença de vinte anos pelo que faz a si próprio... Hão-de acabar por me compreender.
O Dr. Strawforth afirma que devemos adoptar a sua Filosofia do Risco em relação à radioactividade. Desde Hiroshima (e o Sr. Truman chama Corações Sensíveis às pessoas que põem em causa a sua decisão de Hiroshima) a vida nos países civilizados (visto sobreviverem por um equilíbrio de terror) baseia-se no risco. Assim argumenta o Dr. Strawforth. Mas vai comparara vida humana com o Capital Arriscado em negócios. Que ideia! As grandes empresas não correm risco como demonstrou uma recente investigação sobre os fundos públicos. Gostaria de chamar a vossa atenção para uma das profecias de De Tocqueville. Julgava ele que as democracias modernas produziriam menos crimes, mais vícios secretos. Talvez ele quisesse ter dito menos crimes secretos, mais crimes colectivos. Muitos destes crimes colectivos ou organizados têm precisamente como objectivo reduzir o risco. Ora bem sei que não é fácil resolver as questões deste planeta com a sua população que excede os 2 biliões. Só este número éjá transcendente e invalida as nossas ideias práticas. Poucos intelectuais têm conseguido chegar aos princípios sociais que estão por trás desta transformação quantitativa.
A nossa civilização é burguesa. Não uso este termo no seu sentido marxista. Palermas! No vocabulário da arte moderna e da religião é burguês considerar-se que o universo foi feito especialmente para nós e para nos dar conforto, facilidades, amparo. A luz anda à velocidade de trezentos mil quilómetros por segundo para que possamos ver para nos pentearmos epara lermos no jornal que baixaram hoje de preço os presuntos. De Tocqueville considerava a tendência para o bem-estar como uma das tendências mais fortes duma sociedade democrática. Não o podemos acusar por não ter tido na devida consideração o poder destrutivo provocado por esta mesma tendência. É preciso não se estar bom da cabeça para escrever uma tal carta ao Times! Há milhões de azedos tipos voltairianos cujas almas estão cheias duma sátira colérica e que andam sempre à procura da palavra mais acerada, mais venenosa. Podias antes mandar um poema, meu pateta. Porque é que não haverias de conseguir melhores resultados pela mera loucura que eles pela organização? Viajas nos comboios deles, não viajas? A loucura não construiu nenhuma linha férrea. Vá, escreve um poema, e mata-os de mordacidade. Publicam pequenos poemas para encher na página do editorial. Contudo, prosseguiu com a sua carta. Nietzsche, Whitehead e John Dewey escreveram sobre o problema do risco... Dewey diz-nos que a humanidade não confia na sua própria natureza e procura encontrar estabilidade a um nível inferior ou superior, na religião e na filosofia. Rira ele o passado significa frequentemente o erróneo. Mas Moisés refreou-se. Cinjamo-nos ao problema. Mas qual era o problema? O problema era que havia pessoas que podiam destruir a humanidade, descontroladas e arrogantes, desvairadas, e se lhes devia pedir que o não fizessem. Que os inimigos da vida desçam dos seus pedestais. Que cada homem consulte agora o seu coração. Sem uma grande transformação do coração não teria confiança em mim num posto de autoridade. Amarei a humanidade? O suficiente para a poupar, se estivesse em posição de a poder fazer ir pelos ares? Vistamos os sudários e façamos uma marcha sobre Washington e Moscovo. Rojemo-nos ao chão, homens, mulheres e crianças e gritemos «Deixai a vida continuar — talvez não o mereçamos, mas deixai-a continuar.»
Em todas as comunidades há uma espécie de pessoas profundamente perigosas para as restantes. Não me refiro aos criminosos. Para esses temos sanções. Refiro-me aos dirigentes. Invariavelmente, os mais perigosos procuram o poder. Enquanto, ardendo de indignação, os cidadãos conscienciosos se consomem.
Senhor Director, somos obrigados a ser escravos dos que têm poder para nos destruir. Já não falo de Strawforth. Conheci-o na escola. Jogámos pingue-pongue no Clube Reynolds. Tinha uma cara bochechuda com alguns sinais, polegares gordos e recurvados com que bolava, fazendo batota. Cliqueti-clec na mesa verde. Não acredito que o seu quociente de inteligência fosse assim tão alto, embora talvez fosse, mas estudava a sério matemática e química. Enquanto eu vagueava pelos campos. Como as cigarras na cantiga preferida de June.
Foram três cigarras em cruzeiro, Que passear é o melhor que há. ali Não pagavam renda, não tinham dinheiro.
De braços cruzados, o dia inteiro Cantavam o tralá-lá-lá, Cantavam o tralá-lá-lá.
Encantado, Moisés começou a sorrir. A cara enrugou-se-lhe ternamente ao pensar nos filhos. Como as crianças compreendem o que é o amor! Marco estava a entrar na idade do silêncio e da reserva com o pai, mas June era exactamente como Marco fora. Punha-se de pé nos joelhos do pai para o pentear. Pisava-lhe as coxas. Ele abraçava-lhe os ossos miudinhos com arrebatamento paternal enquanto a respiração dela junto à sua face lhe despertava os sentimentos mais profundos.
Tinha empurrado o carrinho da criança no Midway, saudando os estudantes e a Faculdade com um toque na aba do chapéu de veludo verde, de um verde mais musgoso que as colinas e os relvados dos vales. Sob as pregas da sua touca de veludo a miúda parecia-se muito com o pai, pensara. Sorrira-lhe rasgadamente, de olhos negros, enquanto recitava canções infantis.
Havia uma velha
Que voava num cesto
Muito mais alto que a lua loura
— Mais — pedia a criança.
E para onde ia
Ninguém o sabia
Pois que levava um pau de vassoura.
— Mais, mais.
O tépido vento do lago conduziu Moisés para ocidente, para além dos pardos edifícios góticos. Possuíra ao menos a criança, enquanto a mãe e o amante se despiam num quarto, algures. E se mesmo nesse abraço de sensualismo, tivessem a vida e a natureza do lado deles, afastar-se-ia calmamente. Sim, dir-lhes-ia que passassem bem.
O condutor (de um tipo em vias de desaparecer, esse condutor de rosto cinzento) tirou o bilhete da banda do chapéu de Herzog. Ao furá-lo, parecia que ia dizer alguma coisa. Talvez o chapéu de palha lhe recordasse velhos tempos. Mas Herzog estava a terminar a carta. Mesmo se Strawforth fosse um rei-filósofo, deveríamos dar-lhe poder para influir nos fundamentos genéticos da vida, poluir a atmosfera e as águas da Terra? Bem sei que é uma loucura a indignação. Mas...
O condutor enfiou um cartão furado sob o metal do número do lugar e afastou-se, deixando Moisés ainda a escrever sobre a mala. Podia, decerto, ter-se instalado na carruagem Pullman, onde havia mesas, mas aí teria de pagar bebidas, falar com pessoas. Além disso tinha uma das suas mais importantes cartas para escrever, ao Dr. Edvig, o psiquiatra de Chicago.
Pois, Edvig, escreveu Herzog, você saiu-me também um escroque. Que patético! Mas isto não era maneira de começar. Optou por outro início. Meu caro Edvig, tenho notícias para si. Sim, muito melhor assim. Uma característica provocante de Edvig, era que este se comportava como se fosse ele quem sempre soubesse todas as novidades — este calmo Edvig, protestante, nórdico, anglo-céltico, com a sua barbicha grisalha, o seu cabelo bem domado, ondulado, alto, e os óculos, redondos, limpos e brilhantes. Admitamos que eu não estava bem quando fui ter consigo. A Madalena pôs como condição de continuarmos juntos eu sujeitar-me a tratamento psiquiátrico. Talvez se recorde de que ela dizia que eu me encontrava num estado mental perigoso. Permitiram-me que escolhesse o meu psiquiatra. Naturalmente, optei por um que escrevera sobreBarth, Tillich, Brunner, etc. Especialmente porque a Madalena, embora judia, tivera uma fase cristã ao converter-se ao catolicismo e esperava que o senhor me pudesse ajudar a compreendê-la. Em vez disso foi o senhor que pretendeu conhecê-la. Fê-lo, é certo, por eu lhe dizer que era bela, possuía um espírito brilhante, de modo algum saudável, e era religiosa, ainda por cima.
Ela e Gersbach planearam cada um dos meus passos. Imaginaram que um médico de malucos ajudaria a afastar-me — a mim, um homem doente, excepcionalmente neurótico, talvez mesmo desesperado. De qualquer forma, a cura ocupar-me-ia, absorver-me-ia no meu próprio caso. Quatro tardes por semana sabiam onde eu estava, no divã, e portanto podiam estar seguros na cama. Estava à beira da depressão, no dia em que fui consultá-lo — tempo húmido, neve tombando, o autocarro excessivamente aquecido. A neve decerto que não me arrefecia mais o coração. A rua juncada de folhas amarelas. Aquela senhora de idade com o seu chapéu de peluche verde, de um verde parado, como um saco morto com pregas suaves pousado na cabeça. Mas não era assim um dia tão mau. Edvig disse-me que eu não perdera o juízo. Disse-me que eu era simplesmente um depressivo reactivo.
— Mas a Madalena diz que eu estou louco. Que eu... — Ansioso e tremendo, o espírito amargurado distorcia-lhe o rosto, apertava-lhe a garganta, dolorosamente. Mas foi encorajado pela simpatia do sorriso debruado pela barba de Edvig. Depois fez o possível para levar Edvig a falar, mas tudo o que ele lhe disse nesse dia foi que os depressivos tinham a tendência para criar terríveis dependências e para se tornarem histéricos quando se vêem isolados, quando ameaçados por uma perda. — E, pelo que me tem contado, não deixa de ter culpas. E ela parece uma pessoa colérica, para começar. Quando é que ela abandonou a Igreja?
— Não sei ao certo. Pensei que isso há muito tinha acabado. Mas na última Quarta-Feira de Cinzas vi-lhe fuligem na testa. Disse-lhe «Madalena, pensei que tinhas deixado de ser católica. Mas o que é que estou a ver entre os teus olhos, cinzas?» Mas ela retorquiu: «Não sei de que estás a falar.» Tentou fazer passar isto por uma das minhas ilusões, ou coisa do género. Mas não era ilusão. Era uma mancha. Posso jurar que era, pelo menos, meia mancha. Mas a sua atitude parece-me estranha, e que há-de um judeu como eu perceber de tal matéria?
Herzog bem podia verificar que Edvig estava fascinado por quanto contava de Madalena. Acenando a cabeça, enquanto a erguia, o queixo levantava-se-lhe com cada nova frase, cofiava a barba distinta, as lentes brilhavam, sorria.
— O senhor sente que ela é cristã?
— Ela sente que eu sou fariseu. Di-lo.
— Ah? — comentou Edvig, vivamente.
— Ah, o quê? — replicou Moisés. — Concorda com ela?
— Como é que poderei? Mal a conheço. Mas que pensa você?
— Acha que um cristão do século XX tem direito de falar dos fariseus judeus? Dum ponto de vista judeu, bem sabe que este não tem sido um dos nossos melhores períodos.
— Mas acha que a sua mulher tem uma perspectiva cristã?
— Acho que tem um ponto de vista pessoal e do outro mundo. — Herzog endireitou-se mais na cadeira e pronunciou estas palavras, talvez com uma leve ostentação. — Não concordo com Nietzsche em como Jesus tornou doentio o mundo todo, infectado pela sua moral de escravos. Mas o próprio Nietzsche tinha uma visão cristã da história, vendo sempre o momento presente como uma crise, uma queda da grandeza clássica, uma corrupção ou mal de que deveria salvar-se. Chamo a isto cristão. E a Madalena experimenta-o, é certo. Até certo ponto, muitos de nós. Pensam que temos de nos curar de algum veneno, precisamos de ser salvos, resgatados. Madalena quer um salvador, e para ela eu não sou um salvador.
Fora aparentemente isto que Edvig esperara de Moisés. Encolhendo os ombros e rindo, recolheu tudo como material analítico e pareceu muito satisfeito. Era um homem agradável e calmo, de ombros ligeiramente quadrados. Antiquados, com aros cor-de-rosa quase invisíveis, os óculos tornavam-no monótono, humildemente, pensativo e médico.
Gradualmente, não sei ao certo como sucedeu, Madalena tornou-se a figura principal da análise, e dominava-a como me dominava a mim. E veio a dominá-lo. Comecei a notar a sua impaciência em a conhecer. Devido aos factos inusuais do caso, o senhor tinha de ter uma conversa com ela. E, pouco a pouco, embrenhou-se em discussões sobre religião com ela. E, finalmente, veio a tratá-la também. Afirmava compreender como me fascinava. Eeu replicava: — «Bem lhe dizia que era extraordinária. É brilhante, a cadela, um horror!» — Assim, sabia finalmente que, se eu perdera a cabeça (como dizem) não fora por uma mulher qualquer. Quanto a Mady, enriqueceu os seus arquivos, estudando-o a si. Tudo isso lhe aumentou a profundidade. E como se ia doutorar em História Religiosa Russa (segundo creio), as suas sessões com ela, a vinte e cinco dólares cada, foram durante vários meses uma série de conferências sobre o cristianismo oriental. Depois disto, ela começou a apresentar sintomas estranhos.
Primeiro, acusou Moisés de arranjar um detective particular para a espiar. Começou esta acusação com aquele seu sotaque ligeiramente inglês que ele aprendera a reconhecer como um sintoma seguro de perturbação. — Devia ter pensado que fosses suficientemente inteligente para não contratares um indivíduo que desse tanto nas vistas.
— Contratar? — disse Herzog. — Quem é que eu contratei?
— Refiro-me àquele homem horrível... àquele nojento homem gordo de casaco desportivo. — Madalena, absolutamente segura de si, dardejou-o com um dos seus olhares terríveis. — Desafio-te a negá-lo. É absolutamente desprezível.
Vendo como ela empalidecera, precaveu-se, acautelando-se, e especialmente não se referindo ao sotaque inglês. — Mas, Mady, é pura e simplesmente um engano.
— Não é engano nenhum. Nunca sonhei que fosses capaz disto.
— Mas não sei de que estás a falar.
A voz começou-se-lhe a erguer e a tremer. Exclamou, desabridamente. — Filho duma cadela! Não venhas para cá com falinhas mansas. Conheço-te as manhas. — Depois gritou: — Isto tem de acabar! Não estou para andar a ser policiada. — Fixos, aqueles olhos maravilhosos tornaram-se vermelhos.
— Mas para que hei-de eu querer-te seguida, Mady? Não compreendo. O que é que eu poderia descobrir?
— Pois aquele homem seguiu-me, passo a passo, pelos F-Fields, toda a tarde. — Gaguejava com frequência quando estava encolerizada. — Esperei na casa de banho das senhoras meia hora, e quando saí ainda lá estava. Depois na galeria subterrânea... quando fui comprar flores.
— Talvez não passasse de um indivíduo interessado em ti. Não tenho nada que ver com isso.
— Era um detective! — Fechou os punhos. Os lábios, tinha-os terrivelmente contraídos e todo o seu corpo tremia. — Estava sentado no alpendre aqui do lado, esta tarde, quando cheguei a casa.
Moisés, pálido, pediu: — Mostra-mo, Mady. Vou ter direito a ele... Mas mostra-mo.
Edvig considerou isto um episódio paranóico, e Herzog disse: — A sério? — Digeriu mentalmente a observação por um momento e depois exclamou, excitado, mirando o médico com olhos muito abertos. — Acha realmente que foi uma ilusão? Quer dizer que ela está perturbada? Louca?
Edvig respondeu, moderadamente, medindo as palavras — Um incidente como este não indica loucura. Significa exactamente o que disse, um episódio paranóico.
— Mas é ela quem está doente, mais doente que eu.
Ah, pobre rapariga. Era um caso clínico. Estava realmente mal. Para os doentes, Moisés tinha sempre uma compaixão especial. Afirmou a Edvig: — Se ela está realmente como diz, terei de ver bem o que faço. Tenho de ver se me ocupo dela.
A caridade, como se não houvesse já problemas suficientes hoje em dia, será sempre suspeita de morbidez — sado-masoquismo, perversidade de qualquer espécie. Todas as tendências mais elevadas e morais são sujeitas à suspeita de serem estratagemas. Coisas que honramos simplesmente com velhas palavras, mas traímos ou negamos dentro de nós. De qualquer forma, Edvig não felicitou Moisés pela sua intenção de cuidar de Madalena.
— O que devo fazer — disse Edvig — é informá-la desta tendência.
Mas não pareceu perturbar Madalena o facto de ter sido precavida por um profissional contra ilusões paranóicas. Afirmou que não era para ela algo de completamente novo a notícia de que era anormal. De facto, aceitou tudo calmamente. — De qualquer modo, nunca será aborrecido — foi o que disse a Herzog.
A crise não passara ainda. Durante uma ou duas semanas a camioneta de entregas ao domicílio de Field's trazia jóias, caixas de cigarros, casacos e vestidos, candeeiros, carpetes, quase diariamente. Madalena não conseguia lembrar-se de fazer estas compras. Em dez dias arranjou uma conta de mil e duzentos dólares. Todos estes artigos eram seleccionados, muito belos — valesse ao menos isso. Tinha bom gosto, mesmo quando desequilibrada. Edvig predizia que ela nunca desembocaria numa verdadeira psicose, mas continuaria a ter tais lapsos durante o resto da sua vida. Isto mergulhou Moisés numa certa melancolia, mas talvez os seus suspiros exprimissem também uma certa satisfação. Era possível.
As entregas ao domicílio cessaram então. Madalena reatou os estudos universitários. Mas uma noite, no quarto em desordem, quando estavam ambos nus, e Herzog, ao levantar o lençol, fez um reparo ríspido aos velhos livros que estavam por baixo (grandes volumes empoeirados de uma antiga enciclopédia russa), ela explodiu. Começou a gritar-lhe, atirou-se para cima da cama, rasgando cobertores e lençóis, atirando livros ao chão, enterrando as unhas nas almofadas, soltando um grito selvagem e abafado. Havia sobre o colchão um resguardo plástico que agarrou com ímpeto e torceu, amaldiçoando-o ainda áspera, inarticuladamente, com uma espuma branca aos cantos da boca.
Herzog levantou o candeeiro tombado. — Madalena, não achas que devias tomar qualquer coisa... para isto? — Estupidamente avançou uma mão para a acalmar, e ela imediatamente se endireitou e o esbofeteou, demasiado desajeitadamente para o magoar. Saltou para ele, de punhos fechados, socando, não como uma mulher, mas oscilando como um lutador de rua. Herzog voltou-se e recebeu os golpes nas costas. Não havia nada a fazer. Ela estava doente.
Talvez tenha sido indiferente eu não lhe ter batido. Talvez tivesse tornado a conquistar-lhe o amor. Mas posso dizer-lhe que a minha mansidão durante estas crises a enfurecia, como se eu estivesse a tentar vencê-la no jogo da religião. Sei que o senhor discutia com ela ágape, e outras ideias elevadas desse género, mas a menor alusão da minha parte punha-a num frenesim. Julgava-me um charlatão. Para o seu espírito paranóico eu estava desintegrado nos meus elementos primitivos. Épor isso que presumo que a atitude dela se poderia ter modificado se eu a açoitasse. A paranóia talvez seja um estado de espírito normal nos selvagens. E se a minha alma, fora do tempo e do espaço adequado, experimentasse estas emoções mais intensas, ninguém mo perdoaria. Nem você, com a sua benevolência para com as boas intenções. Li o que escreveu sobre o realismo psicológico de Calvino. Espero que não se importe que eu afirme que revela uma concepção miserável, baixa e malévola da natureza humana. É assim que eu vejo o seu Freudianismo Protestante.
Edvig manteve-se calmamente sentado durante a descrição de Herzog do ataque no quarto, esboçando um sorriso. Depois perguntou: — Porque acha que isso teria sucedido?
— Talvez por causa dos livros. Interferência nos estudos dela. Se digo que a casa está suja, um nojo, pensa que estou a criticar-lhe o espírito e a forçá-la aos velhos trabalhos caseiros. Sem respeito pelos seus direitos como pessoa...
As respostas emocionais de Edvig eram insatisfatórias. Quando necessitava de uma reacção sensível, só podia esperá-la de Valentim Gersbach. Por conseguinte, fazia-o confidente dos seus problemas. Mas a princípio, ao tocar a campainha da porta dos Gersbachs, tinha de enfrentar a frigidez (não podia compreendê-la) de Phoebe Gersbach, que vinha abrir. Apresentava um aspecto extremamente abatido, seco, pálido, cansado. Certamente — a paisagem de Connecticut estendia-se, elevava-se, contraía-se, abria as suas profundezas e a água do Atlântico brilhava — , certamente Phoebe sabia que o marido dormia com Madalena. E Phoebe tinha um único sentido na vida, um fim, guardar o marido e proteger o filho. Atendendo ao toque da campainha, abria a porta ao louco, sensível, sofredor, Herzog. Viera ver o amigo.
Phoebe não era forte; a sua energia era limitada. Devia ter passado para além da ironia. Quanto a piedade, porque havia de ter piedade dele? Não por adultério — facto demasiado vulgar para ser tomado a sério. De qualquer forma, para ela, possuir o corpo de Madalena nunca lhe pareceria grande coisa. Podia ter-se apiedado da estúpida falta de perspicácia de Herzog, da forma desajeitada de exprimir os seus problemas de uma forma altamente intelectualizada; ou simplesmente do seu sofrimento. Mas, provavelmente, os seus sentimentos reduziam-se ao âmbito da própria vida. Moisés estava certo de que ela o acusava de um agravamento das ambições de Valentim — Gersbach, o homem público, Gersbach, o poeta, o intelectual da televisão, proferindo conferências em Hadassah sobre Martin Buber. O próprio Herzog o apresentara nos meios intelectuais de Chicago.
— Val está no escritório — dizia ela. — Desculpe, tenho de aprontar o miúdo para ir ao Templo.
Gersbach estava a arranjar estantes. Obstinado, pesado, com movimentos lentos, media a madeira, a parede e rabiscava números no estuque. Manobrava com mão de mestre o nível de bolha de ar, e fixava as cavilhas de madeira. Com a sua cara larga, de um ruivo-escuro, judiciosa, o peito amplo e a perna artificial que o obrigava a ficar rigidamente de pé, concentrava-se na escolha de uma tábua a que atestar a broca eléctrica enquanto ouvia o relato de Herzog acerca do estranho ataque de Madalena.
— íamos para a cama.
— Bem? — esforçou-se por ser paciente.
— Ambos nus.
— Não tentaste nada? — indagou Gersbach. Transparecia-lhe um tom severo na voz.
— Eu? Não. Ela tinha erguido uma muralha de livros russos em volta. Vla-dimir de Kiev, Tikhon Zadonsky. Na minha cama! Não basta terem perseguido os meus antepassados! Ela esquadrinha a biblioteca toda. Coisas que estão por baixo de pilhas onde ninguém mexe há cinquenta anos. Os lençóis estão cheios de pedaços esfarelados de papel amarelo.
— Queixaste-te outra vez?
— Talvez me tenha queixado, um pouco. Cascas de ovos, ossos de costeletas, latas por baixo da mesa, por baixo do sofá... É mau para June.
— Aí está o teu erro! Aí mesmo — ela não suporta esse tom enfadado e autoritário. Se esperas que eu te ajude a resolver isto, tenho de te falar francamente.
Tu e ela — não é segredo para ninguém — são as duas pessoas de quem mais gosto. Portanto, tenho de te avisar, Chaver, não te metas em pormenores mesquinhos. Deixa todas essas miudezas porcas e comporta-te duma forma mais elevada e mais séria.
— Bem sei — replicou Herzog — que está a passar por uma longa crise... procurando-se. E sei que tenho maus modos, por vezes. Tenho estado a tratar-me desse assunto com o Edvig. Mas sábado à noite...
— Tens a certeza de que não tentaste?
— Não. Acontece que tínhamos tido relações na noite anterior. Gersbach parecia extremamente zangado. Fitou Moisés com os seus olhos
de um ruivo-escuro flamejante e disse:
— Não te perguntei nada disso. Referi-me só à noite de sábado. Tens de aprender a responder ao que te perguntam, que diabo. Se não te entendes comigo, nada há que possa fazer por ti.
— Porque não me hei-de entender contigo? — Moisés estava perplexo com esta veemência, com o olhar feroz e cintilante de Gersbach.
— Não te entendes. És terrivelmente evasivo.
Moisés ficou a considerar a acusação, sob o intenso olhar castanho-rubro de Gersbach. Tinha olhos de profeta, de Shofat, sim, de juiz de Israel, de rei. Pessoa misteriosa, Valentim Gersbach. — Tivemos relações a noite passada. Mas mal terminaram, ela acendeu a luz, pegou num daqueles alfarrábios russos empoeirados, pousou-o sobre o peito e recomeçou a lê-lo. Estava ainda eu a deixá-la, e já ela estendia o braço para o livro. Nem um beijo. Nem mais um contacto. Apenas o nariz, crispado.
Pelos lábios de Valentim perpassou um leve sorriso.
— Talvez vocês devessem dormir separados.
— Eu podia mudar-me para o quarto da pequena, suponho. Mas June não pára quieta. Anda de noite a passear, ensonada. Acordo e encontro-a junto da minha cama. Molhada, muitas vezes. Está a ressentir-se do que se passa à sua volta.
— Deixa lá a criança. Não a metas nisto.
Inclinando-se e endireitando-se, como um gondoleiro. — Expliquei-te a semana passada... — continuou ele.
— Mais valia repetires-me. Estou num estado... — retorquiu Herzog.
— Agora ouve-me. Vamos recapitular.
A dor afectava — quando positivamente ferido — o belo rosto de Herzog. Qualquer pessoa jamais ofendida pela sua presunção podia agora sentir-se vingada vendo nele sinais de um desmoronar. Era quase ridícula a sua mudança. E os discursos que Gersbach lhe fazia — eram tão ardentes, tão veementes, tão densos, e ridículos também, que mais pareciam uma paródia do desejo intelectual de um sentido mais elevado, de profundidade, de qualidade. Moisés sentou-se junto à janela, em pleno sol, ouvindo. Os cortinados com as suas varetas douradas encontravam-se sobre a mesa, entre tábuas e livros. — De uma coisa podes estar certo, bruder — disse Valentim. — Não puxo para nenhum dos lados. Em tudo isto, não tenho parti pris. — Valentim adorava usar expressões ídixes, aliás, de as não usar correctamente. Os antecedentes ídixes de Herzog eram distintos. Ouvia com instintivo sentimento de superioridade o sotaque de carniceiro, de carroceiro, de plebeu, de Valentim e censurava-se por isso. — Meu Deus! que velhos preconceitos de família, absurdos de um mundo perdido. — Vamos acabar com todo esse shtick — propôs Gersbach. — Supondo que fosses um patife. Supondo mesmo que fosses um criminoso. Não há nada, nada, que possas fazer que abale a minha amizade. Não é aldrabice e bem o sabes! Sei perfeitamente o que tens feito por mim.
Moisés, mais uma vez atónito, perguntou. — Que fiz eu por ti? — Que raio! Hob es in drerd. Sei que Mady é uma cadela. E pensas que nunca me apeteceu dar um pontapé na Phoebe?! Aquela Klippa! Mas é assim a natureza feminina. — Com um movimento da cabeça endireitou os cabelos. Tinham profundezas de um rubro-escuro. Atrás estavam cortados cerces. — Ocupaste-te dela durante algum tempo, claro, bem sei. Mas se tem um pai terrível e uma Kvetsch duma mãe, que mais pode um homem fazer? E não esperes nada em troca.
— Ora, evidentemente. Mas gastei uns vinte mil dólares num ano. Tudo o que herdei. Agora temos esta porcaria de casinhoto em Lake Park com os comboios a passar toda a noite. Os canos fedem. A casa está cheia de imundice, lixo, livros russos e de roupa da criança por lavar. E aqui estou eu, recambiando garrafas de Coke e aspirando, queimando papéis e apanhando do chão ossos de vitela.
— A cadela está a pôr-te à prova. És um professor importante, convidado para conferências, com uma correspondência internacional. És um ferimm-ter mensch.
Moisés não podia de forma alguma deixar passar isto. Emendou calmamente — Berimmeter.
— Fe, be, que importa. Talvez o problema não seja tanto a tua reputação como o teu egoísmo. Podias ser um autêntico mensch. Tem-lo dentro de ti. Mas envolve-lo em todos estes problemas egoístas. É demais... uma pessoa tão válida morrer por amor. Desgosto. Que sorte de cão!
Lidar com Valentim era como lidar com um rei. Tinha um punho forte. Podia ter segurado um ceptro. Era um rei, um rei na emoção, e as profundezas do seu coração eram o seu reino. Apropriava-se de todas as emoções à sua volta, como que por direito divino ou espiritual. Podia fazer mais com elas e, portanto, delas se assenhoreava pura e simplesmente. Era, além disso, um homem grande, demasiado grande para o que não fosse a verdade. (Mais uma vez, a verdade!) Herzog experimentava um fraco pela grandeza, e mesmo pela falsa grandeza (seria esta alguma vez inteiramente falsa?).
Saíram para aclarar ideias ao fresco ar de Inverno. Gersbach com o seu casacão de cinto apertado, cabeça descoberta, exalando um bafo nevoento, desbravando a neve com a única perna. Moisés baixara a aba do chapéu de veludo de um verde mortiço. Os seus olhos não podiam suportar o brilho.
Valentim falava como um homem que emergira duma terrível derrota, sobrevivente de sofrimentos que poucos poderiam compreender. O pai morrera de esclerose. Havia de vir a tê-la também, e disso esperava morrer. Falava da morte majestosamente — não havia outra palavra para designar a forma como o fazia — , com os olhos extraordinariamente espiritualizados, grandes, ricos, vivos, ou, pensava Herzog, como o fundo da alma dele, quente e cintilante.
— Ora quando perdi a perna — contou Gersbach — com sete anos, em Saratoga Springs, correndo atrás do homem dos balões; ele tocava um pequeno fifel. Quando enfiei por entre os vagões de mercadorias, rastejando por baixo deles. Felizmente o guarda-freio descobriu-me logo que a roda me decepou a perna. Envolveu-me no casaco dele e correu comigo nos braços para o hospital. Quando dei acordo de mim, o nariz sangrava-me. Sozinho no quarto. — Moisés ouvia, lívido; a geada não lhe alterava a cor. — Inclinei-me — continuou Gersbach, como se relatasse um milagre. — Uma gota de sangue caiu no chão, e, quando salpicou, vi um ratinho debaixo da cama, que parecia estar a fitar o salpico. Afastou-se recuando, movia a cauda e os bigodes. E o quarto transbordava de sol fulgurante... — (Há tempestades no próprio Sol, mas aqui tudo é calmo e temperado, pensou Moisés.) — Havia um pequeno mundo debaixo da cama. Então tive consciência de que perdera a minha perna.
Valentim teria negado que as lágrimas que lhe afloravam os olhos eram por si próprio. Não: diabos levem isso, teria dito. Não eram por si. Mas por aquele miúdo. Havia histórias sobre si próprio também que Moisés contara uma centena de vezes, de forma que não podia queixar-se do gosto pela repetição de Gersbach. Cada pessoa tem o seu reportório de poemas. Mas Gersbach quase sempre chorava, um choro estranho, pois as suas longas pestanas reviradas ficavam coladas; era sensível, mas parecia rude, com a cara larga e robusta, de barba cerrada, e com o seu queixo francamente brutal. E Moisés reconhecia que, segundo ele próprio, quanto mais o homem sofre mais singular se torna, e concordava de boa vontade que Gersbach sofrera mais duramente, que a sua agonia sob o rodado de uma locomotiva devia ter sido mais profunda que fosse o que fosse que ele, Moisés, tivesse sofrido. O atormentado rosto de Gersbach estava lívido como pedra, ponteado dos pêlos duros da sua barba ruiva. O lábio inferior quase lhe desaparecera sob o superior. A sua mágoa enorme, a sua mágoa quente! A sua mágoa fundida.
Dr. Edvig escreveu Herzog, A sua opinião, muitas vezes repetida, é de que Madalena tem uma natureza profundamente religiosa. Por alturas da sua conversão, antes de nos casarmos, fui mais do que uma vez com ela à igreja. Recordo-me nitidamente... Em Nova Iorque...
Por insistência dela. Uma manhã, quando Herzog a levou de táxi até à porta da igreja, ela disse que ele tinha de entrar. Devia. Afirmava que não eram possíveis quaisquer relações entre ambos se não lhe respeitasse a fé. — Mas eu não percebo nada de igrejas — replicara Moisés.
Ela desceu do táxi e subiu apressadamente a escadaria, esperando que a seguisse. Ele pagou ao motorista e alcançou-a. Empurrando-a com o ombro, ela abriu a porta. Levou a mão à testa e fez o sinal da cruz, como se o tivesse feito durante toda a vida. Aprendera no cinema, provavelmente. Mas o olhar de terrível ansiedade, de dolorosa perplexidade e apelo no seu rosto — de onde vinham? Madalena com o fato com gola de esquilo, o largo chapéu, avançava de saltos altos. Ele seguia lentamente, com o sobretudo mesclado pelas costas, tirando o chapéu. O corpo de Madalena parecia concentrado em cima, no peito e nos ombros, e mostrava um rosto corado pela excitação. Trazia o cabelo severamente arrepiado, por dentro do chapéu, mas escapavam-se-lhe madeixas formando caracóis aos lados. A igreja era um edifício novo — pequeno, frio, escuro, com um verniz rebrilhando nos bancos de carvalho, e a mancha das chamas hirtas junto ao altar. Madalena ajoelhou-se na nave. Afundava-se, deixava-se cair, desejaria estender-se no chão e apertar as tábuas contra o coração — reconhecia ele. Tapando com as mãos os dois lados do rosto, como um cavalo de antolhos, sentou-se numa cadeira. Que fazia ali? Era marido, era pai. Era casado, era judeu. Porque estava na igreja?
As campainhas tilintaram. O padre, rápido e brusco, acabou de algaraviar o seu latim. Nos responsos, a clara voz aguda de Madalena sobressaía entre as outras. Fez o sinal da cruz. Ajoelhou-se na nave. E ei-los de novo na rua; a cara dela retomara a cor habitual. Sorriu e propôs: — Vamos a qualquer sítio que seja agradável tomar o pequeno-almoço. Moisés disse ao motorista que fosse ao Plaza.
- Não estou vestida para isso — replicou ela.
— Nesse caso, levo-te à Leitaria de Steinberg que, de qualquer forma, prefiro.
Mas Madalena estava já a pôr bâton, dando um jeito à blusa, e colocando melhor o chapéu. Como podia ser linda! Tinha o rosto alegre e redondo, cor-de-rosa, e olhos de um claro azul. Muito diferente do terrível gelo menstrual das suas raivas, do olhar de assassina. O porteiro veio a correr da sua guarita rococó em frente do Plaza. O vento soprava com força. Palmeiras e carpetes de um tom rosa, cintilações, criados.
Não percebo bem o que pretende significar com o termo «religioso». Uma mulher religiosa pode descobrir que não gosta de um amante ou de um marido. Mas se o odiar? Se continuamente lhe desejar a morte? Se a desejar ainda mais ardentemente ao terem relações? Se no acto do amor ele lhe vir esse desejo brilhando nos olhos azuis como se fosse a oração de uma donzela? Ora, eu não sou ingénuo, Dr. Edvig. Quem me dera por vezes sê-lo. Pouca utilidade tem possuir-se um espírito complexo sem se ser realmente um filósofo. Não espero que uma mulher religiosa seja amável, uma gatinha com modos de santa. Mas gostaria de saber como é que o senhor decidiu que ela é profundamente religiosa.
De certo modo entrei numa competição religiosa. O senhor, Madalena e Valentim Gersbach, todos a falarem-me de religião — portanto pus-me a observá-la até ao fundo. A ver como seria agir com humildade. Como se uma tal passividade idiota, um rastejar masoquista ou a cobardia fossem humildade, ou obediência, e não uma terrível decadência. Repugnante! Oh, paciente Griselda Herzog! Eu coloquei as estufas por um acto de amor, e deixei a minha filha em boas condições, pagando a renda, a gasolina, o telefone e o seguro, e fazendo a minha mala. Mal eu saí, Madalena, a sua santa, enviou a minha fotografia à polícia. Se alguma vez eu tornasse a pôr o pé na soleira da porta para vera minha miúda ligaria para a esquadra. Tinha pronto um mandato de captura. A criança era-me trazida e levada por Valentim Gersbach, que também me fornecia conselhos e consolações, religião.
Trazia-me livros (de Martin Buber). Obrigava-me a estudá-los. Eu sentava-me a ler. Eu e Vós, Entre Deus e o Homem, A Fé Profética, numa febre nervosa. Depois discutíamo-los.
Estou certo de que conhece os pontos de vista de Buber. É errado fazer de um homem (um sujeito) uma coisa (um objecto). Por meio de um diálogo espiritual, a relação Eu-Coisa torna-se uma relação Eu-Vós. EDeus entra e sai da alma humana. E os homens entram e saem das outras almas. Por vezes entram e saem na cama dos outros, também. Tem-se uma conversa com um homem. Tem-se relações com a mulher dele. Aperta-se a mão do pobre homem. Olha-se nos olhos. Dá-se-lhe consolação. Entretanto reorganiza-se-lhe a vida. Elabora-se-lhe o orçamento dos anos seguintes. Priva-se da filha. E, não sei bem como, tudo isto é traduzido misteriosamente em profundidade religiosa. Finalmente, tem-se um sofrimento superior ao dele, porque se é mais pecador. E assim se trama um tipo, entrando e saindo. O senhor disse-me que as minhas suspeitas hostis de Gersbach eram in-fundamentadas, e, presumia mesmo, que paranóicas. Não sabia que ele era amante de Madalena? Ela não lhe contou? Não, ou não teria dito aquilo. Tinha boas razões para se sentir seguida por um detective particular. Não havia nisso nada de neurótico. Madalena, a sua doente, contou-lhe o que muito bem quis. O senhor não sabia nada. Não sabe nada. Enganou-o redondamente. E o senhor apaixonou-se por ela, não é verdade? Tal e qual como ela planeara. Queria que a ajudasse a ver-se livre de mim. Fá-lo-ia de qualquer forma. Encontrou em si, contudo, um instrumento útil. Quanto a mim, era seu doente...
Prezado Governador Stevenson, escreveu Herzog, agarrando-se ao assento no comboio trepidante. Não pretendo mais que dizer-lhe umas palavras, meu amigo. Apoiei-o em 1952. Como muitos outros, pensei que este país pudesse estar amadurecido para viver a sua época áurea no mundo e para a inteligência ter finalmente o seu lugar nos problemas públicos — um pouco mais à maneira do Erudito Americano de Emerson, ocuparem-se os intelectuais do que lhes compete. Mas o instinto do povo foi rejeitar a intelectualidade, as suas imagens, ideias, desconfiando delas talvez como se fossem estrangeiras. Preferia depositar a sua confiança em bens visíveis. Assim tudo permanece inalterável para os que pensam muito e nada realizam, e para os que nada pensam e tudo fazem. Parece que o senhor anda também a trabalhar para eles. Estou certo de que foi difícil o papel de Coriolano para ganhar as boas graças de eleitores idiotas, especialmente em estados frios como New Hampshire. Talvez o senhor tenha contribuído com algo de útil na última década, mostrando o ultrapassado poder pessoal do «humanista», o olhar do «homem inteligente» lamentando a perda da sua vida privada, sacrificada às tarefas públicas. Ora! o general ganhou porque exprimiu um sentimentalismo geral de baixo nível.
Bem, Herzog, que pretendes tu? Um anjo do céu? Este comboio atropelá-lo-ia.
Querida Ramona, não deves pensar, lá por que desapareci sem dar satisfações, que não me importo contigo. Importo-me! Sinto-te a meu lado, muitas vezes. E na semana passada, naquela festa, quando te vi no outro extremo da sala, com o teu chapéu de flores, o cabelo acompanhando-te as maçãs do rosto, tão vivas, tive um vislumbre do que seria amar-te.
Exclamou mentalmente: Casa-te comigo! Sê a minha mulher! Acaba com os meus problemas! e hesitou ao notar a sua precipitação, a sua fraqueza, a natureza muito característica duma tal explosão, pois a reconhecia como tipicamente neurótica. Temos de ser o que somos. É isso a necessidade. E que somos; nós? Bem, neste momento tentava ligar-se a Ramona enquanto fugia dela. E pensando que estava a prendê-la, prendia-se a si próprio, e o resultado desta esperteza saloia podia ser cair ele próprio no laço. Auto-desenvolvimento, auto-realização, felicidade — eram estes os rótulos sob que figuravam os seus devaneios. Ah, pobre tipo! — e Herzog coincidiu momentaneamente com o mundo objectivo ao observar-se a si próprio. Era capaz de sorrir para Herzog e desprezá-lo. Mas o facto permanecia. Eu sou Herzog. Tenho de ser esse homem. Não há ninguém que o substitua. Depois de sorrir, tem de voltar para o seu eu e compreender. Mas espera-te uma tempestade cerebral — a terceira senhora Herzog! Eis o que te fizeram as fixações infantis, os traumatismos precoces, que o homem não pode, qual cigarra, largar, cantando, no mato. Ainda não existiram indivíduos autênticos, aptos para viver, aptos para morrer. Só doentes trágicos ou loucos tristes e ridículos que esperavam por vezes realizar qualquer ideal pelo simples facto de o quererem, de o desejarem ardentemente. Mas em geral intimando toda a humanidade a crer neles.
Sob muitos aspectos, Ramona era realmente uma esposa desejável. Era compreensiva. Educada. Bem estabelecida em Nova Iorque. Dinheiro. E sexualmente, uma obra-prima de naturalidade. Que seios! Belos ombros largos. O ventre profundo. Pernas curtas e um pouco arqueadas mas, por isso mesmo, especialmente atraentes. Tudo isto. Mas o amor e ódio de Herzog pertenciam ainda a alguém. Tinha ainda contas a ajustar.
Querida Zinka, sonhei contigo a semana passada. No meu sonho dávamos um passeio no Ljubljana, e eu tinha de ir buscar o bilhete para Trieste. Sentia pena de partir. Mas era melhor para ti que o fizesse. Nevava. Nevava de facto, não só no sonho. Mesmo quando fui a Veneza. Este ano andei por meio mundo, e vi uma tal quantidade de gente — parece-me que vi todos menos os mortos. De quem andava talvez à procura. Caro Sr. Nehru, julgo que tenho algo de muito importante a dizer-lhe. Prezado Sr. King, os negros do Alabama encheram-me de admiração. A América branca corre o risco de ficar despoliticalizada. Esperemos que este exemplo dos negros penetre no transe hipnótico da maioria. A questão política nas democracias modernas refere-se à realidade das questões públicas. Se todas estas se transformarem em matéria de fantasia, a velha ordem política termina. Eu, por mim, desejo manifestar o reconhecimento da dignidade moral do vosso grupo. Não dos Powells, que pretendem ser tão corruptos como os demagogos brancos, nem dos Muslims, baseados no ódio.
Caro Sr. Comissário Wilson — Fiquei sentado a seu lado na Conferência sobre Narcóticos no ano passado — Herzog, um indivíduo entroncado, de olhos escuros, cicatriz no pescoço, grisalho, com um fato da Ivy League (escolhido pela mulher), de mau corte (demasiado juvenil para a minha figura). Não sei se me permite fazer algumas observações à sua força policial. Não é culpa de nenhum particular o facto de não se poder manter a ordem civil numa comunidade. Mas isto diz-me respeito. Tenho uma filhinha que vive perto do Parque Jackson, e o senhor sabe tão bem como eu que os parques não estão devidamente policiados. Infestam-nos hordas de jovens delinquentes. Prezado Sr. Senador, precisará o Exército de ter o míssil Nike no Point? É perfeitamente fútil, creio eu, obsoleto e ainda por cima ocupa espaço. Há muitos outros locais na cidade. Porque não se transfere esse traste inútil para uma região deserta?
Depressa, depressa, mais! O comboio rasgava velozmente a paisagem. Passou por New Haven. Corria a todo o vapor em direcção a Rhode Island. Herzog, olhando vagamente pela janela manchada, imóvel, fechada, sentia o espírito ávido e inquieto fluindo, falando, penetrando as coisas, fazendo juízos claros, pronunciando explicações finais, apenas palavras necessárias. Experimentava um êxtase redemoinhante. Sentia simultaneamente que os seus juízos revelavam o ilimitado e infundamentado autoritarismo e obstinação, o gosto por levantar questiúnculas que estava incrustado na sua constituição mental.
Caro Moisés E. Herzog: Desde quando é que dedicas um tal interesse aos problemas sociais, ao mundo externo! Até há pouco, tens levado uma vida de inocente inércia. Mas subitamente desce sobre ti um espírito fáustico de : descontentamento e de reforma universal. Censura. Invectiva.
Ex.mos Srs.: O Serviço de Informação teve a amabilidade de me enviar uma encomenda de Belgrado contendo vestuário de Inverno. Não desejava levar os meus casacões para Itália, o paraíso dos exilados, e arrependi-me, i Nevava quando cheguei a Veneza. Não consegui entrar no vaporetto com a minha mala.
Prezado sr. Udall: Um engenheiro de petróleos que encontrei recentemente no Noroeste informou-me de que as nossas reservas de combustível estão quase esgotadas e que estão concluídos os planos para fazer explodir a crosta polar com bombas de hidrogénio para alcançar o petróleo que está por baixo. Será verdade?
Shapiro!
Herzog tinha muito que explicar a Shapiro, e este estava decerto à espera de explicações. Shapiro não era bem disposto embora tivesse um aspecto bem disposto. Possuía um nariz afilado e colérico e os lábios pareciam afastar a cólera com um sorriso. As maçãs do rosto tinha-as brancas e nédias, e cabelo ) fino penteado a direito para trás, brilhante, à moda dos anos vinte, de Rudolfo • Valentino ou Ricardo Cortez. A sua figura era avantajada, mas usava trajos elegantes.
Contudo, Shapiro tinha razão, desta vez. Shapiro, devia ter-te escrito mais cedo a contar-te... a pedir desculpa... a rectificar... Mas tenho uma esplêndida desculpa — complicações, doença, desordens, aflições. Escreveste uma bela monografia. Espero tê-lo acentuado na minha crítica. A memória abandonou-me completamente em certo ponto, e eu estava perfeitamente equivocado quanto a Joachim da Floris.
Tu e Joachim têm ambos de me desculpar. Encontrava-me num terrível estado. Tendo aquiescido em fazer a crítica ao estudo de Shapiro antes do golpe que o afectara, Herzog não conseguia levá-la a bom termo. Transportara consigo o enorme volume pela Europa, na mala. Causara-lhe muitas dores do lado que carregava; temeu arranjar uma hérnia devido a isso e incorreu em taxas consideráveis por excesso de peso. Herzog continuava a lê-lo por uma questão de disciplina, com um sentido de culpa cada vez mais pesado. Na cama, em Belgrado, no Metropol, entre garrafas de sumo de cereja, com os tróleis zunindo lá fora na noite gelada. Finalmente, em Veneza, sentei-me a escrever a crítica.
Seguem as desculpas pelo trabalho mal alinhavado que então fiz: Presumo, visto que está em Madison, Wisconsin, que tenhas ouvido contar pelo que passei em Chicago, em Outubro último. Deixámos a casa em Ludey-ville há algum tempo. Madalena queria terminar o seu doutoramento em Línguas Eslavas. Pretendia estudar uma dezena de cadeiras e interessou-se também por sânscrito. Talvez consigas adivinhar como ela se entregava às coisas — os seus interesses, paixões. Lembras-te que quando nos vieste visitar ao campo, há dois anos, discutimos sobre Chicago? Se seria seguro viver naquela terra.
Shapiro com o seu fato de risquinhas de bom corte, sapatos pontiagudos, como que vestido para jantar, sentou-se no relvado de Herzog. Tem um perfil de homem esguio. O nariz é afilado mas a garganta encurva-se e as maçãs do rosto pendem-lhe um pouco em direcção aos lábios. Shapiro é muito cortês. E ficou impressionado com Madalena. Achou-a tão bela, tão inteligente. Bem, é-o de facto. A conversa foi espirituosa. Shapiro viera ostensivamente ver Moisés para ouvir «conselhos» — na realidade para pedir um favor — mas apreciava a companhia de Madalena. Ela excitava-o e ele ria enquanto bebia a sua água de quinino. O dia estava quente, mas não desapertou a gravata conservadora. Os sapatos negros, afunilados, cintilavam; e tem pés gordos, com um dorso saliente. Na relva, aparada por si próprio, Moisés sentou-se com as suas velhas calças coçadas. Movido por Madalena, Shapiro estava particularmente vivo, quase guinchando quando ria, com um riso cada vez mais frequente, mais selvagem, infundamentado. As suas atitudes tornavam-se simultaneamente mais formais, medidas, pensadas. Falava em longas frases, proustianas, poderia ter julgado, mas na realidade germânicas, e incrivelmente bombásticas. — No conjunto não ousaria analisar o método da tendência sem o considerar mais profundamente — dizia ele. Pobre Shapiro! Que bruto que era! Com aquele riso impertinente e desenfreado e a espuma branca que se lhe formava nos lábios quando atacava alguém. Madalena ficou também muito impressionada com ele e afivelou o seu estilo solene. Acharam-se reciprocamente muito estimulantes.
Ela trouxe de casa as garrafas e copos no tabuleiro, queijo, pasta de fígado, bolachas, gelo, arenques. Vestira calças azuis e uma blusa chinesa amarela, presente que eu lhe comprara na 5.a Avenida. Disse que era atreita a insolações. Em passos rápidos, avançou da sombra da casa para a relva cintilante, afastando-se o gato do seu caminho, os copos tilintando. Apressou-se pois nada desejava perder da conversa. Ao inclinar-se para dispor as coisas na mesa do jardim, Shapiro não conseguia tirar os olhos das formas que se moviam por trás do tecido fechado de algodão.
Madalena, «perdida no bosque», estava ávida de conversas intelectuais. Shapiro conhecia todos os campos da literatura — lia todas as publicações; tinha relações com livreiros de todo o mundo. Quando descobriu que Madalena não só era uma beleza mas que estava a preparar-se para um doutoramento em Línguas Eslavas, exclamou: — Que maravilha. — E ele próprio sabia, traindo a cultura pela afectação, que para um judeu russo de Chicago Ocidental aquela expressão «Que maravilha!» era inadequada. Um judeu alemão de Kenwood bem a poderia ter dito — dinheiro velho, trabalhando num negócio de tecidos desde 1880. Mas o pai de Shapiro não possuíra dinheiro e vendera maçãs estragadas na Rua de South Water num carrinho. Havia mais da verdade da vida nas maçãs tocadas, estragadas, e no velho Shapiro, que cheirava a cavalo e a fruta que em todas aquelas citações eruditas.
Madalena e o digno visitante falavam da Igreja russa, de Tikhon Zadonsky, Dostoievsky e Herzen. Shapiro era prolixo em citações eruditas, pronunciando correctamente todas as palavras estrangeiras, quer em francês, quer em alemão, servo, italiano, húngaro, turco ou dinamarquês, proferindo-as com ênfase e rindo — aquele riso cheio de vida, ingénuo, impertinente, indirecto, de dentes húmidos e cabeça atirada para trás até quase tocar os ombros. Ah!
Os espinhos estalavam («como o estalar dos espinhos sob a panela é o riso dos loucos»). Numerosas cigarras cantavam. Este ano, parecia que nasciam do chão. Sob um tal estímulo, o rosto de Mady apresentava estranhas reacções. A ponta do nariz mexia-se, e as pestanas que não precisavam de cosméticos, erguiam-se com um arrebatamento nervoso, repetidamente, como se pretendesse atingir uma visão mais nítida. O Dr. Edvig afirmava ser um sintoma típico de paranóia. Por baixo das grandes árvores, rodeada pelas colinas de Berkshire, sem qualquer casa em redor afectando o panorama, a relva medrava fresca e farta, a delgada e fina relva de Junho. As cigarras de olhos vermelhos, figuras atarracadas de cores vivas, estavam molhadas depois da muda, encharcadas, imóveis; mas ao secarem, arrastavam-se, saltitavam, avançavam aos tropeções, voavam, e nas árvores altaneiras mantinham uma contínua cadeia de som, trinando.
A cultura — as ideias — tinham substituído a Igreja no coração de Mady (e que estranho órgão devia ser esse!). Herzog estava sentado, embrenhado nos seus próprios pensamentos, no relvado de Ludeyville, de velhas calças rotas, pés descalços, mas com seu rosto de cavalheiro judeu educado, lábios finos, olhos escuros. Observava a mulher, que amava apaixonadamente (com um coração agitado e colérico, outra raridade entre os corações), enquanto ela revelava a riqueza do seu espírito a Shapiro.
— O meu russo está longe de ser o que podia ser — confessava Shapiro.
— Mas o que você sabe sobre o meu tema! — retorquia Madalena. Estava muito satisfeita. O rosto corado resplandecia-lhe, e os olhos azuis sobressaíam entusiásticos e brilhantes.
Abordaram um novo tema — a revolução de 1848. Shapiro suava pelo colarinho engomado. Só um operário de metalurgia croata a quem os dólares tivessem dado volta à cabeça teria comprado uma daquelas camisas de riscas. E quais as suas opiniões sobre Bakunin, Kropotkin? Conhecia a obra de Com-fort? Conhecia. Conhecia Poggioli? Sim. E não achava que Poggioli fizera justiça a certas figuras importantes — Rozanov, por exemplo? Pensava que Rozanov não regulava bem em relação a certos assuntos, como o banho ritual judeu, no entanto era uma grande figura, e o seu misticismo erótico era altamente original — altamente. Aqueles russos! Que não tinham eles feito pela Civilização Ocidental, enquanto repudiavam o Ocidente e o ridicularizavam! Madalena, pensava Herzog, estava a ficar quase perigosamente excitada. Sabia, quando a voz lhe fraquejava e a garganta ganhava sons de clarinete, que nela tumultuavam ideias e sensações. E se Moisés não se associasse, se permanecesse ali, segundo as próprias palavras dela, como um parvo, aborrecido, ressentido, provava que não lhe respeitava a inteligência. Ora Gersbach mostrava-se sempre um exímio conversador. Era tão enfático no estilo, tão impressivo no olhar, tinha um aspecto tão perspicaz que as pessoas se esqueciam de inquirir se o que dizia tinha sentido.
O relvado ficava num alto, com um amplo panorama sobre campos e bosques. Com a forma duma grande lágrima verde, tinha um ulmeiro cinzento no ponto mais estreito, e a casca da árvore enorme, a morrer de míldio, tingira-se de um cinzento purpúreo. Poucas folhas para aquela altura. Um ninho de oriolos, qual coração cinzento, pendia dos ramos. O véu de Deus pousado sobre as coisas transforma-as todas em enigmas. Se não fossem todas tão particularizadas, pormenorizadas e ricas podia alhear-me delas mais calmamente. Mas sou um prisioneiro da percepção, uma testemunha obrigatória. São demasiado excitantes. Entretanto vivo naquela casa de melancolia. Herzog estava aborrecido por causa daquele ulmeiro. Teria de o cortar? Detestava fazê-lo. Entretanto as cigarras cantavam, vibrando os seus ventres, compassada banda tocando numa câmara especial. Aqueles biliões de olhos vermelhos dos bosques circundantes olhavam, observavam o que se passava em baixo, e as agitadas ondas de som afogavam a tarde de Verão. Herzog tinha ouvido poucas coisas tão belas como esta aspereza maciça e contínua.
Shapiro referiu-se a Soloviév — o mais novo. Teria ele realmente tido uma visão, no Museu Britânico, de todos os lugares? Sucedia que Madalena fizera um estudo sobre o jovem Soloviév, e chegara a sua oportunidade. Ganhara já suficiente confiança com Shapiro para falar à vontade — seria apreciada, genuinamente. Fez uma pequena conferência sobre a carreira e pensamento deste falecido escritor russo. O seu olhar ofendido pousou por um momento em Moisés. Queixava-se de que ele nunca a escutava realmente. Queria ser sempre ele a brilhar. Mas não era verdade. Ouvira esta sua conferência sobre o assunto muitas vezes, pela noite fora. Sem coragem para confessar que estava com sono. De qualquer forma, tinha de ser quidpro quo, dadas as condições presentes — enterrados nos longínquos Berkshires — , pois tivera de discutir com ela intrincados pontos de Rousseau e Hegel. Confiava inteiramente nos seus juízos intelectuais. Antes de Soloviév, não falava senão de Joseph de Mais-tre. E antes de Maistre — Herzog rememorou a lista — a Revolução Francesa, Leonor da Aquitânia, as escavações de Tróia de Schliemann, a percepção extra-sensorial, jogos de cartas, depois Ciência Cristã, antes disso, Mirabeau; ou seriam novelas misteriosas (JosephineTey), ou ficção científica (Isaac Asimov)? O entusiasmo era sempre notável. Se mantinha algum interesse constante, era por romances policiais. Ia ao ponto de ler três e quatro por dia.
Negro e quente sob o verde, o solo exalava a sua humidade. Herzog sentia-a nos pés descalços.
De Soloviév, Mady passou naturalmente para Berdyaev, e enquanto falava de Escravatura e Liberdade — o conceito de Sobornost — abriu a embalagem de arenques salgados.
A saliva assomou aos lábios de Shapiro. Rapidamente, levou o lenço dobrado aos cantos da boca. Herzog recordou-se da voracidade dele. No cubículo que compartilhavam na escola, costumava mastigar de boca aberta as suas sanduíches de pão integral e cebola. Agora, perante o cheiro de especiarias e vinagre os olhos de Shapiro humedeciam-se, embora conseguisse manter o aspecto majestoso, bem disposto, de nariz afilado, refinado, ao levar o lenço ao rosto escanhoado. A mão nédia, sem pêlos, os dedos trementes. — Não, não — disse ele — , muito obrigado, Sra. Herzog. Esplêndido! Mas sigo um regime para o estômago. — Um regime! Tinha úlceras. A vaidade impedia-o de o dizer; as implicações psicossomáticas não eram lisonjeiras. Mais tarde, vomitou no lavatório. Deve ter comido lulas, pensou Herzog, que foi obrigado a limpar. Porque é que não usaria a retrete — gordo de mais para se inclinar?
Mas isso fora no fim da visita. Antes, rememorava Moisés, receberam uma visita dos Gersbachs, Valentim e Phoebe. Estacionaram o carrito por baixo da catalpa, então em flor, embora as vagens do ano anterior pendessem ainda dos ramos. Lá saiu Valentim, com o seu andar balanceado, e Phoebe, invariavelmente pálida em todas as estações do ano, chamando-o com a sua voz queixosa — Val... Va-al — Vinha entregar uma caçarola que pedira emprestada, uma daquelas grandes panelas de Madalena, vermelhas como casca de lagosta — Descoware, feitas na Bélgica. Estas visitas deprimiam frequentemente Moisés sem que suspeitasse porquê. Madalena mandou-o buscar mais cadeiras de lona. Talvez fosse o perfume de mel apodrecido das flores brancas da catalpa que o incomodava. Ligeiramente orladas de cor-de-rosa por dentro, pesadas de pólen, tombavam no saibro. Demasiado belas! O pequeno Ephraim Gersbach entretinha-se a fazer um monte com as campainhas. Moisés sentiu prazer em ir buscar as cadeiras, em entrar na desordem bafienta da casa, em descer à segurança pétrea e surda da cave. Levou tempo a trazer as cadeiras.
Quando regressou, falava-se de Chicago. Gersbach, com as mãos nas algibeiras das calças, o rosto acabado de barbear e o cabelo que mais parecia plumas revelando densas profundidades de cobre, dizia que o seu conselho era saírem daquela terra perdida no cabo do mundo. Santo Deus, nada de interesse aqui se tinha passado desde a batalha de Saratoga, para além dos montes. Phoebe, com um semblante cansado e pálido, fumava o seu cigarro, esboçando um sorriso e desejando, provavelmente, que a deixassem em paz. Entre pessoas dogmáticas, cultas ou eloquentes, parecia sentir a sua mesquinhez e insuficiência. Na realidade estava longe de ser estúpida. Tinha belos olhos e um belo peito, boas pernas. Se ao menos se não desse aqueles ares de enfermeira-chefe, deixando as linhas do rosto transformarem-se-lhe em rugas de disciplina...
— Chicago, pois claro! — concordou Shapiro. — Não há melhor universidade. E uma pessoa como a Sra. Herzog, eis o que a cidade precisa também.
Enche a tua boca enorme de arenque, Shapiro!, pensou Herzog, e mete-te na tua vida. Madalena deitou ao marido um rápido olhar de soslaio.
Sentia-se lisonjeada, feliz. Queria que ele se recordasse, se é que se tinha esquecido, de como os outros a valorizavam.
De qualquer forma, Shapiro, a minha disposição não se coadunava com joachim da Floris nem com o destino secreto do homem. Nada me parecia especialmente secreto — tudo era dolorosamente claro. Ouve, disseste há muito tempo, já pomposo quando jovem estudante, que um dia havíamos de chegar as mesmas conclusões, significando que já então havia importantes diferenças entre nós. Acho que devem ter começado naquele seminário sobre Proudhon e nas nossas longas discussões, peripatéticas com o velho Larson, sobre a decadência dos fundamentos religiosos da civilização. Estarão todas as tradições esgotadas, já teriam as crenças dado o que tinham a dar, não será ainda a consciência das massas capaz de um ulterior desenvolvimento! Será esta a crise total da dissolução? Teria chegado o momento diabólico em que morre a sensibilidade moral a consciência se desintegra, e o respeito pela liberdade, pela lei, pela decência pública, tudo o resto cai na cobardia, na decadência, no sangue? As velhas visões da escuridão e do mal de Proudhon não podem ser renegadas. Mas não devemos esquecer como as visões dos génios se tornam rapidamente alimento pronto a servir para os intelectuais. A couve azeda pronta a servir do «Socialismo Prussiano» de Spengler, os lugares-comuns da perspectiva do «mundo perdido», os estimulantes mentais baratos da alienação, a hipocrisia e o palavreado bombástico dos insignificantes sobre Inautenticidade e Perdição. Não posso aceitar estas parvoíces que já cansam. Estamos a referir-nos a toda a vida da humanidade. O tema é demasiado grande, demasiado profundo para uma tal fraqueza, uma tal cobardia — demasiado profundo, demasiado grande, Shapiro. Preocupa-me atrozmente que sejas influenciado para o mau caminho. Uma crítica meramente estética da história moderna! Depois das guerras e dos morticínios em massa! És demasiado inteligente para isso. Herdaste sangue generoso. O teu pai vendia maçãs.
Não pretendo que a minha posição, por outro lado, seja fácil. Somos sobreviventes, na nossa época, de forma que as teorias do progresso não se nos adequam, pois sabemos o preço por que se pagam. Tomarmos consciência de que somos sobreviventes é um choque. Ao torná-la quase se sentem as lágrimas aflorarem aos olhos. Enquanto os mortos seguem o seu caminho, desejamos chamá-los, mas eles partem numa negra nuvem de faces, de almas. Escapam-se em fumo das chaminés das câmaras de extermínio e deixam-nos a evidência do sucesso histórico — o sucesso técnico do Ocidente. Sentimos com um aperto no coração que a humanidade para ele trabalha — para ele trabalha com glória, embora ensurdecida pelas explosões do sangue. Unificados pelas horríveis guerras, instruídos na estupidez brutal pelas revoluções, porfomes dirigidas por «ideólogos» (herdeiros de Marx e Hegel e treinados nos ardis da razão), talvez nós, a humanidade moderna (oxalá!), tenhamos feito o quase impossível, ou seja, aprendido qualquer coisa. Sabe-se que o declínio efim da civilização se recusa a seguir o modelo da Antiguidade. Os velhos impérios são abalados mas os que tinham na sua mão o poder estão mais ricos que nunca. Não digo que a prosperidade da Alemanha seja na verdade agradável de contemplar. Mas é uma realidade, menos de vinte anos após o demoníaco niilismo de Hitler a ter destruído. E a França? A Inglaterra?Não, a analogia do declínio e da queda do mundo clássico não serve para nós. Algo de diferente se passa, e esse algo está mais próximo da visão de Comte — os resultados do trabalho organizado racionalmente — que da de Spengler. De todos os males da estandardização na velha Europa burguesa de Spengler, talvez o pior fosse a pedantice estandardizada dos próprios Spenglers — essa truculência rude nascida no Gymnasium, na cultura administrada por uma burocracia antiquada.
Eu tencionava escrever no campo mais um capítulo sobre a história do Romantismo, como forma assumida pela inveja e ambições plebeias na moderna Europa. As classes plebeias emergentes lutavam por alimento, poder, privilégios sexuais, decerto. Mas lutavam também por alcançar a dignidade aristocrática dos velhos regimes, que na época moderna poderiam reclamar o direito de falar em declínio. Na esfera da cultura, as classes ilustradas recém-formadas provocavam a confusão entre os juízos estéticos e morais. Começaram por reagir colericamente à profanação industrial das paisagens (os «Vales of Tempe» inglês de Ruskin) e acabaram por perder a noção das características morais antiquadas de Ruskin. Chegando finalmente ao ponto de negarem a humanidade das massas industrializadas «banalizadas». Foi fácil a assimilação dos splenglerianos ao totalitarismo. Falta neste campo confirmara responsabilidade dos ariistas. O terem considerado, por exemplo, que a deterioração da linguagem e a sua degradação equivalia a uma desumanização, levou directamente ao fascismo cultural.
Planeei ocupar-me igualmente de toda a questão dos modelos, da imitatio, na história da civilização. Após um longo estudo do ancien regime sentia-me pronto a arriscar uma teoria sobre os efeitos das grandes tradições da corte, da política, do teatro de Luís XIV na personalidade francesa (e portanto europeia). A circunstância do isolamento burguês na época moderna privou os indivíduos da capacidade de experimentarem Grandes Paixões, e é sobre isto que se desenvolve uma das tendências mais fascinantes mas menos simpáticas dos Românticos. (Um dos resultados desta espécie de drama pessoal foi que, para o mundo colonial, a Civilização Ocidental se dramatizou como Aristocrática.) Quando nos visitaste, estava eu a escrever um capítulo, intitulado «O Cavalheiro Americano», uma pequena história da elevação social. Eeis-me eu próprio, em Ludeyville, transformado no proprietário rural Herzog. O GrafPototsky dos Berksbires. Foi um curioso entrelaçar de acontecimentos, Shapiro. Enquanto tu e a Madalena abanavam as cabeças, galanteando-se, fanfarronando, mostrando os dentes limpos e aguçados — as brincadeiras cultas — eu examinava a minha posição. Compreendia que a ambição de Madalena era ocupar o meu lugar no mundo da cultura. Ultrapassar-me. Estava a conseguir o seu máximo de elevação, como rainha dos intelectuais, inflexível erudita. E o teu amigo Herzog contorcendo-se sob aquele salto elegante e afilado.
Ah, Shapiro, o vencedor de Waterloo retirou-se para chorar lágrimas amargas pelos mortos (assassinados por sua ordem). Tal não sucedeu com a minha ex-esposa. Não vive entre dois testamentos contraditórios. É mais forte que Wellington. Deseja viver nas profissões delirantes, como lhes chama Valéry — ocupações em que o instrumento principal é a opinião de nós próprios e em que a matéria bruta é a nossa reputação ou posição.
Quanto ao teu livro, há nele muita história imaginária. Muita dela é meramente ficção utópica. Quanto a isso nada me demoverá da minha opinião. Contudo, achei muito interessante a tua ideia do milenarismo e da paranóia. Madalena, a propósito, afastou-me do mundo instruído, entrou ela para lá, bateu com a porta, e ainda aí se encontra falando mal de mim.
Não era muito original, esta ideia de Shapiro, mas tratava-a de uma maneira clara. Na minha crítica tentei sugerir que os psiquiatras podem escrever histórias fascinantes. Mas não no exercício da sua profissão. Megalomania para Faraós e Césares. Melancolia na Idade Média. Esquizofrenia no século XVIII. E agora aparece este búlgaro, Banowitch, vendo todas as lutas pelo poder em termos de mentalidade paranóica — um espírito curioso e insinuante, esse, convencido que é sempre a loucura que rege o mundo. Um ditador precisa de multidões vivas mas não dispensa também uma multidão de cadáveres. A visão da humanidade como um conjunto de canibais, correndo em bandos, troçando, lamentando os próprios assassinos, transformando o mundo vivo em excremento morto. Não te deixes enganar, caro Moisés Elkanah, com cantilenas de crianças e parlapatices. Corações que palpitam com uma caridade barata e frágil ou com um simplório amor transbordante nunca fizeram história. Os dentes resmungões de Shapiro, a sua voracidade salivante, aquele punhal de úlcera no ventre permitem-lhe visões verdadeiras também. Fontes de sangue humano esguichando de campas recentes! Massacre ilimitado! Nunca o compreendi!
Arranjei uma lista dos traços de paranóia fornecida por um psiquiatra — pedi-lhe que mos escrevesse. Poderia ajudar-me a compreender, pensei. Fê-lo de boa vontade. Meti o papel rabiscado no bolso e estudei-o como às pragas do Egipto. Como «Dom Sfardeia, Kinnim» no Haggadah. Eram eles «Orgulho, Cólera, Excessiva «Racionalidade», Inclinações Homossexuais, Espírito de Competição, Desconfiança da Emoção, Incapacidade de Suportar Críticas, Projecções Hostis, Desilusões». Está lá tudo — tudo! Pensei em Mady em relação a cada categoria, e embora o quadro não esteja ainda completo, sei que não posso abandonar nas mãos dela uma criança pequena. A Mady não é uma Daisy. Daisy é uma mulher rigorosa, com mau humor, mas que merece confiança. Não tem havido problemas com Marco.
Pondo de parte a carta para Shapiro — evocava-lhe muitas passagens dolorosas, o que precisamente devia evitar, se não queria perder os benefícios de umas férias — , passou a dirigir-se ao irmão Alexandre. Querido Shura, escreveu ele, parece-me que te devo 1500 dólares. Que achas, se se arredondarem para 2000? Preciso deles. Para me recompor. Shura era um irmão generoso. Os Herzogs tinham os seus problemas familiares próprios, mas a mesquinhez não figurava entre os seus traços. Moisés sabia que aquele homem rico carregaria num botão e diria ao secretário: — Envie um cheque para esse perdulário Moisés Herzog. — O irmão elegante, corpulento, de cabelos brancos, com o seu fato de classe, casaco de vicunha, chapéu italiano, barba cuidadosamente escanhoada e dedos rosados e tratados com grandes anéis, olhando da sua limousine com arrogância principesca. Shura conhecia toda a gente, pagava a todos e a todos desprezava. Em relação a Moisés, o seu desdém era suavizado por sentimentos familiares. Shura era um autêntico discípulo de Thomas Hobbes. Os interesses universais eram para si uma idiotice. Que não se peça mais do que encher bem a barriga segundo o Leviathan e dar um exemplo hedonístico à comunidade. Divertia Shura o facto de o irmão Moisés gostar tanto dele. Moisés amava a família aberta e quase desesperadamente. O irmão Willie, a irmã Helena, mesmo os primos. Era infantil; bem o sabia. Não podia fazer mais que suspirar, notando como era tão pouco desenvolvido neste aspecto significativo da sua natureza. Por vezes procurava pensar, de acordo com o seu próprio vocabulário, se isto não seria o seu aspecto arcaico, pré-histórico. Tribal, sim. Associado à adoração dos antepassados e ao totemismo.
Também, como tenho tido problemas legais, gostaria que me recomendasses um advogado. Talvez um dos que estavam a trabalhar na empresa de Shura e que nada levasse a Moisés pelos seus serviços.
Compôs de cabeça uma carta a Sandor Himmelstein, o advogado de Chicago que consultara no último Outono, depois de Madalena o ter posto fora de casa. Sandor! A última vez que estivemos em contacto, escrevi-te da Turquia. Logo de que sítio! E, contudo, isso condizia com Sandor, de certo modo; era o país das Mil e Uma Noites e o próprio Sandor poderia ter saído dum bazar, por tudo o que tinha no seu escritório no décimo quarto andar do Edifício Bumham, ao alto da rua que vinha da Câmara Municipal. Herzog tinha-o conhecido nos banhos de vapor do Clube Post de Saúde, em Randolph e Wells. Era um homem baixo, deformado pela perda de parte do tórax — na Normandia, costumava dizer. Teria provavelmente sido uma espécie de anão avantajado quando foi incorporado. Deve-lhe ter sido possível arranjar um trabalho de advogado embora fosse anão. Punha Herzog talvez pouco à vontade o facto de ter sido desmobilizado da Marinha e nunca ter assistido a uma acção militar devido à asma. Enquanto este anão corcunda ficara inutilizado por uma mina à entrada da praia. A ferida fizera dele um corcunda. De qualquer forma, lá estava Sandor, com o seu rosto orgulhoso, afilado e elegante, boca pálida e pele macilenta, grande nariz, cabelo ralo e grisalho. Na Turquia estava num triste estado. Em parte, mais uma vez, o tempo. A Primavera procurava a custo irromper, mas os ventos mudaram. O céu toldou-se por sobre as mesquitas brancas. Nevava. As mulheres turcas de calças, viris, velavam os rostos severos. Nunca pensei vê-las caminhar com passos tão firmes. Haviam descarregado carvão na rua mas não tinham vindo trabalhadores para o levarem para dentro, de forma que a fornalha se apagara. Herzog no café bebia aguardente de ameixa e chá, esfregava as mãos e mexia os dedos dentro dos sapatos para auxiliar a circulação. Andava preocupado com a circulação naquela altura. Ver as primeiras flores cobertas de neve ainda lhe aumentava a melancolia.
Enviei-lhe aqueles simples rabiscos atrasados para lhe agradecer a si e a Bea a hospitalidade que me dispensaram. Conhecidos, não velhos amigos.
Tenho a certeza de que fui um hóspede terrível. Doente e colérico — despedaçado por um terrível desgosto. Tomando pílulas para a insónia e mesmo assim incapaz de dormir, andando de um lado para o outro drogado, e com o uísque a provocar-me taquicárdia. Devia ter ficado num quarto de manicómio. Gratidão! Fiquei profundamente grato. Mas a gratidão política da fraqueza, do que sofre, sub-repticiamente furioso. Sandor ocupou-se de mim. Eu estava arrasado. Levou-me para casa dele, muito ao sul, dez quarteirões para além do centro de Illinois. Mady ficara com o carro, alegando que precisava dele para Junie, para a levar ao jardim zoológico e a outros sítios congéneres.
Sandor disse: — Acho que não se importará de dormir ao pé das bebidas — , pois tinham aberto a cama de lona ao lado do bar. — Fora daqui! — gritou Sandor com a sua voz aguda aos adolescentes. — Nem se consegue ver através do maldito fumo de cigarro! Olhem para estas garrafas de coca-cola cheias de beatas. — Ligou o ar condicionado, e Moisés, ainda vermelho do frio do dia, mas com círculos brancos sublinhando os olhos, segurava a mala, a mesma mala que tinha agora sobre os joelhos. Sandor retirou os copos de diversas prateleiras. — Tire as coisas para fora, amigo — convidou ele. — Arrume-as aqui. Vamos comer dentro de vinte minutos. Bom petisco. Sauerbraten. A especialidade de Bea.
Obediente, Moisés desemalou as suas coisas — escova dos dentes, pó Desenex, comprimidos para dormir, peúgas, a monografia de Shapiro, e uma velha edição de algibeira dos poemas de Blake. O pedaço de papel em que o Dr. Edvig apontara os traços de paranóia servia-lhe de marca do livro.
Depois do jantar, naquela primeira noite passada na sala comum dos Him-melsteins, Herzog começou a compreender com relutância que, ao-aceitar a hospitalidade de Sandor, caíra em mais um erro característico.
— Você vai restabelecer-se de tudo isto. Pode estar certo. Vai consegui-lo — encorajava Sandor. — Tratarei de si. Está por minha conta.
E Beatriz, com o seu cabelo negro e a bonita boca rosada que não precisava de bâton, dizia — Moisés, bem sabemos como deve sentir-se.
— As cadelas vão e as cadelas vêm — continuava Sandor. — O meu ofício é, praticamente, lidar com essas cadelas. Havia você de saber como elas são, e o que acontece nesta cidade de Chicago. — Abanou a sua pesada cabeça e os lábios uniram-se-lhe num esgar de nojo. — Se ela quer ir-se, que vá para o diabo! Deixe-a ir! Você ficará bem. Pois então você era um anjinho! Grande anjinho! Todos os homens o são com certas mulheres. Eu próprio me deixei levar por essas de olhos azuis. Mas tive o bom senso de me apaixonar por este belo par de olhos castanhos. Não é maravilhosa?
— Claro que sim — tinha de o dizer. E não era muito difícil. Moisés não vivera em vão os seus quarenta anos; sabia passar por estes momentos. Entre os puritanos estritos, chama-se a isto mentir; mas entre pessoas bem educadas, trata-se simplesmente de boa educação.
— Nunca percebi por onde é que ela pegou num tipo como eu. De qualquer forma, você vai ficar algum tempo connosco. Numa altura como esta não deve estar longe de amigos. Claro que sei que tem família nesta cidade. Vejo os seus irmãos no Fritzl. Ainda no outro dia falei com o seu irmão do meio.
- Willie.
— É um belo rapaz, e muito activo entre os judeus — disse Sandor. — Nada como aquele macher, o Alexandre. Com esse há sempre qualquer escândalo. Tão depressa está relacionado com a moscambilha dos Sumos, como com Jimmy Hoffa, depois com o grupo do Dirksen. Bem, os seus irmãos são gente fixe. Mas consumi-lo-iam. Aqui ninguém lhe fará perguntas.
— Connosco, pode estar à vontade — reforçou Beatriz.
— Francamente, não percebo nada disto — confessou Moisés. — Mady e eu tivemos altos e baixos desde o princípio. Mas as coisas estavam a melhorar. Na última Primavera discutimos o nosso casamento e se nos entendíamos suficientemente bem para continuarmos — e levantou-se um problema prático: se eu deveria comprometer-me com um arrendamento. Ela respondeu que mal terminasse a tese teríamos um segundo filho...
— Se quer que lhe diga — interrompeu Sandor — , você é que teve culpa na minha opinião.
— Eu? Que quer dizer com isso?
— Porque é um intelectual e se foi casar com uma intelectual. Em todos
os intelectuais há um espinho oculto. Vocês não sabem responder às vossas próprias perguntas... contudo, acho que para si ainda há uma esperança,
Moisés.
— Que esperança?
— Você não é como aqueles outros impostores das universidades. É um mensch. Qual o préstimo desses patetas desmiolados? É preciso um ignorantão como eu para lutar pelas causas liberais. Esses botas de elástico de meias de seda de Yale podem ser muito ousados no escritório, mas quando se trata de sair para o Trumbull Park ou de lutar com aqueles fulanórios em Deerfield ou de se encarregarem de um homem como Tompkins... — Sandor tinha orgulho nas suas recordações ligadas ao caso de Tompkins, um negro empregado dos correios que defendera.
— Bem, suponho que eles queriam tramar Tompkins por ser negro — disse Herzog. — Mas infelizmente era um bêbado. Você próprio mo contou. E havia além disso o problema da competência dele.
— Não ande para aí a repetir isso — replicou Sandor. — Dar-lhe-ão mau uso. Vai revelar o que lhe contei, confidencialmente? Era uma questão de justiça. Não há brancos bêbados no funcionalismo público? Não há muitos?!
— Sandor... Beatriz. Sinto-me horrivelmente. Outro divórcio... mais uma vez fora de casa, com a minha idade. Não posso conformar-me. Não sei... parece-me a morte.
— Ora, o que está você a dizer! — retorquiu Sandor. — É lamentável por causa da petiza, mas você vai restabelecer-se.
Nessa altura, quando você pensou, e eu concordei, que não devia ficar sozinho, talvez tivesse devido realmente ficar sozinho, escreveu Herzog.
— Olhe, vou tratar-lhe de tudo — assegurou Sandor. — Você sairá deste nojo cheirando que nem uma flor. Deixe o caso comigo, está bem? Não confia em mim? Acha que não estou a compreendê-lo?
Devia ter ido para um quarto do Clube Quadrangle.
— Não pode ficar sozinho — disse Sandor. — Você não é indivíduo para isso. Um ser humano! Um mensch! Foi duramente atingido. E tem tanto senso comum como o meu miúdo de dez anos, o Sheldon, meu pobre amigo.
— Vou ver se reajo. Não quero armar em vítima. Detesto o papel de vítima — disse Moisés.
Himmelstein estava sentado na sua poltrona de orelhas, com os pés sob o ventre curto. Tinha os olhos húmidos da cor de pepino recém-cortado, com finas pestanas. Mascava um cigarro. As unhas feias trazia-as polidas. Ia a uma manicura da Casa Palmer. — Uma cadela voluntariosa — dizia ele. — Formidavelmente atraente. Gosta de tomar decisões. Uma vez decidida, decidida para sempre. Que força de vontade. É um fenómeno.
— No entanto, dantes ela deve ter gostado de si, Moisés — disse Bea. Falava muito, muito devagar. Era assim. Os seus olhos castanhos escuros inseriam-se em fortes ossos orbitais. Os lábios eram rosados e vivos. Moisés não queria cruzar o seu olhar; teria de a fitar longamente, com uma expressão séria e sabia que daí nada adviria. Sabia que tinha a simpatia dela, mas sabia também que ela jamais o aprovaria.
— Acho que não me amou — afirmou Moisés.
— Estou certa de que sim.
Era a solidariedade feminina da classe média, defendendo uma rapariga bem da acusação de calculismo e corrupção. As raparigas bem casam por amor. Mas se perdem esse amor, deve-se-lhes permitir a liberdade para amarem outrem. Nenhum marido decente irá contra os ditames de um coração. Isto é ortodoxo. Não é pura e simplesmente mal. Antes uma nova ortodoxia. De qualquer forma, pensou Moisés, não estava em posição de discutir com Beatriz. Estava na casa dela, aceitando as suas consolações.
— Não sabe como é a Madalena — notou ele. — Quando eu a conheci, ela precisava muito de ajuda. Daquele género que só um marido pode dar...
Sei como são longas — infindáveis — as histórias das pessoas a quem fizeram afrontas. E que aborrecidas para toda agente.
— Ora eu acho-a uma pessoa simpática — disse Bea. — A princípio parecia muito convencida da sua pessoa e agia duma maneira desconfiada, mas quando a conheci, revelou-se gentil e muito simpática. Deve ser, basicamente,
uma boa pessoa.
— Ora! As pessoas são simpáticas, a maioria delas. Tem de se lhes dar uma oportunidade — observou Sandor, pálido e elegante.
— A Mady planeou tudo — replicou Herzog. — Porque não havia de romper antes de eu assinar o arrendamento?
— Porque precisa duma casa para a criança — comentou Sandor. — Que
pensava você?
— Que pensava eu? — Herzog estava de pé, procurando as palavras. Tinha a cara lívida, os olhos dilatados, fixos. Olhou para Sandor, que permanecia sentado como um sultão; com os pequenos calcanhares sob o ventre protuberante. Então tomou consciência de que Beatriz, com o seu belo olhar mortiço, o estava a avisar para não irritar Sandor. A tensão arterial deste era capaz de subir perigosamente quando zangado.
Herzog escreveu, Estava grato pela sua amizade. Contudo, eu estava num estado... Num daqueles estados em que se têm grandes, impossíveis exigências. Com os aborrecimentos as pessoas tornam-se ditatoriais. Difíceis de suportar. Estava ali preso. Dormindo junto ao bar. Compreendia bem o pobre Tompkins. Não admira que lhe desse para beber quando Sandor se ocupou
dele.
— Não vai lutar pela tutela da criança, pois não? — perguntou Sandor a
Herzog.
— E supondo que o faço?
— Bem — replicou Sandor — , falando como advogado, posso imaginá-lo perante um júri. Olharão para Madalena, florescente e linda, depois para si, macilento e grisalho, e, zás!, lá se vai a sua tutela. É esse o sistema dos jurados. Mais atrasados que os homens das cavernas, aqueles tipos... bem sei que lhe custa ouvir isto, mas mais vale que lho diga. Indivíduos com a sua idade têm de enfrentar os factos.
— Factos... — exclamou Herzog, débil, hesitante, ultrajado.
— Bem sei — disse Sandor. — Sou dez anos mais velho. Mas depois de quarenta tanto faz. Se conseguir tê-la uma vez por semana, está com sorte.
Beatriz tentou conter Sandor, mas este resmungou — Cala-te. — Voltou-se de novo para Moisés, abanando de tal modo a cabeça que esta foi baixando gradualmente para o peito desfigurado, e as omoplatas formavam atrás uma saliência caracóide por dentro da camisa branca. — Você sabe lá o que é encarar os factos. Só quer que todos o amem. Senão, chora e grita. Muito bem. Depois do dia D, fiquei esmagado naquela porcaria de hospital — um aleijado. Meu Deus! Tive de juntar forças para voltar para a vida. E o seu amigo Valentim Gers-bach? Aí está um homem! Aquele ruivaço sabe o que é o verdadeiro sofrimento. Mas aproveita bem a vida — três homens com seis pernas não seriam capazes de andar por aí como esse perna de pau. É mesmo assim, Bea, Moisés pode ouvir tudo isto. Caso contrário não passaria de mais um pateta com veleidades. Eu não mexeria um dedo por esse filho duma cadela.
Herzog com a irritação mostrava-se incoerente. — Que pretende significar? Devo morrer por causa do meu cabelo? E quanto à criança?
— Não esteja para aí a esfregar as mãos como um tonto... Jesus, detesto os tontos — gritou Sandor. Os seus olhos tornaram-se violentamente claros, os lábios estavam continuamente tensos. Devia estar convencido de que libertava a alma de Herzog do peso morto da decepção, e os seus dedos brancos, polegares e indicadores moviam-se nervosamente.
— O quê? Morrer? Cabelo? Que está para aí a palrar! Limitei-me a dizer que dariam a criança a uma mãe jovem.
— Foi Madalena que o instigou a falar-me assim para isso. Até isto planeou. Para me impedir de instaurar um processo.
— Qual quê! Estou a tentar dizer-lhe isto para seu bem. Desta vez ela está na maré de cima. Ganha e você perde. Talvez ela queira outra pessoa.
— Quer? Contou-lhe isso?
— Não me contou nada. Eu disse talvez. Agora acalme-se. Serve-lhe uma bebida, Bea. Da garrafa dele. Não gosta de Scotch.
Beatriz foi buscar a própria garrafa de Guckenheimer 86. — Agora — continuou Sandor — acabe com essas fitas. Não seja um palhaço, homem. — O seu olhar modificou-se e deixou transparecer alguma simpatia por Herzog. — Bem, você é dos que sofrem, quando sofrem. Pertence ainda a um velho tipo judeu, autêntico e genuíno, em quem as emoções cavam fundo. Concedo-lhe isso. Compreendo-o. Cresci na Rua Sangamon, lembre-se, no tempo em que um judeu era ainda um judeu. Conheço o sofrimento — somos feitos da mesma massa.
Herzog, o passageiro, anotou, Sinceramente, eu não podia compreender. Pensei muitas vezes que ia ter uma apoplexia, que ia estoirar. Quanto mais conforto me davam, mais me sentia às portas da morte. Mas que estava eu a fazer? Porque estava na vossa casa?
Deve ter sido ridículo o meu sofrimento. Olhando do meu quarto para a negra vegetação sem folhas. As formas castanhas e delicadas da erva-de-santiago. Asclépias com as vagens entreabertas. Ou então olhando para o ecrã cinzento-escuro da televisão.
Um domingo, de manhã cedo, Sandor chamou Herzog à sala comum. — Homem — disse ele — , descobri uma apólice de seguros que lhe convém.
Moisés, apertando o roupão, acabado de sair da cama junto do bar, não compreendia. -O quê?
— Podemos arranjar-lhe uma apólice formidável que proteja a criança.
— Mas o quê?
— Já lhe disse no outro dia, mas você deve ter estado a pensar noutras coisas. Se você adoecer, tiver um acidente, perder um olho, se ficar com o miolo avariado, Junie será protegida.
— Mas eu vou para a Europa e tenho um seguro de viagem.
— Isso é se morrer. Mas neste caso, mesmo se você tiver uma doença mental e for para um hospício a criança continuará a receber mensalmente um subsídio durante o seu internamento.
— Mas quem é que diz que eu vou enlouquecer?
— Oiça, acha que lhe estou a propor isto para meu proveito? Eu aqui estou no meio — exclamou Sandor, batendo com o pé descalço na espessa carpete.
Domingo, com um nevoeiro cinzento do lago e os barcos do minério perdendo-se ao longe como gado nascido da água. Podia-se ouvir o vazio da água embatendo nos cascos. Herzog desejaria, mais que tudo, ser um marinheiro a caminho da Duluth.
— Ou bem que quer os meus conselhos de advogado ou bem que não quer — disse Sandor. — Eu quero fazer o melhor para todos vós. Não é verdade?
— Aqui estou eu para o provar. Trouxe-me para a sua casa.
— Bem, vamos lá a ser sensatos. Com Madalena não vai ter problemas. Não vai gastar em pensão. Casar-se-á em breve. Levei-a a almoçar ao Fritzl, e indivíduos que há anos não têm um minuto para gastar comigo chegaram-se imediatamente a nós, acorrendo em tropel. Incluindo o rabi do meu templo. Ela é uma brasa.
— Você é um lunático. Bem sei o que ela é.
— O que quer dizer... é menos prostituta que a maior parte. Somos todos prostitutas neste mundo, não se esqueça. Sei muito bem que sou uma prostituta. E você também é uma bela peça, estou a ver. Pelo menos é o que me dizem os pategos. Aposto consigo um fato em como também é uma prostituta.
— Sabe o que é um homem das massas, Himmelstein? Sandor fez uma careta. — O quê?
— Um homem das massas. Um homem da multidão. A alma da populaça. Talhando todos pela mesma medida.
— Qual alma da populaça! Não se faça pretensioso. Falo de factos, não dessa merda.
— E você acha que um facto é uma porcaria.
— Os factos são porcos.
— Você acha que eles são verdadeiros porque são porcos.
— E você... é de mais para si. Quem lhe disse que era um príncipe? A sua mãe lavava a roupa de casa; recebiam hóspedes; o seu pai não tinha os parafusos todos. Conheço-vos a vocês Herzogs e às vossas peneiras. Não me venha com essas conversas. Eu próprio sou um judeu safado e tirei o meu diploma numa fedorenta escola nocturna. Compreendido? Então acabemos com essas tretas, meu sonhador.
Herzog, vencido, muito agitado, não deu resposta. Para que viera para aqui? Ajuda? Um fórum para a sua ira? Indignação pelas suas injustiças? Mas era o fórum de Sandor, não o seu. Este anão feroz, com dentes saídos e sulcos profundos no rosto. O seu peito esmagado de um lado formava uma proeminência ao alto do pijama verde. Esta era a sua fase má e colérica, pensava Herzog. Podia também ser agradável, generoso, sociável, mesmo espirituoso. A lava daquele coração bem podia ter deformado aquelas costelas, e a força daquela língua diabólica ter feito com que os dentes lhe saíssem. Pois bem, Moisés Herzog — se tens de te lastimar, de pedir auxílio e socorro, meter-te-ás sempre, inevitavelmente, nas mãos destes espíritos iracundos. Fulminando-te com a «verdade» deles. É isso que significa o seu masoquismo, mein zisse ríshamele. Os bons são atraídos pelas percepções humanas e não pensam por si próprios. Temos de sanear a nossa visão pelo auto-conhecimento, pela experiência. Além de que, a oposição é a verdadeira amizade. Eis o que me dizem.
— Você quer cuidar da sua filha, não quer? — perguntou Sandor.
— Claro que sim. Mas você disse-me no outro dia que mais me valia esquecê-la. Que ela cresceria como uma estranha para mim.
— É mesmo assim. Nem sequer o reconhecerá da próxima vez que a encontrar.
Sandor pensava decerto nos miúdos dele, naqueles malandretes; não na minha filha, feita de outra loiça. Ela não se esquecerá de mim. — Não acredito nisso — contestou Herzog.
— Como advogado, tenho uma obrigação social para com a criança. Tenho
de a proteger.
— Você? Eu sou o pai dela.
— Você pode enlouquecer. Ou morrer.
— Mady tanto pode morrer como eu. Porque não fazem o seguro dela?
— Não o permitiria. Não faz parte das obrigações da mulher. É obrigação do homem.
— Não deste homem. A Madalena age como um homem. Tomou todas estas decisões de ficar com a pequena e de me pôr no meio da rua. Acha que pode ser tanto mãe como pai. Pois pagarei as quotas do seguro sobre a vida dela.
Sandor começou subitamente a bradar. — Estou-me nas tintas para ela. Estou-me nas tintas para você. Estou a ocupar-me da criança.
— O que lhe faz ter a certeza de que morrerei primeiro?
— E é esta a mulher que você ama? — exclamou Sandor, num tom mais comedido. Parecia ter-se recordado da tensão alta. Iniciou então um elaborado esforço que envolvia os olhos desbotados e os lábios, e que lhe afundava o queixo. Disse, mais calmamente: — Eu próprio faria um tal seguro se pudesse passar no exame médico. Dava-me prazer ir desta para melhor e deixar a minha Bea viúva rica. Gostaria disso.
— Então poderia ir para Miami e pintar o cabelo.
— Pois sim. Enquanto fico verde como uma velha moeda de cobre, no meu caixão, ela andar a passear. Não a censuro.
— Muito bem, Sandor... — replicou Herzog. Desejava terminar esta conversa. — Neste momento não me apetece ocupar-me da minha morte.
— Que há de tão especial na sua morte? — gritou Sandor. A sua figura endireitou-se. Encontrava-se perto de Herzog, que estava um tanto intimidado por esta aspereza e, baixando os olhos escancarados, fitava a cara do seu anfitrião. Esta era talhada em linhas fortes e rudemente elegante. O pequeno bigode eriçava-se-lhe, um feroz veneno verde, leitoso, assomava-lhe aos olhos; a boca contorcia-se-lhe. — Vou mas é largar o caso! — começou Himmelstein a gritar.
— Que lhe aconteceu!? — disse Herzog. — Onde está a Beatriz? Beatriz! Mas a Sra. Himmelstein limitou-se a fechar a porta do quarto.
— Ela há-de arranjar advogados pouco escrupulosos.
— Por amor de Deus, pare de gritar.
— Vão dar cabo de si.
— Sandor, acabe com isto.
— Vão fazer o que quiserem de si. Esfolam-no vivo. Herzog tapou os ouvidos. — Não posso suportar mais isto.
— Faça das tripas coração. Filho duma cadela. Vão pôr-lhe um contador no nariz e fazê-lo pagar por respirar. Fechar-lhe-ão todas as saídas. Então pensará na morte. Rezará por ela. Preferirá um caixão a um carro de desporto.
— Mas eu não deixei a Madalena.
— Eu próprio já tenho feito isso a indivíduos.
— Que mal é que eu lhe fiz?
— O tribunal não se importa com isso. Você assinou papéis... Já os leu?
— Não, confiei na sua palavra.
— Deporão contra si, no tribunal. Ela é a mãe... a fêmea. É quem tem as
tetas. Esmagá-lo-ão.
— Mas eu não sou culpado seja do que for.
— Ela odeia-o.
Sandor já não gritava. Voltara ao tom normal. — Meu Deus! Você não sabe nada — disse ele. — Você, um homem educado? Graças a Deus que o meu pai não tinha cheta suficiente para me mandar para a Universidade de Chicago. Trabalhei na Casa Davis e fui para John Marshall. Educação? É ridículo! Você não sabe o que se passa.
Moisés estava agitado. Começou a reconsiderar — Bem... — murmurou.
— O que é que está bem?
— Farei o seguro de vida.
— Não para me fazer favor.
— Não para fazer favor...
— É uma boa maquia... quatrocentos e dezoito dólares. — Arranjarei o dinheiro.
Sandor aprovou. — Muito bem, meu rapaz. Finalmente está a ter bom senso. Agora que me diz a tomarmos o pequeno-almoço... vou cozinhar uns flocos de aveia. — De pijama verde, dirigiu-se para a cozinha, com os longos pés descalços.
Seguindo-o no corredor, Herzog ouviu um grito de Sandor perante a imundice da cozinha. — Olhem para este nojo! Nem uma panela, nem um prato... não há uma única colher limpa. Fede a lixarada. Isto é um cano de esgoto. — O velho cão, obeso e despelado, escapuliu-se a medo, raspando as unhas pelo mosaico, clique-clique. — Cadelas gastadoras — berrava ele para as mulheres da casa. — Piolhos malditos! Só servem para se menearem diante das lojas de modas e fazer poucas vergonhas. Depois voltam para casa, comem bolos e deixam os pratos sujos de chocolate neste chiqueiro. É isso que lhes faz borbulhas.
— Não se exalte, Sandor.
— Estou a pedir demais? Um velho veterano aleijado passa o dia a correr pela Câmara Municipal, de sala para sala até à Rua Vinte e Seis e à Califórnia. Para elas! Importam-se porventura que eu tenha de me rebaixar perante todos os palermas para ganhar algum dinheiro? — Sandor começou a rapar os restos. Atirou cascas de ovos e de laranjas para um canto junto ao caixote do lixo — borras de café. Encheu-se de raiva e começou a partir louças e copos. Os seus longos dedos, como os de um corcunda, agarravam nos pratos sujos de açúcar cristalizado. Num gesto cheio de beleza — extraordinário! — atirava-os contra a parede. Bateu no lava-louça e no sabão em pó, e finalmente chorou de raiva. E também por si próprio, por ser dado a tais emoções. A boca aberta e os dentes saídos! Pêlos compridos riscavam-lhe o peito desfigurado.
— Moisés... estão a matar-me! A matar o próprio pai!
As filhas estavam nos quartos à escuta. O pequeno Sheldon andava no Parque Jackson com o seu grupo de escuteiros. Beatriz não apareceu.
— Não é preciso fazer flocos de aveia — disse Herzog.
— Não, vou lavar uma panela. — Corriam-lhe ainda as lágrimas. Debaixo da torneira torrencial os seus dedos bem tratados esfregavam o alumínio com a palha de aço.
Ao acalmar confessou: — Sabe, Moisés, já tive de consultar um psiquiatra por causa desta maldita loiça. Custa-me vinte dólares à hora. Moisés, que hei-de fazer dos meus filhos...? Com Sheldon não vai haver problemas. Tessie escapa. Mas Carmel! Não sei lidar com ela. Tenho medo de que já haja por ali mouro na costa. Prof., enquanto aqui está não lhe peço nada (por cama e comida, queria ele dizer), mas gostaria que você se interessasse pelo desenvolvimento mental dela. É uma oportunidade de ela conhecer um intelectual... uma pessoa famosa... uma autoridade. Não quer ter uma conversa com ela?
— Sobre quê?
— Livros... ideias. Leve-a a dar um passeio. Discuta com ela. Por favor, Moisés, é um pedido que lhe faço.
— Perfeitamente, claro que vou com ela.
— Pedi ao rabi, mas para que servem estes rabis reformados? Sei que sou um tipo vulgar, o Sr. Murro do Mau Génio. Trabalho para estas crianças...
Espreme os pobres. Compra papéis de crédito a negociantes que vendem fantasias a prestações a prostitutas na zona sul da cidade. Considera muito bem eu ter de renunciar à minha filha, mas os malandros dos filhos dele precisam de discursos edificantes.
— Se Carmel fosse um pouco mais velha, dir-lhe-ia que se casasse com ela. Moisés, pálido e perplexo, balbuciou. — É uma rapariga muito atraente.
Demasiado jovem, evidentemente.
Sandor envolveu com o seu longo braço a cintura de Herzog e apertou-o contra si. — Não se deixe levar, Prof. Comece a viver uma vida normal. Onde diabo já você esteve..., Canadá, Chicago, Paris, Nova Iorque, Massachusetts. Os seus irmãos saíram-se bem sem passar daqui, desta cidade. Claro que o que basta para Alexandre e Willie não basta para um macher como você. Moisés E. Herzog — não tem dinheiro no banco, mas pode procurar-se-lhe o nome na biblioteca.
— Pensei que Madalena e eu nos estabilizássemos.
— Lá no matagal? Não seja tonto. Com aquela dama? Está a brincar? Volte para a sua cidade natal. Você é um judeu do West Side. Costumava vê-lo no Instituto dos Judeus. Calma. Deixe de se destruir a si próprio. Gosto mais de si que desta minha maldita família. Você nunca me veio com parlapatices de Harvard.
Devemos é ligar-nos ao povo... aos bons corações. Com amor. Meu Deus! Que diz você? — Afastou um pouco a sua bela cabeça macilenta para olhar Herzog nos olhos, e mais uma vez Herzog sentiu neles o circuito da afeição. O rosto de Himmelstein com os seus longos sulcos amarelos estava contente. — Não é capaz de arranjar comprador para o casarão nos Berkshires? -Talvez.
— Bem, então está combinado. Aceite uma desvalorização se não tiver outro remédio. Deram cabo do Hyde Park, mas você, de qualquer forma, não há-de querer viver com esses existencialistas cabeludos. Alugue uma casa ao pé de mim.
Embora esgotado e sofrendo profundamente, Herzog ouvia como uma criança escuta uma história.
— Arranje uma dona de casa de uma idade mais próxima da sua. E uma boa situação também. Que mal há nisso? Ou vamos arranjar-lhe uma magnífica morena. Não se meta mais com japonesas.
— Que quer dizer com isso?
— Bem sabe o que quero dizer. Ou talvez do que você precisa seja duma rapariga sobrevivente dos campos de concentração, que ficaria grata por arranjar um lar. E você e eu trataremos disso. Iremos aos banhos russos na Avenida Norte. Feriram-me na praia de Omaha, mas diabos os carreguem, ainda lá irei. Descobriremos uma igreja ortodoxa — já basta desta treta do Templo. Você e eu... arranjaremos uma boa cbazan... — Fazendo um trejeito com os lábios de forma que o bigode quase invisível mal se vislumbrava, Sandor começou a cantar «Mipnei chatoenugolino m'artzenu». — E pelos nossos pecados fomos exilados da nossa terra você e eu, um par de velhos judeus. — Fixava em Moisés os seus húmidos olhos verdes. — É o meu amigo. O meu amigo inocente e de coração de ouro.
Beijou Moisés. Moisés sentiu o sentimentalismo barato. Amorfo, arrebatado, indiscriminado, cobarde sentimentalismo.
— Oh, seu chupista — exclamou Moisés para si próprio no comboio. — Chupista!
Deixei-lhe dinheiro para uma emergência. Entregou-o todo a Madalena para comprar vestidos. Era afinal o advogado dela ou o meu?
Bem devia ter compreendido, pela forma como falava das suas clientes femininas e atacava todos os homens. Mas, meu Deus!, como é que eu me meti em tudo isso? Como é que vim parar às mãos dele? Parece que desejei que me acontecessem estas coisas absurdas. Estava tão louco que mesmo eles, aqueles Himmelsteins, sabiam mais que eu. E mostraram-me os factos da vida, e ensinaram-me a verdade.
Vingou-se com ódio das minhas próprias inanidades orgulhosas. No calmo fim do dia, mais tarde, à beira de água, em Woods Hole, esperando páoferry-boat, olhou através da verde escuridão para a teia de reflexos vivos no fundo. Gostava de pensar no poder do sol, na luz, no oceano. A pureza do ar comovia-o. Não havia uma mácula na água onde se moviam cardumes de vairões. Herzog suspirou e disse para si mesmo «Deus seja louvado... Deus seja louvado». A respiração tornara-se-lhe mais livre. O seu coração era abertamente sensível aos horizontes amplos; às cores profundas; ao ligeiro acre iodado do Atlântico que se elevava das algas e moluscos; à areia branca, fina, pesada; mas principalmente à transparência verde ao olhar para o fundo pedregoso riscado de linhas douradas. Nunca parado. Se a sua alma pudesse projectar um reflexo tão brilhante, e tão intensamente doce, bem podia pedir a Deus que para tal o utilizasse. Mas seria demasiado simples. Seria demasiado infantil. O mundo real não é assim claro, mas turbulento, colérico. Uma vasta actividade humana está em curso. A morte espreita. Portanto, se tens alguma felicidade, esconde-a. E quando o teu coração está cheio, também não abras a boca.
Tinha momentos de lucidez, mas não podia manter o equilíbrio por muito tempo. O barco chegou, entrou para bordo, apertando o chapéu sob o vento marítimo, ligeiramente envergonhado por apreciar este momento típico das férias. Os vagões estavam a ser carregados numa nuvem de areia redemoi-nhante e greda, enquanto Herzog olhava do convés superior. Durante a travessia descansou os pés no topo da mala, apanhando sol, mirando os barcos com os olhos semicerrados.
Em Vineyard Haven apanhou um carro na doca. Virou à direita na rua principal paralela ao porto, orlada de grandes árvores — água, velas à direita, e a rua, que passava por um túnel de folhas, plena de sol. Grandes letras douradas brilhavam nas fachadas vermelhas das lojas. O centro comercial tinha o brilho dum palco armado. O táxi avançou lentamente, como se o velho motor sofresse do coração. Passou pela biblioteca pública, e ruas suspensas, enormes ulmeiros em forma de lira e sicómoros com manchas brancas na casca — fixou os sicómoros. Estas árvores desempenhavam um papel importante na sua vida. O verde da tarde acentuava-se, e o azul da água, quando os olhos se desconcentravam da sombra das árvores, parecia cada vez mais pálido. O carro virou de novo à direita, em direcção à praia, e Herzog saiu, não ouvindo metade das indicações do motorista ao pagar. — Desço as escadas, depois subo. Lá chegarei. Obrigado. — Viu Libbie esperando ao portão, com um vestido garrido, e acenou-lhe. Ela atirou-lhe um beijo.
Imediatamente teve a sensação de que cometera um erro. Vineyard Haven não era ambiente para si. Era lindo, e Libbie era encantadora, uma das mulheres mais encantadoras do mundo. Mas eu nunca devia ter vindo. Não está bem, pensou. Parecia estar à procura dos degraus de madeira no declive, hesitando, homem de aparência forte, segurando a mala com as duas mãos como um jogador prestes a fazer um lance. As suas mãos eram largas, fartamente irrigadas de veias; não as mãos dum homem cuja ocupação era mental, mas de quem nasceu pedreiro ou pintor de paredes. A brisa inflava-lhe a roupa leve para logo lha ajustar ao corpo. E que olhar o seu... que rosto! Nesse momento exacto o seu estado era tão estranho que ele próprio se sentia forçosamente compelido a observá-lo — ansioso, doloroso, fantástico, perigoso, louco e, mortalmente, «cómico». Bastava um homem rezar a Deus para afastar este grande, derreante peso da existência individual e do auto-desenvolvimento, entregar-se, falhado, à sua espécie para uma cura primitiva. Estava a tornar-se esta a forma actual e quase convencional de encarar uma vida em si mesma. Segundo tal ponto de vista, o próprio corpo, com os seus dois braços e altura vertical, era comparado à Cruz, em que se experimentou a agonia do conhecimento e do ser separado. Para isso, sujeitara-se a esta cura primitiva, administrada por Madalena, Sandor, etc, de forma que as suas recentes infelicidades pudessem ser vistas como um projecto colectivo, em que ele mesmo participava, para destruir a sua vaidade e pretensões a uma vida pessoal, de maneira que pudesse desintegrar-se, sofrer e odiar, como muitos outros, não numa coisa tão distinta como a cruz, mas lá em baixo, na lama da dissolução pós-renascentista, pós-humanista, pós-cartesiana, a paredes meias com o vazio. Todos entravam no acto. A «História» deixava lugar para todos. O próprio Himmelstein, que nunca lera um livro de metafísica lidava com o vazio como se ele fosse um domínio real, vendável. Este diabinho estava impregnado de ideias modernas, e uma em especial lhe agitava o pequeno coração: devemos sacrificar o nosso pobre, gritante, mesquinho individualismo — que pode mais não ser (de um ponto de vista analítico) do que uma persistente megalomania infantil, ou (de um ponto de vista marxista) uma fedorenta pequena propriedade burguesa — à necessidade histórica. E à verdade. E a verdade só é verdadeira quando traz mais desgraça e melancolia aos seres humanos, de forma que, se mostra algo que não o mal, é ilusão, e não verdade. Mas claro que ele, Herzog, profeticamente combatendo tais tendências, tinha característica, obstinada, provocadora, cegamente, mas sem suficiente coragem ou inteligência, tentado ser um maravilhoso Herzog, um Herzog que, talvez desajeitadamente, tentara saber viver, qualidades maravilhosas vagamente compreendidas. Concordava que tinha ido longe de mais, para além do seu talento ou das suas possibilidades, mas era esta a dificuldade cruel dum homem com impulsos fortes, mesmo com fé, mas a querrrfaltavam ideias claras. Que aconteceria se falhasse? Significaria realmente que não havia lealdade, nem generosidade, nem qualidades sagradas? Deveria ter sido um simples Herzog sem ambições? Não. E Madalena nunca se teria casado com tal indivíduo. Do que tinha estado à procura, por toda a parte, era precisamente de um Herzog ambicioso. Para o derrubar, para o rebaixar, para o estender ao comprido e para lhe arrancar os miolos com o seu pé assassino de cadela. Oh, que confusão fizera ele — que desperdício de inteligência e sensibilidade! Quando pensou no infindável tédio ansioso do namoro e do casamento com tudo o que investira em preparativos — para só recordar coisas práticas, em comboios e aviões e hotéis, em repartições, em bancos onde depositara, em hospitais, em médicos e remédios, em dívidas; e, para si próprio, as noites de insónia inflexível, as aborrecidas tardes amarelas, o sofrimento em combates sexuais, e toda a sua egomania, admirava-se de ter sobrevivido a tudo isto. Outros da sua geração gastavam-se, morriam de congestões, de cancro, desejavam a própria morte, provavelmente. Mas ele, apesar de todos os erros, devia no entanto ser hábil, duro — sobrevivera. E para quê? Para que andava por aí? Para prosseguir na sua carreira de relações pessoais até a força finalmente se lhe esgotar. Para alcançar êxito apenas no seu domínio privado, um rei dos corações? Amoroso Herzog, procurando amor, e abraçando as suas Wandas, Zinkas e Ramonas, uma após outra? Mas isso é uma perseguição de fêmeas. Este anseio e desespero é para mulheres. A ocupação de um homem consiste no dever, na utilidade, no civismo, na política no sentido aristotélico. Então, porque estou eu a aportar aqui, a Vineyard Haven, em férias, nada menos? Desesperado e atrapalhado, com as minhas calças italianas, as minhas canetas de tinta permanente, e o meu desgosto — para aborrecer e contagiar a pobre Libbie, explorar-lhe a afeição, forçando-a a uma retribuição por eu ter sido tão simpático e amigo, quando o seu último marido, Erikson, perdeu a cabeça, tentou apunhalá-la e acabou consigo próprio? Altura em que, de facto, a ajudei muito. Mas se ela não tivesse sido tão bela, sexual e evidentemente seduzida por mim, ter-me-ia eu de tão boa vontade comportado como amigo e auxiliar? E não me contentando com isso venho agora maçá-la, casada há poucos meses, com os meus problemas. Terei vindo para buscar o quidpro quo? Volta para trás, Moshe-Hanan, e toma o próximo ferry-boat. Do que precisavas era de uma viagem de comboio. Fez-te bem. Libbie desceu a vereda para o cumprimentar, e beijou-o. Estava já vestida para a noite, com um vestido de cocktail cor de laranja ou de papoila. Moisés levou um momento a determinar se o perfume que cheirava provinha do canteiro de peónias ou do pescoço e ombros dela. Estava contente de o ver, sem afectação. Por meios honestos ou não, arranjara nela uma amiga.
— Como estás?!
— Não vou ficar cá — exclamou Herzog. — Não está certo.
— Que estás a dizer? Fizeste uma viagem de imensas horas. Entra e vem conhecer o Arnold. Senta-te para beberes qualquer coisa. És mesmo singular.
Riu-se para ele, e teve de se rir com ela. Sissler apareceu à porta, homem na casa dos cinquenta, desmazelado e sonolento, mas alegre, e começou a emitir sons de boas-vindas na sua voz profunda. Trazia umas calças largas cor-de-rosa com um cinto de elástico.
— Está a dizer que volta para trás, Arnold. Bem te disse como ele era singular.
— Viajou todo este tempo para nos informar disso? Entre... entre. Eu ia acender a lareira. Dentro de uma hora arrefece e temos gente para jantar. Que diz a uma bebida? Scotch ou bourbon? Talvez prefira um banho de mar, não? — Sissler endereçou-lhe um sorriso aberto, amável, enrugado, de olhos negros. Tinha os olhos pequenos e intervalos entre os dentes; era calvo, com o cabelo da nuca farto e espetado como aqueles grandes cogumelos que crescem nos lados musgosos de um tronco. Libbie casara com um cão velho, bem instalado e sensato, daquele género que tem sempre grandes reservas de compreensão e amizade. Do lado da casa virado para o mar, à luz mais clara, ela parecia-lhe extremamente bem, feliz, com o rosto bronzeado e macio. Usava na boca um bâton cor de papoila, uma pulseira de ouro no braço e uma pesada cadeia de ouro ao pescoço. Envelhecera um pouco — devia ter trinta e oito ou trinta e nove anos, calculou ele, mas os seus olhos negros, próximos, que lhe davam um olhar fluido e profundo (tinha um nariz delicado e lindo), estavam mais brilhantes que nunca. Estava na fase da vida em que se inicia a futura acção da hereditariedade, as deformidades dos antepassados aparecem — uma mancha, ou rugas mais fundas, que a princípio aumentam a beleza duma mulher. A morte, a artista, muito devagar, a dar os seus primeiros toques.
Ora para Sissler isto não tinha a menor importância. Já o aceitara, continuaria a falar com o seu sotaque russo, e a ser o mesmo homem cem por cento de negócios até à hora da morte. Quando esse momento viesse, por causa do seu molho de cabelos da nuca, teria de morrer deitado de lado.
Ideias que despovoam o mundo.
Mas enquanto Herzog aceitava uma bebida, e se ouvia a si próprio agradecendo numa voz nítida, e se observava sentado numa cadeira forrada de chintz, a sua leitura psicológica sugeria que podia não ser o leito de morte de Sissler que via na sua visão, mas o de qualquer outra pessoa que tivesse uma mulher. Talvez fosse ele próprio quem estivesse a morrer em imaginação. Tivera uma mulher — duas mulheres — e fora ele próprio objecto de tais fantasias com um gosto de morte. Ora: o primeiro requisito de estabilidade de um ser humano era de que o dito ser humano desejasse realmente existir. É isto que diz Espinosa. É necessário para a felicidade (felicitas). Não pode agir bem (bene agere), ou viver bem (bene vivere), se ele próprio não deseja viver. Mas se é também natural, como afirma a psicologia, matar mentalmente (um pensamento de morte por dia faz dispensar o psiquiatra), então o desejo de existir não é suficientemente forte para assegurar uma boa vida. Quero existir ou quero morrer? Mas neste momento social não podia esperar achar resposta para tais perguntas, e, em vez disso, foi bebendo bourbon gelado do copo que tilintava. O uísque desceu, ardendo-lhe agradavelmente no peito como um emaranhado cordão de fogo. Em baixo, via a praia picada de bexigas, e o flamejante pôr-do-sol sobre a água. O ferry regressava. À medida que o Sol baixava, a sua enorme auréola enchia-se subitamente de luzes eléctricas. No céu calmo um helicóptero dirigia-se para Hyannis Port, onde viviam os Kennedys. Grandes coisas ali se faziam antigamente. O poder de nações. Que sabemos nós sobre isso? Moisés sentiu um agudo aperto no coração ao pensar no antigo Presidente. (Não imagino o que diria a um Presidente se viesse realmente a falar com ele). Sorriu ao recordar-se da mãe orgulhando-se dele diante da tia Zipporah: — Que linguazinha que ele tem. Moshele era capaz de falar ao Presidente. — Mas nesse tempo o Presidente era Harding. Ou seria Coolidge? Entretanto a conversa continuava. Sissler tentava pôr Moisés à vontade — devo evidentemente parecer bastante agitado — e Libbie parecia
preocupada.
— Ah, não se preocupem comigo — disse Moisés. — Estou apenas um pouco excitado com o que me aconteceu. — Riu. Libbie e Sissler trocaram um olhar, mas ficaram menos tensos. — É uma bela casa a vossa. É alugada?
— Pertence-me — disse Sissler.
— Ah... Um sítio maravilhoso. Só para o Verão, não é? Podiam facilmente
adaptá-la para o Inverno.
— Custaria quinze mil dólares ou mais — replicou Sissler, com naturalidade,
— Tanto? Suponho que o trabalho e os materiais são mais caros nesta ilha.
— Claro que eu próprio podia fazer o trabalho — replicou Sissler. — Mas viemos para aqui descansar. Estou a ver que também é proprietário.
— Ludeyville, Mass — disse Herzog.
— Onde fica isso?
— Nos Berkshires. No lado mais próximo de Connecticut.
— Deve ser um belo local.
— Oh, sim, é bastante belo. Mas muito distante. Longe de tudo.
— Que me diz a mais uma bebida?
Talvez Sissler pensasse que o licor o acalmaria.
— Provavelmente o Moisés quer arranjar-se depois desta viagem — disse libbie.
— Vou mostrar-lhe o quarto.
Sissler levou para cima a mala de Herzog.
— É uma bela escada antiga, esta — observou Moisés. — Hoje nem com muito dinheiro arranjava outra igual. Tem imensa mão-de-obra, para uma casa
de Verão.
— Há sessenta anos ainda havia artífices — concordou Sissler. — Repare nas portas... de ácer cor de tabaco. É aqui que fica. Acho que tem tudo: toalhas, sabão. Vêm cá esta noite uns vizinhos. Só uma senhora. Uma cantora. Miss Elisa Thurnwald. Divorciada.
O quarto era amplo e confortável, e tinha vista para a baía. Os faróis azulados nos dois extremos, Ponta Ocidental e Ponta Oriental, estavam acesos.
— É um belo sítio — notou Herzog.
— Tire as coisas da mala. Faça como se estivesse em sua casa. Não tenha pressa de se ir embora. Sei que foi para Libbie um bom amigo quando ela se encontrava em dificuldades. Contou-me como você a protegeu daquele louco do Erikson. Tentou mesmo apunhalar a desgraçada. Não tinha ninguém de quem se socorrer senão de si.
— Na verdade, Erikson também não tinha mais ninguém de quem se socorrer.
— Ora... — disse Sissler, com o seu rosto enrugado um pouco voltado, mas apenas para que os seus olhinhos argutos pudessem ver Herzog do ângulo que lhe permitia observá-lo melhor. — Você ajudou-a. Para mim isso basta. Não só porque eu gosto da rapariga, mas também porque é diferente da gente mesquinha que anda para aí. Você tem problemas, bem vejo. Está excitadíssimo. Tem uma alma, não tem, Moisés? — Abanou a cabeça, fumando o seu cigarro com dois dedos manchados apertados junto à boca, falando em voz surda. — Coisa de que não nos podemos desfazer. Terrível embaraço, uma alma.
Moisés respondeu em voz baixa: — Já nem tenho a certeza de ainda a ter.
— Eu diria que sim. Bem... — virou o pulso para que os últimos raios de luz incidissem no relógio de ouro. — Ainda tem tempo de descansar um pouco.
Saiu e Moisés deitou-se por algum tempo na cama — um bom colchão, roupa impecável. Ficou deitado um quarto de hora sem pensar, de lábios entreabertos, pernas e braços estendidos, respirando suavemente enquanto mirava as figuras do papel das paredes até aquelas se perderem na escuridão. Quando se levantou, não foi para se lavar e vestir, mas para escrever um bilhete de despedida na secretária de ácer. Havia papel e sobrescritos na gaveta.
Tenho de regressar. Não sou capaz de suportar gentilezas nesta altura. Os sentimentos, o coração, tudo, num estranho estado. Um assunto por resolver. Deus vos abençoe a ambos. Muitas felicidades. Para o fim do Verão, talvez, se estiver bom tempo. Profundamente grato, Moisés.
Escapuliu-se da casa. Os Sisslers estavam na cozinha. Sissler chocalhava, ruidoso, os tabuleiros de gelo. Moisés desceu rápido e transpôs o guarda-vento em frenética velocidade, discretamente. Atravessou pela sebe para o quintal vizinho. Subiu a vereda e voltou para oferry. Tomou um táxi para o aeroporto. O melhor que conseguiu arranjar àquela hora foi uma passagem para Boston. Aceitou-a, e apanhou um avião para Idlewild no aeroporto de Boston. Às onze da noite estava deitado na sua própria cama, bebendo leite morno e comendo uma sanduíche com manteiga de amendoim. Tinha-lhe custado um bom par de patacos, toda esta viagem.
Mantinha sempre a carta de Geraldina Portnoy na mesa de cabeceira, e pegou-lhe neste momento para a reler antes de adormecer. Tentou recordar-se do que sentira ao lê-la pela primeira vez, em Chicago, após certo adiamento.
Caro sr. Herzog, sou Geraldina Portnoy, amiga de Lucas Asphalter. Talvez se lembre... Talvez me lembre? Moisés lera mais depressa (a letra era feminina — a grafia de uma escola progressiva, tornada cursiva, com os pontos dos is em forma de pequenos círculos abertos), tentando assimilar de um só trago toda a carta, voltando as páginas para ver se os parágrafos principais estariam algures sublinhados. Na verdade frequentei a sua cadeira sobre os Românticos como Filósofos Sociais. Diferíamos quanto a Rousseau e Karl Marx. Acabei por convir com a sua opinião, de que Marx exprimia as esperanças metafísicas da futura humanidade. Tomei o que ele dizia sobre o materialismo demasiado literalmente. A minha opinião! É vulgar e para que quer ela lisonjear-me assim... porque não entra no assunto? Tentara mais uma vez chegar ao assunto, mas todos aqueles pontos circulares abertos lhe assomavam à vista como neve ocultando-lhe a informação. Talvez nunca desse por mim, mas eu gostava de si, e como amiga de Lucas Asphalter — ele adora-o e diz que é a síntese das qualidades mais humanas — ouvi naturalmente falar muito de si, da sua infância no velho bairro de Lucas, e de como jogava basquetebol na Fraternidade dos Rapazes da República, nos bons velhos tempos de Chicago na Rua da Divisão. Um tio meu por afinidade era um deles — Júlio Hankin. Acho que me lembro de Hankin. Usava um casaco de lã azul, e penteava-se com risca ao meio. Não quero que faça uma ideia errada de mim. Não quero intrometer-me na sua vida. E não sou uma inimiga de Madalena. Simpatizo com ela, também. É tão viva, inteligente, tão encantadora, tem sido tão amável e franca para comigo. Durante algum tempo, admirei-a e, como mulher mais nova, fiquei muito lisonjeada com as suas confidências. Herzog corou. As confidências dela incluiriam os seus problemas sexuais. E como antiga aluna, tinha naturalmente curiosidade em ouvir contar a sua vida particular, mas fiquei igualmente surpreendida pela liberdade e boa vontade com que falava, e em breve compreendi que ela pretendia ganhar as minhas boas graças, por qualquer razão. Lucas aconselhou-me a acautelar-me pois qualquer afecto intenso entre membros do mesmo sexo é frequente, e injustamente, alvo de suspeitas. A minha cultura científica ensinou-me a fazer generalizações mais cautelosas e a resistir à insinuante psicanálise do comportamento normal. Mas ela queria conquistar-me para o seu lado, embora fosse demasiado subtil para mo dar a entender abertamente. Contou-me que o senhor tinha belas qualidades humanas e intelectuais, embora neurótico e dotado de um temperamento intolerável que frequentemente a aterrorizava. Contudo, acrescentou, o senhor tinha grandes capacidades e talvez, depois de dois casamentos falhados e sem amor, se dedicasse ao trabalho que tencionava fazer. O seu grande forte eram as relações afectivas. Tornou-se em breve evidente que ela nunca se teria dado a um homem a quem faltasse distinção de inteligência ou sensibilidade. Madalena afirmou-me que pela primeira vez na vida sabia claramente o que estava afazer. Até então, tudo era confuso e havia mesmo algumas lacunas de tempo que não sabia explicar. Quando casou consigo, encontrava-se nesse estado confuso e podia assim ter permanecido se não sobreviesse uma certa ruptura. É extraordinariamente excitante falar com ela, dá-nos a sensação dum encontro significativo — com a vida — de uma pessoa bela, brilhante, com um destino próprio. As experiências dela são ricas, ou grávidas... Que é isto? pensara Herzog. Irá contar-me que Madalena está para ter um filho? O filho de Gersbach! Não! Que maravilha - que sorte para mim. Se tem um filho ilegítimo, posso pedir a tutela de Junie. Avidamente devorara o resto da página, voltara para a seguinte. Não, Madalena não estava grávida. Era demasiado esperta para deixar isso acontecer. Devia a sobrevivência à sua própria inteligência. Fazia parte da doença dela ser astuta. Não estava portanto grávida. Eu não era apenas uma estudante universitária que a ajudava a tratar da criança, mas uma confidente. A sua petiza é-me muito afeiçoada, e considero-a uma criança extraordinária. Excepcional, na verdade. Gosto de Junie com um afecto para além do comum, sim, muito para além do que se tem pelas crianças que encontramos. Sei que os Italianos são considerados o povo do Ocidente com uma cultura mais orientada no sentido da criança (atestemo-lo pela figura de Cristo menino na pintura italiana), mas é evidente que os Americanos têm um fraco pela psicologia infantil. Tudo efeito para as crianças, ostensivamente. Para ser justa, não me parece que, basicamente, a Madalena seja má para a pequena June. Tende para ser autoritária. O sr. Gersbach, que tem posição ambígua dentro de casa, diverte muito a criança, em geral. Ela chama-lhe Tio Val, e vejo-o muitas vezes levá-la às cavalitas ou atirá-la ao ar. Neste ponto Herzog cerrou os dentes, farejando perigo. Mas tenho de o informar de uma coisa desagradável, sobre que falei com Lucas. É o seguinte: acercando-me uma destas noites da Avenida Harper, ouvi a criança chorar. Estava fechada no carro de Gersbach sem poder sair e a pobrezinha toda se contorcia a chorar. Pensei que se fechara enquanto brincava, mas já era noite escura, e não compreendi como é que estaria fora de casa, sozinha, à hora de dormir. O coração de Herzog batera perigosamente perante estas palavras. Tive de a acalmar, e depois descobri que a mamã e o Tio Val estavam a discutir lá dentro, e que o Tio Val lhe pegara pela mão e a levara para o carro, dizendo-lhe para brincar durante algum tempo. Fechou-a e voltou para casa. Estou a vê-lo subir as escadas enquanto Junie grita de terror. Hei-de matá-lo por isso, olá se não hei-de! Releu as linhas finais. Lucas diz que o senhor tem o direito de saber estas coisas. Pensei telefonar-lhe, mas senti que o perturbaria e seria inconveniente ouvir isto pelo telefone. Uma carta dá a possibilidade de meditar -julgar calmamente, e chegar a uma conclusão mais equilibrada. Não penso, realmente, que Madalena seja uma má mãe.
Estava, de novo, a escrever as suas cartas pela manhã. A pequena secretária junto à janela era negra, rivalizando com a negrura da sua escada de salvamento, agudos varões enterrados no asfalto, uma pesada camada cosmética de negro, varões equidistantes mas perceptíveis de acordo com as leis da perspectiva. Tinha cartas a escrever. Estava ocupado, muito ocupado, em busca de objectos que só agora, e vagamente, começava a compreender. A sua primeira epístola de hoje, começada numa semi-consciência ao acordar, era dirigida a monsenhor Hilton, o padre que conduzira Madalena para a Igreja. Sorvendo o café preto, Herzog, com o seu roupão de algodão, semicerrou os olhos e pigarreou já cônscio da irritação, da indignação profunda que sentia. O Monsenhor haveria de saber o efeito que tinha sobre as pessoas com quem se metia. Sou o marido, ou ex-marido, duma jovem que o senhor converteu, Madalena Pontritter, filha de um bem conhecido empresário. Talvez se recorde, foi catequizada por si há anos e por si baptizada. Licenciada havia pouco em Raddiffe, e muito bela... Seria Madalena realmente uma beleza ou fá-lo-ia a perda dela exagerar — tornaria assim o seu sofrimento mais evidente? Consolá-lo-ia o facto de uma bela mulher o ter abandonado? Mas fizera-o por aquele bruto grosseiro, ostensivo e burro que era Gersbach. Não há remédio para as preferências sexuais das mulheres. Isso já pertence à sabedoria dos antigos. Nem dos homens. Objectivamente, contudo, ela era uma beleza. Também Dai-sy, no seu tempo. Eu próprio fui elegante, mas estraguei a minha aparência com presunção... De tez saudável e rósea, com lindo cabelo negro fornymdo um carrapito atrás e franja na testa, um pescoço esguio, profundos olhos azuis e um nariz bizantino, que lhe descia, direito, da testa. As madeixas escondiam-lhe uma fronte de considerável poder intelectual, a vontade de um demónio, ou então, pura e simplesmente, o desequilíbrio mental. Tinha um alto sentido de estilo. Mal iniciou a sua instrução religiosa comprou cruzes e medalhas, rosários e trajos adequados. Mas nessa altura não passava de uma rapariga acabada de sair da universidade. Contudo, creio que compreendia muitas coisas melhor que eu. E quero que saiba, Monsenhor, que não estou a escrever-lhe com o propósito de lhe revelar quem é Madalena, nem de o atacar. Creio simplesmente que talvez lhe interesse descobrir o que pode acontecer, ou realmente acontece, quando as pessoas pretendem libertar-se do... Suponho que a palavra é niilismo.
Pois bem, o que acontece? Que aconteceu realmente? Herzog tentou compreender, fixando as paredes de tijolo para junto das quais fugira de Vineyard. Eu tinha aquele quarto em Filadélfia — trabalhei lá durante um ano — e três ou quatro vezes por semana dirigia-me para Nova Iorque no comboio da Pensilvânia, para visitar Marco. Daisy jurava que não haveria divórcio. E, durante algum tempo andei com Sono Oguki, mas ela não correspondia ao que eu pretendia. Não era suficientemente séria. Eu pouco trabalho tinha. Aulas de rotina em Filadélfia. Estavam aborrecidos comigo, e eu com eles. O paizinho ouviu falar da minha vida dissoluta e zangou-se. Daisy escreveu-lhe a contar tudo, mas o pai nada tinha que ver com isso. Que aconteceu realmente? Desisti da segurança de uma existência ordenada, dirigida para um fim, legal, porque ela me maçava e sentia que não passava duma vida frouxa. Sono queria que eu fosse viver consigo. Mas eu achei que ficaria na situação dos homens que casam com índias. Assim, peguei nos meus papéis e livros, e na minha máquina comercial Remington com a tampa preta, nos meus discos, oboé e músicas e parti para Filadélfia.
Andando para trás e para diante de comboio, esgotando-se — o melhor sacrifício que podia fazer. Foi visitar o miúdo e enfrentou a cólera da ex-mulher. Daisy tentava permanecer impassível, o que muito prejudicava a sua aparência. Veio ao encontro de Moisés ao cimo da escada, de braços cruzados, transformando-se numa figura quadrada, de olhos verdes e cabelo cortado, à espera de dizer que ele deveria trazer Marco para casa dentro de duas horas. Tinha horror a estes encontros. Claro que ela sabia perfeitamente o que ele fazia, quem via, e de vez em quando lho dava a entender — como vai o Japão? — ou — como vai o Papa? — Não tinha graça nenhuma. Ela tinha boas qualidades, mas o sentido do humor não figurava entre elas.
Moisés preparava-se para estas saídas com Marco. De outra forma o tempo passava penosamente. No comboio recordava factos da Guerra Civil — datas, nomes, batalhas — , de forma que enquanto Marco comia o seu hamburger no café do Jardim Zoológico, onde iam sempre, tivessem de que falar. — Chegou a altura de te falar de Beauregard — dizia ele. — Esta parte é muito emocionante. — Mas Herzog não conseguia mais que tentar fixar o espírito no general Beauregard ou na Ilha Número 10 ou em Andersonville. Estava a pensar como agir em relação a Sono Oguki, que começara a abandonar, preferindo-lhe Madalena — e sentia tal facto como uma deserção. A mulher esperava que ele lhe falasse; bem o sabia. Era com frequência tentado, quando Madalena estava demasiado ocupada com a Igreja e se recusava a vê-lo, a ir até lá e ter uma conversa, nada mais, com Sono. Esta confusão era torpe, e ele desprezava-se por a ter criado. Não podia um homem ocupar-se de outra coisa? Perdia o auto-respeito! Faltavam-lhe ideias claras! Podia ver que Marco se condoía do seu confuso pai. Entrava no jogo de Moisés, fazendo mais perguntas sobre a Guerra Civil simplesmente porque era tudo o que ele tinha para dar. A criança não rejeitava este presente bem intencionado. Havia nisso amor, pensou Herzog, envolto no seu roupão de algodão, enquanto o café arrefecia. Estas crianças e eu amamo-nos. Mas que posso eu dar-lhes? Marco olhá-lo-ia com os seus olhos claros, o seu pálido rosto de criança, o rosto de Herzog, sardento, o seu cabelo muito curto, a seu gosto, e um pouco alheio. Tinha a boca da avó Herzog. — Muito bem, menino, tenho agora de voltar para Filadélfia — dizia Herzog. Sentia, pelo contrário, a desnecessidade do seu regresso a Filadélfia. Filadélfia era um perfeito erro. Que precisão havia de viajar naquele comboio? Seria, por exemplo, para ver Elizabeth e Trenton? Estariam à espera que ele os olhasse? Estaria a sua simples casita em Filadélfia à espera dele? — É hora do comboio, Marco. — Puxava do relógio de algibeira, um presente de havia vinte anos do pai. — Tem cuidado no metropolitano. E nas vizinhanças também. Não desças antes do Parque Morningside.
Há lá bandos de desordeiros. Reprimiu o impulso de marcar o número de Sono numa cabina do passeio e dirigiu-se em vez disso para o metropolitano, que o conduziu para a estação de Penn. Com o seu comprido casaco castanho, justo nos ombros e deformado pelos livros com que enchia as algibeiras, enveredou pelo túnel subterrâneo de lojas — flores, cutelaria, uísque, filhoses e salsichas grelhadas, a frialdade cerosa das laranjadas. Laboriosamente subiu até à abóbada de luz da estação, com grandes janelas separando-a poeirentamente do sol de Outono — o sol tocado de fuligem do bairro das modas. O espelho da máquina das pastilhas elásticas revelou a Herzog como estava pálido, doente — borboto do casaco e do cachecol de lã, chapéu e sobrancelhas, ondeando e flamejando em torno em plena luz e expondo-lhe a esfera da cara, a cara de um homem em luta. Herzog sorriu perante esta precoce exaltação da sua vida, perante Herzog, a vítima, Herzog, o pretenso amante, Herzog, o homem de quem o mundo dependia para algum trabalho intelectual, para modificar a história, para influenciar o desenvolvimento da civilização. Várias caixas de papel velho debaixo da cama em Filadélfia iriam produzir este significativo resultado.
Assim, pela cancela de ferro, com a sua placa carmesim, com letras de ouro, Herzog segurando o seu bilhete por furar avançou para o comboio. Os atacadores dos sapatos arrastavam-se pelo chão. Fantasmas de um velho orgulho físico assaltavam-no ainda. No plano mais baixo, carruagens dum vermelho sujo de fumo, estavam à espera. Chegava ou ia partir? Por vezes não sabia.
Os livros que tinha nas algibeiras eram a pequena história de Pratt da Guerra Civil e diversos volumes de Kierkegaard. Embora tivesse deixado de fumar, Herzog era ainda arrastado para a carruagem dos fumadores. Gostava do fumo. Sentado num banco sujo de peluche, tirou um livro e leu. Pois morrer significa que tudo terminou, mas morrer a morte significa experimentar a morte, tentando pensar no sentido que isto poderia ter. Se... Sim... Não... por outro lado, se a existência é náusea, então a fé é um alívio incerto. Ou antes — deixa-te demolir pelo sofrimento e sentirás o poder de Deus enquanto ele te recompuser. Belas leituras para um depressivo! Herzog, à secretária, sorriu.
Deixou tombar a cabeça nas mãos, quase rindo silenciosamente. Mas no comboio estava a estudar laboriosamente, em completa seriedade. Todos os vivos estão desesperados (?). E esta é a doença para a morte (?). É que um homem se recusa a ser o que é (?).
Fechou o livro quando o comboio chegou aos montões de ferro velho de Nova Jersey. Tinha a cabeça escaldante. Conseguiu um pouco de frescura encostando ao rosto o grande emblema Stevenson que tinha na lapela. O fumo na carruagem era doce, de podridão, rico. Encheu até fundo os pulmões com ele — uma impureza excitante; aspirou, arrebatado, a estagnação de velhos cachimbos. As rodas corriam velozes, com um matraquear agudo, ao rodar nos carris. O sol frio do Outono flamejava sobre os moinhos de Nova Jersey. Formas vulcânicas de escória, tumultos, lixeiras, refinarias, archotes fantasmas, e agora os campos e bosques. Os pequenos carvalhos flamejavam como metal. Os campos tornavam-se azuis. Cada antena de rádio parecia o fundo de uma agulha com um pingo de sangue dentro. Os tijolos monótonos de Elizabeth caíam por trás. No crepúsculo, Trenton aproximava-se como o cerne de um fogo de carvão. Herzog leu a divisa municipal — Trenton Produz, o Mundo Consome! Ao anoitecer, com um brilho eléctrico e frio, surgiu Filadélfia. Pobre homem, a saúde fraquejava-lhe.
Herzog sorria amargamente ao pensar nas pílulas que tomara, e no leite que bebera durante a noite. Junto à sua cama em Filadélfia juntava-se por vezes uma dúzia de garrafas. Ingeria leite para acalmar o estômago.
Vivendo entre grandes ideias e conceitos, insuficientemente adaptáveis às condições americanas presentes, quotidianas. Bem vê, Monsenhor, se aparece na televisão com velhas albas e sobrepelizes da igreja católica há pelo menos um número suficiente de irlandeses, polacos e croatas que assistem, para o compreender, erguendo braços elegantes para o céu e fixando os seus olhos como se se tratasse de uma silenciosa estrela de cinema — Richard Barthelmess ou Conway Tearle; as classes laboriosas católicas têm nele grande orgulho. Mas eu, um erudito de história, intelectual, sofrendo de confusão emocional... convencido de que a extensão do espaço universal não destrói o valor humano, de que o reino dos factos e o dos valores não estão eternamente separados. E uma ideia estranha entrou no meu espírito (judeu), a de que isso se provaria. A minha vida havia de mostrar algo de completamente diferente. Muito cansado da moderna face do historicismo que vê nesta civilização a derrota das melhores esperanças da religião e do pensamento ocidentais, aquilo a que Heidegger chama a segunda Queda do Homem no quotidiano ou vulgar. Nenhum filósofo sabe o que é o vulgar, nenhum caiu nele até à necessária profundidade. O problema da experiência humana vulgar é o problema principal destes séculos modernos, como Montaigne e Pascal, que não concordam noutros pontos, viram ambos claramente. — A força da virtude do homem ou da sua capacidade espiritual medidas pela sua vida quotidiana e vulgar.
De qualquer modo a ideia, sem dúvida louca, de que as minhas acções pessoais têm importância histórica instalou-se no meu espírito, E isto (fantasia?) fez-me considerar que as pessoas que me prejudicam interferem numa importante experiência.
Herzog tragicamente beberricando leite em Filadélfia, um frágil lunático cheio de esperança, sorvendo do copo de cartão para aquietar o estômago e afogar o espírito inquieto, cortejando o sono. Pensava em Marco, Daisy, Sono Oguki, Madalena, nos Pontritters, e de vez em quando na diferença entre a tragédia antiga e moderna segundo Hegel, na experiência mais íntima do coração e no aprofundamento do carácter individual na época moderna. O seu próprio carácter individual independentemente, por vezes, tanto de factos como de valores. Mas o carácter moderno é inconstante, dividido, vacilante, falho da certeza pétrea do homem arcaico, privado igualmente das ideias firmes do século XVII, teoremas claros e rígidos.
Moisés queria fazer todo o possível por melhorar a condição humana, acabando por tomar uma pílula sonífera para se defender. No maior interesse de todos. Mas perante a sua turma da manhã em Filadélfia, mal podia fitar as notas para a lição. Tinha os olhos inchados e a cabeça adormecida, mas o seu coração ansioso batia mais rápido que nunca.
O pai de Madalena, uma forte personalidade, de inteligência de primeira, com muitas das vaidades peculiares e grotescas da Nova Iorque teatral, afirmou-me que eu lhe poderia fazer muito bem. Disse: — Bem, já é tempo de ela deixar de andar para aí com gente esquisita. Ela é como uma quantidade de meninas bem da universidade — todas as amigas dela são homossexuais. Tem mais achas aos pés que Joana d'Arc. É um bom sinal estar interessada por si. — Mas o velhote achava-o também um pobre diabo. Esse facto psicológico não foi camuflado. Fora ter com Pontritter ao estúdio, pois Madalena dissera: — O meu pai insiste em ter uma conversa contigo. Gostaria que passasses por lá. — Encontrou Pontritter a dançar o samba ou o chá-chá-chá (Herzog não sabia distingui-los) com a professora, uma filipina de meia idade que pertencera a um bem conhecido conjunto de tango (Ramon e Adelina). Adelina engrossara de tronco, mas as suas longas pernas mantinham-se esguias. A pintura que usava não lhe aclarava muito o rosto escuro. Pontritter, esse homem de figura imensa com fios dispersos e brancos a nascerem-lhe no crânio bronzeado (usava uma lâmpada solar todo o Inverno) dava pequenos passos com as suas alpercatas de lona de sola de borracha. As calças descaídas moviam-se-lhe de um lado para o outro ao baloiçar as ancas largas. Os seus olhos azuis eram severos. A música tocava, arrastada e matraqueante, ritmos curtos, com metálicos sons de bater e raspar. Ao parar, Pontritter perguntou, com interesse um tanto distante: — Você é Moisés Herzog?
— Exactamente. — Apaixonado pela minha filha?
— Sim.
— Isso não lhe está a fazer grande bem à saúde, pelo que vejo.
— Não tenho passado lá muito bem. Sr. Pontritter.
— Toda a gente me chama Fitz. Esta é Adelina. Adelina... Moisés. Está a fazer a corte à minha filha. Pensei que não chegaria a ver este dia. Bem, parabéns... Esperemos que a Bela Adormecida acorde.
— Adio, guapo — cumprimentou Adelina. Nada havia de pessoal neste cumprimento. Os olhos de Adelina estavam concentrados na acção de acender o cigarro.
Tirou um fósforo da mão de Pontritter. Herzog lembrava-se de pensar como era perfeitamente externo aquele jogo com o fósforo, sob os focos do estúdio. Calor artificial ou nulo.
Mais tarde, nesse dia, teve uma conversa com Tennie Pontritter também. Enquanto Tennie falava da filha, assomaram-lhe, rápidas, as lágrimas aos olhos. Tinha uma fisionomia calma, de quem sofreu prolongadamente, um pouco chorosa mesmo quando sorria, e muito melancólica quando a encontravam por acaso, como sucedeu com Herzog, na Broadway, e lhe descortinavam o rosto — tinha uma estatura mais que mediana — , dirigindo-se para ele, grande, calma, gentil, com permanentes rugas de sofrimento aos cantos da boca. Convidou-o para se sentar com ela na Praça de Verdi, o jardinzeco de relva esfarrapada entre grades e cercado sempre por uma multidão sentada de velhos e velhas moribundas, e pedintes aleijados, lésbicas balanceando-se como motoristas de camiões e frágeis negros homossexuais com cabelos pintados e brincos.
— Não tenho muita influência na minha filha — confessou Tennie. — Claro que gosto imenso dela. Mas a vida não tem sido fácil. Tenho sido obrigada a acompanhar Fitz. Esteve na lista negra durante anos. Não podia ser desleal. No fim de contas, é um grande artista...
— Creio que... — murmurou Herzog. Ela esperara que ele aceitasse tal asserção.
— É um gigante — disse Tennie. Aprendera a dizer estas coisas com perfeita convicção. Só uma judia de boas famílias, com respeito pela cultura (o pai dela fora alfaiate e membro do Arbeiter-Ring, um erudito do ídixe) seria capaz de sacrificar a vida a um grande artista, como ela fizera — Numa sociedade de massas! — continuava ela. Fitava-o ainda com a mesma simpatia e expressão fraternal. — Uma sociedade de dinheiro! — Admirou-se com isto. Madalena contara-lhe, muito ácida para com os pais, que o pai precisava de cinquenta mil dólares por ano, e que os arranjava, o velho Svengali, de mulheres e papalvos encandeados pelo teatro. — Assim, Madyjulga que eu não me importo com ela... odeia o pai. Estou a contar-lhe isto, Moisés, pois acho que as pessoas devem ter instintivamente confiança em si. Bem vejo que Mady tem, e ela não é uma rapariga confiante. Portanto acho que deve estar apaixonada por si. — Eu estou por ela — disse Moisés, emocionado.
— Deve amá-la... Acho que a ama... A vida é tão complicada.
— Que sou mais velho... casado? É a isso que se pretende referir?
— Não vai magoá-la, pois não? Pense ela o que pensar, sou eu a mãe dela. Tenho um coração de mãe, diga ela o que disser. — Começou a chorar, suavemente. — Oh, Sr. Herzog... Tenho estado sempre entre os dois. Sei bem que não temos sido pais convencionais. Ela sente que eu me limitei a atirá-la para o mundo. E não há nada que eu possa fazer. Só você. Vai ter de dar à pequena a única coisa que a poderá ajudar. — Tennie tirou os seus óculos elaborados, tentando agora disfarçar o choro. O seu rosto, o nariz enrubescido e os olhos formavam o que a Moisés parecia um pedido humilde, cegamente ofuscado pelas lágrimas. Havia algo de hipocrisia e calculismo no método de Tennie, mas por trás disso, mais uma vez, transparecia um sentimento real para com a filha e o marido; e por trás deste sentimento real havia algo ainda mais significativo e sombrio. Herzog estava perfeitamente cônscio das camadas sobrepostas de realidade — asco, arrogância, estratagema e depois — valha-nos Deus! — verdade também. Compreendeu que estava a ser manipulado pela preocupada mãe de Madalena. Trinta anos de mulher boémia, das vulgaridades daquela ideologia trivial, e Tennie permanecia fiel, encadeada pelas monótonas jóias «abstractas» de prata que usava.
Mas tal não aconteceria jamais à filha, se pudesse evitá-lo. E Madalena tinha a mesma determinação de que não acontecesse. Neste contexto surgira Moisés, no banco da Praça Verdi. Tinha a cara barbeada, a camisa lavada, as unhas limpas, as pernas, um pouco pesadas nas coxas, estavam cruzadas e escutava Tennie muito pensativamente — para um homem cujo espírito deixara de trabalhar. Estava demasiado cheio dos seus grandes projectos para pensar claramente em qualquer coisa. Claro que compreendia o que Tennie pretendia dele, simplório, especificamente sensível a uma súplica como a dela. Tinha uma fraqueza pelas boas acções, e ela lisonjeou-lhe essa fraqueza, pedindo-lhe para lhe salvar a indomável filha desiludida. Paciência, simpatia amorosa e virilidade conseguiriam. Mas Tennie lisonjeou-o ainda mais subtilmente, dizendo a Moisés que ele poderia dar estabilidade à vida daquela rapariga neurótica e curá-la com a sua firmeza. Entre esta multidão de gente idosa, moribunda, aleijada, Tennie apelava para o auxílio de Moisés, agitava intensamente as suas simpatias impuras. Repulsivamente. O coração apertava-se-lhe. — Adoro Madalena, Tennie — afirmou ele. — Não terá de se preocupar. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
Uma pessoa arrebatada, precipitada, apaixonada e cómica.
Madalena tinha um apartamento num velho edifício, e Herzog ficava com ela quando estava na cidade. Dormiam juntos no sofá do estúdio coberto de marroquim. Moisés apertava-lhe o corpo toda a noite com fervor, exaltação. Ela não era tão fervorosa, mas não admirava devido à recente conversão. Além disso, um amante é sempre mais ardente que o outro. Por vezes tinha lágrimas de raiva e desdita nos olhos e queixava-se dos seus pecados. No entanto, desejava-o, também.
Às sete da manhã, parecendo antecipar o despertador um breve segundo, espreguiçava-se e quando aquele tocava já estava a exclamar com sufocada raiva: — Diabo! — e a correr para a casa de banho. As instalações aí eram antiquadas. Tinham sido apartamentos de luxo por volta de 1890. As torneiras de boca larga deixavam correr uma corrente irregular de água fria. Tirava o casaco do pijama de forma que ficava nua até à cintura, e lavava-se com um pano, limpando-se com vigor irado, tornando-se-lhe vermelho o rosto, de olhos azuis, rosados os seios. Silencioso, usando o impermeável como roupão, Herzog entrava e sentava-se na berma da banheira, a olhar.
O mosaico era cor de cereja desbotada e o suporte para a escova de dentes, bem como os restantes acessórios, eram decorados, de velho níquel. A água jorrava da torneira, e Herzog assistia à transformação de Madalena numa mulher mais velha. Tinha um emprego em Fordham, e o primeiro requisito para ela era parecer séria e amadurecida, há muito radicada na Igreja. A sua curiosidade aberta, o facto de compartilhar com ela familiarmente a casa de banho, a nudez sob o impermeável, a sua pálida cara pela manhã neste cenário de velho luxo vitoriano — tudo isto a vexava. Não o olhava enquanto se arranjava. Por cima do soutien e das cuecas punha uma camisola de gola alta e para proteger os ombros da camisola usava uma capa de plástico. Impedia que caíssem partículas do pó de arroz na lã. Então começava a aplicar os cosméticos — os frascos e pós enchiam as prateleiras sobre o lavatório. O que quer que fizesse, fazia-o com velocidade e eficiência, sem hesitações, apressadamente, mas com a segurança de uma especialista. Os gravadores, pasteleiros, trapezistas trabalhavam desta forma. Ele achava-a demasiado descuidada — avançando depressa de mais, prestes a errar, mas tal não acontecia. Primeiro espalhava uma camada de creme nas faces, esfregando-o até ao nariz direito, ao queixo infantil e à garganta suave. Era uma matéria cinzenta, com um azulado de pérola. A base. Espalhava-a com uma toalha. Sobre isto punha a maquilhagem. Trabalhava com pedacitos de algodão, sob a linha dos cabelos, junto aos olhos, nas maçãs do rosto e na garganta, apesar dos suaves círculos de carne femininos, havia já algo discernivelmente ditatorial naquela garganta estendida. Não deixava Herzog acariciar-lhe a cara de cima para baixo — era mau para os músculos. Sentado, olhando, na borda da luxuosa banheira, enfiava as calças, metia para dentro a camisa. Não dava por ele; tentava, de certa forma, ver-se livre dele ao iniciar a sua vida diurna.
Punha um pálido pó com a borla, à mesma desenfreada velocidade, como se estivesse desesperada. Depois voltava-se rápida, para examinar o trabalho — perfil esquerdo, perfil direito — aproximando-se do espelho, juntando as mãos como se fosse segurar o busto, mas não chegando a tocar-lhe. Estava satisfeita com o pó de arroz. Dava uns toques de vaselina nas pálpebras. Pintava as pestanas com um pequeno rolito. Moisés participava em tudo isto, intensa, silenciosamente. Ainda sem pausas ou hesitações, riscava um traço negro ao canto exterior de cada olho, e desenhava a linha das sobrancelhas para a tornar regular e séria. Depois pegava numa grande tesoura de alfaiate e levava-a às madeixas. Parecia não precisar de medir; tinha a imagem impressa na vontade. Cortava, como se disparasse uma espingarda, e Herzog sentia um impulso de alarme, num curto-circuito. O poder de decisão dela fascinava-o, e nessa fascinação descobria a sua própria infantilidade. Ele, uma pessoa válida, sentado na borda dessa velha banheira pomposa, de esmalte riscado de um emaranhado de cabelos como um ruibarbo cozinhado, absorto nesta transformação do rosto de Madalena. Começava por besuntar os lábios com uma matéria com aspecto de cera, depois pintava-os de um vermelho acastanhado, acrescentando anos à sua idade. Esta boca de cera era quase suficiente para isso. Humedecia um dedo na língua, e dava os últimos retoques. Estava pronta. Olhava com uma gravidade de sobrancelhas franzidas para o espelho e parecia satisfeita. Sim, estava bem. Vestia uma comprida e pesada saia de tweed, que lhe escondia as pernas. Os saltos altos faziam-lhe sobressair levemente os tornozelos. E agora o chapéu. Era cinzento, de copa baixa, abas largas. Quando o punha sobre a cabeça esguia transformava-se numa mulher de quarenta anos — numa branca histérica, hipocondríaca genuflectora de igreja. A aba larga sobre a testa agitava a intensidade emotiva infantil, o medo, o desejo religioso — que pena tudo aquilo fazia! Enquanto ele, o judeu gasto, por barbear, pecador, pondo-lhe em perigo a redenção — apertou-se-lhe o coração. Mas ela mal o fixava. Pusera o casaco com a gola de esquilo e procurava, por baixo, ajustar os enchumaços dos ombros. Aquele chapéu! Parecia um encanastrado de uma longa fita cinzenta, com meia polegada de largura, como o que usara aquela senhora cristã que lera com ele a Bíblia na enfermaria do hospital em Montreal. «O vento sopra onde deseja e vós ouvistes-lhe o som...». Não faltava sequer um alfinete de chapéu. Estava terminada a tarefa. Tinha a cara lisa e de meia idade. Só os globos oculares se mantinham intactos, e as lágrimas pareciam prestes a irromper deles. Parecia zangada — furiosa. Queria-o ali de noite. Pegaria mesmo, num semi-rancor, na mão dele e pô-la-ia sobre o peito ao adormecer. Mas de manhã gostaria que desaparecesse. E ele não estava habituado a isso; estava habituado a ser um favorito. Mas era esta a nova geração feminina, dizia para consigo próprio. Para ela era um sedutor paternal, a encanecer, paciente (não podia acreditar!). Mas os papéis tinham sido distribuídos. Ela exibia o seu rosto branco de convertida e Herzog não podia recusar-se a representar o contrário. — Não devias sair sem tomar o pequeno-almoço — aconselhou ele.
— Não. Atrasar-me-ia.
As pastas haviam-lhe secado na pele. Colocou uma grande cruz ao peito. Era católica apenas havia três meses, e já por causa de Herzog não se podia confessar, não podia fazê-lo ao Monsenhor, pelo menos.
A conversão era um acontecimento teatral para Madalena. Teatro — a arte dos novos ricos, oportunistas, dos que se pretendem aristocratas. O próprio Monsenhor era um actor. Um papel, mas volumoso. Evidentemente, tinha sentimentos religiosos, mas o encanto e a promoção social eram mais importantes. O senhor é famoso por converter celebridades, e ela dirigiu-se-lhe. Só do melhor para a nossa Mady. A interpretação judaica da senhora ou do cavalheiro cristão magnânimos é um curioso capítulo da história do teatro social. As Altas Dignidades são continuamente abastecidas a partir do baixo. De onde havia de vir qualquer pessoa distinta, se não das massas? Com a devoção e o fogo do ressentimento transcendente. Não nego que tenha igualmente tido influência em mim. A mim próprio me agradava ver-me envolvido em tal processo.
— Sentir-te-ás mal se fores trabalhar de estômago vazio. Toma o pequeno-almoço comigo e pago-te um táxi para Fordham.
Decidida, mas pouco à vontade, deixou a casa de banho, com os passos tolhidos pela inestética saia comprida. Queria voar, mas com o chapéu que parecia uma roda de carroça, os tweeds, as medalhas religiosas, a grande cruz ao peito, o coração pesado, não era fácil escapar-se.
Seguiu-a através do quarto forrado de espelhos, velhas gravuras emolduradas de altares flamengos, dourados, verdes e vermelhos. As maçanetas das portas e fechaduras encontravam-se imobilizadas por muitas camadas de pintura. Madalena avançava, impaciente. Herzog, que caminhava atrás, escancarou com um empurrão a branca porta de entrada. Transpuseram um corredor com malas e desperdícios sobre a carpete, outrora luxuosa, desceram no elevador decadente, saíram daquele enclausurado poço negro para a fachada porfiróide do átrio bolorento, para a rua apinhada.
— Não vens? Que estás a fazer? — indagou Madalena.
Talvez não estivesse completamente acordado. Herzog parara por um momento diante da peixaria, atraído pelo cheiro. Um negro delgado e musculado arremessava pedaços de gelo para a profunda montra. Os peixes estavam juntos, de dorsos arqueados como se nadassem no gelo comprimido e fumegante, de um bronzeado de sangue, de um viscoso verde-negro, cinzento-ouro — as lagostas empurravam-se no gelo, de antenas inclinadas. A manhã estava tépida, cinzenta, húmida, fresca, cheirando a rio. Detendo-se junto às portas metálicas do ascensor, à beira do passeio, Moisés sentiu o desenho em relevo do aço através das finas solas dos sapatos; como Braille. Mas não interpretou uma mensagem. Os peixes encontravam-se prisioneiros, como que vivos, nos blocos brancos, espumantes de gelo. A rua estava repleta, tépida e cinzenta, íntima, suja, perfumada pelo rio poluído, o odor salobro da maré que agita sexualmente.
— Não posso esperar por ti, Moisés — disse Madalena, peremptoriamente, por sobre o ombro.
Entraram no restaurante e sentaram-se à mesa de fórmica amarela.
— Porque é que estavas ali a perder tempo?
— Bem, a minha mãe veio das províncias do Báltico. Adorava peixe.
Mas Madalena não estava interessada na mãe Herzog, morta havia vinte anos, por mais ligada à mãe que estivesse a alma deste cavalheiro. Moisés, pensando, deu-lhe razão. Era para Madalena um sujeito paternal — não podia esperar que ela se debruçasse sobre a mãe dele. Era um dos mortos mortos, que não influíam na nova geração.
Sobre a mesa forrada a amarelo havia uma flor vermelha. Os botões aguçados da flor num suporte de metal como um colarinho engomado, afundados até ao pescoço. Curioso de saber se seria ou não de plástico também, Herzog tocou-lhe. Descobrindo que era autêntica, retirou rapidamente os dedos. Madalena observava.
— Bem sabes que estou com pressa — disse.
Ela gostava de brioches ingleses. Pediu-os. Chamou a criada. — Abra o meu. Por favor não o corte às fatias. — Aproximou o queixo de Moisés, então, e disse: — Moisés, a minha pintura está bem... no pescoço?
— Com a tua pele, não precisas de nada disto.
— Mas está mal?
— Não. Posso ver-te mais tarde?
— Não tenho a certeza. Convidaram-me para um cocktail em Fordham... em honra de um dos missionários.
— Mas depois... posso apanhar um dos últimos comboios para Filadélfia.
— Prometi à mãe... Está outra vez com problemas com o pai.
— Pensei que já estava tudo arrumado... divórcio.
— Ela é uma escrava! — exclamou Madalena. — Não o quer deixar, nem ele a ela. É para bem dele. Continua a ir para aquele diabo da escola de actores a desoras e faz-lhe o trabalho de guarda-livros. Ele é o grande sentido da vida dela — outro Stanislavsky. Sacrificou-se, e se ele não é um grande génio para que serviu?! Portanto ele é um grande génio.
— Tenho ouvido dizer que ele é um notável director.
— Tem qualquer coisa — confirmou Madalena. — Uma espécie de perspectiva quase feminina. E droga as pessoas... é má a maneira como o faz. Tennie diz que ele gasta uns cinquenta mil dólares por ano só consigo próprio. Utiliza todo o seu génio para queimar aquele dinheiro.
— Parece-me, pelo que oiço, que ela lhe faz a escrita por tua causa... tentando salvar para ti o que puder.
— Não deixará senão ajustes de contas com a justiça e dívidas... — Pousou os dentes sobre o brioche torrado — eram de rapariga, curtos. Mas, depois, não comeu. Pousou o brioche, os olhos alargaram-se-lhe segundo a estranha forma que lhes era peculiar.
— Que há? Come.
No entanto, ela afastou o prato. — Pedi-te para não me telefonares para Fordham. Enerva-me. Tenho de manter as duas coisas separadas.
— Desculpa. Não tornarei.
— Tenho estado fora de mim. Tenho vergonha de me ir confessar ao Monsenhor.
— Não serve outro padre?
Pousou a chávena com um estalido agudo de porcelana grosseira de restaurante. Uma pálida marca de bâton ficara na borda. — O último padre armou comigo um inferno por tua causa. Perguntou-me há quanto tempo é que eu tinha ingressado na Igreja? Porque é que fui baptizada se tencionava agir assim uns meses depois! — Os grandes olhos da mulher de meia idade em que se transformara acusavam-no. Transversais no seu rosto branco, estendiam-se as sobrancelhas direitas que desenhara. Julgava conseguir descobrir-lhes por baixo a linha autêntica.
— Meu Deus! — exclamou Moisés. Parecia arrependido. — Não quero criar problemas. — Isto decerto que não era verdade. Pelo contrário, tendia a criar problemas. Considerava que a dificuldade era o único objectivo. Ela pretendia que Moisés e o Monsenhor lutassem pela posse dela. Aumentava a excitação sexual. Ele batia-se pela sua apostasia pela calada. E por certo o Monsenhor convertia mulheres com os seus olhos flamejantes.
— Sinto-me uma desgraçada... uma desgraçada — disse ela. — Em breve será Quarta-Feira de Cinzas, e não posso tomar a Comunhão antes de me confessar.
— É uma maçada... — Moisés realmente tinha pena dela, mas não estava disposto a abandonar a sua posição.
— E quanto ao nosso casamento? Como é que podemos casar-nos?
— Pode-se arranjar... a Igreja é uma instituição velha e sabida.
— No escritório falam de Joe Di Maggio, quando queria casar com Marilyn Monroe. E o caso de Tyrone Power... um dos seus últimos casamentos foi celebrado por um príncipe da Igreja. No outro dia houve outra coisa no Leonard Lyons sobre divórcios católicos. — Madalena lia todos os artigos de bisbilhotice. As suas marcas de livros em Santo Agostinho e no missal eram colunas do Post e do Mirror.
— Favorável? — perguntou Herzog, fechando o brioche e apertando-o. Tinha demasiada manteiga.
Os grandes olhos cor de violeta de Madalena pareciam inchados. Tinha os pensamentos imbuídos destas dificuldades, muitas vezes analisadas.
— Vou encontrar-me com um padre italiano na Sociedade para a Propagação da Fé. É um especialista da lei canónica. Telefonei-lhe ontem! Há doze semanas na Igreja, já sabia tudo.
— Seria mais fácil se Daisy se divorciasse de mim — disse Herzog.
— Ela tem de te dar o divórcio. — A voz de Madalena ergueu-se, impetuosa. Herzog deu por si a olhar para o rosto preparado para os jesuítas. Mas algo acontecera — uma mola se apertava e torcera no peito dela, e a figura tornou-se-lhe rígida. As pontas dos dedos empalideceram-lhe ao apertar as bermas da mesa e fixá-lo, com os lábios comprimidos e uma cor mais escura transparecendo sob a palidez tuberculosa da maquilhagem. — O que é que te leva a pensar que eu tenciono andar assim contigo toda a vida? Quero uma acção.
— Mas Mady... bem sabes o que eu sinto...
— Sentes. Não repitas esse rol de lugares-comuns sobre sentimentos. Não acredito nisso. Acredito em Deus... pecado... morte... portanto não me venhas com tretas sentimentais.
— Não, mas ouve. — Pôs o seu chapéu de feltro, como se esperasse ganhar assim alguma autoridade.
— Quero casar-me — prosseguiu ela — , o resto são cantigas. A minha mãe viu-se obrigada a levar uma vida boémia. Trabalhava, enquanto Pontritter se divertia. Ele subornava-me com dinheiro quando eu o via com uma das suas conquistas. Sabes como é que eu aprendi o ABC? Pelo Estado e Revolução de Lenine. Aquela gente é doida.
Provavelmente, concordou mentalmente Herzog. Mas agora Madalena quer Natais brancos e coelhinhos de Páscoa e viver talvez numa daquelas ruas de casas de tijolo, semi-independentes, nos ermos mortos de Queens, entretendo-se com vestidos de comunhão, com um sóbrio marido irlandês que varra migalhas na fábrica de bolachas.
— Talvez eu me tenha tornado fanática das coisas convencionais — confessou Madalena. — Mas não aceito de outra forma. Tu e eu temos de nos casar na Igreja, de outra forma, rompo. Os nossos filhos serão baptizados e educados religiosamente. — Moisés aquiesceu silenciosamente baixando ao de leve a cabeça. Comparado com ela, sentia-se estático, sem temperamento. A fragrância empoada do rosto dela excitava-o (a minha gratidão à arte, era a sua actual reflexão, a qualquer forma de arte).
— A minha infância foi um pesadelo grotesco — continuou Madalena. — Fui ameaçada, assaltada, vi-vi-vi... — gaguejou ela.
— Violada?
Baixou a cabeça. Já lho dissera. Não conseguia fazer luz sobre esse seu segredo sexual.
— Era um homem feito — contou ela. — Pagou-me para que me calasse.
— Quem era ele?
Os olhos marejaram-se-lhe subitamente e a formosa boca tornou-se-lhe desesperadamente vingativa mas silenciosa.
— Acontece a muita, muita gente — disse ele. — Não se pode basear nisso toda uma vida. Não tem assim tanta importância.
— O quê... um ano inteiro de amnésia não significa muito? Os meus catorze anos desaparecem.
Não podia aceitar esta consolação tolerante de Herzog. Talvez lhe parecesse uma espécie de indiferença. — Os meus pais quase me destruíram. Claro... agora não importa — disse ela. — Acredito no meu Salvador, Jesus Cristo. Não temo a morte agora, Moisés. Pon dizia que todos nós morríamos e apodrecíamos na sepultura. Dizer isso a uma rapariga de seis ou sete anos. Devia ter sido castigado por isso. Mas agora quero continuar a viver, e ter filhos, desde que tenha alguma coisa para lhes dizer quando me fizerem perguntas sobre a morte e a sepultura. Mas não esperes que eu me deixe andar à toa... sem leis. Não! Estas leis ou nada.
Moisés olhava-a como se estivesse submergido, através da distorção vítrea de água profunda.
— Estás a ouvir-me?
— Ah, sim — disse ele. — Sim. Estou a ouvir-te.
— Tenho de me ir embora agora. O padre Francis nunca chega um minuto atrasado. — Pegou na malinha de mão e afastou-se rapidamente, com as faces agitadas pelos passos abruptos. Usava saltos muito altos.
Ao correr para o metropolitano numa daquelas manhãs, prendeu-se-lhe um salto na bainha da saia e caiu, magoando-se nas costas.
Coxeando, subiu para a rua e tomou um táxi para o escritório, mas o padre Francis mandou-a ao médico, que a encheu de ligaduras e a aconselhou a ir para casa. Aí encontrou Moisés, ainda semi-vestido, a beber pensativamente uma chávena de café (estava permanentemente a pensar, mas nada de claro daí resultava).
— Ajuda-me! — pediu Madalena.
— Que aconteceu?
— Caí no metropolitano. Estou magoada. — A sua voz era penetrante.
— Fazias melhor em te deitar — retorquiu ele. Tirou-lhe os alfinetes do chapéu, e cuidadosamente desabotoou-lhe a blusa e a camisola, tirou-lhe a saia e a combinação. A cor clara, rosada, do corpo surgiu sob a linha da maquilhagem na base do pescoço. Tirou-lhe a cruz que trazia ao peito.
— Arranja-me um pijama. — Tremia. As largas ligaduras exalavam um intenso cheiro a drogas. Conduziu-a para a cama e deitou-se com ela para a aquecer e confortar, exactamente como ela queria que fizesse. Caía uma neve de Março naquele dia sombrio. Não voltou para Filadélfia.
— Fui castigada pelos meus pecados — repetia Madalena.
Pensei que lhe pudesse interessar saber a história autêntica de uma das suas convertidas, Monsenhor. Bonecos eclesiásticos — saias com fios de ouro, plangentes canudos de órgãos. O mundo real, para não falar já do universo infinito, necessitava de um carácter mais forte, verdadeiramente masculino.
Como o de quem?, pensou Herzog. O meu, por exemplo? E, em vez de concluir a sua carta para o Monsenhor, escreveu, para si próprio, uma das cantilenas infantis preferidas de June.
Gosto do gatinho, o seu pêlo é tão quente; Se não o magoarmos não faz mal à gente. Sento-me à lareira, dou-lhe de comer. Será meu amigo que boa eu vou ser.
É assim, pensou ele. Sim. Devemos visar a imaginação também para nós próprios, sem rodeios.
No fim de contas, Madalena não se casou pela Igreja, nem baptizou a filha. O catolicismo seguiu o mesmo caminho que cítaras e jogos de cartas, cozer de pão e civilização russa. E vida no campo.
Com Madalena, Herzog fizera a sua segunda tentativa de viver no campo. Para um judeu de uma grande cidade era particularmente dedicado à vida campestre. Forçara Daisy a suportar um Inverno gelado no Connecticut Oriental enquanto escrevia Romantismo e Cristianismo, numa vivenda em que os canos tinham de ser aquecidos com velas e rajadas geladas penetravam pelas paredes de tábuas sobrepostas, enquanto Herzog meditava no seu Rousseau ou tocava oboé. O instrumento fora-lhe deixado por morte de Aleck Hirshbein, seu companheiro de quarto em Chicago, e Herzog, com o seu invulgar sentido de piedade (muito profundo amor de Herzog; a dor nele não passava depressa), aprendeu sozinho a tocar o instrumento e, pensando bem, a sua música triste devia ter oprimido Daisy ainda mais que os meses de gélido nevoeiro. Talvez o carácter de Marco tivesse sido também afectado pela experiência; por vezes mostrava ressaibos de melancolia.
Mas com Madalena ia ser completamente diferente. Ela abandonou a Igreja, e depois de uma disputa com Daisy e os advogados de ambos, e sob pressão de Tennie e Madalena, Moisés divorciou-se e tornou a casar. O lanche de casamento foi confeccionado por Phoebe Gersbach. Herzog, à sua secretária, fitando grandes rolos de fumo (o céu raramente claro de Nova Iorque), recordou o pudim de Yorkshire e o noivo. E Gersbach, animado, brincalhão, servia uísque, vinho, remexia na mesa, dançava, coxeando, com a noiva. Usava uma das suas camisas desportivas preferidas que se abria no peito largo e se afastava suavemente nos ombros. Decote masculino. Não havia outros convidados. A casa em Ludeyville foi comprada quando Madalena ficou grávida. Parecia o lugar ideal para tratar dos problemas por que Herzog enveredara em a fenomenologia do Espírito — a importância da «lei do coração» nas tradições ocidentais; as origens do sentimentalismo moderno e assuntos afins, sobre o que tinha ideias nitidamente pessoais. Ia — sorriu secretamente agora, ao recordá-lo — , ia abordar o assunto de tal forma que puxaria o tapete por baixo dos pés de todos os eruditos, mostrar-lhes do que se tratava, confundi-los, expor-lhes de uma vez para sempre a trivialidade. Não era simples vaidade, mas um sentido de responsabilidade o motivo subjacente. Isso di-lo-ia a si próprio. : Era um tipo bienpensant. Levava a sério a crença de Heinrich Heine de que as palavras de Rousseau se haviam transformado na máquina sangrenta de Robespierre, que Kant e Fichte eram mais perigosos que exércitos. Tinha uma pequena bolsa de uma fundação, e o legado de vinte mil dólares do pai Herzog foi aplicado na casa de campo.
Deitou mãos ao trabalho de cuidar dela. Vinte mil e mais ainda ter-se-iam escoado se não se tivesse deitado ao trabalho — economias do pai, representando quarenta anos de miséria na América. Não compreendo como foi possível, pensou Herzog. Estava com febre quando passei o cheque. Nem olhei.
Mas depois de assinados os papéis inspeccionara a casa como se a visse pela primeira vez. Estava por pintar, sombria, com ornamentos vitorianos decadentes. No chão apenas um enorme buraco como uma cratera. O estuque desprendia-se — uma matéria bolorenta, manchada, asquerosa pendia das ripas. A antiquíssima instalação eléctrica era perigosa. Tijolos tombavam das paredes mestras. As janelas tinham gretas.
Herzog aprendeu o ofício de pedreiro, de polidor, de soldador. Passava noites sentado a estudar a Enciclopédia Faça Você Mesmo, e com histérica paixão pintou, remendou, consertou goteiras, tapou buracos. Duas demãos de tinta de nada valiam na velha madeira a estalar. Na casa de banho, era preciso pôr pregos e a cabeça destes entrava pelos mosaicos, que se desprendiam como cartas de jogar. O radiador de gás sufocava. O aquecimento eléctrico rebentava com os fusíveis. A banheira era uma relíquia; tinha por base quatro garras de metal, e parecia um brinquedo. Tinham as pessoas de se acocorar lá dentro e de se lavar com a esponja. No entanto, Madalena trouxera do Sloane's (loja de artigos de banho) toalheiros luxuosos, prateados, em forma de concha de ostra, barras de sabonete Ecusson, felpudas toalhas turcas. Herzog trabalhava no lodo enferrujado do autoclismo, tentando pôr em funcionamento a : torneira e o flutuador. À noite ouvia o gotejar que ia esvaziando o depósito.
Um ano de trabalho salvou a casa da derrocada.
Na cave havia outra casa de banho com paredes da espessura duma arca. No Verão os grilos preferiam-na, e o mesmo sucedia com Herzog. Aqui passava o tempo debruçado sobre um Dryden e Pope comprados pela pechincha de dez cêntimos. Por uma abertura via a manhã ardente no auge do Verão, o confuso emaranhado verde das videiras, e as cabeças empertigadas e belas de rosas bravas, o enorme ulmeiro em frente, moribundo, sobre si, o ninho do oriolo, cinzento e com forma de coração. Leu «Sou o cão de Sua Alteza em Kew». Mas Herzog contraíra uma ligeira artrite no pescoço. A cave de pedra tornou-se demasiado húmida. Removeu o tampo do autoclismo com um ruído dissonante e puxou o ajuste de borracha para deixar vazar a água. As diversas partes estavam enferrujadas, emperradas.
... O cão de Sua Alteza em Kew,
Por favor, Senhor, dizei-me de quem sois cão?
Procurava reservar as manhãs para trabalho intelectual. Mantinha correspondência com a Biblioteca Widener, procurando arranjar os Abhandlungen derKõniglicb Sãchsischen Gesellschaft der Wissenshaft. A sua secretária estava coberta de contas por pagar, cartas por responder. Para conseguir dinheiro aceitou trabalhos literários servis. Editoras universitárias enviavam-lhe manuscritos para serem sujeitos ao seu julgamento crítico. Ficavam em montes, por abrir. O sol aqueceu, a terra era húmida e negra, e Herzog olhava com desespero para a pródiga e exuberante vida das plantas. Tinha resmas de papel por encher, e nenhuma ajuda. A casa esperava-o — enorme, vazia, urgente, quo vult perdere dementat, escreveu sobre o pó. Os deuses agiam sobre ele, mas ainda não o tinham enlouquecido o suficiente.
Ao comentar monografias, a própria mão de Herzog se rebelava. Cinco minutos com uma carta e tinha uma cãibra de escritor. O rosto endurecia-se-lhe. Estavam a esgotar-se-lhe as desculpas. Lamento o atraso. Um caso grave de hera venenosa tem-me mantido afastado da secretária. De cotovelos fincados sobre os papéis, Moisés olhava para paredes semi-pintadas, tectos descorados, janelas imundas. Algo se passara com ele. Costumava ser capaz de manter a actividade, mas agora trabalhava com uns dois por cento de eficiência, pegava cinco ou dez vezes em cada folha de papel e colocava tudo em sítio indevido. Era de mais! Estava a afundar-se.
Retomou o oboé. No seu escritório escuro, com videiras enclavinhadas na janela saliente, Herzog tocava Hàndel e Purcell — jigas, bourrés, contradanças, de rosto inchado, os dedos rápidos nos botões, a música saltitando e correndo, distraída e triste. Em baixo, rumorejava a máquina de lavar, matraqueando dois baques em ritmo de relógio, outro desirmanado. A cozinha estava suficientemente suja para criar ratos. Gemas de ovos secavam nos pratos, o café esverdinhava nas chávenas — torradas, cereais, larvas saídas da medula dos ossos, moscas da fruta, moscas domésticas, notas de dólar, selos do correio e senhas comerciais encharcadas no balcão de fórmica.
Madalena, para estar longe da música dele, atirava com a porta de casa, atirava com a porta do carro. O motor rugia. O Studebaker tinha o silenciador roto. Partia pela encosta abaixo. Se não se lembrassem de seguir pela direita o escape arranhar-se-ia nas rochas. Herzog tocava mais devagar enquanto esperava pelo som. Aquele silenciador cairia um destes dias, mas deixara de lho dizer. Havia demasiadas conversas deste género. Irritavam-na. Por entre a cobertura de madressilva que inclinava para dentro a gelosia ficava a vê-la reaparecer na segunda curva da encosta. A gravidez avolumara-lhe as formas mas era ainda bela. Uma tal beleza faz dos homens reprodutores e servos. Ao guiar, o nariz movia-se-lhe involuntariamente sob a madeixa de cabelo que lhe obscurecia a vista (tudo parte do processo de conduzir). Os dedos, alguns elegantes, outros de unhas roídas, agarravam o volante de ágata. Ele declarava que não achava recomendável uma mulher grávida guiar. Achava que devia pelo menos obter uma carta de condução. Ela objectava que se um polícia a mandasse parar, saberia convencê-lo com falinhas mansas.
Quando ela partia, limpava o oboé, examinava as palhetas e fechava o bolorento estojo de peluche. Trazia um binóculo pendurado ao pescoço. De quando em quando tentava observar um pássaro. Geralmente desaparecia antes que conseguisse focar o aparelho. Abandonado, ficava sentado à secretária, uma porta lisa com pernas de ferro forjado. Filodendros cresciam junto à base do candeeiro, enrolando-se no ferro. Com um elástico atirava pedacitos de papel contra os moscardos pousados nas janelas manchadas de tinta. Não era um pintor habilidoso. Experimentou a pintura à pistola a princípio, ligando o aparelho a um aspirador, um pulverizador muito eficiente. Envolto em trapos para proteger os pulmões, Moisés borrifava os tectos, mas a pistola manchava as janelas e corrimãos, de forma que voltou ao pincel. Arrastando o escadote, as latas, farrapos e filtros, raspando com a espátula, remendava e pintava, voltando-se para a esquerda, para a direita, para cima, esticando-se para o lado, para a frente, para o canto, para as cornijas, tentando com a mão esticada conseguir uma linha recta, aplicando a tinta em grandes pinceladas ou numa agonia de subtileza. Sujo e escorrendo suor, quando terminava o frenesi, saía para o jardim. Despindo-se até à nudez, deixava-se cair na rede extenuado.
Entretanto, Madalena andava pelos antiquários com Phoebe Gersbach, ou trazia para casa carregamentos de artigos de mercearia dos supermercados Pittsfield. Moisés estava continuamente a censurá-la por causa de dinheiro. Ao principiar as suas censuras, fazia por manter a voz baixa. Era sempre qualquer coisa de trivial que o levava a falar — um cheque, um frango que apodrecera no frigorífico, uma camisa nova rasgada para trapos. Gradualmente começou a enfurecer-se.
— Quando é que acabas de trazer para casa estes trastes, Madalena, estas cómodas bojudas, estas rodas de fiar?
— Temos de mobilar a casa. Não suporto estas divisões vazias.
— Para onde vai todo o dinheiro? Estafo-me a trabalhar. — Sentia-se repleto de raiva.
— Pago as contas... que pensas tu que faço com ele?
— Disseste-me que tinhas de aprender a governar o dinheiro. Que nunca ninguém confiou em ti. Pois confiam agora e os cheques não param. Acabaram de falar da loja de confecções... Milly Crozier. Quinhentos dólares para um enxoval de futura mãe. Quem está para nascer... Luís XIV?
— Sim, bem sei, a tua querida mãe usava sacas de farinha.
— Não precisas do obstetra de Park Avenue. Phoebe Gersbach foi para o hospital de Pittsfield. Como é que te posso levar para Nova Iorque daqui? São três horas e meia.
— Iremos dez dias antes.
— E todo este trabalho?
— Podes levar o teu Hegel para a cidade. De qualquer forma há meses que não pegas num livro. Tudo isso não passa de uma confusão neurótica. Estas resmas de notas. É grotesca a tua desorganização. Não és melhor que qualquer outro especialista... preso em abstracções. Diabos levem Hegel, de qualquer forma, e a velharia desta casa. Precisa de quatro criadas e tu queres que eu faça o serviço todo.
Herzog tornava-se cansativo à custa de repetir o que estava certo. Era enervante também. Tinha consciência disso. Parecia saber como tudo se devia passar, até ao mais pequeno pormenor (sob a categoria do «Espírito Livre Concreto», má compreensão de um universal pela consciência em desenvolvimento — opondo-se a realidade à «lei do coração», esmagando terrivelmente a necessidade alheia a individualidade, undsoweiter). Sim, Herzog concordava que não tinha razão. Mas tudo o que pedia, assim o julgava, era um pouco de cooperação no seu esforço, que a todos beneficiava, de trabalhar para uma vida plena de sentido. Hegel era curiosamente significativo mas também perfeitamente ébrio. Decerto. Era um facto. Mais simples e sem uma tal elaborada algaravia metafísica era a Prop. XXXVII de Espinosa; o desejo do homem de que outros se regozijem com o bem com que se regozija, não para fazer os outros viverem de acordo com a sua maneira de pensar — ex ipsius in-genio. Herzog, remoendo estas ideias enquanto, sozinho, pintava as paredes em Ludeyville, construindo Versalhes e Jerusalém nos verdes e quentes Verões do Berkshire. De vez em quando era obrigado a descer do escadote para ir ao telefone. Os cheques de Madalena eram recambiados por falta de cobertura.
— Meu Deus! — gritava ele. — Não tornes a fazer isto, Mady!
Ela esperava-o com uma blusa de gravidez verde-garrafa e meias até ao joelho. Estava a ficar muito gorda. O médico aconselhara-a a não comer doces. Às escondidas, devorava vorazmente enormes tabletes de Hershey, das de trinta cêntimos.
— Não sabes fazer contas?! Não há desculpa para estes cheques. — Moisés fitava-a.
— Ora... lá voltamos à mesma conversa mesquinha.
— Não é mesquinha. É muitíssimo séria...
— Suponho que vais agora começar pela minha educação — a minha família ignóbil, perdulária, boémia, todos uns fraudulentos. E tu deste-me o teu bom nome. Já sei de cor esta lengalenga do costume.
— Repito-me. Bem, o mesmo fazes tu, com estes cheques.
— A gastar o dinheiro do teu pai morto. Querido papá! É isso que te aflige. Bem, era o teu pai. Não te peço que compartilhes do meu horrível pai. Portanto não tentes forçar-me a pensar no teu.
— Precisamos de uma certa ordem.
Madalena disse rápida, firme e ajustadamente. — Nunca terás o ambiente que tu queres. Esse encontra-se algures no século XII. Passas o tempo a chorar pela tua velha casa e pela mesa da cozinha com o oleado e o teu livro de latim. Muito bem — ouçamos a tua velha história. Fala-me da tua pobre mãe. E do teu pai. E do teu hóspede, o bêbado. E da velha sinagoga, e da produção ilícita de bebidas alcoólicas, e da tua tia Zipporah... Oh, bolas!
— Como se tu não tivesses um passado pessoal.
— Oh, bolas! Vamos portanto ouvir a maneira como me salvaste. Ouçamos mais uma vez. O bichinho espantado que eu era. Como eu não era suficientemente forte para enfrentar a vida. Mas deste-me amor, do teu grande coração, e libertaste-me dos padres. Sim, curaste-me das dores menstruais tratando-me tão bem. Salvaste-me, sacrificaste a tua liberdade. Afastei-te de Daisy e do teu filho, e da tua japonesa. Desperdicei o teu importante tempo, dinheiro e atenção. — O seu olhar ardente era tão intenso que parecia que os olhos se lhe entortavam.
— Madalena!
— Ora... merda!
— Pensa só um minuto.
— Pensar? Sabes porventura pensar?
— Talvez me tenha casado contigo para aperfeiçoar o meu espírito! — exclamou Herzog. — Estou a aprender.
— Bem, está descansado que te ensinarei! — disse a bela, grávida, Madalena por entre os dentes.
Herzog anotou, de uma fonte favorita — A oposição é a verdadeira amizade. A sua casa, o seu filho, sim, tudo o que um homem possui, dá-lo-á pela sabedoria.
O marido — uma bela alma — a esposa excepcional, a criança angélica e os amigos perfeitos viviam todos juntos nos Berkshires. O douto professor sentava-se a estudar... Sim, bem precisava de o fazer. Insistia em ser o ingénuo cuja seriedade lhe fazia vibrar o próprio coração — disse zisse n’shamele, uma almazinha pura, lhe chamara Tennie. Aos quarenta; ganhar uma reputação tão banal! A testa humedeceu-se-lhe. Uma tal estupidez exigia um castigo mais sério — uma doença, uma sentença de cadeia. Mais uma vez, estava a «ter sorte» (Ramona, vinho e pitéus, convites para a praia). Contudo, uma excessiva degradação de si próprio realmente também não lhe interessava. Não era o mais adequado. Não ser um louco podia não valer as difíceis alternativas. De qualquer forma, quem era esse não-louco? Seria o amante do poder, que vergava o público ao seu desejo — o intelectual cientista que administrava os orçamentos de milhões? Olhar perscrutador, uma cabeça rija, uma inteligência política incisiva — o realista organizador? Não seria bom ser um deles? Mas Herzog trabalhava sob outras ordens — fazendo o que julgava o trabalho do futuro. As revoluções do século XX, a libertação das massas pela produção, produziam a vida privada mas nada davam com que a preencher. Era neste ponto que faziam a sua entrada ele e outros como ele. O progresso da civilização — na realidade, a sobrevivência da civilização — dependia do êxito de Moisés E. Herzog. E tratando-o como o tratava, Madalena prejudicava um grande projecto. Era isto, aos olhos de Moisés E. Herzog, o que surgia como tão grotesco e deplorável na experiência de Moisés E. Herzog.
Um tipo muito especial de lunático espera inculcar os seus princípios. Sandor Himmelstein, Valentim Gersbach, Madalena P. Herzog, o próprio Moisés. Instrutores da realidade. Querem ensinar — punir com — as lições do Real.
Moisés, coleccionador de fotografias, guardara uma de Madalena, aos doze anos, em traje de montar. Posava com o cavalo, pronta a subir, rapariga entroncada de longos cabelos, com pulsos gordos e olheiras desesperadamente negras, sinais prematuros de sofrimento e um desejo de vingança. De calções, botas e boné tinha a altivez da miúda que sabe que não tardará a adolescência e o seu poder de ferir. Isto é política mental. A capacidade de fazer o mal é soberania. Ela sabia mais aos doze que eu aos quarenta.
Ora Daisy fora uma espécie de pessoa muito diferente — mais fria, mais regular, uma judia convencional. Herzog tinha fotografias dela também, no gavetão por baixo da cama, mas não precisava de examinar retratos, podia evocar-lhe o rosto quando quisesse — olhos verdes em amêndoa, grandes, cabelo ondeado, dourado, mas sem brilho, uma pele clara. Tinha modos tímidos, mas que não deixavam por isso de ser teimosos. Sem dificuldade, Herzog via-a como lhe aparecera numa manhã de Verão sob o El, na 51.a Rua, em Chicago, estudante universitária com velhos compêndios — Park e Burgess, Ogburn e Nimkoff. O seu vestido era simples, de linho às risquinhas brancas, com decote quadrado. Por baixo da sua pureza bem cuidada, trazia sapatinhos brancos, pernas nuas e tinha os cabelos presos em cima por um gorro. O eléctrico vermelho vinha dos bairros pobres para a zona ocidental. Retinia, oscilava, rolava por entre o pó, com o trólei flamejando chispas verdes, farrapos de papel voltejando à sua passagem. Moisés estava na plataforma cheirando a fénico quando ela entregou o bilhete de transferência ao condutor. Do seu pescoço e ombros nus aspirou o perfume de maçãs no Verão. Daisy era uma rapariga do campo, de Buckeye, que crescera perto de Zanesville. Era sistematicamente infantil. Por vezes Moisés divertia-se ao recordar que ela tinha uma série de cartões, grosseiramente impressos, que abrangiam todas as situações. A sua desajeitada forma de organização tivera um certo encanto. Quando se casaram ela pôs-lhe o dinheiro para uso pessoal num envelope que colocava num arquivo metálico verde que comprara para os orçamentos. Avisos quotidianos, contas, bilhetes de concertos eram presos com pioneses na borda do boletim. Os calendários eram marcados com muita antecedência. Estabilidade, simetria, ordem, auto-domínio eram a força de Daisy.
Querida Daisy, tenho algumas coisas a dizer-te. Pela minha irregularidade e turbulência de espírito fiz surgir o que de pior havia em Daisy. Fui eu que fiz com que as costuras das suas meias estivessem sempre tão direitas, e os botões fossem abotoados simetricamente. Eu estava por trás daquelas cortinas rígidas e por baixo das carpetes quadradas. O peito de vitela assado todos os domingos, recheado de pão que parecia barro, era devido às minhas desordens, à minha enorme implicação — enorme, mas evidentemente infernal — na história do pensamento. Aceitava como boas as afirmações de Herzog de que estava seriamente ocupado. Claro que o dever de uma mulher era acompanhar este perplexionante e por vezes desagradável Herzog. Fazia-o com uma pesada neutralidade, pronunciando a cada passo as suas objecções — uma vez, não mais. O resto era silêncio — um silêncio pesado como o que sentia em Connecticut ao terminar Romantismo e Cristianismo.
O capítulo sobre «Românticos e Entusiastas» quase o derreou — quase os arrasou a ambos. (A reacção Entusiástica contra a forma científica de suspender a fé, intolerável para as necessidades expressivas de certos temperamentos). Então Daisy fez as malas e deixou-o sozinho em Connecticut. Tinha de regressar a Ohio.
O pai estava a morrer. Moisés lia a literatura sobre o Entusiasmo na sua vivenda, junto ao pequeno fogão niquelado da cozinha. Envolto numa manta como um índio, ouvia a rádio — debatia consigo próprio os prós e os contras do Entusiasmo.
Era um Inverno de rochas de gelo. O lago parecia salgema — gelo verde, branco, ressoante, retinindo amargamente sob os pés. O gotejante dique do moinho gelava em pilares retorcidos. Os ulmeiros, gigantescas formas de harpas, emitiam sons crepitantes. Herzog, responsável perante a civilização no seu posto avançado, deitado na cama com uma indumentária de aviador quando o aquecimento estava apagado, interligava Bacon e Locke por um lado e o Metodismo e William Blake por outro. O seu vizinho mais próximo era um clérigo, o Sr. Idwal. O automóvel de Idwal, um Ford modelo A, andava, enquanto o Wbippet de Herzog gelava completamente. Iam no carro juntos ao mercado. A Sra. Idwal fazia tartes recheadas de gelatina de chocolate, e deixava-as, num gesto de afável vizinhança, sobre a mesa de Moisés. Regressava dos seus passeios solitários sobre o lago, na floresta, e encontrava tartes em grandes pratos Pyrex com os quais aquecia as faces e as pontas dos dedos. De manhã, comendo tarte de gelatina ao pequeno-almoço, via Idwal, vermelho e baixo, com óculos de aros metálicos, no seu quarto, exercitando-se com maças indianas, fazendo flexões em ceroulas compridas. A mulher sentava-se na salinha, de mãos fechadas, com a teia das cortinas de renda projectada no rosto pela luz do sol. Moisés era convidado para tocar o seu oboé, acompanhando a Sra. Idwal, que tocava acordeão nas tardes de domingo, enquanto as famílias dos lavradores cantavam hinos. E seriam lavradores? Não, eram camponeses pobres... com ocupações ocasionais. A pequena sala era quente, o ar viciado, os hinos de Moisés e do seu instrumento penetrados de melancolia judaica.
As suas relações com o Reverendo e a Sra. Idwal eram excelentes, até que o ministro começou a falar-lhe de rabis ortodoxos que tinham abraçado a fé cristã. As fotografias destes rabis de chapéus de pele, barbudos, eram deixadas com as tartes. As barbas esvoaçantes começaram a parecer a Moisés disparatadas, e achou que era tempo de deixar a vivenda rodeada de neve.
Preocupava-o a sua própria saúde mental, vivendo assim, especialmente após a morte do pai de Daisy. A Moisés parecia-lhe que o via, que o encontrava na floresta, e quando abria portas deparava com o sogro, expressivo e característico, esperando junto a uma mesa ou sentado na casa de banho.
Herzog cometeu um erro ao rejeitar os rabis de Idwal. O clérigo estava mais desejoso que nunca de o converter e visitava-o todas as tardes para discussões teológicas até Daisy regressar. Triste, perspicaz, geralmente muda, resistente. Mas uma esposa. E a criança! O degelo começou — ideal para fazer bonecos de neve. Moisés e Marco marginavam a estrada com eles. Pequenos olhos de antracite brilhavam mesmo à luz das estrelas. Na Primavera a escuridão da noite enchia-se de pios agudos. O coração de Herzog começou a entusiasmar-se com o campo. Os crepúsculos cor de sangue do Inverno e a solidão ficavam para trás. Não lhe pareciam tão intoleráveis agora que os tinha sobrevivido.
Sobrevivência! assentou. Até termos consciência do que isso é. Até haver oportunidade de exercer uma influência positiva. (A responsabilidade pessoal pela história, um traço da cultura ocidental baseada nos Testamentos, no Antigo e no Novo, a ideia do progresso contínuo da vida humana sobre esta terra. Que mais explicava a ridícula veemência de Herzog?) Senhor, compara lutar pela Tua santa causa, mas tropecei, nunca alcancei o palco da luta.
Via para além disso também. Quanto mais não fosse, era demasiado rico em doenças para ficar satisfeito com uma tal descrição. A meia altura de Nova Iorque, olhando para baixo, observando as multidões à hora do almoço, que mais pareciam formigas sobre um vidro fosco, Herzog, envolto no seu roupão amarrotado e bebericando café frio, afastado dos labores quotidianos em procura de realizações mais altas, mas actualmente sem confiança no seu chamamento, tentava de vez em quando retomar o trabalho. Caro Dr. Mos-sbach, lamento que lhe não tenha agradado o meu tratamento de T. E. Hulme e da sua definição de Romantismo como «religião transbordante». Há algo a dizer quanto ao seu ponto de vista. Ele desejava que as coisas fossem claras, secas, sóbrias, puras, frias, e duras. Isto penso que todos nós podemos sentir. Também a mim me repugnam a «humidade», como ele lhe chamava, e o formigueiro dos sentimentos românticos. Vejo que vilão era Rousseau, e que degenerado! (não me queixo de que não fosse cavalheiresco; mal me ficaria). Mas não vejo o que lhe possamos responder quando diz «Je sens mon coeur et je connais les hommes.» Religião engarrafada, de princípios conservadores — pretenderá isso privar o coração de tais capacidades — acha que sim? Os discípulos de Hulme fizeram da esterilidade a sua verdade, confessando impotência. Era esta a paixão deles.
Ainda combativo, Herzog era muito implacável em polémicas. As suas fórmulas polidas envolviam frequentemente muita melancolia. De modos dóceis, conduta modesta — não se enganava a si próprio. A certeza de estar certo, uma torrente de força, solevava-se-lhe nas entranhas e ardia-lhe nas pernas. Estranhas, as voluptuosas vitórias da ira! Havia uma sátira apaixonada em Herzog. Contudo sabia que a destruição do erro não era o problema. Começou a experimentar um novo horror de vencer, das vitórias da autonomia sem entraves. O homem tem uma natureza, mas o que é ela? Os que confiadamente a descreveram, Hobbes, Freud, etc, dizendo-nos o que somos «intrinsecamente» não são os nossos maiores benfeitores. Tal é verdade também em relação a Rousseau. Concordo com o ataque de Hulme à introdução feita pelos românticos da Perfeição nos homens, mas não gosto, igualmente, da estreiteza do seu recalcamento. A ciência moderna, menos preocupada com a definição da natureza humana, conhecendo apenas a actividade da investigação, consegue os seus mais profundos resultados através do anonimato, reconhecendo apenas o brilhante funcionamento do intelecto. A verdade que ela descobre pode nada valer como guia para a vida, mas talvez uma moratória sobre definições da natureza humana seja agora melhor. Herzog abandonou este tema com uma precipitação bem característica. Caro Nachman, escreveu. Sei que foste tu quem vi na 8.a Rua, na segun-da-feirapassada. Afugirde mim. O rosto de Herzog enrubesceu. Eras tu. O meu amigo de há quase quarenta anos — companheiros de brincadeiras na Rua Napoleão. O bairro pobre de Montreal. Com um boné de beatnik, na rua turbulenta de homossexuais com barbas de leão que pintavam os olhos de verde, lá, subitamente, ressurgia o companheiro de brincadeiras da infância de Herzog. Um nariz grosso, cabelo branco, espessos óculos sujos. O poeta abatido deitara um olhar a Herzog e fugira. Com as suas pernas descarnadas, apressado, correra para o outro lado da rua. Voltara para cima a gola e ficara a admirar a montra da loja de queijos. Nachman! Pensaste que eu iria pedir-te o dinheiro que me deves? Risquei essas contas, há muito. Significava muito pouco para mim, em Paris, depois da guerra. Tinha-o então.
Nachman viera à Europa para escrever poesia. Vivia no pobre bairro árabe
na Rua St. Jacques. Herzog estava confortavelmente instalado na Rua Marbeuf.
Enrugado e pouco asseado, Nachman, com o nariz vermelho de chorar, o seu rosto vincado como o rosto de um moribundo, apareceu à porta de Herzog uma manhã.
— Que aconteceu?
— Moisés, levaram-me a minha mulher... a minha Laurinha.
— Espera um momento... o que há? — Herzog foi talvez um pouco frio, então, reagindo contra tais excessos.
— O pai dela. O velhote da pavimentação de soalhos. Sumiu-ma. Velho bruxo. Ela morrerá sem mim. A rapariga não pode suportar a vida sem mim. E eu não posso viver sem ela. Tenho de voltar para Nova Iorque.
— Entra. Não se pode falar neste maldito vestíbulo.
Nachman entrou para a saleta. Era um apartamento mobilado no estilo dos anos vinte — irritantemente correcto. Nachman parecia hesitar em sentar-se, com as suas calças imundas. — Já estive em todas as companhias. Há lugar no Hollandia amanhã. Empresta-me massa ou estou perdido. És o meu único amigo em Paris.
Sinceramente, pensei que estarias melhor na América. Nachman e Laura tinham andado a vagabundear pela Europa, dormindo em valetas na terra de Rimbaud, lendo em voz alta um ao outro cartas de Van Gogh, e poemas de Rilke. Laura não era também muito equilibrada. Era esguia, com um rosto suave, os cantos da boca pálida inclinados para baixo. Apanhara gripe na Bélgica.
— Pagar-te-ei até ao último cêntimo. — Nachman torcia as mãos. Os dedos tinham adquirido nós... reumatismo. O seu rosto era duro — frouxo devido a doença, sofrimento, e absurdo.
Senti que, afinal de contas, seria mais barato fazer-te regressar a Nova Iorque. Em Paris estava preso a ti. Bem vês, não pretendo ter sido altruísta. Talvez, pensou Herzog, o facto de me ver o tivesse assustado a ele. Terei eu mudado mais do que ele? Estaria Nachman horrorizado por ver Moisés? Mas nós brincámos juntos na rua. Eu aprendi o aleph-beth com o teu pai, Reb Shika.
A família de Nachman morava na casa amarela mesmo em frente. Com cinco anos, Moisés atravessava a Rua Napoleão. Subia a escada de madeira de degraus irregulares e gastos. Gatos encolhiam-se aos cantos ou esgueiravam-se de mansinho escada acima. Os seus excrementos secos pisavam-se na escuridão exalando um cheiro intenso. Reb Shika, de tez amarela, mongol, era um homenzinho bem-posto. Usava um solidéu de cetim negro, um bigode como o de Lenine. De peito estreito, envergava uma camisola interior de Inverno — de lã Penman. A Bíblia estava aberta sobre a toalha grosseira. Moisés recordava claramente os caracteres hebraicos — Dmai Ochicho — o sangue do teu irmão. Sim, era isso. Deus falando a Caim. O sangue do teu irmão eleva a voz até mim da Terra.
Aos oito anos, Moisés e Nachman sentavam-se no mesmo banco na cave da sinagoga. As páginas do Pentateuco cheiravam a míldio, as camisolas dos rapazes ficavam húmidas. O rabi, com a sua barbicha, o grande nariz mole violentamente salpicado de pontos negros, ralhava com eles. — Tu, Rozavitch, meu preguiçoso. Que se diz aqui sobre a mulher de Putifar, V’tispesayu b’vigdi...
— E ela pegou em... , — Em quê? Pediu. , — Pediu um casaco.
— Um vestido, meu malandrote. Manzer! Tenho pena do teu pai. O belo herdeiro que ele tem! Um Kaddish! Hás-de comer presunto e porco antes deste corpo ir para a sepultura. E tu, Herzog, com olhos de hipopótamo — Vyaizov bigdo b'yodo.
— E ele deixou-o nas suas mãos.
— Deixou o quê?
— Bigdo, o vestido.
— Tu tem juízo, Herzog, Moisés. A tua mãe julga que virás a ser um grande lamden — um rabi. Mas eu conheço-te, conheço a tua preguiça. Os corações das mães são despedaçados por mamzeirim como tu! Ora, se não te conheço, Herzog! De cor e salteado.
O único refúgio era o WC, onde as bolas de cânfora desinfectante se desfaziam na calha verde do urinol, e velhotes desciam do templo com olhos confundidos, quase cegos, suspirando, murmurando passos da liturgia enquanto esperavam que a água viesse. Latão oxidado pela urina, de um verde sujo. Numa barraca aberta, com calças a roçar os pés, estava Nachman sentado, tocando harmónica. «It's a Long, Long Way to Tipperary.» «Love Sends a Little Gift of Roses» Usava a copa do boné torcida. Ouvia-se a saliva nas divisões do instrumento de lata quando inspirava o ar e soprava. Os mais velhos, com chapéu de feltro, lavavam as mãos, endireitavam as barbas com os dedos. Moisés observava-os.
Era quase certo que Nachman fugira à memória pertinaz do seu velho amigo. Herzog com ela perseguia toda a gente. Era uma arma terrível.
A última vez que nos encontrámos — há quanto tempo foi isso? — fui contigo visitar a Laura. Laura estava então num asilo de alienados. Herzog e Nachman tinham tido de mudar seis ou sete vezes de transporte. Ficava na milésima paragem de autocarro em Long Island. No hospital, as mulheres, com vestidos de algodão verdes, vagueavam nos corredores com sapatos silenciosos, murmurando. Laura tinha os pulsos ligados. Era, para Herzog, a sua terceira tentativa de suicídio. Estava sentada a um canto, segurando os seios com os braços, desejosa de poder falar exclusivamente de literatura francesa.
Tinha o rosto ausente, embora os lábios se lhe movessem rapidamente. Moisés teve de concordar com aquilo de que nada sabia — a forma das imagens de Valéry.
Depois ele e Nachman saíram, ao pôr-do-sol. Atravessaram o pátio cimentado, após uma chuva de Outono. Do edifício, uma multidão de fantasmas de uniformes verdes observava a partida dos visitantes. Laura, junto à cancela, ergueu o pulso ligado, uma pálida mão. Adeus. A sua boca comprida e fina dizia silenciosamente, Adeus, adeus. O cabelo liso caía-lhe rente às faces — uma rígida figura infantil com curvas de mulher. Nachman sussurrava, roucamente:
— Minha pobre inocente. Minha noiva. Afastaram-na de mim, os malditos, os machers — nossos senhores. Aprisionaram-na. Como se amar-me provasse que ela era louca. Mas eu serei suficientemente forte para proteger o nosso amor — dizia o descarnado Nachman sulcado de rugas. Tinha o rosto encovado. Sob os olhos a pele era amarela.
— Porque é que ela continua a tentar matar-se? — indagou Moisés.
— A perseguição da família dela, pois que pensas tu? O mundo burguês de Westchester! Participações de casamento, enxoval, contas de despesas, era isso que o pai e a mãe esperavam dela. Mas é uma alma pura que só compreende coisas puras. É uma estrangeira aqui. A família só quer afastar-nos. Em Nova Iorque fomos também vagabundos. Quando eu regressei — graças a ti, pagar-te-ei, trabalharei — não tínhamos dinheiro para alugar um quarto. Como é que eu podia aceitar um emprego? Quem olharia por ela? Assim, amigos deram-nos abrigo. Comida. Um beliche onde dormirmos. Para nos amarmos.
Herzog estava imbuído de curiosidade, mas limitou-se a dizer — Oh?
— Não o contaria a ninguém senão a ti, meu velho amigo. Tínhamos de ter cuidado. Nos nossos êxtases tínhamos de nos aconselharmos mutuamente a ser mais moderados. Era como um acto sagrado — não devemos fazer inveja aos deuses. — Nachman falava numa voz palpitante, sibilada. — Adeus, espírito abençoado... minha querida. Adeus. — Atirava-lhe beijos à janela com uma ternura dolorosa.
A caminho do autocarro, continuou a discursar desta forma irrealista, fervorosa e monótona. — Pois por trás de tudo isto está a América burguesa.
Este é um mundo cruel, de luxo e excrementos. Uma civilização orgulhosa, preguiçosa, que adora a sua própria rudeza. Tu e eu fomos criados na antiga pobreza. Não sei em que medida te tornaste americano desde os velhos tempos no Canadá — viveste aqui muito tempo. Mas eu nunca adorei os deuses obesos. Eu não. Não sou marxista, bem sabes. O meu coração está com William Blake e Rilke. Mas um homem como o pai da Laura! Estás a compreender! Las Vegas, a praia de Miami. Queriam que Laura arranjasse um marido em Fountainblue, um marido com dinheiro. À beira do fim do mundo, junto à última sepultura da humanidade, estarão ainda a contar as notas. Rezando pela prosperidade dos livros de contas. — Nachman continuou com a sua ênfase enfadonha e persistente. Perdera alguns dentes e tinha as maxilas mais pequenas; as faces cinzentas apresentavam-se hirsutas. Herzog era ainda capaz de o ver tal como fora aos seis anos. De facto, não podia evitar a visão dos dois Nachmans, lado a lado. E era a criança, com a sua cara fresca, o intervalo risonho entre os dentes da frente, a blusa abotoada e calções, que era real, não esta descarnada aparição de um Nachman pregando disparates. — Talvez — dizia ele — as pessoas desejem que a vida termine. Poluíram-na. Coragem, honra, franqueza, amizade, dever, tudo isso foi sujo. Manchado. De forma que odiamos o pão de cada dia que prolonga a existência inútil. Havia um tempo em que os homens nasciam, viviam e morriam. Mas pode-se chamar a isto homens? Somos apenas criaturas. A própria Morte deve estar farta de nós. Estou a ver a Morte chegar diante de Deus e dizer: — Que hei-de eu fazer? Já não há grandeza em ser a Morte. Libertai-me, Deus, desta tarefa mesquinha.
— Não é tudo tão mau como tu o pintas, Nachman — lembrou-se Moisés de responder. — A maior parte das pessoas não são poéticas, e tu consideras tal uma traição.
— Bem, meu velho amigo, aprendeste a aceitar uma sociedade mista. Mas eu tive visões do julgamento. Vejo sobretudo a obstinação dos aleijados. Não nos amamos, mas persistimos na teimosia. Cada homem é teimosamente, teimosamente ele próprio. Acima de tudo ele próprio, até à consumação dos tempos. Cada uma destas criaturas tem uma qualidade secreta, e por essa qualidade está pronta a fazer seja o que for. Voltará o universo do avesso, mas não concederá essa qualidade a mais ninguém. Antes deixar o mundo transformar-se num montão de destroços. É sobre isto que são os meus poemas. Não tens em grande conta os meus Novos Salmos. És cego, meu velho amigo.
— Possivelmente.
— Mas um bom homem, Moisés. Metido contigo. Mas um coração aberto. Como a tua mãe. Um espírito bom. Herdaste-o dela. Tive fome e ela deu-me de comer. Lavava-me as mãos e sentava-me à mesa. Lembro-me disso. Era a única pessoa amável para o meu tio Ravitch, o bêbedo. De vez em quando rezo por ela.
Yiskor elohim es nishmaslmi... a alma da minha mãe.
— Morreu há muito.
— E rezo por ti, Moisés.
O autocarro, com os seus pneus gigantescos avançava através de poças tingidas pelo crepúsculo, sobre folhas, ramos de ailanto. O percurso era interminável, através de uma vastidão baixa, de tijolo, suburbana, populosa.
Mas quinze anos mais tarde, na 8.a Rua, Nachman fugiu. Parecia velho, desamparado, abatido, curvado, ao correr para a loja de queijos. Onde está a mulher dele? Deve ter-se escapulido para evitar explicações. O seu louco sentido da decência aconselhava-o a escapar-se a um tal encontro. Ou terá esquecido tudo? Ou ficaria satisfeito por o esquecer? Mas eu, com a minha memória — todos os mortos e loucos estão sob a minha custódia, e sou o némesis dos supostos esquecidos. Prendo os outros aos meus sentimentos, e oprimo-os.
Ravitch era realmente teu tio, ou apenas um conterrâneo? Nunca o soube ao certo.
Ravitch estava hospedado em casa dos Herzogs, na Rua Napoleão. Como um actor trágico no palco ídixe, com o seu nariz rectilíneo de bêbedo e um chapéu de feltro que lhe comprimia as veias da testa, Ravitch, de avental, trabalhava na frutaria próxima da Rua Raquel em 1922. Aí, no mercado, com uma temperatura de zero graus varria um pó que era uma mistura de serradura e neve.
A montra estava coberta de grandes fetos de geada e contra ela se apertavam amontoadas laranjas de sangue e maçãs reinetas. Era assim o melancólico Ravitch, vermelho de álcool e frio. O projecto da sua vida era mandar vir a família, mulher e dois filhos que estavam ainda na Rússia. Teria de os encontrar primeiro, pois haviam desaparecido durante a Revolução. De vez em quando lavava-se sobriamente e dirigia-se à Sociedade para Auxílio aos Imigrantes Hebreus para obter informações. Mas nunca conseguiu saber fosse o que fosse. Bebia quanto ganhava — um shicker. Ninguém se julgava menos indulgentemente. Quando saía do tasco cambaleava na rua, sinalizava o trânsito, caía entre cavalos e camionetas na lama. A polícia estava farta de o atirar para o carro dos bêbedos. Traziam-no para casa, para o átrio dos Herzogs, e empurravam-no para dentro. Ravitch, noite alta cantava nas escadas geladas com uma voz soluçada.
«Alein, alein, alein, alein Elend vie a shtein Mitdietzenfinger — alein»
Yonah Herzog saía da cama e acendia a luz da cozinha, escutando. Usava um traje de dormir russo de linho com uma frente de pregas, os restos do seu guarda-roupa de cavalheiro de Petersburgo. O fogão estava apagado, e Moisés, que partilhava a cama com Willie e Shura, sentava-se, sentavam-se os três, debaixo do edredão, olhando para o pai. Este estava de pé sob a lâmpada que tinha um espigão na ponta como um capacete alemão. A grande torcida solta do filamento de tungsténio brilhava. Aborrecido e lamuriento, o pai Herzog, com a sua cabeça redonda e bigode castanho, olhava para cima. O velho sulco vertical entre os olhos surgia para logo desaparecer. Abanava a cabeça e meditava.
Só, só, só e só
Só como uma pedra, faço dó Com os meus dez dedos — só A mãe Herzog falava do quarto — Yonah, ajuda-o a entrar.
— Está bem — respondia o pai Herzog, mas continuava a esperar.
— Yonah.., coitado.
— Coitados de nós também — retorquia o pai Herzog. — Que diabo. Está-se a dormir, liberto das preocupações por um bocado, e ele acorda-nos. Um judeu bêbedo! Nem isso sabe fazer bem. Porque é que não há-de ficar freilich e alegre quando bebe, ora então? Qual, há-de chorar até nos despedaçar o coração. Ora, maldito seja. — Quase a rir, o pai Herzog amaldiçoava o coração também. — Já basta eu ter de alugar um quarto a um shicker miserável.
«Al tastir ponecho mimeni Estou falido, sem vintém Não nos oculteis o vosso rosto, Que o não pode negar ninguém.»
Ravitch, desentoado e persistente, gritava na escada negra e gelada.
«O'Brein
Lo mir trinken a glesele viine Al tastir ponecho mimeni Estou falido sem um vintém, Que o não pode negar ninguém.»
O pai Herzog, silencioso e carrancudo, ria baixinho.
— Yonah... peço-te. Genugshon.
— Oh, dá-lhe tempo. Porque é que eu hei-de schlepp as minhas tripas?
— Acordará a rua toda.
— Há-de estar coberto de vómito, as calças cheias.
Mas ia. Lamentava Ravitch também, embora Ravitch fosse um dos símbolos da mudança da sua situação. Em Petersburgo havia criados. Na Rússia, o pai Herzog fora um cavalheiro. Com papéis falsificados da Primeira Guilda. Mas muitos cavalheiros viviam de papéis falsificados.
As crianças continuavam a olhar para a cozinha deserta. O fogão negro contra a parede, extinto. O fogão de gás de dois bicos ligado por um tubo de borracha ao contador. Uma esteira japonesa protegia a parede de manchas ao cozinhar.
Divertia os rapazes ouvirem o pai persuadir Ravitch, embriagado, a pôr-se de pé. Era teatro familiar. — Nu landtsman? És capaz de andar? Está um gelo. Vá, põe os teus pés tortos no degrau... schneller, schneller. — Ria baixinho — Bem, acho que vamos deixar as tuas calças dreckische aqui fora. Fee. J. — Os rapazes comprimiam-se no frio, sorrindo.
O paizinho amparava-o ao atravessar a cozinha — Ravitch com as suas ceroulas nojentas, o rosto vermelho, mãos caídas, o chapéu de feltro, a dor embriagada dos seus olhos fechados.
Quanto ao pobre do meu defunto pai, J. Herzog, não era um grande homem, esse Herzog tipicamente de ossos miúdos, bem conformado, de cabeça redonda, arguto, nervoso, elegante. Nas suas frequentes crises de excitação batia nos filhos com força, com ambas as mãos. Fazia tudo rápida, esmeradamente com floreados europeus: o escovar do cabelo, o abotoar da camisa, o assestar das suas navalhas com o cabo de osso, o afiar do lápis sobre o polegar, o segurar num pão de encontro ao peito e cortar na sua direcção, o atar embrulhos com nozinhos firmes, o rabiscar como um artista no seu livro de contas. Aí cada página anulada era coberta por um X cuidadosamente desenhado. Os uns e os setes tinham tracinhos que pareciam galhardetes. Eram como flâmulas ao vento do fracasso. Primeiro o pai Herzog fracassou em S. Petersburgo, onde gastou dois dotes num ano. Importava cebolas do Egipto. No tempo de Pobedonostsev a polícia pronunciou-o por residência ilegal. Foi condenado e sentenciado. Um relatório do julgamento foi publicado num jornal russo impresso em espesso papel verde. O pai Herzog por vezes desdobrava-o e lia-o em voz alta a toda a família, traduzindo o processo contra Ilyona Isakovitch Gerzog. Nunca cumpriu a sentença. Fugiu. Porque era nervoso, apressado, obstinado, rebelde. Veio para o Canadá, onde vivia a irmã Zipporah Yaffe.
Em 1913 comprou um terreno próximo de Valleyfield, no Quebec, e fracassou como lavrador. Depois veio para a cidade e fracassou como padeiro; fracassou num negócio de tecidos; fracassou como empreiteiro; fracassou como fabricante de sacos durante a guerra, quando mais ninguém fracassava. Fracassou como ferro-velho. Depois trabalhou numa agência de casamentos e fracassou — demasiado impulsivo e brusco. E agora estava a fracassar como contrabandista de bebidas alcoólicas, ao serviço da Comissão Provincial das Bebidas Alcoólicas. Vivendo como podia.
Apressado e audacioso, com um rosto claro e tenso, andando com um misto de desespero e altivez, apoiando um pouco desajeitadamente o peso sobre os calcanhares ao caminhar, com o casaco, outrora guarnecido de raposa, agora no fio e sem pêlo, com o couro da pele vermelha a estalar. Este casaco, que se abria quando andava ou marchava a sua solitária marcha judaica, estava saturado do cheiro dos Caporals que fumava ao palmilhar Montreal nas suas voltas — Papineau, Mile-End, Verdun, Lachine, Point St. Charles. Procurava oportunidades de negócios — falências, leilões, fusões de sociedades comerciais, salvados, sucata — que o libertassem da ilegalidade. Era capaz de calcular mentalmente percentagens a grande velocidade, mas faltava-lhe a imaginação fraudulenta de um negociante próspero. E, assim, tinha um pequeno alambique em Mile-End, onde pastavam cabras nos terrenos baldios. Viajava de eléctrico. Vendia uma garrafa aqui, outra ali e esperava por melhor sorte. Os americanos interessados em aguardente comprá-la-iam na fronteira, em qualquer quantidade, pagando a pronto, se se conseguisse fazê-la chegar até lá. Entretanto, fumava cigarros nas plataformas frias dos eléctricos. O fisco procurava apanhá-lo. Detectives procuravam-lhe a pista. Junto às estradas que conduziam à fronteira emboscavam-se bandidos armados. Na Rua Napoleão havia cinco bocas para alimentar. Willie e Moisés eram franzinos. Helena estudava piano. Shura era gordo, voraz, desobediente, um rapaz endiabrado. A renda, embora antiquada, pagamentos obrigatórios, contas do médico a saldar, e não sabia inglês, não tinha amigos, nem influências, nem negócio, não tinha outros bens além do alambique — nada no mundo que o ajudasse. A sua irmã Zipporah, que vivia em St. Anne, prosperava, rica, muito rica, o que ainda mais enegrecia a situação.
O avô Herzog, ainda vivo, então, com o instinto das grandezas de um Herzog refugiou-se no Palácio de Inverno em 1918 (os bolchevistas permitiram-no durante algum tempo). O velho escrevia longas cartas em hebreu. Perdera os seus livros preciosos durante a sublevação. Era impossível estudar agora. No Palácio de Inverno era preciso andar todo o dia para cima e para baixo para encontrar um minyan. Claro que havia fome também. Mais tarde, profetizou que a Revolução falharia e tentou lograr crédito entre os czaristas, para ficar milionário quando da restauração dos Romanoffs. Os Herzogs recebiam encomendas de rublos sem valor, e Willie e Moisés brincavam com avultadas somas. Punham-se as belas notas contra a luz e viam-se Pedro, o Grande, e Catarina no papel multicolor com figuras a água. O avô Herzog, com os seus oitenta anos, mas ainda rijo, tinha um espírito forte e uma elegante caligrafia hebraica. As cartas eram lidas em voz alta em Montreal pelo pai Herzog — referências ao frio, aos piolhos, à fome, epidemias, mortos. O velho escrevia «Tornarei a ver os rostos dos meus filhos? E quem me enterrará?» O pai Herzog tentava por duas ou três vezes entrar na frase seguinte, mas não conseguia dominar a voz. Apenas um sussurro se ouvia. As lágrimas afloravam-lhe aos olhos e subitamente levava a mão à boca ornada de bigode e saía apressado da sala. A mãe Herzog, com os seus grandes olhos, ficava sentada com as crianças na cozinha primitiva onde o sol nunca entrava. Era como uma caverna com o antigo fogão negro, os armários verdes, o fogareiro a gás.
A mãe Herzog tinha uma maneira específica de enfrentar o preserjte com o rosto semi-voltado. Encontrava-o à esquerda, mas por vezes parecia evitá-lo à direita. Dessa faceta afastada tinha por vezes uma visão sonhadora, melancólica, e parecia-lhe que estava a ver o Velho Mundo — o pai, o famoso misnagid, a sua trágica mãe, os irmãos vivos e mortos, a irmã, e o seu enxoval e criadas em Petersburgo, a sua dacha na Finlândia (tudo isto baseado em cebolas do Egipto).
Agora era cozinheira, lavadeira, costureira na Rua Napoleão, no bairro pobre. O cabelo tornava-se-lhe grisalho, perdia os dentes, as próprias unhas se encarquilhavam. As mãos cheiravam-lhe a esgotos.
Herzog perguntava a si próprio contudo como teria ela tido força para ainda amimar os filhos. É bem certo que me estragou de mimos. Uma vez, ao anoitecer, empurrou-me no trenó sobre o gelo coberto por uma crosta, com um ténue fulgor de neve, talvez às quatro horas num curto dia de Janeiro. Junto à mercearia encontrámos uma velha babá envolta num xaile que disse: — Porque estás a puxar por ele, filha?! — A mãe, com olheiras debruando os olhos, a sua esguia cara gelada, arfava. Trazia o casaco de foca rasgado e um gorro pontiagudo de lã vermelha e finas botas com botõezinhos. Cachos de peixe seco estavam pendurados na loja, um cheiro rançoso a açúcar, a queijo, a sabão — uma terrível poalha de alimentos escapava-se pela porta aberta. A campainha ligada a uma torcida de arame oscilava, tocando. — Filha, não sacrifiques a tua força por miúdos. — dizia a velha carcomida envolta no xaile na penumbra gelada da rua. Eu não saía do trenó. Fingia não compreender. Um dos trabalhos mais difíceis da vida, tornar lento um raciocínio pronto. Parece-me que o consegui, pensou Herzog.
O irmão da mãe, Mikhail, morreu de tifo em Moscovo. Eu recebi a carta do carteiro e trouxe-a para cima — a grande corrente ligada ao ferrolho passava por aselhas por baixo do corrimão. Era dia de barrela. O panelão de cobre embaciava a janela. Estava a enxaguar e a torcer a roupa numa celha. Quando leu as notícias deu um grito e desmaiou. Os lábios embranqueceram-lhe. Tinha um braço dentro de água, com manga e tudo. Estávamos os dois sozinhos em casa. Eu fiquei aterrorizado enquanto ela jazia assim, com as pernas estendidas, os longos cabelos soltos, pálpebras castanhas, boca exangue, como morta. Mas depois levantou-se e foi deitar-se. Chorou todo o dia. Mas de manhã não deixou de cozinhar os flocos de aveia. E como sempre levantámo-nos cedo.
Os meus velhos tempos. Mais remotos que o Egipto. Não havia aurora, nos Invernos nevoentos. Na escuridão acendia-se a luz. O fogão estava frio. O papá sacudia as grelhas, e levantava um pó de cinza. As grelhas resmungavam e guinchavam.
A pequena pá tilintava por baixo. Os Caporals causavam ao pai uma tosse impertinente. As chaminés com as suas coberturas aspiravam o vento. ;. Depois vinha o leiteiro com o seu trenó. A neve ficava estragada e pútrida de estrume e palha, ratos mortos, cães. O leiteiro, com a sua pele de ovelha, dava uma tocadela à campainha. Era de latão como a chave da corda dum relógio. Helena abria o ferrolho e descia com uma bilha para o leite. E depois Ravitch, inclinando-se, vinha do seu quarto, com o camisolão pesado, os suspensórios sobre a lã para a manter mais junto ao corpo, o chapéu na cabeça, de rosto vermelho, ar culpado. Esperava que lhe dissessem que se sentasse.
A luz da manhã não conseguia libertar-se da obscuridade e da geada. Ao longo da rua, as janelas debruadas a tijolos estavam escuras, cheias de escuridão, e raparigas das escolas, a duas e duas, com as suas saias negras encaminhavam-se para o convento. E carros, trenós, carroças, com cavalos tremendo, o ar submergido num verde plúmbeo, o gelo manchado de esterco, rastos de cinzas. Moisés e os irmãos punham os bonés e rezavam em conjunto,
«Ma tovu ohaleha Yaakov...»
«Que belas são as vossas tendas, ó Israel.»
A Rua Napoleão, fétida, miniatural, louca e nojenta, enigmática, fustigada pela intempérie — os miúdos do contrabandista de bebidas alcoólicas recitando antigas orações. A isto estava o coração de Moisés fortemente ligado. Aqui havia uma amplidão de sentimentos humanos maior que todas as que depois encontrara. As crianças da sua raça, por um milagre que nunca falhava, abriram os olhos para mundos estranhos, umas após outras, época após época e pronunciavam a mesma oração em todas elas, amando arrebatadamente o que encontravam. Que havia de errado na Rua Napoleão?, pensou Herzog. Tudo o que jamais quisera aí estava. A mãe lavava e afligia-se. O pai era desesperado e assustadiço, mas lutava obstinadamente. O irmão Shura, com desenganado olhar perscrutador, conjecturava dominar o mundo, tornar-se milionário. O irmão Willie debatia-se com crises de asma. Ao tentar respirar enclavinhava as mãos na mesa e elevava-se nas pontas dos pés como um galo prestes a cantar. A irmã Helena tinha longas luvas brancas, que lavava em espuma abundante. Usava-as ao ir para as lições no Conservatório, levando as músicas num rolo de cabedal. O seu diploma estava pendurado numa moldura. Mlle HélèneHerzog... avec distinction. A sua suave irmã afectada que tocava piano.
Nas noites de Verão sentava-se a tocar e as notas claras passavam pela janela para a rua. O piano quadrangular tinha um tapa-teclas de veludo verde-musgo como se o tampo do piano fosse uma placa de pedra. Do tapa-teclas pendia uma franja de borlas, como nozes americanas. Moisés punha-se de pé por trás de Helena, observando as páginas redemoinhantes de Haydn e Mozart, com vontade de latir como um cão. Oh, a música!, pensava Herzog. Lutava com a insidiosa doença da nostalgia em Nova Iorque — suavizando, decompondo emoções, pontos negros, doces por um momento, mas que deixavam um perigoso resíduo ácido. Helena tocava. Trazia uma blusa de cabeção à marinheira e uma saia de pregas, e os seus sapatos pontiagudos premiam os pedais. Uma menina correcta e vaidosa. Franzia as sobrancelhas enquanto tocava — o vinco do pai aparecia-lhe entre os olhos. Franzia as sobrancelhas como se se tratasse de realizar uma acção perigosa. A música ouvia-se na rua.
A tia Zipporah criticava esta questão da música. A Helena não era uma música genuína. Tocava para comover a família. Talvez para atrair um marido. Ao que a tia Zipporah se opunha era à ambição que a mãe tinha para os filhos, pois pretendia que eles fossem advogados, cavalheiros, rabis ou executantes musicais. Todos os membros da família. Todos os ramos da família tinham uma loucura de casta peloyichus. Não há vida, por mais estéril e subordinada, que não tenha dignidades imaginárias, honras futuras, um progresso de liberdade.
Zipporah queria refrear a mãe, concluía Herzog, e culpava do malogro do pai na América estas luvas brancas e lições de piano. Zipporah tinha um carácter forte. Era arguta, antipática, encontrava-se em guerra com toda a gente. Tinha um rosto corado e esguio, um nariz regular, mas estreito e feio. Possuía uma voz crítica, destruidora e nasal. As suas ancas eram cheias e andava com largos passos pesados. Uma trança de cabelo espesso e lustroso caía-lhe pelas costas.
Ora o tio Yaffe, marido de Zipporah, era de falas calmas, caprichosamente reservado. Era um homem pequeno, mas forte. Tinha os ombros largos e usava uma barba negra como a do rei Jorge V. Crescia-lhe cerrada e ondulada no rosto moreno. A cana do seu nariz era denteada. Os dentes grandes, e um estava coberto de ouro. Moisés cheirava a acidez do hálito do tio enquanto jogavam xadrez. Debruçada sobre o tabuleiro, a ampla cabeça do tio Yaffe, com o seu cabelo curto encaracolado, um pouco calva, estava levemente inquieta. Tinha um suave tremor nervoso. O tio Yaffe, desde sempre, parecia descobrir o sobrinho no próprio momento e observá-lo com os seus olhos castanhos de animal inteligente, sensível, satírico. O seu olhar brilhava, perspicaz, e sorria com satisfação insinuante dos erros do pequeno Moisés. Dando-me afectuosamente vantagens.
No pátio de armazenagem de Yaffe, em St. Anne, as assucatadas pilhas de ferro velho sangravam ferrugem para as poças. Havia por vezes uma bicha de miseráveis ao portão. Miúdos, simplórios, velhas irlandesas ou ucranianas e peles-vermelhas da reserva de Caughnawaga, chegavam com carroças ou carrinhos de mão, trazendo garrafas, trapos, velhos canos de chumbo ou instalações eléctricas, ferramentas, papéis, pneus, ossos para vender. O velho, com o casaco de malha castanho, inclinava-se e as suas fortes mãos trementes punham de parte aquilo que comprava. Sem endireitar as costas era capaz de atirar pedaços de sucata para os lugares correspondentes — ferro aqui, zinco ali, chumbo à direita e metal branco junto ao telheiro. Ele e os filhos fizeram dinheiro durante a guerra. A tia Zipporah comprou bens de raiz. Recebia rendas. Moisés sabia que ela trazia um rolo de notas no peito. Tinha-o visto.
— Bem, tu nada perdeste em vir para a América — dizia-lhe o paizinho. A sua primeira resposta consistia em fixá-lo severa e criticamente. Depois retorquia: — Não é segredo nenhum a maneira como eu comecei. Pelo trabalho. Yaffe pegou numa picareta e numa pá para o CPR até juntarmos algum capital. Mas tu! Não, tu nasceste com uma camisa de seda. — Envolvendo a mãe com o olhar, continuava: — Habituaste-te às finuras, em Petersburgo, com criados e cocheiro. Ainda te estou a ver sair do comboio de Hallyfax, vestida que nem uma dama. Gott meiner! Penas de avestruz, saias de tafetá! Greenhorns mitstraussfedem! Agora esquece as penas, as luvas. Agora...
— Há quanto tempo isso vai — dizia a mãe. — Esqueci por completo os criados. De há muito sou eu a criada. Die dienst bin ido.
— Todos têm de trabalhar. Não se deve sofrer toda a vida lá porque uma vez se caiu. Porque é que os teus filhos precisam de ir para o Conservatório, para a Escola do Barão de Hirsch e de todas essas coisas especiais? Deixa-os trabalhar como os meus.
— Ela não quer que as crianças sejam uns zés-ninguéns — disse o pai.
— Os meus filhos não são uns zés-ninguéns. Sabem a sua página de Gemara também. E não te esqueças que descendemos dos maiores rabis Hasidics. Reb Zusya! Herschele Dubrovner! Lembra-te bem.
— Ninguém diz... — replicava a mãe.
Recordar assim obsessivamente o passado — amar os mortos! Moisés aconselhava-se a si próprio a não se entregar tanto a esta tentação, a esta fraqueza peculiar do seu carácter. Era um deprimido. Os deprimidos não conseguem renunciar à infância — nem sequer às dores da infância. Compreendia a higiene a usar. Mas, não sabia como, o seu coração abrira-se-lhe neste capítulo da vida e não tinha força para o fechar. De forma que era de novo um dia de Inverno em St. Anne, em 1923 — a cozinha da tia Zipporah. Zipporah usava um penteador carmesim de crepe-da-china. Por baixo distinguiam-se-lhe uns volumosos calções femininos e uma camisola interior masculina. Estava sentada junto ao forno na cozinha, com o rosto enrubescido. A sua voz nasal elevava-se até se tornar um gritinho incisivo de ironia, de falsa consternação ou de terrível humor.
Depois recordou-se de que o irmão Mikhail da mãe morrera e então dizia: — Bem... quanto ao seu irmão... como foi que aconteceu?
— Não sabemos — dizia o pai. — Quem pode imaginar que ano desgraçado estão a passar na nossa terra. (Era sempre in derHeim, recordava Herzog.) Uma multidão entrou-lhe pela casa. Vasculharam tudo, à procura de valuta. Depois, apanhou tifo, ou sabe-se lá o quê.
A mão da mãe estava sobre os olhos, como se os protegesse do sol. Não disse palavra.
— Lembro-me de que era um belo homem — murmurou o tio Yaffe. — Que Deus lhe dê um lichtigen Gan-Eden.
A tia Zipporah, que acreditava no poder das maldições, dizia: — Malditos sejam aqueles bolchevistas. Querem fazer o mundo horav. Que se lhes sequem as mãos e os pés. Mas onde estão a mulher e os filhos do Mikhail?
— Ninguém sabe. A carta era de um primo, Shperling, que viu Mikhail no hospital. Mal o reconheceu.
Zipporah fez mais alguns piedosos comentários, e depois, com um tom mais normal, acrescentou: — Bem, era um indivíduo activo. Tinha muito dinheiro, no seu tempo. Ninguém sabe o montante da fortuna que trouxe da África do Sul.
— Repartiu-a connosco — observou a mãe. — O meu irmão tinha as mãos abertas.
— Arranjou-a facilmente — notou Zipporah. — Não é como se tivesse tido de a ganhar com o suor do rosto.
— Como sabes? — perguntou o pai Herzog. — Não digas o que não sabes, minha irmã.
Mas Zipporah não se podia conter. — Ganhou dinheiro à custa daqueles miseráveis cafres negros! Quem sabe lá como! Assim, tinham uma dacha em Shevalovo. Yaffe estava fora, no serviço militar, no Kavkaz. Eu tinha de tratar de uma criança doente. E tu, Yonah, andavas a passear em S. Petersburgo, a gastar dois dotes. Sim! Gastaste os primeiros dez mil rublos num mês. Ele deu-te outros dez. Nem imagino bem o que ele faria com tártaros, ciganas, prostitutas, comendo carne de cavalo, e só Deus sabe que mais coisas abomináveis se passariam.
— Para quê tanta maldade? — ripostou o pai Herzog, zangado.
— Não tenho nada contra Mikhail. Nunca me fez mal — disse Zipporah. — Mas ele era um irmão que dava, de forma que eu sou uma irmã que não dá.
— Ninguém se referiu a isso — disse o pai Herzog. — Mas se o barrete te serve, podes enfiá-lo.
Absorto, sem se mover na sua cadeira, Herzog ouvia os mortos nas suas discussões de mortos.
— De que é que tu estavas à espera? — dizia Zipporah. — Com quatro filhos, se eu começasse a dar e a cultivar-te maus hábitos, nunca mais isso acabaria. Não é culpa minha se és aqui um miserável.
— Sou um miserável na América, é verdade. Olha para mim. Não tenho um cobre no bolso. Não teria com que pagar um sudário.
— Acusa a tua fraca natureza — censurou Zipporah. — Azdu host a schwa-chen natur, wer is dir schuldig? Não podes aguentar-te sozinho. Encostaste-te ao irmão da Sara e agora queres encostar-te a mim? Yaffe esteve no Kavkaz. Afinsternish! Era tão frio que nem os cães uivavam. Sozinho, veio para a América e mandou-me chamar. Mas tu... tu queres alie sieben glicken. Sujar as mãos? Não é contigo.
— É verdade. Não acarretei estrume in derheim. Isso aconteceu na terra de Colombo. Mas fi-lo. Aprendi a arrear um cavalo. Às três da manhã, com vinte graus abaixo de zero no estábulo.
Zipporah afastou este tópico. — E agora, com o teu alambique? Tiveste de escapar da polícia do czar. E agora o fisco? E foste arranjar um sócio, umgoniff
— Voplonsky é um homem honesto.
— Quem, aquele alemão? — Voplonsky era um ferrador polaco. Ela chamava-lhe alemão por causa dos bigodes afilados de militar e do corte alemão do seu sobretudo. Descia-lhe até ao chão. — Que tens tu de comum com um ferrador? Tu, um descendente de Herschel Dubnovner! E ele um schmid polaco de suíças ruivas! Um rato! Um rato de bigodes ruivos afilados, dentes compridos e tortos e a feder a cascos chamuscados! Ora! Teu sócio. Espera e verás o que ele te faz.
— Não é assim tão fácil levarem-me.
— Não? O Lazansky não te enganou? Aldrabou-te a valer. E não te bateu ainda por cima?
Ti Era Lazansky, da padaria, um carroceiro gigantesco da Ucrânia. Um homem enorme e ignorante, um amhoretzque não sabia hebreu suficiente para abençoar o pão, e se sentava na sua estreita carroça das entregas ao domicílio, grave, grunhindo «Garrap» para o pequeno garrano e fustigando-o a chicote. A sua voz grossa rolava como uma bola de bowling. O cavalo trotava ao longo da margem do Canal Lachine. A carroça tinha escrito
Lazansky — Pâtisseries de Chok
O pai Herzog disse: — Sim, é verdade que me bateu.
Viera para pedir dinheiro emprestado a Zipporah e Yaffe. Não queria que o envolvessem numa discussão. Ela por certo adivinhara a intenção da visita e estava a tentar irritá-lo para que lhe pudesse recusar mais facilmente.
— Ah! — exclamou Zipporah. Mulher brilhantemente astuta, as suas muitas qualidades não podiam expandir-se nessa aldeia canadiana. — Pensas que podes fazer fortuna com burlistas, ladrões e patifes. Tu? És uma criatura tranquila. Não sei porque é que não ficaste no Yeshivah. Gostavas de ser um cavalheiro com a bolsa bem recheada. Bem conheço estes rufias e razboiniks. Não têm pele, dentes, dedos como tu, mas couro, dentes de fera, garras. Nunca poderás entender-te com esses carroceiros e carniceiros. És capaz de matar um homem a tiro?
O pai Herzog permanecia silencioso.
— Se, Deus nos livre disso, tivesses de matar... — gritou Zipporah. — Serias mesmo capaz de bater na cabeça de alguém? Vá! Pensa bem nisso. Responde-me, gazlan. Eras capaz de dar uma pancada na cabeça?
Neste ponto a mãe Herzog parecia concordar.
— Não sou um fracalhote — ripostou o pai Herzog, com o seu rosto enérgico e bigode castanho. Mas, claro, pensou Herzog, toda a violência do pai se consumia no drama da sua vida, na luta familiar, no sentimentalismo.
— Tirar-te-ão o que quiserem, esses leite — continuava Zipporah. — Ora, não é já tempo de pores a cabeça a trabalhar? E tens uma cabeça... Klug bist du. Arranja uma situação legal. Manda a tua Helena e o teu Shura trabalhar. Vende o piano. Corta despesas.
— Porque não hão-de as crianças estudar se têm inteligência, talento? — disse a mãe Herzog.
— Se são espertos, melhor para o meu irmão — replicou Zipporah. — É demasiado para ele... esgotar-se por príncipes e princesas mimados.
Tinha o pai do lado dela, então. O seu desejo de ajuda era profundo, infindável.
— Não que eu não goste das crianças — continuou Zipporah. — Vem cá, Moisészinho, e senta-te ao colo da tua velha tante. Que queridoyingele. — Moisés sentado sobre as calças, nos joelhos da tia — as suas mãos vermelhas seguravam-no pelo ventre. Sorriu com uma afeição forçada e beijou-lhe o pescoço. — Nasceu-me nos braços, esta criança. — Depois olhou para o irmão Shura, que estava de pé ao lado da mãe. Tinha pernas gordas, entroncadas e a cara sardenta. — E tu? — disse-lhe Zipporah.
— Que foi? — perguntou Shura, ao mesmo tempo assustado e ofendido.
— Não és demasiado novo para trazeres um dólar para casa. O pai fitou Shura.
— Não ajudo? — replicou Shura. — Não entrego garrafas? Não colo rótulos? O pai falsificara rótulos. Costumava propor alegremente: — Bem, meninos,
o que há-de ser... Wbite Horse?Johnnie Walker? — Escolheríamos os nossos preferidos. O recipiente da cola estava em cima da mesa.
Às escondidas, a mãe Herzog tocou na mão de Shura quando Zipporah voltou os olhos para ele. Moisés viu-o. Willie, ofegante, corria lá fora com os primos, construindo um forte de neve, gritando e atirando bolas de neve. O Sol ia cada vez mais baixo. Laços de vermelho do horizonte enrolavam-se nos sulcos da neve vidrada. À sombra azul da cancela, pastavam cabras. Pertenciam ao homem das gasosas que morava ao lado. Os frangos de Zipporah saltavam para os poleiros. Ao visitar-nos em Montreal, levava por vezes um ovo fresco. Um ovo. Uma das crianças podia estar doente. Um ovo fresco tinha um extraordinário poder. Nervosa e severa, com pés desajeitados e ancas pesadas, subia as escadas da Rua Napoleão, mulher tempestuosa, filha do Fado. Rápida e nervosamente beijava as pontas dos dedos e tocava no mezuzah. Ao entrar, inspeccionava os trabalhos caseiros da mãe. — Estão todos bons? — indagava. — Trouxe um ovo para as crianças. — Abria a grande mala e tirava o presente, embrulhado num pedaço de jornal ídixe (Der Kanader Adler).
Uma visita da tante Zipporah era como uma inspecção militar. Depois, a mãe ria e acabava por vezes por chorar. — Porque será minha inimiga! Que pretenderá? Não tenho força para lutar com ela. — O antagonismo, como a mãe o sentia, era místico — uma questão de almas. O espírito da mãe era arcaico, cheio de velhas lendas, com anjos e demónios.
Decerto que Zipporah, essa realista, tinha razão em recusar ao pai Herzog. Este queria levar whisky de contrabando para a fronteira e fazer um próspero negócio. Ele e Voplonsky pediram dinheiro emprestado a usurários e carregaram uma camioneta com caixas. Mas nunca alcançaram Rouses Point. Foram descobertos, sovados e deixados numa vala. O pai Herzog foi o mais maltratado porque resistiu. Os bandidos rasgaram-lhe a roupa, partiram-lhe um dente e espezinharam-no.
Ele e Voplonsky, o ferrador, regressaram a Montreal a pé. Entrou na loja de Voplonsky para se arranjar, mas nada pôde fazer ao olho inchado e sangrento. Tinha uma falha nos dentes. O casaco estava rasgado e a camisa e roupa interior manchadas de sangue.
Foi assim que entrou na cozinha escura da Rua Napoleão. Estávamos lá todos. Era Março sombrio, e de qualquer forma a luz raramente alcançava aquela divisão. Era como que uma caverna. Nós éramos como que habitantes de uma caverna. — Sara! — exclamou ele. — Filhos! — Mostrou o rosto ferido. Abriu os braços de forma que pudéssemos ver os seus andrajos, e a brancura do corpo por baixo. Depois voltou as algibeiras do avesso — vazias. Ao fazer isto, começou a chorar, e as crianças em redor todas choravam. Era coisa que eu não podia suportar, alguém exercer uma violência física sobre ele — um pai, um ser sagrado, um rei. Sim, era um rei para nós. O meu coração estava sufocado por este horror. Pensei que morreria por isto. Quem amei eu jamais tanto como a eles?
Depois o pai Herzog contou a sua história.
— Estavam à nossa espera. A rua encontrava-se bloqueada. Tiraram-nos à força da camioneta. Levaram tudo.
— Porque é que lutaste? — disse a mãe Herzog.
— Tudo o que tínhamos... tudo o que pedi emprestado!
— Podiam ter-te matado.
— Tinham lenços a tapar as caras. Julguei reconhecer...
A mãe parecia incrédula. — Landtsleit? Impossível. Nenhum judeu era capaz de fazer isto a outro judeu.
— Não? — gritou o paizinho. — Porque não?! Porque não haviam de o fazer? — Judeus, não! Nunca! — replicou a mãezinha. — Nunca. Nunca! Não teriam coragem. Nunca!
— Meninos... não chorem. E o pobre Voplonsky... mas conseguiu arrastar-se para a cama.
— Yonah — disse a mãe — , tens de abandonar isto completamente.
— Como viveremos? Temos de viver.
Começou a contar a história da sua vida, desde a infância até então. Chorava enquanto a contava. Saído de casa aos quatro anos para estudar, longe do lar. Comido pelos piolhos. Quase morto de fome no Yeshivah quando rapaz. Barbeou-se, tornou-se um europeu moderno. Trabalhou para a tia no Kremenchug quando jovem. Viveu num paraíso encantado em Petersburgo durante dez anos, graças a papéis falsificados. Depois esteve preso com criminosos de delito comum. Escapou-se para a América. Passou fome. Limpou estábulos. Mendigou. Viveu no medo. Um baal-chov — sempre com dívidas. Perseguido pela polícia. Aceitando hóspedes bêbedos. A mulher, uma criada. E era isto que trazia para casa para os filhos. Isto era o que tinha para lhes mostrar — os seus andrajos, as suas contusões.
Herzog, envolto no roupão barato, meditava com olhos enevoados. Sob os pés descalços, um estreito tapete. Os seus cotovelos apoiavam-se na secretária frágil e a cabeça pendia-lhe. Escrevera apenas algumas linhas a Nachman.
Suponho, pensava, que ouvíamos esta história dos Herzogs dez vezes por ano. Umas vezes a mãezinha contava-a, outras vezes ele. Assim tínhamos uma grande escola de sofrimento. Ainda conheço estes gritos da alma. Nascem no peito e na garganta. A boca quer escancarar-se e deixá-los sair.
Mas tudo isto são coisas antigas — sim, antigas coisas judaicas que têm a sua origem na Bíblia, num sentido bíblico de experiência e destino pessoal. O que aconteceu durante a guerra aboliu a reivindicação do pai Herzog de um sofrimento excepcional. Temos agora um padrão mais brutal, um novo padrão terminal, indiferente às pessoas. Parte do programa de destruição a que o espírito humano se entregou com energia, mesmo com alegria. Estas histórias pessoais, velhas histórias de velhos tempos que talvez não valha a pena recordar. Eu recordo. Tenho de o fazer. Mas quem mais... a quem pode isto importar? Tantos milhões — multidões — sucumbem entre terrível dor. E, perante isso, o sofrimento moral é negado, hoje em dia. As personalidades são boas apenas como escape cómico. Mas eu sou ainda um escravo da dor do pai. A forma como o pai Herzog falava de si próprio! Podia dar vontade de rir. O seu eu tinha uma tal dignidade.
— Tens de abandonar isto — gritou a mãe. — Tens!
— Que faria eu então! Trabalhar para a agência funerária? Como um homem de setenta anos? Servindo apenas para estar à cabeceira dos mortos? Lavar cadáveres? Eu? Ou deveria ir para o cemitério extorquir uns cobres às pessoas de luto à custa de lamúrias? Dizer o El malai rachamim. Eu? Antes a terra se abra e me engula!
— Vamos, Yonah — interrompeu a mãe no seu tom sério, persuasivo. — Vou pôr-te uma compressa no olho. Vamos, deita-te.
— Como é que posso?
— Mas tens de o fazer.
— Como é que as crianças vão comer?
— Vamos... tens de te deitar por um momento. Tira essa camisa.
Sentou-se junto da cama, silencioso. Deitara-se no quarto cinzento, na cama de ferro, coberto pelo gasto cobertor vermelho russo — com a sua testa elegante, o nariz regular, o bigode castanho. Como fizera então do corredor escuro, Moisés agora contemplava essas duas figuras.
Nachman, recomeçou a escrever, mas parou. Como fazer uma carta chegar a Nachman? Faria melhor em pôr um anúncio na Village Voice. Mas, então, a quem mandar a outra carta que estava a redigir?
Concluiu que a mulher de Nachman morrera. Sim, devia ser isso. Aquela rapariga esbelta, de pernas esguias, com sobrancelhas escuras que se elevavam muito e tornavam a recurvar-se junto dos olhos, e a boca larga que se inclinava para baixo aos cantos — suicidara-se, e Nachman fugia porque (quem podia acusá-lo?) teria de contar a Moisés tudo isso. Coitada, coitada — também ela devia estar no cemitério.
O telefone tocou — cinco, oito, dez toques. Herzog olhou para o relógio. Ficou assustado com as horas — quase seis horas. Para onde fugira o dia? O telefone continuou a tocar, perfurando-lhe os ouvidos. Não queria atendê-lo. Mas havia os dois filhos, no fim de contas — era pai, e tinha de responder. Aproximou-se do instrumento, portanto, e ouviu Ramona — a voz alegre de Ramona chamando-o para uma vida de prazer através dos agitados fios de Nova Iorque. E não um simples prazer, mas prazer metafísico, transcendente — prazer que respondia ao enigma da existência humana. Era Ramona — não uma simples sensualista, mas uma teorizadora, quase uma sacerdotisa, com os seus trajes espanhóis adaptados às necessidades americanas, e as suas flores, os seus dentes realmente belos, as suas faces coradas, e o seu cabelo negro farto, ondulante, excitante.
— Está... Moisés? De que número fala?
— Aqui é do Auxílio à Arménia.
— Ah, Moisés! És tu!
— Sou o único homem suficientemente velho que tu conheces para se lembrar do Auxílio à Arménia.
— Da última vez disseste que era da Cidade da Morgue. Deves estar mais bem disposto. Daqui é Ramona...
— Claro. — Quem mais tem uma voz que se eleve, tão ligeira, de um tom a outro com um encanto estrangeiro? Só a dama espanhola.
— La navaja en la liga.
— Francamente, Ramona, nunca me senti menos atemorizado por facas.
— Pareces realmente bem disposto.
— Não tenho falado com ninguém em todo o dia. '
— Tencionava falar-te, mas estive muito atarefada na loja. Onde estiveste ontem?
— Ontem? Onde estive... deixa-me ver...
— Pensei que tivesses desaparecido.
— Eu? Como podia isso ser?
— Queres dizer que não eras capaz de fugir de mim?
Fugir da perfumada, sexual, generosa Ramona? Nunca na vida. Ramona passara por um inferno de libertinagem e atingira a seriedade do prazer. Pois quando é que nós, seres civilizados, nos tornaremos realmente sérios? — disse Kierkegaard. Só quando tivermos conhecido o Inferno de ponta a ponta. Sem tal, o hedonismo e a frivolidade difundirão o Inferno por todos os nossos dias. Ramona, contudo, não crê noutro pecado além do pecado que lesa o corpo, para ela o verdadeiro e único templo do espírito.
— Mas deixaste ontem a cidade — observou Ramona.
— Como sabes tu... trazes-me vigiado?
— A menina Schwartz viu-te na Estação Central com uma mala na mão.
— Quem, aquela pequena menina Schwartz da tua loja?
— Essa mesma.
— Bem, não se sabe nada... — Herzog não desejava discutir mais o assunto. Ramona aventurou: — Talvez alguma mulher bonita te tenha assustado no
comboio e voltaste para a tua Ramona.
— Oh... — disse Herzog.
O tema dela era o poder que tinha para o fazer feliz. Ao pensar em Ramona com os seus olhos inebriantes e seios robustos, nas suas pernas curtas mas belas, nos seus ares de Cármen, furtivamente sedutores, na sua perícia (derrotando rivais invisíveis), sentia que ela não exagerava. Os factos apoiavam a sua reivindicação.
— Bem, para onde é que tu fugias? — perguntou ela.
— Porque havia eu de fazer isso? És uma mulher maravilhosa, Ramona.
— Nesse caso, estás a ser muito estranho, Moisés.
— Sim, suponho que sou um dos animais mais estranhos.
— Mas eu sei não ser orgulhosa e inquiridora. A vida ensinou-me a ser humilde.
Moisés cerrou os olhos e ergueu as sobrancelhas. Vamos lá.
— Talvez sintas uma superioridade natural devido à tua educação.
— Educação! Mas eu nada sei...
— As tuas realizações. Figuras no Who's Who. Eu não passo de uma comerciante... do tipo pequeno-burguês.
— Não acredito realmente nisso, Ramona.
— Então porque é que te manténs à distância, e me obrigas a conquistar-te? Acho que gostas de brincar à apanhada. Depois de grandes desapontamentos, também eu procedi assim, para reconsolidação do ego.
— Um simplório intelectual generoso, honesto...
— Quem?
— Refiro-me a mim.
Ela continuou. — Mas à medida que se recupera a autoconfiança, aprende-se a força simples dos desejos simples.
Por favor, Ramona, desejaria Moisés dizer — tu és linda, perfumada, sexual, boa para tocar — tudo. Mas estes discursos! Por amor de Deus, Ramona, acaba com isso. Mas ela continuou. Herzog fitou o tecto. As aranhas traziam as cirnalhas sob intenso cultivo, como as margens do Reno. Em vez de uvas, percevejos cativos pendiam em cachos.
Fui eu o culpado, contando a Ramona a história da minha vida — como subi, de origens modestas para chegar a um perfeito desastre. Mas um homem que fez tantos erros não pode ignorar os conselhos dos seus amigos. Amigos como Sandor, esse rato corcunda. Ou como Valentim, o megalomaníaco moralizador e profeta de Israel. Segundo todos eles, deve-se ouvir. Censurar é melhor que nada. Pelo menos é companhia.
Ramona fez uma pausa, e Herzog disse. — É verdade... tenho muito que
aprender.
Mas sou diligente. Trabalho para isso e mostro nítidos progressos. Espero estar em óptima forma no meu leito de morte. Os bons morrem cedo. mas eu fui poupado para me poder realizar de forma que possa terminar a minha vida com a máxima perfeição. Os meus antepassados mortos ficarão orgulhosos de mim...
Entrarei para o Y.M.C.A.4 dos imortais. Acontece porém, que neste momento, talvez esteja a afastar-me da eternidade.
— Estás a ouvir? — disse Ramona.
— Com certeza.
— Que acabei eu de dizer?
— Que tenho de confiar mais nos meus instintos.
— Disse que queria que viesses cá jantar. -Ah!
— Quem me dera ser uma cadela! Então não deixarias escapar nem uma palavra.
— Mas eu ia convidar-te... para vires a um restaurante italiano — inventou desajeitadamente. Por vezes estava cruelmente distraído.
— Já fiz as compras — retorquiu Ramona.
— Mas como, se a bisbilhoteira da menina Schwartz de óculos azuis me viu a fugir na Estação Central...?
— Se eu esperava por ti? Calculava que tivesses tido de ir a New Haven nesse dia: à biblioteca de Yale, ou a qualquer outro sítio... Peço-te que apareças. Vem jantar comigo. Terei de jantar sozinha se não vieres.
— Porquê, onde está a tua tia?
Ramona tinha a irmã mais velha do pai a viver com ela.
— Foi visitar os primos em Hartford.
— Ah... estou a ver. — Pensou que a velha tia Tâmara devia estar muito
habituada a fazer estas curtas viagens.
— A minha tia percebe as coisas — observou Ramona. — Além disso, gosta tanto de ti...
E acha-me uma boa perspectiva. Além disso, é preciso fazer sacrifícios por uma sobrinha sem marido que tem uma agitada vida amorosa. Antes de encontrar Herzog, Ramona rompera com um assistente de produção da televisão chamado Jorge Hoberly que ficara muito magoado, num estado lastimoso — próximo da histeria. Como expunha Ramona, a velha tia Tâmara condoía-se profundamente de Hoberly — aconselhava-o, consolava-o o melhor que podia,
a velhota. Simultaneamente, estava quase tão excitada com Herzog como a própria Ramona. Ao meditar sobre a tia Tâmara, Moisés julgava que podia agora compreender melhor a tia Zelda. A paixão feminina pelo segredo e pelos jogos duplos. Pois temos de comer o fruto da boca da astuta serpente.
No entanto, Herzog observava que Ramona tinha genuínos sentimentos de família, o que aprovava. Parecia gostar realmente da tia. Tâmara era filha de um oficial polaco qualquer, czarista (que mal havia em fazer dele um general?). Ramona dizia a respeito dela: — É muito jeunefilie russe — uma excelente descrição. A tia Tâmara era dócil, juvenil, sensível, impulsiva. Sempre que falava do papá e da mamã, dos professores e do Conservatório, o seu peito seco inflava-se-lhe e os ossos do colo tornavam-se-lhe nitidamente protuberantes. Parecia estar ainda a tentar decidir se havia de optar pela carreira de concertista, contra os desejos do papá. Herzog, ao ouvi-la, com um ar sério, não conseguia determinar se ela dera um recital na Salle Gaveau ou se desejaria dar um recital. As velhas mulheres da Europa Oriental, de cabelos pintados e camafeus absurdos, tinham fácil acesso à sua afeição.
— Bem, então vens ou não? — indagou Ramona. — Porque é que és tão difícil de apanhar?
— Não devia sair... tenho imenso que fazer... cartas para escrever.
— Que cartas?! És um homem tão misterioso. Que cartas importantes são essas? Negócios? Talvez devesses discutir o caso comigo, se se trata de negócios. Ou com um advogado, se não confias em mim. Mas tens de comer, de qualquer forma. Ou talvez não comas quando estás sozinho.
— Claro que como.
— Bem, então?
— Está bem — acedeu Herzog. — Estarei aí dentro em breve. Levarei uma
garrafa de vinho.
— Não, não! Não faças isso. Tenho-o em gelo.
Pousou o auscultador. Ela tinha sido enfática em relação ao vinho. Talvez ele tivesse dado a impressão de que era mesquinho. Ou tivesse antes despertado nela um sentimento de protecção, efeito que muitas vezes produzia. Pensava por vezes se não pertenceria a uma classe de pessoas secretamente convencidas de terem um pacto com o destino; em troca de docilidade ou de uma boa vontade ingénua seriam protegidas das piores brutalidades da vida. A boca de Herzog esboçou um sorriso suave, mas contorceu-se ao considerar se realmente teria interiormente decidido fazer um pacto secreto — uma oferta psíquica: docilidade em troca de um tratamento preferencial. Um tal contrato era feminino, ou extensível a árvores, animais, era infantil. Nenhum destes juízos acerca de si próprio lhe desencadeava terror; não ganhava agora fosse o que fosse em discutir com quem era. Havia um facto — a realização compósita, mística, das forças naturais e do seu próprio espírito. Abriu o roupão que era um quimono de Hong-Kong e mirou o seu corpo nu. Não era criança. E a casa de Ludeyville, um desastre sob todos os outros pontos de vista, mantivera-o em forma. A luta com aquela velha ruína num esforço para recuperar a sua herança tornara-lhe os braços musculados. Alargara-lhe por algum tempo o contrato com o narcisismo. Dera-lhe força para levar uma mulher de ancas pesadas para a cama. Oh, sim — era ainda em momentos fugidios o estudante jovem e interessante — , tal como na realidade nunca fora. Havia devotos mais fiéis a Eros que Moisés Elkanah Herzog.
Mas porque fora Romana tão inflexível quanto ao vinho? Possivelmente teria receio que ele aparecesse com um sauterne da Califórnia. Ou, não, ela acreditava no poder afrodisíaco da sua própria marca. Podia ser isso. Ou então ele insistia mais no tema do dinheiro do que disso tinha consciência. Uma última possibilidade era a de que ela desejava rodeá-lo de luxos.
Ao olhar para o relógio, Herzog, com uma aparência de eficiência no seu propósito, não chegou, de qualquer forma, a fixar no espírito as horas. O que observou, inclinando-se para a janela para lograr um ângulo sobre telhados e paredes, foi que o céu enrubescia. Estava perplexo por um dia inteiro se ter passado a rabiscar algumas cartas. E que cartas ridículas, coléricas! O despeito e furor que havia nelas! Zelda! Sandor! Para quê escrever a todos? E o Monsenhor? Nas entrelinhas da carta de Herzog o Monsenhor veria apenas um rosto louco, argumentando, da mesma forma que Moisés via o tijolo daquelas paredes entre postes mergulhados no negro asfalto. A infindável repetição ameaça a saúde mental.
Supondo que eu estou absolutamente certo e o Monsenhor, por exemplo, absolutamente errado. Se eu estou certo, o problema da coerência do mundo, e toda a responsabilidade que lhe é inerente torna-se meu. Como se apresentará quando Moisés E. Herzog seguir o seu caminho? Não, para que me hei-de afligir com isso? A Igreja tem uma inteligência universal. Considero isto uma ilusão prejudicial, prussiana. Prontidão na resposta a todos os problemas é infalível sinal de estupidez. Alguma vez Valentim Gersbach admitiu ignorância em algum assunto? Era um Goethe muito regular. Terminava todas as nossas frases, reformulava todos os nossos pensamentos, explicava tudo.
...Quero que saiba, Monsenhor, que não lhe estou a escrever com o propósito de lhe revelar quem é Madalena, ou de o atacar. Herzog rasgou a carta. Mentira! Desprezava o Monsenhor, desejava assassinar Madalena. Sim, era capaz de a matar. E no entanto, ainda que cheio de indizível raiva, era capaz também de se barbear e vestir, de ser cidadão da capital numa noite de prazer, bem apresentado, perfumado, com o rosto amaciado para beijos. Não vacilava perante estas fantasias criminosas. É a certeza do castigo que me detém, pensou Herzog.
Horas de se arranjar. Afastou-se da secretária e da luz cada vez mais coada da tarde e, tirando o roupão, entrou na casa de banho e abriu a torneira do lavatório. Bebeu, na obscuridade do fresco quarto forrado a mosaicos. Nova Iorque tem a água mais deliciosa do mundo, para uma metrópole. Depois começou a ensaboar o rosto. Podia esperar um bom jantar. Ramona sabia cozinhar e pôr uma mesa. Haveria velas, guardanapos de linho, flores. Talvez as flores viessem agora à pressa da loja, entre o tráfego da tarde. No peitoril da janela da casa de jantar de Ramona arrulhavam pombas. Ouviam-se asas a bater contra as vidraças. Quanto ao menu, numa noite de Verão como esta, prepararia provavelmente vichyssoise, depois lagostins Arnaud — à moda de Nova Orleães. Espargos brancos. Uma sobremesa fria. Sorvete de rum com uvas? Queijo Brie e bolachas de água e sal. Avaliava pelos jantares anteriores.
Café. Aguardente. E, a acompanhar, música egípcia no gira-discos na sala contígua — Mohammad al Bakkar tocando Port Said com cítaras, tambores, e tamboris. Nessa sala havia uma carpete chinesa, a luz do candeeiro verde era profunda e calma. Também aí ela tinha flores frescas. Se eu tivesse de trabalhar o dia inteiro numa loja de flores não gostaria de ser perseguido pelo perfume das flores à noite. Na mesinha do café tinha livros de arte e revistas internacionais. Paris, Rio, Roma, estavam todos representados. Invariavelmente também estavam expostos os últimos presentes dos admiradores de Ramona. Herzog lia sempre os cartões. Por que outro motivo os deixaria ela ali? Jorge Hoberly para quem ela ainda cozinhava lagostins Arnaud na última Primavera ainda lhe enviava luvas, livros, bilhetes para o teatro, binóculos de teatro. Podia-se-lhe reconstituir o seu vaguear louco de amor através de Nova Iorque pelas etiquetas. Ramona dizia que não sabia o que fazia. Herzog tinha pena dele.
A carpete verde-azulada, as bugigangas e arabescos mouriscos, o amplo e confortável sofá-cama, o candeeiro de Tiffany com vidro a imitar plumagem, os fundos cadeirões junto às janelas, a vista citadina da Broadway e da Praça de Colombo. E depois do jantar, ao instalarem-se ali com o café e a aguardente, Ramona perguntaria se ele não desejava tirar os sapatos. Porque não? Um pé liberto numa noite estival alivia o coração. E, logo após, induzindo pelos precedentes, perguntar-lhe-ia porque estava tão abstracto — se estava a pensar nos filhos. Depois diria... estava agora a barbear-se, mal fixando o espelho, tacteando os pontos hirsutos com as pontas dos dedos... diria que já não estava tão preocupado com Marco. O rapaz tinha um carácter firme. Era um dos mais estáveis Herzogs. Ramona então dar-lhe-ia conselhos de senso comum acerca da filhinha. Moisés diria — como abandoná-la àqueles psi-copatas? Poderia duvidar que eram psicopatas? Queria ver mais uma vez a carta de Geraldina — a terrível carta que contava o que faziam? E seguir-se-ia outra discussão sobre Madalena, Zelda, Valentim Gersbach, Sandor Himmelstein, o Monsenhor, o dr. Edvig, Phoebe Gersbach. Contra sua vontade, como um viciado lutando por se libertar do hábito, voltaria a contar como fora logrado,
enganado, manipulado, espoliado das suas economias, arrastado para dívidas, traído na sua confiança pela mulher, pelo amigo, pelo médico. Se alguma vez Herzog conheceu a repugnância de uma existência particular, soube que o conjunto era necessário para redimir cada espírito separado, foi nesses momentos, na sua medonha paixão, que tentava, impossivelmente, partilhar, contando a sua história. Então, a meio dela, dominá-lo-ia a consciência de que não tinha o direito de contar, de a infligir, de que o seu pungente desejo de confirmação, de auxílio, de justificação eram inúteis. Pior, era impuro. (De qualquer forma a palavra francesa apropriava-se-lhe melhor, e dizia «Immon-de!», e de novo, mais alto. «Cest immonde!») Contudo, Ramona condoer-se-ia ternamente dele. Sem dúvida compadecia-se realmente, embora os ofendidos sejam, por razões primitivas, desinteressantes e mesmo ridículos. Numa época espiritualmente confusa, no entanto, um homem capaz de sentir como ele poderia reivindicar uma certa distinção. Estava a começar a ver que este seu estigma particular de miopia, falta de realismo, e aparente ingenuidade lhe conferia uma alta posição. Para Ramona, tal tornava-o evidentemente encantador. E desde que ele permanecesse macho, escutá-lo-ia com olhos faiscantes, cada vez com mais simpatia. Transformava as suas desgraças em excitações sexuais e — faça-se-lhe justiça — canalizava-lhe a dor numa direcção útil. Impossível acreditar com Hobbes que quando falta um poder que se faça respeitar os homens não têm prazer (voluptas) em estar acompanhados, mas, em vez disso (moléstia) um grande pesar. Há sempre um poder a respeitar, ou seja, o próprio terror. Pôr de lado estas considerações teóricas, no entanto, quando estivesse pronto, depois de beber quatro ou cinco copos de armag-nac do jarro veneziano, muito acima das desordens de rua de Porto Rico, seria o jogo de Ramona. Amor com amor se paga.
Continuou a barbear-se, como um cego, pelo tacto e pelo som, o som dos pêlos e da lâmina.
Ramona tinha uma grande experiência de receber cavalheiros. Os lagostins, o vinho, as flores, luzes, perfumes, os rituais de despir, a música egípcia plangente e ruidosa demonstravam experiência; lamentava que ela tivesse de viver assim, mas lisonjeava-o, igualmente. Ramona estava admirada por poder haver alguma mulher que pusesse defeitos a Moisés. Este contou-lhe que frequentemente falhava por completo com Madalena. Podia ser a libertação da sua raiva contra Mady que o melhorava. Ao dizer isto Ramona parecia severa.
— Não sei... posso ter sido eu... já pensaste nisso? — observava ela. — Pobre Moisés... Só quando passas um mau bocado com uma mulher acreditas na tua seriedade.
Moisés passou pelo rosto o agradável Namamele, uma mão-cheia, e soprou para as faces pelos cantos da boca. Sintonizou uma música de dança polaca no pequeno rádio portátil colocado na prateleira de vidro sobre o lavatório, e polvilhou os pés. Depois entregou-se por um momento ao impulso de dançar e saltitou sobre os mosaicos manchados, alguns dos quais se desprenderam do cimento e tiveram de ser atirados com o pé para debaixo da banheira. Era uma das suas extravagâncias na solidão, romper a cantar e dançar, fazer estranhas coisas, mantendo contudo a sua habitual seriedade. Acompanhou, dançando, toda a música até ao anúncio polaco — «Ochynepynch-ochyne, Avenida Pynch, Flushing». Imitou o locutor na obscuridade amarelo-marfim da casa de banho de mosaico — a retrete, como anacronicamente lhe chamava. Estava pronto para outra polca quando descobriu, arfando, que o suor lhe escorria pelas faces, e outra dança tornaria um duche necessário. Não tinha tempo nem paciência para tal. Não podia pensar em ter de se enxugar — um dos trabalhos forçados que sempre detestara.
Vestiu cuecas lavadas, peúgas. Uma vez postas estas, respisou a frente dos sapatos para reavivar um ligeiro brilho. Ramona não condescendia com o seu gosto para sapatos. Diante da montra de Bally na Avenida Madison, apontara um par de botas espanholas até aos tornozelos e dissera: — Daquilo é que tu precisas... daqueles pretos, de aspecto informal. — Sorrindo, olhara para cima, de forma que o surpreendera o fulgor do olhar dela. Tinha dentes brancos maravilhosos, levemente encurvados. Os lábios abriam-se-lhe e fechavam-se-lhe sobre estes dentes expressivos, e tinha um nariz curto, curvo, francês, pequeno e fino; olhos de avelã; cabelo negro, farto e brilhante. O peso do rosto concentrava-se-lhe especialmente na parte inferior. Um leve defeito, na opinião de Herzog. Nada de importante, contudo.
— Queres que eu me vista como um bailarino de flamenco? — perguntara
Herzog.
— Devias ter um pouco de imaginação para o vestuário... encorajar certos
aspectos do teu carácter.
Pensar-se-ia, sorriu Herzog abertamente, que ele era um pedaço de capital humano mal investido. Para surpresa dela, talvez, concordou. Quase alegremente, concordou. Força, inteligência, sentimento, oportunidade, tinham sido desperdiçados com ele. O que não conseguia ver, contudo, era que aqueles sapatos espanhóis — que, no entanto, muito agradavam ao seu gosto infantil — lhe aperfeiçoassem o carácter. E temos de nos aperfeiçoar. Temos!
Enfiou as calças. Não as italianas: seriam pouco confortáveis depois do jantar. Uma das novas camisas de popeline a seguir. Tirou-lhe todos os alfinetes. Em seguida vestiu o casaco de madrasto. Inclinou-se para ver o que poderia distinguir do porto pela pequena abertura da janela da casa de banho. Nada de especial. Apenas uma sensação de água a limitar a ilha superlotada de construções. Era um movimento de orientação que esboçava, como relancear o relógio que lhe não dizia as horas. E depois procurava o seu eu específico, uma aparição no espelho quadrado. Como pareceria? Oh! terrível — Tens um aspecto estupendo, Moisés! Formidável! A primitiva auto-afeição da criatura humana, aquele doce instinto do eu, tão profundo, tão antigo, podia ter uma origem celular. Ao respirar, teve consciência dele, sereno mas poderoso, através de todo o seu sistema, uma agradável fome nos nervos mais remotos. Caro Professor Haldane... Não, não era esse o interlocutor de Herzog neste momento. Caro Padre Teilhard de Chardin, tenho tentado compreender o seu conceito de interior das coisas. Esses órgãos dos sentidos, mesmo órgãos dos sentidos rudimentares, não podiam desenvolver-se a partir de moléculas descritas por mecanistas como inertes. Assim a própria matéria devia talvez ser estudada como detentora de uma consciência... será a molécula de carbono dotada de pensamento?
O seu rosto barbeado, a sussurrar no espelho — grandes sombras por baixo dos olhos. Está bem, pensou; se a luz não for muito forte és ainda um homem de esplêndido aspecto. Por um momento, ainda, poderás arranjar mulheres. Todas menos aquela cadela, a Madalena, cujo rosto parece ora belo ora horrível. Vai pois — Ramona alimentar-te-á, dar-te-á vinho, descalçar-te-á, lisonjear-te-á, alisar-te-á a juba, beijar-te-á, beliscar-te-á os lábios com os dentes. Depois abrirá a cama, apagará as luzes, e irá ao essencial.
Estava semi-elegante, semi-desalinhado. Fora sempre esse o seu estilo. Se dava o nó da gravata com cuidado, os atacadores arrastavam pelo chão. O irmão Shura, impecável nos seus fatos por medida, de unhas tratadas e barbeado na Casa Palmer, afirmava que o fazia de propósito. Fora talvez outrora uma provocação juvenil, mas agora fazia parte integral da comédia diária de Moisés E. Herzog. Ramona dizia frequentemente: — Tu não és um americano autêntico, puritano. Tens talento para a sensualidade. A tua boca trai-te. — Herzog não podia deixar de levar os dedos aos lábios quando estes eram mencionados. Mas ria dessas considerações. O que continuava a aborrecê-lo era que ela não o reconhecia como americano. Isso magoava-o. No exército os companheiros tinham-no também considerado estrangeiro. Os naturais de Chicago interrogavam-no com desconfiança. — O que há no State andlake? A que distância fica a Avenida Austin? — A maior parte deles parecia vir dos arredores. Moisés conhecia a cidade muito melhor do que eles, mas mesmo tal facto depunha contra si: — Ah, fixaste tudo. És um espião. Isso prova-o. Um desses judeus finórios. Anda daí, Moisés,... vão atirar-te de pára-quedas... está bem? — Não, tornara-se oficial de comunicações, licenciado por asma. Sufocado pelo nevoeiro, no golfo do México, em manobras, perdendo contacto devido à rouquidão. Mas toda a esquadra o ouvia bradar: — Mas estamos perdidos! Tramados!
Mas em Chicago, em 1934, era orador oficial na Escola Superior de Mc-Kinley, e lia Emerson. Não perdera então a voz, ao falar da mecânica italiana, de construtores de barris da Boémia, de alfaiates judeus. O maior empreendimento do mundo, em esplendor... e a edificação do homem. A vida particular de um homem virá a ser uma monarquia mais ilustre... que qualquer reino da história. De facto, a nossa vida, tal como a vivemos, é vulgar e mesquinha... Homens belos eperfeitos, não o somos agora... A comunidade em que vivemos só a custo aceitará ouvir que todo o homem deveria estar aberto ao êxtase ou a uma iluminação divina. Se perdera navio e marinheiros algures, próximo de Biloxi, isso não implicaria a sua falta de seriedade ao referir-se à beleza e à perfeição. Considerava que as suas credenciais americanas estavam em boa ordem. Rindo, mas magoado, também recordava que um oficial subalterno do Estado-Maior do Alabama lhe perguntara: — Onde foi você aprender inglês... à Escola Boilitz(5)?
Não, o que Ramona pretendia dizer, como cumprimento, era que ele não vivera a vida de um americano vulgar. Não, as suas peculiaridades tinham-no marcado desde o início. Vislumbraria ele algum grande valor ou distinção social nisto? Bem, tinha de suportar estas peculiaridades, de forma que não havia razão para não fazer um certo uso delas.
Mas, falando de americanos vulgares, que espécie de mãe daria Ramona? Seria capaz de levar uma miudinha à parada de Macy? Moisés tentava imaginar Ramona, uma sacerdotisa de ísis, com um fato de tweed, a observar o cortejo dos carros alegóricos.
Caro McSiggins. Li a sua monografia. As Ideias Éticas da Sociedade Comercial Americana. Um grande dia para McSiggins. Interessante. Teria apreciado uma investigação mais minuciosa da hipocrisia, pública e particular, no sistema de contabilidade americano. Nada que impeça o americano individual de reivindicar todo o mérito que deseje. Gradualmente, na filosofia populista, a bondade tornou-se um objecto de utilização livre como o ar, ou quase livre como um metropolitano. O melhor de tudo para todos — sirva-se a si próprio. Ninguém se importa muito. O aspecto honesto, recomendado por Ben Franklin como qualidade necessária ao negócio, tem uma base predestinatória, calvinista. Não se lançam dúvidas sobre a eleição de um homem. Pode-se-lhe prejudicar a taxa de crédito. À medida que a crença na danação se desvanece, deixa para trás sólidas formações de Aparências Dignas de Confiança.
Prezado General Eisenhower. Talvez na vida privada tenha tempo e inclinação para reflectir em assuntos para os quais, como chefe do Executivo, obviamente não tinha tempo. A pressão da Guerra Fria... que tantas pessoas concordam ter sido uma fase de histeria política, e as viagens e discursos do Sr. Dulles passando nesta época de inconstantes perspectivas, da sua primitiva aparência de competência política numa de dissipação americana. Encontrava-me por acaso na galeria de imprensa das Nações Unidas no dia em que falou do risco de erro na precipitação da guerra nuclear. Nesse dia dei na verdade, um sinal por um candeeiro, um velho objecto a gás, na 2.a Avenida. Mais dez dólares desperdiçados em Ludeyville. Estava igualmente presente quando o primeiro-ministro Kruchtcbev bateu na secretária com o sapato. Entre tais crises, numa tal atmosfera, não havia evidentemente tempo para problemas mais gerais como os que me têm preocupado. Aos quais, na verdade, me entreguei. Mas que queres tu que ele faça? Logo, contudo, a partir do livro do Sr. Hughes, e da sua carta a ele dirigida exprimindo interesse pelos «valores espirituais» que talvez não esteja a abusar do seu tempo, chamando-lhe a atenção para o relatório da sua própria Comissão dos Objectivos Nacionais, publicado no fim do seu mandato. Duvido de que as pessoas indicadas para ela fossem as melhores para uma tal função — advogados de companhias comerciais, altas personalidades do Poder Executivo, o grupo agora chamado Estadistas Industriais. O Sr. Hughes referiu-se à forma como V. Exa. se encontrava protegido de desoladoras opiniões, isolado. Talvez esteja a interrogar-se sobre quem será o seu actual correspondente, se um liberal, se um imbecil, um coração sensível, ou um indivíduo ponderado que crê na utilidade civil. Os indivíduos inteligentes sem influência sentem um certo auto-desprezo, que reflecte o desprezo dos que possuem um real poder político ou social, ou pensam que o possuem. Não serás capaz de te exprimir claramente, em poucas palavras? É bem sabido que ele detesta documentos longos, complicados. Uma colecção de afirmações leais e úteis que nos inspirassem na luta contra o inimigo comunista, não era o que necessitávamos. A velha proposição de Pascal (1623-1662) de que o homem mais não é que um caniço, mas um caniço pensante, pode ser utilizada com uma ênfase diferente pelo moderno cidadão de uma democracia. Este pensa, mas sente-se como um caniço vergado pelos ventos dominados por um governo central. Ike decerto não prestaria atenção a isto. Herzog tentou outra aproximação. Tolstoi (1828-1910) disse: «Os reis são escravos da história.» Quanto mais alto se está na escala do poder, mais as acções são determinadas. Para Tolstoi, a liberdade é inteiramente pessoal. É livre o homem cuja condição é simples, verdadeira — real. Ser livre é ser liberto da limitação histórica. Por outro lado. G.W.F. Hegel (1770-1831) considerava que a essência da vida humana derivava da história. História, memória — é isso que nos torna humanos, isso, e o nosso conhecimento da morte-, «pelo homem veio a morte». Pois o conhecimento da morte faz-nos desejar estender as nossas vidas à custa de outrem. E é esta a raiz da luta pelo poder. Mas está completamente errado!, pensou Herzog, não sem humor no seu pronunciado desespero.
Estou a irritar toda esta gente: Nehru, Churchill, e agora Ike, a quem parece que quero fazer uma palestra sobre Grandes Livros. No entanto, havia uma grande seriedade de sentimentos nisto também. Sem ordem civil, não há um maior desenvolvimento da humanidade. A meta, contudo, é a liberdade. E o que deve um homem ao Estado? Foi por estas considerações, ao ler o relatório da sua Comissão de Iniciativas Nacionais, que me senti violentamente agitado por um desejo de comunicar, ou pelo curioso projecto de uma tentativa de comunicação. Ou vergado por uma dissimulada paixão, oferecendo estas ideias sobre a Morte e a História ao comandante do SHAEF, como flores trocistas nascidas no solo da febre e encoberta violência. Supondo, afinal, que mais não somos que uma espécie animal, específica deste torrão mineral que gira em órbita em torno do Sol; para quê então tanta presunção, critérios tão elevados? que pensei na variação na famosa lei de Greshanv. A vida pública faz relegar a vida privada. Quanto mais política se torna a nossa sociedade (no sentido mais amplo de «político» — as obsessões, as compulsões da colectividade) tanto mais a individualidade parece perdida. Parece, digo eu, porque tem milhões de recursos secretos. Ou, mais claramente, os objectivos nacionais encontram-se agora implicados na manufactura de objectos de forma alguma essenciais à vida humana, mas vitais para a sobrevivência política do país. Como estamos todos absorvidos por estes fenómenos da Produção Bruta Nacional, somos forçados a aceitar o carácter sagrado de certos absurdos ou falsidades cujos sacerdotes supremos ainda há pouco eram mal vistos e alvos de escárnio — vendedores de banha de cobra. Por outro lado, há mais «vida privada» que no século passado, quando o dia de trabalho tinha a duração de catorze horas. Toda esta problemática é da maior importância visto intervir na invasão da esfera do particular (incluindo o sexual) por técnicas de exploração e domínio.
O seu trágico sucessor ter-se-ia interessado, mas não Ike. Nem Lyndon. Os seus governos não podiam funcionar sem intelectuais — físicos, estatísticos — , mas estes perdem-se num redemoinho nos braços dos chefes industriais e dos possuidores de biliões. Kennedy não iria igualmente modificar esta situação. Mas parecia ter tido, a título privado, consciência de que ela existia.
Uma nova ideia se apoderou de Moisés. Enviaria um esboço dela a Pulver, Harris Pulver, que fora seu professor em 1939 e era agora o editor da Civilização Atlântica. Sim, o pequeno, nervoso, Pulver com os seus olhos azuis tímidos e expressivos, os seus dentes partidos, o perfil da múmia de Gize fotografada na História Antiga de Robinson, a pele esticada manchada de um rubor febril. Herzog gostava desse homem à sua maneira imoderada, apaixonada. Oiça. Pulver, escreveu ele, uma ideia maravilhosa para um ensaio muito necessário sobre a «condição inspirada»! Acredita na transcendência em profundidade bem como na transcendência em altitude? Tudo isto envolve uma análise histórica. Poderia argumentar que estabelecemos uma nova história utópica, um idílio, comparando o presente a um passado imaginário porque odiamos o mundo tal como ele é. Este ódio pelo presente não tem sido bem compreendido. Talvez a primeira exigência da consciência que emerge nesta civilização de massas seja expressiva. O espírito, liberto do mutismo servil, vomita imundices e uiva com angústia armazenada durante longos séculos. Talvez os peixes, os tritões, os hórridos mamíferos ancestrais fugidios encontrem a sua voz e emprestem a sua longa experiência a este grito. Aceitando a sugestão, Pulver, de que a evolução é a natureza tornando-se auto-consciente — no homem, a auto-consciência tem sido acompanhada nesta fase por um sentido da perda de poderes naturais mais gerais, de um preço pago pelo instinto, por sacrifícios da liberdade, do impulso (alienando o trabalho, etc). O drama desta fase do desenvolvimento humano parece ser o drama da doença, da auto-vingança. Uma época de comédia específica. Aquilo a que assistimos não é apenas o nivelamento que De Tocqueville predissera, mas a fase plebeia da auto-consciência evolutiva. Talvez a vingança dos números, das espécies sobre os nossos impulsos de narcisismo (mas também a reivindicação de liberdade) seja inevitável. Neste novo reino das multidões, a auto-consciência tende a revelar-nos a nós próprios como monstros. Isto é sem dúvida um fenómeno político, uma acção contra o impulso pessoal ou contra a exigência pessoal de espaço e campo de acção. O indivíduo é obrigado, ou pressionado, a definir «poder» como este é definido em política, e a realizar as consequências pessoais disto para si próprio. Assim, é provocado a vingar-se de si próprio, numa vingança de escárnio, desprezo, negação de transcendência. Esta última, a sua negação, é baseada em antigas concepções da vida humana ou em imagens do homem actualmente impossíveis de se manterem. Mas o problema, como eu o vejo, não é um problema de definição mas da reconsideração global das qualidades humanas. Ou possivelmente mesmo a descoberta de qualidades. Estou certo de que há ainda qualidades humanas por descobrir. Uma tal descoberta ou recuperação é apenas impedida por definições que mantêm o homem ao nível do orgulho (ou masoquismo) reclamando demasiado e sofrendo depois de um ódio a si próprio como consequência.
Mas você deve estar apensar no que terá acontecido à «condição inspirada», julga-se que ela se poderá alcançar apenas negativamente e assim é perseguida na filosofia e na literatura bem como na experiência sexual, ou com o auxílio de narcóticos, ou no crime «filosófico», «gratuito» e vias del horror similares. (Nunca parece ocorrer a tais «criminosos» que um comportamento decente para com os outros seres vivos pudesse também ser «gratuito».) Observadores inteligentes têm notado que a honra ou respeito; «espirituais», antigamente reservada à justiça, coragem, moderação, piedade, pode agora alcançar-se negativamente pelo grotesco. Penso muitas vezes que este desenvolvimento está possivelmente relacionado com o facto de tanto de «valor» ter sido absorvido pela própria tecnologia. É «bem» electrificar uma área primitiva. Civilização e mesmo moralidade estão implícitas na transformação tecnológica. Não é bem dar pão a quem tem fome, vestir quem está nu? Não obedecemos a Jesus ao embarcar maquinaria para o Peru ou Samatra? O bem é facilmente realizado por máquinas de produção e transporte. Poderá a virtude competir com elas? As novas técnicas são em si mesmas bien pensant e representam não apenas racionalidade mas benevolência. Assim uma multidão, um rebanho de bien pensants, foi arrastado para o niilismo que, como é bem sabido, tem raízes cristãs e morais e para os seus mais selváticos frenesins oferece um racional «construtivo». (V. Polyani, Herzog, et al.)
Indivíduos românticos (uma série deles, até agora) acusam esta sociedade de massas de obstruir o seu caminho para a beleza, nobreza, integridade, força. Não desejo escarnecer do termo Romântico. O Romantismo guardou a «condição inspirada», preservou os ensinamentos poéticos, filosóficos e religiosos, os ensinamentos e registos da transcendência e as mais generosas ideias da humanidade, no decurso da maior e mais rápida das transformações, da fase mais acelerada da moderna transformação científica e técnica.
Finalmente, Pulver, viver numa condição inspirada, conhecera verdade, ser livre, amar os outros, realizar a existência, coabitar com a morte com uma consciência clara — sem o que, correndo efechando os olhos para fugir à morte, o espírito sustém a respiração e espera ser imortal porque não vive — já não é um projecto raro. Assim como a maquinaria encarnou ideias de bem, também a tecnologia da destruição adquiriu da mesma forma um carácter metafísico. As questões práticas tornaram-se assim igualmente as questões fundamentais. A aniquilação já não é uma metáfora. O Bem e o Mal são reais. A condição inspirada não é portanto um problema visionário. Não é reservada a deuses, reis, poetas, sacerdotes, santuários, mas pertence à humanidade e a tudo o que existe. E portanto...
Portanto, os pensamentos de Herzog, como aquelas máquinas nas águas-furtadas que ouvira na véspera no táxi obrigado a parar pelo tráfego no centro de modas, mergulhado e ruidosamente alvejado com infindo — infinito! — poder esfaimado, eléctrico, cosendo tecidos com inexaurível energia. Tendo-se sentado de novo com o seu casaco de riscas, prendia entre os joelhos as pernas da secretária, de dentes cerrados, chapéu de palha enterrado até à testa. Escreveu, A razão existe! A razão... ouviu então o ressoar suave e denso de alvenaria a tombar, o estilhaçar de madeira e vidro. E a crença baseada na razão. Sem a qual a desordem do mundo não será jamais controlada por uma simples organização. O relatório de Eisenhower sobre Iniciativas Nacionais, se eu tivesse algo a ver com isso, teria em primeiro lugar ponderado a existência particular e íntima de americanos... Já terei explicado que o meu artigo seria um estudo crítico deste relatório? Meditou intensa, profundamente, e escreveu, Para cada qual modificar a sua vida. Para modificar!
Assim, desejo que você veja como eu, Moisés E. Herzog, me estou a modificar. Peço-lhe que verifique o milagre deste coração alterado — como, ao ouvir os ruídos da demolição de velhas casas no quarteirão contíguo e ao fitar a branca poeira de estuque no ar sereno da metamórfica Nova. Iorque ele comunica com o poder deste mundo, ou pronuncia palavras de compreensão e profecia, tendo simultaneamente combinado um serão confortável e divertido — comida, música, vinho, conversa e relações sexuais. Transcendência ou não transcendência. Só trabalho sem divertimentos é uma má receita médica. Ike pescava trutas e jogava golf, as minhas necessidades são diferentes.
(Mais de acordo com a veia de arguta malícia de Herzog.) O erótico deve ser admitido no lugar que lhe compete, finalmente, numa sociedade emancipada que compreende a relação da repressão sexual com a doença, a guerra, a prosperidade, o dinheiro, o totalitarismo. Sim, deitarmo-nos é na verdade socialmente construtivo e útil, um acto cívico. Assim, aqui estou eu no crepúsculo envolvente, com o casaco às riscas pelas costas, suando de novo depois de me lavar, barbeado, empoado, mordendo nervosamente o meu lábio inferior, como que antecipando o que Ramona lhe fará. Impotente para rejeitar o gracejo hedonista de uma civilização industrial mamute sobre os desejos espirituais, as mais altas aspirações de um Herzog, sobre o seu sofrimento moral, a sua ânsia de bem, de verdade. Entretanto o seu coração aperta-se-lhe com desprezo. Gostaria de sacudir o coração ou de o arrancar do peito. Expulsá-lo. Moisés odiava a comédia humilhante de um coração apertado. Mas pode o pensamento acordar-nos do sonho da existência? Não, se este se torna um segundo reino da confusão, um outro sonho mais complicado, o sonho do intelecto, a desilusão das explicações totais.
Recebera um dia uma advertência significativa da mãe de Daisy, Polina, ao apaixonar-se ocasionalmente pela sua amiga japonesa Sono, e Polina, a velha sufragista judia russa — mulher moderna, de cinquenta e cinco anos, residente em Zenesville, Ohio (de 1905 a 1935 o pai de Daisy fora aí motorista de uma camioneta de gasosas). Nem Polina nem Daisy sabiam realmente fosse o que fosse sobre Sono Oguki então. (Que série de romances!, pensou Herzog. Um após outro. Seriam eles a minha verdadeira carreira?) Mas... Polina surgiu, grisalha e de ancas largas, com a sua mala do tricot, pessoa elegante e determinada. Chegou com uma caixa de flocos de aveia cheia de Apfel Strudel" para Herzog — sentia ainda saudades pela perda do seu strudel; era realmente óptimo. Mas tinha consciência de que a sua necessidade dele era infantil, e de que havia questões de adultos a decidir. Polina tinha a rigidez e severidade específicas da mulher emancipada da sua geração. Outrora uma beleza, apresentava agora um aspecto muito seco, com os seus óculos de ouro octogonais e esparsos pêlos brancos de velha aos cantos da boca.
Falavam em ídixe. — Em que te irás tu tornar? — dizia Polina — , ein ausvurf... ausgelassen? — Proscrito... dissoluto?
A velha senhora era tolstoiana, puritana. Comia carne, no entanto, e era uma tirana. Era frugal, dura, limpa, respeitável e dominadora. Mas nada havia de tão acre, doce, suave e perfumado como o seu strudel feito com açúcar amarelo e maçãs verdes. Era extraordinária a sensualidade que punha nos seus cozinhados. E nunca dera a Daisy a receita. — Bem, então? — dizia Polina. — Primeiro uma mulher e depois outra, depois outra. Quando é que isto terminará? Não podes abandonar uma esposa, um filho, por essas mulheres — , prostitutas.
Nunca devia ter tido estas «explicações» com ela, pensou Moisés. Seria um ponto de honra explicar-me perante todos? Mas como poderia eu explicar? Eu próprio não compreendia, não tinha chave para o enigma.
Estremeceu. Fazia melhor ir andando. Estava a fazer-se tarde. Era esperado no centro da cidade. Mas ainda não estava pronto a sair. Pegou numa nova folha de papel e escreveu: Querida Sono.
Regressara havia muito ao Japão. Quando? Voltou os olhos para cima como se tentasse calcular a extensão de tempo, e viu as nuvens brancas rolando sobre Wall Street e o porto. Não te censuro por teres ido para o teu país. Era uma pessoa de bens. Possuía uma casa de campo também. Herzog vira as fotografias a cores — uma região campestre com coelhos, galinhas, leitões e a sua fonte particular de água quente onde tomava banho. Tinha um retrato do cego da aldeia que a ia massajar. Massajara muitas vezes Moisés, e este massajara-a a ela.
Tinhas razão a respeito de Madalena, Sono. Não devia ter-me casado com ela. Devia ter-me casado contigo...
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