Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HOLLYWOOD / Gore Vidal
HOLLYWOOD / Gore Vidal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

H O L L Y W O O D

Um Romance da América nos Anos Vinte

Primeira Parte

 

William Randolph Hearst baixou lentamente seu corpanzil de urso sobre uma linda cadeira Biedermeier, cheia de liras, pergami­nhos e marcheteria.

— Não conte a ninguém que estou em Washington — ordenou.

Em seguida piscou devagarinho os olhos azul-claros para Blaise Delacroix Sanford. Embora Blaise estivesse com quarenta e um anos e fosse o editor do Washington Tribune, ainda temia seu antigo chefe e mentor, agora grisalho em seus cinqüenta e quatro anos, o jorna­lista mais famoso do mundo, proprietário de "dezenas de jornais e revistas e, curiosissimamente, recente criador da sensação mundial que era um filme seriado chamado Os perigos de Pauline.

Claro que não.

Blaise estava sentado na beirada de sua escrivaninha, flexionan­do os músculos da perna. Ao contrário do Chefe, Blaise estava em excelente forma física: cavalgava todos os dias, jogava squash em sua própria quadra, lutava contra a idade.

Millicent e eu passamos o inverno nos Breakers. Sabe, em Palm Beach.

O rosto do Chefe estava moreno como o de um índio, em razão do sol. Logo atrás da cabeça de Hearst, Blaise tinha, através da janela, uma vista parcial da Rua 14, até que, com um suspiro leve e seco, a cadeira Biedermeier desmoronou sobre si mesma como um. acordeão; Hearst e a cadeira tombaram sobre o espesso tapete persa, e a vista da Rua 14 ficou desobstruída.

Blaise pôs-se de pé num salto.

Lamento...

Mas Hearst ignorou serenamente a intromissão da força da gra­vidade em seu raciocínio. Permaneceu no chão, onde estava, segu­rando numa das mãos uma frágil lira de madeira que tinha sido um dos braços da cadeira: o Orfeu do jornalismo popular, pensou Blaise histericamente, perturbado por aquela visão.

— De qualquer maneira, vim escondido a Washington para descobrir se há alguma coisa de concreto nesse negócio do telegrama Zimmermann; se houver, como é que você pretende agir a res­peito? Afinal, é o editor de Washington. Eu sou só de Nova York.

— E de todos os outros lugares. Pessoalmente, acho que é uma fraude... Por que não experimenta outra cadeira?

Hearst pousou sua lira.

— Sabe, quando estive em Salzburgo comprei um monte de mobília Biedermeier e mandei de navio para Nova York, e afinal nunca cheguei a tirar dos caixotes. Agora acho que não vou mesmo. — Tão lentamente como se sentara, majestosamente, Hearst ergueu- se em toda a sua estatura; era pelo menos duas cabeças mais alto que Blaise. — Desculpe ter quebrado esta coisa. Mande-me a conta do estrago.

— Deixe disso, Chefe.

Em seu nervosismo, Blaise chamou Hearst pelo nome pelo qual ele era conhecido por todos os seus empregados, mas nunca por Blaise, seu igual. Enquanto Hearst acomodava-se numa poltrona de couro que parecia uma fortaleza, Blaise pegou o assim chamado "telegrama Zimmermann". Recebera uma cópia de fonte segura na Casa Branca, assim como Hearst, aparentemente. O telegrama fora transmitido secretamente de Londres para o Presidente Wilson no sábado, 24 de fevereiro de 1917, Agora era segunda-feira, e na tarde desse mesmo dia Woodrow Wilson iria discursar numa sessão plenária no Congresso sobre a guerra ou a paz ou a continuação da neutralidade ou fosse o que fosse com as Forças do Centro, especificamente a Alemanha, em sua guerra contra a "Entente Cor­diale", ou França, Inglaterra e Rússia e, ultimamente, Itália. Se au­têntico, o telegrama do ministro do Exterior alemão, Arthur Zimmer­mann, para o embaixador alemão no México, um país havia algum tempo mais ou menos em guerra com os Estados Unidos, acabaria de uma vez por todas com a neutralidade dos Estados Unidos. Blaise suspeitava de que o telegrama fosse obra do Ministério do Exterior britânico. O tom ousado era o tipo de coisa que apenas um país desesperado, perdendo uma guerra, engendraria para assustar os Estados Unidos e fazê-los vir em seu socorro.

Meus espiões dizem que o telegrama estava de molho em Londres desde o "mês passado, o que significa que foi escrito lá, se é que não começou primeiro aqui. — Hearst tirou sua cópia de um bolso e leu em sua voz alta e fina: — "Pretendemos começar em 1º de fevereiro uma guerra submarina irrestrita." — Ergueu os olhos. — Bom, esta parte é verdade, os alemães estão realmente nos martelando, afundando todos os navios que encontram entre os Estados Unidos e a Europa. Burrice deles, sabe? A maioria dos americanos não deseja a guerra. Eu não quero a guerra. Sabia que Bernstorff foi amante da Sra. Wilson?

O Chefe tinha o desconcertante hábito de mudar de um assunto a outro sem qualquer ligação perceptível; no entanto, com freqüên­cia havia algum elo misterioso juntando suas divagações desencon­tradas. Blaise realmente ouvira o boato de que o embaixador alemão e a viúva Sra. Galt, como a Sra. Wilson era conhecida um ano antes, tinham sido amantes. Mas Washington não era apenas a "ci­dade das conversas" de Henry James, mas a cidade dos mexericos fantásticos de Hearst.

Se foram amantes, tenho certeza de que estava tudo terminado quando ela se casou com o Presidente.

Ninguém pode ter certeza a não ser que estivesse no quarto deles, como minha mãe está sempre me dizendo. Que fortuna mamãe possui! E ainda por cima ela é a favor dos ingleses. — Hearst reco­meçou a leitura: "Apesar disto, vamos tentar manter a neutra­lidade dos Estados Unidos. Caso isto não aconteça,, fazemos ao México uma proposta de aliança nos seguintes termos: fazemos juntos a guerra, fazemos juntos a paz, generosa ajuda financeira e de nossa parte a aceitação de que o México reconquiste os territórios perdidos no Texas, no Novo México e no Arizona. — Hearst ergueu os olhos.

Pelo menos, quem quer que tenha escrito isto não lhes prometeu minha propriedade na Califórnia.

Quem você acha que escreveu, se não foi Zimmermann?

Hearst assumiu uma expressão de seriedade.

Thomas W. Gregory, o procurador-geral. Foi o que ouvi. Ele está pressionando Wilson cada vez mais a entrar na guerra agora. Felizmente o resto do Gabinete quer que Wilson resista, porque...

Hearst olhou para o telegrama, franzindo os olhos — esta parte aqui é o verdadeiro motivo da guerra. Quer dizer, Zimmermann, ou Gregory, ou os ingleses, ou quem quer que tenha escrito, sugere que o Presidente do México procure os japoneses e os faça entrar em guerra conosco. Bem, esta é a grande ameaça!

Blaise rodeou a escrivaninha e sentou-se em sua cadeira. Na parede atrás de si estava pendurado um retrato em tamanho real dele, com sua meia-irmã e co-editora Caroline e seu diretor, Trimble. Blaise sabia, todos sabiam, que sempre que Hearst precisava de uma história sensacional para seus jornais ele invocava o Perigo Amarelo. Embora Blaise fosse neutro no que se referia à expansão japonesa na China, outras pessoas não eram. Em 1º de fevereiro, quando a Alemanha enviara seu ultimato aos Estados Unidos no sentido de que todos os navios que saíssem de portos americanos com des­tino a portos dos Aliados seriam presa fácil para os submarinos alemães, ou "U-boats", como eram popularmente conhecidos, o Ga­binete reunira-se, e embora Gregory, entre outros, estivesse ansioso por uma declaração de guerra, o Presidente, lembrando-se de que aca­bava de ser reeleito como "o homem que nos manteve fora da guerra", queria apenas cortar relações entre os dois países. Ele recebera o apoio inesperado de seus secretários da Guerra e da Marinha; ambos declararam que os Estados Unidos deveriam deixar que a Alemanha se apoderasse da Europa e então, no futuro, toda a raça branca unir-se-ia contra as hostes amarelas, lideradas pelo Japão. Hearst dera grande destaque a essa alternativa. Blaise, não.

Trimble entrou sem bater. Era um sulino idoso, cujos cabelos antes ruivos tinham agora um desagradável tom rosado.

Sr. Hearst — falou, com uma reverência.

Hearst inclinou a cabeça, e Trimble disse:

Acabamos de receber um relatório sobre o que o Presidente vai dizer ao Congresso...

Guerra? — Hearst endireitou-se na cadeira.

— Não, senhor. Mas ele vai pedir neutralidade armada...

Estado de alerta... — suspirou Hearst. — Paz sem vitória. Uma liga mundial das nações com o Sr. Wilson na Presidência. Auto­determinação para todos.

— Bom, ele não fala isto tudo neste discurso — fez Trimble, antes de retirar-se.

Blaise repetiu a piada da semana em Washington.

— O Presidente quer declarar guerra confidencialmente, de modo que os bryanistas, que são os pacifistas do partido, não fiquem contra ele.

Além de mim. Ainda estou na política, você sabe.

Blaise sabia; todos sabiam. Hearst preparava-se para concorrer novamente ao governo do estado de Nova York, ou à prefeitura da cidade de Nova York, ou à Presidência em 1920. Ainda tinha um número imenso de seguidores, principalmente entre os assim chn mados de dupla nacionalidade: germano-americanos e irlandeses-americanos, inimigos da Inglaterra e de seus aliados.

Viu Os perigos de Pauline? — perguntou.

Blaise acomodou-se facilmente à súbita mudança de assunto. A cabeça do Chefe era um prodigioso caleidoscópio que nenhum tipo de consciência protegia. Como uma criança, dizia o que quer que lhe viesse à mente. Não havia um processo de filtragem, exceto quando ele decidia, como fazia com freqüência, ficar enigmatica­mente silencioso.

Vi vários episódios. Ela é muito bonita, a Srta. Pearl White, e sempre em ação.

É por isso que eles são chamados de imagens em movimento. Hearst mostrava-se professoral. Ela tem que ficar fugindo do perigo, senão a platéia vai começar a fugir do cinema. Sabe, neste negócio de guerra, sou a favor de ficarmos de fora, tanto quanto você é a favor de entrarmos. Mas vou dizer uma coisa: se o povo realmente quiser a guerra, então vou concordar. Afinal, é o povo que vai ter que lutar nela, não eu. Vou pedir um plebiscito nacional, fazer todo mundo votar, sabe como é? Querem lutar pela Inglaterra e pela França contra seu próprio povo, os alemães e os irlandeses?

Blaise riu.

Acho que não vão deixar você colocar a pergunta assim.

Hearst grunhiu.

Bom, sabe o que quero dizer. Não existe um apoio de verdade. Sei disso muito bem: tenho oito jornais, da Califórnia a Nova York. Mas claro que é tarde demais. A coisa já foi muito longe. Vamos mesmo entrar na guerra. Então a Inglaterra vai desmoronar. Depois os alemães virão aqui, ou tentarão. Já pensou nas bandeiras?

Bandeiras?

Dessa vez o inconsciente do Chefe estava à frente de Blaise.

Hearst extraiu de seu enorme bolso lateral um exemplar do New York American. Na primeira página havia bandeiras em vermelho-branco-azul, assim como várias estrofes do hino nacional.

Bonito, não é?

Muito patriótico.

— A idéia é essa mesma. Estou ficando cansado de ser chamado de pró-Alemanha. De qualquer maneira, estou prestes a começar uma empresa de cinematógrafo, e gostaria que você entrasse comigo.

Blaise adaptou-se a essa nova mudança com admirável sangue-frio, segundo ele próprio achou.

— Mas não entendo nada de filmes.

Ninguém entende. Isto é que é maravilhoso. Sabe, enquanto estamos sentados aqui, no mundo inteiro chineses, hindus e patagônios analfabetos estão assistindo à minha Pauline. Entende, para assistir um filme não é necessário falar outra língua, como quando se lê um jornal, porque está tudo ali. Tudo ali, em movimento. É a única coisa internacional que existe. De qualquer maneira, o im­portante é que mamãe, que é quem tem dinheiro, não quer me emprestar, e não pretendo recorrer aos bancos.

Finalmente Hearst surpreendera Blaise. Era verdade que Phoebe Apperson Hearst controlava a grande fortuna em minério do finado pai de Hearst, mas o império pessoal de Hearst era mais que sufi­ciente para financiar uma companhia cinematográfica. Naturalmente Hearst vivia mais luxuosamente do que qualquer pessoa nos Estados Unidos, com cinco milhões por ano, dizia-se, grande parte dos quais era destinada à aquisição de qualquer obra de arte espúria à venda em qualquer lugar.

— Bem, vou pensar nisto — Blaise estava cauteloso.

E aquela sua irmã, Caroline?

Pergunte a ela.

Você não quer me vender o Tribune?

Não.

Hearst pôs-se de pá.

É o que você sempre diz. Estou de olho no Times daqui. É um jornal horrível, mas este aqui também era até Caroline comprar e consertar.

A súbita onda de inveja de Blaise, ele esperava, não era visível para o outro. Caroline realmente comprara e revigorara o moribundo Tribune, depois, e só depois, permitira que seu meio-irmão com­prasse uma parte. Agora, em conjunto, em harmonia, eram sócios.

Hearst contemplava a Rua 14.

— Quatro — disse. — Não, cinco casas de cinema só nesta rua. Estou de olho num lugar lá no Harlem, um antigo cassino, onde posso montar um estúdio. — Chutou distraidamente os restos da cadeira Biedermeier. — Tenho que ficar em Nova York. Por causa de 1920. Com ou sem guerra, vai ser o grande ano da política. Quem quer que se eleja presidente vai poder... — Hearst deu um tapinha no telegrama Zimmermann que estava sobre a escrivaninha de Blaise. — Acho que é falso.

Blaise assentiu.

— Eu também. É perfeito demais.

Hearst apertou a mão de Blaise.

— Vou voltar para Palm Beach. Vamos ter esta guerra de qualquer jeito, querendo ou não. Lembre-se da minha proposta. Só vou começar no Harlem porque Nova York é a minha base. Mas o lugar certo de se estar de agora em diante é Hollywood. Está por dentro?

— Não — respondeu Blaise. Como um domador, levou o grande urso até a porta. — Mas tenho certeza de que você está.

 

A Duquesa estava atrasada. Enquanto Jesse Smith esperava por ela na ante-sala de Madame Marcia, estudava ou fingia estudar o Almanaque do vermífugo do Dr. Jane, um grosso volume cheio de fantásticos mapas celestes e estranhos desenhos de criaturas ainda mais estranhas, uma das quais, um monstruoso caranguejo, provocou em Jesse ou Jess — "Não se pronuncia o 'e' final, por favor, rapa­zes, isto é só para as senhoras da loja" — angústia e azia, pois em seus repetidos pesadelos freqüentemente figurava um caranguejo gi­gante e devorador, de completa malignidade; e Jess acordava aos soluços, segundo Roxy, nas poucas vezes, durante seu breve casa­mento, em que tinham passado uma noite inteira juntos.

Jess virou rapidamente várias páginas, até chegar a uma neutra balança de dois pratos, mais tranqüilizadora do que a lagosta com o ferrão na cauda ou o ameaçador leão. Não que ele temesse ser devo­rado pelo caranguejo, pela lagosta, pelo leão: asfixia era o seu terror noturno, com a pesada pata do leão tapando-lhe a boca e o nariz.

Jesse inspirou profunda e entrecortadamente. O apartamento de Madame Marcia recendia a galinha cozida e incenso velho, vindo de um prato de bronze de Benares cheio do que parecia fumo de ca­chimbo usado mas que na realidade era o mais recente incenso de sândalo indiano, pelo qual Roxy também tinha uma queda.

A sala de espera de Madame Marcia era separada do "santuário" por uma cortina feita de cordões de contas de cores diferentes para dar um efeito de Mil e uma noites, mas as contas eram tão foscas que o efeito era mais de balas de tostão enfiadas numa linha. No entanto, metade das figuras importantes de Washington D.C., dizia-se, vinham até ali para conhecer o futuro e assim impedir ou apressar o destino inexorável. Uma feiticeira em ação, Madame professava "fazer presidentes e dirigir presidentes". Por trás da cas­cata de contas Jess ouvia Madame resmungando consigo mesma em voz sem inflexão, que sugeria os mais elevados reinos espirituais, até que se distinguia a letra de uma recente canção popularizada pelo espetáculo de Ziegfeld follies de 1916, ouvida havia quase um ano em todas as vitrolas do país. Jess olhou sem muito interesse para um espalhafatoso diploma na parede, que declarava a todos que uma certa Mareia Champrey ocupava elevada posição na Igreja Espiritualista.

Madame Mareia tinha sido inspiração de Daugherty.

Nunca fui lá. Mas dizem que ela é tiro e queda, e é disso que a Duquesa está precisando dissera ele.

Como todos os políticos, Daugherty falava em código; e Jess, que crescera à sombra das colunas do Tribunal em Washington, Court House, sua cidade natal no Ohio, entendia esse código. Além disso, não havia o que ele não fizesse por Harry M. Daugherty, que tornara-se seu amigo quando ele estava começando, fizera seu tra­balho legal de graça, apresentara-lhe os políticos de Ohio que sempre vinham pedir ajuda a Daugherty na época das eleições eleições deles, naturalmente. Embora Daugherty tivesse sido presidente do Comitê Estadual Republicano e era agora para sempre parte da história porque indicara William McKinley para governador em 1893, dessa forma lançando o sol, por assim dizer, ao céu da repú­blica, o próprio Daugherty não tinha tido sorte na política; por 77 votos não conseguira ser candidato a governador e agora contentava-se em ser o poder oculto atrás de qualquer trono que conseguisse erguer. Naturalmente o trono mais alto de todos estava vazio no momento, ou, para ser mais preciso, ocupado por um tal Woodrow Wilson, um democrata um estado de coisas antinatural que seria corrigido em 1920 com a eleição de um Presidente republicano. Mas para isso faltavam três anos, e havia certos preparativos a serem feitos. Madame Marcia era um deles.

Ela sempre se atrasa assim?

Madame Marcia deslizou para dentro da sala num estranho ân­gulo em relação ao solo. Já fora dançarina, segundo contara a Jess em sua visita anterior, na Companhia de Ópera de Frank Deshon.

"Aos 16 anos , acrescentava, caso alguém fosse contar os anos passados desde que seu nome aparecera em letras bastante miúdas num enorme cartaz cuja data colocava-a como uma artista da remota época de McKinley. A dançarina era agora uma espiritualista e guia astrológica nos dias sombrios de Woodrow Wilson, quando todos os dias, para os republicanos, eram como hoje, fevereiro, com a neve caindo e um vento frio vindo do norte.

Não. A Duquesa é a pontualidade em pessoa. — Jess ergueu-se, como sempre fazia, quando uma senhora, qualquer uma, entrava num aposento, qualquer um. — O mau tempo...

— Ah, sim, o mau tempo.

Ao longo dos anos, uma a uma, as vogais com sotaque do Brooklyn de Madame Marcia foram-se fechando gradualmente até que ela passou a soar refinada e profundamente espiritual. Usava um hábito preto e um cordão de pérolas. Apenas a basta cabeleira ruiva destoava, evocando a bailarina da Companhia de Frank Deshon. Jess conhecera-a com Daugherty, que punha a mão no fogo por ela, o que quer que isso significasse. Embora Jess acreditasse ardorosamente em todo tipo de fantasma e assombração, não tinha particular interesse em qualquer mundo espiritual exceto o que havia no armário do vestíbulo de sua casa, onde, atrás de um velho sobre­tudo de inverno e uma pilha de galochas, reinava o horror. Apenas seu motorista George ousava entrar naquele armário, de onde saía são e salvo.

O Sr. Micajah vai bem?

Madame Marcia sentou-se numa cadeira de espaldar reto e sorriu, mostrando dentes semelhantes a pérolas, mais autênticos em qualidade do que as pérolas que ela usava. Micajah era o primeiro sobrenome de Daugherty. Madame desencorajava o uso de nomes verdadeiros — "para que eu não seja influenciada quando consulto os astros". Daugherty garantia que ela não tinha a menor idéia da pessoa cujo horóscopo estudava; daí o preço alto. Ela era uma lenda na capital, muito procurada por altos figurões, geralmente através de intermediários, pois suas fisionomias seriam conhecidas de Ma­dame Marcia, graças à fotografia e ao noticiário filmado.

Vai, sim. Ele voltou para... — Jess interrompeu-se antes de dizer "para o Ohio". — ... casa. Mas o, hum... amigo está aqui. O marido da Duquesa.

— Um horóscopo interessante, até mesmo significativo.

Madame Marcia recebera apenas a data e a hora do nascimento do marido da Duquesa. Naturalmente ela tinha um catálogo do Congresso em seu santuário e podia, se quisesse, comparar as várias datas de nascimento com aquela em suas mãos, partindo do princípio de que seu proprietário estivesse no Congresso. Mas, como dizia Daugherty, mesmo sabendo de quem era o horóscopo, como podia prever seu futuro sem uma ajuda qualquer, dos astros ou do que fosse? A cidade inteira sabia que ela previra que o atual vice-presidente, Thomas R. Marshall, seria elevado a esse cargo. Sem uma ajuda espiritual esse palpite seria impossivelmente arriscado.

Nunca vi um inverno tão frio. Pior que qualquer um em Nova York...

Por que veio para Washington?

Foi o destino declarou Madame Marcia, como se falasse de um amigo velho e querido. Eu estava ligada à cigana Oliver no parque de diversões de Coney Island. Mais por divertimento. Porém... — a voz de Madame tornou-se baixa e vibrante ela tinha dons também, além de... esperteza. Dons misteriosos. Entre eles o da profecia. Eu pensava ter um casamento feliz. Com dois filhos lindos. Meu marido, o Dr. Champrey, tinha uma excelente clientela. Era especialista em região lombar inferior e, naturalmente, em todo o aparelho renal. Mas os espíritos falaram com a cigana Oliver e ela falou comigo. Cuidado com o peru, ela me disse um dia. Pensei que estivesse brincando. Achei graça. Que tola fui! Que peru?, perguntei. Conheço perus, e não gosto muito; seco demais, a não ser que se saiba assar, e o destino não quis que eu soubesse. Bem, pois não é que no mês seguinte, era novembro, eu estava preparando o jantar de Ação de Graças para a minha família quando o Dr. Champrey disse: "Vou comprar um peru para nós." Ainda me lembro que senti um estremecimento, um arrepio, como se um fan­tasma segurasse em mim.

Jess estremeceu no aposento abafado. Era tudo para valer, mesmo. Sem sombra de dúvida.

Respondi: "Horace, você sabe que não gosto muito de peru. Um frango cozido está bom." Ela suspirou. Jess respirou fundo e sentiu cheiro de galinha cozida e sândalo velho. "Por que não fazermos uma festança?", ele falou, e saiu. E nunca mais os olhos de veias vermelhas encararam Jess voltou.

Assassinado?

Jess sempre soubera que ele próprio teria morte violenta. Roxy dizia que ele era doido. Mas Jess tinha certeza; por isso nunca ficava sozinho numa rua deserta, num corredor ou, aliás, numa cama, se pudesse evitar. Quando George não dormia com ele, um dos empregados do armazém fazia esse favor. Em Washington de sempre dividia um quarto com Daugherty, ao lado do quarto da inválida Sra. Daugherty. Em qualquer cidade que estivesse, ficava amigo de policiais. Lia todas as histórias de detetive, para aprender como se sobrevive na selva da cidade, com suas mortes selvagens, seus formi­gueiros humanos, seus becos escuros.

Quem é que sabe? Aquele filho da puta... — ela arrema­tou, com súbita melancolia. — De qualquer maneira, tenho a minha vocação. — Apontou para o diploma da Igreja Espiritualista. — Não preciso de homem, felizmente, a não ser quando sinto que conheço um deles de outra encarnação.

Sorriu para Jess, que enrubesceu e tirou os óculos de lentes grossas, de modo que o rosto dela tornou-se um borrão; adorava mulheres mas, com uma coisa e outra — como o seu problema de peso e a diabetes — de que adiantava? Foi o que Roxy disse no terceiro mês de casamento. Na ocasião Jess chorou. Ela foi firme, mas carinhosa. Roxy jamais sairia para comprar um peru sem voltar. Ela saiu foi para o divórcio, e como Jess mesmo naquela época já valia uma pequena fortuna, mais que cem mil dólares, ele podia sustentar os dois em alto estilo. Hoje eram mais amigos do que nunca, ambos fãs de mexericos, ambos capazes de lembrar a data do casa­mento de alguém, de modo que no nascimento do primeiro filho eles podiam — ela sem usar os dedos, ele usando — calcular a data da concepção e sé a criança era ou não abençoada aos olhos do Senhor. Ambos deliciavam-se secretamente com o fato de que o filho da Duquesa com seu primeiro marido tinha nascido seis meses depois do casamento que acabou terminando em divórcio seis anos depois. Roxy compartilhava o prazer de Jess nesse tipo de informação, que era, na opinião de Jess, bênçãos ainda por vir, principalmente se Roxy acabasse em Hollywood como estrela do cinematógrafo, sonho usual deles — para ela.

A Duquesa surgiu na sala,

Entrei por minha conta.

A voz era seca e anasalada, e sempre que uma palavra tinha a letra "r" a Duquesa fazia essa pobre letra atravessar seus lábios finos e ressequidos vezes sem conta, como se fosse francesa. Mas era o tipo perfeito de alguém do Meio-Oeste descendente de alemães. Seu nome de nascença era Florence Kling. Tinha a cabeça grande e o corpo pequeno. A Duquesa sofria do que Madame Mareia rotularia de problemas renais, e costumava ter os tornozelos inchados, ao passo que sua costumeira cor amarelada com freqüência ficava cinzenta de doença. Possuía apenas um rim, o que a obrigava a beber grande quantidade de água. Freqüentemente acamada com um saco de água quente mesmo nos mais abafados dias de verão, ela tentava, às vezes em vão, transpirar. Mas hoje os olhinhos azuis brilhavam, e havia até uma sugestão de cor em sua face, pelo efeito do vento norte, ao passo que a ponta do nariz um tanto grosso mostrava-se também rosada — e úmida também. Assoou o nariz num enorme lenço, como uma trombeta, e declarou:

Odeio incenso. É tão estrangeiro! E é tão ruim para o ar...

— Chacun à son goüt.Madame Marcia foi simpática. —Deixe-me guardar seus agasalhos.

Enquanto se despia, a Duquesa voltou-se para Jess.

— Fomos convidados para a casa da Sra. Bingham, mas... — A Duquesa ia mencionar o marido pelo nome, mas viu os olhos de Jess, castanhos e míopes, tão diferentes dos seus próprios, pe­quenos, cinzentos e enxergando longe; e se lembrou da regra de omertà. — Mas não quero ir sozinha. Você pode me levar, não pode?

Claro, Duquesa.

E agora, Madame Marcia. — A Duquesa fez o nome da sacerdotisa soar como o da dona de uma casa de diversões. — Nos últimos dois anos tenho ouvido falar tanto em você, e tenho muito prazer em conhecê-la, embora não possa dizer que acredite muito nisto tudo.

A Duquesa assumiu uma expressão que Jesse estava convencido de que ela achava ser jovial, mas o lábio superior comprido como o de um carneiro e a boca fina produziam um efeito mais para o assustador.

Minha cara senhora... — Marcia suspirou e pestanejou. — Somos a matéria de que os sonhos são feitos...

— Detesto Shakespeare. — A Duquesa sempre surpreendia Jess pela quantidade de coisas que conhecia e geralmente detestava. Mas ela tivera uma vida difícil, que provavelmente não ia ficar mais fácil. Conseguia distinguir os avisos de tempestade com mais clareza do que qualquer outra pessoa que ele conhecia, como aqueles animais que conseguiam prever terremotos, o que nunca lhes foi de utilidade alguma. — Uma vez assisti à Companhia de Ópera Frank Deshon — continuou ela, numa virada completa; era também uma grande política quando queria ser. Foi em Cincinnati. Fui com meu... irmão. Foi antes do seu tempo, é claro...

Ah, minha cara senhora! Madame Marcia estava devida­mente fisgada.

Agora o que faço? Sinto-me como se estivesse no dentista...

Madame Marcia tomou sua cliente pelo braço e guiou-a para o aposento dos fundos.

Não vai doer, prometo.

Agora, não fique escutando, Jess. A Duquesa tocou nas contas da cortina.

Nunca escuto o que não devo.

Pois sim! Estas suas orelhas, grandes assim só vi no circo.

Jess resolveu não escutar e ouviu tudo.

A pessoa como o marido da Duquesa era chamado nasceu em 2 de novembro de 1865 às 14:00h no Meio-Oeste dos Estados Unidos. Júpiter... — algo ininteligível, e depois Signo de Sagitário, na décima hora.

Jess fixou os olhos no carvão em brasa atrás da grade de ferro. Washington era igualzinho a Ohio, aquelas ruas de casas de tijolo nada tinham de cidade grande. Todos diziam que Washington era apenas uma aldeia grande que por acaso estava cheia de pessoas importantes, do tipo que atraía Jess naturalmente, e era atraído por ele.

Ultimamente Jess vinha registrando num livrinho o nome de todas as pessoas importantes que ele conhecia a cada dia. Em Washington seus dedos logo ficaram cansados de somar o total do dia. Mesmo assim ele estava ansioso pela recepção da Sra. Bingham. Viúva e rica, a Sra. Bingham mantinha em sua casa o que Jess a princípio pensava ser um salão de cabeleireiro, até que lhe expli­caram que "salão" eram as reuniões políticas que ela promovia em casa. A Sra. Bingham era também sogra do editor do Washington Tribune, um jornal bastante favorável aos republicanos de Ohio, ao contrário do Washington Post, cujo dono, John R. McLean, um de­mocrata de Ohio, falecera no verão anterior, deixando seu filho Ned para apoiar a Duquesa e seu marido. Ned e a esposa, Evalyn, eram agora seus amigos íntimos; e então maravilhosamente se sentia Jess, que nunca sonhara ser adotado por um casal rico e sofisticado da mais alta sociedade. Evalyn era especialmente deslumbrante, com mais diamantes do que qualquer outra mulher no planeta, entre eles o Diamante Hope, aos olhos de Jess um caco de vidro azulado usado numa corrente comprida que ela levava ao pescoço e tão cheio de mal, dizia-se, quanto o armário do saguão de Jess. Porém, ao con­trário de Jess, Evalyn não tinha medo.

— Sinto envolvimentos extraconjugais que podem trazer sofri­mento — cantarolou a voz rica de Madame Marcia atrás da cortina de contas.

A resposta anasalada da Duquesa veio em tom alto:

—Você deve estar vendo o marido de outra qualquer. Mas tudo bem. Continue.

Os astros...

A voz de Madame Mareia baixou para um sussurro e Jess suspirou voluptuosamente pensando em todos os pecados do mundo, boa parte deles carnais. A Duquesa sofria porque o marido era um con­quistador e ela nada podia fazer a não ser fingir que não via, como fazia com sua vizinha Carrie Philips, esposa de James, que, como Jess, comerciava com panos e artigos de armarinho, miudezas e rou­pas infantis.

Carrie era bonita, loura e bem-nascida — diziam que era aparentada com o Fulton dos barcos a vapor. Era em parte alemã, e isso causava muita discussão nos lares de Washington Court House e da vizinha Marion; pior ainda, muita discussão entre Carrie e seu amante, que era obrigado a agradar seus constituintes, tanto pró-Alemanha quanto contra. Nesse assunto Carrie conseguia ser feroz; fora isso, fazia feliz o grande homem, pensou Jess, assoviando bai­xinho consigo mesmo a canção: "Meu Deus, como entra dinheiro!"

Tudo isto foi muito interessante. — A voz da Duquesa soava rascante. — Realmente. Dá o que pensar.

Enquanto ela entrava na sala, Jess pensou no que o marido certa vez dissera dela: "Não consegue ver uma banda sem querer ser o maestro." Gostava que as pessoas pensassem que ela era a fonte de energia do marido, mas Jess duvidava disso, mesmo que só pelo fato de que ele gostava que as pessoas achassem que ela o impulsionava. Daugherty os via mais como uma equipe, como um par de bois velhos puxando uma carroça, sendo que ela era quem mais mugia e ele quem mais puxava. Mas graças, porém, à mãe de Jess, a Roxy e à mãe desta, ele sabia mais sobre as mulheres como pessoas do que outro qualquer, e sua opinião era de que a Duquesa era uma feliz escrava de seu marido aparentemente preguiçoso, encantador e sortudo, que era quem dava as cartas.

— Jess, você cuida de tudo? — A Duquesa estava agora con­fortavelmente escondida dentro de seus inúmeros envoltórios. O sor­riso de Madame Marcia era doce e distante.

— Certo, Duquesa. — Jess percebeu que o "d" de "Duquesa" tinha produzido um repentino jato de saliva. Felizmente ninguém ficou encharcado. Ele secou os lábios com a manga esquerda; teria que enxugar o espesso bigode mais tarde, sem ser observado.

— Você me pega na Avenida Wyoming. Cinco em ponto. Use uma roupa alinhada.

Sim, senhora.

As duas damas despediram-se em meio a afirmações de mútua simpatia e profunda — da parte de Madame — compaixão.

— Quanto foi o prejuízo? — perguntou Jess, pegando a carteira.

— O prejuízo...! — Madame Mareia contemplou etereamente através da janela o céu escuro — já foi feito. — Então pestanejou, como se acordasse de um sonho. — O Sr. Micajah pagou. Esta se­nhora não é muito forte — acrescentou, e Jess viu que ela queria mais informações. — Tem um problema renal — completou.

Bem no alvo. Jess assentiu, impressionado:

Ela tem andado bastante adoentada ultimamente.

— A doença de Bright, eu arriscaria, pois não fiz seu horóscopo. Ele também está adoentado.

— Ele é a própria saúde em pessoa.

Novamente bem no alvo. Jess ficou impressionado pela primeira vez. A saúde instável da pessoa em questão era um dos poucos se­gredos de sua vida pública; particular, também. Quando ele foi para Battle Creek, no Michigan, a cidade pensou que ele estava apenas fugindo da Duquesa e da política, mas na realidade estava tentando baixar sua pressão sangüínea, moderar o ritmo do coração, enxugar seu sistema. Jess fora com ele uma vez e espantara-se com o modo como o rosto marcado ficava quando ele parava de beber, e como ele era frágil, apesar de toda a sua robustez altamente visível, para não dizer notavelmente bela.

— Acho que você devia contar ao Sr. Micajah, que afinal está pagando, o que não contei a ela. — Madame Marcia fechou a cor­tina, escondendo o céu de fevereiro.

— Alguma coisa ruim?

Estas coisas são abertas à interpretação. Se eu acertasse sempre, estaria morando num palácio na Avenida Connecticut, como Blaise Sanford. Claro que nossos dons não se estendem a nós. Neste sentido somos todos um pouco como médicos, que nunca cuidam de si próprios.

E nunca provam de seus próprios remédios. Jess raramente ficava livre dos médicos a asma, a diabetes.

Nisso eles são espertos. O Sr. Micajah deixou bem claro que se eu encontrasse nos astros aquilo que ele achava que eu ia encontrar, devia informar... a Duquesa, o que fiz. Raramente vi um mapa tão glorioso e tão breve. Entendo por que ele é melancólico e temperamental, e quer aproveitar a vida antes de subir às alturas...

Ela se interrompeu. O coração de Jess estava batendo com força. Então era isso! Daugherty era esperto; e Madame era clarividente?

Ele vai ser Presidente?

Madame Marcia assentiu solenemente; depois voltou-se para contemplar-se'prazerosamente num espelho empoeirado.

Sim. Com esse mapa astral e aquele leão rampante, ele não pode fracassar. Contei isto a ela. Contei-lhe tudo, a não ser... — Por um instante ela pareceu perder o fio dos pensamentos. Em que estaria pensando? O peru que não houve, ou... ? Deu as costas ao espelho;, aproximou-se de uma mesa onde, em meio a numerosos objetos de arte, uma pequena xícara de porcelana continha palitos de dentes; ela escolheu um e com toda concentração pôs-se a limpar os dentes inferiores. Não contei a ela o que quero que você conte ao Sr. Micajah. Depois da glória na casa do progresso, o Sol e Marte estão em conjunção na oitava casa do zodíaco. É a casa da morte. Morte súbita.

Ele vai morrer?

Nós todos morremos. Não. Vejo algo muito mais terrível que uma simples morte. Madame Marcia abandonou o palito como uma imperatriz soltando o cetro. O Presidente Harding, pois é claro que sei exatamente de quem se trata, vai ser assassinado.

 

Desde o princípio Caroline Sanford Sanford e Eleanor Roosevelt Roosevelt eram amigas. Para começar havia a ridícula redundân­cia de seus nomes; ambas casaram-se com primos com o mesmo so­brenome; além disso, ambas tinham estudado na Inglaterra com Mlle. Souvestre. Como Caroline, agora com quarenta anos, era sete anos mais velha que Eleanor, não tinham se conhecido nessa escola. Mas ambas tinham sido moldadas — ou até mesmo esculpidas — pela extraordinária Mademoiselle, uma solteirona de maxilar quadrado, intelecto e caráter formidável e livre de qualquer superstição, particularmente a cristã — o que preocupara o tio Theodore de Eleanor, o Presidente. Mas como a irmã predileta de Theodore sobre­vivera impune à mesma escola, ele concluíra que a sobrinha — alta, desajeitada, órfã de mãe e pai — conseguiria adaptar-se no estran­geiro, coisa que ela não conseguia em Tivoli, Nova York, onde mo­rava, perto do rio Hudson, longe da orla do grande mundo — mundo dela, pois não podia convidar seus amigos do vale do Hudson para sua casa por medo de que seu irmão alcoólatra, postado na janela do segundo andar, atirasse neles com seu rifle de caça. Embora ele até então sempre errasse, não se podia ficar eternamente confiando no tremor alcoólico para defender vidas.

Tirar Eleanor de Tivoli, da América, tinha sido uma inspiração. Na verdade, Caroline gostava de atribuir-se algum crédito por ter ajudado a convencer — ou teria sido Blaise, seu meio-irmão? — o então governador Roosevelt a deixar que a sobrinha partisse para o mundo dos livres-pensadores. Dois anos depois, Eleanor voltara para a América mais educada do que qualquer pessoa de sua classe, exceto, talvez, a própria Caroline, mas Caroline tinha sido criada na França, o país para onde seu pai, americano, partira em excêntrico exílio depois da Guerra Civil.

Aos 33 anos, Eleanor falava um excelente francês, assim como um pouco de alemão e italiano. Não sucumbira ao ateísmo aveludado de Mademoiselle; em vez disso, reagira a ele com um renovado vigor protestante e falava, com freqüência e sem afetação, em "ideais", uma palavra raramente ouvida nos lábios de Caroline; mas Caroline, junto com Blaise, era editora do Washington Tribune, um jornal muito influenciado pelo jornalismo sensacionalista "amarelo" de William Randolph Hearst, ao passo que Eleanor era uma nobre matrona, mãe de cinco filhos, dos quais a mais velha estava na Escola das Senhoritas Eastman com Emma, filha de Caroline. Além disso, Eleanor era a esposa tímida, porém decidida, do subsecretário da Marinha, Franklin Delano Roosevelt, um cavalheiro encantador, fazendeiro no vale do Hudson, considerado, na expressão do sena­dor Lodge, "bem-intencionado, porém fraco". Caroline não estava tão certa de quão bem-intencionado era o ambicioso Franklin — ela era imune ao seu encanto agressivo, até mesmo cruel — mas sabia que, por mais que lhe faltasse força moral e intelectual, Eleanor compensava largamente. Um completava o outro. Ambos viam a po­lítica como uma estrada confortável a ser percorrida inteira. Como o primo da Franklin e tio de Eleanor, Theodore, Franklin tinha sido eleito para o Legislativo estadual de Nova York; agora ocupava o mesmo cargo que Theodore utilizara para ganhar as Filipinas para os Estados Unidos e a presidência para si mesmo.

— Qual é o estado de espírito do Presidente Wilson? — Caroline perguntou. — Sobre a Alemanha atual?

— Ele não confia em seus subsecretários. Mas Franklin acha que a guerra está sobre nós. — Ela franziu a testa. — Espero que não, é claro.

— Seu tio, o Rei Theodore, como Henry Adam o chama, clama pela guerra.

— Tio Ted é, às vezes, enfático demais, até mesmo para nós.

Eleanor mostrou os grandes dentes num sorriso tímido e baixou a cabeça, um gesto estranho, como se pedisse desculpas pelo queixo pequeno demais, os dentes superiores grandes demais, que lhe im­pediam a entrada no famoso clube de beleza que eram sua mãe e as duas tias. Mas Caroline achava-a encantadora de aparência, embora um pouco grandalhona. Era alta como um homem. Felizmente Fran­klin era ainda mais alto que ela; ambos magros, de pernas compridas, cheios de energia. Eleanor morava a dois quarteirões da casa de Caroline, e ambas gostavam de caminhar, sempre que havia tempo, em seu bairro, Georgetown, ainda quase todo de negros, mas mos­trando, aqui e ali, casas do século XVIII sendo restauradas por brancos ricos. Caroline comprara duas casas e juntara-as numa só. O resultado era mais que suficiente para uma mulher solteira cuja filha de 14 anos passava q dia todo na escola. Por outro lado, os sete Roosevelt, sem dinheiro, apinhavam-se na Rua 1773 N, numa casinha de tijolos à mostra que pertencia à tia de Eleanor.

Nessa ocasião Eleanor estava na casa de Caroline, sentada diante da lareira da sala de estar, o pescoço rodeado de estolas de pele, estudando a agenda do dia. Parece um general, pensou Caroline: preparada para qualquer eventualidade. Tinha uma secretária social trabalhando em horário integral, além de babás para as crianças; naturalmente ela própria se encarregava da obrigação de toda mulher de político, o cartão de visita, que praticamente todas as manhãs ela saía a distribuir pelas casas de outras esposas de políticos, diplomatas e juízes. Elas, por sua vez, deixavam seus cartões na casa dela. Moradora da cidade durante vinte anos, Caroline era quase aborígine, de modo que jamais deixava seu cartão de visita senão para alguém de mais idade que ela ou uma amiga recém-chegada à cidade.

— Daqui a vinte minutos precisamos estar na casa da Sra. Bingham — anunciou Eleanor.

— Você precisa. Eu vou porque quero.

A risada de Eleanor era alta, e sua pele normalmente de um cinza pálido ficava rosa-claro de repente. Embora Eleanor enrubes­cesse com facilidade, Caroline suspeitava que isso não se devia à timidez, como todos pensavam, mas tratava-se da arma de uma fan­tástica estrategista social para quem ruborizar era uma tática evasiva comparável à do polvo, que espalha uma nuvem de tinta em torno de si e desaparece dentro dela para planejar nova rota.

— Claro, faço isto por causa do Franklin. Temos que ficar com as pessoas certas no Congresso, e todas elas vão lá.

— Mas não esta semana. Todos viajaram. Avisei a ela para não se dar o trabalho, mas ela tem suas obsessões. Agora está correndo atrás de diplomatas que ficam, e pelo pessoal do governo, que nunca sai da cidade como os anteriores costumavam fazer.

— Eles não podem mesmo. Pelo menos agora. Com essa campanha de "Estado de Preparação"... — Eleanor franziu a testa. — Acha que vamos entrar na guerra?

— Foi o que escrevi no meu editorial ontem. Acho, sim.

— Pensei que fosse do seu irmão. Ele anda tão... ansioso para entrarmos...

— Bem, eu agora também estou ansiosa.

Caroline pilhou-se a contemplar um busto de Napoleão, presente de seu antigo mentor no jornalismo, William Randolph Hearst, cujos presentes, como a sua vida, tendiam ao inadequado, mas nem por isso deixavam de ser reveladores.

— Todos os homens jovens estão — Eleanor desabotoou a luva direita; logo estaria distribuindo apertos de mão graciosamente, como o tio, mas com muito menos barulho. — Estou me referindo aos do Governo, como Franklin e Bill Phillips. Eu mesma sou mais... Não conte a ninguém!

Encarou Caroline com ansiedade, e Caroline achou encantadora aquela inocência, pois ninguém em seu juízo perfeito confiaria num jornalista. Mas assentiu carinhosamente, como sempre fazia cada vez que o Presidente Wilson fingia confiar nela; ele não era inocente, é claro; apenas egocêntrico e portanto às vezes obtuso em relação à estratégia. Eleanor continuou:

— Bem, pessoalmente, e cá entre nós, gostei do modo como o Sr. Bryan pediu demissão do cargo de secretário.

Paz a qualquer preço?

Quase isto, sim. Você não?

Quase. Não. — Caroline foi ríspida. — Já é tarde demais, graças ao telegrama de Herr Zimmermann. Até Mlle. Souvestre seria a favor da guerra.

— É verdade. Aquilo foi demais. Tão desanimador! Acho que estou me acostumando com a idéia. Mas quando o Sr. Bryan renun­ciou, achei que ele foi muito corajoso. Não sou pacifista, é claro. Nem posso ser. Franklin ficaria furioso. Ele está ficando igualzinho ao tio Ted: guerra a qualquer preço. Agora, graças ao Sr. Zimmer­mann... — Eleanor olhou melancolicamente para sua agenda.

A princípio, tanto Caroline quanto o anglófilo Blaise pensaram que o telegrama fosse uma invenção dos ingleses; como resultado, vergonhosamente, o Tribune foi um dos últimos jornais a registrar aquele insulto chocante — extremamente chocante — ao povo ame­ricano. No entanto, quando o Presidente pediu permissão ao Con­gresso para armar os navios americanos, o pedido foi destroçado no Senado e o Congresso entrou em recesso no dia 3 de março, deixando sem solução o problema do país.

Em 5 de março o Presidente tomou posse do cargo pela segunda vez, numa cerimônia simples ria Casa Branca, para a qual nem Blaise nem Caroline foram convidados. O fato era que o Presidente era vingativo não apenas nas coisas importantes, o que era necessário, mas também nas pequenas e insignificantes. Para Caroline, essa era uma prova cabal da grandeza dele, pois todas as grandes figuras políticas que ela conhecia apreciavam igualmente uma vingança desinteressada.

Jacques, a metade menor do casal da Martinica, assomou à porta.

O carro chegou, madame.

Caroline ergueu-se enquanto Eleanor abotoava perversamente a luva que acabara de desabotoar. O processo teria agora que ser repe­tido quando chegassem à reunião. Havia algo de compulsivo na ener­gia da amiga, que Caroline achava ao mesmo tempo comovente e misterioso. Acontecia que o temível — e para Caroline, se não para o resto do mundo, encantador — tio Theodore tinha imposto padrões de atividade extraordinariamente altos, que iam desde mostrar-se eternamente irrequieto dentro de um aposento até subir e descer alucinadamente o Amazonas para matar qualquer animal ou ave que ousasse colocar-se em seu caminho. Felizmente as mulheres da famí­lia nunca se deixaram levar por isso. Desde sua serena esposa Edith •até a brilhante filha Alice, incluindo as várias irmãs, as damas nunca se esforçavam, ao contrário dos cavalheiros, que não cessavam de fazer imitações pouco convincentes da disposição e da soberba mas­culinidade de Theodore Roosevelt em todas as circunstâncias. Até mesmo Franklin, primo distante, que em nada se parecia com os Roosevelt presidenciais, passara a jogar a cabeça para trás como se seus cachos cada vez menos fartos fossem a juba de um leão, e na­turalmente não deixava de exibir os dentes grandes em imitação daquele que tinha sido o que ele — como todos os outros — queria ser: Presidente. Eleanor, no entanto, rompeu o padrão sexual: de modos serenos e controlados, ela era superativa nos atos. Subia ao mastro de navios, fazia mais visitas do que o necessário, organizava exageradamente a rotina doméstica e estava sempre com pressa, pen­sou Caroline, andando depressa para alcançá-la na porta do carro onde estava postado o motorista irlandês com o rosto ansioso de sobriedade.

— Por que você está sempre com tanta pressa? — Caroline perguntou.

— Porque acho que estou sempre atrasada — respondeu Eleanor.

— Atrasada para quê?

Ah... — Ela saltou para o banco traseiro do carro. — Para tudo — disse. O sorriso cheio de dentes era repentino e muito simpático — Para a vida.

Caroline acomodou-se ao lado dela.

Isso se resolve sozinho logo, logo. Nós também.

— Então temos que correr para fazer tudo.

Caroline perguntou-se, e não pela primeira vez, se Eleanor gos­tava mesmo do marido. Era um casal que combinava tanto, politica­mente, que apenas uma tensão qualquer poderia explicar o perfec­cionismo de Eleanor e seu pavor irracional de atrasar-se — ou ser deixada para trás?

A Sra. Benedict Tracy Bingham era a maior invenção de Caroline. Na virada do século, quando a jovem Caroline tomara a frente do moribundo Washington Tribune, não havia o que fazer

com o espírito do jornal a não ser baixá-lo — baixá-lo até alcançar o maior número possível de leitores comuns — ou então fechar o jornal. Caroline imitou Hearst. Os crimes tornaram-se sua marca registrada, principalmente quando o cadáver — sempre feminino, sempre lindo — era retirado do canal. Caroline tinha um precon­ceito contra o rio Potomac que seu editor, o Sr. Trimble, honrava sempre que podia. Depois de cadáveres flutuando aos pedaços ao longo do canal paralelo ao rio, os assaltos às casas dos ricos habi­tantes da parte oeste da cidade eram os mais populares, e quando a Sra. Bingham, esposa do "Rei do Leite", como Caroline o apelidou, foi roubada em algumas quinquilharias por um ladrão que conse­guira entrar na casa da Avenida Connecticut, Caroline arbitraria­mente elevou a Sra. Bingham, uma senhora que ela nem conhecia, ao cargo de primeira dama da sociedade de Washington, ampliando a casa até o tamanho do Castelo de Windsor e transformando todas as suas jóias em jóias reais. A Sra. Bingham ficou encantada; passou a cultivar Caroline e forçou o Rei do Leite a anunciar no Tribune.

Em troca, Caroline ajudara a Sra. Bingham a alcançar e a agarrar-se às alturas da sociedade de Washington, um amontoado de al­deias mutuamente exclusivas que tendiam a excluir a maior de todas, o Governo. Acostumada aos salões políticos de Paris, Caroline enco­rajara a Sra. Bingham a especializar-se em membros do poder Legis­lativo, um grupo que nenhum habitante de Washington desejara culti­var. Como Caroline previu, os estadistas ficaram pateticamente gratos por qualquer atenção, e assim, acorrendo en masse ao salão da Sra. Bingham, mostraram ser visitantes de peso suficiente para encher a sala de visitas dela com um interessante sortimento de outros al­deões. Agora viúva, cega, maldosa de língua, a Sra. Bingham chegara lá; tornara-se uma instituição; conseguira, para o espanto de Caro­line, casar sua filha Frederika com Blaise, e assim o sangue leitoso dos Bingham juntou-se ao púrpura dos Sanford e Burr na forma de uma criança obesa. Tenho muito de que prestar contas, pensou Ca­roline entrando com Eleanor na sala onde penas de pavão transfor­mavam em cocares de guerra alguns inocentes jarros chineses, ao passo que gigantescas luminárias Tiffany's iluminavam os piores ân­gulos de todo mundo.

— É Caroline. — Os olhos cegos da Sra. Bingham voltaram-se na direção de Caroline. Parecia mais velha do que era, graças a uma dieta preparada para ela pelo próprio Dr. Kellogg. Ela vivia de trigo moído, de modo que arrotava constantemente por causa da excessiva matéria fibrosa, necessária apenas às vacas de seu finado marido, fonte de sua fortuna e glória. E a Sra. Roosevelt, Sra. Franklin Roosevelt.

A Sra. Bingham nem mesmo tentou disfarçar a decepção. Poiéin Eleanor, uma Roosevelt do ramo "certo" da família, estava bastante acostumada a ser tomada por alguém do ramo "errado", graças ao marido.

A Sra. Bingham pegou a mão de Eleanor.

Todos falam do seu marido. Tão cheio de energia, tão bonito! Onde está ele?

Ele esteve no Haiti e em São Domingos inspecionando nossos fuzileiros navais.

Eleanor não mentiu, mas sabia como evitar a verdade. Na realidade, quando as relações com a Alemanha foram rompidas, Franklin tinha sido chamado de volta a Washington pelo secretário da Marinha. Na melhor tradição rooseveltiana, ele agora fazia a todo mundo queixas de seu paciente chefe, Josephus Daniels, um simpático sulino proprietário de jornal, que odiava a guerra e o álcool, e por causa disso a Marinha americana lhe fora confiada.

Bom, ele deve andar muito ocupado. Sou pró-Alemanha, vocês sabem.

Quando não estava espalhando mexericos espantosos, a Sra Bin­gham dedicava-se a defender posições insustentáveis, sem que nin­guém se irritasse com isso a não ser a filha, que, Caroline percebeu, não estava presente.

É mesmo? Eleanor não estava acostumada com a Sra. Bingham.

É, sim. Beethoven, Mozart, Goethe, Romain Rolland. Estes são os meus ídolos.

Rolland é francês murmurou Caroline.

Quem disse que ele não era? Eu não.

Eleanor afastou-se. A Sra. Bingham segurou com força o braço de Caroline.

Precisamos conversar. Agora não, é claro. A voz rouca tinha um tom conspiratório. Mas ele está aqui. Com o irmão dela. E é verdade. Custou 75 mil dólares. As cartas agora estão nas mãos dele.

Caroline fez uma mesura para o pai de sua filha. O senador James Burden Day inclinou a cabeça enquanto a esposa, Kitty, sorria vagamente para aquela que era amante de seu marido havia 16 anos.

Caroline tinha certeza de que Kitty não sabia, pois se soubesse have­ria cenas terríveis e ameaças de divórcio ao estilo americano, tão diferente do de Paris, onde, pelo menos nessas questões, as coisas eram melhor planejadas. Naturalmente o marido de Caroline divor­ciara-se dela ao descobrir a identidade do pai da criança. Felizmente não havia problema de ciúmes apenas de dinheiro; ela era rica, ele não. De qualquer maneira, o primo sabia que ela estava grávida de outro quando se casou com ela por precisar de dinheiro tanto quanto ela precisava de um marido com um bom sobrenome, que também era o dela, Sanford. Depois de algum tempo, separaram-se. Depois de algum tempo,, ele morreu. Depois de algum tempo, Caro­line seguiu sua vida, pois nada mais se pode fazer com o témpo.

Enquanto a Sra. Bingham contava-lhe escândalos esquálidos demais até mesmo para o Tribune publicar, Caroline percebeu que o amante estava engordando, que os cachos antes espessos e dourados eram agora grisalhos e em menor número, que os olhos azuis mos­travam-se menores no rosto enrugado. No entanto ainda faziam amor pelo menos uma vez por semana; e, mais importante, havia sempre muito assunto para conversarem. Ela porém tinha agora quarenta anos, com uma esquadra de navios incendiados atrás de si. Não havia como voltar no tempo, ao passo que o que havia pela frente era menos consolador, quanto mais não fosse porque ela não sabia como ser idosa e duvidava que conseguisse aprender algum dia.

Todos, até mesmo Blaise, aconselhavam-na a casar de novo, como se a pessoa pudesse simplesmente ir a uma festa e escolher um marido. Mas as poucas possibilidades eram sempre casados, como seu primeiro amante fora e ainda era. Com as possibilidades, ela permitira-se inúmeros casos curtos, sem grande entusiasmo. Agora descobria-se atraída por homens com a metade da sua idade, o que teria sido aceitável na França mas não ali, onde ela poderia ser levada à fogueira. Às mulheres não eram permitidas tais licenciosidades na república puritana. Às mulheres não era permitida muita coisa, a não ser que tivessem fortuna própria a única vantagem dela, da qual raramente se aproveitava.

A Sra. Bingham aceitou a veneração de dois casais de novos congressistas que, quando ouviram o nome de Caroline viram Deus, por assim dizer. Cônscia de que um dono de jornal era a fonte de toda a vida de um político, Caroline encorajava que lhe acendessem velas, murmurassem preces e fizessem confissões sussurradas porque, em resumo, gostava muito do poder.

De repente sentiu menos pena de si mesma, enquanto a Sra. Bingham, uma taça de ponche na mão, contava-lhe, com hálito acre, que um dos "ele" de sua história estava parado do outro lado da sala, um homem gorducho e apagado chamado Randolph Bolling, irmão da segunda Sra. Woodrow Wilson.

E é por isso — completou a Sra. Bingham, deliciada com o horror de tudo aquilo — que ele está com ele.

Quem está com quem? — Caroline sempre tinha dificuldade em acompanhar os mexericos mais elevados da Sra. Bingham. Agora, já meio caduca, a Sra. Bingham não se dava mais o trabalho de identificar pelo nome aqueles pronomes à deriva que pululavam em tal confusão na superfície de suas narrativas rápidas e sombrias.

Ele, o irmão dela. — A Sra. Bingham franziu a testa, irritada. Não apreciava o específico. — Randolph Bolling. Aquele ali. Com cabeça de carneiro. Bem, ele trouxe o outro. O grande espe­culador. Bem ali. O judeu. Bem bonitão, para falar a verdade.

Caroline reconheceu Bernard Baruch, um especulador de Wall Street, de grande estatura e grande fortuna, que ostentava um sota­que sulino tão carregado que fazia Josephus Daniels parecer um ianque de Vermont. Baruch era nova-iorquino de origem sulista. Fi­zera sua fortuna lembrando-se de vender aquelas ações que com­prara antes que elas custassem menos do que ele tinha pago por elas, um talento de que Caroline carecia inteiramente. Uma ou duas vezes ela se sentara ao lado de Baruch à mesa de jantar e divertira-se com a conversa dele, na qual todos os pronomes eram firmemente ligados a um, nome famoso. Como tantos novos-ricos sem tradição — ela percebera que ele só era judeu quando lhe interessava —, Baruch tinha sido atraído por Washington, pela política, pelo Pre­sidente. Dizia-se que ele pessoalmente doara cinqüenta mil dólares a Wilson para a eleição de 1912; dizia-se também que usava suas ligações na Casa Branca para conseguir informações sobre quais ações comprar. Caroline não tinha muita certeza dos fatos — ao contrário da Sra. Bingham, que estava agora à toda velocidade.

A Sra. Peck. — Ela pronunciou o nome em tom acusador, preferindo muito mais o pronome "ela". — A antiga amante do Pre­sidente. Ela agora está na Califórnia. Estava ameaçando vender as cartas do Presidente para os jornais antes da eleição, de modo que Randolph Bolling pediu ao Sr. Baruch para ir lá e comprar as cartas por 75 mil dólares, e foi assim que o Presidente pôde casar-se com Edith Bolling Galt, que esta ficando gorda, e o Presidente conseguiu vencer a eleição, por pouco...

Uma mulherzinha de aspecto comum e cabeça grande marchou em direção à Sra. Bingham, seguida por um homem gorducho e usando óculos, que tinha a palma da mão úmida, como Caroline cons­tatou quando a mão dele fechou-se em volta da sua.

Sra. Harding!

A Sra. Bingham produziu seu sorriso mais sinistro para a esposa do senador mais jovem de Ohio, Warren Gamaliel Harding, que, de­pois de James Burden Day, era o homem mais bonito do Senado.

A Sra. Harding empurrou seu acompanhante para a frente.

Este é um velho amigo. De Washington Court House, no con­dado de Fayette. Jesse Smith. Cumprimente a Sra. Bingham, cumpri­mente a Sra. Sanford, Jesse.

Os cumprimentos foram feitos. Então, para puxar assunto, Jesse declarou a Caroline:

Sou amigo de Ned McLean. E de Evalyn também. A mulher dele, você sabe. A do diamante.

Eu não sou. Caroline foi simpática. Quero dizer, não sou amiga. Foi expansiva em sua insinceridade: Gostaria de ser!

Posso dar um jeito fez Jesse. A qualquer momento.

Jesse pode dar,um jeito em qualquer coisa. Porém o tom

da Sra. Harding parecia hesitante.

Onde está o senador? A Sra. Bingham chegou à única questão que lhe interessava; as esposas eram apenas toleradas, nada mais.

Foi para Palm Beach. Com os McLean. Ele odeia o frio. Eu também. Mas tenho muito quê fazer aqui. Sabe, compramos uma enorme casa na Avenida Wyoming que é dividida em duas. Moramos numa parte e alugamos a outra. Bom, inquilinos são um problema sem fim, não é mesmo?

A Sra. Bingham respondeu:

Não tenho idéia.

Precisa vir visitar-nos depois que nos estabelecermos. A senhora também, Sra. Sanford. Estive na linda casa de seu irmão.

Quase tão grande quanto a dos McLean foi a contribuição de Jesse.

Minha filha acha-a suficientemente grande hoje em dia. Com seu golpe rápido de costume, a Sra. Bingham lembrou-lhes de que a Sra. Blaise Delacroix Sanford era ninguém menos que sua filha Frederika.

Minha protegida, pensou Caroline, que estava feliz por Blaise ter se casado com alguém que conseguia agüentar seu temperamento difícil, tão parecido com o do pai, apesar de, ao contrário daquele monstro antigamente tão vivo e agora tão morto, Blaise ainda não estar louco. Caroline admirava bastante a força de caráter da cunha­da, principalmente pelo modo como esta tinha, pelo menos social­mente, abandonado a mãe, uma vez tendo saltado para o topo de seu mundo. Nem Blaise nem Frederika apareceram uma vez sequer nos "salões" da Sra. Bingham para o Congresso, nem a Sra. Bingham era convidada para a casa dos Sanford a não ser para uma refeição íntima no seio da família, o último lugar em que a Sra. Bingham desejava estar. A própria Caroline era menos radical que Frederika. Além disso, a Sra. Bingham era invenção sua e não devia ser aban­donada. Tinha também seu valor, quando se conseguia separar suas invenções daquelas verdades escandalosas para as quais ela tinha olho de lince.

A Sra. Harding encarava Caroline. Deixara seu cartão logo que chegara à cidade, no início de 1915; è ficara por isso mesmo.

Precisa vir nos visitar, Sra. Sanford. Somos gente simples, mas sei que a senhora é amiga de Nick Longworth...

E aqui está a Sra. Longworth anunciou Caroline, salva pela chegada de uma linda criatura toda em azul.

Caroline!

As mulheres abraçaram-se.

Sra. Bingham... — Os frios olhos cinza-azulados de Alice Roosevelt Longworth estreitaram-se de riso reprimido. A Sra. Bin­gham tinha esse efeito sobre ela. Sra. Harding! Os olhos de Alice arregalaram-se de súbito; o riso foi cortado pela raiz.

Eu estava justamente falando do seu Nick e do meu Warren.

O "Warren" saiu num rugido em staccato.

Eles jogam pôquer Alice anunciou euforicamente. No apartamento de vocês.

É uma casa dividida em duas partes começou a Sra. Harding, com um brilho de aço em seus olhos também cinza-azulados.

Caroline não estava certa de qual das duas venceria, se houvesse uma guerra. O frenético senso de humor de Alice era uma espada na qual ela própria poderia ferir-se, ao passo que a Sra. Harding

qual era mesmo o nome dela? Florence jamais cederia. Normalmente as duas damas não teriam se encontrado, se não fosse pelo fato de o marido de Alice ser deputado por Ohio, por onde Warren Harding era senador; daí, nenhuma das duas poderia ignorar a outra. Mas até então Alice conquistara mais pontos.

Preciso visitar seu apartamento. Quero dizer, sua casa disse esta. Voltou-se para Caroline: Não vou porque não sou convidada para as partidas de pôquer. Só os rapazes podem ir. Mes­mo sendo uma excelente jogadora. — Voltou-se para a Sra. Harding: Talvez nós duas devêssemos promover umas noitadas de pôquer para mulheres, Florence. Alice pronunciou o nome da outra com suficiente espaço em volta dele para acomodar uma mortalha.

Sou Jesse Smith disse Jesse Smith, apertando a mão de Alice. Também sou de Ohio.

Que sorte fez Alice a sua.

Acho que a senhora conhece meus amigos, os McLean. Ela joga pôquer, a Evalyn. E muito bem.

Ah, meu Deus! Alice já deixara havia muito de prestar atenção nos imigrantes de Ohio. Minha prima Eleanor! Ela é como um farol, não é? Tão alta e tão. cheia de luz! Preciso ir implicar com ela.

Alice afastou-se em direção à lareira onde Eleanor estava a escutar polidamente o Sr. Baruch. Era o único casal na sala afinado um com o outro. Çomo todos os gigantes bondosos, eles postavam-se diante da lareira é cumprimentaram Alice.

A Sra. Bingham sabia de tudo.

O pai dela vai concorrer novamente em 1920. Vai ser indicado. Já fez as pazes com os republicanos ortodoxos.

O meu Warren admira muitíssimo o coronel Roosevelt. Com olhar de caçador a Sra. Harding estudava Alice a distância, a presa que até então lhe escapara. O coronel precisa de Ohio, se quiser ir a algum lugar, e meu Warren pode influenciar a favor dele.

Mas certamente o Sr. Wilson vai concorrer de novo, e vencer de novo.

Enquanto falava, Caroline perguntava-se se devia tentar ter outro filho; ou estaria velha demais? A menopausa ainda não co­meçara; mesmo assim a Dama da Sociedade do Tribune nunca dei­xava de aconselhar as leitoras contra ter um filho com tanta idade e tão depois do primeiro. Não havia um marido, naturalmente, mas hoje em dia uma viúva respeitável podia simplesmente fazer uma longa viagem em volta do mundo e voltar com um filho adotivo e uma história complicada de uma empregada da família na França, em Saint-Cloud-le-Duc, que morrera de parto. O último desejo em relação ao bebê: a América. Adoção. Que mais eu poderia fazer? A cada quatro anos, coincidindo com a eleição presidencial, ela pen­sava em ter um filho, em voltar para a França de vez, em envolver- se, finalmente, num furioso caso de amor. Além disso, qualquer men­ção a Theodore Roosevelt tinha o efeito de fazer com que ela se introvertesse. Embora apreciasse bastante o antigo Presidente apesar ou por causa? do seu ruidoso contra-senso, pensar em sua auto-estima tão intensamente retribuída fazia com que a afeição dela fosse voltada não para ele, mas para si própria. Ele despertava nela o instinto de competição. Ela ainda poderia recomeçar. Não tinha perdido sua beleza; ainda poderia encontrar... o quê?

Acho que vou para a Califórnia declarou, para espanto geral dos outros e o seu próprio.

Com isso abandonou os outros pelo pai de sua filha, Burden Day, que entrara para o Senado em 1915, no mesmo ano que Warren Harding. Antes disso estivera na Câmara dos Representantes, onde, durante seu primeiro ou segundo? mandato, ele a deflorara, pelo que ela estava em débito com ele: caso contrário, poderia ter ficado como Mlle. Souvestre, um vasto jardim abandonado, estéril.

Jimela murmurou. Ele acabava de deixar o grupo em volta de Alice e Kitty. Kitty: A Esposa Sem Suspeitas. Caroline tinha a tendência a pensar em manchetes, maiúsculas, grifos e negrito muito, muito negro. Podia não ser mais grande coisa como mulher, porém era realmente uma ótima editora. Ou devo chamá-lo de Burden? Com a entrada de Jim no Senado, Kitty decretara que ele fosse conhecido por Burden Day, que tinha um belo som presi­dencial, ela achava, embora a Caroline esse nome sugerisse um sol­teirão de Newport, Rhode Island, escravo exuberante da arte da tapeçaria.

Pode me chamar do que quiser. Você está linda. Que mais?

Tenho mesmo outra coisa em mente. A beleza é apenas uma armadilha da natureza. Quero outro filho.

Meu?

O sorriso de Burden mostrou-se imaculado, mas a voz baixou para um sussurro. Perto deles, o embaixador austríaco falava de paz com o secretário do Interior, que só se preocupava com petróleo.

Seu. É claro. Ainda não virei libertina.

Acho que pode-se dar um jeito. — Ele sorriu, lembrando a ela o rapaz que fora quando se conheceram. — É engraçado — ele acrescentou, e ela sorriu largamente, sabendo que quando alguém dizia "é engraçado" era quase certo que a coisa não tinha graça. — Kitty disse quase a mesma coisa no ano passado.

— E você deu um jeito.

Dei um jeito. Ela na verdade nunca se recuperou da morte de Jim Júnior.

E agora?

— Feliz. Novamente. Como está Emma?

— Nossa filha quer ir para a faculdade. É muito inteligente, não puxou a mim.

Nem a mim.

Venha visitá-la. Ela gosta de você.

Na realidade, Emma era inteiramente indiferente a seu pai ver­dadeiro, apesar da mística atração inevitável da consangüinidade. Mas Emma era indiferente à maioria das pessoas; era retraída, intro­vertida, neutra. Lia livros de Física como se fossem romances. Sur­preendentemente, a única pessoa de quem gostara era o marido de conveniência de Caroline; naturalmente pensava que John Sanford era seu pai. Como ele estava morto, ficara tudo por isso mesmo. Caroline, no entanto, não deixava de achar estranho — e até mesmo pouco feminino — que Emma nunca tivesse percebido a semelhança física entre ela própria e o velho amigo de sua mãe, James Burden Day. Porém Emma nunca consultava um espelho para ver-se, e sim ao penteado ou ao chapéu.

— Ela fez amizade com a garota dos Roosevelt.

Junto à lareira, Alice falava com a prima Eléanor, cujo sorriso paciente estava começando a parecer-se com o esgar petrificante da Medusa.

— É difícil imaginar um Roosevelt democrata. — Burden exa­minava as primas, semelhantes em aparência, diferentes em caráter.

Que acha dele?

Burden deu de ombros.

Não joga no meu time. É um pouco encantador demais, eu diria. E é também belicoso demais. Não consegue esperar para nos botar na guerra.

— E você consegue?

— Sou um democrata de Bryan, lembra-se? — Burden esticou os braços, como se os medisse para uma cruz de ouro. — Lá de onde eu venho, a guerra não é muito popular. Os do Leste deviam ir lutar na guerra e nos deixar quietos em casa...

— Para vocês lutarem contra o México?

Bom, pelo menos lucraríamos alguma coisa nos saques. Na Europa não há coisa alguma para nós a não ser problemas.

A Sra. Harding passou marchando, Jesse Smith dois passos atrás. Ela cumprimentou Burden; depois agarrou-se ao embaixador russo, Bakhmeteff, cuja esposa era tia de Ned McLean, o amistoso concorrente de Caroline, do Post.

— Agora, ele tem um problema. Estou falando de Warren Harding. — Burden pegou uma taça de champanhe de um garçom que passava. Caroline.tinha dado à Sra. Bingham a idéia de romper a tradição de Washington e servir champanhe além do inevitável chá com bolo. Toda a Washington oficial ficou feliz, a não ser os abstêmios radicais, tais como Josephus Daniels, que chegara ao ponto de banir o vinho do refeitório dos oficiais da Marinha. No momento a Sra. Daniels estava sendo muito falada por ter oferecido um chá onde foram servidos sanduíches de cebola. Ela nunca conseguiria su­perar isso — opinião abalizada da Sra. Bingham. Até em Washington a vulgaridade tinha seus limites.

— Existem tantas pessoas de dupla etnia no Ohio?

Caroline achava fascinante o problema dos germano-americanos e irlandeses-americanos; o governo achava assustador. Se os Estados Unidos entrassem na guerra contra a Alemanha, como reagiriam um milhão de cidadãos americanos de língua alemã?

Não mais do que lá em casa, proporcionalmente. Mas Harding tem uma amiga que é um dragão, dizem. Ela ameaçou de­nunciá-lo...

Denunciar?

— Denunciar os dois. Vai contar tudo, se ele votar a favor da guerra contra a terra natal dela.

— Isto não é comum. Cherchez le pays.

— Os senadores são conhecidos pelas mulheres que têm. — Burden sorriu. — Na verdade ele é um cara bacana, se não levarmos seus discursos em consideração.

— Isto é o que dizemos de todos vocês. Exceto o senador Lodge. Gostamos dos discursos dele. É ele quem...

A Sra. Bingham aproximou-se, os olhos cegos brilhando de excitação:

— O Sr. Tumulty está aqui. Veio da Casa Branca. Vão convocar todos, senador. O Congresso inteiro.

Convocar para quê?

Burden voltara a aparentar sua idade; e Caroline resolveu não ter outro filho... com ele.

Sessão extraordinária. Para receber um comunicado do Exe­cutivo a respeito de Graves Questões de Política Interna. Palavras do próprio Sr. Wilson. Tenho certeza de que finalmente é a guerra. Não é excitante?

O coração de Caroline pôs-se a bater com força — de excitação? O rosto de Burden avermelhara-se de repente.

— Tenho certeza de que não é a guerra ainda. Quando vai ser a sessão extraordinária?

— Dezesseis de abril, segundo o Sr. Tumulty.

Burden pareceu aliviado.

— Isso nos dá um mês. Muita coisa pode acontecer.

— Muita coisa está acontecendo — retorquiu Caroline, a jornalista. — O Presidente está muito ocupado equipando aqueles navios que vocês, senadores teimosos, disseram que ele não podia equipar. — Embora a famosa Constituição americana fosse para Ca­roline um mistério total, aquilo lhe parecia errado. — Como é que ele consegue? — perguntou a Burden.

Ah, ele pode fazer isso se quiser. Pode chamar de "necessidade militar", como Lincoln fez.

— Lincoln! Guerra! — A Sra. Bingham estava nas nuvens. — Eu ainda não era nascida, é claro — mentiu. — Mas sempre quis viver uma guerra. Estou falando de uma guerra de verdade, não aquela bobagem espanhola.

— Acho que é só isto que todos querem. — Caroline não estava alegre. — Viver numa guerra.

 

James Burden Day subiu os degraus até o pórtico norte da Casa Branca, onde foi recebido por um funcionário que o conduziu ao pequeno elevador elétrico do outro lado do saguão de entrada.

— A Sra. Wilson está esperando no saguão do segundo andar. O Presidente está de cama. Ainda tem a gripe.

Burden impressionou-se com a tranqüilidade da Casa Branca. Não havia sinal de qualquer emergência. Viam-se alguns políticos mostrando os aposentos oficiais a amigos. Naturalmente os escritórios da administração ficavam em outra ala, no lado oeste, e embora nos escritórios os telefones nunca parassem de tocar, não havia, até então, aquela tensão que ele recordava dos tempos de McKinley e da guerra espanhola, para não mencionar a tremenda confusão da era Roosevelt, quando se viam crianças e seus pôneis dentro e fora de casa e o Presidente dava a impressão de estar presidindo simulta­neamente em todos os aposentos com o máximo de ruidosa euforia.

A Casa Branca de Wilson era como o próprio Presidente: erudito, distante e algo amaneirado. O Presidente tinha sido inteiramente devotado à primeira esposa; agora estava inteiramente derretido pela sucessora dela. Era de longe o mais conjugai dos últimos presidentes; tinha também o menor número de amigos. Pouco à vontade com os homens, Wilson preferia a companhia de mulheres, particularmente de suas três filhas, réplicas graciosas de si mesmo, que iam da triste falta de graça da solteirona Margareth, que queria ser cantora, à beleza mortiça de Eleanor, casada com o secretário do Tesouro William G. McAdoo, e às feições eqüinas de Jessie, casada com um certo Francis B. Sayre.

O elevador estacou. Abriu-se a porta envidraçada. Burden encontrou-se no familiar corredor de cima que atravessava o compri­mento do prédio de leste a oeste. Nos velhos tempos, os gabinetes presidenciais ficavam na extremidade leste e os aposentos residen­ciais a oeste, com o Salão Oval como uma espécie de terra de nin­guém bem no centro. Mas a família de Theodore Roosevelt era grande; e ambiciosa, também. Ele acrescentara à mansão a ala executiva, ao mesmo tempo que reformava todo o segundo andar para ele e a família; para os sucessores também, naturalmente.

A esposa do mais desprezado de seus desprezados sucessores postava-se diante do elevador, esperando por Burden. Edith Bolling Galt Wilson era uma mulher corpulenta, de seios fartos, cujo rosto de feições pequenas e regulares refletia o sangue indígena que ela herdara, segundo afirmava, de Pocahontas. O sorriso era realmente encantador.

— Senador Day! Diga-me a verdade completa: o funcionário lá embaixo referiu-se a mim como Sra. Wilson ou como a primeira dama?

— Acho que ele disse "Sra. Wilson".

Ah, ótimo! Detesto tanto primeira dama! Parece coisa de revista musical, com Weber e Fields, e eu como Lillie Langtry.

Burden tinha consciência de que ela era a origem de um forte aroma de jasmim que aumentava e diminuía de intensidade em ondas atrás dela enquanto o conduzia ao extremo do saguão, onde uma escrivaninha com dois telefones tinha sido colocada sob uma grande janela semicircular voltada para os escritórios executivos a oeste e o prédio do Departamento da Guerra e da Marinha ao norte. Sentada à escrivaninha estava a secretária social de Edith, Edith Benham, filha de almirante, que substituíra a magnífica Belle Hagner, rainha da Cidade Aborígine e secretária da primeira Sra. Wilson, assim como da Sra. Roosevelt e da Sra. Taft. Insinuava-se que, não tendo sido Edith Bolling Galt incluída em qualquer lista da Sra. Hagner das pessoas convidáveis à Casa Branca, a própria Srta. Hagner não mais seria encontrada lá com suas listas, suas fichas, seus tele­fones, à escrivaninha sob a janela em semicírculo. Kitty não falara de outra coisa durante uma semana; e Burden escutara menos que o normal.

— Espero que a Sra. Day venha ao chá em 12 de abril — foi o cumprimento da Sra. Benham.

Burden respondeu que também esperava que ela viesse.

Edith é um tesouro — declarou Edith. — Claro, é da Marinha. Estamos cercados pela Marinha. Conhece o almirante Grayson?

Um homenzinho empertigado e de bela aparência, usando um mufti, saía da Suíte Sudoeste.

— Senador... — disse, apertando a mão de Burden.

Outro sulino, Burden observou, achando certa graça no fato de que a Virgínia levara menos de meio século para reconquistar a Casa Branca com Woodrow Wilson, que quando garoto chegara a contem­plar as sagradas feições de Robert E. Lee nos dias de ruína do país de ambos. Agora o Sul retornara em triunfo a seu lar verdadeiro, sua cidade, nação; e o Presidente estava cercado, como devia ser, de virginienses.

— Ele está indo muito bem, senhor. — Grayson falava com Burden mas olhava para Edith. — Apenas não o deixem cansar-se. Ele é forte como um touro, mas vulnerável à tensão. O sistema di­gestivo...

... é o primeiro a registrar os contratempos. — Edith sor­riu, como uma criança, Burden observou; daí o famoso apelido que o Presidente lhe dera, "garotinha", e que tinha provocado muitas

risadas, considerando-se a opulência de formas de Edith, sempre en­feitada, engalanada de orquídeas. Fiquei horrorizada quando des­cobri qual era o desjejum do Sr. Wilson...

Dois ovos crus em suco de uva acorreu Grayson. Resolveu a dispepsia, tanto quanto possível. De qualquer maneira, deixe que ele conduza a conversa.

Grayson deu outras instruções, para profunda irritação de Burden: era perfeitamente capaz de discutir política a seu próprio modo com quem era, afinal, apenas outro político, não importava quão elevado e cercado de cerimônia. Então Edith conduziu-o ao quarto.

Woodrow Wilson estava recostado em quatro travesseiros; usava um roupão simples, de lã quadriculada, e seu famoso pincenê. Ao lado da cama, numa cadeira, sentava-se seu cunhado Randolph. Entre eles, sobre a colcha, havia uma tábua de Ouija, e ambos tinham uma das mãos no topo do instrumento parecido com uma mesa, que se movimentava, como se por vontade própria, sobre um tabuleiro de madeira em que tinha sido traçado o alfabeto, estacando, sob as ordens do espírito, numa ou noutra letra, que Randolph pron­tamente transcrevia num bloco de anotações. Wilson levou um dedo aos lábios enquanto Burden e Edith sentavam-se perto do leito, um móvel enorme de madeira escura entalhada que Edith trouxera do assim chamado quarto de" Lincoln .no outro extremo do corredor. Na realidade, o "quarto de Lincoln" tinha sido o escritório de Lincoln, e a cama, respeitosamente conhecida como a cama dele, nunca fora usada por ele. Tudo que se podia lembrar era que a Sra. Lincoln comprara-a para um quarto de hóspedes. De qualquer ma­neira, Burden considerava o móvel singularmente horroroso apesar da procedência; o fato era que ele não gostava do que quer que fosse ligado à época da Guerra Civil. Veludo vermelho, estofamento de crina, lampiões a gás eram coisas misturadas com suas próprias lem­branças de ter crescido pobre no Sul da Reconstrução do pós-guerra antes que sua família se transferisse para o oeste.

Enquanto os dois homens usavam a tábua de Ouija, Edith cochichou a Burden.

Este lugar estava, está, tão mal conservado! É preciso vigiar o trabalho de todos aqui 24 horas por dia, o que a pobre Sra. Wilson, estando doente, não podia fazer, e a Sra. Taft era grã-fina demais para fazer. Agora, é claro, o dinheiro vai todo para o Estado de Preparação, de modo que vamos vivendo mesquinhamente.

Mas viviam mesquinhamente de um modo muito agradável, pensou Burden. A lareira estava acesa, e acima dela uma esplêndida paisagem americana fornecia um certo alívio de todas aquelas répli­cas de políticos obscuros e suas esposas, que davam aos aposentos da Casa Branca uma sensação de meros cenários para uma platéia de fantasmas sombrios e perscrutadores. A janela defronte a Burden emoldurava uma vista invernal das colunas do prédio do Departa­mento da Guerra e da Marinha, onde as luzes já estavam acesas. Sobre uma mesa, debaixo da janela, estava colocada a máquina de escrever Hammond do Presidente. Dizia-se que ele não apenas dati­lografava tão bem quanto qualquer profissional, mas também que escrevia sozinho aqueles discursos elevados e melífluos que tanto tinham encantado o país, inclusive Burden, em geral imune à oratória alheia.

Tanto Edith quanto Burden observavam atentamente o Presidente. Dava-se que ele era altamente observável, Burden" concluiu. Roosevelt estava sempre em movimento, e assim sempre no centro das "atenções; mas nada havia de particularmente interessante no rosto redondo de T. R. ou nos movimentos algo espasmódicos de seu corpo pesado. Por outro lado, Wilson era esguio, tinha a cabeça avultada e era quase bonito. O rosto comprido terminava num queixo saliente; os olhos de um cinzento pálido eram observadores; os ca­belos ralos e grisalhos, cortados curtos; a pele descorada, profunda­mente enrugada. Grayson mantinha-o fisicamente ativo, em parti­cular no campo de golfe, onde Edith com freqüência juntava-se a ele; ela tinha fama de ser melhor jogadora. Aos sessenta anos, o 28º Presidente dos Estados Unidos, reeleito para um segundo mandato cinco meses antes, parecia bastante capaz (no interesse da Virgínia?) de ser eleito para um inédito terceiro mandato em 1920. Esse era o pesadelo do político profissional; e o próprio Burden nada mais era que profissional, como o resto da tribo via-se instalado nesta casa, embora não com um tabuleiro de Ouija. Com leve desânimo contemplava aquele que ainda poderia ser o primeiro Presidente de três mandatos.

Randolph leu a mensagem do mundo dos espíritos: "Use minas para afundar submarinos alemães. Horatio Nelson."

— Como será que Nelson sabe de minas, ou de submarinos?

A voz do Presidente tinha ressonância, e apenas um ouvido apurado como o de Burden poderia detectar a Virgínia debaixo da dicção correta e professoral. Se Wilson não tinha escrito mais livros que seu nêmesis Theodore Roosevelt, tinha escrito livros de mais peso — histórias solenes que eram usadas nas universidades, o que o tornava algo anômalo: o historiador arrancado subitamente de. seu escritório para fazer história para ser escrita por outros. A maioria dos políticos não gostava dele por causa dessa suspeitada — real? — duplicidade. Mas.Burden achava-a curiosa. O Presidente parecia estar sempre observando a si próprio e aos outros como se soubesse que mais cedo ou mais tarde estaria ensinando a si próprio -— e a outros também.

O fato de nunca ter havido um Presidente como Wilson tornava-o ainda mais difícil de ser avaliado. Por exemplo: o historiador profissional, que preferia o sistema parlamentar britânico ao sistema executivo americano, inibia o Presidente em seus deveres? Certa­mente Wilson iniciara seu reino com um teatral gesto parlamenta­rista: em lugar de mandar uma mensagem para ser lida no Congresso, como seus antecessores, ele próprio foi ao Capitólio e leu sua men­sagem, o primeiro Presidente a agir assim desde John Quincy Adams. No Congresso, comportara-se como um primeiro-ministro, exceto que ninguém podia fazer-lhe perguntas naquele local constitucionalmente independente. Gostava também de conversar pessoalmente com membros da imprensa; assim, conseguia aplacar, se não enganar, os editores. Finalmente, como não podia alterar os freios e o equilíbrio da Constituição, ele era obrigado a manter o poder através de um total domínio do Partido Democrata, uma tarefa delicada para alguém que pertencia à minoritária ala do Leste, composta por Tammany Hall,[1] Hearst e, coisa, pior, ao passo que a maioria do partido era do Sul ou do Oeste, e por tempo demais apaixonada por William Jennings Bryan.

Burden sabia que tinha sido convocado à Casa Branca porque, com sua entrada para o Senado, ele era agora líder da ala bryanista do partido, que odiava a guerra, a Inglaterra, os ricos e, de modo geral, Woodrow Wilson também. A reeleição de Wilson tinha sido realmente apertada, graças à suspeita de seu próprio partido de que ele queria unir-se aos Aliados na guerra, contra a Alemanha. Apenas o inspirado slogan: "Ele nos manteve fora da guerra" tinha final­mente unido os fiéis. Agora a guerra estava às portas; que fazer?

Wilson indicou a Randolph que retirasse o tabuleiro de Ouija e ele próprio' se retirasse. Edith também obedeceu à indireta. Disse da porta:

Não se canse.

Coisa impossível, garotinha, numa cama de doente. Ela saiu, e Wilson então observou a cama enfeitada, parecida com um carro fúnebre napolitano que Burden vira certa vez na base do Vesúvio. Embora eu não tenha tanta certeza quanto a esta aqui. Pegou uma pilha de papéis na mesa-de-cabeceira e colocou-a sobre a colcha. Esteve com o Sr. Bryan?

Burden sacudiu a cabeça.

Acho que ele está na Flórida..

E o Presidente do Senado?

Wilson encarou Burden pelo canto do olho, um efeito inquietante. Mas o assunto era inquietante. O Presidente do Senado, Champ Clark, era o herdeiro de facto de Bryan. Opusera-se a Wilson em todos os turnos e em 1916 fora um sério candidato à candidatura presidencial. Se não fosse pelas manobras de bryanistas wilsonistas como Burden, Champ Clark poderia agora estar desfrutando um res­friado na cama de Lincoln.

O Presidente, é sulino. O Sul e o Sudoeste querem a paz a qualquer preço. Pelo menos na Europa.

Eu sei. Também sou um deles. Por isso sou orgulhoso demais para lutar. Wilson citou a si próprio indiretamente. Essa frase irritara todos os partidários da guerra no país, particularmente Theo- dore Roosevelt, apaixonado pela guerra, que não falava mais coisa com coisa. Wilson pegou os papéis. Ouça o que lhe digo, Sr. Day, fiz tudo que um homem poderia fazer para ficar fora desta coisa terrível. Esperava que a Alemanha fosse suficientemente inte­ligente para não me forçar a tomar uma atitude, para nos permitir continuar como somos: neutros, porém prestativos...

Para Inglaterra e França.

O Presidente não tolerava interrupções. Ensinara durante. dema­siados anos, a damas em Bryn Mawr e a cavalheiros em Princeton; e em nenhum desses locais os estudantes tinham sido incentivados a interromper o inspirado e inspirador professor.

Inglaterra e França. Mas há também, havia, o algodão para as Forças do Centro, pela insistência dos senadores de algodão barato, contrários à guerra...

Dos quais eu sou um.

— Dos quais você é um. — Embora tivesse sorrido, era claro que Wilson tinha o pensamento no maço de papéis que ela sacudia distraidamente, como se quisesse desalojar sua mensagem. Burden percebeu que dois deles ostentavam selos vermelhos. — É curioso que, se eu for impelido a entrar na guerra, isso dará prazer aos repu­blicanos, nossos inimigos, e desprazer a uma grande parcela do nosso partido.

Burden ainda era um advogado suficientemente hábil para agar­rar uma palavra-chave.

Impelido? — repetiu. — Quem o impele?

Os acontecimentos.

Wilson olhou distraidamente pela janela, em direção a uma fi­leira de luzes onde seu burocrata secretário de Estado, Robert Lansing, estava, sem dúvida, ocupado com coisas burocráticas, tão diferente de seu predecessor, o Grande Plebeu, que era incapaz de qualquer burocracia; aliás, de qualquer coisa menos mundana que trovoadas jupiterianas em prol da paz.

— Sei que muitos de vocês pensaram que eu estava... hum... fazendo uma barganha durante a última eleição. Que vocês votariam porque eu nos mantive fora da guerra, apesar de tanta provocação. Bem... — Ou ele perdera o fio dos pensamentos ou estava a pre­parar-se para permitir-se o privilégio presidencial de abandonar abruptamente uma linha de argumentação potencialmente perigosa. — Outro dia alguém me perguntou, um antigo colega de Princeton, qual era a pior coisa de ser Presidente. — Wilson olhou diretamente para Burden, o rosto solene mas os olhos brilhantes atrás do pincenê. — Felizmente não me perguntou qual era a melhor coisa. Eu poderia não achar uma resposta. De qualquer maneira, soube respon­der qual era a pior: o dia inteiro as pessoas nos dizem coisas que já sabemos, e temos que agir como se as ouvíssemos pela primeira vez. Agora o senador Gore vem me dizer — obviamente havia uma ligação entre as repetições do óbvio e o senador cego de Oklahoma, cuja oposição à guerra colocara em movimento uma série de mano­bras parlamentares destinadas a trazer à tona as intenções do Presi­dente — que devo minha reeleição inteiramente à ajuda dele na Califórnia — concluiu.

— Mas o senhor realmente deve a sua reeleição à Califórnia.

Na noite da eleição Wilson fora para a cama pensando que seu adversário republicano, Charles Evan Hughes, tinha sido eleito; aliás, o mesmo se dera com o "Presidente" Hughes. No dia seguinte chegaram os números do Extremo Oeste e Wilson foi reeleito por uma estreita margem. Burden sabia que isso poderia não ter acon­tecido se aquele mago da oratória, Gore, não tivesse sido convencido a deixar sua esquiva reclusão na cidade de Oklahoma e ir à Califórnia para subir ao palanque a favor de Wilson. Gore concordara, com a condição de poder garantir que Wilson continuaria a manter a paz, como até então. Na noite da eleição Gore telegrafara a Tumulty a cifra exata pela qual Wilson venceria na Califórnia.

Agora Wilson enfrentava seu próprio histórico de falta de coragem. Em várias ocasiões ele conseguira ser ao mesmo tempo o candidato da guerra e dá paz. Esse tipo de coisa nunca incomodara o público, cuja memória era curta; mas os senadores eram constitu­cionalmente dotados de memória longa e, com freqüência, um eleito­rado caprichoso. Alguns eram obrigados a seguir os preconceitos de seus eleitores pró-Alemanha. Outros viam-se como arquitetos de uma república nova e perfeita, e seu líder era La Follette, de Wisconsin, muito mais perigoso em seu idealismo que qualquer dos bryanistas, afetados pela opinião pública, uma substância altamente volátil, pro­duzida, freqüentemente por capricho, por William Randolph Hearst em seus oito jornais, para não mencionar todos os outros editores todos, sem exceção, favoráveis à guerra. Até então, Hearst era ainda a voz dos alemães e irlandeses; e seus jornais nas. grandes cidades no Norte voltavam-se desavergonhadamente para a multidão urbana com a qual ele ainda contava para fazer-se Presidente em 1920.

Eu esperava ser um Presidente reformista. Wilson soava melancólico. Havia tanto a fazer aqui mesmo, e fizemos tanto, tão depressa...

Burden concordou sem reservas. O tipo de reformas de que Roosevelt sempre falara com uma paixão tão transcendente, Wilson de fato realizara com uma argumentação suave aliada a. suaves puxões de orelha nos congressistas. Mas, como ele gostava de dizer, qualquer pessoa que conseguisse dominar a faculdade de Princeton e também a associação de alumni acharia fácil lidar com um simples Congresso. Fora o senador Lodge a dizer "Mas ele nunca as dominou. Por isso a política foi a sua única fuga"?

Que posição eles, quero dizer, você tomaria se eu pedisse a guerra? Wilson conseguira controlar-se.

Vai depender das razões. Sempre achei que o senhor perdeu, a oportunidade, se é a guerra que deseja, quando os alemães afundaram o Lusitania e tantas vidas americanas se perderam. Naquele dia o público estava preparado para isso.

Porém — Wilson foi frio — eu não estava. Era cedo demais. Não estávamos, não estamos preparados.

— Há duas semanas, quando o senhor mandou o embaixador Bernstorff de volta, o povo estava novamente preparado. — Burden divertia-se com a brincadeira. — Agora vem o negócio do Zimmer­mann... — Embora Burden fosse muito sensível à aversão de Wilson a qualquer tipo de conselho, sabia que tinha sido chamado ao leito de doente do Presidente para dar-lhe uma visão do estado de espírito do, Senado. Mergulhou de cabeça. — Chegou a hora. O senhor não pode esperar muito tempo mais. A imprensa está agindo: a pequena e corajosa Bélgica, as freiras estupradas, as criancinhas devoradas. O boche é o demônio. Se deve haver guerra, preparados ou não, a hora é esta.

Wilson fixou os olhos nos papéis em sua mão; esperou.

Burden prosseguiu.

— Não foi por isso que convocou uma sessão extraordinária? Para nos pedir que declaremos a guerra?

— Se eu fizer isso, quantos se oporiam? E com que argumentos?

As costumeiras imagens poéticas de Wilson, moralistas e confusas, tendiam a evaporar-se diante de um problema político. Ele agora era inteiramente o administrador político contando cabeças.

Burden citou uma dúzia de nomes: os líderes.

— Na verdade, há uma maioria nítida, porém frágil, em ambas as Casas, contra a guerra, e nada vai convencê-la a não ser que o senhor tenha um novo exemplo de barbarismo dos boches.

Wilson tirou o pincenê e esfregou as duas marcas a cada lado do nariz — como impressões vermelhas do polegar.

Creio que os alemães são o povo mais estúpido da terra. Eles nos provocam. Afundam nossos navios. Conspiram com o México contra o nosso território. Então, agora, foram até o fim. — Ele ergueu os papéis com selo vermelho. — Hoje três navios nossos foram afun­dados. O City of Memphis, o Illinois, o Vigilancia.

Burden sentiu um arrepio ao ouvir os nomes.

— Tentei... creio que com absoluta sinceridade, mas quem pode conhecer o coração humano, principalmente o seu próprio? Tentei ficar fora desta guerra incrivelmente estúpida e desnecessária, que nos tornou de repente, graças à falência da Inglaterra, a nação

mais rica do planeta. Uma vez armados, nenhum poder poderá nos segurar. Mas, uma vez armados, será que algum dia nos desarmare­mos? Você entende o meu... dilema, ou o que era um dilema até o kaiser me aprontar esta. — O rosto do Presidente parecia ter sido grosseiramente esboçado, com cinzel e martelo, num bloco de granito cinzento.

— Por que o senhor demorou tanto, quando está claro a tantas pessoas que seu coração sempre esteve com a Inglaterra e os Aliados? — Burden perguntou.

Wilson encarou-o como se ele não estivesse ali.

— Eu tinha três anos de idade quando Lincoln foi eleito e a Guerra Civil começou — disse finalmente. — Papai era um clérigo em Staunton, e mais tarde nos mudamos para Augusta, na Geórgia. Eu tinha oito anos quando a guerra terminou e o Sr. Lincoln foi assassinado. Em Augusta a igreja de meu pai foi um... foi usada como hospital para os nossos soldados. Lembro-me de tudo isso. Lembro-me de Jefferson Davis sendo levado prisioneiro pela cidade. Lembro-me de como ele.. . Minha família sofreu muito pouco. Mas o que víamos em volta de nós, a amargura dos que perderam a guerra e a brutalidade dos vencedores... bem, nada disso me esca­pou. Não sou... — interrompeu-se, e um sorriso frio e curto dividiu por um instante o grosseiro rosto de granito — um entusiasta da guerra como o coronel Roosevelt, que tem a mentalidade de uma criança de seis anos e cuja imaginação com certeza não existe. En­tende, posso imaginar o que esta guerra nos fará. Rezo para estar enganado, mas tenho um medo mortal de que uma vez que este povo, que conheço tão bem, seja levado à guerra, ele esqueça que já existiu uma coisa chamada tolerância. Porque para lutar para vencer é preciso ser brutal e impiedoso, e esse espírito de impiedade brutal penetrará em todas as fibras da nossa vida nacional. Vocês, do Con­gresso, ficarão contaminados por ela, e a polícia também, e o cida­dão comum. Todo mundo. Então venceremos, mas o que venceremos? Como ajudaremos o Sul, quero dizer, as Forças do Centro, a voltar de uma época de guerra para uma época de paz? Como ajudaremos a nós mesmos? Nós nos tornaremos aquilo que combatemos! Esta­remos tentando reconstruir uma civilização de época de paz com padrões de época de guerra. Isto é impossível, e, já ,que todos estarão envolvidos, não haverá observadores com poder suficiente para fazer uma paz justa. Isto é o que eu queria que fôssemos: orgulhosos demais para lutar na lama, mas prontos para acorrer, prontos para intermediar, prontos para.. . — A voz estacou.

Houve um silêncio longo. Se o sol ainda não se pusera, há muito desaparecera atrás das nuvens densas e frias; e o quarto estava às escuras, com exceção de uma única lâmpada junto à cama de Wilson e das brasas quase apagadas na lareira. Embora Burden es­tivesse acostumado à eloqüência do Presidente, não era inteiramente imune ao seu poder. Wilson tinha o dom de ir direto ao coração por demais palpitante do problema.

Vou convocar o Congresso duas semanas mais cedo. Em 12 de abril. Irei... — Colocou- os perigosos documentos na mesa-de- cabeceira. Que coisa irônica! — Sacudiu a cabeça. Depois de todo trabalho que tivemos para controlar os grandes negócios, adi­vinhe o que vai acontecer agora? Eles estarão mais firmes na sela do que antes. Pois quem mais poderá nos armar? É o que dirão. Quem mais pode administrar a guerra?

Quem mais? Burden tinha tido o mesmo pensamento. Se alguém se beneficiaria com uma guerra americana, seriam os trustes, os cartéis, os especuladores da bolsa. Vamos voltar à época de Grant.

Wilson assentiu com desânimo.

Então, se a guerra for longa, e nos enfraquecermos, há o verda­deiro inimigo esperando por nós no Oriente: as raças amarelas, lide­radas pelo Japão, prontas para nos dominar pela própria força dos números...

Edith Wilson entrou no quarto e acendeu as luzes, dissipando o ambiente apocalíptico. Ao levantar-se, Burden percebeu algumas obras de arte chinesas arrumadas em mesas e estantes, sem dúvida um lembrete bem a calhar das hordas de terror da Ásia.

Vieram de casa explicou Edith, percebendo o interesse de Burden. Este não é um lugar fácil de tornar aconchegante. Entregou ao Presidente uma folha de papel. Do coronel House. Já o decodifiquei para você. Então sobressaltou-se. Ora, céus, você não devia ouvir estas coisas disse a Burden.

Que o coronel House escreve para o Presidente em código? Eu ficaria surpreso se não o fizesse. Ele está na Europa, não está?

Wilson assentiu. Olhou de relance para a carta e ergueu os olhos para Burden.

Bem, ele acha que devíamos reconhecer o novo governo russo. O czar abdicou. Mas a Rússia ainda está na guerra, de modo que...

Ele interrompeu-se e encarou Edith, nitidamente sem enxergá-la, o pensamento longe.

Acho que agora precisamos de todos os aliados. — Burden agora hesitava; estava também intrigado com a idéia da esposa de um presidente decodificando documentos altamente secretos do emis­sário não-oficial do Presidente à Europa, coronel House, o texano rico e misterioso.

— Sim. É a minha opinião. Nosso embaixador está muito entusiasmado com essa revolução. Muito parecida com a nossa, segundo ele. Acha que devíamos dar o exemplo e reconhecê-la.

Henry Adams previu tudo isso há vinte anos. — Burden de súbito recordou a alegria com que Henry Adams falara de guerras, revoluções e a inevitável decadência da civilização.

— Ele ainda está vivo? — Wilson apertou uma campainha.

— E muito. Mas nunca sai de casa, nunca faz visitas. Ainda mora do outro lado da rua, ali. — Burden apontou na direção do Parque Fayette enquanto Brooks, o criado negro de Wilson, entrava no quarto. Então Burden apertou a mão do Presidente. — O senhor terá tudo que quiser no dia 2 de abril.

— Quantos votarão contra?

Uns dez, no máximo.

— O senhor me incentiva, senador.

— E o senhor me inspira, Presidente.

— Este era o meu propósito. — Novamente o sorriso frio. — Agora, queria apenas inspirar a mim mesmo.

Com a ajuda de Brooks o Presidente saiu da cama. Edith levou Burden até o elevador.

Ele não dorme bem — informou.

Nem eu dormiria, numa época como esta.

Uma criada aproximou-se deles com um cesto de nozes.

Acabaram de chegar, Srta. Edith. Foi o serviço concreto que trouxe.

— Obrigada, Susan. Leve-as ao Sr. Wilson. — Edith abriu a porta do elevador. — Ainda acontecem coisas engraçadas — co­mentou. — Susan está conosco há vinte anos, mas levávamos uma vida tão tranqüila que ela ainda está em choque por viver aqui. Resolveu que o Serviço Secreto é o "serviço concreto", e não há quem a corrija. — Edith ia acrescentar alguma coisa, mas disse apenas: — Adeus.

 

Armado de crachá e documentos, Blaise Sanford entrou no Ca­pitólio, na parte do Senado. Além do que parecia ser toda a força policial de Washington, havia soldados postados em todas as en­tradas, como se uma invasão fosse iminente, ou seriam eles próprios invasão? Haveria lei marcial? Blaise fez a pergunta a si mesmo.

O próprio Blaise redigira um editorial altamente equilibrado para o Tribune dessa manhã, para tristeza dos redatores, que se mostra­vam abertamente desrespeitosos para com qualquer coisa que ele. ou Caroline escrevesse. O Tribune era essencialmente republicano e pró-Aliados, graças à influência de Blaise, com concessões ocasionais aos democratas graças à antiga amizade de Caroline com James Burden Day. Quando os irmãos discordavam num assunto qualquer, ambas as posições recebiam espaço igual, para consternação daqueles poucos cidadãos de Washington que levavam os editoriais a sério.

Uma chuva fina e quente anunciava a chegada da primavera. Iluminado por baixo, o domo do Capitólio parecia uma lua corcunda e branca, de encontro ao céu negro. Havia um aroma de narcisos e lama no ar, mas o costumeiro cheiro de cavalos estava ausente. Dizia-se que a recente ida de carruagem do Presidente para o Capi­tólio, para seu discurso inaugural, tinha sido a última que um Presi­dente jamais faria: finalmente o mundo era de Henry Ford. Blaise refugiou-se sob o portão de carruagens, onde essa noite nem carros nem carruagens eram permitidos, assegurando assim que todos ficassem igualmente, democraticamente, molhados.

Felizmente o Congresso funcionava no interior, dê modo que nenhuma conspiração do Senado poderia impedir a passagem de César. Agora jornalistas, diplomatas, esposas e crianças convergiam para o Capitólio, onde cada um que era admitido recebia uma pe­quena bandeira americana, presente de um patriota desconhecido, porém bem-organizado.

Na rotunda principal, Blaise foi abordado pelo editor do Atlan­tic Monthly, Ellery Sedgwick.

— Vou tentar entrar para ver o Presidente — disse este. — Ele está no Salão de Mármore. Venha, vamos cumprimentá-lo. Tumulty me fez membro temporário do Serviço Secreto. Foi a única maneira de eu poder entrar.

Blaise consultou o relógio: 8:30h. O discurso estava marcado para as 8:30h. Mas no Congresso nada acontecia ria hora marcada. Os senadores ainda estavam entrando no plenário da Câmara onde, por falta de cadeiras, muitos teriam que ficar de pé.

— Depois vou visitar Henry Adams. Você vai? Um jantar informal. Ele vai.

Sedgwick indicou Henry Cabot Lodge, que estava virado na direção deles. Cabelos brancos, barba branca, rosto branco, o senador Lodge acenou-lhes; as narinas dilatavam-se de excitação. Como o homem de Theodore Roosevelt no Senado, ele era o líder dos parti­dários da guerra.

À porta do Salão de Mármore um homem do Serviço Secreto montava guarda. Quando os dois editores tentaram entrar, ele os impediu.

— A Sra. Wilson acaba de dirigir-se para a galeria, e ele está quase pronto. É melhor ir tomar seu lugar, Sr. Sanford.

Quando Blaise fez menção de obedecer, avistou o Presidente. Wilson estava parado no centro do aposento ornamentado. Estava só, de costas para a porta, olhos baixos. Na mão esquerda segurava as fichas onde seu discurso estava escrito. Blaise achou que o mo­mento era íntimo demais para ser observado mas, assim como Sedg­wick, ficou paralisado quando Wilson atravessou o aposento lenta­mente, como um homem num sonho, até um grande espelho empoei­rado. Então Blaise viu o rosto do Presidente refletido: ele parecia ter-se desmoronado. A boca pendia pateticamente aberta, e a papada derramava-se por sobre o colarinho alto e engomado. Os olhos es­tavam arregalados e fixos, ao passo que os músculos do rosto estavam frouxos. Se isso fosse Paris e o Presidente um vagabundo francês, Blaise poderia identificar a droga que ele andara tomando: ópio. Mas ali era o Capitólio e o Presidente era um puritano. Abrupta­mente Wilson tomou consciência da imagem que Blaise podia ver no espelho. Com ambas as mãos empurrou o queixo para cima, esticou as bochechas, pestanejou; a boca firmou-se. Num instante era nova­mente o esguio, inflexível e carrancudo Woodrow Wilson, cujos olhos claros e frios eram agora atentos como os de um caçador. Devida­mente percebida a metamorfose, Blaise afastou-se, sem querer que o Presidente soubesse ter sido observado.

Nas galerias apinhadas, grandes damas imploravam um lugar, enquanto plenipotenciários ameaçavam guerra, em vão. Felizmente o diretor-executivo do Tribune ocupava o assento de Blaise e cedeu-o a ele. Ao lado dele estava Frederika, parecendo pálida, jovem, con­tida. Junto a ela encontrava-se o colega de Blaise, o dono de jornal Ned McLean, com a esposa Evalyn, ornada de diamantes, cada um mais azarado que o outro, a julgar pelo que a imprensa — a imprensa deles — dizia.

Blaise, meu velho!

Ned estendeu a mão por cima de Frederika. Blaise apertou-a. Não gostava de ser chamado de "meu velho" — nem de qualquer outra coisa — por Ned, um jovem idiota insuportável, que em se­guida estendeu-lhe uma garrafinha de prata.

— Isto pode ficar muito árido, sabe?

Ned arregalou os olhos comicamente. Parecia um comediante do cinema, pensou Blaise recusando a garrafinha, da qual Evalyn bebeu um longo gole.

— Uma hora ridícula para declarar guerra — comentou ela, enxugando os lábios com a mão coberta pela luva enfeitada em re­levo, em cujos dedos brilhavam diamantes. — Oito e meia, imagine! Bem na hora em que estamos começando a pensar em jantar. Não é mesmo, Frederika?

— Mas nós nunca pensamos nisso. Apenas jantamos. Não é, Blaise?

Blaise assentiu, olhos postos na galeria em frente, onde, de um modo ou de outro, Caroline conseguira colocar-se entre duas das filhas do Presidente. A Sra. Wilson tomava agora o seu lugar com sorrisos simpáticos e acenos aos amigos no pavimento inferior.

— Lá está a viúva Galt.

Como tantas senhoras de Washington, Evalyn gostava de retra­tar os Wilson como um casal amoroso, dado a infindáveis prazeres carnais.' Blaise estava com Evalyn no teatro quando o Presidente apareceu em público com a viúva Galt pela primeira vez; ela usava o que pareciam ser todas as orquídeas da estufa da Casa Branca. Evalyn perguntara:

— O que é que vocês acham que eles vão fazer depois do teatro?

Frederika respondera:

— Ela vai comer as orquídeas e depois vai para a cama.

Abaixo deles, Brandegee, o elegante senador de Connecticut, fez uma mesura profunda aos senhores da imprensa. Brandegee tentara convencer Blaise a concorrer ao Senado por Rhode Island, onde a campanha seria relativamente barata, certamente mais barata do que o custo de manter a casa que Blaise herdara em Newport:

Você vai gostar do Senado dissera o senador. Apesar de alguns penetras, é o melhor clube do país.

Blaise, porém, não tinha interesse na carreira pública. O poder era outra coisa, naturalmente, e um proprietário de jornal tinha mais poder que a maioria das pessoas ou a ilusão de poder, que era, talvez, só o que existia. O rosto desfigurado de Wilson no espelho já estava gravado na memória como uma dessas imagens chocantes e jamais esquecidas. Se aquilo era o poder verdadeiro, Blaise estava disposto a passar sem ele. O rosto de Wilson revelara não exata­mente angústia, mas puro terror.

Do salão abaixo Burden acenou para eles. Estava num grupo de senadores democratas, ao fundo.

Alguém viu o discurso? Ned McLean assumiu o que julgava ser a expressão inteligente requerida do editor do Washington Post numa ocasião tão importante.

Não fez Blaise.

Ele tentara de tudo despesa não é problema, como dizia Hearst para conseguir uma cópia, através de um amigo do estenógrafo do Presidente, Charles L. Gwen. Mas, aparentemente, o próprio Presidente datilografara o discurso na noite de 31 de março até a madrugada de domingo, de abril Dia dos Bobos. Blaise ainda não conseguia compreender essa ocasião, essa guerra.

Embora Wilson tivesse tido uma reunião com o Gabinete, não lhe mostrou o discurso. E afirmou que ainda estava indeciso quanto a pedir uma declaração de guerra ou dizer simplesmente que, como já existia realmente um estado de guerra, o Congresso devia dar-lhe os meios para combater. Ressalvados alguns detalhes técnicos, o Ga­binete mostrou-se unânime a favor da guerra.

Logo abaixo de Blaise, Josephus Daniels, o pacifista secretário da Marinha, com aparência bastante bélica, tomava seu lugar, com o resto do Gabinete e o Supremo Tribunal. O vice-presidente estava agora em seu trono junto ao do presidente da Casa. Acima de suas cabeças um relógio redondo informava as horas: 8:40h.

Ele está atrasado disse Frederika.

— Você soube que agora há pouco — Ned inclinava-se sobre a grade — alguém deu um soco em Cabot Lodge? Veja aquele olho! Inchadíssimo!

— Quem foi? — Frederika era profundamente interessada nas formas mais primitivas de guerra.

Um pacifista — fez Ned.

— Que engraçado! — Evalyn retirou da bolsa um par de bi­nóculos de ópera cravejados de diamantes e focalizou-os em Lodge. — Deve ter sido um peso-pesado...

O presidente da Câmara pôs-se de pé, olhos na porta defronte a seu palanque.

O Presidente — anunciou; e acrescentou, quando o salão ficou em silêncio: — dos Estados Unidos.

O Supremo Tribunal levantou-se em primeiro lugar, e em seguida todos o fizeram, no salão e nas galerias. Então Woodrow Wilson, muito ereto, até mesmo rígido, entrou no recinto. Parou por um momento. Na imobilidade geral, o único som era o da chuva tambo­rilando na clarabóia. Então os aplausos irromperam como trovões. Wilson desceu apressado o corredor até a tribuna, indiferente às mãos estendidas. Subiu à tribuna; voltou-se e cumprimentou com um gesto de cabeça o vice-presidente e o presidente da Câmara. Depois sentaram-se todos, e o processo histórico começou.

Wilson ergueu as fichas acima da estante e discursou como se para elas. Mas a voz era firme, e a cadência, como sempre, de uma beleza fora do comum. Blaise não achava que a voz parecesse ame­ricana ou inglesa — a primeira, toda nasalidade, e a segunda, toda balbucio. A voz de Wilson era um agradável equilíbrio entre as duas.

— Senhores do Congresso. — Um breve olhar de polidez por cima das fichas; depois passou a dirigir-se a seu texto com mais intimidade: — Convoquei o Congresso para uma sessão extraordi­nária porque existem decisões muito sérias a serem tomadas ime­diatamente...

Wilson expôs sucintamente o problema. Mas, como ele ensinava História além de agora também fazê-la, era obrigado, na grandiosa tradição daqueles que devem guerrear, a invocar um Princípio Mais Elevado do que meramente raiva, sentimentos feridos ou ataques a pessoas ou propriedades americanas.

— A guerra submarina alemã contra o comércio é uma guerra contra a humanidade — afirmou.

Blaise sentiu-se fraco de repente: os americanos iam lutar, real­mente lutar, na França, o país onde ele tinha nascido e crescido. Estava com 42 anos; devia entrar na guerra pelos dois países.

Tudo parecia, irreal: o salão mal iluminado, a chuva de abril na vidraça, os rostos tensos, para não mencionar as orelhas, muitas delas envoltas por mãos em concha, de estadistas meio surdos ten­tando amplificar a voz da nação que rompia seu longo silêncio desde quando? Gettysburg? "Última das melhores esperanças da Terra?" Governo do, para e pelo povo. Todos esses conceitos defi­nitivos, perfeitos, únicos, para descrever mera política. As nações eram organismos incorpóreos; daí a extraordinária oportunidade para um orador eloqüente, numa apropriada noite chuvosa de abril, de­nunciar a ambição coletiva, embora incipiente, da tribo. Já que uma oportunidade dessas poderia nunca repetir-se, Blaise sabia o que vinha a seguir; e veio.

O desafio é dirigido a toda a humanidade. Cada nação tem que decidir por si como vai enfrentá-lo. Que faria então, pergun­tou-se Blaise quase rindo, o Paraguai? Ou a Costa do Ouro? Ou o Sião? Wilson enfiou com firmeza o primeiro prego no lindo caixão da paz: A neutralidade armada, pelo que parece, é impraticável. Mais pregos: Há uma opção que não podemos fazer, somos incapazes de fazê-la: não escolheremos o caminho da submissão...

Um suspiro profundo percorreu o aposento, e depois algo que soou como um tiro. O Presidente, perplexo, ergueu os olhos, no momento em que o presidente do Supremo Tribunal, um sulino idoso e corpulento, erguia as mãos bem alto e batia palmas, como um sinal de batalha, e as tropas, se é isto que somos, pensou Blaise, bradaram em uníssono inclusive ele próprio. Ned McLean soltou um grito rebelde e tomou outro gole da garrafa. Os olhos de Evalyn brilhavam como diamantes. No outro extremo do salão, Caroline sentava-se imóvel entre as filhas de Wilson, que aplaudiam. Vai haver muita discussão ainda nas reuniões de pauta do jornal, pensou Blaise.

O rosto de Wilson estava algo menos pálido depois dessa demonstração, e a voz mais forte ao enfiar o último prego:

Com uma profunda consciência do caráter solene e até mes­mo trágico do passo que estou dando...

Blaise perguntou-se: trágico para quem? Para os mortos, é claro. Mas Wilson estava dizendo que a nação encontrava-se agora sujeita a uma tragédia como nação? Uma massa tão grande de pessoas dife­rentes entre si poderia compartilhar uma coisa tão elevada, terrível

e íntima como uma tragédia? A tragédia era individual, pelo menos assim fora incorretamente ensinado a Blaise. Então ele entendeu: Wilson referia-se a si mesmo: "... o caráter trágico do passo que estou dando". Isso era nobreza, até mesmo loucura. Era verdade que naquele momento Wilson era a personificação de um povo; mas o momento passaria e outros homens vaidosos, alguns até mesmo sen­tados agora nesse aposento, tomariam seu lugar.

— Recomendo ao Congresso declarar o comportamento recente do Governo Imperial Alemão nada menos que um ato de guerra contra o Governo e o povo dos Estados Unidos...

Wilson colocava na Alemanha a culpa da guerra; depois pedia a guerra. Novamente os aplausos foram puxados pelo presidente do Supremo, obviamente bêbado e agora aos prantos. Brados soavam. Alguma coisa começava a romper-se; seria a civilização? Blaise não era entusiasta desse conceito vago, mas essa definição nebulosa não era melhor que homens ladrando como cães, uivando como lobos?

Como se tivesse previsto o tumulto que estava provocando em volta da fogueira tribal, Wilson passou depressa para um terreno ele­vado, sagrado:

Estamos no início de uma era na qual será necessário que os mesmos padrões de conduta e de responsabilidade pelo mal co­metido observados pelos cidadãos dos países civilizados sejam obser­vados pelas nações e seus governos.

Frederika, surpreendentemente, cochichou ao ouvido de Blaise em tom irônico:

Ele conhece o Sr. Hearst?

Blaise quase soltou uma gargalhada; ela tinha pelo menos rom­pido o feitiço que o pajé estava jogando em seus silvícolas embria­gados pela guerra.

— Ou o coronel Roosevelt — Blaise cochichou de volta, para irritação da agora emocionada Evalyn. Ned dormia.

— ... lutar assim para a definitiva paz mundial e para a libertação de seus povos, inclusive os povos alemães; pelos direitos das nações, grandes e pequenas, e o privilégio dos homens em toda parte de escolherem seu modo de vida e de obediência. O mundo precisa ser tornado seguro para a democracia.

Uma pessoa começou a aplaudir muito alto.

O Presidente já começara a frase seguinte quando interrompeu-se, como se só agora cônscio da importância do que dissera. O aplau­so começou a crescer quando outras pessoas aderiram. Blaise perguntou-se com desânimo: o que é a democracia? E como ela ou qual­quer outra coisa tão indefinível podia ter a certeza da segurança? A escravidão humana era algo tão específico que podia-se realmente fazer do mundo um lugar perigoso para ela florescer; mas a democracia, o que era, afinal? Tammany Hall? As lideranças do Partido Democrata? O dinheiro? Alguma vez já houvera tantos milionários nesse Senado democrático?

Blaise ergueu o olhar para o relógio. Eram agora 9:15h. O Presidente estava discursando havia quase meia hora. A magia estava solta no recinto, vozes ancestrais tinham iniciado seus sussurros, e velhas canções de guerra soavam no tamborilar da chuva: pois esta­remos unidos em torno da nossa bandeira, rapazes, estaremos nova­mente unidos, entoando o brado de guerra da liberdade. O pajé-guerreiro soltava agora seu feitiço definitivo: É uma coisa terrível levar este povo grandioso e pacífico à guerra, à mais terrível e trágica de todas as guerras, em que a pró­pria civilização parece estar em jogo. Mas o direito é mais precioso que a paz, e lutaremos pelas coisas que sempre trouxemos em nossos corações...

Ah, sim, pensou Blaise. Vamos matar pela paz! Frederika quebrara o feitiço para ele; no entanto, ele reconhecia a sua potência; via-a agir nos silvícolas lá embaixo, que dedicavam ao pajé não apenas a sua confiança como também a sua fúria, a qual, por sua vez, alimentava a fúria do pajé. Assim, magia cria magia.

— ... com o orgulho daqueles que sabem que chegou o dia em que a América terá o privilégio de dar seu sangue...

Ali estava, finalmente, o objetivo da cerimônia: sangue. Estavam agora mergulhando na pré-história, em volta da fogueira. San­gue! E agora, a bênção celeste para a tribo. Ela veio, na última frase: Com a ajuda de Deus ela não poderá agir diferente. Portanto ali estava: no final o protestante Martinho Lutero. Nunca Blaise sentira-se mais católico.

Wilson ergueu o olhar para as galerias. Seus olhos estavam bri­lhantes e arregalados, e... ele estava nesse momento a sós consigo mesmo ou unido aos caçadores que o cercavam? Blaise não soube a resposta, pois todos ficaram de pé, inclusive ele próprio e o cam­baleante Ned, braços rodeando frouxamente o pescoço de Evalyn.

Blaise debruçou-se para observar o Presidente descer o corredor até a porta. Lodge adiantou-se um passo o rosto definitivamente, agradavelmente, inchado para apertar a mão de Wilson e mur-

murar algo que fez o Presidente sorrir. Logo atrás de Lodge sentava-se o grande La Follette, braços cruzados para mostrar que não estava aplaudindo o pajé, e lentamente, ritmadamente, mastigando chicletes.

Quem pode acreditar que ontem mesmo a maioria era a favor da paz? perguntou Blaise a Frederika enquanto abriam caminho no corredor apinhado.

Você acha que eles sabem mesmo o que estão fazendo? Quero dizer, é bastante divertido... para os homens. E imagino que deve haver dinheiro nisso.

Muito dinheiro, acredito, para aqueles que são...

Blaise perguntou-se: são o quê? Afinal, ele era filho e neto de ricos. O fato de não ter vontade de aumentar sua fortuna ao contrário da circulação do Tribune não significava que ele era diferente do Sr. Baruch, o especulador nova-iorquino que comprara um lugar importante no Partido Democrata como financiador do próprio Presidente, para lucrar com a troca. Mas o Sr. Baruch não merecia mais censuras por seu singelo desejo de ganhar dinheiro do que todos os membros milionários do Clube do Senado, que só dife­riam dos membros pobres por sua atitude quanto à transitoriedade.

Caroline interceptou-os no corredor pintado, que cheirava a lã úmida e uísque: a garrafinha de Ned McLean não tinha sido a única.

Prometi ao tio Henry que iria fazer-lhe o relatório. Ele pro­meteu que vai nos dar jantar.

Blaise disse não; Frederika disse sim; de modo que todos em­barcaram no Pierce-Arrow de Caroline.

Como foi que você acabou sentada com os Wilson? Frederika freqüentemente fazia as perguntas de Blaise por ele.

Estou cultivando o Sr. McAdoo porque ele quer ser Presidente também, e sempre gosto mais das mariposas antes que elas saiam do casulo.

Como é que você faz para cultivar alguém como Eleanor McAdoo?

Frederika tinha o velho senso de irrealidade de Washington quando se tratava do teatro federal, que mudava seu programa a cada quatro ou oito anos às vezes mais depressa, se acontecesse de um ator ser, excitantemente, assassinado.

Começo sendo extraordinariamente simpática com a irmã feia, Margaret. Isso me dá cartaz com todos da família.

Como você é astuta!

O tom de Frederika era amigável. Blaise decepcionava-se cons­tantemente com a falta de atrito entre as cunhadas. Ele esperava mais tragédia entre as duas senhoras Sanford, particularmente numa cidade tão pequena. Mas cada uma ficava em seu terreno; e quando a nobre Frederika Sanford recebia no palácio de Blaise na Avenida Connecticut, Caroline muitas vezes aparecia para sorrir para a velha Washington, o mundo de Frederika, e para os velhos fidalgos repu­blicanos que cortejavam Blaise, que os festejava. A corte de Caroline em Georgetown era menor e mais seleta. Os jantares nunca eram para mais de dez pessoas. Os convidados de Caroline eram famosos por sua conversa; isso significava mais estrangeiros que americanos, e dos americanos, mais habitantes de Nova York do que da velha Washington.

A partida dos Roosevelt da Casa Branca devolvera a cidade à sua tradicional monotonia rural. Embora o Presidente Taft, gordo e de mau gênio, fosse pintado como muito simpático e alegre, graças à incapacidade dos jornalistas de fugir ao lugar-comum, ele e sua presunçosa esposa não tinham sido um grande enredo para o espe­táculo federal. A chegada dos Wilson tinha sido excitante; ela, porém, adoecera, e ele, já uma pessoa distante, transformara-se sim­plesmente em seu cargo. Isso significava que o eloqüente Presidente era proeminente e vitorioso em público, ao passo que em particular o erudito Woodrow Wilson ficava escondido no andar superior da Casa Branca, cuidando da esposa doente e adorado pelas filhas.

Os esforços de Caroline para ingressar na Casa Branca dos Wil­son tinham sido, no máximo, tíbios. Como pessoas, eles não lhe interessavam; mas agora, com esse novo acontecimento, tudo devia ser visto sob uma luz diferente, sombria. A história começava a dar um salto para a frente, ou para trás, ou o que fosse; e Wilson estava montado na fera, como o velho John Hay costumava dizer do pobre McKinley. De repente até Edith Wilson começara a brilhar a meia distância, ao passo que a guerra tinha criado um halo em volta da cabeça eqüina da Srta. Margaret Wilson.

O idoso criado de Henry Adams — tão velho quanto ele? Não, ninguém poderia ser tão velho — conduziu-os ao escritório, que ti­nha sido para Caroline o centro de toda a sua vida em Washington, ao mesmo tempo sala de aula e teatro, onde reinava Henry Adams, pequeno, rosado, calvo e de barbas brancas, neto e bisneto de dois ocupantes da Casa Branca do outro lado da rua. Era ele o historia­dor da velha república e, com seu irmão Brooks, profeta e vidente do império mundial que estava por vir, se é que estava.

O ancião recebeu-os diante de sua lareira modestamente espeta­cular, entalhada num bloco de ônix verde mexicano cravejado de escarlate, acima da qual via-se o desenho que William Blake fizera do louco Nabucodonosor comendo capim, para Adams um lembrete constante do ridículo que costuma ensombrear a grandeza humana. Nos vinte anos em que Caroline conhecia Adams, nem o belo apo­sento com seus móveis pequenos, na escala de Adams, nem seu pro­prietário, tinham mudado muito; apenas, muitos dos ocupantes das poltronas tinham partido, ou por morte, como John e Clara Hay, construtores em conjunto daquele duplo palácio românico no Parque Lafayette, ou por mudança para a Europa, como Lizzie Cameron, amada por Adams, agora em pleno verão de seus dias, cortejando furiosamente os jovens poetas na verdejante primavera dos deles. Para encher sua vida e seus aposentos, Adams contratara uma secre­tária, Aileen Tone, uma dama tão devotada quanto ele à música do século XII, visivelmente representada a um canto da biblioteca por um piano Steinway, o equivalente a uma aliança de casamento para Caroline, que ficava muito feliz ao ver o ancião tão bem cuidado. Como sempre, havia "sobrinhas" presentes. Caroline tinha sido uma sobrinha, em sua época. Agora consolidara-se a amizade, paixão essencial do círculo de Adams.

Adams abraçou Caroline como a uma sobrinha; e fez uma me­sura para Blaise e Frederika. Como os reis, ele não apreciava muito o aperto de mãos.

— Ele conseguiu! Estou atônito. Agora contem-me, como é que ele se saiu?

Adams sentava-se numa poltrona especial, colocada de forma a ter a luz do fogo por trás; mesmo assim seus olhos pestanejavam sem parar, como os de uma coruja ao meio-dia. Caroline incentivou Blaise a descrever o que acontecera no Capitólio; e Blaise, como sempre, foi preciso, até mesmo sensível aos detalhes. Caroline ficou particularmente impressionada, assim como Adams, pela cena diante do espelho.

— Que quer dizer isso? — Caroline fingiu inocência, a qualidade que Adams menos apreciava.

— Ele está comprometido demais. É isto que quer dizer. — Adams estava deliciado. — De qualquer maneira, finalmente acon­teceu.

— O senhor aprova? — Caroline esperava a costumeira negativa engenhosa, típica de Adams; em vez disso, surpreendeu-se com o entusiasmo do ancião.

— Sim! Pela primeira vez na vida estou com a maioria, pelo menos entre as pessoas que conheço, e não ouso pronunciar uma única palavra de crítica. Toda a minha vida desejei um tipo qual­quer de comunidade atlântica,, e agora aí está ela! Vamos combater lado a lado com os ingleses. É bom demais para ser verdade. — Ele sorriu o famoso sorriso brilhante e amargo. — Agora posso pensar na ruína total de nosso velho mundo mais filosoficamente do que jamais julguei possível.

— O senhor vê tudo acabar-se em ruínas?

Caroline pensou: Blaise ainda era bonitão — uma grande concessão, já que, como o de Lizzie Cameron, seu gosto agora começava a voltar-se para a juventude nos homens.

Bem, as coisas se acabam. Afinal, não previ isso desde o início? Desde o início dos tempos, é o que me parece agora. E não estava certo? A Revolução Russa, tudo previsto por mim. Bem, Brooks também merece algum crédito. É estranho como nos senti­mos donos de nossas profecias...

— A não ser que estejam erradas — interpôs Caroline.

Então Eleanor Roosevelt e sua secretária social, uma bela lourinha, entraram no aposento, trazendo consigo o frio.

— É culpa de Caroline — Eleanor desculpou-se. — Eu ia dire­tamente para casa do Capitólio, em tal estado, quando ela disse que o senhor poderia receber-nos, e quem quer ficar sozinha neste mo­mento?

Onde está o seu marido? Não precisa me dizer. No Departamento da Marinha, ordenando o almirante Dewey a dominar a Irlanda.

— Enterramos o almirante há dois meses.

Caroline achou a secretária de Eleanor extraordinariamente en­cantadora e maravilhou-se com a coragem de Eleanor em empregar alguém tão mais atraente do que ela. A não ser, naturalmente, que Eleanor estivesse apaixonada no sentido souvestriano.

Mandem o caixão para a Irlanda.

Adams mostrava-se exuberante, enquanto William servia cham­panhe. No aposento ao lado fora posta a mesa. Eleanor olhou para ela fixamente, quase que nostalgicamente. Gostava de comer, Caroline tinha percebido; no entanto servia a pior comida de Washington.

Franklin está no Departamento da Marinha, com o Sr. Daniels. Está tudo começando a acontecer. Minha cabeça está girando. Estou feliz por termos o Sr. Wilson morando aqui em frente.

— Ora, criança!

Caroline reconheceu o tom especial, ancestral, da voz de Adams ao profetizar desgraças. Ele prosseguiu:

— Não faz diferença para o curso da história quem mora naquela casa. Nunca fez. A energia, ou a falta dela, é que determina os acontecimentos.

— Não diga isto ao Franklin, por favor — Eleanor mostrou-se inesperadamente firme. — O senhor não devia desencorajar qual­quer pessoa jovem e idealista, que poderia alcançar algo maravilhoso.

Quando Eleanor percebeu ter-se tornado de repente o centro das atenções, a pele prateada tornou-se rosa-escuro — a rosa puri­tana, pensou Caroline, que apreciava tanta nobreza doce e sem senso de humor.

— Acho que ele talvez seja exatamente a pessoa a quem eu deveria dizê-lo. Ah, os fidalgos chegaram. Como os magos. Minha estrela, sem dúvida. Bem-vindos à minha manjedoura, ou manger à la fourchette.

À porta postava-se Sir Cecil Spring Rice, o embaixador britânico, com o senador Henry Cabot Lodge, cujo rosto vermelho e in­chado causou muita alegria a Adams, que gostava de atormentar seu antigo aluno de Harvard. Enquanto Blaise, Frederika e Eleanor dirigiam-se à mesa do bufê, Caroline e a secretária social permaneceram para saudar os fidalgos.

Spring Rice era velho amigo da velha Washington. Tinha sido designado para a embaixada na juventude; ingressara no cerne do círculo de Adams, conhecido como o Cinco de Copas; tornara-se o maior amigo de Theodore Roosevelt, e padrinho do segundo casa­mento do viúvo. Agora, velho e doente, voltava em triunfo como embaixador inglês em Washington. Usava uma barba loura e bri­lhante como a do seu rei; seus olhos não eram muito diferentes dos de seu Presidente. Ele estava, pensava-se com muita insistência, morrendo.

— O senhor venceu. — Spring Rice deu a Adams um exuberante abraço à francesa.

— Sempre venço, Springy. Quem o feriu, Cabot?

Um pacifista. Mas o senhor devia...

Falar com ele. Conheço todo o jargão mais recente da sua encantadora Praça Scollay. Quem haveria de pensar que Wilson al­gum dia teria coragem?

Spring Rice indicou Lodge.

— Ali está o apoio dele. Com alguma ajuda de Theodore, nossa tarefa está cumprida, isto é, apenas começada. — Pegou uma taça de champanhe na bandeja de William e ergueu-a. — Agora começa tudo.

Aquela parte da sala bebeu solenemente.

— Nossa última sessão de relaxamento. — Lodge sorriu dentro da barba para o embaixador.

Este explicou:

Nos dois últimos anos, sempre que eu estava prestes a explo­dir por causa da eterna, indecisão do Sr. Wilson, Cabot deixava que eu fosse ao escritório dele e falasse mal do seu governo até o ataque de raiva passar. Daí chamarmos de sessão de relaxamento.

Pobre Springy — fez Adams.

— Agora feliz — retrucou Lodge.

Os Aliados vão querer tropas americanas?

Caroline conhecia a resposta que os leitores do Tribune não conheciam e que o Presidente evitara, a não ser pela única referência ao "privilégio" de derramar o sangue americano.

— Com certeza seremos o cofre — afirmou Lodge. — Fornecendo armas. Dinheiro. Comida. Só isso.

Spring Rice sorriu para Caroline.

Só isso! — ecoou, e em seguida acrescentou, com a ansiosa indiscrição do diplomata profissional diante da platéia apropriada: — Porém o Sr. Wilson realmente disse algo estranho ao Sr. Tumulty no caminho de volta à Casa Branca...

O senhor já está sabendo o que ele disse? — Adams parecia um duende jovial, pestanejando à luz.

— O serviço de informações inglês nunca dorme, ao contrário dos governos ingleses...

Que foi que ele disse a Tumulty?

Lodge ficou alerta de repente. Embora fosse compreensível que seu amigo Roosevelt não gostasse do pacífico professor que tomara seu lugar como chefe de Estado, a aversão de Lodge tinha algo de estranho, Caroline sempre pensara, como se um erudito da altaneira Harvard tivesse sido suplantado por um de Princeton, inferior; na realidade, a pior crítica de Lodge a qualquer discurso de Wilson era que, embora apropriado, talvez, para Princeton, não estava à altura dos padrões de Harvard. Naturalmente, Lodge fora o único intelectual na alta política até que Wilson, no espaço de dois anos, saíra de Princeton para o governo de Nova Jersey e daí para a Pre­sidência. Nunca houvera um progresso tão rápido para uma pessoa que não fosse um general. Embora fosse natural que Lodge sentisse ciúmes, por que até esse ponto? Talvez Alice Longworth estivesse certa quando, no enterro da Sra. Lodge no ano anterior, tinha dito: "Cabot vai ficar impiedoso sem a irmã Anne".

Enquanto o carro passava pela multidão que aplaudia, entre as compridas fileiras de soldados sombrios e molhados, em posição de sentido... — Spring Rice sorriu para Caroline. Está vendo como dou colorido a meus frios relatórios políticos?

Como eu assentiu Caroline. Mas, talvez, se é que eu posso ser editorial, menos adjetivos, mais verbos.

Mais luz foi a contribuição de Adams.

Que foi que ele disse, afinal? Lodge era como um terrier idoso, olhos fixos no buraco da toca do rato.

O Presidente disse: "Ouviu os aplausos?"

Vaidade de professor! Não. Não, vaidade de pregador de Maryland! Lodge descobrira seu pior epíteto.

Mas ele tinha razão interpôs Caroline. Eu estava lá. Parecia uma trovoada, ou...

Um dique rompendo-se? Spring Rice forneceu a imagem jornalística.

Na realidade, nunca escutei um dique no momento do rom­pimento. Caroline manteve a fleuma.

Que foi... Que foi que ele disse? Lodge mexeu-se como um terrier.

Se parar de me interromper, Cabot, eu lhe conto. Ele disse: "A minha mensagem era uma mensagem de morte aos nossos jovens. Como é que eles podem aplaudir isso, pelo amor de Deus?"

Covarde! desferiu Lodge.

Caroline voltou-se para Lodge e sem qualquer parcela de seu eterno, pelo menos lhe parecia, tato, desfechou de volta:

— Isto não fica bem, vindo de alguém velho demais para lutar.

Caroline... — Adams prendeu-lhe o braço com o seu. Leve-me para comer. Mas foi Adams quem levou a trêmula Caroline; o ancião tranqüilizava-a: — Não adianta censurar os entusiastas. Eles são como pequenos motores automáticos. Usam qualquer energia que houver no ar, e hoje há uma grande quantidade.

Demasiada para mim. Desculpe-me.

Adams deu-lhe um tapinha no braço; depois voltou-se para seus outros convidados.

A conversa era agora generalizada. Os líderes dos Aliados logo estariam em Washington. Arthur Balfour, secretário do Exterior e chefe de Spring Rice, seria o primeiro a chegar, antes dos franceses, Caroline percebeu, aceitando de — como era mesmo o nome dela? Lucy de alguma coisa — pato frio en gelée da mesa cujo esplendor à luz de velas estava mais para o Faubourg Saint-Germain do que para o Quincy de Adams em Massachusetts. Acontecia que todos os anos, até o início da guerra, Henry Adams estabelecia-se em Paris, onde fazia a corte a Lizzie Cameron, meditava sobre a música do século XII e denegria seu próprio e muito elogiado Mont-Saint-Michel and Chartres, tantas décadas sendo escrito e agora, desde 1913, um livro publicado, que o público não era convidado por seu irritadiço autor a comprar ou ler. No entanto, Caroline nunca poderia ter vivido na América -— ou pelo menos em Washington — sem o sempre sábio, sempre benévolo Henry Adams, tido pelos não "so­brinhos" como sublimemente cáustico e rígido a serviço da verdade.

Não gosta do Sr. Lodge?

A voz de Lucy era baixa, com sotaque ligeiramente sulino. Era a popular convidada extra sempre vista nos jantares maiores, mais do que nos menores, na zona oeste de Washington. Quem era ela? Caroline, que não se interessava pelas questões genealógicas que sustentavam a vida social da cidade, tinha, como autodefesa, decorado as infinitas ramificações de quem era parente de quem, evitando a famosa pergunta quando um nome novo era pronunciado: "Então, afinal, quem é ela?" — estabelecendo o lugar da esposa no esquema das coisas. "Saint-Simon sem o rei" era um artigo que ela pretendia escrever para o Tribune até Blaise ironizar, com a maldade sincera de um irmão: "E sem Saint-Simon também."

O rosto pálido de Lucy brilhava à luz da lâmpada. "Cútis de pétala de camélia", uma expressão muito usada pela Dama da So­ciedade do Tribune. Olhos azul-escuros. Eleanor devia adorar Lucy, uma versão linda de si mesma. O que teria — aliás, o que não teria — dito Mlle. Souvestre?

— Conheço o Sr. Lodge há tempo demais para não gostar dele. É uma das coisas inevitáveis daqui. Naturalmente cu preferiu u mulher dele, Nannie. E ela era chamada de Irmã Anne...

O Sr. Roosevelt o admira...

— São grandes amigos.

Estou falando do seu Sr. Roosevelt.

Os olhos eram lindos, Caroline concluiu. Mlle. Souvestre teria aprovado. E Lucy era também, de alguma forma, uma Carroll de Carrollton, portanto uma católica romana, o que também teria agradado Mademoiselle, que, como a maioria dos ateus franceses, respeitava a igreja. Lucy Mercer. Caroline ficou aliviada ao lem­brar-se. Afinal, se ela não conhecesse melhor que um nativo a sua cidade de adoção, não tinha o direito de publicar um jornal familiar para famílias em sua maioria políticas. O pai de Lucy, major Carroll Mercer, fundara o mais elegante clube campestre da cidade, na aldeia de Chevy Chase, em Maryland, onde o quadro de membros era tão seleto que Woodrow Wilson recusava-se a jogar golfe lá enquanto o jovem Sr. Roosevelt o fizesse.

Aileen Tone juntou-se a eles. Não era em absoluto uma pessoa apagada, como as acompanhantes deveriam ser.

— Não desisto de tentar convencer Lucy a cantar conosco, o Sr. Adams e eu, mas ela não quer.

— Porque você se lembra de mim na juventude. Agora com a idade avançada, sou barítono — disse Lucy. — Você se lembra do meu soprano de adolescência.

— Perfeito para Richard Coeur de Lion. Aileen voltou-se para Caroline. — Estamos estudando as notações musicais antigas, tentando verificar como soava a música do século XII. Estamos fa­zendo progressos, eu acho, com a canção de prisioneiro de Richard.

— Oh, Richard, oh, mon roi, tout le monde t'abandonne Ca­roline grasnou a balada francesa, tão amada, por razões óbvias, por Marie-Antoinette.

Século XVIII informou Aileen. Linda, é claro...

Já fui atacado hoje. O senador Lodge estava ao lado de Caroline. Mas respondi com um soco poderoso de direita. Agora...

O senhor vai usar seu soco poderoso de esquerda em mim? Caroline sorriu com doçura.

Não. Sempre reajo à altura. Você me acusa, eu acuso você.

Ah, meu Deus. Aileen parecia assustada. O Sr. Adams não vai gostar.

Eu ia apenas responder com um elogio a observação de Caro­line de que sou velho demais para lutar. Ela é esperta demais para não saber por que chamei Wilson de covarde. Deveríamos ter en­trado na guerra na época do Lusitania mas ele temia perder os votos das pessoas de dupla nacionalidade. Porque não existe Partido De­mocrata sem os alemães e os irlandeses.

— Os alemães geralmente votam nos republicanos — começou Caroline.

Porém, se ele apoiasse uma guerra contra a Alemanha naquela ocasião, todos votariam contra ele. — O tom de Lodge era suave. — E existem 12 milhões deles entre nós, inclusive os judeus alemães, como Kuhn, Loeb e Warburg, que odeiam a Inglaterra e amam o kaiser, e agora que o nosso bom Sr. Morgan está morto, não há quem consiga mantê-los na linha. O medo que tem deles fez Wilson fingir neutralidade. Mas uma vez conseguidos os votos deles, e também os dos irlandeses, ele agora entra no último ato para re­clamar uma grande vitória, de modo que consiga ser o nosso primeiro presidente com três mandatos.

Caroline apreciava a coerência de estadista de Lodge. Pelo que ela sabia — aliás, pelo que ele também —, ele acreditava no que estava dizendo. Mas o espírito travesso a dominava.

— Vi o senhor apertar-lhe a mão depois do discurso. Que foi que disse a ele?

Lodge foi magnífico:

Eu disse... que poderia ser? "Sr. Presidente, o senhor expressou de maneira majestosa' os sentimentos do povo americano."

— "Peque com audácia!" — Caroline lembrou-se dessa frase quando Wilson inesperadamente colocou-se no papel de Martinho Lutero.

Lodge pareceu sobressaltado; e então lembrou-se da referência.

— Só mesmo um católico conhece Martinho Lutero...

— Eu não conheço — fez Lucy, acenando para Eleanor.

— Não é apenas bom protestantismo, é também bom-senso — declarou Caroline.

— Neste caso, então, qual é o pecado? — Lodge soava como se estivesse ensinando catecismo.

O orgulho, senador Lodge.

Que mais, Sra. Sanford?

— Que mais existe? Que mais provocou a queda de Lúcifer?

Lúcifer era o filho da manhã. Wilson é um professorzinho, nada mais.

— Ele é o nosso filho da manhã, Cabot. E com todo orgulho. E pecando corajosamente através desta guerra, que o senhor adora e ele, para seu crédito, não.

— Como é que você sabe que ele não adora, ou que eu sim? — O rosto de Lodge estava pálido, à exceção da face direita, onde o soco do pacifista acertara. — Ele é traiçoeiro. Hipócrita. Corajoso, também, pelo menos como pecador. Sim, talvez esteja certa. Mas se ele não adora, como a senhora diz, esta guerra, deve admitir que ama a si mesmo e sua glória, e talvez não seja diferente de...

— Reconheço, Cabot. O Lúcifer é você! — Caroline estava aturdida de fúria; e de tristeza, também.

— Eu? — Lodge recuou um passo, como se para evitar um segundo soco no mesmo dia. — Lúcifer?

— Curioso — fez Henry Adams, que aparecera num passe de mágica. — Deus nada tem a dizer de inteligente em qualquer parte de O Paraíso perdido, ao passo que todas as palavras de Lúcifer são arrebatadoras, o que o torna bem diferente do nosso querido Cabot,

— Está vendo? — Lodge sorriu para Caroline. — Vou deixar que coloque o Sr. Wilson no grandioso papel satânico. Mas lembre-se, é ele, e não eu, quem sofreu a queda, está caindo...

— Mas Lúcifer levou consigo vários outros anjos. — Milton começava a dançar na cabeça de Caroline.

— Eu lhe juro que Cabot teria permanecido em segurança no Céu, junto ao trono de Deus, como líder da maioria, cantando hosa­nas — disse Henry Adams.

— Isto é porque venho de Boston, onde os Lowell só falam com os Cabot e só eu posso falar com Deus.

Caroline perguntou-se se alguém que ela conhecia na América seria agora morto na guerra que na semana anterior arrebatara, aos cinqüenta anos, seu meio-irmão favorito, o príncipe Napoléon d'Agrigente. Plon estava no quartel-general de seu regimento, numa fá­brica de papel perto do rio Somme. Houve um bombardeio durante a noite. No dia seguinte o corpo dele só foi identificado por causa de uma cigarreira de ouro, amassada, na qual suas iniciais entrelaçavam-se às de uma dama desconhecida de Caroline, como sem dúvida também da viúva dele. Embora Plon não fosse muito mais jovem que o senador Lodge, ele insistira em voltar ao regimento ao qual, para fins ornamentais, fora ligado. Enquanto sorria calorosamente para Cabot Lodge, Caroline desejava, com a maior sinceridade, que ele estivesse no centro gelado do inferno.

 

O cheiro de salsicha frita deliciou as narinas de Jess quando ele entrou na metade dos Harding da casa na Avenida Wyoming 2314. A Duquesa mantinha o marido bem alimentado e tão abstêmio quanto possível, considerando-se a paixão dele por pôquer, bourbon, tabaco e pela companhia daqueles tentadores insidiosos, os políticos.

É você, Jess? — A voz do andar superior parecia a de um corvo.

— Sou eu, Duquesa.

— Já tomou café?

Não, senhora.

Bem, está muito atrasado. Vá e sente-se.

Jess sentou-se na moderna janela em rotunda que dava para um quintal vazio. A casa, ainda sem acabamento, não estava intei­ramente pronta, ao contrário da bela casa dos Harding èm Marion, com seus inúmeros toques sutis de decoração que lembravam não apenas todos os outros lares opulentos de Marion mas a residência da própria mãe de Jess ali perto, em Washington Court House, para não mencionar o ninho, há muito planejado mas nunca terminado, para Roxy, que preferia morar em apartamento, deixando Jess en­frentar sozinho o horror do armário do andar térreo. Jess sentiu lágrimas nos olhos ao pensar em Roxy. O médico avisara que como um caso na fronteira da diabetes e pressão alta ele estaria sujeito a acessos súbitos de lágrimas, por motivos físicos, não sentimentais. Harry Micajah Daugherty apareceu, vindo do escritório, um charuto apagado na mão enorme.

Oi, Jess.

Quequiá?

Esse era o cumprimento costumeiro de Jess para qualquer pessoa que ele tivesse conhecido em sua cidade natal e, com freqüência, para aqueles que ele não conhecia mas encontrava por acaso nas vi­zinhanças do tribunal, centro de origem de seu mundo que agora estendia-se não apenas até Colúmbia e o palácio estadual, mas à imperial Washington e ao Capitólio.

— Há que as coisas vão ferver hoje, sem dúvida.

Daugherty assobiou desafinadamente a canção que acabava de citar e que tornara-se ligada à Guerra Hispano-americana em geral e ao herói de monte San Juan, Theodore Roosevelt, em particular.

— Dizem que T. R. chegou à cidade esta madrugada.

Daugherty sentou-se numa poltrona funda, cujo forro estava li­geiramente torto, como os olhos de Daugherty. Jess nunca conseguira decidir se olhava para o castanho ou para o azul. Por motivos esté­ticos, ele preferia a qualidade cristalina do azul; em questões de confiança, porém, preferia a sinceridade canina e caseira do cas­tanho, apesar de seu leve cacoete inconsciente e de um toque de estrabismo. Fora isso, Harry M. Daugherty era um político inteira­mente comum, corpulento, com 57 anos e pequena quantidade de cabelos lisos e grisalhos; nenhuma barba e, salvo uma crispação ocasional, nenhuma expressão facial tampouco. Daugherty passou a assobiar três notas em escala ascendente.

Como vai a madame? — Jess perguntou.

As notas agora eram assobiadas em escala descendente. Daugherty sacudiu a cabeça, desfranziu os lábios.

Nada bem, rapaz, nada bem. Uma mártir, aquela garota. Mártir da artrite.

E, como fazia com tanta freqüência a menção da esposa inválida, Lucie, ele pôs-se a assobiar, com um ligeiro tremolo, Loves old sweet song. Até a severa Duquesa era obrigada a admitir que aque­la era uma verdadeira história de amor, em marcante contraste, Jess sabia — adorando saber tudo sobre seus grandes amigos —, com o casamento dos Harding. Mas a Duquesa era cinco anos mais velha que o senador. Aliás, tinha a mesma idade avançada que Harry Daugherty; e as mulheres feias que eram mais velhas que os mari­dos estavam acostumadas a tirar a vareta mais curta, como se dizia no condado de Fayette.

Harry ficara muito satisfeito com o modo como Jess organizara o encontro com Madame Mareia. Até então, a Duquesa nunca le­vara realmente a sério a idéia de Warren e ela na Casa Branca. O Senado servia-lhe muito bem. A Warren também, ela dizia, e ele repetia. Mas o que Warren dizia e o que pensava eram com freqüência duas coisas, diferentes, segundo Harry Daugherty, que conhecia Warren ou W.G., como o chamava melhor que ninguém.

Vinte anos antes, quando Daugherty começara a perceber que sua própria carreira nunca chegaria a muito mais do que chefe de partido, ele decidira encetar uma carreira brilhante por procuração. Quando conheceu o extraordinariamente belo Warren Gamaliel Hard- ing certa manhã bem cedo, no jardim do Globe Hotel de Richwood, a uns vinte quilômetros de Marion, ele decidiu no mesmo instante que aquele belo e jovem legislador estadual e jornalista iria alcançar as estrelas, ou pelo menos assim Daugherty contava agora; quando o fazia, W.G. sorria uma metade daquele seu sorriso e fixava no espaço os olhos semicerrados, a cabeça meio de lado. Jess conhecia ambos havia tempo suficiente para ter ouvido essa história tornar-se cada vez mais enfeitada, à medida que W.G. progredia em zigueza­gue, com muito mais zagues do que qualquer deles tinha imaginado. Depois de dois mandatos no Legislativo estadual, W.G. zagueara para vice-governador do estado; cumpriu um mandato; voltou para a direção do lucrativo Marion Star com uma ajuda considerável da Duquesa, que era inexorável quando se tratava de cobrar dívidas atrasadas. Seis anos depois, em 1910, W.G. zagueou desastrosa­mente quando concorreu a governador e perdeu. Dois anos mais tarde, porém, Daugherty mudou a sorte de Harding quando mano­brou os magnatas republicanos para que deixassem Warren fazer o discurso de indicação de William Howard Taft na convenção do partido. Em questão de horas, o jovem político bonitão, altissonante, grisalho, de sobrancelhas negras, tornou-se uma figura nacional; e dois anos depois, em 1914, foi eleito para o Senado dos Estados Unidos na primeira eleição em que os senadores foram escolhidos, não pelos legislativos estaduais, como os patriarcas tinham desejado, mas pelo próprio povo. Agora Daugherty fazia planos para colocar seu amigo na Casa Branca. O que W.G. pensava de tudo isso era um mistério para Jess. O que a Duquesa pensava era freqüentemente verbalizado: "Já conheço o interior da Casa Branca. Sem gosto e sem refinamento, o que talvez seja culpa dos Wilson. De qualquer maneira, como uma pessoa agüenta tanta gente em volta o tempo todo? Ora, não se pode dar meia-volta sem ver alguém escondido atrás de uma planta, de olho na gente."

A Duquesa encontrava-se agora na sala, ocupada em arrumar, o que significava jogar os tocos de charuto na grelha da lareira a carvão.

Onde é que vocês dois vão encontrar o coronel Roosevelt?

Na casa da Sra. Longworth. Sua casa favorita, Duquesa, depois da Casa Branca.

Daugherty gostava de implicar com a Duquesa. Como ela não tinha senso de humor, tolerava bastante bem as brincadeiras à sua custa.

— Ainda não botei os pés lá. Nem ela aqui. E. Eu. Sou. A esposa. Do senador. De Ohio — soletrou a Duquesa. — E Nick Longworth é só o representante de um bando de vadios alemães de Cincinnati. Coisa que não seria hoje, se Warren não o tivesse ajudado depois que ele apanhou em 1912, è foi muito bem feito para aquele bêbado indecente.

Bom, ele agora está no Congresso. E Alice ainda é a filha do Presidente...

— Ex-Presidente. Tão presunçosa! Com aquela cara pintada. E os cigarros. E — a boca fina da Duquesa tornou-se uma fresta, como a de uma caixa de correspondência — a cocaína.

Jess endireitou-se na cadeira. Era para isso que ele vivia: o interior verdadeiro de tudo. Quequiá? A resposta vinha agora.

— Como sabe disso?

— O dentista. — A Duquesa parecia muito satisfeita consigo mesma. — O meu dentista. Ê dela também. Ele lhe dá as receitas. Ele mesmo nie contou. Ela tem aquele problema no queixo desde que levou um coice na cabeça. Bom, ele lhe dá cocaína, e agora ela pede cada vez mais, dizendo que está viciada.

Harry suspirou.

— Falando como advogado, Florence, se a parte culpada admite a culpa assim, ela não é realmente culpada. Só está gracejando, o que é bem o estilo dela.

— Não há coisa alguma que eu não saiba sobre dentistas, Harry — foi a resposta sisuda, embora algo tangencial.

O senador dos Estados Unidos Warren Gamaliel Harding, republicano de Ohio, entrou na sala, carregando o paletó do fraque sobre um dos braços. Usava suspensórios de um vermelho brilhante e um colarinho duro destacável, de um branco de neve em contraste com sua pele cor de azeitona, cujas feições regulares eram ligeira­mente brutas, para satisfação daqueles que gostavam de crer na lenda

jamais inteiramente desacreditada de que os Harding eram uma família negra que só recentemente, na penúltima geração, passara a ser branca.

Harry, Jess, Duquesa...

A vòz parecia um trovão vindo do peito e do abdome altos. Embora Harry não tivesse ultrapassado ainda a sutil fronteira entre o corpulento e o gordo, já havia uma agourenta unidade e falta de demarcação entre o estômago e o peito, algo aliviada pelo hábil cai- mento das calças.

Vão tomar o café da manhã, rapazes.

Não dá. A Duquesa foi firme. Tillié já tirou a mesa.

Jess ajudou W.G. a vestir o paletó do fraque. Daugherty obser­vava atentamente a sua criação. Jess, porém, perguntava-se às vezes se não podia ser o inverso. Daugherty falava sobre estratégia de ma­nhã, à tarde e à noite, ao passo que W.G. apenas contemplava a distância, sorrindo do que quer que visse lá. Raramente comprome­tia-se com alguma coisa; raramente dava uma opinião política, ao contrário dos solilóquios eruditos a respeito das coisas que encon­trava em sua leitura favorita, as páginas esportivas dos jornais. No entanto, sempre que Daugherty discutia a eleição de 1920, seu graal em comum, era W.G. quem parecia orientar a discussão, como fazia agora, sentado numa velha cadeira de balanço, folheando um maço de cópias a carbono de telegramas e cartas, enquanto a Duquesa dirigia-se aos fundos da casa para tiranizar a criada.

Bem, aqui temos o primeiro telegrama do coronel. No mês passado. Ele está feliz, como podem imaginar. Patriotismo, prepara­ção. E assim por diante. ; Harding ajeitou os óculos. — Compro­meti-me a conseguir-lhe uma "divisão Roosevelt", que ele próprio ia reunir.. Voluntários. Voluntários! Harding suspirou. Não sei o que vou poder dizer a ele. Agora... — Harding deixou a frase por terminar.

Daugherty estava de pé, chegando lentamente ao ponto de ebu­lição, como o motor de um Ford Modelo T, pensou Jess, que invejava ao amigo brilhante não apenas o cérebro formidável mas também a energia que ele próprio conseguia pôr em funcionamento.

Você fez tudo que pôde, W.G. Conseguiu colocar sua emen­da, a emenda Harding, no projeto de lei sobre o Estado de Prepara­ção, e ela foi aprovada; não é culpa sua que Baker e Wilson tenham se recusado a obedecê-la, ignorando a vontade do Congresso, por causa da febre de guerra...

Não faça um discurso — pediu Harding em tom calmo. — Faz mal para a digestão, tão cedo assim. A minha dispepsia está começando a agir.

— Então, o que vai dizer ao coronel? — Daugherty deixou-se cair numa poltrona.

— Três, não um. — O sorriso de Harding era angelical.

— Três de quê?

— Vou dar um jeito para que quando vier o próximo projeto de lei a respeito da convocação militar, fique estipulado que o co­ronel reúna não apenas uma, mas três divisões de voluntários, exata­mente como fez durante a guerra com a Espanha, quando incentivou os corajosos a se 'alistarem em defesa da nossa bandeira! — W.G. arrotou baixinho, castigado por desobedecer seu próprio regulamento contra discursos matinais.

— Vão derrubar você. — Daugherty foi direto. — Wilson não dará ao coronel sequer o encargo de cavar as fossas das latrinas.

Harding guardou os papéis.

— Isso será entre o Presidente e o coronel. Eu terei cumprido meu dever para com o coronel, que é tudo que importa, não é, Harry? — O olhar de Harding era de inocência.

Daugherty assentiu.

— Bom, é danado de esperto, W.G., de verdade. Você é a única ligação que há entre aquele maluco e os republicanos ortodo­xos, e se ele quer mesmo unir-se a nós...

Ele quer, tanto quanto nós queremos nos unir a ele, mesmo que ele tenha dividido o partido em dois e facilitado a eleição dos democratas, que é o que ele agora mais lamenta. — Harding tornou a acender o charuto apagado que tinha na mão. — Acho — disse finalmente, em tom sonhador, exalando fumaça azulada — que vou sugerir-lhe que da próxima vez ele seja nosso porta-estandarte.

Por quê? — Daugherty mostrou-se alerta de repente, o olho castanho piscando rapidamente.

— Bem, Hughes deu com os burros n'água, e Taft está sempre fora, de modo que quem sobra? — Harding sorriu para Jess, como se este fosse uma delegação de mulheres a favor do voto feminino.

— Você sabe quem sobra. — Daugherty desviou o olhar.

Mas Harding nunca, pelo menos na presença de Jess, reagia à provocação de Daugherty.

— Se ele conseguir suas divisões e for para a guerra, voltará como herói pela segunda vez. ..

De modo que é melhor que ele não consiga.

Imagino que seja exatamente isto que o Sr. Wilson está dizendo a si mesmo esta manhã. De qualquer maneira, como sempre, quero que meus amigos fiquem felizes.

O coronel Roosevelt é seu amigo? — Daugherty deu uma risadinha.

Ah, é, sim. Ou vai ser, depois de hoje.

Para alegria de Jess, ele teve permissão para acompanhar seus grandes amigos à casa da Sra. Nicholas Longworth na Rua M. A manhã mostrava-se úmida, o sol pálido, a imprensa superexcitada. Uma dúzia de repórteres e fotógrafos postavam-se defronte à estreita casa de tijolos vermelhos. Quando viram o senador Harding, rodearam-no, fazendo perguntas. Jess achava emocionante pensar que acabara de ver esse homem tão importante em casa, de suspensórios à mostra, ao passo que a imprensa, olhos e voz do povo, devia con­tentar-se com um mero vislumbre formal, uma breve falação — a palavra favorita de Harding para descrever um discurso — e um mistério.

— Calma, rapazes. Eu sou apenas o proprietário do Marion Star, um jornal de cidade pequena, não importante como os de vocês, e... Epa! Ali está o World, é melhor eu ficar de boca fechada.

W.G. conversou durante alguns minutos, distribuindo simpatia mas nenhuma notícia. Depois entrou na casa, seguido por Daugherty e Jess.

O saguão estava apinhado de jornalistas da ala progressista, além de amigos do grande homem. Embora Jess odiasse todos os progressistas sem exceção, Harding sabia exatamente como levá-los. Mas Alice não pretendia permitir-lhe qualquer papel em sua casa que não fosse o de cortesão, se não suplicante, do rei-guerreiro:

Senador!

Pegou-o pelo braço e levou-o para a sala de jantar. Jess olhou para Daugherty — que fazer? Como se tivesse sido chamado, Dau­gherty marchou diretamente para a sala de jantar e Jess fez o mesmo, com profunda consciência de que estava no palco da história, pois à cabeceira da mesa sentava-se Theodore Roosevelt com o senador Lodge à sua direita e meia dúzia de políticos importantes. Jess fez-se invisível junto a uma cristaleira cheia de presentes de casamento ainda sem uso, como ele pôde perceber com seu olho de dono de loja.

A entrada de Harding foi como um choque elétrico. Roosevelt pôs-se de pá num salto. Lodge levantou-se bem devagar. O que quer que pensasse de Harding — e Jess tinha consciência do desprezo social que aquela gente tinha pelas pessoas simples como W.G. e a sua Duquesa — a presença de Ohio naquela sala, com toda a riqueza daquele estado, sem mencionar os votos do eleitorado, despertava o respeito até mesmo daquele coronel gordo e agitado.

— Sr. Harding! — Apertaram-se as mãos. — Não sabe o que isto significa. Jamais esquecerei sua lealdade, senador. Jamais. Não estou falando em lealdade a mim. — Roosevelt voltou-se para os outros, pegando Lodge em pleno bocejo. Mas Jess percebeu então que o coronel não vira o bocejo porque o olho que ele voltara para Lodge era visivelmente cego, atingido, dizia-se, por uma bola na Casa Branca. — Estou me referindo ao país inteiro. No Senado, só o Sr. Harding percebeu a necessidade de voluntários, além dos con­vocados.

— Só ele? — murmurou Lodge.

Mas Roosevelt andava pela sala de jantar, a voz erguida. No saguão, Alice conferenciava com o marido de olhos tristes, Nick, um homem calvo, de bigode cheio, que vinha de uma das maiores famílias de Cincinnati e conhecia os McLean melhor que ninguém. O velho John McLean começara sua carreira em Ohio ao herdar o Cincinnati Examiner; mais tarde comprou o Washington Post. Jess tinha bastante orgulho do seu estado natal: três presidentes recentes, Hayes, Garfield, McKinley; além dos Longworth, os McLean — e Harding?

Harding finalmente conseguia dizer alguma coisa.

— Eu estava passando por aqui — disse, com um gesto tímido de cabeça. E era mesmo tímido, pelo menos na presença daqueles que nunca se esqueciam das origens dele, ou deles. — De modo que pensei em vir cumprimentá-lo, coronel, e dizer-lhe que não importa que tipo de lei de alistamento tenhamos a seguir, haverá uma emenda Harding pedindo três, talvez quatro, divisões de voluntários, e quanto mais cedo permitirmos que o senhor as reúna, coronel, mais cedo teremos ganho esta guerra.

Enquanto Roosevelt segurava a mão de Harding entre as suas, Jess percebeu que o rosto famoso era acinzentado; da mesma cor eram também o bigode e os cabelos; ao passo que por trás do pincenê empoeirado havia lágrimas. Aos 58 anos, Roosevelt era um homem muito idoso. O fato era que quase morrera no ano anterior, do uma febre que apanhara caçando em alguma floresta sul-ame­ricana.

Eu lhe juro, senador, que saberei honrar a sua confiança, e quero lhe dizer o que pretendo dizer ao Presidente hoje. — A voz alta baixou de súbito para um cochicho. — Eu próprio irei para a França com as minhas tropas, à frente delas, e não retornarei. Porque sei que três meses na guerra vão acabar comigo...

Lodge interpôs:

— Acho, Theodore, que se você conseguisse convencer o Sr. Wilson de que não vai voltar da guerra, conseguiria sua divisão hoje mesmo.

Roots já fez esta piada de humor negro — disse o coronel, um homem demasiadamente grandioso para ter senso de humor.

Alice apareceu à porta:

— O Sr. Tumulty acaba de ligar da Casa Branca. O Logotécnico vai receber você ao meio-dia.

— O Sr. Presidente Logotécnico — Nick corrigiu Alice.

Jess perguntou-se que coisa seria um logotécnico; provavelmente alguma coisa horrível. O coronel gostava de palavras difíceis e contundentes.

— Ótimo! Ótimo! — O coronel bateu palmas. Alice serviu café de um enorme bule sobre o aparador.     Vou chegar como

mendigo. De joelhos. Chorando...

- O.Sr. Wilson vai gostar disso — disse Lodge sabiamente.

Então W.G. assentiu para Harry: hora de ir. Porém, quando os políticos de Ohio levantavam-se, preparando-se para sair, houve um tumulto entre os repórteres no saguão, pois chegavam mais três visitantes. Jess reconheceu o democrata James Burden Day, que che­gara ao Senado em 1915, no mesmo ano que Harding. Com Day estava um casal alto e esguio, o homem ocupado em desviar os repórteres e a mulher tentando em vão colocar o grande chapéu ou tirá-lo de vez.

— Senador Day! — O coronel deu em Burden um forte aperto de mão.

— Sou seu acompanhante à Casa Branca — fez Burden. — Caso o senhor tenha esquecido o caminho. O Presidente achou que o senhor iria precisar da proteção de um democrata.

Democratas por toda parte! — Roosevelt beijou a mulher na face. — Pare de mexer neste chapéu, Eleanor. Agora é tarde demais para colocá-lo ou tirá-lo.

Acho que enfiei um grampo de um lado a outro da cabeça. — A voz era alta e musical.

Era a sobrinha do coronel, a respeito de quem Jess já lera, e o marido, outro Roosevelt, chamado Franklin. Como secretário da Marinha de Wilson, Franklin tinha sido bastante cortejado por Daugherty, que estava sempre interessado nos departamentos do governo que lidavam com contratos.

— Bem, coronel. — O sorriso de Franklin era ainda maior do que o do primo Theodore; felizmente os dentes não lembravam um cemitério da Nova Inglaterra. — Se alguma vez- precisamos de alguém aqui e agora, este alguém é o senhor.

— Vamos esperar que esse Presidente de vocês concorde. Já tenho mais de mil nomes. — O coronel deu um tapinha no bolso da carteira. — Voluntários, prontos para assinar no instante em que eu pedir.

— Tenho certeza de que não haverá problemas. — O jovem Roosevelt era todo simpatia, leveza e rapidez de olhar. — Imediata­mente apertou a mão de Lodge; depois voltou-se para Harding. — Espero que nosso golfe em Chevy Chase ainda esteja de pé.

— Sábado — assentiu W.G. — Se o tempo e a Duquesa per­mitirem. Agora, coronel... — Harding dirigiu-se a Roosevelt, que lhe dera as costas para voltar-se para o primo.

— O que eu não daria para estar no seu lugar, Franklin! E com a sua idade, também.

— Mas o senhor esteve em meu lugar em 1898 e nos deu as Filipinas. Temo não conseguir a mesma oportunidade.

Provavelmente não vai. Foi uma sorte rara encontrar o almirante Dewey a tempo, e o pobre Sr. Long sempre fora da cidade.. .

— Ao passo que o meu pobre Sr. Daniels está sempre na cidade, com o Presidente.

O sorriso do jovem Roosevelt tinha algo de falso, pensou o perito Jess, mesmo para um político do tipo grã-fino, que falava mais como um inglês do que como um americano.

— Ah, não estou falando do Departamento da Marinha. Uma vez começada a guerra, qualquer pessoa tem capacidade para ocupar esse posto.

O sorriso de Franklin era fixo, ao passo que os olhos cinzentos, pequenos e muito juntos, estavam fixos em seu primo gorducho, que se pusera agora a andar de um lado para o outro, braços em movi­mento, exatamente como Jess achava graça de vê-lo e aos seus imi­tadores durante tanto tempo em sua vida.

Não. A sua oportunidade é mais como a minha agora. Lutar! Alistar-se. Como soldado, se necessário. E ir para onde as coisas estão acontecendo. Nada é mais adequado a um homem do que lutar por seu país, com as mãos nuas, se necessário.

— Mas, tio Ted... — A esguia Sra. Roosevelt era ao mesmo tempo firme e tímida. — Qualquer pessoa pode dar tiros, ao passo que muito poucas têm a experiência de Franklin, quatro anos no Departamento da Marinha...

— Trabalho de. burocrata! — O coronel aplicou um murro poderoso no tampo da mesa de jantar. — As recompensas perten­cem ao guerreiro, ao herói, não ao funcionário que fica em casa em segurança, protegido pelos soldados.

Embora o sorriso de Franklin estivesse no lugar, as bochechas enrubesceram. Mas ele falou calmamente.

— Devemos servir onde podemos fazer o melhor pelo país, não por nós mesmos.

Isto era dirigido ao primo famoso, que de súbito rilhou os dentes ameaçadoramente, três vezes; depois bradou:

Se está querendo insinuar...

Mas a voz de Alice Longworth foi mais alta que as outras:

— Ah, ótimo! Uma discussão! Papai,,agarre-o. Use aquela sua chave de pescoço japonesa. ..

— Eu creio que... — começou o senador Harding, aproxi­mando-se do coronel, com Jess e Daugherty a cada lado.

— Tente o que chamam de gancho de direita — disse o elegante senador Lodge —, do tipo com que recentemente derrubei um pacifista...

— Tente isto — fez Alice.

Para o espanto de Jess, ela desapareceu por um instante. Então todos explodiram em risadas. Alice tinha dado unia cambalhota de costas, terminando de pé, em perfeito equilíbrio, o vestido quase no lugar.

Francamente, Alice!

A prima Eleanor não achara graça. Mas Jess ficou maravilhado. Mal conseguia esperar para contar à Duquesa que o dentista estava certo e que a orgulhosa Alice era realmente uma viciada.

Jess sentiu genuína tristeza em deixar a casa da Rua M, onde, pelo menos naquele momento em particular, estava focalizada a atenção de todo o país; e no entanto, à exceção do privilegiado Jess, ninguém tinha conhecimento da baixeza e das altas tragédias que aquelas paredes encerravam, envernizadas, como se, por assim dizer, com a glória mundana dos Roosevelt. Jess sempre tivera vontade de ser detetive. Agora sabia que tinha talento para ser um dos grandes, como o personagem Nick Carter, baseado no verdadeiríssimo Sr. Pinkerton, cuja glória continuava ainda, mesmo depois de sua morte, na agência que levava seu nome. Se não fosse pela loja e pelo medo de escuridão, Jesse Smith poderia ter deixado sua marca no mundo da investigação. Agora satisfazia-se com o que conseguira, com sua posição no interior do alto-mundo, onde sabia coisas tais como quem era secretamente viciado e quem era secretamente candidato à Presidência.

Roosevelt vai concorrer foi o comentário melancólico de Daugherty quando os três homens entraram no bonde elétrico quase vazio, a caminho do Capitólio.

Por isso estou no time dele.

Harding, estava de bom humor; sorriu para uma velhinha, que imediatamente virou-se para olhar pela janela a Avenida Pennsyl- vania, vasta e erma em sua lama de abril.

Se ele conseguir ir para a França, vai conseguir a indicação. Daugherty mastigava um charuto apagado.

Ele não vai para a França.

Harding ajeitou as sobrancelhas espessas com o polegar umedecido. A velhinha agora o observava com obscuro horror.

Então, se Wilson não o deixar ir, ele realmente terá a indicação garantida.

Harry, você às vezes enxerga longe demais. Harding vol­tou-se para Jess, que segurava um exemplar do Tribune. — Dê-me a página esportiva, Jess.

Fico imaginando o que Burden Day estava realmente fazendo na casa dos Longworth comentou Harry arregalando os olhos, tanto o marrom quanto o azul, para a aterrorizada mulher.

Ele é o acompanhante, Harry. Para levar o coronel do fogo para a frigideira. W. G. mergulhou na página esportiva. Bem, aqui está a verdadeira história de por que o capitão do time de futebol americano do Exército não vai jogar contra a Marinha. Por causa do trote, diz aqui. Ele trancou um cadete no armário do ves­tiário, saiu e se esqueceu do rapaz. Que coisa mais idiota!

— Isto é que é ser distraído comentou Jess, que admirava o capitão do Exército ainda mais que a qualquer dos outros deuses do futebol, inclusive Hobe Baker.

Imagino que vão diplomar todos os alunos de West Point c Annapolis um ano antes, por causa da guerra.

Daugherty contemplou o prédio dos Correios, que a Jess sempre parecia um dos castelos do Reno, tão amados por Carrie Phillips, que tivesse se extraviado no Potomac.

— Lembra-se daquela finta dele? W. G. suspirou. Linda. O que eu não daria para fazer uma coisa assim, aquela distância toda...

 

Burden Day tinha sido realmente escolhido pelo próprio Presi­dente para conduzir o coronel Roosevelt através da massa de jorna­listas no pórtico norte; não que alguém conseguisse controlar o coronel, que trouxera consigo alguém chamado Julian J. Leary como um abre-alas extra. No carro, Burden achara Roosevelt surpreenden­temente pequeno, até mesmo fraco, até terem chegado ao portão de carruagens, onde foram recebidos por uma equipe de cinema, uma dúzia de jornalistas e fotógrafos encasacados e o Serviço Secreto, cujo número dobrara desde a declaração de guerra. De todo o país vinham histórias assustadoras: os germano-americanos marchavam sobre Washington fortemente armados, ao passo que os espiões ale­mães estavam em toda parte, com dinamite, preparados para eliminar do mapa a cidade de Washington.

Havia um certo frio no ar. Burden e Leary ajudaram o coronel a sair do carro. A certa distância, no gramado, os lilases estavam entre botões e flores desabrochadas é sempre em abril, Kitty dissera inesperadamente nessa manhã, que os presidentes são assassi­nados, as guerras são declaradas, a república é ameaçada. Teria algo a ver com o despertar da primavera, com a ressurreição da vida? Então por que havia tanta morte em abril, e tão pouca glória? Ex­cetuando-se, naturalmente, o baile de gala anual da Páscoa dos McLean em sua propriedade senhorial, Amizade.

Coronel! gritaram uma dúzia de vozes.

Roosevelt voltou energética e subitamente à vida e começou a representar o papel de si mesmo, o braço, esquerdo movimentando-se vigorosamente enquanto a mão direita esmurrava, de vez em quando, a palma esquerda. Parecia quase exatamente o Theodore Roosevelt que dominara a imaginação do público durante vinte anos, reinando naquela casa por quase oito deles.

— O Sr. Wilson vai disputar o terceiro mandato? — perguntou um jornalista.

Faça esta pergunta a ele. Eu não farei. Agora estamos além da política. Todos nós. É a guerra. Não somos democratas nem republicanos.

Como todo político, Roosevelt conseguia tecer esse tipo de teia sem qualquer esforço, mas Burden observava-o, mais que ouvia, e percebia como os olhos dele eram opacos enquanto um segundo rosto redondo agora rodeava, ominosamente, o primeiro. Era contra a na­tureza que T. R. ficasse velho; mas a natureza tinha sido vencida pelo tempo. Agora um velho prematuro de 58 anos imitava a si mesmo com plausibilidade cada vez menor, principalmente quando se cansava. Mas Burden acreditava quando ele dizia que desejava conduzir seus homens no combate e morrer no campo de batalha. Sabia também que, velho ou não, patriota ou não, Theodore Roosevelt retornara ao centro do palco do partido e não havia pessoa alguma, incluindo Wilson, que pudesse impedi-lo de voltar como soberano àquela casa em que agora entrava como um suplicante temporário.

No saguão de entrada, alguns empregados antigos esperavam para cumprimentar o coronel, que falou com cada um com muito carinho. Possuía o mesmo que todos os bons políticos: o dom da intimidade com desconhecidos, a capacidade de cortar toda a timidez e as abordagens preliminares e ser ele mesmo, ou algo bem parecido. Todos bons políticos, com a possível exceção da figura esguia agora parada, solitária, à porta do Salão Vermelho, observando, como num teatro, o desempenho do rival, que o acusara não apenas de ser um horrível escrevinhador ou logotécnico mas também um covarde, o pior epíteto rooseveltiano, já que o coronel havia, muito antes, convencido a nação, se não a si próprio, que como homem era espantosamente corajoso, tanto moral quanto fisicamente.

De súbito, Roosevelt ergueu os olhos e viu o Presidente; e os dois, simultaneamente, lembraram-se de sorrir. Os dentes compridos e descoloridos de Wilson eram eqüinos, ao passo que os de Roose­velt, embora gastos por décadas de serem batidos e rilhados, ainda eram enormemente bovinos.

Sr. Presidente!

Roosevelt atravessou o saguão de entrada, Burden logo atrás. O Sr. Leary permaneceu com os porteiros e os empregados. Simultaneamente, o secretário de Wilson, Joseph P. Tumulty, um clássico político irlandês da escola de Jersey, surgiu do Salão Vermelho para juntar-se aos cumprimentos. Quando olhos irlandeses sorriem, pensou Burden, certamente existe uma faca. As possibilidades de outras letras para a canção, todas de natureza assassina, eram infinitas. Mas os olhos claros de Wilson eram escoceses, e não sorriam, apesar dos dentes de fora, ao passo que o rosto de Roosevelt era como um coco entalhado, do tipo que os guerreiros polinésios levavam para a batalha.

Coronel Roosevelt, fico muito feliz que tenha tido tempo para me visitar. — O tom era de uma cortesia virginiense assassina. — Entre. Entre. Por favor, senador Day.

Assim, Burden foi convidado a testemunhar um confronto his­tórico. Aqueles homens não se encontravam desde a eleição de 1912. Antes disso, o Presidente Roosevelt fora uma vez a Princeton, sendo recebido pelo reitor, Wilson. Roosevelt, por sua vez, recebera o professor Wilson em Oyster Bay, Long Island. Fora isso, os dois tinham existido um para o outro como simples inimigos, refletindo um ao outro enquanto se desafiavam: Roosevelt pela guerra em qualquer época ou lugar e Wilson pela paz, ou parecendo ser pela paz, sob circunstâncias que tendiam a modificar-se mais do que a retórica erudita do Presidente podia justificar. Roosevelt pelo menos sempre fora a favor da guerra; Wilson, uma vez obrigado a entrar na guerra, não podia mais pintar seu rival como um patrioteiro ex­cêntrico, quando ele próprio era o grande comandante.

Wilson indicou que Roosevelt se sentasse diante da lareira, de frente para a janela, um velho truque que Roosevelt evitou movendo a cadeira de modo que a luz não caísse diretamente em seu rosto. Wilson sentou-se defronte a ele, sorrindo polidamente; Tumulty sentou-se junto à porta numa cadeira de espaldar reto, fingindo não estar presente, ao passo que Burden acomodou-se confortavelmente num sofá meio distante.

Roosevelt olhou à sua volta.

Mudamos algumas coisas — Wilson comentou distraidamente. — Não me lembro ao certo quais.

Bom, houve um Presidente entre nós dois, não me lembro o nome dele, e não fui convidado muitas vezes para vir aqui naquela época.

Burden nunca vira o coronel tentar agradar, senão a alguém mais velho, a um superior. Espantou-se ao ver como o coronel con­seguia ser simpático e juvenil quando desejava alguma coisa.

Não — continuou o coronel. — Sempre penso nesta sala como a sala em que eu disse, depois de eleito em 1904, que não concorreria em 1908.

Eu me pergunto uma coisa — disse Wilson. — Se o senhor não tivesse dito isso, eu estaria aqui agora?

Não sei. Mas sei que o Sr. Taft jamais teria estado aqui — Roosevelt foi incisivo. — Isto eu posso garantir. Mas fiz uma promessa ao país, e cumpri.

Nunca concorrer à reeleição? — Wilson era como um pro­fessor bondoso com um aluno promissor.

Exatamente! Nunca concorrer à reeleição. — Roosevelt deu um sorriso brilhante. — Em 1908. — A porta para 1920 foi aberta com violência. Wilson pela terceira vez versus Roosevelt pela se­gunda por si mesmo, embora na prática fosse o terceiro mandato, pois herdara quase todo o segundo mandato quando McKinley fora assassinado. — Mas tudo isso é passado, Sr. Presidente. Para não dizer outra coisa. Quero que ganhemos a guerra e que lideremos o mundo, e quero fazer minha parte, assim como meus quatro filhos, todos adultos, farão a deles.

Sei disso. O Sr. Baker conversou com o seu mais velho, eu acho. O Sr. Baker ficou muito emocionado...

Quero que eles tenham suas horas intensas de vida glo­riosa, como eu tive as minhas e ainda terei. — Sabiamente, o coronel não deu ao Presidente abertura para uma negativa. — Como do­cumento de governo, considero a sua declaração, com as justificativas, igual às de Washington e Lincoln. Mas é preciso ainda uma coisa para torná-la viva, isto é, que nós, o senhor e eu, inspiremos a nação a levar adiante o seu sonho.

Quando se tratava de lisonjear, Burden espantava-se ao ver como o coronel dava com o mesmo prazer com que recebia. Sendo Wilson, em matéria de simples vaidade, inteiramente humano, inchou-se visivelmente sob os elogios de seu predecessor.

O diálogo corria muito bem, melhor do que Burden sonhara, considerando-se o que os dois diziam e pensavam um do outro — tudo agora, como o coronel declarou com exuberância, "como a poeira num dia de vento, se conseguirmos tornar válida a sua mensagem".

Dessa maneira Roosevelt deu as boas-vindas a Wilson à sua guerra. Então mencionou a divisão de voluntários. Antes que Wilson pudesse responder, o coronel estava de pá, fazendo soberbamente o papel de si mesmo.

Estou disposto a procurar meus conterrâneos e pregar a espada do Senhor e de Gideão. Posso reunir exércitos de voluntários dos melhores, a nata da nação, como já fizemos uma vez na minha época, e também antes, na época de Lincoln...

Mas na época de Lincoln os voluntários foram poucos. A voz de Wilson tornara-se nervosa de súbito, e mais uma vez Burden deixou de ouvir a elegante neutralidade da voz do professor de Princeton e sim a cadência sulina da... que outra palavra, se não liberdade, mas rebelião? Este é o problema que temos de enfrentar. Temos que convocar os jovens. Recrutá-los. Arranjar outra palavra para o recrutamento, se necessário, mas, seja qual for essa palavra, temos pouco tempo e muita coisa a fazer. O Presidente interrompeu-se por um instante. Sei que o senhor acha que eu deveria ter entrado nesta guerra há um ano, mas se eu o tivesse feito, apenas o senhor, que vale dez divisões, me teria seguido.

Tudo isto é passado. O coronel deixou-se cair na poltrona. O senhor é o Presidente. Não eu. A tarefa é sua. Deus vai ajudá-lo. Eu irei lutar, se é que isso vale alguma coisa. Clemenceau pediu-me para ir à França, apenas como um símbolo de nossa vontade de lutar.

Burden ficou fascinado ao ver um político tão habilidoso quanto Roosevelt cometer um erro tão fundamental. O fato de uma autori­dade francesa pedir a ajuda de um ex-Presidente significava a certeza de um veto presidencial.

Toda a Europa o acha fascinante, coronel. Como nós também. Virgínia foi substituída por Princeton. Mas não devemos desencorajar os homens que vamos convocar, formando um corpo especial de soldados voluntários. Antes que Roosevelt pudesse interromper, Wilson continuou rapidamente: Não que não se possa utilizar o espírito do voluntariado e da... da espada de Gideão. Tenho também certa cautela em não permitir que nos tornemos de­masiado apaixonados por um lado ou por outro, e nisso imito o general Washington, talvez, mais do que o senhor, sendo esta a razão e Wilson começou a lançar seu próprio feitiço pela qual desejo a paz sem vitória para qualquer dos lados, se for humanamente possível, já que a vitória de um é a derrota do outro, e se isso acon­tecer os canhões soarão mais uma vez, e haverá mais sangue na próxima geração. De modo que nos apresentei não como aliados dos Aliados nem como inimigo dos povos das Forças do Centro, mas como uma "força associada" para que a paz e a justiça triunfem, assim como a vida!

Habilmente, Wilson afastou Roosevelt do assunto específico da visita; e teceu para ele uma de suas teias verbais, tão plaúsíveis, tão belas e, com tanta freqüência, enganadoras. Wilson certa vez con­fessara a Burden que, sempre que estava diante de alguém pedindo um favor, o modo mais certeiro de desviar o assunto era "controlar eu mesmo a conversa e entrar para o terreno moral. A pessoa geral­mente fica envergonhada de mencionar seu motivo interesseiro". Roosevelt, naturalmente, também conhecia esse truque; e sabia tam­bém quando permitir que uma certa quantidade de fumaça encobrisse interesses conflitantes. Desviou a conversa de sua própria par­ticularidade para a generalidade.

Assim como o senhor e eu nos aliamos, o país inteiro deve fazer o mesmo. O coronel virou a cabeça em direção à janela e à clara luz de abril. Sugiro agora ao senhor, apenas entre nós, o que logo estarei explicando num artigo no Star de Kansas City. Que­rem que eu contribua regularmente para o jornal, todas as semanas, e se houvesse tempo...

Uma leve pausa deixou claro que se o coronél não conseguisse seu comando militar ele seria ouvido regularmente na imprensa como uma oposição não tão leal.

Se Wilson percebeu a ameaça implícita, preferiu ignorá-la. De queixo erguido, a própria retidão personificada, como um patriarca presbiteriano, Wilson assentiu encorajadoramente; e deixou o outro falar. Até então estavam empatados em número de pontos, pelos cálculos de Burden.

Quero mencionar também a imprensa de língua alemã, que desde o início tem sido desleal a este país. Eu fecharia todos esses jornais, como necessidade militar.

Wilson pestanejou, demonstrando surpresa.

Isso não seria... arbitrário? .Eles certamente têm garantida a mesma liberdade...

Estamos em guerra, Sr. Presidente. Lincoln suspendeu o habéas corpus, fechou jornais, e teremos que fazer o mesmo...

Espero que não. Afinal, teremos uma censura militar aplicada a todos. Isso manterá os alemães de rédea curta.

São, também centros de traição; pelo menos, de traição em potencial. Por que correr o risco? Devemos, o senhor deve, encurtar as rédeas de todos em nome da vitória. Muitos traidores em potencial, simpatizantes dos alemães, fingem ser pacifistas, para alegarem... qual é mesmo a expressão deles? "Objeção de consciência". Bem, eu os trataria com consciência! Eu lhes negaria o voto. Se tiverem idade pura lutar e se recusarem a defender seu país, então têm que renun­ciar à sua cidadania.

Wilson aceitava tudo isso de maneira notavelmente tranqüila, pensou Burden. Continuava a assentir com ar educado, ponderado — ponderadíssimo, ao observar em tom calmo:

— Imagino que o Supremo Tribunal poderia encontrar um meio de lhes cassar os direitos políticos.

— O Supremo Tribunal! — Roosevelt esmurrou o próprio joelho com tanta força que chegou a fazer uma careta, e o pincenê soltou-se-lhe do olho, ficando pendurado no peito. — O senhor é o comandante-em-chefe. E esta é uma guerra. De modo que o senhor, o senhor próprio, é ao mesmo tempo Presidente, Tribunal e Con­gresso. Faça o que é preciso fazer, e faça rápido. Finalmente o mundo é quase nosso! — Roosevelt pôs-se de pé. — Temos agora todo o ouro. Todo o poder financeiro. Inglaterra e França, Alemanha e Rússia, nenhum desses países conseguirá recuperar-se deste derramamento de sangue. Seus impérios estão tão arrasados e extintos quanto Nínive e Tiro. Ah, que dias gloriosos o senhor terá!

— Vamos trocar de lugar? — O sorriso de Wilson era genuíno.

— Vamos! Agora mesmo! — Roosevelt soltou uma gargalhada que parecia um rugido. — Ora, se eu tivesse o regimento de volun­tários que reuni em 1898 contra a Espanha, viria aqui como um bandoleiro mexicano e tomaria o poder...

— Eu o ajudaria. — Wilson suspirou. — O senhor tem mais jeito para isso do que eu.

— Também acho — foi a resposta direta de Roosevelt. — Mas a história quis diferente. Se esses estados ainda têm uma estrela de sorte, como tínhamos quando eu estava aqui, o senhor será glorifi­cado, Sr. Wilson, e eu retirarei todas as minhas declarações sub­versivas.

O apelido de logotécnico também?

— Achei que o senhor ia gostar dele. Secretamente, é claro.

Wilson riu pela primeira vez.

— Não gosto. Mas nunca o negaria. Sou mesmo um homem de palavra. Como o senhor — desferiu.

Roosevelt não pestanejou, e sua reação foi tranqüila:

— Mas há também a ação...

Ah, coronel, as palavras são a maior ação que há; as palavras são o que nos liga ao Céu... e ao inferno. No final, assim como no princípio, existe apenas o verbo.

Roosevelt estava agora postado diante da lareira, pernas bem abertas, mãos atrás das costas, exatamente como se postara tantas vezes naquele mesmo local quando era Presidente.

— Então, se o caso é este, devo escolher minhas palavras com mais cuidado — disse, sorrindo.

— Nesta questão, coronel, o juiz é o senhor, não eu.

Burden teve a curiosa sensação do tempo ter duplicado. Estavam em 1917; no entanto, simultaneamente, também em 1907; e havia dois presidentes num único Salão Vermelho.

Então o coronel rompeu o feitiço. Atravessou o aposento em direção a Tumulty, que ergueu-se respeitosamente.

Agora, eis o tipo de irlandês lutador que eu aprecio. — Deu um tapinha nas costas de Tumulty. — Por Deus, Tumulty, você é um homem dos meus! Naturalmente, tem seis filhos...

Burden teve então a certeza de que Roosevelt seria candidato em 1920. Caso contrário, por que decorar o número exato da prole de Tumulty?

Mas vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu o coronel: — Consiga que eu vá para a França e eu o coloco na minha equipe, e a Sra. Tumulty não terá com que se preocupar. — Roosevelt virou- se para Burden: — Senador, o senhor ainda é um rapaz robusto; venha também.

Devo levar minha toga?

— Não. Devolva-a. Já existem muitos senadores neste país. Aliás, senadores demais.

— Nisto concordamos inteiramente. — Wilson levantou-se. — Imagino que me queira voluntário também.

Seria um belo exemplo. — Roosevelt deu uma risadinha.

Eu poderia ir como capelão, imagino.

Não se subestime, Sr. Wilson. Eu o faria encarregado dos grandes canhões. O senhor é um artilheiro nato, como o Sr. Taft e eu descobrimos em 1912. De qualquer maneira, já tem o seu lugar. O primeiro lugar. O senhor é o meu comandante-em-chefe. Vim até aqui para receber minhas ordens.

Roosevelt fez uma continência caprichada, que o Presidente retribuiu com seriedade. Então, num turbilhão de despedidas e pro­testos de amizade, o coronel partiu, deixando Burden com o Presi­dente e Tumulty. Os admiradores de Roosevelt mostraram-se ruido­sos no saguão de entrada. Wilson ergueu os olhos interrogativamente para Burden.

— Bem, foi uma grande experiência — comentou. — Ele parece um garoto crescido.

— Que consegue encantar os passarinhos para que desçam das árvores — completou Tumulty.

— E quanto aos pássaros grandes? — Burden não conseguia imaginar o que Wilson faria.

Mas o Presidente ainda estava impressionado.

— Sempre o achei encantador pessoalmente. Mas agora há nele uma espécie de doçura que não havia antes. Tem quatro filhos — Wilson baixou o tom de voz — e quer todos na guerra com ele... Estou contente por ter filhas. — O estado de espírito de Wilson desanuviou-se. — De qualquer maneira, é difícil resistir a ele. En­tendo o que o povo ama nele.

Burden achou que Wilson soava um pouco invejoso. Como homem público, o Presidente despertava admiração ou ódio, mas nenhuma afeição.

— Mas o que é que o senhor vai fazer? — perguntou direta­mente. — Ele vai conseguir a divisão de voluntários?

— O senador Harding quer que ele tenha três divisões — inter­pôs Tumulty.

Wilson abriu os braços e endireitou-se.

— Se dependesse de mim, por que não? Mas deixo os assuntos militares para os militares. No momento, eles têm medo de que vo­luntários especiais, como esses, arruínem todo o nosso sistema de alistamento. Além disso, ele não é general.

A mão de Wilson descansava agora sobre uma cabeça de bronze de Abraham Lincoln.

— Graças a Deus Lincoln existiu! Quando ensinava história, sabem, eu ensinava Lincoln. E me impressionava ver como ele, quan­do veio a guerra, cometeu todos os erros possíveis. Bem, graças ao mau exemplo dele, não cometeremos esses mesmos erros agora.

— Um dos erros foi nomear generais os políticos da oposição — afirmou Burden, tentando fazê-lo dizer mais alguma coisa.

— Sim — Wilson concordou, e voltou-se para Tumulty. — Veja se o terreno está livre. Não quero fotografia minha com o coronel.

Tumulty e Burden saíram do Salão Vermelho. Através da porta aberta avistaram o coronel conversando com os jornalistas. Tumulty voltou para o salão.

— Ele está sendo filmado pelas câmeras do cinenoticiário Pathé, e não vai se mexer dali.

Wilson então apareceu à porta e, com uma sincronização cômica, digna de um filme de Mack Sennett, atravessou pé ante pé o saguão até o elevador, com olhares teatrais de medo por cima do ombro, como se o perseguisse um fantasma num cemitério.

E foi isso. O coronel não conseguiria sua divisão. Mas havia uma grande chance de que conseguisse mais uma temporada de quatro anos na Casa Branca. De um modo curioso, com ou sem glórias militares, Theodore Roosevelt não podia mais perder. Depois de uma década de ausência, a sorte o acompanhava novamente, o que na sua idade significava até o final.

 

Kitty estava sentada num rochedo acima do regato, atenta à criança, que se aproximava de uma moita de urtiga ao pé de uma nogueira cujos frutos verdes brilhavam ao sol de verão.

— Por que não fazer a sala aqui, dando para o rio, e nosso quarto ali?

— Fica perto demais da estrada.

Burden despiu o paletó e desabotoou a camisa, sentindo-se liberto de todas as coisas mundanas exceto Kitty, que se tornara sur­preendentemente bela à medida que envelhecia; não era mais a jovem de feições algo rudes que ele se sentira obrigado a desposar porque o pai dela era o chefe do Partido Democrata em seu estado. Uma coisa pelo menos Caroline lhe ensinara: nunca esconder seus motivos de si mesmo. Nos primeiros tempos, Caroline o deixava cho­cado. Agora ele a chocava sempre que decidia revelar como eram realmente conduzidos os negócios públicos. Era óbvio que o choque que ela sofria não era moral; ela parecia condenar a falta de método da vida americana, tão diferente da França, onde todos sabiam o que esperar, inclusive a natureza exata do inesperado, quase sempre previsível.

Por outro lado, Kitty era uma política nata, herdeira do pai, o lendário juiz, não apenas como estrategista política mas agora como possuidora da fortuna do finado pai, a ser transformada breve, de ações e títulos abstratos, em madeira, pedra e tijolo.

O próprio Burden nunca conseguira ganhar dinheiro. De uma forma ou de outra o magnífico salário de 75 mil dólares anuais de um senador dos Estados Unidos mal dava para ambos viverem, mesmo estando alugada sua enorme casa em American City. Quando era preciso voltar à cidade para votar ou em campanha, eles ficavam no Henry Clay Hotel, em frente ao capitólio estadual, e fingiam que moravam o ano inteiro na cidade, com apenas uma ou outra visita a Washington.

A primeira parcela da herança de Kitty fora para comprar um acre e meio de terra no Parque Rock Creek, na maior parte colinas cobertas por bosques, cuja vegetação rasteira era tão verde e exube­rante quanto em qualquer floresta. Na realidade, o parque era quase que demasiado selvagem para o gosto de Burden, que segurou a filha pelo avental quando ela estava prestes a enterrar o rosto numa moita de urtiga que em poucas horas deixaria sua vítima coberta de feridas que coçavam e purgavam — um tormento para um adulto, um inferno para uma criança.

— Diana! — fez Kitty, tarde demais. — Afinal, que é que acontece com a urtiga? Jim Júnior tem uma vareta mágica para encontrar essa coisa.

Burden acomodou-se sobre um tronco caído, diante de Kitty, com Diana no colo. Pássaros voavam em círculos silenciosos, tendo passado a temporada de cantoria e acasalamento. Agora eram pais e provedores solícitos, assim como instrutores de vôo dos filhotes — e enlutados por aqueles que caíam no solo.

— O arquiteto diz que aqui deveria ser a sala, de frente para o sul. — Burden tentou em vão imaginar um aposento onde estavam sentados. Floresta ou não, ele preferia o espaço aberto. Ao contrário de muitos garotos criados em fazenda, ele não preferia ficar dentro de casa, contanto, naturalmente, que não tivesse que fazer as tare­fas. — Ela vai crescer aqui — acrescentou, baixando os olhos para Diana, uma criança séria, que ainda não aprendera a falar, e que suspirou.

Kitty pegou um migalha de pão na bolsa. Depois, com a migalha na mão, esticou o braço. O milagre, como Burden sempre o classi­ficava, ocorreu em questão de segundos. Um grande tordo fez vários vôos rasantes para examinar Kitty antes de acomodar-se no pulso dela. Depois pegou o pão no bico, sacudiu-o e ergueu-se até um galho da árvore mais próxima, onde comeu a migalha, observando Kitty.

Como consegue fazer isso?

Sempre fiz.

O relacionamento de Kitty com o mundo animal era íntimo, conspiratório, extra-humano. Todas as criaturas aproximavam-se dela sem medo; e ela não fugia. Quando criança, fizera amizade com um lobo adulto que morria de fome durante um inverno rigoroso. O lobo seguia-a por toda parte, como um cachorro; então, segundo o juiz, enquanto ela estava na escola, o lobo atacara o empregado e o empregado matara o animal em defesa própria. Ao que Kitty res­pondera, com frieza mortal: "Não, papai. Foi você quem o mandou matar." Pai e filha nunca mais tocaram nesse assunto, mas o pai discutira o episódio com o genro, anos depois, e perguntara, per­plexo: "Como é que ela soube, como poderia saber que matei aquele bicho, quando ninguém viu?" Concluiu-se então que Kitty era para­normal, pelo menos com animais e aves. Parecia menos interessada nas pessoas, a não ser como eleitores. Conhecia os planos e os acordos de Burden tanto quanto ele; no entanto, ele tinha certeza de que ela nada sabia sobre Caroline. Suspeitava também que ela ficaria indiferente se soubesse. Estranho, ele pensou, não conhecer a própria esposa tão bem quanto um tordo conhecia. Quando Jim Júnior mor­rera, aos seis anos, foi Burden quem chorou. Kitty simplesmente ocupara-se com os preparativos do enterro; depois discutira com a cozinheira negra por causa do lanche para os acompanhantes, um traço de catolicismo bastante popular naquela região protestante. Esse foi o final do filho deles.

Embora uma brisa fria, vinda do oeste, agitasse os galhos das árvores mais altas, Burden ainda se sentia desconfortável por causa do calor. Mas todos diziam que aquele era o verão mais quente da lembrança, o primeiro verão da guerra.

— Tetos altos. — Kitty ergueu os olhos para a árvore mais alta, um carvalho.

— O mais alto possível. — Burden entendia do assunto. — Fachada normanda. Cantaria em pedra cinzenta. Um terraço. Um lago. Um pórtico lateral...

Vamos esperar que a guerra não atrapalhe.

— As construções continuam. Mesmo que a comida suma. — Burden passou do tronco para o chão, e para as inevitáveis manchas de relva nas calças. — O Presidente com certeza vai ficar preso pela Seção 23.

— Não se pode culpá-lo. — A paranormal animal dava lugar à paranormal política, tendo afastado qualquer tipo de ligação com os seres humanos entre os dois pólos de sua vida.

Estão tentando fazer com ele o que fizeram com Lincoln quando organizaram aquele comitê conjunto do Congresso para tomar conta da guerra.

A mesma coisa — assentiu Kitty.— E tudo enfiado dentro do projeto de lei dos alimentos, que é traiçoeiro. Mas você não vai deixá-lo passar, vai?

Não. Mas vai haver briga feia. Não imagina os mexericos? Ah, os mexericos!

Mais que nunca, o Senado encorajava a excentricidade pessoal. Originalmente destinava-se à nobreza americana ou seus represen­tantes, e os membros eram escolhidos pelos vários legisladores esta­duais, eles próprios pagos pela classe endinheirada. Desde 1913, porém, os senadores eram eleitos pelo povo. Como resultado, surgira na modorrenta instituição um novo tipo de tribuno do povo; e eles adoravam atormentar os cavalheiros nobres da velha guarda. Além disso, como qualquer senador que estivesse na tribuna para discursar podia fazê-lo enquanto agüentasse, raiou uma nova e grande era de obstrução dos trabalhos, e um senador com pulmões de aço poderia, nas últimas horas antes do encerramento da sessão, discursar até morrer a respeito de um artigo qualquer da legislação, ou ameaçar fazê-lo em troca de favores.

Mesmo assim, Burden adorava pertencer a um clube tão pode­roso, no qual encontrara seu lugar como principal defensor do chefe de seu partido, o Presidente-professor, cujo controle sobre a maioria democrata do Senado era, na melhor das hipóteses, frágil. Isso significava trabalho constante para Burden, que devia aplacar — quando não se tratava de subornar — os bryanistas, os isolacionistas, os pró-Alemanha e todo o resto, que preferiam reinar nas co­missões a servir seu Presidente.

— Fico me perguntando com quem ela se casará. — Kitty olhou amorosamente para Diana, quase como se ela fosse um ani­malzinho gorducho que tivesse aparecido à porta da cozinha pe­dindo uma esmola.

Isto não é ruim? — Burden sentiu um frio súbito, e estremeceu. Certa vez especulara sobre o futuro de Jim Júnior, e logo o perdera, levado por uma difteria.

Não. Ela vai se casar nesta casa. — Kitty tinha um certo tipo de clarividência. — E acho que vai ser muito feliz, também.

— É. — Burden não se comprometeu. Kitty gostava dele e ele dela; nada mais.

Seu pai gostava da sua mãe?

Foi uma pergunta inesperada.

— Foi há muito tempo. Não me lembro.

Burden crescera numa fazenda no Alabama, cercado de vetera­nos da guerra perdida, como seu pai. Burden sempre se impressio­nara com o modo como Mark Twain conseguira tornar tão idílico aquele mundo grosseiro, áspero e enlameado — sempre a lama — cheio de mosquitos, carrapatos, calor e serpentes venenosas da cor da lama. Twain, naturalmente, escrevera sobre uma geração anterior, antes da guerra, mas mesmo assim Burden tivera consciência, du­rante toda a sua infância, de que a vida não era feita para ser da­quele modo. Houvera uma queda muito grande, que seu pai, ao con­trário de muitos veteranos, estava sempre ansioso para explicar e descrever, os olhos azuis-claros ferozes e enlouquecidos, como de­viam estar naquele dia em Chickamauga quando a bala feriu-o mas não o matou e ele foi feito prisioneiro. Mais tarde, em meio às ruínas, Obadiah Day recomeçara a vida na lama do delta. Dos filhos — sete, oito? Burden não sabia o número — só dois não morreram de defluxo de sangue, como a cólera era conhecida então. Burden lembrava-se de que grande parte de sua infância parecia transcorrer no cemitério local, vendo as pequenas caixas serem escondidas sob a terra vermelha. Lembrava-se também de horas passadas escutando o pai contar como Eles tinham arruinado o Sul e corrompido os negros, apoderando-se das melhores terras. "Eles" eram uma enti­dade abstrata, composta de todos os ianques, banqueiros, homens da ferrovia e, às vezes, de simples estrangeiros, dos quais os católicos e os judeus eram os piores. Curiosamente, os negros, não importava a extensão de sua indisciplina, nunca eram considerados responsáveis diretos por seu comportamento. Se um crioulo agisse mal, eram Eles que o tinham estragado.

Com o tempo, os Confederados derrotados voltaram-se para a política, a única arma que poderiam usar contra Eles. Os piqueniques políticos e as reuniões dentro de grandes barracas de lona tornaram-se a verdadeira igreja daqueles que tinham perdido suas terras, e Obadiah estava entre aqueles que tinham ajudado a fundar o Partido do Povo para defender o povo; o partido floresceu no Sul em toda parte, e o próprio Obadiah foi eleito para uma série de cargos esta­duais de pouca importância. Então veio o dia em que ele ouviu Burden, aos 14 anos, discursar numa reunião, e alegremente acolheu o filho na grande luta, como João Batista acolhera o Messias às margens do Jordão. Assim, na fronteira do Alabama, James Burden Day veio ao seu reino para fazer a obra do pai e triunfar sobre Eles em nome do povo.

Agora, mais nítida para Burden do que a própria multidão — e toda multidão era para Burden como uma namorada encontrada e perdida ou, mais provavelmente, cobiçada e conquistada — era a imagem do pai, ainda de aparência surpreendentemente jovem, apesar dos cabelos brancos, o olho azul, não coberto pela venda, ainda brilhante, corpo suficientemente esguio para usar o uniforme cinzento dos Confederados com que ele tinha voltado para casa, com a bala que o atingira em Chickamauga pendurada em um fio em volta do pescoço depois que ele insistira em que ela fosse retirada de sua coxa por um médico bondoso para que, se ele morresse, nada que fosse relacionado com Eles ficasse eternamente misturado a seus ossos. Juntos, pai e filho combateram nas fileiras do Partido do Povo até Burden ir para o Oeste, para outro estado, praticar advocacia; e embora nunca deixando de ser, como jurava ao pai e murmurava consigo mesmo, um populista verdadeiro, fora obrigado a iniciar uma vida inteiramente nova num estado novo e empoeirado, ao contrário do seu, velho e enlameado. Obrigado a usar uma ligação de família para conseguir um lugar em Washington no Tribunal de Contas, ele decepcionara o pai. Mas reconciliaram-se quando Burden prometeu ao velho que nunca desistiria da luta, e que quando chegasse o momento ele voltaria para seu novo estado e chefiaria o partido. Quando chegou o momento, ele realmente voltou, casou-se com Kitty e, com o auxílio do pai dela, foi eleito para o Congresso não como um democrata populista, mas como bryanista. O pai não falava mais com o filho. No entanto, Obadiah e sua segunda esposa ainda moravam no Alabama; e embora Burden lhe mandasse um recado depois de sua eleição para o Senado — afinal, não continuava a lutar contra Eles? — não obteve resposta do velho, que no fundo ainda era o rapaz furioso derrubado meio século antes em Chicka­mauga — dois minutos antes do meio-dia, ele consultara o relógio antes de desmaiar. Viver sem o orgulho de tal pai era insuportável para Burden; particularmente quando ele próprio jamais perderu a fé que ambos tinham no povo, no seu povo. O que era um rótulo partidário? O que era... qualquer coisa?

Será você? Kitty ergueu-se e tirou Diana dele. A criança estava quase dormindo ao sol. O cheiro forte e doce da madressilva estava em toda parte, assim como a própria planta, uma tapeçaria verde-amarelada agarrada aos loureiros.

Eu? O quê?

Se o Sr. Wilson não concorrer pela terceira vez, o que ninguém fez.

Kitty não cessava de fazer cálculos, apesar das ocupações com a filha, a casa, os animais selvagens da floresta e que mais? o ar.

É cedo demais para se saber. A guerra vai ser curta. É uma coisa a favor dele. Ele será um Presidente que venceu uma guerra. E ainda jovem. De modo que se quiser, provavelmente vai conseguir.

Não faz mal algum nos colocarmos em posição, caso alguma coisa saia errada disse Kitty, retirando o dedo que Diana, quase dormindo, levara à boca. Se sair, nossa única concorrência será o Sr. McAdoo.

Grande concorrência!

Burden franziu a testa, como sempre fazia quando pensava na enorme vantagem que o genro do Presidente e secretário do Tesouro tinha sobre todos os outros membros do partido. McAdoo já se co­locara em posição de herdar o legado de Wilson, de tal modo que seria impossível qualquer contestação, a não ser que fossem verda­deiros os boatos de corrupção que sempre cercaram o amplo prédio de granito cinzento do Tesouro.

E há também o coronel.

Ele vai ter que morrer um dia. Kitty era docemente im­placável.

Aos 61 anos? Já dono da indicação? Se existe algo que dá vida e saúde, é isso. Quase tão bom quanto uma pensão federal para assegurar a longevidade. Existem continuou Burden, que sempre achava esse fato interessante — 73 viúvas da Guerra de 1812 atualmente recolhendo pensões do governo.

Moças jovens que se casaram com velhos.

Agora são velhas que a pensão tornou imortais.

O motorista negro, Albert, juntou-se a eles. Era nativo de Washington e um esnobe consumado. Durante anos, quando Burden estava na legislatura estadual, Albert referia-se a ele, por trás, como "o senador". A eleição de Burden para o Senado tinha sido, segundo Kitty, mais emocionante para Albert do que para o casal. "Sempre me senti rebaixado naquele lugar com aquelas pessoas sem classe mascando tabaco", Albert costumava dizer. A mãe dele chamava-se Victoria, em honra da rainha; e ela o chamara de Albert, em honra ao príncipe consorte. "Muito psicológico", Kitty explicava, com ar sábio. "Ele é bastante filhinho da mamãe."

Albert lembrou a Burden que este concordara em passear no rio com o subsecretário da Marinha. De modo que Burden recolheu Diana enquanto Kitty recolhia louros para enfeitar a sala Mintwood; e então desceram a colina até a estrada e o carro que esperava.

O Sílfide parecia com o próprio nome — uma embarcação esguia e rápida, de um tipo que Burden não conhecia; mas na realidade ele não entendia coisa alguma de barcos. Porém estava contente com aquele passeio — qualquer coisa para fugir ao calor abafado de Washington.

O subsecretário estava todo de branco, de aparência náutica, assim como Cary Grayson, o médico do Presidente, e sua jovem es­posa, Altrude, a maior amiga de Edith Wilson. Obviamente o sub­secretário da Marinha descobrira que o caminho mais direto até o Presidente era através dos Grayson, e, para sorte de Franklin Roosevelt, Grayson tinha pertencido à Marinha. Era um homem de baixa estatura; e a graciosa Altrude, que tinha a estatura de Edith, agi­gantava-se ao lado dele. Havia outro casal, que Burden não conhecia — "gente da moda", como classificava a nobreza do Leste que ele encontrava de vez em quando em terreno dos Sanford. Finalmente, no novo uniforme de marinheira, escrevente de terceira classe, a encantadora Lucy Mercer, secretária social de Eleanor. O acompa­nhante de Lucy era um rapaz da embaixada britânica.

Depois da partida, Burden livrou-se do paletó e da gravata e pôs-se a aproveitar a brisa fria e algo fétida que vinha do rio Potomac enquanto desciam a corrente em direção ao monte Vernon e ao Chesapeake. Por um instante a frenética cidade em tempo de guerra parecia distante; e também a guerra, apesar de um par de destróieres, se eram mesmo isso, ancorados fora do cais da Marinha.

Enquanto Burden aceitava um uísque com gelo, açúcar e hortelã, Franklin sorria de contentamento.

Se Josephus Daniels nos visse agora. ..

— Certamente a proibição ao álcool não se estende a convi­dados da Marinha.

A todos, inclusive ao Presidente.

Mas Burden percebeu que Franklin bebia apenas limonada, ao passo que os outros estavam agora todos na proa, esperando que o barco passasse pelo monte Vernon, ao qual faria uma saudação, como requeria um antigo costume da Marinha.

Franklin tinha uma conversa agradável. Era muito mais simpático que o primo Presidente, pelo menos para Burden, um especialista nesses assuntos, já que todos em Washington queriam ser simpáticos aos senadores, particularmente àqueles, como Burden, do partido majoritário. Normalmente, Burden não tinha qualquer ligação com a Marinha. As suas comissões eram: a Agricultura, a primeira delas, à qual não deixara de pertencer; Relações Exteriores, como divertimento, e Finanças por grave necessidade, já que essa comissão gêmea da comissão de Modos e Meios, era a fonte de todas as verbas; daí a boa vontade do governo. Porém, como Burden estava em seu primeiro mandato, não dispunha de muito poder, a não ser o poder que lhe advinha de ser a ligação entre os senadores bryanistas e o Presidente, uma posição recentemente cedida pelo senador cego de Oklahoma, que não tolerava o Presidente nem a guerra. Mas a verdadeira ligação entre Burden e os jovens Roosevelt era Caroline e, um pouco menos, Blaise. Os Roosevelt freqüentavam a alta sociedade, mantendo distância de gente vulgar como os Ned McLean.

Onde está a Sra. Roosevelt? — O coquetel era extraordinariamente saboroso; e o sol, filtrado por uma espessa neblina branca, era, pela primeira vez em muitos dias, suportável.

Foi para o Canadá com as crianças. Ficou combinado que eu iria ao encontro dela em agosto. Acontece que... — Franklin fixou os olhos na costa.

Acontece o quê?

Mas Burden sabia. Franklin estava planejando candidatar-se ao Senado por Nova York na eleição do outono.

Você acha que devo concorrer?

— Não conheço muito o estado de Nova York. Mas se eu fosse você não deixaria este emprego. Pediria uma licença.

Franklin riu sem muita alegria.

Farei isso. Se conseguir. Acho que o velho Josephus gostaria de me ver definitivamente longe.

Mas o Presidente...

— ... Tem sido muito compreensivo. Todos me dizem que se eu perder terei um lugar aqui, mas acontece que...

Nova pausa; a expressão "acontece que..." parecia agir como uma barreira para Franklin, que, embora parecesse não ter segredos, conseguia fugir a qualquer intimidade com muito tato.

Acontece que você preferiria não perder.

Exatamente.

Tem o apoio de Tammany Hall?

Não. Eles têm seu candidato. De modo que acho que serei dissidente. Outro tio Ted disfarçado de democrata. — Bebeu ura pouco de limonada e fez uma careta. — Estou com dor de gar­ganta. De falar demais. Falo, falo e ninguém escuta. Sabe, descobri um meio de anular os submarinos alemães. Mas os ingleses não se convencem. E nossos almirantes são tão lentos! A solução, Burden, é a seguinte.

Burden nunca gostava muito de ser chamado pelo primeiro nome, principalmente por alguém não apenas mais novo que ele dez anos mas também tão abaixo dele na hierarquia nacional. No en­tanto, parte da considerável simpatia de Roosevelt estava em levar espontaneamente outras pessoas a um grau de intimidade consigo, sendo ele membro da nobreza soberana que ainda possuía muitos representantes num Senado que tinha sido inteiramente deles até que a democracia tão rudemente arrombara a porta e deixara entrar, entre outros, Burden.

É muito claro. Fechamos o Mar do Norte com uma barragem de minas desde a Escócia até a Noruega, de modo que nenhum submarino possa passar, o que os prenderia em seus próprios portos. Bem, levei semanas para chegar ao Presidente, que agora me deu passe livre. Mas os ingleses ainda estão arrastando o assunto, mesmo eu tendo dito que faríamos o mesmo no estreito de Dover, o que protegeria as águas deles. Mas eles estão dormindo.

Fez outra careta ao beber mais limonada. Burden percebeu que o rosto de Franklin brilhava de suor apesar da brisa fresca. A bela cabeça, com seu nariz finamente cinzelado, parecia frágil; os olhos pequenos não apenas eram demasiadamente juntos, mas também, em razão da assimetria do rosto, um era mais alto que o outro.

De súbito estavam passando diante da mansão de colunas do primeiro Presidente. Franklin pôs-se de pá num salto, assim como Burden, que manteve posição de sentido enquanto um corneteiro na popa executava o toque de silêncio.

Quando o elegante casal juntou-se a Franklin na popa, Burden dirigiu-se para a proa, onde o diplomata inglês e a marinheira escre­vente de terceira classe Lucy Mercer estavam sentados. Ambos er­gueram-se em deferência ao cargo senatorial.

Burden sentou-se entre eles. Um taifeiro ofereceu-lhes a limo­nada de Josephus Daniels. Como todas as outras pessoas no pequeno mundo de Washington, Burden achava Lucy singularmente atraente e misteriosa. Por que não se casara? Naturalmente ela pertencia à nobreza católica de Maryland e não havia muitos solteiros católicos disponíveis na capital. Por outro lado, uma pequena viagem a Baltimore e ela estaria cercada por pessoas de sua própria classe. No entanto, preferia morar em Washington trabalhando para Eleanor Roosevelt e preenchendo lugares vagos em jantares, até entrar para a Marinha.

Agora você é uma guerreira — declarou Burden.

Foi idéia do Sr. Roosevelt. — Ela sorriu e desviou o olhar.

— O serviço militar de vocês é decididamente seletivo — afir­mou o inglês.

Burden mais de uma vez reclamara para si o crédito pelo sublime eufemismo "serviço seletivo". A expressão "alistamento com­pulsório" era tabu, lembrando a todos os distúrbios sangrentos da Guerra Civil. Como Wilson, tanto quanto Lincoln, não podia contar com voluntários, criou-se uma nova expressão. Anos antes, quando parecia que os problemas de fronteira com o México poderiam transformar-se em guerra total, Wilson fizera uma retumbante convocação de voluntários e quase ninguém acorrera para defender sua ban­deira. Desta vez ele não ia correr riscos. O alistamento compulsório seria rápido, geral e sob outro nome. No dia 5 de junho dez milhões de homens entre 21 e trinta anos tinham sido registrados sob a Lei de Defesa Nacional para "serviço seletivo" nas forças armadas, o que soava ura pouco melhor do que, por exemplo, carne de canhão na França.

Burden no fundo odiava todo o projeto. Sua infância tinha sido cercada pelos feridos na Guerra Civil, e a pobreza geral do delta nessa época derivava diretamente da perda de mão-de-obra e de di­nheiro durante a guerra. Publicamente, Burden apoiava a guerra; no entanto, jamais conseguia racionalizar para si mesmo a maneira brutal com que os Estados Unidos tinham violado sua própria e sagrada

Doutrina Monroe para poder combater na Europa, algo que a re­pública original garantira ao mundo inteiro que nunca faria. Entre­tanto, como um político prático, ele fora capaz de racionalizar a necessidade de tornar o mundo seguro, não para a democracia — uma empreitada quixotesca, já que os Estados Unidos ainda não tinham experimentado essa forma de governo tão perigosa, como aquelas mulheres militantes que queriam votar não cessavam de lembrar a seus senhores sexuais — mas para enriquecer a nação. Isso já estava iniciado, como o inglês, Sr. Nigel Law, lembrou:

Seu discurso na comissão foi muito aplaudido em Londres, senhor.

Trata-se de simples bom-senso. É só a gente ter um tiquinho de tino. — O sotaque britânico costumava fazer Burden adotar o estilo jeca de um comediante caipira. Ele mastigou um talo de capim imaginário. — Não podemos deixar o colega na pendura.

Que discurso foi esse? — Os olhos azuis de Lucy trocaram a costa verde-azulada da Virgínia pelo capim imaginário de Burden.

— Sobre o empréstimo à Inglaterra. No mês passado o Presidente foi comunicado que, sem uma rápida ajuda nossa, a Inglaterra não poderia mais sustentar à libra. Na verdade, em 24 horas teriam que abandonar o padrão ouro, de modo que informei meus colegas, que não se preocupam muito com estrangeiros em geral e com os ingleses em particular, que, se a libra cair, o dólar vai cair também, de modo que era melhor dar-lhes um apoio, o que fizemos, e o que ainda estamos fazendo, graças ao Sr. McAdoo e seus Bônus Liberty, que estão atraindo dólares de todo o país.

A retórica da campanha para os Bônus Liberty — inteiramente bárbara e macabra — deixara Burden irritado. Até mesmo um pangaré republicano como Harding tinha reclamado disso, em vão.

— Para seu eterno crédito, senador.

O Sr. Law estava exagerando um pouco. Para o bem da Inglaterra, naturalmente. Burden sorriu.

Na realidade, trata-se do seu eterno débito. De qualquer ma­neira, pegamos o dinheiro de todo mundo, o que é muito agradável. — Voltou-se para Lucy. — O Sr. Roosevelt está doente. Devia man­dá-lo a um médico.

Pela primeira vez ela olhou para Burden com interesse.

Conseguiu perceber?

Pela maneira como transpira.

Ele diz que é só a garganta inflamada. Sim, vou mandá-lo ao médico quando desembarcarmos.

A Lei Lever vai passar no Senado? — O diplomata não acreditava que febres e gargantas inflamadas deveriam ter permissão para atrapalhar a diplomacia.

Burden assentiu:

— Mas vamos apará-la um pouco.

O Presidente queria controlar o preço e a distribuição de alimentos; e escolhera o vitorioso engenheiro de minas Herbert Hoover para seu diretor. Mas num estado de espírito recalcitrante o Senado estabelecera a condição de que fosse criada uma comissão conjunta do Congresso para a guerra, para vigiar o Presidente. O Presidente-historiador foi rápido em reunir suas tropas no Senado; e era Burden quem estava agora na agonia de eliminar a Seção 23 da Lei Lever.

O Presidente de vocês tem os poderes mais extraordinários, não é mesmo? — O Sr. Law parecia sentir uma certa inveja.

— Só em tempos de guerra.

— Então, se eu fosse um Presidente ambicioso, ia manter o país sempre em guerra.

— Não seria possível — Burden foi peremptório. — Nosso povo não gosta de guerra. E por que gostaria? Temos todo o espaço de que precisamos. Tudo o que queremos é portas abertas em toda parte, para podermos entrar e fazer negócio. Qualquer Presidente que tentasse nos colocar numa guerra que não fosse popular logo seria um ex-Presidente. Veja como foi difícil para Wilson nos colocar nesta agora.

Burden percebeu que tinha falado demais. O Sr. Law encarou-o, como se esperasse que ele prosseguisse. Mas Burden não pretendia imputar a Wilson a responsabilidade de uma guerra na qual ele fi­zera algo mais do que não ficar de fora:

— Se a Alemanha não tivesse sido tão estúpida e belicosa, poderíamos estar ainda em paz, e a libra esterlina. ..

— Caída na poeira — completou o Sr. Law.

— Sua família é de Washington, não é? — Lucy desviou a conversa.

Burden assentiu.

— Uma parte. A parte que ficou na capital enquanto o meu ramo foi para o Oeste. Morei algum tempo aqui com parentes, quan­do perdemos nossa fazenda no pânico da crise.

Prazerosamente mergulharam na genealogia, o que significava a ligação de Burden com o ubíquo clã dos Apgar, Lucy também era ligada a eles por casamento, assim como Caroline, assim como todos que valiam alguma coisa, de Albany à cidade de Nova York e a Washington D.C. Burden encarou os lindos olhos de Lucy e sentiu uma onda de angústia, uma necessidade de ser, novamente, amado por uma moça, não necessariamente uma que fosse católica, complicada e, provavelmente, virginal. Mas ele tinha que recomeçar logo: dentro de três anos teria cinqüenta, no final de qualquer coisa re­motamente parecida com a juventude. Ainda havia Caroline, mas isso era terreno conhecido. Além disso, ao longo do tempo ela mos­trara sua verdadeira natureza, que não era a de uma esposa ou amante mas sim de irmã e amiga. Gostava dela, mas ela não era aquilo que ele agora almejava furiosamente — pele, carne.

Franklin juntou-se a eles, pálido de calor mas extremamente jovial:

— Vamos atracar no Lock Tavern Club — anunciou. — Para um almoço no cais. Com um pôr-do-sol.

Quando o outro descansou a mãozorra sobre o ombro de Lucy, Burden percebeu que os dois estavam apaixonados, e ele não estava.

 

Blaise também estava no mar; sozinho, também, embora nem um pouco zangado. Frederika mostrara-se a melhor esposa possível. Estava presente quando sua presença era necessária, e ocupada com outras coisas quando não era. Mostrara-se também extraordinaria­mente perspicaz a respeito das pessoas, coisa que Blaise não era. Da Avenida Connecticut eles presidiam a vida grã-fina da capital, e seus caminhos cruzavam-se com os da outra Sra. Sanford, Caroline, que geralmente preferia o círculo de Henry Adams, agora reduzido ao próprio Adams e a um punhado do que ele chamava de "so­brinhas".

— Pelo menos pode-se respirar.

Blaise voltou-se e deparou com a Sra. Wilson, usando um vestido de estilo náutico, parecendo bastante refrescada. O grupo pre­sidencial embarcara no Mayflower pouco antes do meio-dia, quando todo o ar tinha sido consumido no fogo do disco de bronze do sol. O Presidente estava extraordinariamente quieto; a Sra. Wilson, vermelha e ofegante, ao passo que vários parentes seus refrescavam-se vigorosamente com leques de folhas de palmeira e murmuravam uns com os outros em seus suaves sotaques sulinos. O Mayflower dirigia- se para a baía Chesapeake e, graças à censura de guerra, ninguém em Washington suspeitava de que o Presidente, derrotado pelo calor, abandonara temporariamente a capital.

Sente-se, Sr. Sanford. — Edith indicou uma das duas cadeiras lado a lado na popa e acomodou-se na outra. — Pelo que sei, este é o único prazer que permitem ao Presidente, embora eu ache que se trata mais de uma necessidade médica do que qualquer outra coisa. Não que ele não seja de ferro — acrescentou depressa. — Admiro muito a sua irmã.

E ela a senhora. — Blaise era igualmente rápido em washingtonês.

Não temos tido o prazer de vê-la, ou ao senhor e sua esposa. Ela está em Newport?

Blaise assentiu:

Fiquei para historiar o governo, e a guerra.

Edith deu uma risadinha — um som agradável, suave.

— Confesso que por um lado não há coisa pior para um Presidente do que ter o Congresso reunido durante todo o verão, criando problemas. Mas quando penso neste calor horrível e em alguns da­queles homens horríveis e suas esposas, alegro-me por estarem presos aqui conosco.

O coitado do Cabot Lodge queria tanto ir para North Shore, para ficar perto de Henry Adams em Beverly Farms...

Coitado do Cabot Lodge. — Edith entoou o refrão como se estivessem cantando; depois começou uma nova estrofe. — Be­verly Farms... — e fez uma pausa. — Não é a casa que o Sr. Adams construiu...?

Com a Sra. Adams, na década de setenta. Depois que ela morreu ele nunca mais voltou lá, até agora.

Claro que não foi crime, foi?

Edith mostrava-se ansiosa, como uma criança prestes a escutar sua história favorita. Mas Blaise não podia satisfazê-la.

Ela se matou, pelo que se sabe. Bebeu aquele líquido de revelar fotografias. Desde então ele nunca mais falou nela, pelo que eu saiba. Mas minha irmã é grande amiga dele. A mim ele ape­nas tolera.

E a mim nem sequer conhece.

Mas Edith não parecia infeliz. Quando se está montado no mundo, é possível deixar passar qualquer desfeita. Desde o início Blaise divertira-se ao ver como Edith adotara de coração sua posição de realeza, exibindo cada vez mais orquídeas, além de ares cada vez mais simpáticos, bondosos, imperiais.

Washington não é uma cidade, mas uma dúzia de aldeias — observou Edith, como todos que lá viviam mais cedo ou mais tarde observavam mais de uma vez. — E não há ligações entre a maioria delas.

A não ser a Avenida Pennsylvania, que liga todas as aldeias à Casa Branca.

— Foi o que sempre pensei. Mas não é realmente verdade. Somos muito isolados, sabia?

A guerra...

Não ajuda. Mas considero os presidentes uma espécie de prisioneiros do cerimonial. E a minha aldeia, os Galt, os Bolling e todo o resto, mal percebem quem está na Casa Branca. Aliás, preciso agradecer-lhe pelo modo como nos trata, como trata o Presidente. Não temos muita oportunidade, hoje em dia, de ler algo que nos seja agradável.

Talvez a censura tenha alguma coisa a ver com isso — respondeu Blaise, lembrando-se de sorrir.

O Sr. Creel está a bordo. Você me disse que gostaria de conhecê-lo. Está vendo? Nunca esqueço as coisas.

O sorriso era, como sempre, infantil e sedutor. Blaise agradeceu-lhe. George Creel surgira de repente no cenário nacional, na esteira de um furacão de leis na maioria inspiradas pelo Presidente, para estabelecer um controle sobre todos os aspectos da vida ameri­cana. A censura à imprensa cabia ao Sr. Creel, que em abril fora designado presidente do Comitê de Informação Pública. O Sr. Creel era um jovem jornalista do Oeste. Como editor, Blaise tinha muito receio do modo como os vários poderes recém-adquiridos pela cen­sura pudessem ser usados. No início do paroxismo da guerra e do ódio aos boches, fora aprovada uma Lei de Espionagem que permitia que alguém fosse preso por vinte anos, além de pagar uma multa de dez mil dólares, por transmitir "notícias ou declarações falsas com intenção de interferir na operação ou no sucesso das forças mili­tares ou navais dos Estados Unidos, ou de promover o triunfo de seus inimigos... Ou tentar provocar insubordinação, deslealdade, rebelião ou recusa ao dever, nas forças militares ou navais dos Esta­dos Unidos, ou... obstruir propositalmente o serviço de recruta­mento ou de alistamento".

Quando essa esplêndida anulação da Primeira Emenda tornou-se lei no mês anterior, em 15 de junho, Blaise recebeu um recado dire­tamente de William Randolph Hearst em Nova York segundo o qual essa lei era dirigida especificamente aos dois. "Faça alguma coisa", foi a recomendação do Chefe ao antigo discípulo.

Edith ergueu-se quando surgiu George Creel, um homem jovem aos quarenta anos, o chapéu de palha colocado bem para trás. Na presença da soberana o chapéu foi retirado. Edith fez as apresenta­ções, depois declarou:

Preciso ajudar o Presidente com os últimos relatórios do coronel House. Ah, que teia intricada tecemos... — entoou mis­teriosamente, e desapareceu no salão.

— Teia de quem? — Blaise perguntou, indicando ao rapaz que se sentasse.

Blaise ofereceu um charuto a Creel, que aceitou.

— Do coronel House — disse Creel, recolocando o chapéu. — Imagino que a Sra. Wilson considere que ele goza de demasiada li­berdade na Europa.

Como isso era novidade para Blaise, ele fingiu tédio:

Sempre pensei que ele fosse só um mensageiro, uma espécie de cortesão...

Ela concordaria com o senhor a respeito do cortesão. — Co­mo tantos jovens cheios de energia, novos na vida pública, George Creel não conseguia esconder qualquer coisa que pudesse demons­trar seu domínio dos negócios públicos. — Ela acha que ele concorda demais com o Presidente.

Não concordam todos?

Eu tento não concordar. Naturalmente estou neste trabalho há três meses somente...

— Qual é este trabalho?

Creel pareceu surpreso.

— Informação. Tentamos dar as boas notícias sobre o nosso lado e as más notícias sobre os boches. De certa maneira, é como a propaganda, embora o Presidente não aprecie esta palavra.

Blaise assentiu. Creel agora entrava em foco. Blaise esperava um presunçoso jornalista do Meio-Oeste; em vez disso, encontrava um presunçoso, publicitário, um criador de slogans, um homem per­feito para Hearst, se não para Blaise.

— Quem foi que decidiu acabar de uma vez com as entrevistas coletivas?

Creel desviou o olhar.

Bem... Não vi razão para elas em tempo de guerra — disse (mentindo?). — Quero dizer, sim, nossas tropas estão na França agora e sim, elas vão combater quando estiverem prontas, mas qual é o sentido em ter de não responder essa pergunta em todas as entre­vistas? Afinal, ele não pode falar sobre a situação militar, e não quer falar sobre política partidária, então para que entrevista? A não ser quando se trata de alguém como o senhor, e em particular.

O senhor tem poder para fechar um jornal ou prender um editor que possa simplesmente desaprovar o modo como a guerra está sendo conduzida...

Este é o propósito da lei que o Congresso aprovou e que o Presidente tem que executar — disse Creel cautelosamente.

— Isso poderia significar a suspensão da liberdade de expressão?

— Em casos em que a segurança nacional o requer, sim. Mas não sou o czar. — Creel riu sem muita alegria. — Tenho que trabalhar com os secretários de Estado, da Guerra e da Marinha. Bem, o Sr. Lansing já declarou que não confia em mim porque sou socialista! De modo que depois de um único encontro com ele desisti do Departamento de Estado. Agora trabalho apenas com os outros dois. Sabe, já conversei com a sua irmã, a Sra. Sanford.

Eu não sabia.

— O senador Day promoveu o encontro. Eu disse a ela que seria ótimo se ela trabalhasse ex officio no meu comitê.

Para fazer o quê?

Blaise não se surpreendeu por Caroline não ter lhe contado, já que ela era sempre assim, mas surpreendeu-o que o censor e propa­gandista oficial do país estivesse interessado nela.

— Acho que as mulheres fazem toda a diferença. Veja os Bônus Liberty: o Sr. McAdoo vai conseguir seus dois bilhões de dólares, graças ao modo como vem utilizando gente do cinema como Mary Pickford e Charlie Chaplin para vender os bônus, e senhoras importantes de todo o país para organizar as vendas, mostrando que as mulheres, pelo menos essas mulheres, realmente acreditam na nossa democracia,

E as sufragistas não acreditam, não é?

Eu que o diga! — Creel soprou um enorme anel de fumaça na direção da costa de Maryland. — Elas solapam o quadro que quero pintar de nós como a primeira democracia do mundo, lutando por outras democracias em toda parte.

Mas não é fácil pretendermos ser uma democracia se as mulheres não podem votar. Blaise foi serenamente hipócrita: não aprovava o voto feminino, nem a democracia.

Então graças a Deus por Mary Pickford! — exclamou Creel. Pedi a Sra. Sanford para ir à Costa Oeste. A Hollywood. Para influenciar no cinema. Trabalho bastante bem com a Pathé News; aliás, com todas as companhias de noticiário cinematográfico. Mas a maioria delas fica no Leste. O problema é que não tenho uma pessoa lá, onde quase todos os filmes estão sendo feitos. De modo que, a Sra. Sanford disse que talvez pudesse ir até lá e ver o que poderia fazer pela causa.

A velha competição entre meio-irmão e meia-irmã revivia agora:

Que é que ela pode fazer, se não conhece o pessoal do cinema?

Mas todos a conhecem. Conhecem o Trib. Isto é que importa. Além disso, ela conheceu Mary Pickford na mesma ocasião que eu, em Nova York, naquela campanha do Bônus Liberty em que os artistas angariaram um milhão de dólares em. .. quanto tempo mes­mo? Uma hora.

Então ela vai organizar campanhas de venda de bônus...

Não, senhor. Ela, como minha representante, vai convencer Hollywood a fazer filmes pró-americanos, pró-Aliados...

—- O que significa antialemães...

Sim! Os olhos de Creel brilhavam. A platéia de cinema é a maior do mundo. De modo que, se conseguirmos influen­ciar o que Hollywood produz, poderemos controlar a opinião mun­dial. Hollywood é a chave de quase tudo.

O almoço com o Presidente foi uma espécie de anticlímax depois das revelações de Creel. Meia dúzia de parentes de Edith, todos chamados Bolling, e vários ajudantes-de-ordem da Marinha tomaram seus luga­res sem qualquer disposição especial, enquanto o Presidente presidia num extremo da mesa e Edith no outro.

Sente-se aqui — ela disse a Blaise.

O Presidente agora parecia em melhor estado de saúde e de espírito do que nas últimas ocasiões em que Blaise o vira.

Acho que qualquer lugar é melhor que Washington — Wil­son afirmou, e em seguida mostrou seu sorriso surpreendentemente simpático. — Para mim, o único prazer verdadeiro é saber que o Congresso estará em sessão durante o verão inteiro. — Olhou para Blaise. — E, graças ao senador Day, sem a Seção 23 para me im­portunar.

Vamos beber vinho — disse Edith em voz baixa ao criado de bordo.

Mas ninguém pode contar ao Sr. Daniels. — A audição de Wilson era ótima. — Na verdade, o Sr. Daniel está se tornando um sinal premonitório de humor. — Há pouco tempo ele estava a bordo de um navio de guerra, conversando com um almirante, quando o oficial do dia entrou para fazer seu relatório. O oficial ficou em posição de sentido e disse o de sempre: "Desejo declarar, senhor, que está tudo em segurança." Então o almirante virou-se para o superior dele, o secretário da Marinha, Sr. Daniels, que simples­mente o encarou, até que afinal percebeu que devia dizer alguma coisa. Então o Sr. Daniels deu um enorme sorriso e disse: "Ora, ora!" — Wilson imitou perfeitamente o forte sotaque sulino de Da­niels. — "Mas isto é ótimo! Fico muito feliz em saber. Muito feliz."

As risadas foram genuínas. Blaise, que fora várias vezes ao teatro com o Presidente, tinha consciência do incongruente talento do grande homem como comediante, mímico e sapateador exímio. Certa noite, quando namorava Edith, ele fora visto sapateando pela Avenida Pennsylvania, cantando uma canção de amor que falava em "linda boneca".

A linda bonecona em pessoa serviu-se de lagosta e disse:

Sabem, quando o Sr. Wilson era criança ele sempre quis ir para Annapolis. Tem grande afinidade com o mar, coisa que eu não tenho. No ano passado, quando pegamos um mar agitado na costa de Long Island, passei tão mal que fui pegar uma garrafa de co­nhaque no armário, exatamente quando uma onda atingiu o barco, e caí no chão, quero dizer, no convés. O Sr. Grayson me encon­trou caída de costas, de rosto verde, com uma garrafa de conhaque apertada contra o peito.

Uma visão rara — disse Blaise.

Ele gostava de ambos os Wilson, para sua própria surpresa, pois era um republicano que teria preferido Elihu Root como Presi-

dente, por ser um homem brilhante e altamente qualificado. Mas Wilson era simpaticamente inteligente; e seu primeiro mandato ti­vera um sucesso notável. Agora, como o mundo, ele estava em mares nunca navegados.

É verdade que o senador Lodge disse que o Sr. Wilson é o segundo pior Presidente, depois de Buchanan?

Ele nunca disse isto a mim.

Blaise foi cauteloso. A língua desenfreada de Lodge fizera Hen­ry Adams gritar, à sua própria mesa: "Cabot, não permitirei pala­vras de traição na minha casa!". Edith, porém, foi branda:

Se ele disse, vou começar a estudar a administração do Sr. Buchanan, que deve ter tido todo tipo de virtudes, se o senador Lodge realmente o odeia tanto assim.

Blaise observou mais uma vez que o Presidente jamais mencio­nava a política durante as refeições; observou também que um mé­dico da Marinha, ajudante-de-ordens de Grayson, não tirava os olhos de Wilson, cuja dispepsia crônica já o ameaçara de invalidez.

No extremo da mesa onde estava Edith, com um irmão à esquer­da e Blaise à direita, ela podia distrair-se enquanto o Presidente con­tava piadas de irlandês, do tipo Pat-disse-a-Mike, para grande diver­timento de George Creel.

É uma pena isso do coronel Roosevelt, que deveria ser mais amigável, já que ele e o Sr. Wilson têm tanto em comum...

Inclusive o emprego.

É uma guerra. Embora esta vá ser bem mais terrível do que aquela guerrinha contra a Espanha. Porém eles parecem estar sempre se desentendendo.

São rivais. Só isso disse Blaise. E jogou verde: É bem certo que o coronel será o candidato Republicano em 1920. Contra o Sr. Wilson, imagino.

Acha mesmo que o Sr. Wilson vai concorrer de novo?

Os olhos pequeninos de Edith tomaram um súbito ar travesso,

e Blaise perguntou-se se ela sabia. Aliás, se o próprio Wilson sabia.

Por que não? Ele terá vencido a guerra.

Mas o general Pershing ficará com as honras, e as pessoas sempre elegem os generais, quando podem. Mas nunca almirantes. Não sei por quê.

Podem abrir uma exceção para Josephus Daniels.

Edith riu. Blaise soltou-a de seu anzol investigador. O Presidente por certo parecia preparado para um terceiro mandato; e suficientemente vaidoso, também. Apesar de todo o encanto e os belos modos de Wilson, ele ainda era uma estranha combinação de professor universitário desacostumado a ser contestado num mundo que ele considerava a sua sala de aula e de pastor presbiteriano incapaz de questionar a verdade divina que o inspirava em todas as horas.

Depois do almoço o Presidente decidiu fazer uma caminhada, c o capitão atracou numa pequena ilha na Baía de Chesapeake com o exótico nome de Tangier. Blaise e Creel acompanharam duas da­mas Bolling.

A cidade propriamente dita eram duas ruas paralelas com casas de madeira recém-pintadas, como se fossem brinquedos de crianças, bloquinhos brancos dispostos lado a lado. No fundo de cada uma havia um jardim, e na frente, soturnamente, o cemitério da família.

Não havia pessoa alguma à vista quando os Wilson, precedendo os outros, desceram a primeira rua, o homem do Serviço Se­creto olhando nervosamente à direita e à esquerda: estariam cami­nhando para uma emboscada? Até mesmo Blaise começou a ficar nervoso, ao passo que Creel admitiu diretamente:

— Alguma coisa está errada. A tinta daquela casa ali está fresca. Ela ainda está sendo pintada, mas não há ninguém à vista.

Espiões? — Blaise não conseguiu resistir.

Ou pior. — Creel estava carrancudo.

Uma das damas Bolling disse:

Ora, afinal é uma aldeia de pescadores. Então imagino que estejam todos pescando.

As mulheres também? — Creel sobressaltou-se quando um gato (marrom) atravessou seu caminho.

Os gatos ficaram. — Blaise olhou para o Presidente, que estava parado, perplexo, no meio da rua.

— Nem carros, nem charretes — começou Creel.

— Não é permitido — explicou o capitão do barco, que se juntara a eles. — Este é o encanto do lugar. Embora seja um mis­tério para mim onde está toda a gente.

Blaise dirigiu-se para a frente do cortejo presidencial, juntando-se ao Sr. Starling do Serviço Secreto.

Finalmente alguém — fez Edith atrás deles. — Ali na calçada, o velho com a criança.

A sombra de um salgueiro estava sentado um senhor de idade, segurando no colo um garotinho.

Boa tarde, meu senhor — disse Edith,

Belo dia — fez o Presidente.

E de mãos dadas atravessaram a rua em direção ao velho. Com simpatia cheia de suspeita Starling cumprimentou:

Oi, vovô.

— Escute, moço. — O velho estava igualmente cheio de suspeita, mas de modo algum simpático. — Quem é aquele homem lá com a mulher dele?

— Ora, é o Sr. Wilson. O Presidente dos Estados Unidos.

— Não é uma trama como da última vez?

Última vez? Uma trama...?

É ele mesmo, o Presidente?

— Você está me apertando — choramingou o garoto.

O velho deixou-o cair na poeira e ergueu-se.

Pensamos que vocês eram os alemães vindo tomar Tangier como os ingleses fizeram em 1812. Saiam! — berrou.

E as ruas começaram a encher-se da boa gente de Tangier.

Acho que temos que chamá-los de tangerinos — disse Creel, jornalisticamente emocionado por tanto interesse humano.

Blaise de repente lembrou-se do nome de Creel de muito tempo antes.

— Você trabalhou para o Chefe, no Journal em Nova York.

— Isto mesmo. Queria ver se você se lembraria de mim. Depois me regenerei e fui para Kansas, e de lá para o Rocky Mountain News. Mas sou eternamente cria de Hearst.

— Eu também — disse Blaise. — Isso deixa marca.

Então aproximaram-se do Presidente, que achou por bem diri­gir-se não apenas a seus eleitores ilhéus mas também ao grupo do iate.

— Tangier é o lugar lógico de onde se pode atacar Baltimore por mar. De modo que a esquadra britânica chegou aqui há 105 anos e dominou a ilha. Mas o pároco local, um certo Joshua Thomas, disse-lhes que eles não conseguiriam tomar Baltimore porque o Senhor dos Exércitos não estava com eles; aconteceu que não estava mesmo, naquela ocasião, e, eu lhes juro — o tom coloquial de Woodrow Wilson transformara-se na voz mágica do grande sedutor da imagi­nação, que invocava o espírito superior, a própria essência da repú­blica virtuosa que ele fora escolhido para personificar — que o Se­nhor dos Exércitos não está com os alemães agora, e nunca estará, enquanto formos leais ao grandioso pacto que fizemos com o espí­rito de toda a humanidade quando nos tornamos independentes do Velho Mundo com suas intrigas e desigualdades, e todos nós como

uni só, e pluribus unum, criamos uma liberdade para todos que era realmente algo novo sob o sol.

É como uma torneira, pensou Blaise, que esses oradores conseguem abrir e fechar quando querem. Será que chegavam a ouvir a si mesmos? Ou eram simples condutores de um tipo de energia de massa à qual estavam ligados de um modo misterioso, capazes de articular instintivamente as emoções dos mudos e dos muitos?

— E com isto já temos sermão suficiente para qualquer tarde de domingo em Tangier — terminou Woodrow Wilson, fechando a torneira.

O Presidente foi entusiasticamente aplaudido.

 

Amarrada aos trilhos do trem, o sol queimando-lhe o rosto, Caroline ouviu o som sinistro de uma locomotiva a vapor que se aproximava. Uma voz masculina instruiu:

— Faça cara de medo.

— Eu estou mesmo com medo.

— Não fale. Olhe mais para a esquerda.

— Mas, Chefe, há sombras demais no rosto dela. Não se vêem os olhos.

— Olhe para a frente.

A locomotiva, que se movia lentamente, já estava a um metro dela. Ela a via pelo canto do olho direito. O maquinista olhava para ela, a mão no... no quê? No freio, ela esperava. Uma pedra machucava-lhe as costas, e ela sentiu vontade de gritar.

— Grite! — berrou William Randolph Hearst.

E Caroline obedeceu. Enquanto ela enchia o ar com seus gritos aterrorizados, um homem a cavalo aproximou-se da locomo­tiva e saltou para dentro da cabine, onde puxou uma corda, liberando grande quantidade de vapor malcheiroso. O trem parou derrapando e ele correu para Caroline, ajoelhando-se ao lado dela.

— Corte! — ordenou o Chefe. — Fique onde está, Sra. Sanford.

— Não tenho escolha — disse Caroline.

O rapaz suado — um vaqueiro da fazenda de Hearst — sorriu para ela de modo tranqüilizador.

— Não vai demorar, dona — explicou. — Ele tem que mudar a câmera para poder filmar bem de perto quando eu desamarrar a senhora.

— Por que ele não mostra um cartão na tela, informando que duas semanas depois do salvamento de Lady Belinda ela estava de novo em casa, em Londres, tomando chá? Acho que sei fazer isso muito bem.

Hearst estava agora de pé acima dela, o corpo grandalhão misericordiosamente tapando o sol.

Foi fantástico. De verdade — ele disse. — Joe está trazendo a câmera. Não vai levar um minuto. Não sabia que você era uma profissional...

— Nem eu — respondeu Caroline.

— Na realidade, nada é mais fácil que fazer filmes — interpôs Millicent Hearst, que Caroline conhecia desde que ela era a parceira mais jovem de uma dupla de irmãs no teatro musical. — Ou você fica bonita na tela ou não fica. Se fica, eles vão adorar você. Se não fica, pode representar até ficar seca e nada vai acontecer.

— Você certamente faz muito efeito na tela.

Caroline falava com entusiasmo, ainda deitada de costas, com o empoeirado vaqueiro a um lado, ao passo que no outro lado o Sr. e a Sra. Hearst contemplavam-na de cima, observando as boas ma­neiras com um fluxo de conversação.

— Se Millicent não fosse tão velha, eu faria dela uma estrela — afirmou Hearst com sua falta de tato e sua bondade costumeiras.

Não sou tão mais velha que Mary Pickford. — O sotaque de Millicent nunca saíra do bairro irlandês de Nova York. — Mas representar é muito chato, e os horários, você não acreditaria!

— Acreditaria, sim. Aliás, uma hora já passou depois que me amarraram — disse Caroline.

— Estamos prontos — avisou Joe Hubbell, que manejava a câmera, fora da visão de Caroline.

Certo. Vamos começar.

Os Hearst se afastaram. O vaqueiro e Caroline esperaram pa­cientemente que lhes fosse dito o que fazer. Caroline tornou a admi­rar o instinto de Hearst, que agora o levara ao mais excitante de todos os brinquedos que seu país inventara até então. Assim como inventara a "imprensa amarela", que fazia a realidade refletir não a si mesma mas à versão de Hearst, ele agora mergulhava no cinema, tanto como amador — como nesse filme — quanto como profissional, como Os perigos de Pauline, produzido por ele, o seriado de maior sucesso em 1913. Agora, passando o. verão em San Simeon, uma fuzcnda de 250 mil acres ao norte de Hollywood, o Chefe divertia-se com um longa-metragem no qual ele galantemente entregara o papel principal à sua convidada, Caroline, que era muitos anos mais velha que Millicent e de modo algum possuía sua beleza convencio­nal. Depois que aceitou o convite de George Creel para ser a emis­sária do governo junto à indústria cinematográfica, ela iniciara seu trabalho com uma visita ao velho amigo Hearst, que desaprovava a guerra de modo geral e Wilson em particular. No entanto, era um anfitrião generoso, para não mencionar um diretor meticuloso.

Uma hora depois, Caroline, não mais Lady Belinda, foi solta dos trilhos pelo vaqueiro, a quem lhe ordenaram beijar na boca. Ele enrubesceu furiosamente, e ela ficou intrigada ao descobrir que os lábios de um rapaz podiam ser tão macios não que ela tivesse muita experiência com rapazes ou com homens mais velhos; perce­beu também que ele recendia a suor de cavalo.

Caroline e-sua criada, Héloise, dividiam uma barraca perto da casa de madeira dos Hearst no topo do Monte Camp. Como havia sempre uma dúzia de hóspedes, além de um exército de empregados, jardineiros, vaqueiros, a colina era agora uma cidade de barracas provisórias em volta da ampla casa de madeira, que eram erguidas no verão e desmontadas no inverno.

É aqui, bem aqui, vou construir um castelo declarou Hearst. — Exatamente como o que você e Blaise possuem em Saint-Cloud-le-Duc.

Estavam sentados na sala de estar principal do Chefe, com suas traves rústicas e paredes de pinheiro onde estava pendurada talvez a maior coleção de pintores clássicos falsificados que qualquer mi­lionário americano conseguiria juntar. Mas dizia-se de Hearst que, depois de trinta anos de comprar arte no atacado, ele sempre sabia distinguir uma boa falsificação de uma ruim; e das falsificações ele invariavelmente escolhia aquelas de melhor qualidade técnica. Dizia- se que Duveen, o comerciante de arte, comentara a seu respeito. "Ele tem um excelente olho escroque."

Enquanto Caroline bebia xerez, Hearst postou-se junto a uma mesa redonda sobre a qual estava colocado algo que parecia um bolo de casamento coberto de veludo. Como um toureiro, ele retirou o veludo, revelando uma maquete de um castelo com duas torres, tudo meticulosamente detalhado em gesso.

É isto que vou construir aqui afirmou.

Caroline foi discreta:

Nunca vi algo assim.

Pelo menos na Califórnia. Estou ansioso para começar.

George Thompson, mordomo de Hearst havia vinte anos, era

agora redondo como uma coruja e rosado como um porquinho; por mais de vinte anos ele aparecera à mesma hora com uma Coca-Cola numa caneca com enfeites de prata para o Chefe; e agora xerez para Caroline.

— Boa noite, Sra. Sanford.

Ela sorriu para ele. Afinal, foi George quem encorajou o Chefe a fazer amizade com pessoas da moda, como ela, em acréscimo à preferência do Chefe, políticos e gente de teatro, ao passo que a simpática Millicent costumava manter distância dos amigos do ma­rido. Ela preferia Nova York à Califórnia; ser mãe a ser grã-fina; a respeitabilidade à fama de Hearst; a severidade católica à tolerân­cia protestante. Dizia-se que ela sabia muito bem ter sido substituí­da nas afeições do Chefe por uma corista de vinte ou 17 anos; se essa última hipótese fosse verdadeira, ela tinha a mesma idade de Millicent quando esta e a irmã, dançarinas, deixaram o palco do Herald Square Theater, onde eram duas das muitas donzelas da peça A garota de Paris, e penetraram no grande coração de Hearst. Agora a história repetia-se com a Srta. Marion Davies, filha de um político do Brooklyn chamado Bernard Douras. Blaise aprovara o artigo do Tribune sobre o romance, que Caroline lera com prazer e pronta­mente vetara, invocando Uma Questão de Bom Gosto, algo muito importante para o Tribune, o jornal de Washington favorito do Pre­sidente nessa época de guerra, agora que o Post de Ned McLean era conhecido como "a circular da corte". Na realidade, o Presidente, que amava o teatro musical, provavelmente teria gostado muito do artigo — altamente sugestivo, porém jamais inteiramente calunioso — a respeito da jovem corista por quem o cinqüentão Hearst havia, se não deixado a esposa, abandonado-a aos rigores da respeitabilidade doméstica enquanto acompanhava suas coristas, sem cigarros, álcool ou palavrões, pela vida noturna de Nova York, apenas levemente prejudicada em razão da guerra. A Srta. Davies deixara o colégio de freiras — sempre um colégio de freiras, Blaise decretara — quando ainda menina, para juntar-se ao corpo de dança de Chuchin chow, oh, boy! e agora sua apoteose no Ziegfeld follies de 1917. Em San Simeon cochichava-se que quando a senhora partisse, a senhorita che­garia. Mas Hearst silenciava a respeito de assuntos pessoais; e Millicent parecia tranqüila.

Então George Creel quer que você organize a indústria do cinema. Hearst sentou-se num trono defronte a Caroline, en­quanto George acendia os lampiões a querosene. A eletricidade em

San Simeon era gerada lá mesmo e não se podia confiar nela. — His­tórias de boches estuprando freiras belgas?

— Com certeza os seus jornais já nos contaram tudo que queremos ouvir sobre este assunto. — Caroline estava calma, relaxada pelo xerez. — Pensei, talvez, em boches estuprados por freiras bel­gas, para encorajar as mulheres a resistirem à fera.

Hearst sequer sorriu.

— Sempre afirmei que jornalista era você, não Blaise.

— Bom, realmente comprei o Tribune, e tornei-o popular copiando fielmente o seu Journal.

Não. Você tem um jornal melhor. Uma cidade melhor, tam­bém. Principalmente agora. Estou pensando... Sabe, Creel tra­balhou para mim no Journal. Ambicioso. Cinema.

Hearst fixou o olhar num Mantegna cuja moldura de madeira exibia buracos de cupim em apenas um dos lados; graças à costumei­ra pressa de Hearst, o falsificador não tivera tempo para furar os buracos no resto da moldura.

— Acho que o cinema é a resposta — acrescentou.

A quê?

Ao mundo. — Os olhos de águia de Hearst fixaram-se em Caroline; os cabelos que tinham sido louros quando ambos se co­nheceram eram agora grisalhos. — Sempre achei que seria a im­prensa. Tão fácil de imprimir, tão fácil de transmitir pelo telégrafo. Mas há o problema da linguagem. Quando Jamie Bennett acaba de roubar os nossos artigos para o seu Paris Herald, as novidades já são antiguidades. A beleza dos filmes é que eles não falam. Só alguns cartões em línguas diferentes dizendo o que está acontecendo, o que estão dizendo. Todos na China assistem Os perigos de Pauline, mas não conseguem ler meus jornais.

— Você vai entrar?

Hearst assentiu.

Faço por divertimento, isso que fizemos hoje. Apesar de que, se ficar bom, vou distribuir. Tenho minha própria empresa. Você se importa?

— Eu adoraria, é claro.

De todas as profissões que Caroline fantasiara para si mesma, a de atriz não era uma delas. Quando garota, fora levada pelo pai ao camarim de Sarah Bernhardt; e o suor, a sujeira, o terror impressionaram-na de um modo que o esplendor que o público via pela frente do palco não a tinha impressionado. Quanto a representar nos filmes, Millicent — antiga corista — tinha compreendido muito bem: ou a câmera favorecia a pessoa, ou não favorecia. Aos quarenta anos, Caroline imaginava que teria exatamente essa aparência; afinal, não havia, pelo menos oficialmente, estrelas com quarenta anos. Ela própria interessava-se apenas pelo aspecto financeiro dos filmes; além disso, fora encarregada de estudar as possibilidades, para fins de propaganda, dessa inesperada novidade popular. Só depois que Charlie Chaplin e Douglas Fairbanks lançaram-se no mercado vendendo Bônus Liberty a seus milhões de fãs foi que o Governo percebeu o poder dos inventores de Hollywood; e Creel concordara.

Mas Hearst, como sempre, foi diferente:

— Empresas distribuidoras, cadeias de cinemas, isso é que importa. O resto é um pouco como o teatro: uma aposta. Com a di­ferença de que é quase impossível perder dinheiro num filme, a não ser que alguém como aquele diretor, como é mesmo o nome dele, as duas garotas, as iniciais...?

— D. W. Griffith. Caroline conhecia todos os nomes, de seu próprio jornal.

— Resolve querer fazer o maior filme do mundo gastando a maior quantia de dinheiro, construindo coisas como a Babilônia in­teira. Ouvi dizer que ele está falido. E que a Triangle está à venda. Fiz uma oferta. Mas Zukor e Lasky têm mais dinheiro que eu; quero dizer, à mão. Este negócio é como uma cornucópia, como o Alasca em 49. Um milhão de dólares só para Mary Pickford. In­crível. O único perigo são esses tipos como o Griffith. Fanzocas que começam a pensar alto quando alguém lhes dá uma câmera para brincar. Apesar de que... — os lábios finos abriram-se num sorriso - é a coisa mais divertida que há, fazer um filme. Parece um jogo de armar, o modo como vamos mudando as peças de lugar. Parece a diagramação de um jornal, o modo como vamos mudando os blo­cos de lugar. Mas sem prazo marcado, como o jornal. Pode-se ficar mudando até estar tudo no lugar certo. Eles chamam a essa parte "edição", assim como nós. Mas depois ele não fica ali morto na página; ele se move...

Vamos vender nossos jornais e mudar para a Califórnia!

Caroline sempre se entusiasmava facilmente com Hearst.

Se eu fosse mais jovem, iria. Mas — Hearst franziu a testa — há Nova York.

É verdade. Nós não apoiamos você para prefeito nas eleições do outono?

O rosto de Hearst ficou inexpressivo.

O Tribune, acredito que por ordem de Wilson, disse-me para eu cuidar de meus jornais e apoiar John Purroy Mitchel, aquele caso perdido.

Caroline arregalou os olhos, toda inocência:

Deve ter sido o nosso novo editorialista...

Foi o meu velho amigo Blaise. Você deve ter perdido esse número. De qualquer maneira, posso contar com Murphy. E com Tammany Hall. De modo que se eu vencer...

Será o candidato democrata à presidência em 1920.

— E Presidente em 1921, quando tomar posse. Já estava na hora, não acha?

Caroline jamais compreendera a ambição de Hearst, além de suspeitar que ela nada mais fosse que pura energia. Comentou:

— Nunca vi uma eleição com tantos candidatos tão cedo, e tão... tão à vontade.

— Não há de que se envergonhar. — Ele bochechou ruidosamente com a Coca-Cola. — As pessoas não gostam de terceiros man­datos. E também não gostam de Wilson. Roosevelt é um espoliador, e um caco velho, e as pessoas estão cansadas dele. McAdoo...

Ele parou de falar.

— James Burden Day? Caroline lealmente citou aquele nome que não interessava a Hearst. — Champ Clark? — O presidente da Câmara era o líder dos bryanistas e já estava em ação. — E esses são apenas os democratas...

Os republicanos vão indicar Roosevelt, que está perdido, ou Leonard Wood, que posso liquidar com um pé nas costas. Ele é general — Hearst acrescentou com desdém.

Persing também é, e quando vencermos...

Não haverá general algum na eleição. Lembre-se do que eu lhe digo. Esta guerra é grande demais. O homem comum odeia oficiais, principalmente os de West Point. Todos os homens que fizeram o serviço militar vão querer vingar-se daqueles que os mal­trataram.

Por que isso não ocorreu nas outras guerras?

Bem, ocorreu na minha pequena guerra contra a Espanha. Não estou incluindo Roosevelt, que já era político quando subiu aquela colina com os meus melhores repórteres fazendo a cobertura. O verdadeiro candidato da guerra, naquela ocasião, deveria ter sido Dewey. Dewey de Manila. Dewey, o herói conquistador. Que foi que aconteceu então? Nada.

Ele era burro.

Isto não costuma ser uma desvantagem. De qualquer maneira, desta vez uma coisa chamada serviço seletivo vai expulsar os militares. Esses garotos não são voluntários nesta guerra. Estão sendo aprisionados e obrigados a lutar ao lado de povos que detestam, como os ingleses, ou contra seu próprio povo.

Está falando dos seus eleitores irlandeses e alemães?

Isso mesmo. Ou, se forem americanos comuns, quando chegarem à Europa não saberão onde estão ou por que têm que ter raiva de uma coisa chamada "o kaiser". Isso significa que quando voltarem, se voltarem, vão culpar Wilson e seus oficiais. Sabe, você devia colocar algumas bandeiras na primeira página. Existe agora um novo processo de cor. Um bom vermelho. Um azul razoável. Fica bonito e alegre. Patriótico. As pessoas gostam.

Caroline sempre considerara Hearst um gênio imbecil; ou um sábio idiota; ou algo simplesmente incalculável pelos padrões nor­mais de inteligência. No entanto, não havia como ignorar a precisão e a competência de seus instintos, inclusive suas incursões ocasio­nais ao socialismo. Recentemente convencera Tammany Hall da ne­cessidade do monopólio municipal dos serviços públicos. Se uma coisa dessas passasse e se Hearst se elegesse Presidente, o Senado in­teiro, no dia da posse, cairia sobre ele e o derrubaria, como a César, em nome dos sagrados encargos que tinham financiado suas togas.

Vinte pessoas sentaram-se para jantar numa sala comprida, de madeira, com tapeçarias Aubusson nas paredes. Sobre a mesa, enor­mes candelabros de cristal alternavam-se com frascos de ketchup e molho inglês. Caroline sentava-se à direita do Chefe, em deferên­cia à sua elevada posição de colega na imprensa. À direita de Ca­roline, a pedido dela própria, sentava-se Timothy X. Farrell, o bem- sucedido diretor de dez — ou seriam vinte? — filmes nos dois úl­timos anos. Farrell viera visitar Hearst por causa de negócios secre­tos, que Caroline logo descobriu serem relacionados a uma carreira cinematográfica para Marion Davies e uma nova empresa produtora para Hearst, que acabava de adquirir, como contara em tom casual a Caroline, a Pathé Company de seus proprietários franceses, premidos pela guerra.

Farrell era magro e moreno, mais perto dos trinta que dos qua­renta anos; falava com um sotaque irlandês de Boston; estava em Holy Cross quando recebera o convite para fazer filmes em Flushing, Nova York. Mudara-se para Santa Mónica, na Califórnia, onde tra­balhara como carpinteiro e ajudante de Thomas Ince. Agora era um diretor de sucesso, famoso por seu jogo de luz. Caroline estava num novo mundo, de novo jargão, não muito diferente do jornalismo — embora também não muito parecido. Farrell estava comoventemente ansioso para fazer-filmes que elogiassem os Estados Unidos, a liber­dade e a democracia, atacando, naturalmente, os boches bestiais, a monarquia e o mais recente horror, o bolchevismo, agora emergindo das ruínas da Rússia czarista e intimamente ligado, segundo Creel, a vários sindicatos trabalhistas americanos, principalmente aqueles que procuravam reduzir a jornada de trabalho de 12 para oito horas.

— Precisamos é de uma história — declarou Farrell. — Não se pode sair filmando, como faz o Chefe. Ele é antiquado. Acha Os perigos de Pauline a maior novidade em filmes. Mas não é. Aquele seriado tem quatro anos de idade. Quatro anos no cinema é como um século. Tudo agora é diferente. A platéia não vai gastar seus dólares, nem mesmo seus níqueis, para ver qualquer coisa que se movimente numa tela. Mas pagam até dois dólares por uma his­tória de verdade, um espetáculo de verdade. Griffith mudou tudo.

— Você também — Caroline lembrou-se de lisonjear. Um diretor de cinema não era diferente de um senador.

— Bem, tive sorte no ano passado. Missy Drugget teve a maior renda bruta de qualquer filme o ano inteiro, nos Estados Unidos. — Farrell franziu a testa. — É outro problema desta guerra. Nossos distribuidores de além-mar, todos vigaristas, agora com a guerra vão poder nos roubar realmente, e roubam. Goldstein ia fazer algu­ma coisa a respeito disso. Mas agora acho que ele vai para a prisão.

Quem é Goldstein, e por que prisão?

O espírito de 76, lembra-se? Sobre a Revolução Americana. Foi lançado no final de maio, antes de entrarmos na guerra. Bem, seus amigos de Washington acharam — parecia não haver sarcasmo na voz naturalmente intensa de Farrell — que qualquer menção à nossa revolução era um insulto à nossa aliada, a Inglaterra. Sabe, pode confundir nossa gente simples saber que certa vez tivemos essa guerra contra a Inglaterra para podermos ser um país livre. De qualquer maneira, sob uma das novas leis, o governo indiciou Bob Goldstein, o produtor, e dizem que ele vai pegar dez anos de prisão.

Só por fazer um filme sobre como nos tornamos um país livre?

Farrell não parecia usar de ironia, mas seu tom era áspero:

Livre para colocar qualquer um na cadeia. Realmente.

Por que a imprensa não noticiou isso?

— Pergunte ao Sr. Hearst. Pergunte a si mesma. — Os olhos eram de um azul gelado, com pestanas e sobrancelhas negras.

Qual é a acusação exata contra Goldstein?

Não sei. Mas está preyista na.. . qual é o nome? Na Lei de Espionagem, que nem existia quando fizemos o filme.

O filme é seu também?

Farrell enrubesceu.

— É. Meu também. Fiz a iluminação e o trabalho de câmera, como favor. Mas eles não perseguem a arraia-miúda. Agora estou trabalhando com a Triangle. Foi o grupo com que o Sr. Ince fez Civilização. Ele é amigo do Sr. Hearst, e acho que é por isso que estou aqui.

— O Sr. Ince vai ser preso também?

Caroline lembrava-se de que Civilização, de Ince, era um filme pacifista. Como Hearst não apenas era contra a guerra, mas tam­bém considerado pró-Alemanha, Caroline suspeitava de uma ligação entre os filmes anti-guerra de alguns dos melhores diretores e o pró­prio Hearst. Aliás, Hearst era tão anti-Aliados que os governos da Inglaterra e da França negaram a seus jornais a utilização de seus cabos internacionais. Num ataque de histeria o Canadá banira todos os jornais de Hearst, e o canadense que fosse pego lendo mesmo os quadrinhos seria aprisionado por cinco anos.

— Duvido. Ele tem ligações. Conhece o Presidente. Mas aposto que preferia ter ficado com os faroestes.

Depois do jantar, Hearst levou-os para uma barraca que servia de sala de exibição e ali exibiu-lhes um faroeste de sua própria au­toria, Romance no rancho. O herói era Hearst, parecendo mais cor­pulento que a sua gigantesca montaria; a heroína era Millicent, que ficou sentada ao lado de Caroline durante a exibição queixando-se amargamente de sua aparência.

Pareço um pequinês. É horrível a pessoa se ver assim...

Nunca tive esta experiência — disse Caroline.

Ela se sentia atraída pelo cinema não como uma arte, uma versão ou como quer que se quisesse chamar aquela forma tão co­letiva e vulgar de contar uma história, mas sim como um meio de preservar o tempo, aprisionar o efêmero e o fugaz — aqui está, agora já se foi, passou, desapareceu para sempre. Millicent agora estava sentada a seu lado, o rosto iluminado pela luz pulsante na tela, ao mesmo tempo que na tela via-se Millicent semanas antes — ou em qualquer momento, preservada, para sempre imutável.

Quando os aplausos para Romance no rancho cessaram, Hearst levantou-se e fez uma reverência zombeteira, dizendo:

— Escrevi os cartões com as legendas, também. Não podia ser mais fácil. Exatamente como legendas de fotos. — Olhou para Ca­roline. — Agora vamos ver algo que ainda está sendo feito. Um faroeste épico.

As luzes apagaram-se. Um raio de luz do projetor atingiu a tela, que subitamente iluminou-se com a imagem do trem-para-toda-obra de Hearst parando de repente. Caroline reconheceu o vaqueiro suado com quem ela trabalhara naquele dia. Ele obviamente era muito utilizado nos filmes caseiros de Hearst. Ela ficou impressio­nada com o modo como o rosto dele, um tanto grosseiro na vida real, tornara-se belo na tela. Percebeu, também, que as sobrancelhas dele cresciam em linha reta, como as de um antigo atleta de Minos.

Houve um murmúrio na barraca quando uma mulher magra des­ceu do trem. Ela foi recebida pelo vaqueiro, chapéu na mão, a quem um carregador entregou a mala. A câmera estava agora muito perto do rosto da mulher: um bico-de-viúva e uma covinha no queixo realçavam a simetria das feições; as maçãs altas criavam sombras lisonjeiras sob os olhos grandes. A mulher sorriu lentamente. Houve um suspiro na platéia.

— Minha nossa! — exclamou Millicent, agora toda irlandesa de Hell's Kitchen. — Você está um estouro!

— Não acredito!

E Caroline não acreditava mesmo. Na tela, um cartão dizia: "Bem-vinda a Dodge City, Lady Belinda."

Então o vaqueiro e Lady Belinda dirigiram-se para uma charrete que esperava; e Caroline olhava fixamente para si mesma, hipnoti­zada. Aquela, porém, não era mais ela. Aquela era ela de duas se­manas antes, portanto duas semanas mais nova do que agora. No entanto, ali estava, com quarenta anos, para sempre; examinou a tela em busca de rugas e encontrou-as apenas na borda dos olhos. A maquilagem podia esconder o pior, pensou automaticamente. Então, enquanto sorria aquilo que sempre julgara ser o seu sorriso mais visivelmente falso, geralmente, produzido em honra de um dignitário estrangeiro ou o Presidente do momento, ela percebeu que Lady Be­linda — considerava a mulher da tela como sendo inteiramente uma terceira pessoa — parecia fascinante e fascinada, e as únicas rugas discerníveis à brilhante luz do sol eram dois delicados parênteses nos cantos da boca. O filme incompleto durou vinte minutos.

Quando as luzes se acenderam, Caroline foi aplaudida de pé, por iniciativa de Hearst.

Temos uma nova estrela ele declarou.

Soava exatamente como um artigo de Hearst na página de lazer do Journal, onde pelo menos meia dúzia de vezes por ano uma co­rista subia ao palco no lugar de uma estrela impossibilitada,"iempre triunfava e tornava-se a Musa da Cidade.

Arthur Brisbane, o principal editor de Hearst, apertou a mão de Caroline com ar grave.

Mesmo sem olhos azuis você domina a tela. Brisbane era famoso por sua teoria de que todos os grandes homens, e presu­mivelmente as grandes mulheres também, tinham olhos azuis.

Talvez no sol meus olhos desbotem para azul.

Caroline dirigiu-lhe seu sorriso fascinante e sentiu-se como uma pessoa possuída. Ela era duas pessoas: uma que existia ali na tela, uma figura do passado mas agora e para sempre imutável, en­quanto a outra estava parada no centro de uma barraca abafada, en­velhecendo rapidamente a cada batida finita do coração, inteiramente no tempo presente, sendo parabenizada.

É uma pena que você não seja mais jovem disse a implacável Millicent. Poderia realmente fazer sucesso no cinema.

Ainda bem que não desejo isso, e posso aproveitar minha meia-idade.

O câmera, Joe Hubbell, aproximou-se dela.

Na verdade a idéia de montar o filme assim foi minha. Para que a senhorita pudesse vê-lo.

Hearst assentiu.

Temos que agradecer a Joe. Nunca olho pela lente da câmera e nunca vejo os copiões. Então, quando Joe insistia em que a Sra. Sanford era realmente espetacular, achei que ele estava apenas sendo simpático com uma hóspede.

Estava mesmo disse Caroline. Está.

Ela se sentia inteiramente perplexa e assustada, como um silvícola que acredita que uma fotografia pode roubar sua alma.

Depois que a maioria dos hóspedes retirou-se para suas barracas, Caroline e uns poucos escolhidos voltaram para a casa de ma­deira de Hearst, onde George serviu Coca-Cola e Caroline conversou com Farrell sobre a utilidade do cinema para fins de propaganda.

Acho que a senhora, ou o Sr. Creel, não precisarão fazer muita pressão. Todos em Hollywood estão fazendo a mesma coisa, principalmente agora que estamos na guerra e pode-se ir para a prisão por criticar a Inglaterra ou a França ou...

— O nosso governo. Para tornar o mundo um lugar seguro para a democracia — Caroline parodiava a si mesma como editorialista — temos que extinguir a liberdade em casa.

— É mais ou menos isto. — Farrell lançou-lhe um olhar perspicaz. — Pessoalmente, não vejo muita diferença entre os boches e a Lei de Espionagem.

— Você é irlandês e odeia a Inglaterra, e queria que tivéssemos ficado de fora. — Caroline foi direta.

— Sim. Mas como não quero ir fazer companhia a Bob Goldstein no xadrez, farei filmes patrióticos sobre os galantes pracinhas, ou como quer que chamemos nossos soldados.

Caroline olhou para Hearst do outro lado da sala. Ele estava conversando com alguns editores de vários jornais de sua proprie­dade; ou melhor, os editores, liderados por Brisbane, conversavam enquanto o Chefe escutava enigmaticamente. Pela primeira vez em sua vida Caroline teve consciência de um perigo real. Alguma coisa estava mudando em sua república livre e tranqüila — em certos casos tranqüila demais. Embora ela e Blaise tivessem contribuído para o espírito belicoso — o Tribune foi o primeiro a favor da guerra ao lado dos Aliados —, ela não pensara nas conseqüências daquilo que ajudara a criar. Aprendera com Hearst que a verdade era o único critério pelo qual um artigo podia ser julgado, mas ao mesmo tempo não duvidava de que, enquanto o seu Tribune dava des­taque a atrocidades reais ou fictícias cometidas pelos alemães, os vários jornais de Hearst estariam defendendo sentimentos pró-germânicos. Cada um deles criava "fatos" com o fim de venderem jornais; além disso, cada um deles tinha uma opinião formada que só se satisfazia quando era impressa. Mas a de Hearst agora emudecera. A grande democracia decretara que só se podia ter uma única opinião de uma guerra imensamente complexa; caso contrário, a prisão es­tava pronta para receber aqueles que decidiam não se curvar à ordem do governo, que, por sua vez, refletia um espasmo de histeria nacional que ela e os outros editores tinham tão oportunisticamente criado, com o apoio maior que o costumeiro por parte de demagogos políticos de seu próprio país e propagandistas pagos pelo estrangeiro. Agora o governo convidara Caroline para fazer com que o cinema criasse fundamentos lógicos cada vez mais simplistas, para aquilo que secretamente ela, apesar de seu favoritismo francês, viera a consi­derar uma guerra sem sentido. No entanto, ficara atônita ao descobrir que alguém tinha realmente sido preso por fazer um filme. Onde ficava a tão venerada Constituição nisso tudo? Ou nunca fora mais que um documento a ser usado pelos dirigentes do país quando lhes convinha, e fora isso ignorado?

— O seu amigo Sr. Goldstein vai ao Supremo Tribunal?

— Acho que ele não tem dinheiro para isso. De qualquer maneira estamos em guerra, de modo que não existe liberdade de expressão. Não que sempre tenha havido muita.

O senhor é severo demais. — Caroline correu em defesa do que era, afinal de contas, o seu país. — Pode-se, ou podia-se, dizer, ou escrever, quase qualquer coisa.

— Lembra-se daquele filme com Nazimova? Noivas de guerra? Em 1916?

— Aquilo foi uma exceção.

Em 1916, uma versão modernizada de Lisistrata tinha irritado de tal maneira os defensores da guerra que fora retirada de cartaz.

Foi em época de paz.

Bem, ninguém foi preso.

A reação de Caroline foi tíbia. De que maneira estranha, de que maneira gradual, as coisas tinham saído erradas!

Será engraçado se pegarem o Sr. Hearst.

— Já tentaram antes. Lembra-se de quando o coronel Roosevelt responsabilizou-o pelo assassinato do Presidente McKinley?

— Aquilo foi só politicagem de tempo de paz. Mas agora podem trancafiá-lo se ele não elogiar a Inglaterra e atacar os alemães...

E os irlandeses? — Caroline acertara o alvo de Farrell. — Por não ajudarem a Inglaterra?

— Bem... — Farrell aceitou a Coca-Cola que George lhe servia. — O seu amigo Sr. Creel está agindo rápido. Fui convidado para fazer parte da divisão de cinema do comitê dele, trabalhando com o Serviço de Comunicações do Exército para glorificar nossos soldados.

— Mas eles ainda não fizeram coisa alguma. É claro que quando fizerem...

Estaremos prontos. A senhora é muito bonita, sabia?

Como ninguém dissera tal coisa a Caroline desde que ela tinha nove anos, ela concluíra que a beleza que pudesse ter tido era lite­ralmente indiscernível, portanto indiscernida.

— Acho que o senhor acha bonito — ela foi precisa em seu êxtase — o meu retrato projetado dez vezes maior que o normal num lençol, o que não é a mesma coisa que eu.

— Não. É a senhora mesmo. Desculpe-me, não tenho modos. — Ele riu, depois tossiu. — Meu pai era dono de bar em Boston.

— O senhor é muito educado. O que estou questionando é o seu gosto. Mas sem entusiasmo, como dizem os franceses. Na minha idade posso aturar um bom número de elogios sem perder a cabeça.

Caroline permitiu que o Sr. Farrell a acompanhasse até a sua barraca, onde, ao luar, em meio aos uivos de coiotes, um homem que não era o seu amante beijou-a. Ela percebeu que os lábios dele eram muito menos macios e gostosos do que os do vaqueiro de Minos.

— As mulheres não são destinadas a ter tudo — comentou com Héloise, que a ajudava a despir-se. — Ou, talvez, coisa alguma. — Mas isso soava arrumadinho demais, além de errado. — Quero dizer, coisa alguma que possamos desejar de verdade.

 

Para Jess Smith o Natal significava a rua principal de Washing­ton Court House com a árvore de Natal eletrificada no pátio do tri­bunal do condado e bastante neve e gelo para manter os médicos da cidade ocupados com gessos e ataduras. Além disso, ele estava feliz com .os negócios da loja. Por uma razão qualquer, a guerra estimulava as pessoas a comprarem tudo que viam; parado junto à entrada principal, defronte à moça com sua grande caixa regis­tradora preta, ele inalava o cheiro perfumado de dinheiro de Natal, uma embriagadora combinação de lã molhada e galochas de borra­cha. Automaticamente cumprimentava metade dos fregueses com seu costumeiro "Quequiá?"

Jess cumprimentou Roxy com a mesma expressão, quando ela desceu a escada que vinha do apartamento da mãe. Roxy duvidara que fosse apropriado morar na loja do ex-marido, mas Jess não per­mitira que ela se mudasse.

— Você é a minha melhor amiga — ele dissera.

— Depois de Harry Daugherty — ela retrucara.

Roxy deu-lhe um beijo fraterno na bochecha gorducha, e juntos saíram para a noite fria. Roxy ainda sonhava ir para Hollywood e tornar-se estrela do cinema. Mas até conseguir fazer a viagem ela assistia todos os filmes que chegavam à cidade. No momento, no Strand, Geraldine Farrar fazia Joana, a mulher. Roxy adorava filmes históricos em geral e a gorda Farrar, uma cantora de ópera, em par­ticular. Como não havia filmes de bandidos em cartaz, Jess concor­dara em ir com Roxy, depois de um jantar leve no Blue Owl Grill.

Com sorte haveria um bom seriado acompanhando o filme, que já tinha um ano e só fora relançado por causa da guerra.

— É sobre Joana d'Arc Roxy explicou enquanto desciam lentamente a rua gelada, meio cegos pelos faróis dos automóveis que chegavam à cidade para compras de última hora.

Não me lembro desse nome. — Mas Jess conhecia todos os nomes da cidade, e cumprimentava alegremente os passantes.

— Você devia ter outros interesses além da política.

Roxy quase caiu, o que Jess considerou um pronto castigo do destino por sugerir que a vida dele era qualquer coisa menos idílica, excluindo-se uma certa tendência a ganhar peso. Jess equilibrou Roxy contra a parede; então de braços dados, o casal entrou no Blue Owl Grill, onde o proprietário disse "Quequiá?" primeiro, uma velha brin­cadeira com os antigos freqüentadores; e Jess foi levado à sua mesa nos fundos do que era, apesar de todo aquele recente nervosismo patriótico contra tudo que fosse alemão, uma cervejaria alemã dos velhos tempos, com sólida comida alemã e conhecida até recente­mente como o Heidelberg. Os proprietários eram um casal de suíços- alemães, ferozes em sua neutralidade.

Bratwurst e sauerkraut. — Jess sempre pedia o mesmo jantar.

— Salsicha e repolho liberty — corrigiu a enorme garçonete

alemã sem um sorriso.

— Dá para imaginar? — fez uma voz de mulher. — Mudar os nomes só porque são alemães!

Era Carrie Phillips, sozinha à mesa ao lado. Mesmo tendo a idade de Jess, ela parecia mais que nunca uma deusa viking, com cachos dourados emoldurando um rosto que não recorria à ajuda de cosméticos.

— Às vezes acho que as pessoas estão doidas — Carrie acrescentou, para inquietação de Jess.

Afinal, não era hora dê levantar a voz em público a favor dos alemães ou de qualquer coisa alemã. Em muitas cidades não se podia executar a música de Wagner, o que estava muito bom para Jess, mas no início da semana o Congresso declarara guerra à Áustria, e Jess rezava para que isso não significasse o fim das valsas de Strauss, a única dança que ele sabia executar com prazer e com uma certa graça. Jess não estava preparado para tanto ódio. Tam­pouco estava W.G., cujo grande amor achava-se sentado à mesa pró­xima a Jess e Roxy.

Onde está Jim? — Roxy perguntou.

Carrie colocou o casaco sem se levantar, com o auxílio de Jess.

— Foi buscar o carro. Vamos voltar para Marion esta noite.

Nessas estradas cheias de gelo? Ora! — fez Roxy.

As relações entre Jess e sua loja e Jim Phillips e sua loja de Marion sempre tinham sido surpreendentemente boas, considerando- se que na era do automóvel a distância entre as duas cidades redu­zira-se a praticamente nenhuma, tornando-os concorrentes. Mas Jess não era ambicioso, ao passo que a ambição que Jim pudesse ter era mais que compensada pela filial da Uhler-Phillips que ele abrira na cidade de Nova York, bem na Broadway. Depois dos Harding, os Phillips eram a primeira família de Marion, talvez de todo o condado de Fayette. A ironia era tanto maior porque, sem que a Duquesa e Jim soubessem, W.G. e Carrie Phillips foram profundamente apai­xonados durante 12 anos. A princípio Daugherty ficara preocupado; depois compreendera que não havia possibilidade de um escândalo, no sentido de que os amantes pudessem chegar a querer casar-se um com o outro ou que houvesse uma criança, e passou a aceitar a situação, como faziam aqueles que suspeitavam, e que eram muito poucos, ao contrário daqueles que sabiam, e que eram muitos, pelo menos em Marion.

O caso começara quando da operação de rins da Duquesa, que coincidira com a remoção de Jim Phillips, igualmente doente, para o hospital de Battle Creek em Michigan. Durante o verão, quando W.G. fazia o circuito de chautauqua,[2] apresentando-se numa cidade diferente a cada dia da semana, Carrie ia juntar-se a ele no anoni­mato caseiro dos hotéis de cidades pequenas.

Jess achava a coisa toda verdadeiramente romântica. Decerto eram o casal mais bonito de Ohio; por outro lado, não combinavam tão bem assim. Ela era um pouco nariz em pé, como Alice Longworth. Adorava a Europa; pior ainda, orgulhava-se de sua ascen­dência alemã; ainda pior que isso, não cessava de falar no assunto.

Imaginem, Jim e eu tínhamos reservas no Bremen para o verão. Eu tinha esperança de passar talvez um ano na Alemanha, aperfeiçoando o meu alemão. Agora esta guerra...

Ela franziu a testa. Várias pessoas das mesas próximas voltaram-se para olhar. Jess enrubesceu e fingiu que era um soldado na Frente.

Bem, não vai durar — comentou Roxy.

Estava alegre. Jess finalmente convencera-a a cortar os cachos tipo Mary Pickford; como resultado, os cabelos curtos, de um ver­melho não muito natural, faziam-na parecer mais jovem que seus 35 anos. Mais gamine, como ela dizia; Roxy também passara um ano na Europa e podia ser quase tão esnobe quanto Carrie.

— Agora que nossos rapazes estão lá — acrescentou, inespera­damente patriota, e as cabeças voltaram-se para seus jantares.

— Acho que nossos rapazes terão momentos difíceis contra o maior exército da terra — Carrie declarou friamente, com delibe­ração e elegância, que para ela significava o uso de um leve sotaque alemão. — Nós... eles — ela demorou um pouco a mudar o pro­nome — estão ganhando na França, e agora, com os russos prestes a sair da guerra, Ludendorff vai empurrar os Aliados para o mar.

A nós também. — O tom de Roxy era áspero.

Jess colocou o guardanapo sobre o rosto; acabara de ser ferido em combate. Estremeceu, como sempre fazia ao pensar em armas, balas, morte.

— Não somos Aliados. — Carrie de súbito mostrava-se infantil, delicada e agourenta. — Não viu o que o Sr. Wilson disse? Estamos na guerra para que ela termine, e nada mais. Não vamos apoiar um lado .ou outro. Paz sem vitória. — Carrie sorriu para o seu próprio reflexo nas costas de uma colher pesada, que tinha gra­vada em letras góticas a palavra Heidelberg, uma lembrança do mundo anterior ao Blue Owl. — Não, o único meio de vencermos os alemães é com um general como Johann Josef Pfoershing.

— Quem? — Jess deixou cair o guardanapo e pescou um bolinho do prato de Roxy.

— Ele mudou seu nome para John J. Pershing.

Carrie mostrava-se triunfante: o general comandante da Amé­rica era um membro da raça dos super-homens, para não mencionar mulheres. Os fregueses sentados naquela área do Blue Owl agora falavam todos ao mesmo tempo.

Bem, nunca pensei — disse Roxy em tom pensativo, esquecendo-se de seu ano na Europa e voltando ao sotaque de Ohio.

— Acho que não são muitos os que sabem disso — fez Jess.

Ele estava preocupado. Se Pershing fosse um agente duplo, recebendo ordens do kaiser... Que enredo isso daria, pensou excitadamente; agora era um superespião, como antes fora um detetive nmador, atento às pistas, e capaz de encontrar um assassino numa »tiIn nplnliada, apenas pelo modo de movimentar-se.

— Fico feliz por W. G. ter finalmente tentado levar um pouco de juízo ao Senado, para variar, a respeito de toda aquela histeria dos Bônus Liberty. Fiquei enojada com aquilo, e foi o que disse a ele. O modo como falavam em crimes alemães, e em boches, esque­cendo-se de todos os crimes que esses franceses morenos estão co­metendo, e os ingleses.

— Pelo menos contra os irlandeses — disse Roxy sem pensar.

Então Jim Phillips, amarelo, magro e franzino, juntou-se a eles.

O carro está lá fora, Carrie.

Jim cumprimentou Jess fraternalmente como um colega da Con­fraria dos Alces, sorriu para Roxy e ajudou Carrie a levantar-se.

— Temos uma viagem dura pela frente, com a neve caindo novamente...

Carrie agigantava-se perto do marido, como a rainha da Inglaterra perto do dela; e postava-se tão ereta quanto um bambu.

Diga a nossos amigos de Washington que eu... — Mas modificou o que quer que pretendesse dizer — ... que estamos com saudades.

Isto mesmo — corroborou Jim.

Trocaram votos de feliz Natal. Roxy olhou para Jess, que olhou para Roxy.

Ela não pára — comentou Roxy.

Eu gostaria que parasse. — Jess bebeu cerveja de uma caneca de estanho.

Senhor...

Jess ergueu os olhos para um jovem gorducho, com a metade inferior de um. bigode; o resto não crescera ainda, ou não havia para crescer.

— Se me permite interromper sua refeição, senhor... — O homem tirou uma carteira do bolso interno e abriu-a pela metade, de modo que apenas Jess visse que ela continha um distintivo. A voz sussurrou: — Silas W. Mahoney, Serviço Secreto dos Estados Unidos.

Sente-se.

Jess mal conseguia falar. O terror e a excitação deixavam-no literalmente sem fôlego. Por um instante chegou a parar de respirar. Era o mais alto que se podia chegar no mundo dos detetives: investi­gadores secretos do próprio governo, sempre em ação, capturando criminosos e protegendo presidentes — e a liberdade, também.

— Que foi que você fez, Jess? — perguntou Roxy, mais curiosa do que preocupada.

O Sr. Mahoney sentou-se numa cadeira entre eles. Felizmente o restaurante estava tão cheio que as chegadas e saídas na mesa de Jess passaram despercebidas.

— É a respeito da Sra. Phillips — informou o homem do Serviço Secreto, retirando do bolso do paletó um bloquinho e um lápis.

Como sabe, estamos em guerra.

O Sr. Mahoney esperava que essa notícia causasse mais efeito do que causou. Mas Jess ainda respirava com dificuldade, e Roxy não se deixava impressionar pela lei em geral e pelo Sr. Mahoney em particular. Este disse, bem devagar:

—A Sra. Phillips.é uma mulher de alguma influência aqui em Ohio, e em Washington também.

— A filial da loja não é em Washington — disse Roxy, com um sangue-frio que Jess admirou e invejou. — Fica na Broadway, na cidade de Nova York. Uhler-Phillips só é influente em matéria de utilidades domésticas, Sr. Mahoney.

— Não ouvi o seu nome. — O Sr. Mahoney pousou o lápis sobre o bloquinho.

Esta é a minha esposa — começou Jess.

Sou a ex-esposa dele, Roxy Stinson...

Smith — Jess acrescentou; estava começando a divertir-se com a situação. O Sr. Mahoney fez uma anotação. — Agora diga-me: por que exatamente está investigando a Sra. Phillips?

— Temos razões para crer que ela é uma agente alemã. Que fornece informações a Wilhelmstrasse.

Roxy soltou uma forte gargalhada, do tipo conhecido no condado de Fayette como gargalhada de cavalo.

— Bom, imagino que ela poderia dizer aos alemães qual será o desconto nos cobertores depois das vendas de Natal, e acho que ela é muito boa em roupa de baixo. A Uhler-Phillips tem a melhor coleção desta área de Ohio. ..

— Roxy! — Jess estava embasbacado. Ele se orgulhava da grande coleção de excitantes calcinhas de seda costuradas a mão da Smith's.

— Acho que não percebem o perigo que uma mulher com as idéias dela representa para uma grande nação em tempos de guerra.

O Sr. Mahoney tentava falar com calma, mas via-se que Roxy o irritava.

— Eu acho — começou Jess, sua mente tão excitável finalmente sob controle — que ela não conseguiria por aqui uma informação que o Wilhelmstrasse quisesse obter.

Sr. Smith, quando se trata de informações, o menor detalhe pode ser importante.

— Nisto o senhor tem razão! — exclamou Jess.

Aquele era realmente um artigo genuíno; o Sr. Mahoney poderia ter saído de uma história de Nick Carter.

— Escute, Sr. Mahoney. — Roxy agora acenava ao garçom para pedir a conta. — A Sra. Phillips é apaixonada pela cultura alemã, só isso. Trabalha para a Cruz Vermelha, como qualquer senhora pa­triota daqui, e não há coisa alguma para ela espionar em parte alguma por aqui.

Mas e quanto â Washington?

— Que é que tem Washington? — Roxy lançou um olhar ino­cente ao homem do Serviço Secreto. — Acho que ela não vai lá há anos. Vai, Jess?

Jess sacudiu a cabeça.

— Não tem oportunidade. Ela nem vai a Nova York, a não ser para pegar o navio para...

Roxy chutou-o por debaixo da mesa. Felizmente o Sr. Mahoney não conseguia escrever e escutar ao mesmo tempo, e não ouviu a parte perigosa.

Mas acho que Washington vem até ela, quando o senador Harding vem para Marion.

Um alarme soou na cabeça de Jess. Felizmente ele conseguiu acalmar os nervos fingindo ser um agente duplo, um superdetetive, que sábia muito mais que aquele insignificante parafuso na vasta maquinaria pinkertoniana. Usou de astúcia:

— O senador e a Sra. Harding são amigos íntimos do Sr. e da Sra. Phillips. Aliás, foram juntos à Europa há alguns anos...

— Para visitar a Alemanha, não foi?

— Não foi, não. — Jesse foi delicado, como Raymond Griffith, seu astro de cinema favorito: elegante, inabalável e raramente sem seu smoking. — A França e a Itália, principalmente procurando obras de arte.

  1. G. voltara para casa com duas estátuas de mármore de mulheres nuas, ao passo que a Duquesa comprara uma dama inteira­mente vestida chamada "Prudence, a Puritana".

— Entendo — disse o Sr. Mahoney, que, Jess percebeu, também não conseguia pensar e falar ao mesmo tempo, o que facilitava o trabalho de Jess. — Eles costumam viajar juntos...

— Costumavam. Mas isso nos velhos tempos. Agora o senador está ocupado em Washington, ou então viajando, nos chautauquas, c a saúde do Sr. Phillips não é tão boa, e ela tão ocupada na Cruz Vermelha...

— Por que acha que ela disse o que disse sobre o general Pcrshing?

Foi uma surpresa, que Roxy registrou:

— Então o senhor estava ouvindo...

— É o meu trabalho, Srta. Stinson. . . Sra. Smith.

— Acho que ela achou uma boa piada que nosso general-comandante contra os alemães seja alemão. Também acho bastante engraçado. Roxy ficou de pé. — Não queremos perder o filme — murmurou.

Jess ajudou-a com o casaco.

— Eu gostaria de saber... — começou o Sr. Mahoney teimosamente.

Roxy interrompeu-o:

— Se quer saber se o general Pershing é ou não um espião ale­mão, sugiro que vá até a França e pergunte a ele. De qualquer ma­neira — acrescentou, com típico entusiasmo — um rapaz forte como você devia estar mesmo na França, lutando por seu país, em vez de ficar incomodando senhoras em Ohio.

Aquilo acabou com o Sr. Mahoney, obviamente. Se houvesse, porém, uma verdadeira investigação sobre Carrie, o caso com W. G. viria à tona; se isso acontecesse, estaria tudo perdido. Mesmo en­quanto parabenizava Roxy pelo modo hábil com que ela tratara o detetive, Jess perguntava-se o que ousaria contar a Daugherty pelo telefone, que podia muito bem estar grampeado pelo governo. Subi­tamente o país inteiro tornara-se excitante e perigoso, e Jess sentia-se ao mesmo tempo excitado e apavorado ao ver que seus sonhos com espiões, detetives e fantasmas no armário de vassouras estavam começando a virar realidade.

 

Burden Day parabenizou o Presidente pelo aniversário recente. O rosto magro de Wilson parecia mais.melancólico que nunca.

— Obrigado, senador. Sessenta e um é uma idade turbulenta. O senhor ainda tem um espera ansiosa pela sua. Enquanto isso, diga ao senador Reed do Missouri que realmente comemoro meu aniver­sário em 28 de dezembro, e não em 25 como ele pensa.

Burden sentou-se num sofá junto à lareira, ao passo que o Pre­sidente escolheu uma cadeira reta em frente a ele. Não se comentava mais o fato de o Presidente preferir conduzir seus negócios no pe­queno escritório do andar superior em lugar do escritório presiden­cial na nova ala oeste. Sem dúvida ele gostava da proximidade do fantasma de Lincoln ou, mais provavelmente, da ampla presença de Edith.

Embora o Senado estivesse em breve recesso pelos feriados do Natal, poucas pessoas vindas do Oeste foram para casa. Burden e Kitty tinham mandado buscar alguns parentes; e como um caleidos­cópio, o Senado continuava a girar, arrumando suas peças compo­nentes em combinações sempre novas; o aliado da semana anterior era o inimigo da semana próxima. Apenas o código dos políticos de um favor por outro favor dava alguma forma ao clube muito peculiar que fizera de si próprio um lugar tão poderoso no esquema das coisas que até mesmo o Presidente, com todos os seus poderes de tempo de guerra, freqüentemente via-se à mercê da língua selva­gem de Jim Reed — um membro de seu próprio partido — para não mencionar o mais ou menos enlouquecido Henry Cabot Lodge da oposição.

Nesse dia, o último de 1917, o Presidente pedira a Burden que viesse vê-lo no final da tarde para juntos discutirem algumas das declarações que o Presidente faria ao novo Congresso sobre o curso da guerra e, mais importante, sobre a paz que se seguiria. Burden descobrira, havia muito, que Wilson não gostava de conselhos; conseqüentemente, o que mais fazia era assentir com um gesto e mur­murar sua concordância, grato à lareira acesa no aposento. Metade da Casa Branca fora fechada para poupar aquecimento; pelo menos assim Tumulty informara à imprensa. Certamente o saguão do andar térreo estava algo mais frio que o pórtico externo.

Enquanto a bela voz se arrastava, Burden fazia o possível para permanecer desperto. Se Wilson não gostava de conselhos, Burden não gostava de ouvir leituras. Finalmente o Presidente pousou as páginas, datilografadas por ele mesmo, Burden percebeu, reconhe­cendo o azul característico da fita da máquina de escrever de Wilson.

— Você percebeu aonde quero chegar. Tenho um grupo traba­lhando nos detalhes. Uma espécie de pesquisa, pode-se dizer, sobre o que fazer depois. Porque não há, não havia, sentido em entrarmos na guerra se no final não pudermos encontrar um meio de impedir essas empreitadas sangrentas.

— O senhor concorda com o Sr. Taft, o que deveria impressio­nar os republicanos ortodoxos — Burden decidiu opinar. — Se me permite dizer, acho um pouco cedo demais para falar como se já tivéssemos ganho a guerra, quando os alemães vêm destroçando os ingleses e ainda não fizemos muita coisa. Quero dizer, no campo de batalha.

Para surpresa de Burden, Wilson não se ofendeu.

— Concordo — afirmou. — Não estou planejando fazer um discurso amanhã, mas tentando definir qual deveria ser a nossa posição quando chegar o momento de...

Ele parou de falar, e Burden terminou, a seu modo, o pensamento do mestre da eloqüência.

— ...justificar uma guerra tão impopular para tanta gente, principalmente as pessoas da minha região, que são as que mais o apóiam.

Uma mancha vermelha formou-se em cada lado do rosto presi­dencial.

— Eu tinha a impressão de que a guerra agora é mais popular para o americano médio do que para mim. Apesar de todas as más notícias da França.

— Vai faltar carvão? — Burden fora convencido a fazer essa pergunta por vários senadores dos estados mineradores. — E o senhor vai... tomar alguma providência?

Wilson parecia taciturno. No dia seguinte ao do Natal, o Presidente encampara as ferrovias e colocara-as sob McAdoo.

— O senhor vai nacionalizar o carvão também?

Esse era o objetivo da visita de Burden, se não do convite de Wilson.

— Há... necessidades imperiosas, sim. A cidade de Nova York está perto de uma séria escassez; e hoje à noite a temperatura lá está abaixo de zero. Nós os obrigamos a racionar a eletricidade...

— "Nenhuma luz na Broadway."

A reação dos teatros tinha sido furiosa; a do Presidente, inflexível.

— Vai ser ainda pior. — Wilson levantou-se. À luz da lareira ele parecia um espantalho, mal definido e fisicamente incoerente. Caminhou arrastando os pés até sua escrivaninha e abriu uma gaveta, a qual Burden já sabia ser conhecida como A Gaveta, onde as men­sagens importantes e confidenciais eram armazenadas. Wilson reti­rou vários documentos. — A Rússia está fora da guerra. Os bolcheviques aceitaram os termos da Alemanha, não que tivessem alguma escolha. Eu tinha esperanças de ter o novo governo russo como aliado, mas agora o país deles está a desmoronar-se por inteiro. Wilson relanceou o olhar por uma das mensagens. De nosso cônsul em Harbin. Ele diz que Irkutsk, que fica na Sibéria, eu acho, está em chamas. Os bolcheviques mataram muita gente de seu próprio povo, assim como vários oficiais franceses e ingleses.

Acha que é verdade?

Eu não acho coisa alguma, senador. Eu leio o que me dizem ser um relato do que acontece quando extremistas tomam um país do tamanho da Rússia, do tamanho Wilson tornou a sentar-se em sua cadeira de espaldar reto — dos Estados Unidos. Acredito que fizemos todo o possível para manter aberta uma linha de co­municação com aquela gente. Não tenho escolha. Se a Rússia sair da guerra, isso vai liberar todo o exército alemão para reforçar a frente ocidental. E então? Wilson suspirou. Temos notícias tão ruins... — O Presidente tirou o pincenê e esfregou as duas mar­quinhas vermelhas a cada lado do nariz, que pareciam miniaturas daquelas que agora desbotavam em sua face. Há também a In­glaterra. Estamos caindo na rede deles. Nunca vi algo como a "pro­paganda" deles, como George Creel gosta de chamar. Como podemos convencer o mundo dê que estamos realmente desinteressados, não estamos pedindo qualquer território, coisa alguma, quando a Ingla­terra nos faz parecer um sócio no imperialismo, em vez do que real­mente somos, uma república que só deseja a paz...

Wilson podia fazer esse tipo de coisa durante horas, e, embora Burden admirasse o genuíno idealismo do Presidente, ele próprio tendia ao literal, ao objetivo, ao útil. Como se sentisse a inquietação de Burden, Wilson substituiu um documento confidencial por outro.

Este chegou ontem. É de Brest Litovsk, um apelo do bolche­vique Trotski. É americano, pelo que entendi. Pelo menos foi. Agora é o encarregado da delegação russa. Ele rejeita, graças a Deus, a essência do acordo alemão, mas por outro lado exige que os Aliados façam a paz, o que certamente me agrada, porém ele acrescenta esta bobagem intolerável:

Wilson leu um trecho da declaração de Trotski:

"Se os governos Aliados, na cega obstinação que caracteriza as classes em decadência e em extinção..."

Nós?

Wilson assentiu.

— "... novamente recusarem-se a participar das negociações, então a classe trabalhadora terá que enfrentar a necessidade férrea de arrancar o poder das mãos daqueles que não podem ou não que­rem trazer a paz para a nação." Wilson pousou o documento. Há aqui um grande perigo. Se os bolcheviques se impuserem, que efeito poderão ter em nosso próprio povo, em todos os comunistas, radicais e agitadores trabalhistas que temos aqui?

Burden não se impressionou com o temor de Wilson, se era mesmo temor e não uma simples encenação política.

Já que nunca imitamos a Rússia quando eles tinham um czar fascinante, duvido que o Sr. Trotski da cidade de Nova York, ou seja ele de onde for, tenha algum efeito. Mas pensei Burden abordou a verdadeira política do assunto que o Sr. Root tivesse feito um acordo com o governo provisório no verão passado.

Elihu Root, o mais brilhante, assim como mais conservador esta­dista americano, fora mandado pelo Presidente a Petrogrado para manter os russos na guerra. Como contrapeso, Wilson mandara com ele dois colegas, um dos quais um genuíno socialista americano. Ao mesmo tempo, para complicar as coisas, havia um Congresso do So­cialismo Mundial em Estocolmo. Depois de muita discussão pública, Wilson recusara-se a fornecer passaporte aos delegados americanos, invocando suas "declarações que significavam quase uma traição". Cada vez mais fundo, pensou Burden; mas sabia que, como ele pró­prio estava inteiramente inserido em seu lugar, sua época e sua classe, portanto ao mesmo tempo isolacionista e populista, o Presi­dente identificava-se agora com a classe dominante que vinha do Leste e que Burden não considerava americana, sempre mais disposta a aventuras estrangeiras com regimes que Burden mal teria tolerado por educação.

Não estou certo se "acordo" é a palavra correta. — O nariz de Wilson estremeceu de desagrado. Em maio o governo deles concordou em prosseguir a guerra contra a Alemanha, ao passo que nós lhe oferecíamos um crédito de trezentos milhões de dólares a juros muito baixos.

Foram comprados.

Foram comprados. Wilson foi igualmente direto. — Porém, como o Sr. Frick comentou a respeito do coronel Roosevelt, eles não permaneceram comprados. Sacudiu o documento secreto como uma bandeira, Isso foi em maio, quando eles nos amavam. Agora estamos em dezembro e eles não nos amam. Encorajam os piores elementos de nosso movimento trabalhista. Leia isto... Não.

Acabei de ler para você a mensagem do Sr. Trotski. Ele propõe que nossos trabalhadores nos derrubem. Wilson levantou-se e reco­locou os documentos em A Gaveta. No ano que vem, segundo todas as projeções, nossos sindicatos trabalhistas terão aumentado o número de membros em quatro milhões e meio.

Boas notícias para o Partido Democrata.

Vamos rezar para que não sejam boas para o Sr. Trotski. Ele está tentando arranjar capital, que é certamente a palavra errada, com Thomas Mooney, que é inocente, segundo ele próprio, das bombas em San Francisco...

Sempre achei que era.

Alguém, em julho de 1916, interrompera com bombas um des­file do Dia do Estado de Preparação. Nove pessoas morreram, e o radical trabalhista Mooney fora preso, julgado culpado de assassi­nato e condenado à morte.

Não estive no julgamento. Wilson foi jurídico. Mas nosso embaixador na Rússia quer que eu comute a sentença, coisa que acho que não posso fazer, pois a coisa toda está sob jurisdição do governador da Califórnia. O coronel House acha que eu deveria interferir, ou fingir que faço isso. De modo que vou criar um comitê de mediação e, se eles encontrarem novas provas, como esses comitês costumam fazer, pedirei ao governador, com todo respeito, que adie esse auto-da-fé até haver um novo julgamento, e assim por diante. Eles estão fazendo chantagem conosco!

Wilson esfregou a testa. Parecia doente. Um médico amigo de Burden asseverava que Wilson sofria de arteriosclerose precoce, com uma história longa e secreta de derrames. Tendo jurado segredo como todos os médicos, esse não conseguia manter silêncio a respeito de um assunto tão excitante. Não era o médico particular do Pre­sidente, o qual estava sob constante vigilância, despertando suspei­tas. Além disso, era fato conhecido que Grayson não permitia a seu paciente mais que três ou quatro horas de trabalho burocrático por dia, interrompido por numerosos passeios de automóvel ou a cavalo, ou partidas de golfe. No frenesi de Washington em guerra, a Casa Branca era o lugar mais tranqüilo. No entanto, não se podia dizer que esse Presidente não dominasse inteiramente a política da nação e provavelmente de seus aliados de tempo de guerra também. Burden nunca conhecera um cérebro tão capaz de relacionar rapidamente um fato a outro para obter a visão mais ampla possível do que lhe era necessário saber. Mas a necessidade de Wilson podia não ser a de Leon Trotski, ou a de Lloyd George na Inglaterra, ou a de Cle­menceau na França, ao passo que até mesmo para muitos senadores de seu próprio partido a visão mundial do Presidente era excêntrica. Havia ainda no Congresso alguns populistas antiquados que acredi­tavam implicitamente na acusação de Trotski de que os Estados Unidos entraram na guerra para proteger os empréstimos de J. P. Morgan aos Aliados. O próprio Burden, em seus dias de demagogia, inclinava-se a essa opinião simples e brilhante.

O Presidente, como sempre, uma vez feitas as considerações morais, desceu para a política prática. Burden sabia por experiência que o grande Wilson, no caso pouco provável de que qualquer dos muitos egos do Presidente fossem elevados àquela categoria princi­pal, era o chefe do Partido. Nenhum distrito congressional lhe era desconhecido. Sobre a escrivaninha ele tinha o que parecia um gran­de álbum de fotografias de família; dentro havia fotografias de cada membro da Câmara dos Representantes e do Senado. No início de seu governo ele estudara e decorara cada rosto. Burden era quase o único a saber que na eleição do ano seguinte Wilson planejava expurgar aqueles democratas, a maioria do Sul e do Oeste, que algu­ma vez o tinham desafiado. Burden avisara do perigo desse tipo de revanche, mas Wilson foi firme: queria extirpar as ervas daninhas de seu jardim, e acabou-se.

No momento o Presidente não estava pensando nas futuras elei­ções; em vez disso, ainda estava perturbado pela recente eleição do candidato de Hearst e de Tammany Hall para prefeito da cidade de Nova York, um juiz do condado de Brooklyn chamado John F. Hylan. Quando Hearst percebeu que sua própria candidatura dividira o Par­tido Democrata, ele e o chefe do Tammany, Murphy, escolheram Hylan para derrotar John Purroy Mitchel, o caso perdido. A eleição fora extraordinariamente amarga. O coronel Roosevelt fizera campanha a favor de Mitchel, denunciando seu velho inimigo Hearst como "um dos mais eficientes aliados da Alemanha neste lado do oceano". Hearst era o boche dentro de casa, mais perigoso que aqueles de fora. "Hearst, Hylan e Hohenzollerns devia ser o slogan de triunfo de Mitchel", Roosevelt declarara. O candidato de Hearst vencera por 147.000 votos. Tanto pior para a magia de Roosevelt.

Não entendo essa cidade. Nunca entendi. Wilson sacudiu a cabeça.

Eu entendo retrucou Burden. Ela é antiguerra, anti- Inglaterra, anti-França. O que não entendo é Hearst. Por que, tendo tudo que tem, ele se dá o trabalho?

— Para chegar aqui, meu amigo. Ele acha que será indicado em 1920; e eleito. Foi o acordo que fez com Murphy. — Wilson mostrava-se agora um político preocupado com os elementos funda­mentais do assunto. — Hearst fica fora da corrida para prefeito, financia Hylan, apóia-o em seus jornais, e Tammany Hall, agrade­cido, lhe dá a candidatura por Nova York no verão de 1920, daqui a uma eternidade.

— Mas, se sobrevivermos a essa eternidade, será o senhor, e não Hearst.

Wilson sorriu.

— Se eu me saí tão bem na guerra e depois na paz, posso vir a me considerar digno...

O senhor é modesto. Será eleito por aclamação.

— Não, senador. Isto nunca. Não sou um homem popular, como Roosevelt. Nada é muito fácil para mim. Nada. Nada mesmo.

Burden assentiu em melancólica concordância com essa espan­tosa falsidade. Em exatamente dois anos Wilson fora eleito governa­dor de Nova Jersey e Presidente. Nenhum político americano tivera um progresso tão rápido e fácil. Porém ninguém sabia como o pró­prio Wilson via essas eleições, ou como ele via a si próprio em rela­ção a esse campo, muito menos à história. Vaidoso de suas façanhas intelectuais, ele era estranhamente modesto quanto à sua habilidade política. Burden pensou com uma certa inveja: poderia ser ao con­trário. O Wilson professor era, como Lodge gostava de lembrar a quem quer que estivesse disposto a ouvir, bastante trivial, mas como político e como um eloqüente — embora às vezes monótono — enunciador da natureza mais elevada do homem, Wilson era único.

Conhece Hearst?

Burden assentiu.

Estive muito com ele quando ele estava aqui no Congresso.

— É incrível imaginá-lo num trabalho tão humilde.

— Ele também estava um pouco espantado. Tive que mostrar- lhe como se apresenta um projeto.

— Fico pensando se ele poderia ser acusado de traição — comentou Wilson, sem escutar.

Burden descruzou as pernas e seus dois pés bateram no chão simultaneamente.

Por quê?

Por ajudar a causa alemã em tempo de guerra. É claro que não sou especialista em Direito Constitucional e nunca estudei a Lei de Espionagem, mas parece que poderíamos acusá-lo de ajudar e favorecer o infame Paul Bolo Pasha, um espião alemão reconhecido. Afinal, Hearst costumava recebê-lo em Nova York.

Durante a eleição, muito se dissera sobre a ligação de Hearst com o mal-afamado Bolo, que mais tarde recebera dinheiro de Bernstorff para subverter os franceses, que o tinham prontamente aprisionado. Colocado na defensiva, Hearst dissera que encontrara Bolo apenas uma vez; e passou a imprimir ainda mais bandeiras coloridas na primeira página do Journal.

Bem, Sr. Presidente, eu teria muito cuidado com Hearst. Ele é capaz de qualquer coisa.

— Eu também — respondeu o simpático velhinho, que era pastor presbiteriano, sentado na cadeira em frente.

— Sim — fez Burden, deixando o assunto morrer.

— Lembra-se daquele seriado horrível, Pátria, que Hearst fez há dois anos?

Burden assentiu. Sempre que havia falta de notícias, Hearst invocava o Perigo Amarelo. Mas em Pátria ele sobrepujara a si mes­mo. Misturara o Perigo Amarelo com bandidos mexicanos, todos de­dicados à destruição dos Estados Unidos. O governo japonês queixa­ra-se amargamente.

— Eu costumava acompanhá-lo no Keith's — revelou Wilson. —• Ridículo, eu achava. Mas tive que escrever-lhe uma carta pedindo- lhe para interromper o seriado. O cinema tem um efeito muito forte na opinião pública. Pode até alterar as circunstâncias. — Wilson riu. — Acabei de fazer uma paráfrase de Burke que se aplica a nós todos: "A conveniência e a sabedoria das circunstâncias."

Burden assentiu, mostrando apreciação; então fez sua própria frase de efeito:

— A sabedoria é achar conveniente não fazer coisa alguma.

Edith entrou no final da frase de Burden.

— O clã está se reunindo. Fique conosco, senador.

— Não, não. Já é tarde. Meu próprio clã vai se reunir e...

Festa de Ano-Novo nos McLean.

Exatamente.

Burden desejou ao Presidente um feliz Ano-Novo; recebera não apenas a informação que desejava a respeito do possível confisco das minas de carvão mas dezenas de outras mensagens do tipo que os políticos trocam sem o uso de palavras faladas, às vezes compro­metedoras e sempre ambíguas.

Edith acompanhou Burden ao patamar frio e escuro. A única luz vinha da porta aberta do salão oval no andar superior, onde as vozes da família dela eram ligeiramente mais altas que as da dele.

Já tenho o livro.

Edith foi até a mesa de sua secretária sob a janela redonda no extremo do saguão. Burden esquecera inteiramente qual o livro que solicitara. Ela voltou com um volume fino. O título era Philip Dru, administrador. Burden lembrou-se: um romance do coronel House, publicado seis anos antés. Agora que House era o alter ego do Presidente na Europa, Burden tinha curiosidade em conhecer mais sobre aquele texano rico e elegante que desejava apenas servir como olhos e ouvidos do Presidente, embora nem sempre como língua, pois, se­gundo Edith:

Ele tem certa tendência a concordar com tudo. Há poucas semanas mostrei-lhe o discurso do Sr. Wilson ao Congresso, aquele quando ele confiscou as ferrovias, e o coronel não gostou nem um pouco. E me disse por quê. E fiquei realmente impressionada. De modo que aconselhei-o a dizer tudo aquilo ao Presidente no dia seguinte. Naturalmente avisei a Woodrow, e ele ficou aborrecido, porque pensa maravilhas do coronel House. Bem, no dia seguinte, Woodrow diz que lamenta que o coronel House não tenha gostado do discurso a respeito das ferrovias, e o coroftel ficou todo nervoso e disse: "Bem, eu o reli depois e agora concordo com todas as as palavras."

Essa, Burden pensou, era a única maneira de lidar com o Presi­dente; e ele passou a admirar ainda mais o coronel House. Burden despediu-se e levou o livro, que, pelo que lhe tinham dito, tratava do primeiro ditador dos Estados Unidos, um homem muito esclare­cido. e benevolente que, tendo resolvido todos os problemas domés­ticos, resolve também os do mundo, estabelecendo-se como chefe de uma Liga Mundial das Nações.

 

O fato de que a propriedade de McLean, chamada Amizade, tivesse sido anteriormente um convento nunca deixava de deliciar Blaise; ele e Frederika desembarcaram do que ela chamava "nosso iate de terra", um enorme sedã fechado, dirigido por um refugiado russo que falava francês e afirmava ter sido capitão da guarda pes­soal do czar. "Afinal, não é uma boa referência", Frederika comentara.

Amizade era um lugar extraordinário dentro dos limites do dis­trito de Colúmbia, e Blaise invejava aos McLean seus oitenta acres de lagos, riachos e parques; não lhes invejava a casa antiquada e algo vulgar com o teto baixo que os lúgubres aquecedores do século passado tornavam indispensável. Mas agora, depois do ar no­turno gelado, o calor da casa era um choque agradável. As estufas de Amizade tinham produzido centenas de plantas raras; e os apo­sentos recendiam a flores e lenha queimando. Uma vez despojados dos agasalhos mais pesados, foram calorosamente recebidos pelo mordomo. No fim das contas, segundo a opinião de Blaise, as únicas pessoas que se conhece bem na vida são os empregados, os garçons e os maîtres. Ele conversara mais com o maître do Cosmos Club do que com sua sogra, que agora postava-se, às cegas, na soleira do salão de visitas principal.

— É mamãe — murmurou Frederika com o mesmo tom de voz com que uma matrona do século XIV teria avisado a família do perigo da praga.

Simultaneamente o mordomo anunciou:

Sr. e Sra. Blaise Delacroix Sanford.

Mãe e filha beijaram-se, enquanto Evalyn aproximava-se, usando numa corrente aquele enorme e sinistro diamante Hope, e o cinti­lante Star of the East nos cabelos. Evalyn cumprimentou o editor rival com um beijo algo frio e borbulhante.

Não é uma maravilha? — ela exclamou.

— Você, como sempre. — Blaise perguntou-se o que era uma maravilha.

— Sim! — Evalyn abraçou Frederika, que conseguira combater e imobilizar a Sra. Bingham.

Dá para ver? — Evalyn lançou um olhar conspirador a Blaise, mas virou o corpo para Frederika. — Estou grávida.

Isto é maravilhoso. — Frederika tinha um modo de esticar as sílabas que fazia o interlocutor sentir como se ele apenas, de toda a população mundial, despertara não apenas o interesse dela, mas também sua admiração maravilhada.

Vinson precisa de um irmãozinho, eu disse a Ned.

E que foi que Vinson disse?

Ele só tem seis anos.

Eu, se fosse você, primeiro me livraria desse diamante — intrometeu-se a Sra. Bingham, sempre disposta a semear o terror.

— Ah, agora está tudo bem. Chamei um padre para exorcizá-lo. E em latim. — Evalyn apontou para um fantástico arranjo de or­quídeas escarlates, com três metros de altura. — Alice foi até aquela coisa e disse bem alto: "Boa noite, Sra. Wilson!"

Havia duzentas pessoas para jantar; depois, dançar até que 1917 tivesse entrado e se estabelecido. Blaise teve Alice Longworth como companhia ao jantar, como acontecia com freqüência, a pedido tanto dela quanto dele. Alice envelhecia com graciosidade; e Blaise per­guntou-se como a vida deles teria sido se tivesse se casado, uma idéia que ocorrera fugazmente a ambos, mas em ocasiões difereníes. Ela era decerto uma ótima companhia, mas Frederika estava longe de ser entediante. Por outro lado, Alice era, para sempre, a filha do Presidente Washington, Jefferson e Lincoln eram simplesmente me­ros precursores colocados em seus lugares pela história, como João Batista, para preparar o mundo para a maravilha que era Theodore Roosevelt, brevemente Presidente outra vez — pelo menos assim pensava Alice. E Blaise. Já que nada ligado à missão messiânica era trivial, ela provavelmente estava melhor com Nick Longworth, pas­sivo, amável e beberrão, rico congressista de Ohio, que estava sentado ao lado oposto da mesa, junto a uma mulher feia e demasiada­mente enfeitada que era, segundo Alice, a Sra. Wilson Gamaliel Harding, "a esposa do nosso senador". Alice fez o "nosso" soar como uma posse embaraçosa, um cão que acabasse de sujar um tapete valioso.

Nick costuma convidá-los para jogar pôquer em nossa casa. Eu fico maravilhosamente diplomática e muito, muito simpática. Dizem que ela só tem um rim, em lugar dos dois que poderia ter.

Geralmente você só mencionaria isso se estivéssemos co­mendo rins.

Alice cutucou com o garfo a massa em seu prato.

Tartaruga de água doce. Entende? Ando muito, muito diplomática hoje em dia porque precisamos de todo mundo, papai e eu. É claro que ela só poderia ter uma única tartaruga, localizada no terceiro queixo.

— Acho que ela pode escutar.

A Sra. Harding tinha os olhos azuis e frios fixos sem afeição em Alice, enquanto Nick, sempre cortês, cochichava em seu ouvido.

O jantar foi grandioso, como todas as recepções dos McLean. Até então Ned ainda não estava bêbado; e Evalyn estava em seu elemento. Dizia-se que ela era ainda mais rica que Ned, tendo minas de ouro no Oeste. Blaise considerava-a muito melhor que os outros novos-ricos do Oeste. Ao contrário das outras damas, ela adorava sua origem humilde e sua grande fortuna; comprava mais diamantes que qualquer outra pessoa desde Maria Antonieta e, em geral, criava euforia a seu redor. Quem mais teria iluminado seu palácio com tanto esplendor, quando as luzes tinham sido diminuídas em todo o país e até mesmo a Grande Via Branca da Broadway desligada?

Onde está Caroline?

Na outra mesa, eu acho.

Blaise vislumbrara a irmã em animada conversa com a tia de Ned McLeans, esposa do ex-embaixador da Rússia czarista. Blaise esperava que Caroline lembrasse que era jornalista e arranjasse al­guma notícia.

— É verdade que ela trabalhou num filme? — De repente Alice parecia mais ciumenta do que sarcástica.

Foi só uma brincadeira do Sr. Hearst.

— Hearst! — Aquilo mudav.a o assunto em definitivo. — Papai ainda acha que ele é o homem mais perigoso do país, e espião alemão.

— Não vejo o que ele poderia espionar, a não ser a Ziegfield follies.

Alice atacou novamente, dessa vez mirando a jugular do es­cândalo.

— Já esteve com ela?

Blaise assentiu. Parecia que todos estavam interessados no amor "secreto" do Chefe, Marion Davies.

É muito jovem, muito loura. Gagueja e o chama de "Pops".

Alice riu alto; depois pôs-se a gaguejar "Pops" diversas vezes,

até que a remoção da tartaruga permitiu que Blaise se dirigisse ao outro vizinho de mesa.

Depois do jantar chegaram mais convidados; e uma orquestra começou a tocar no salão de baile. Enquanto Blaise observava os dançarinos, tinha consciência de que alguém sentara-se na cadeira ao lado da sua. Era o embaixador inglês, Cecil Spring Rice, pare­cendo velho e cansado.

— Meu caro Blaise! É difícil acreditar que há uma guerra.

— Do outro lado do mundo. Tudo me parece irreal, e eu sou na verdade francês, sabe?

Blaise fez uma confissão tão falsa para poder consolar o inglês pelo derramamento de sangue. Decerto os filhos da classe dirigente inglesa estavam sendo usados para adubar os campos da França; e qual seria a colheita?

— Este é o meu último Ano-Novo em Washington. De modo que vim apreciar o espetáculo pela última vez.

Blaise sabia que houvera problemas entre Spring Rice e os Lordes Reading e Northcliffe, recentemente enviados pelo governo britânico como representantes dos políticos; além disso, a antiga amizade de Spring Rice com Roosevelt e Lodge não o recomendava aos Wilson.

Quando parte?

Spring Rice deu de ombros.

— Quando me ordenarem. Imagino que por volta de abril, quando faço sessenta anos e me aposento. Como as coisas mudaram desde que eu era jovem! — Seu estado de espírito era elegíaco. — Vim pela primeira vez como secretário. Eu era muito jovem. Naquela época Washington era considerada uma capital menor. Buenos Aires era mais desejável, mais na moda. Agora... veja!

Blaise viu o diamante Hope balançando de um lado para o outro como o pêndulo de um relógio altamente sinistro.

A coisa agora chegou até nós — concordou Blaise. — Mas não tenho muita certeza de que saberemos o que fazer com... o mundo inteiro.

— Vocês pensarão em algo, tenho certeza. De qualquer maneira, vocês não são a Alemanha. -— Spring Rice franziu o cenho. — Por outro lado, a Alemanha também não é mais a Alemanha. Antigamente eu achava que se podia generalizar, de um modo vago, a respeito de uma nação, um povo, uma tribo. Mas não se pode. A Alemanha da minha juventude era o país mais civilizado do mundo, e meus colegas alemães os mais inteligentes e profissionais. Depois...

Os boches?

— Existem boches em todos os países, estou convencido. Os militares, os boches, dominaram a minha Alemanha.

— Por que os seus boches não dominaram o seu império?

— Somos preguiçosos demais para esse tipo de coisa. A indolência sempre salvou a Inglaterra de si mesma.

— Será que vai nos salvar?

Blaise percebia, com certo espanto, a facilidade com que o governo conseguira criar tanto ódio no povo americano. Embora não houvesse coisa alguma que Blaise não soubesse a respeito de mani­pulação da opinião pública, até mesmo ele se espantava com a efi­ciência e a rapidez com que pessoas como George Creel tinham con­seguido tornar maligno tudo que se relacionasse à Alemanha. Se isso podia ser feito tão depressa com um povo cuja ascendência compro­metia uma minoria bastante significativa do povo americano, também poderia ser feito muitas vezes por qualquer governo, e com qualquer propósito.

Vocês não são um povo indolente e preguiçoso. Spring Rice era preciso. São também mais suscetíveis do que nós a... emoções tempestuosas.

— Exatamente o que eu estava pensando. Minha irmã esteve em Hollywood, onde agora estão fazendo filmes sobre os boches bestiais, e milhões de pessoas vão ver esses filmes e acreditam no que vêem.

Spring Rice sorriu ao comentar:

Assim como acreditam nos meus relatórios e nos seus editoriais.

Mas nós temos uma certa dose de vergonha, não temos?

O embaixador assentiu.

Temos, sim. Mas nunca tenho certeza a respeito daqueles que nos governam. O Presidente me fez a gentileza de explicar o que é que ele faz.

— Conte-me! Eu jamais saberia.

Aparentemente, ele é um barómetro em forma humana. Re­gistra com precisão o estado de espírito popular. Então, quando esse estado não é mais... variável?... ele age de acordo com ele.

O qual o senhor, eu e os filmes criaram para ele.

Nós criamos parte dos fenômenos meteorológicos. Mas não tudo. Na verdade, ele me parece muito mais um nadador tentando evitar que uma onda caia em cima dele enquanto tenta encontrar outra que o leve até a praia.

O senhor preferia Roosevelt. Eu sei. Blaise desculpou-se imediatamente pela gafe: — Desculpe-me. Eu não devia ter dito isto.

Não ouvi coisa alguma além da música, meu caro Blaise, e não vi coisa alguma além da minha querida esposa ali, ensinando um senador a dançar o foxtrote.

O que o senhor fez... faz pela Inglaterra!

Fiz tudo. Então, por um instante, Spring Rice ficou sério. Você sabe, o Presidente, mais o coronel House, que é o Buckingham dele, acredita que deveria existir uma liga pós-guerra, um acordo de todos os países, para manter a paz.

Eu também. E também Taft, que lhe deu a idéia.

Eu também, imagino. Mas também sou um barômetro, sem dúvida um barómetro velho, doente e estrangeiro, mas normalmente consigo prever o tempo por aqui, pelo menos as tempestades, quando eu, o barómetro, começo a cair. Essas pessoas, o seu povo, jamais entrarão em tal organização.

Blaise ficou surpreso. Afinal, era a opinião notória daqueles que chefiavam o país e moldavam a opinião pública que tal organização era altamente desejável. Se podiam tão facilmente fazer o povo odiar tudo que era alemão, então certamente podiam fazê-lo amar um meio burocrático de manter a paz para sempre.

— Não vejo obstáculo algum. Os republicanos são ainda mais favoráveis a uma liga do que os democratas.

Não vai funcionar assim. Os americanos estão demasiado acostumados a andar sozinhos no mundo. Vocês estão também no início de seu próprio império, e nenhum império em expansão deseja comprometer-se com a paz quando ainda existem tantas guerras lu­crativas a serem encetadas.

O senhor me deixa atônito.

Caroline e um homem magro, moreno e de olhos azuis aproximaram-se deles. Embora ela tivesse feito as apresentações, Blaise não escutou o nome do homem. Obviamente não era de Washington. Caroline estava esplêndida, toda em dourado; e parecia dez anos mais nova do que antes da viagem à Califórnia, onde, seguindo as instruções de Creel, ela entusiasmara a indústria do cinema a fazer esforços ainda maiores, se possível, no campo da propaganda. Spring Rice foi afastado por Ned McLean, cuja sobriedade aproximava-se do fim, como o ano velho.

Ouvi falar tanto em você!

O sotaque era irlandês de Boston. O tipo de coisa que as pessoas, encontravam na Califórnia, pensou Blaise reprovadoramente. Sentiu vontade de saber se Caroline estava tendo um caso com ele.

— Bem, eu nunca ouvi falar em você. —- Blaise irradiava o que ele esperava ser simpatia. — Mas a culpa é de Caroline.

— A culpa é sua — retrucou Caroline. — Nós não nos encontramos fora do trabalho...

— Não nos encontramos no trabalho também. — Blaise mostrava-se bem-humorado. — Existe um editor que nos mantém sepa­rados. Que é que está fazendo por aqui?

Visitando Caroline.

Sim, eram amantes. As mulheres, Blaise percebeu não pela pri­meira vez, não tinham bom gosto em matéria de homens. O irlandês era mais novo que ela, e felizmente sua educação francesa os liber­tara do poderoso tabu americano: a monstruosa mulher mais velha que, como um vampiro, suga, destrói, a rara essência da masculinidade jovem e inocente. As mulheres francesas, tanto na cama quanto na feira, valorizavam les primeurs.

Timothy nunca tinha vindo a Washington. De modo que eu quis mostrar-lhe uma festa típica.

— É exatamente como DeMille — Timothy comentou.

DeMille de quê? — fez Blaise.

Nesse momento as luzes do salão foram apagadas. Então um extremo do aposento iluminou-se cçm mil luzes vermelhas, brancas e azuis que escreviam: "Boa Sorte aos Aliados em 1918." Houve aplausos. A orquestra tocou "Auld Lang Syne". Todos cantaram alto. Blaise beijou a bochecha de Caroline e apertou a mão de Timothy. Caroline então beijou Timothy nos lábios. Em meio a todo ruído dos busca-pés e da música, ela comunicou a Blaise:

Vou fazer um filme em 1918.

Então acenderam-se as luzes novamente e começou-se a dançar. Blaise voltou-se para Caroline, que definitivamente estava tendo um caso com Timothy.

Estou ficando surdo — declarou. — Pensei que você tinha dito que vai fazer um filme em 1918.

— Eu disse, Blaise. E vou.

Caroline e Timothy juntaram-se aos dançarinos. Frederika surgiu para o beijo de Blaise.

O nome dele é Timothy X. Farrell — disse ela, omitindo o "feliz Ano-Novo". — Ele dirige filmes, ou será que o certo é rege filmes?

Eu tinha esperanças de que ele fosse um motorista — respondeu Blaise, de bom humor. — De qualquer maneira, o que Hearst fizer, ela faz. Talvez o tenha conhecido como corista no Follies.

Ótimo para ela, eu acho. Ela andava entediada. Frederika pegou uma taça de champanhe de um garçom.

— Não está entediada agora.

Então Blaise e Frederika começaram o novo ano com uma valsa.

 

Para Caroline, o amor sempre significara se significava algu­ma coisa separação. Nos dias dourados de seu caso com Burden, ela só podia vê-lo aos domingos em Washington; com raras excursões a outros lugares, a exóticas cidades ribeirinhas como St. Louis, e à maravilhosa neutralidade dos quartos de hotel. Ela não precisava de Burden ou de qualquer outra pessoa todos os dias. Tinha uma vida cheia, a começar por sua guerra de sete anos contra Blaise por sua parte na herança Sanford. Embora Blaise tivesse ganho a guerra no sentido de que ela recebera seu capital aos 27 anos e não aos 21 como exigia o testamento do pai, ela alcançara a maior vitória ao comprar um jornal moribundo em Washington e fazer dele um su­cesso, principalmente porque Blaise sempre almejara ser jornalista como seu amigo e por algum tempo patrão Hearst. Mas foi Caroline e não Blaise quem ressuscitou o Washington Tribune. Finalmente, numa conferência de paz na exótica St. Louis, ela lhe permitira com­prar parte do jornal, embora retivesse o controle.

Mas controle de quê?, perguntava-se, atravessando cautelosamente a calçada cheia de gelo defronte à villa românica de Henry Adams, que ficava em frente à igreja clássico-bizantina de St. John, cuja cúpula dourada desafiava a sisudez recatada do Parque La- fayette. A necessidade, fosse qual fosse, que ela pudesse ter de um poder político tinha sido inteiramente extinta por seus anos em Washington. Vistos de perto, os dirigentes do país não eram dife­rentes dos dirigidos, ou, se fossem, ela não conseguia distinguir a diferença. Importante era o dinheiro, e nada mais. Para qualquer pessoa criada numa nação cuja peça teatral mais importante chamava-se O avarento, isso não deixava de ser agradável, em particular se a pessoa tivesse bastante do que era importante. O problema agora era o que fazer com o que restava de sua vida. Tim, como ela agora, com certo embaraço, chamava Farrell, entrara em sua vida regrada como uma ventania repentina num piquenique em Newport, deixando tudo em desordem.

Em Los Angeles, seus dias eram passados nos prédios parecidos com celeiros, surpreendentemente pequenos, onde os filmes eram criados numa velocidade muito alta; e as noites em "ceias", como se dizia na Califórnia, com os homens e mulheres mundialmente famosos que eram os astros, cada um menor que o outro; apenas suas grandes cabeças em proporção aos corpos pequenos demonstra­vam um obscuro princípio darwiniano qualquer segundo o qual, quando a evolução precisou de astros de cinema, aqueles mais adaptados à tela — cabeças volumosas sobre corpos pequenos — esta­riam prontos para fazer a viagem para a Califórnia "porque faz sol o ano inteiro", proclamava a cidade. Na realidade, havia neblina quase todas as manhãs e mil outros lugares teriam sido mais apro­priados, a não ser por um detalhe fundamental — a fronteira mexi­cana ficava a 150 quilômetros apenas. Como todos os fazedores de filmes na Califórnia usavam equipamento desenvolvido pelo versátil gênio de Edison, e como nenhum deles respeitava suas patentes, a aldeia era cheia de detetives atentos, esperando vislumbrar alguma coisa chamada Alça Latham, a qual, se encontrada em uso, poderia levar a tiroteios e infindáveis processos na justiça.

Caroline gostava da vida de fronteira. Gostava também de seu primeiro caso em muitos anos. Embora irlandês e freqüentemente bêbado, Tim era, para usar o popular verbo novo, entusiasmado pelo sexo, e Caroline sentia-se rejuvenescer a cada dia. E nunca deixava de sentir dor em todas as articulações, porque, como Héloise sabia e orgulhosamente explicou, "a senhora finalmente está usando todos os seus músculos". Caroline sentia-se como um pugilista em treina­mento, enquanto ela e Tim faziam o mínimo de barulho possível no Garden Court Apartaments, dos quais todo o pessoal de cinema — exceto eles — tinha sido barrado pelo gerente, um nativo de Iowa. Tim explicou a Caroline que a maioria dos habitantes de Hollywood eram pacíficos fazendeiros do Meio-Oeste aposentados, que estavam embasbacados ao encontrar sua aldeia invadida de repente pela be­leza e pelo vício, por judeus e oficiais de justiça.

Tim voltara para a Califórnia logo depois do Ano-Novo. Caroline iria encontrar-se com ele, mas no momento permanecia em Washing­ton. Hearst já propusera que ela comprasse ações de seu novo em­preendimento, a Cosmopolitan Pictures, já fazendo filmes em seus próprios estúdios em Nova York, na Segunda Avenida com Rua 127. Mas Caroline estava cautelosa com Hearst. Para começar, ele con­seguia absorvê-la com demasiada facilidade; depois, ela e Blaise ti­nham levado um susto ao descobrir que Hearst estava negociando a compra do Washington Times, com o propósito de fazer dele o que ela tinha feito do Tribune. Blaise concordara com ela que deviam manter Hearst fora de Washington, mesmo que isso significasse com­prarem eles próprios o Times e fundi-lo ao Tribune. Finalmente, se Caroline quisesse desempenhar sua tarefa de guerra, o lugar onde deveria estar era a Califórnia. Além disso, era onde Tim estava. Agarre a sua chance, como Burden gostava de brincar quando seus corpos ainda eram novidade um para o outro.

Henry Adams sempre tivera o tamanho de um astro de cinema mas agora, com a idade, quase não estava mais presente na sala. A volumosa cabeça calva e barbada parecia solta ao flutuar perto do chão no escritório que sempre recendia a lírios e rosas, não impor­tava a estação do ano. Ali começara sua vida em Washington, pensou Caroline ao abraçá-lo; agora era ali que terminaria? Estaria ela des­tinada a terminar seus dias no outro lado dos Estados Unidos, usando perneiras e calças de montaria, gritando ordens através de um mega­fone para atores minúsculos, quando a neblina de Santa Mónica finalmente se dissipava?

Estou adiantada?

— Eu é que estou atrasado. Atrasado demais.

Adams levou-a até uma cadeira junto à lareira. Toda em cinzento, Aileen Tone cumprimentou-a baixinho. Caroline teve a im­pressão de que Adams era mantido como um ovo Fabergé, raro e frágil, num ninho cuidadosamente arrumado, acolchoado e aquecido: o ovo então chocaria? Sim, se a morte fosse o choco definitivo.

Theodore, outrora Rex, está na cidade. Mas por que lhe conto isso, se você é a cidade?

É verdade, os ecos fizeram-se ouvir. Ele vem para o almoço?

— Aqui? Ah, não. Eu tenho meus princípios, não muito elevados, confesso, exceto quanto a sobrinhas, mas certos peixões nunca conseguirão subir o rio para chegar até mim. Mas ela virá. Minha sobrinha mais velha, Edith, e a filha Alice.

Eu gosto dela.

Algumas pessoas achavam significativo da saúde frágil de Roosevelt que a esposa Edith viesse a Washington com ele na esteira dos Quatorze Pontos do Presidente (quatro mais que Deus, era a piada corrente) que tinham sido submetidos ao Congresso. O ponto prin­cipal envolvia uma liga de todas as nações que iria, diante do pri­meiro sinal de tensão entre quaisquer de seus membros, acalmar, arbitrar e tornar a guerra impensável.

Theodore Roosevelt correra à cidade para discursar no Clube da Imprensa Nacional. Lá, denunciou o Departamento de Guerra, que recusara seus serviços e, indiretamente, o Presidente. Foi sar­cástico, como sempre, em relação à "paz sem vitória" de Wilson e declarou: "Vamos ditar a paz pelo fragor das armas, e não conversar pela paz ao som de máquinas de escrever." Na ocasião, Caroline anotara devidamente o primeiro verbo. Mas Blaise vetara a publi­cação no Tribune de um ensaio sobre a necessidade ou não-necessidade de um ditador em época de guerra, algo que uma figura pacífica como Harding de Ohio considerava desejável. Na vida americana não houvera Bonapartes ou reis-sóis — apenas o ambíguo Lincoln. Quanto mais não fosse por causa de sua nacionalidade francesa, Ca­roline e Blaise tinham sido vacinados contra esse vírus. Mas Brooks, irmão de Henry Adams, aparentemente sucumbira.

Ele chora como uma criança, pedindo um ditador — disse Adams, um leve sorriso perceptível dentro da barba. — Depois uiva, como Cabot, cada vez que Wilson faz alguma coisa ditatorial. Não há como agradar o meu irmão.

E o senhor?

— Ora, eu humildemente adoro a derrubada de tudo que me foi caro. Mas sempre fui entediantemente mais avançado que todos. O coitado do Brooks acha que o mundo está indo para o abismo com enorme rapidez, e eu o consolo o melhor, que posso, à minha maneira alegre, dizendo-lhe que o mundo já chegou lá há dez anos.

— Isto é mesmo um consolo. — Caroline achava difícil crer que o tio Henry, como ela o chamava sem aspas, faria oitenta anos dali a algumas semanas.

Adams pegou um livrinho.

— Conhece George Santayana?

Caroline assentiu. Metade espanhol, metade bostoniano, ele en­sinara filosofia em Harvard, lado a lado, quando não frente a frente, com William, irmão de Henry James. Escrevera várias obras sobre a razão da vida ou a vida da razão. Caroline nunca o lera; mas lem­brava-se nitidamente dos olhos escuros e brilhantes em seu único encontro com ele em Boston.

Ele acaba de escrever peças de propaganda muito elegantes. Sem dúvida inspirado pelo grande Theodore. Aileen, por favor leia a página marcada.

Enquanto a outra pegava o livro com Adams, ele voltou seu olhar ainda brilhante para Caroline.

Agora estou cego — afirmou.

Não! — exclamou Caroline.

— Sim. — O tom de Adams era tranqüilo. — As luzes se apagaram há três meses. Leia, Aileen.

A Srta. Tone aquiesceu:

— "Com sua maneira hesitante e multifacetada, os alemães vêm tateando há quatrocentos anos em busca de uma restauração de seu ateísmo primitivo."

Adams interrompeu-a:

— Ora, isto faz sentido. Lembre-se, as tribos teutônicas foram as últimas a serem convertidas ao cristianismo, e ainda se ressentem da experiência. É por isso que desde então estão em guerra com o cristianismo, de uma maneira ou de outra.

— O senhor faz com que pareçam simpatissíssimos. — Caroline tinha sido separada do cristianismo de modo indolor por Mlle. Souvestre, e não tinha saudades.

Você é bolchevique, imagino. É a última moda. É também uma coisa do futuro. Brooks está certo. Vivemos para ver o fim de uma forma republicana de governo, que é, afinal de contas, apenas um estágio intermediário entre a monarquia e a anarquia, entre o czar e os bolcheviques.

— Dizem que você virou católico — anunciou Alice Longworth ao entrar na sala com a madrasta Edith.

"Edith sofredora" era o rótulo dramático que Caroline dava men­talmente à mulher mais velha, que se saíra maravilhosamente com cinco filhos, dos quais o mais cansativo era o marido, ao passo que suas relações com Alice eram sempre difíceis.

Adams cumprimentou as senhoras calorosamente.

— Também já ouvi esse boato. Minha conversão é um objetivo de guerra dos alemães, e vai fracassar, como tudo em que eles põem a mão. "Subjetividade de pensamento", como Santayana os descreve, "e obstinação de princípios morais".

— Está falando do senhor, tio Henry? — Alice não ouvira o pronome.

— Não. Dos alemães. Acho que o coitado do Springy iniciou esse boato a meu respeito para nos animar.

Sinto saudades dele Alice declarou.

Edith ocupou o trono junto à lareira onde, em épocas anteriores, Clara. Hay sempre se sentava; agora Clara estava morta e dos Cinco de Copas originais só restava Adams.

Theodore acha que o Sr. Wilson mandou-o para casa por despeito disse ela.

Theodore pensaria mesmo isso. Adams não se alterou. Lamento que ele não tenha podido vir. Política?

Que mais? suspirou Edithu Ele fica sentado na sala de jantar da pobre Alice como um paxá, e todos vêm a ele. Agqra está com a delegação de Nova York. Está se cansando demais. E com problemas de estômago.

Espere até esta noite, quando ele jantar com a prima Eleanor e o Roosevelt errado. Os olhos azuis-acinzentados de Alice cinti­laram à luz invernal do Parque Lafayette. Eleanor virou a Lucrécia Borja de Washington, ninguém sobrevive à sua mesa.

Para a surpresa de Caroline, não havia outros convidados.

Quero vocês três só para mim disse Adams. Estou cansado de homens e com alergia a políticos, e fico hidrófobo quan­do vejo uma farda.

Todos os meus irmãos estão na Europa. Papai está com inveja.

Sim. Por um instante a voz de Adams soou lúgubre. Mas seu estado de espírito logo mudou. Você sem dúvida irá visitar sua sucessora ali no outro lado da rua.

Passou, o braço pelo de Edith e conduziu todos para a sala de jantar, onde estava servido o seu costumeiro desjejum tardio ou almo­ço adiantado.

Ah, imagine! exclamou Edith, achando graça. Suspeito que sou a última pessoa que ela quer ver, entrando pela porta como o Fantasma de Natais Passados.

Dizem fez Alice, que sempre dizia o que diziam que os irmãos dela estão roubando tudo que não está pregado.

Ora, Alice! A voz de Edith era ao mesmo tempo cautelo­sa e acauteladora.

Mamãe insiste em que se a gente não estava presente duran­te o crime então ele não pode ter ocorrido.

Mas Alice deixou morrer o assunto. Edith era a única pessoa que parecia intimidá-la; sem dúvida o pai não o conseguia. Certa vez, cri­ticado pelas escapulidas de Alice, o então Presidente disse: "Posso vigiar minha filha ou posso presidir os Estados Unidos. Mas as duas coisas não posso fazer."

Enquanto Adams e Edith trocavam novidades doenças, enter­ros, testamentos Alice cochichou à Caroline:

Franklin acha que Eleanor não sabe, e eu acho que ela sabe.

A resposta de Caroline foi rápida:

Se ela soubesse, não diria.

Alice ficou surpresa.

Por que não?

Eu teria que contar a você tudo sobre a nossa professora comum...     

A atéia Mlle. Souvestre? Eu sei. Acho que realmente sei. A maldade de Alice tinha o mesmo tipo de espontaneidade alegre e generalizada da hipocrisia do pai.

Caroline deixou a isca escapar.

Eleanor só percebe alguma coisa quando há alguma coisa a perceber, e tenho a impressão, como companheira de catolicismo, de la famille, que Lucy Mercer não irá para a cama com Franklin até estar seguramente casada.

Alice ficou profundamente interessada por aquele ponto de vista tão europeu, tão papista.

Você quer dizer, casada com Franklin?

De preferência. Mas o casamento com qualquer um torna o adultério uma possibilidade, até mesmo uma necessidade. Você não acha?

Alice, pela primeira vez na longa convivência com Caroline, en­rubesceu. Obviamente um certeiro tiro no escuro. Mas se Alice tinha um amante, estava sendo esplendidamente discreta.

Finalmente eu compreendo o vício. Nós, americanos, somos muito mais simples: se deu coceira, coce. Mas, sem complicações, sem divórcios, sem casamentos. Quero dizer, só para aquilo. Eu os vi juntos, de carro, Franklin e Lucy, vindo de Chevy Chase. Contei a Franklin o que tinha visto, e que ele quase bateu com o carro por ficar olhando para ela, e ele respondeu, com a maior calma: "Bonita, não é?" Eu os recebo em casa, quando Eleanor está fora da cidade. Alice franziu o cenho. Mas eles nunca poderiam se casar. Ela é católica, ele não.

Pior ainda. Ela é católica, ele é político. Não pode ter uma carreira e ser divorciado.

Caroline sempre sentira que a posição de Eleanor era inexpugná­vel graças à espantosa ambição de Franklin espantosa porque, simpático e amável como era, ele parecia curiosamente carente de senso político, como demonstrara recentemente ao candidatar-se a senador por Nova York, apenas para ser afundado pela máquina de dinheiro de Hearst e Tammany Hall. Felizmente ainda tinha seu emprego no Departamento da Marinha; e ainda tinha o sobrenome mágico.

Henry Adams e Edith Roosevelt estavam lamentando a perda de Springy.

— Foi nosso padrinho de casamento em Londres. Acho que Theodore nunca teve um amigo tão sábio.

— Nem eu um tão civilizado. — Adams comia melancolicamen­te broa de milho, um prato com que Caroline se deliciava apenas à mesa dele. — A grande contribuição secreta de Springy foi sua ma­nipulação dos banqueiros judeus em Nova York, e a imprensa deles. Eram quase unânimes a favor do kaiser...

O editor do New York Times resistiu — interpôs Caroline.

Ela estivera bastante envolvida nos problemas da imprensa em 1914. Kuhn, Loeb & Company ameaçaram encampar o Times, que era pró-Aliados, enquanto outras pressões caíam sobre a imprensa por parte de Jacob Schiff e o irmão americano dos Warburg alemães. Wilson manobrou com cuidado. Alguns banqueiros judeus pró-Alemanha tinham dado dinheiro para a campanha dele, acreditando que ele manteria o país fora da guerra contra a querida Alemanha. Wilson acalmou-os nomeando Warburg para o Federal Reserve Board e o principal sionista do país, Louis Brandeis, para o Supremo Tribunal. Caroline estava presente na Casa Branca quando Wilson de súbito citou as Escrituras para Spring Rice: "Aquele que guarda Israel dela não fugirá nem dormirá."

— Springy é responsável também pela declaração de novembro passado do Sr. Balfour, quando ele desfez todo o trabalho esforçado do cristianismo devolvendo o Santo Sião aos judeus. Acredito que o Sr. Schiff está planejando reconstruir o templo, do seu próprio bolso.

— Mas com certeza o senhor deve ser sionista, tio Henry. — Como todos em Washington, Alice sabia que até mesmo pensar nos judeus deixava Adams apoplético. — Assim eles irão todos para o único lugar que o senhor nunca terá que conhecer.

Mas Adams houve por bem responder calmamente:

Mas acontece que eu quero conhecer. E agora que os ingleses tomaram Jerusalém dos turcos, desejo contemplar reverentemente o nosso santo dos santos, o coração petrificado da cristandade.

— Eu acho, Henry — fez Edith Roosevelt naquele tom que usava para acalmar o marido —, que você está blasfemando...

— E na hora do desjejum — acrescentou Alice.

Aileen Tone mudou de assunto. Caroline pensava em amor e velhice. Ultimamente ela descobrira que se tornara como todas as mulheres de suas relações e idade: inteiramente egocêntrica. Nessa mesma manhã Emma tinha dito:

— Você devia parar de ficar se olhando nos espelhos.

Caroline irritara-se o suficiente para dizer:

Como é que posso me ver, se não for num espelho?

Você é insuportável — respondera Emma.

Ela estava agora em seu segundo ano em Bryn Mawr e interes­sada em matemática. Mas aquilo era problema de Emma. Caroline tornara-se agora problema de Caroline. Naturalmente havia um meio de ver-se não sendo num espelho: na tela. Caroline, Caroline concluiu, baixando os olhos para o pálido e cego ancião Henry Adams estava fora de si; estava louca. À porta do escritório, ela de repente beijou Adams na face.

— Tente não nos esquecer — disse o ancião.

Assim o quinto e último Copas disse adeus a Caroline.

 

Um bombardeio recente atingira um punhado de árvores, desfolhando-as, quebrando-lhes os ramos. A luz difusa, pareciam um ba­talhão de mortos descarnados. Entre as árvores havia trincheiras, de­marcadas por arame farpado. No chão, mortos americanos. Alguns pareciam dormir. Alguns encaravam com horror o final. Alguns eram inidentificáveis quanto à espécie.

A enfermeira da Cruz Vermelha movia-se lentamente pelo bos­que. De vez em quando estacava junto a uma figura no solo e estu­dava-lhe o rosto. Usava uma capa escura, suja e amarrotada; e botas masculinas enlameadas. Finalmente, na borda do pequeno bosque, ela ajoelhou-se junto a um corpo. Estendeu a mão como se fosse tocar ria testa do rosto que a encarava. Então imobilizou-se.

— Corta! — A voz de Tim, amplificada pelo megafone, era au­toritária. — Foi maravilhoso, Emma.

Caroline — conhecida no estúdio e "na arte" como Emma Traxler — levantou-se e desceu do cenário para o brilhante sol de Santa Mó­nica. A luz cinzenta e difusa do bosque Belleau na França era obra de uma tela de gaze sobre uma plataforma onde árvores esqueléticas, cadáveres vivos e manequins sem vida tinham sido cuidadosamente dispostos por. Timothy X. Farrell e seu diretor de arte.

Preparem o close. Tim voltou-se para Caroline. Temos visita. O Sr. Ince em pessoa.

Um homem agradável, que ainda não chegara aos quarenta, Thomas H. Ince era, como ele próprio teria colocado, uma lenda da sua época. Com Griffith e Mack Sennett, ele era a Triangle Films. Na teoria, Ince escrevia, dirigia, produzia. Na prática, supervisionava a maioria das produções do estúdio, agora trabalhando em horário ex­tra para satisfazer a fome de filmes da América. Ali, em Sánta Mónica, ele construíra uma aldeia-estúdio, criada expressamente para a con­fecção de filmes no interior ou ao ar livre. Mas Inceville, como o lugar era chamado com seriedade quase total por todos, inclusive seu criador; já estava pequena demais, e uma nova aldeia-estúdio estava sendo construída alguns quilômetros ao sul, em Culver City.

A primeira descoberta de Caroline tinha sido que não existia uma Hollywood no sentido de capital de cinema, apenas aldeias lo­calizadas em laranjais e plantações de cebola, ligadas por estradas poeirentas. Como o estúdio mais perto do mar, Inceville era o mais agradável de todos os trinta ou quarenta.

O principal rival e futuro proprietário da Triangle, Famous Players-Lasky, ocupava uma pequena estrutura em forma de celeiro perto da esquina de Sunset e Rua Vine; e era ali, num clarão de luzes klieg (por causa dos irmãos Kliegl: "Quem chutou o "1" para fora dos Kliegl?", costumavam recitar os veteranos), que peças famosas eram filmadas com artistas famosos, a primeira das quais tinha sido Sarah Bernhardt, que representara a rainha Elizabeth e La dame aux camélias. Segundo Plon, o irmão francês de Caroline, quando Bernhardt viu sua própria e imponente figura na tela, desmaiara de horror. "Apesar de que", acrescentara Plon, "nós todos desmaiamos. Por respeito."

No momento, a maior estrela de cinema do mundo estava sob contrato com a Famous Players. Aos 25 anos, Mary Pickford ainda representava adolescentes de cabelos compridos, para o que recebera um milhão de dólares por dois anos de seu tempo pelos Srs. Zukor e Lasky. Ela já fizera A pequena americana, para deleite de George Creel, e agora estava em algo chamado M’liss. O patriotismo estava solto no país, e Caroline estava fazendo mais que a sua parte num filme de sete rolos que iria, segundo lhe assegurava o Sr. Ince, "fazer uma fortuna. Eu sei. Eu conheço. Mas não me pergunte como".

Sob um guarda-sol, Ince e Caroline tomaram chá, enquanto a orquestra de seis instrumentos, que era usada no estúdio para inspirar os atores, agora tocava música leve para dançar. Na primeira das muitas cenas de choro de Caroline, ela descobrira, como tantos ama­dores, que é difícil chorar na hora certa. Tim sugeriu que ela pen­sasse em alguém que amava, morto. Ela pensou na filha, Emma; nem uma lágrima. Pensou em Plon, que estava morto; e fez uma careta de raiva por tê-lo perdido numa guerra tão estúpida. Pediu-se à orques­tra para ajudar a inspirar-lhe lágrimas. O maestro, um violinista, disse: "Sei exatamente o que escolher. Mary, Doug e o Sr. Chaplin choram feito crianças quando eu toco..." Com isso, a orquestra, postada num cenário de hospital onde os feridos e os moribundos estavam sendo cuidados por Caroline, tocou "Danny Boy" e Caroline riu. Fi­nalmente, entregaram um bastão de cânfora a Héloise, que segurou-o perto do rosto de Caroline, de modo que o cheiro penetrante lhe pro­vocasse lágrimas enquanto a orquestra tocava suavemente. O resul­tado tinha sido inteiramente satisfatório para Caroline; e autêntico, também, segundo o radiante Tim.

— A questão é...

Mas Caroline foi obrigada a fechar a boca para que o maquilador lhe ajeitasse o rosto, começando pelos lábios. Caroline não mais se olhava nos espelhos. Se quisesse ver-se, podia assistir aos copiões. Mas depois de se ver na tela durante meia hora no primeiro dia, ela se fartara. Permitia que os outros a pintassem; movia-se segundo as ordens de Tim; e vestia-se como a figurinista decretava. Rendera-se confortavelmente; que eles a inventassem.

— A questão é: por quanto tempo poderemos mantê-la em segredo? Mas diga-me a senhora. É uma jornalista, Sra. Sanford; sabe mais sobre isso do que eu.

— Na verdade, não. — A boca estava terminada; agora as rugas dos olhos estavam sendo repintadas. — Vou acabar sendo descoberta, e não me importo... contanto que não vá passar vergonha...

Ince contemplou-a. apreciativamente, como se ela fosse uma obra de arte que ele pedira emprestada a um museu. Caroline vira esse mesmo olhar muitas vezes nos olhos de Hearst.

— Impossível. E pode acreditar em mim, porque eu também teria muito a perder. Não, você é uma novidade e isso sempre fun­ciona. Temos um punhado de nobres russos querendo trabalhar co­nosco. Até mulheres da sociedade estão mostrando interesse. Acabei de receber um recado da Sra. Lydig Hoyt de que ela poderia fazer um ou dois filmes, como trabalho de guerra.

— Seu cálice transborda... — fez Caroline, que conhecia aquela dama de Nova York.

Mas ela é apenas um nome da sociedade, que serve para causar uma certa sensação na imprensa, ao passo que a senhora tem este rosto. — De repente ele parecia triste. — Desperdiçado, se me permite dizer. Todos esses anos em que podíamos tê-la usado... Ah, como a teríamos usado! Como Marguerite Clark...

Não Mary Pickford?

Agora que Caroline entrara num mundo de inteira fantasia, es­tava sujeita a todo tipo de simpatias e antipatias irracionais que nun­ca experimentaria no mundo real. Mary Pickford, quase jovem bas­tante para ser sua filha, era a principal rival a ser derrubada, ao passo que o encanto sereno das irmãs Gish a enraivecia.

— Mary, não. Só existe uma e, considerando o que ela custa, pode ser que não dure muito. Não. Você é algo que realmente nunca aconteceu antes. Uma mulher de quarenta anos que aparenta ser mais jovem, é claro.

— Que aparenta a idade que tem.

— Seja o que for. Mas que é extraordinariamente bela na tela. Tivemos muitas atrizes famosas que já não eram tão jovens, a come­çar por Sarah Bernhardt. Mas você não é uma atriz; é uma des­conhecida, pelo menos para o público, e está representando alguém com a sua própria idade...

— E aqui está o meu filho.

Um homem moreno de trinta anos, nariz pequeno e olhos azuis redondos, próprios para fecharem-se em cenas de morte, cumprimentou-os com uma continência. Usava uma farda francesa rasgada. O enredo: um americano que se alistara no exército francês, desapare­cido no bosque Belleau. A mãe, uma grã-fina frívola, tornou-se en­fermeira — uma segunda Florence Nightingale; e sua busca do filho perdido pelos campos de batalha era como as estações da Via Crucis, proclamava Tim, ou a descida de Dante ao inferno. Caroline torna­va-se cada vez mais nobre à medida que a morte e a destruição à sua volta ficavam mais intensas. Caroline estava também mergulhando num estado de espírito alucinatório: estava realmente em sua terra, na França, procurando Plon. Desse ponto de vista, a transferência do eu real para o personagem de ficção estava funcionando perfeita­mente, e Tim impressionava-se com a facilidade com que ela se tornava, como se dizia, o personagem.

— Oi, Emma, Sr. Ince. Veio verificar quantos metros de filme gastamos hoje?

Não, sou apenas um turista!

Bem, não se esqueça daquele faroeste de que me falou. — Voltou-se para Caroline, os olhos mais redondos que nunca. — Sabia que o Sr. Ince descobriu William S. Hart?

Então Tim puxou o "filho" de Caroline para o cenário e cobriu-o de lama.

Devo ter feito uns cem faroestes — afirmou Ince. — São divertidos. Sempre o mesmo enredo. Sem problemas.

Ao contrário de Civilização?

Uma das razões para Caroline estar funcionando como emissária de Creel em Hollywood era assegurar que. uma coisa como Civilização jamais fosse feita, novamente. Embora considerado a obra- prima de duas horas e meia de Ince, o tema pacifista que era popular em 1916 agora, em 1918, era considerado traição — ou até mesmo blasfêmia, já que o subtítulo era Aquele que voltou. O enredo girava em torno da volta de Cristo como um engenheiro submarino alemão que prega a paz com o resultado costumeiro. Mas Ince resguardara-se inteligentemente. Como Wilson estava concorrendo à Presidência como candidato da paz, Ince acrescentou um epílogo ao filme, mos­trando Wilson em pessoa agradecendo a Ince por ter feito uma tão grande contribuição à paz e, como se viu depois, à sua reeleição. Sendo um homem sem crenças particulares, políticas ou não, Ince agora concentrava-se em filmes como Os boches do inferno de Caroline. Enquanto isso, seu sócio, D. W. Griffith, viajara para Londres para fazer filmes pró-Aliados; e comentava-se que quando a guerra ter­minasse ele faria seus futuros filmes no Leste. O fracasso de Intole­rância, filme ambicioso e caro de Griffith, prejudicara de tal modo a Triangle que a Famous Players comprara dois lados do triângulo, Ince e Sennett, assim como o desembaraçado galã das telas Douglas Fairbanks e o bucólico William S. Hart.

Este é o último filme da Triangle. De modo que queremos o máximo. Estréia no Strand de Nova York. Entradas a um dólar e meio.

Enquanto ele falava, Caroline pensava, não em filmes, mas sim na França. Ela não tentara retornar, mesmo havendo tantas coisas que poderia estar fazendo lá, mesmo se algo menos heróico do que ela estava agora representando. A "Sra. Wharton — a antiga amiga de Henry James — organizara as costureiras de Paris e estava fazendo roupas para às tropas. Saint-Claude-le-Duc tinha sido tomado pelo governo francês como hospital, para temor de Blaise e seu próprio prazer secreto. Ela podia imaginar-se, sorrindo gentilmente, indo de leito em leito por entre a familiar boisserie, enquanto...

Caroline apagou a imagem de sua mente. Estava começando a pensar como se fosse um filme, sempre um mau sinal. Mas, por outro lado, havia anos que vinha pensando como um jornal em man­chetes, subtítulos, itálico, negrito e, naturalmente, fotografias cuida­dosamente distribuídas na página, fotos cada vez maiores, à medida que as reproduções felizmente se aperfeiçoavam na mesma medida em que as pessoas eram cada vez menos capazes de ler. Uma vez por ano o crítico literário do Tribune escrevia um artigo pessimista sobre o final iminente da literatura, ao passo que o crítico de teatro deplo­rava o efeito que a paixão do público pelo cinema exercia sobre o teatro. Por enquanto não havia um crítico de cinema. Mas isso viria, Caroline concluiu, despedindo-se do Sr. Ince. Encontrar-se-iam no­vamente à noite, socialmente. Havia uma Sra. Ince, e filhos. Havia uma complicada vida social já estabelecida no que era conhecida como "colônia do cinema", colocada como uma coluna de fogo em meio aos perplexos nativos de Iowa.

Tim conduziu-a para o cenário de uma igreja em ruínas. Havia um pedaço da nave contendo o altar principal, sobre o qual um Cristo crucificado erguia-se em meio à destruição. Atrás do altar, uma janela redonda mostrava fragmentos de um vitral. Acima do cenário sem teto, a mesma gaze cinzenta que filtrara a luz do bosque Belleau.

Muito autêntico elogiou Caroline.

O diretor de arte era um russo recém-chegado que não falava inglês mas que de alguma forma, entre palavras em francês e a mímica, conseguia criar qualquer coisa que Tim pedisse. O maquilador não cessava de mexer no rosto de Caroline, como um pintor numa tela inacabada. Acrescentou tinta branca à camada branca já colocada. Parecemos pessoas mortas, ela pensou. No entanto, na tela havia uma transformação: os cadavéricos rostos brancos tornavam-se vivos, en­quanto a imaginação das platéias deixava vermelhos os lábios e rosa­das as faces. Mas não deixava os velhos jovens, ela pensou com me­lancolia, confiando no instinto de Tim, segundo o qual uma mulher de meia-idade podia ficar "deslumbrante" na tela.

Tim e o câmera cochicharam entre si. Dois técnicos dirigiam um par de luzes klieg que fazia o crucifixo resplandecer sobrenatu­ralmente na penumbra. Uma terceira luz foi colocada para iluminar o rosto de Caroline. Ela percebeu, profissionalmente, que a luz ficava a uma altura suficiente para apagar suas rugas. A luz do dia era a pior coisa para uma mulher de idade. Apenas quando o sol estava baixo erguendo-se ou morrendo a pessoa podia mostrar uma aparência apropriada, e não desfigurada. Por causa da crueldade da luz natural, as primeiras estrelas eram muito jovens, como Mary Pickford e as irmãs Gish. Mas agora, graças às novas câmeras e à iluminação controlada, isso estava mudando; mas o fato era que tudo estava mudando no cinema, ào contrário da vida real.

Caroline iniciou a tarefa de convencer a si mesma que estaria absolutamente "deslumbrante" diante do altar, com a luz mais alta diretamente em seu rosto. Como sempre, só de pensar na luz seus olhos puseram-se a lacrimejar. Ela sofria de "olhos de klieg": por uma razão qualquer, a poeira ou os raios de luz provocavam uma inflamação nos olhos que poderia levar à cegueira temporária. O maquilador, que viu imediatamente as lágrimas, correu a enxugá-las. Se os olhos dela piorassem, gelo seria aplicado nas pálpebras doloridas.

Tim e Pierre, um ator francês que representava um oficial alemão em mau inglês, juntou-se a Caroline junto ao altar. Como con­vinha a um ator profissional, Pierre era pequenino, com a obrigató­ria cabeça grande, que fora raspada, de modo que o couro cabeludo pintado de branco parecia o Mont Blanc envernizado. Usava mo­nóculo. Tim instruiu:

Bem, é agora que você descobre que .seu filho- foi feito pri­sioneiro. Pierre, você está satisfeito com a situação. Está sentado ali, à sua mesa em frente ao altar. Está escrevendo. Enquanto ela lhe implora, você continua lendo e escrevendo. Não levante os olhos. Então, quando ela pede que você lhe diga em que prisão ele está... vamos seguir o roteiro. Aliás, vocês dois o conhecem?

Ambos afirmaram conhecer o roteiro. Caroline sempre decorava a sua parte enquanto se dirigia ao estúdio. Houve época em que os atores simplesmente criavam suas falas durante o filme, contando piadas ou casos picantes que não tinham coisa alguma a ver com a cena. Mas não tinham contado com a esperteza da primeira platéia criada vendo filmes: muitas pessoas tornaram-se hábeis leitoras de lá­bios, e não perdiam detalhe algum e ficavam horrorizadas sempre que um ator as traía com bobagens ou, pior, com obscenidades.

Aí você levanta os olhos, Pierre. Vê que ela é linda. Fica de pé. Rodeia a mesa pela direita. Tenta agarrá-la. Ela resiste. Você a persegue até o altar. Ela agarra o crucifixo e bate em você com ele. Não se preocupe, é madeira muito leve. Você cai de costas. Termina­mos com um close da enfermeira Madeleine segurando o crucifixo, horrorizada...

Petrificada disse Caroline, que adorava esse tipo de coisa.

— Como você achar melhor. Certo. Aos lugares.

Tomaram seus lugares. A princípio a câmera estaria em Pierre. Depois Caroline ia colocar-se no centro do quadro e bem na fronteira da tradicional distância de três metros entre os atores e a câmera. Nos primeiros filmes a câmera não se movia. Mas agora elas podiam ser colocadas em automóveis ou carretas, e os atores ficavam menos presos.

— Pronto! — O tom de Tim era autoritário.

Silêncio! — pediu o assistente.

A orquestra de seis instrumentos estava no lugar, atrás da câmera. O maestro perguntou:

Que é que vai ser, Srta. Traxler?

— Die Meistersinger.Caroline já descobrira o tipo de música necessária para inspirar-lhe heroísmo.

— Alemã — soou uma voz não identificada.

— Fique quieto — fez Tim. E então, a ordem que iniciava as filihagens: — Engrenar!

— Meu filho... disseram que o senhor saberia. Onde, coronel Von Hartmann, onde está ele? Agora!

— Nome?

Fizeram a parte senta-levanta da cena. Então Caroline moveu-se para o brilhante desconforto da luz klieg que conferia a glória, além de ardência nos olhos. Felizmente dessa vez a glória não se misturou a lágrimas extra-roteiro. Ela adorava a força daquela luz poderosa, mesmo que lhe derretesse a maquilagem do rosto, enquanto Wagner começava a derreter-lhe o cérebro.

Vocês americanos jamais aprenderam a lutar. Jamais! A Ale­manha triunfará sobre a sua raça de vira-latas!

Caroline sentiu vontade de sorrir; o inglês com sotaque francês era ridículo, por parte do que parecia ser um boche vindo direta­mente do inferno.

-— Nós cumpriremos nosso dever, todos nós, como o meu filho cumpriu o dele — Caroline declamou para a câmera.

— Continue — ordenou Tim.

— Não tenho mais palavras.

— Invente. Vocês dois, depois que ele se levantar.

Caroline começou em seu melhor tom de anfitriã da sociedade:

Henry Adams achava que vocês, alemães, são essencialmente ateus, e suas guerras são sempre contra a cristandade.

— Interessante — disse Pierre, dirigindo-lhe um sorriso lúbrico. — Talvez isso explique por que eles gostam de derrubar as igrejas. Eu só tenho um pulmão, madame. Caso contrário luto por la France.

O coronel boche levantou-se, colocou o monóculo sobre o olho, sorriu devagar e lascivamente.

A senhora é muito bonita, madame.

— Vocês boches dizem isso a todas.

Pierre endireitou-se em toda a sua estatura napoleônica, que era dois centímetros menor que a de Caroline.

— No meu roteiro diz agora eu a estupro, madame.

— No meu também. Fique sossegado, pois resistirei como uma leoa. Sou incrivelmente corajosa.

— É porque a senhora nunca teve um homem de verdade antes.

Pierre estava agora diante dela, mais perto da câmera que ela, para parecer mais alto. Ele fizera mais de cem filmes na Europa.

Quem é Henry Adams? — murmurou guturalmente.

Um amigo muito querido que morreu na primavera.

Pierre saltou sobre ela; ela o empurrou.

Velho?

Mais de oitenta anos. — Ela recuou. — Era o homem mais sábio que já conheci.

Caroline mostrou os dentes — um efeito leonino, esperava. Die Meistersinger levava-a a alturas jamais alcançadas por uma simples mulher.

— Entendia muito da personalidade alemã — continuou ela.

Um sorriso bárbaro tornava o rosto de Pierre positivamente as­sustador. Ele estendeu a mão para o pescoço dela. Ela recuou em direção ao altar; em seu rosto o terror misturava-se à obstinação.

Você devia ler o último livro dele, A educação de Henry Adams.

Com um mergulho, Pierre rasgou-lhe o vestido, expondo-lhe o colo.

Meu inglês não é suficientemente bom — sibilou.

No altar, voltaram ao roteiro.

Não! Nunca! — Caroline gritou.

— Se quer ver seu filho vivo, tem que ceder.

Como pode fazer isto?

Pierre empurrou-a sobre o altar; seus olhos brilhavam; ele estava pronto para estuprar.

"Oh!", era o que pedia o roteiro, e "oh!" foi o que Caroline disse ao girar, ver o crucifixo, pegá-lo e então, segurando-o respeito­samente no alto, como se em prece, contou até três e bateu com o crucifixo na cabeça raspada de Pierre. Ele cambaleou para trás e caiu no chão, inconsciente ou morto o roteiro não especificava, já que Caroline logo estaria fugindo em meio aos horrores do bosque Belleau, onde encontraria os fuzileiros navais americanos que tinham, sozinhos, derrotado todo o exército alemão pelo menos era o que os cartões inspirados por Creel informariam à platéia.

Tim ficou radiante.

Vocês foram maravilhosos.

Ele incluiu também Pierre, que estava agora de pé, esfregando a cabeça. Caroline sorriu galantemente para Tim através da lama branca que era a sua maquilagem e que agora escorria-lhe pelo rosto e entrava-lhe nos olhos sensíveis. O maquilador acorreu com uma esponja.

Você não se importou com a nossa conversa enquanto eu es­tava sendo estuprada?

Infelizmente eu estava tão excitado assistindo que não ouvi. Vocês não ficaram dentro do roteiro?

Roteiro terminou disse Pierre galantemente. Nós con­versar livros.

Não tem importância. Tim pegou o crucifixo. Os dois estavam se movimentando depressa demais para que alguém leia seus lábios. De qualquer maneira, visualmente foi maravilhoso. Ele ergueu o crucifixo.

— Isto sempre tem um efeito em vocês, irlandeses observou Caroline.

Bem, afinal somos católicos.

Você não. Eu sou católica, Tim querido; você é irlandês. Não é a mesma coisa.

Mais uma tomada ordenou Tim, concentrado apenas no filme.

Caroline gemeu, enquanto o maquilador novamente pintava-lhe o rosto.

Vou ser estuprada de novo?

Não. Aquilo foi perfeito. Quero um close de você. No altar. Você se volta, pega o crucifixo e vira-se novamente para a câmera. Aí faremos o close.

Nunca diga não a um close. Caroline repetiu o provérbio cinematográfico através dos dentes cerrados, pois o maquilador lhe aplicava um batom azulado.

Então Tim voltou-se para Pierre vamos pegar a sua reação. Quando você vê a cruz, fica de repente horrorizado com sua própria maldade. Olha da cruz para o rosto da mulher que está pres­tes a estuprar...

Bom. Eu gosto.

-— Tudo isso vai estar no cartão?

Mas Tim ignorou Caroline e voltou ao seu lugar junto à câmera. Em seu devido tempo a palavra "engrenar" foi pronunciada e Ca­roline tornou-se, senão outra pessoa, pelo menos outra personalida­de, postando-se junto ao altar e fazendo o que lhe pediam.

Enquanto isso, na vida real, o exército alemão avançava em triunfo por toda parte, ao passo que em Santa Mônica demonstrava-se outra coisa, numa tentativa de esconder a milhões de pessoas em todo o mundo que, na ocasião em que esses filmes estavam sendo feitos, em julho de 1918, os exércitos alemães tinham ocupado uma parte da Europa maior que qualquer potência ocupara antes, incluindo Napoleão Bonaparte. Os alemães estavam a setenta quilômetros de Paris. Eram senhores do norte da Itália, dos Balcãs, da Polônia, dos Estados do Báltico, da Ucrânia; e tinham cercado a cidade sagrada da Rússia, Kiev. Mais que nunca era necessário aos Aliados fingir que estavam vencendo. Assim, se não nos campos de batalha, nos filmes os fuzileiros navais americanos continuavam destruindo os boches e uma simples mãe americana, armada apenas com sua virtude e seu rosto fotogênico e encantador, com um crucifixo à mão, era capaz de salvar-se da luxúria carnal do boche bestial. Isso era mais poderoso que os jornais, pensou Caroline, observando Pierre filmando sua reação, olhos arregalados de horror, mãos erguidas para desviar o golpe terrível. Como sempre, Hearst tinha razão. Mas o que fazer com um modo tão novo de. . . de quê? George Creel diria: de pro­paganda. Mas isso era simples demais, e com o tempo as platéias descobririam todos os truques. Mesmo agora, no início do cinema, a paixão do público em conhecer tudo sobre os astros iria mais tarde inspirar uma curiosidade cética a respeito dos meios e das razões de uma forma tão poderosa de entretenimento. Em certo sentido, os Aliados podiam realmente perder a Europa enquanto o americano comum, a cinco mil quilômetros de distância, estava convencido de que tudo ia bem e que os boches tinham sido detidos por Caroline Sanford, conhecida na arte, como diriam os franceses, como Emma Traxler, a mais nova e menos famosa artista de cinema em Hollywood.

Como Sra. Sanford, Caroline era conhecida e cortejada pelo mundo surpreendentemente formado pelas pessoas do cinema. Em­bora Hollywood fosse simplesmente uma de uma série de pequenas aldeias espalhadas ao longo da costa do Pacífico, de Culver a Santa Mônica, esse nome viera a significar a indústria de "imagens em movimento", e àqueles que nela trabalhavam eram conhecidos entre os perplexos nativos como "pessoas em movimento", andando sem rumo em grande velocidade e derrubando todos os dez mandamentos de Deus.

Na realidade, Caroline achava os famosos artistas bastante can­sativos — para não dizer cansados. Moravam em confortáveis casas de estilo espanhol no Bulevar Franklin, ou na beira da praia, ou nos altos desfiladeiros que cortavam as ermas colinas de Hollywood. Já que era um artigo de fé que o público americano não podia apaixonar-se por um astro de cinema que fosse casado na vida real, muitos pais de cinco filhos, como Francis X. Bushman, eram obrigados a passar por castos solteirões levando uma vida solitária e esperando ansiosamente pela mulher de sua vida, que saltaria da platéia escura para a tela brilhante, para compartilhar a sofisticação da vida deles. Enquanto isso, a Sra. Bushman e os filhos ficavam escondidos dos olhos do público.

A Sra. Smythe recebeu Caroline e Tim no que era conhecido nas revistas de fãs como sua suntuosa sala de estar, no alto de um morro com a vista de quilômetros de pomares e o marrom do Pacífico a distância. A Sra. Smythe era pequena e nervosa, e envolta em seda magenta. A voz era mais Liverpool que Mayfair — sua pretensão; mas ela conhecia bastante o mundo. Mudara-se para a Califórnia por causa da saúda. O Sr. Smythe era presidente de uma firma que fazia sabão. Enquanto ele galantemente passava aqueles tempos de guerra na Inglaterra, Pamela Smythe viera sozinha. Em pouco tempo esta­belecera-se como uma anfitriã importante, graças à sua alegada for­tuna e alegados amigos nobres. O pessoal do cinema adorava títulos — em grande parte, na opinião de Caroline, porque eram obrigados a personificar tantos nobres, nos filmes. Agora, com a queda do czar, os russos brancos estavam por toda parte. Todos eram nobres e toca­va-se balalaica como se comia um blini, e Mary Pickford invariavel­mente chorava ao escutar mais um lamento de saudades do distante rio Don.

Os jantares tinham início às 18:30h, porque os artistas deviam estar na cama às 22:00h, a não ser que fosse noite de sábado; nesse caso podia-se dançar no Biltomore Hotel de Los Angeles, beber e jogar num dos poucos lugares abertos até tarde da noite, ou em festas em belas casas como aquela.

Caroline!

A Sra. Smythe adquirira o hábito do novo mundo de usar o primeiro nome. Caroline respondeu com um "Pamela!" que soava como três nomes dignos da dicção lenta de sua cunhada. Tim ganhou um sorriso radiante.

— Hoje temos velhos amigos. — Montana estava agora misturado a Liverpool-Mayfair.

— Uma reunião no velho curral. — Caroline completou o sen­timento.

Uma mulher muito maquilada aproximou-se dela, braços abertos.

— Permita-me apresentar a condessa de Inverness — disse á Sra. Smythe, algo assustada com a cena iminente.

Millicent!

Caroline!

Caroline beijou a velha amiga. Tinham estudado na mesma tur­ma no estabelecimento de Mlle. Souvestre. Millicent era sobrinha de um Presidente americano que nem Caroline nem mais ninguém con­seguia recordar, tendo sido ele uma das dignas nulidades entre Lincoln e Theodore Rex. Depois de formada, Millicent e a mãe ficaram em Londres, e Caroline fora apresentada à corte pela mãe de Millicent. Caroline então mudara-se para Nova York, ao passo que Millicent casara-se com o conde de Inverness, um brutamontes local que a fizera infeliz, como todos tinham avisado.

Vocês se conhecem!

A Sra. Smythe ficou triste com isso, mas a chegada de Douglas Fairbanks desviou radicalmente a atenção dos presentes, deixando Millicent em paz para chorar no ombro de Caroline.

— Ele é simplesmente vil — gemeu.

— Acho que ele é bem atraente. — Caroline contemplou sem embaraço o homem baixinho com a cabeça não tão grande que captu­rara os corações de metade das mulheres da terra.

— Não estou falando do ator. Estou falando do meu marido.

Ele está aqui?

— Se estivesse, eu estaria?

Isso foi dito com tanta ênfase que um vaso de orquídeas quase foi ao chão. Era óbvio que Millicent estava encontrando alívio na­quela mesma bebida que, quando ingerida pelo marido, tornava a vida vil. O conde, aparentemente, como Jamie Bennett, editor do Paris Herald, e Ned McLean, editor do Washington Post, não apenas era dado a grandes bebedeiras mas também a aliviar-se em público, se a situação fosse suficientemente pública e de preferência solene. Jamie fizera isso muitos anos antes, num jarro na casa da noiva, cujo irmão então o chicoteara para fora de Nova York e para o outro lado do Atlântico, para Paris, para sempre. Ned preferia as lareiras, apagan­do alegremente as chamas, ao passo que o conde aumentava o con­teúdo das terrinas de ponche:

Na embaixada americana, na frente do Sr. Page, o nosso embaixador. Todo mundo viu.

— Que foi que você fez?

— Dei-lhe um sopapo. — Millicent ergueu a mão pesada, cheia de anéis trabalhados com numerosas pedras de formato irregular.

Deve ter feito um grande estrago.

Acabei com a festa, como se diz lá. — Millicent assumiu um ar de melancólica felicidade. — Vamos nos divorciar quando a guerra terminar; É por isso que estou aqui. Para ficar o mais longe possível da minha vida. Você sabe como é isso.

— Eu nunca soube como é isso. Por isso estou aqui.

Embora Caroline tivesse preferido misturar-se às famosas pessoas baixinhas, Millicent puxou-a para um sofá. Empregados japone­ses ofereceram-lhes vinho. O chá era coisa do passado naquela parte do Oeste, a não ser entre os ingleses, que, como Santas Teresas es­fregando o chão, trabalhavam no cinema enquanto viviam como se ainda estivessem em casa em Surbiton. Por outro lado, o jantar às 18:30h era uma novidade local que Caroline suportava apenas por­que ela também precisava estar de pé ao amanhecer para enfrentar o sol matinal, que a favorecia, e esconder-se ao meio-dia até que o sol estivesse baixo novamente.

— Vou voltar a, morar em Washington.

— Você vai nos animar.

— Certamente vou animar Alice. Que pose ela tem!

Millicent fora a única relíquia presidencial da cidade e não tinha cedido de boa vontade sua elevada posição a Alice Longworth. Mas o casamento de Millicent com um conde de certa forma restabelecera o equilíbrio. Caroline previa problemas à frente; e notícias para a sua Dama da Sociedade.

— Eles não me esqueceram, não é? — Millicent quis saber.

Com menos de cinqüenta anos, Millicent conseguira habilmente apagar sua beleza com uísque, que ela agora derramava num copo, de um frasco de prata preso a uma corrente em volta do pescoço. Sim, pensou Caroline, ela vai ser um sucesso nos McLean, se não nos Wilson. A era de Millicent, condessa de Inverness, traria balbúrdia e alegria, desde a costa dourada da Avenida Connecticut até a gran­diosidade moral de Thomas Circle.

Quentin está morto, sabia? — fez Millicent, bebendo seu uísque. —- Uma amiga me telegrafou de Londres. Um rapaz tão bom! Morreu num aeroplano, num duelo aéreo, disseram, com os alemães. Que coisa estranha, um duelo aéreo!

Caroline constatou que estivera tempo demais fora do mundo real. Nem mesmo olhava para os jornais locais, a não ser o Kine Weekly, que só dava notícias do cinema. Levantava-se cedo demais; ocupava-se demais; dormia cedo demais. Era como viver num sana­tório; as únicas notícias de fora eram os telegramas de negócios enviados por Blaise. Agora precisava escrever para o coronel e Edith Roosevelt e... que mais? Para Alice?

Uma das pessoas baixinhas veio até Caroline, exatamente quando Millicent virava-se para cumprimentar um russo branco que atraves­sara a nado o mar Negro ou alguma outra grande massa de água, em busca da liberdade.

Caroline contemplou os olhos brilhantes, vidrados e vermelhos, mais baixos que os dela, de Douglas Fairbanks, que prontamente no­tou o estado dos olhos dela.

— Olhos de klieg — diagnosticou. — Que é que você anda fazendo? Filmando?

— É como ser maçom, não é? Estes olhos. — Caroline chorava incontrolavelmente, as lágrimas provocadas pela lembrança.

Com graça e presteza, como se estivesse na tela, ele retirou não uma espada da bainha mas um vaporizador do bolso e vaporizou os olhos dela, tendo primeiro verificado que ela não usava maquilagem. O efeito foi refrescante. Ele então ofereceu um lenço de seda:

— Tome. Fique com ele.

— Você é um amor. — Caroline enxugou os olhos. — Isto foi ótimo — disse; e tinha sido mesmo. — Estou fazendo um apelo paia o Sr. Ince. Pela França. Em francês. Fui criada lá, sabia?

Ela pensava ter conseguido fugir ao assunto, mas caíra apenas em mais confusão.

Por que em francês? Os cartões são sempre traduzidos.

Mas não seria eu, não é verdade? Falando para minha... mais ou menos... terra natal.

Por que um astro de cinema podia levá-la a tal confusão?

Imagino que não. Lembra-se daquela noite, na casa do Sr. De Mille, quando eu disse, que tinha escrito um livro e queria que você o lesse? Bem, eu o trouxe. — Fairbanks entregou-lhe um volu­me fino intitulado Assumindo responsabilidades.

Caroline sorriu, mostrando seu prazer.

— Como é que encontra tempo para escrever? — perguntou, como era esperado dela.

Fairbanks contou-lhe. Fora da tela ele tinha um encanto impres­sionante, ao contrário de tantos anõezinhos que eram como bonecos até serem adequadamente iluminados e instruídos a movimentar-se pela área de três metros quadrados onde o filme tinha sua tolhida existência no presente, um mero prelúdio da resplandecente imortali­dade da tela.

— ... Theodore Roosevelt é o meu ídolo — ele terminou.

— Bem, vocês dois são muito ativos, percebe-se.

O sorriso dele parecia uma fileira de lâmpadas numa marquise de cinema. Ao contrário dos boatos maliciosos, as centenas de dentes eram brilhantemente reais.

— Foi uma idéia maravilhosa de vocês no Washington Trib, a crítica dos filmes ser feita pelos críticos de teatro.

Caroline continuava a maravilhar-se com o fato de homens e) mulheres que eram conhecidos literalmente pelo mundo inteiro ain­da conseguirem estar ao corrente de qualquer referência obscura a eles próprios na imprensa nacional. Quem ficava sabendo das críti­cas maravilhosas que Douglas Fairbanks estava recebendo em Xangai, Lisboa ou Caracas? Ele próprio, certamente, quando calculava sua renda; no entanto, tinha também o olhar friamente fixo no crítico de teatro do Tribune porque "depois daquela crítica maravilhosa de O americano há dois anos, ele parou de criticar filmes".

Caroline não se lembrava disso.

Imagino que O americano tenha sido um filme tão revolucionário que ele o tratou como uma peça de teatro ou... ou como O americano de Henry James — improvisou.

Perdão?

Caroline'mergulhou de cabeça: nunca olhe para trás.

Mas concordo. Ele, ou alguém mais, devia entender que um filme é uma obra de arte tão séria quanto uma peça de Belasco...

E como! — O belo queixo projetou-se, como ela o vira fazer uma dúzia de vezes na tela. — Estamos fazendo algo inteiramente novo na história, e para todos, em toda parte. Você não sabe a arma que isso é.

— Ah, sei, sim. Estou aqui a mando de George Creel, lembre-se. Para conseguir que vocês ajudem a causa dos Aliados.

Fairbanks assentiu vigorosamente, graciosamente. Caroline per­guntou-se por que ele não a atraía sexualmente. Seria porque todo mundo em toda parte o vira assentir assim? E sorrir? E amar? Meio bilhão de pessoas vezes dois representava uma grande quantidade de chifres para o amante real de um artista de cinema.

— É verdade. Eu tinha me esquecido. Não, eu vim do teatro...

— Um cavalheiro do Mississippi! Caroline recordou-se subita­mente de um belo ator jovem dos palcos da Broadway. Ele tinha mo­vimentos rápidos e era, sim, encantador. Mas agora ela compreendia por que ele movimentava-se sem parar pelo palco: era mais baixo que a artista principal.

Fairbanks ficou maravilhado.

Essa peça ficou dois anos em cartaz. Você devia ser uma criança. Foi em... quando? 1910. De qualquer maneira, eu era como todos os atores de teatro na época, e muitos deles ainda são: achava que isto aqui era apenas um modo fácil de ganhar uns tro­cados. Mas havia Griffith, e Chaplin, e...

Pickford.

Caroline não conseguiu resistir. Fairbanks, dizia-se, estava sepa­rado da esposa e tinha um caso com "a namorada da América". Até então, o maravilhado público americano ainda não tinha se tornado confidente de Hollywood. A censura da guerra também tornara fácil a Hollywood controlar sua própria imprensa; e o controle era neces­sário. Embora a maioria das pessoas tivesse aceitado o fato de que Mary Pickford era uma mulher de 25 anos que ainda representava garotinhas, se se suspeitasse que a "Santa Mary'1 tinha um caso com um homem de 35 anos, casado e pai, os filmes dela — e os dele — seriam boicotados, e todas as igrejas do país clamariam a Deus pela destruição da Sodoma da Califórnia, e que todos os bonecos fossem transformados em minúsculas colunas de sal.

Fairbanks ouviu com tranqüilidade o nome de Fickford.

São estes os membros da nossa empresa. Vamos iniciar nos­so próprio estúdio, com nossa própria distribuidora. Por que Zukor e você também, Tom ele incluiu os recém-chegados Sr. e Sra. Thomas Ince na conversa —, deveriam ganhar todo o dinheiro? Agora nós vamos ficar com todo ele, e só faremos filmes de que realmente gostarmos.

A Sra. Ince sorriu distraidamente para Caroline. As esposas, se não eram do ramo, passavam muito tempo sorrindo distraidamente umas para as outras e discutindo problemas domésticos e a superio­ridade dos empregados japoneses sobre os filipinos. Desde o prin­cípio Caroline sentira-se em casa nessa colônia fechada: a obsessão de Washington com a política igualava-se à obsessão de Hollywood com seu próprio produto deslumbrante. Como proprietária de jornal, Caroline estava na feliz posição de ser igualmente útil a ambas as espécies de colonizadores.

Assim que Griffith voltar de Londres começaremos a nos organizar.

Ince sorriu com tristeza.

Bem, não existe outro como ele. Isso eu posso garantir, é o melhor diretor que há. Mas não o deixem afundá-los assim como ele afundou a Triangle, gastando todo aquele dinheiro...

Caroline gostava daquela conversa de negócios, principalmente agora que ela própria estava envolvida no mesmo negócio.

Mais tarde, na gelada escuridão de uma compressa fria sobre os olhos, ela disse a Tim, quando estavam juntos na cama:

Que devo fazer quando todos descobrirem que sou Emma Traxler?

Todos não vão descobrir. Fora das poucas pessoas que você conhece pessoalmente, o mundo só estará interessado no que está na tela, e que é Emma, não Caroline. De qualquer maneira, você se importa?

Acho que não. Se me importasse, não estaria fazendo isso, estaria?

Não sei! De qualquer maneira, Emma Traxler vai ser uma estrela de verdade.

Já estou com ciúmes dela. Ela vai ter a fama e a glória, e eu vou ser apenas a Sra. Sanford, a matrona de Washington.

— Eu não me preocuparia.

Tim bocejou. Ela removeu a compressa. Fizeram amor. Ele ador­meceu. Ela tentou dormir mas não conseguiu parar de pensar na­quele crucifixo e no tipo de madeira de que ele era feito para poder ser tão leve.

 

Burden, sentado no terraço na frente do Chevy Chase Club, observava os jogadores dominicais iniciando ou terminando as par­tidas no campo de golfe, que à luz prateada de outubro parecia o pano de fundo de um Gainsborough, colinas de um verde sombrio e folhas ainda verdes em meio a outras já cor de terra. O céu estava enevoado; o dia quente. Mais cedo ele jogara nove buracos com William G. McAdoo, a convite de Mac. O que quer que o secretário do Tesouro tivesse em mente, ele conseguira não expressá-lo enquanto aproveitavam o... ar mefítico? Durante um mês a epidemia de gripe espanhola grassara pelo mundo ocidental. Kitty adoecera seria­mente. Felizmente Diana tinha boa saúde e Burden evitara multidões e praticara ficar sem respirar, uma profilaxia impossível contra a praga assassina. O Senado fora duramente atingido. Era realmente como uma praga medieval, transmitida de pessoa a pessoa, mas a razão exata por que algumas eram suscetíveis, e outras não, era tão desconhecida quanto a razão por que a praga ocorria nessa época em particular. Alguns suspeitavam do juízo final; outros, do alto co­mando alemão. Muitos acreditavam que cientistas alemães tinham envenenado os reservatórios do mundo ocidental. Alarmistas decla­ravam que muitos milhões morreriam antes que a praga desapare­cesse. Alarmistas ainda mais extremados sugeriam que a praga desa­pareceria quando o último homem expirasse, primeiro queimado pela febre, depois afogado pelo maremoto da pneumonia. Tudo isso, e uma guerra mundial — e num ano de eleição.

Quando estavam para deixar o nono buraco, um empregado do clube veio correndo até McAdoo: a Casa Branca. Urgentíssimo. Em silêncio os dois homens voltaram para a sede do clube. McAdoo en­trara, enquanto Burden aproveitava a solidão povoada do terraço è se perguntava por que e com que propósito McAdoo o estivera son­dando. O porquê era fácil: McAdoo queria muito ser o candidato democrata em 1920. Será que pretendia tê-lo como vice? Decerto seria uma chapa não apenas bem equilibrada mas também uma pro­vável vencedora. Burden tinha o apoio de Bryan e Champ Clark, e dos outros oriundos do Sul e do Oeste que ainda formavam o maior bloco do Partido Democrata, ao passo que McAdoo tinha os chefes municipais do Leste, os banqueiros de Wall Street; tinha sido também um bem-sucedido secretário do Tesouro e membro da Junta de Conferência de Guerra que no momento governava os Estados Unidos. O fato de ser genro do Presidente ajudava e atrapalhava igualmente, portanto podia ser fatorado e retirado da equação final. Mas e o próprio Presidente? Restavam-lhe apenas dois anós para tornar o mundo seguro para a democracia.

Até então a Alemanha não tinha sido derrotada — pelo contrário; e os americanos recém-chegados ainda não representavam a avassaladora força nova no campo de batalha que a obediente im­prensa de George Creel proclamava. Mesmo assim, o fato de haver agora ria França um milhão de soldados vindos do outro lado do Atlân­tico virara o jogo psicologicamente, e o sábio profeta Henry Adams, constatou-se, estava correto quando disse, ainda em 1914, que a Ale­manha era uma força pequena e insignificante demais para conquistar o mundo. No final das contas, com toda honestidade, Woodrow Wilson poderia ter o direito de cantar vitória. Graças a ele, a escolha do mo­mento tinha sido impecável. A entrada tardia na guerra significava poucos feridos, ao passo que os apelos idealistas aos povos do mundo, acima das cabeças de seus egoístas líderes políticos, tinha sido, Burden pensou mas não disse, misteriosamente parecida com as do bolchevique Trotski. Finalmente, "paz sem vitória" era utopia; por­tanto, impossível; portanto, aceitável por todos. As chances eram de que, se Wilson desejasse um terceiro mandato como Presidente, ele o teria. Mas ele não poderia, como o ditador americano no romance do coronel House, querer liderar o mundo inteiro? Se ele se estabe­lecesse como Protetor da Democracia em algum lugar da Europa, então por que não McAdoo-Day em 1920? Ou ao contrário?

McAdoo sentou-se ao lado de Burden numa das grandes cadeiras de madeira pintadas de branco que caracterizavam o espaçoso con­forto do clube. Um garçom negro trouxe-lhes uísque.

— Para evitar a gripe — explicou McAdoo.

Era um homem alto e desengonçado, com orelhas pontudas de morcego e boca franzida; às vezes parecia um esboço inacabado do sogro.

— O poder Executivo pode confiar segredos ao Legislativo? — perguntou.

Burden brincou:

— Não, nunca.

— Mas vou confiar. Lembre-se, é segredo.

Sou um túmulo.

O Presidente acabou de voltar de Nova York com o coronel House...

Ambos beberam de seus copos. O assunto do Presidente-assistente, o éminence grise, o Maquiavel do Texas, era enorme demais para qualquer dos dois.

— O Presidente acabou de receber uma mensagem do chanceler alemão — continuou McAdoo. — A Alemanha está pronta a aceitar os Quatorze Pontos. E cessar a guerra. Agora.

Burden ouviu com tranquilidade. Para ele a guerra nunca fora inteiramente real. Agora era igualmente irreal.

— E os Aliados?

McAdoo suspirou e olhou para as nuvens.

Eles têm tantos acordos secretos...

Como Trotski contou ao mundo...

Num espírito de travessura, o governo bolchevique revelara todos os vários tratados secretos dos Aliados, tantas vezes deplorados pelo Presidente moralizador, que tinha, ele próprio, entrado em algo muito semelhante: um acordo secreto com o Japão a respeito da to­mada de Xantung, na China, por aquela atarefada nação. Wilson ficara embaraçado, mas não perturbado. Para ele, os Quatorze Pontos eram a única base para a América entrar na guerra, e pronto. Agora a Alemanha o procurara pedindo a paz, e não aos Aliados, que certamente estariam sequiosos de vingança e recompensa.

— Além disso, temos os nossos admiradores da guerra. — McAdoo parecia desanimado. — Eles querem a rendição incondicional.

— Não se consegue isso sem obter uma vitória incondicional. Não ganhamos coisa alguma, e o exército alemão ainda está intacto, ainda na França.

O Departamento de Guerra calcula que para tomarmos Berlim perderíamos um milhão de vidas americanas.

— Acho que até Cabot acharia esse número alto demais, ou o coronel Roosevelt.

Embora aquele grande patrioteiro fingisse um eufórico orgulho pelo ferimento de um filho e a morte de outro, aqueles que lhe eram chegados diziam que ele estava muito abatido pela tragédia da guerra real, tão diferente do ruído familiar de seu próprio trombe­tear teatral chamando às armas.

Querem um armistício agora.

Que é que o Presidente diz?

Ele pretende discutir isso conosco, com a Junta de Conferência de Guerra, amanhã. Não vai ser fácil.

Os Aliados?

McAdoo assentiu:

Além disso, existem os apaixonados pela guerra, aqui e lá.

Burden compreendia os apaixonados pela guerra daqui: grandes fortunas estavam sendo feitas legal e ilegalmente através do Exército. Burden recentemente entrara para a Comissão Naval do Senado, onde conseguira uma subcomissão sobre fornecimento. Todos os dias ele ouvia solicitações justificativas. Recebia ofertas de subornos, tanto sutil quanto abertamente. Não aceitara, mas outros senadores tinham sido mais fracos que ele ou mais fortes? Como a moralidade de Washington era sempre relativa à necessidade, o martírio de um po­deria ser o parque de diversões de outro.

Você vai ter problemas com o Exército. Burden trocou um segredo por outro. O general Pershing vai opor-se ao armis­tício. Ele quer lutar mais um ano e entrar triunfante em Berlim.

Pershing? McAdoo voltou-se para olhar diretamente para Burden. Com o sol atrás de si, parecia mais que nunca um gigantesco morcego. Ele não ousaria.

Não sei o que ele ousará, mas sei, de fonte segura, que ele vai se colocar publicamente contra qualquer tipo de paz negociada.

McAdoo sacudiu a cabeça.

Esses generais... — murmurou.

São mais estúpidos que as outras pessoas Burden concordou.

Obrigado pelo aviso. McAdoo estava mesmo grato. Mas por enquanto o problema será com os Aliados. Eles querem sua parte. Mas nós temos os trunfos.

Temos o dinheiro.

Burden levara algum tempo para se acostumar com as expressões "nação devedora" e "nação credora" e por que fazia diferença quem era o quê. A Grã-Bretanha tinha sido a maior emprestadora de capi­tal até ficar sem dinheiro em 1914. Quando J. P. Morgan mais tarde apoiado pelo Tesouro de McAdoo pagou a dívida inglesa, os Estados Unidos tornaram-se a principal nação credora. No entanto, a cidade de Nova York, fora da Quinta Avenida, era tão pobre quanto sempre fora, ao passo que se dizia que mesmo depois de quatro anos de guerra Londres ainda brilhava majestosamente.

Temos o dinheiro. Burden consultou o relógio. Não queria atrasar-se dois domingos seguidos. De qualquer maneira, vão entrar na linha se o Presidente disser apenas três palavras.

Quais? McAdoo sorriu. "Eu amo vocês"?

Não. "Paz em separado". Não entramos na guerra para ajudar os Aliados mas para fazer os alemães aceitarem os Quatorze Pontos. A Alemanha agora aceitou. Gostando ou não, a guerra aca­bou. E nós vencemos.

McAdoo assentiu.

É verdade. Mas os ingleses e os franceses vão ter que concordar num ponto qualquer. O coronel House disse-me confidencial­mente que os líderes ingleses e franceses detestam o Presidente ainda mais do que ele desconfia deles. McAdoo sacudiu a cabeça. Imagine Pershing querendo esticar a guerra para poder parecer herói!

Para poder ser Presidente.

McAdoo lançou um olhar perspicaz a Burden; sim, aquele era o objetivo do seu jogo de golfe dominical.

Se as pessoas descobrissem que um milhão de americanos morreram só porque ele queria marchar pela Wilhelmstrasse, ele seria odiado.

Votaram em Grant. Ele matou mais que um milhão.

Uma outra guerra. Uma outra época. Uma causa melhor. Será que devo pedir demissão?

Burden estava esperando a pergunta; e tinha uma resposta pre­parada.

Não. Você fez grande sucesso com os Bônus Liberty. Está no centro de um governo que ganhou uma guerra. Fique onde está.

Sou mantido de rédea curta.

Melhor do que ficar pastando por aí durante dois anos, ten­tando conquistar os delegados do partido.

Burden foi direto, mas McAdoo fingiu não ouvir a parte sobre os delegados. Saiu pela tangente:

Sabe qual a melhor maneira de chegar ao Presidente? É mencionar alguém que ele odeia. Contar-lhe alguma coisa sobre um inimigo. Inventar, se for preciso. Ele se abre imediatamente. Então você pode fazer o que quiser com ele.

Burden levantou-se.

Obrigado pelo golfe.

Os dois apertaram-se as mãos. McAdoo explicou que teria que esperar um carro da Casa Branca vir buscá-lo. Por deferência ao "domingo sem gasolina", ambos tinham ido ao clube de charrete e cavalo. Enquanto atravessava o saguão de teto alto do clube, Burden perguntava-se o que teria saído errado entre sogro e genro. Pensava também, com inveja, na grande quantidade de dinheiro de Wall Street, que McAdoo teria à sua disposição se entrasse na corrida para a Presidência. Como Burden tinha tantos votos quanto McAdoo .tinha dólares, a combinação era irresistível; apenas a ordem estava errada. Por que não Day-McAdoo? O secretário do Tesouro era mais conhecido no país inteiro do que o líder da maioria no Senado, mas onde os eleitores estavam, ali Burden estava entrincheirado, um se­gundo Bryan sem o primitivismo do primeiro Bryan; e também, para ser honesto, sem a suá magia.

No meio do saguão Burden encontrou-se cara a cara com um pálido Franklin Roosevelt, que estivera chorando. Pego em flagrante, Roosevelt conseguiu dar um sorriso; em seguida cobriu rapidamente o rosto com um lenço e assoou o nariz.

Você está com uma aparência horrível comentou Burden.

O rosto que emergiu do lenço era agora o costumeiro rosto jovial e algo vazio de sempre. Mas a cor era doentia, e os olhos muito juntos estavam vidrados.

Acabo de sair do hospital.

Gripe?

Pneumonia. Peguei na Europa. Passei dois meses lá. Nunca fiquei tão doente.

Apesar de toda a afetação rooseveltiana de vigor, Franklin era uma criatura doentia, como Burden se lembrava do Sílfide. Então a associação seguinte de suas idéias foi abruptamente antecipada. Lucy Mercer juntou-se a eles; usava roupas civis.

Senador...

Ela sorriu para ele. Estava linda como um sonho. Qual era o mexerico sobre eles? Ele ouvira algo, e esquecera.

Houve uma proposta de paz. Franklin apressou-se a des­viar o assunto. De quê? Da doença? De Lucy?

McAdoo acaba de me contar.

Ele está aqui?

Burden assentiu e despediu-se. De Chevy Chase à Avenida Connecticut seria mais de meia hora de charrete; devia ter pedido a McAdoo que lhe desse uma carona no carro da Casa Branca.

Embora Burden estivesse atrasado, ela estava calma.

Domingo sem -gasolina é domingo sem graça ela entoou até agora.

Estavam na sala de estar do andar superior, forrada de lambris de pau-rosa. O chá fora servido diante da lareira. Nas tardes de do­mingo, apenas a criada pessoal dela permanecia de plantão para deixá-lo entrar e para providenciar que a costa ficasse livre de em­pregados. Mais tarde ela o conduziria pela escada dos fundos até uma saída lateral. O quarto principal ficava no extremo oposto do palácio de mármore, ao passo que o dono da casa estava no extremo oposto do país.

Deve estar de volta amanhã.

Sendo ela tão mais jovem que Burden, ele nunca lhe prestara muita atenção, considerando-a parte do grande contingente de moças bonitas da cidade. Agora ela lhe servia chá aos domingos. Graças a Caroline, o domingo agora era associado em sua mente não apenas ao prazer mas também à liberdade de si mesmo. O' que o domingo podia significar para uma mulher estava além da sua compreensão. Afinal, se fossem razoavelmente habilidosos em controle de trânsito, teriam também mais seis dias da semana.

Por que Franklin Roosevelt estaria chorando no Chevy Chase Club, com Lucy Mercer? Essa era uma boa pergunta de domingo.

Porque ela estendeu-lhe o chá e um prato de biscoitos Hyler's esse foi provavelmente o último encontro deles. A não ser ela ficou pensativa que tenha sido o primeiro encontro sob a nova ordem. Eleanor descobriu tudo.

Finalmente! ele exclamou. Até mesmo Kitty estivera preo­cupada com a demora de Eleanor em descobrir o que todos na pe­quena Washington sabiam. Como?

Ele voltou da Europa com pneumonia dupla, que é duas vezes pior que pneumonia simples, que já é suficiente para o resto de nós. De qualquer maneira, Eleanor levou-o para o hospital. Quando chegou em casa as crianças estavam fora e ela começou a fazer arrumação. Examinou os ternos dele da Europa para mandar para a lavanderia, e ali estavam as cartas de amor de Lucy. Parecia uma dessas peças bobas. Preciso contar a Caroline quando ela voltar. O riso de Frederika tinha um tom conspirador, como se só hou­vesse eles dois no mundo inteiro.

Quem lhe contou? Alice?

Entre outros. Agora vem a parte onde há uma diferença de opiniões. Todos concordamos que Eleanor, nobremente, "tão nobre" Frederika imitou Alice imitando Eleanor disse que Franklin poderia ter o divórcio, mas que Lucy teria que ficar com seus cinco filhos. Isso foi brilhante. Afinal, Lucy tem sido sua secre­tária e sabe que aquelas Cinco crianças valem por dez. Lucy concor­dou em não ver Franklin mais. E agora reina uma triste paz.

Mas eles se encontraram hoje...

— No Chevy Chase Club, onde o senador Day e o Sr. McAdoo e todo mundo podia vê-los, ver como estavam infelizes, e discuti-los, como estamos fazendo. Acho que querem que saibamos que ela, como uma virgem católica, diante de uma esposa e mãe protestante, decidiu não prosseguir sem o matrimônio, que está fora de questão. De modo que o homem chora descontroladamente, e ela entra para o convento.

Burden pensou confortavelmente no adultério alheio. Então disse:

Alguma coisa está errada nessa história.

— O quê? — Frederika afastou os cabelos louros dos olhos.

Não entendo de mulheres...

— Você devia ter esperado que eu dissesse isso. Com raiva, é claro, meu amor. — Frederika era surpreendente. — Que é que está errado na história?

— É um ponto de vista feminino demais. Quero dizer, e o homem?

É tão diferente assim?

Burden assentiu.

— É sempre diferente., e quando o homem é um político, e disso eu entendo, é realmente diferente. Primeiro, Franklin jamais poderia, em circunstância alguma, casar-se com uma católica. Se­gundo, Franklin, divorciado e com cinco filhos, jamais poderia, jamais, casar-se com uma católica e esperar ganhar uma eleição, nem mesmo para xerife do condado de Dutchess.

Então o que aconteceu?

Eleanor fez ameaças, ele recuou. Ê óbvio. Os termos é que são curiosos. Quero dizer, ele sempre soube que jamais poderia casar- se com Lucy. Mas Lucy sabe, ou sabia, disso?

Entendo. — Frederika era rápida. — Ele podia tê-la enrolado. Sim. Entendo. Então Eleanor forçou uma definição. E ele... ele é um embusteiro.

— É disso que se trata o adultério.

Quero dizer, duplamente embusteiro — explicou Frederika sem se alterar. — O que você tem que admitir que é um pouco demais.

Caroline acha que ele é triplamente embusteiro. Mas não tenho tanta certeza.

Por que triplamente?

— Ela acha que Eleanor está apaixonada por Lucy e que Franklin acabou com o romance por causa de todos, quer dizer, de si próprio.

Se é verdade, ele é um mestre da política.

Foram para a cama. Durante o ato, ele pensou em Caroline, não como ela era agora mas como tinha sido naquela primeira vez, que fora na verdade, para espanto dele, a primeira vez dela. Ao longo do tempo, ele tornou-se pai da filha dela, então atribuída ao marido e primo, John Apgar Sanford, com quem ela prontamente se casara. Pelo menos aquele segredo tinha sido bem guardado. Blaise o co­nhecia; mas, para surpresa de Burden, Frederika não conhecia, e Frederika tinha sido, de vez em quando, ao longo dos anos, amiga íntima de Caroline. No final das contas, Burden era grato a Blaise por não ter contado à esposa, agora amante de Burden no lugar da meia-irmã dele, no momento vivendo abertamente na Califórnia com um certo Timothy X. Farrell, cujo filme mais recente, Os boches do inferno, estreara com excelentes críticas no Capitol Theater em Washington e no Strand de Nova York. Era o filme de guerra para acabar com todos os filmes de guerra, e estreara, felizmente, exata­mente quando a guerra para acabar com todas as guerras estava para acabar.

 

Jess e a Duquesa sentaram-se na última fila do Capitol, de modo que ela conseguia ver a tela sem seu pincenê e ele mal conse­guia ver coisa alguma. Mas tudo o que a Duquesa queria, os outros faziam. Embora as figuras na tela não fossem tão nítidas quanto o míope Jess gostaria que fossem, o pouco que ele podia ver era niti­damente um filme maravilhoso. A coragem da mãe americana levara- lhe lágrimas aos olhos, e até mesmo a normalmente pétrea Duquesa foi obrigada a segurar os sais numa das mãos e o lenço na outra. O órgão tocava música triste, apropriada aos horrores da guerra. Os ataques noturnos; bombas explodindo; o gás venenoso; homens contorcendo-se no arame farpado; o hospital com os mutilados. Pela primeira vez Jess compreendeu algo da guerra. A maioria dos filmes sobre a guerra tinha sido propaganda feita às pressas. Ninguém parecia realmente morto ou ferido, e os cenários pareciam mesmo cenários. Mas aquele era real; e diziam que grande parte dele tinha sido filmado na França com uma mãe americana de verdade, procurando seu filho de verdade no bosque Belleau. Todos comentavam a beleza da mãe como uma Madona, diziam os jornais, uma Mater Dolorosa, acrescentavam os intelectuais. Agora a música do órgão tornava-se pressaga. A mãe estava numa igreja arruinada. Jess de­testava qualquer um que destruísse deliberadamente uma igreja, como aqueles boches tinham feito. Pior ainda: na frente do altar principal sentava-se um oficial alemão careca, de monóculo. Como um mo­nóculo ficava no lugar era algo que sempre intrigara Jess, cujos olhos redondos não poderiam segurar coisa alguma, ao passo que seu nariz pequeno mal podia agüentar um pincenê. O oficial prussia­no estava profanando a igreja ao usá-la como escritório. Agora a música insinuava que algo ainda mais terrível estava prestes a acon­tecer. As mãos de Jess estavam úmidas. Pelo canto do olho ele per­cebeu que a Duquesa chegara para a frente, a boca grande e fina enrijecida como se ela fosse a pobre mulher na tela.

A Madona implorava pela vida do filho e para saber onde ele estava prisioneiro. Então isso não podia estar realmente aconte­cendo, pensava Jess, o coração disparado o boche sorriu maligna­mente; levantou-se; saltou sobre a mãe devotada, que recuou. Houve um uníssono na platéia, ao perceber que o boche estava prestes a estuprar a Madona numa igreja. Ela lutou contra ele; ele a perseguiu, ela fugiu para o altar; ele a seguiu. Jess parou de respirar. Então ela ergueu o crucifixo.

A platéia gemeu de horror e medo. O rosto do boche era puro terror quando ele vfu o crucifixo descendo lentamente sobre si. O rosto da mãe estava transfigurado com um poder mais alto que o desta terra; ela agora estava transcendente, unida a Deus. O cruci­fixo acertou a cabeça raspada do boche, que caiu de costas nos de­graus da escada, acompanhado de um forte crescendo do órgão. A Duquesa soltou um soluço dentro do lenço. Jess soltou a respiração, trêmulo, e rezou para não estar tendo um ataque do coração. O filme terminou- com mãe e filho unidos pelos fuzileiros navais ame­ricanos no rio Marne; enquanto o órgão tocava baixinho a Marse­lhesa, as luzes se acenderam e as pessoas não ousavam olhar umas para as outras, com medo de que suas lágrimas fossem visíveis, en­quanto elas caminhavam, nobremente, como a mãe, pelo corredor, para enfrentar a luz baça de uma tarde em Washington.

Na Rua 14 a Duquesa assoou o nariz ruidosamente e declarou:

Conheço aquela mulher.

Quem? A mãe?

A Duquesa assentiu e estudou o cartão na frente do cinema.

Emma Traxler. É o nome dela.

Não é um nome de Ohio.

Chicago, talvez. Naturalmente pode ter sido inventado, como Mary Pickford. A Duquesa parou um táxi. Para o Capitólio. O lado do Senado.

Bom, acho que foi um dos melhores filmes que já vi afirmou Jess, ainda perturbado. Pelo menos sobre a guerra. Pa­recia que eu estava lá, nas trincheiras, com todo aquele barulho.

A Duquesa marchou para a porta da sala de descanso dos se­nadores, que ficava atrás do trono do vice-presidente. Quando ela e Jess estavam prestes a entrar todos os guardas do Capitólio conheciam e apreciavam a Duquesa, apesar ou por causa de seus modos autoritários o senador saiu do banheiro, de braços dados com o senador Borah, de Idaho, um homem alto, troncudo, com uma cabeleira de leão, considerado um radical. Era típico de W. G. dar-se o trabalho de fazer amizade com alguém como Borah, que se opusera furiosamente ao alistamento compulsório, à Lei de Espionagem e ao Bônus Liberty. O primeiro, porque não se destrói a Prússia prussianizando os Estados Unidos; a segunda, porque a Primeira Emenda garantia liberdade de expressão; o terceiro, porque os bônus elevavam os preços, criando inflação. Como homem de negócios, Jess aprovava inteiramente o número três, e o mesmo acon­tecia, secretamente, com W. G. Embora não fosse politicamente acon­selhável tomar essas posições num país que ansiava pela guerra, Borah era destemido, ao passo que W.G. era cauteloso. A Sra. Borah e a Duquesa tinham boas relações; eram vizinhas na Avenida Wyoming.

O sorriso de W. G. foi enorme ao ver a esposa, e igualmente enorme ao cumprimentar Jess.

Duquesa, por que não está na sua roda de costura?

A guerra acabou, dizem. Como vai, Sr. Borah?

Sra. Harding...

Borah sorriu também para Jess, sem se lembrar dele. Jess estava acostumado a isso: o sorriso de reconhecimento já era reconhecimento suficiente. A cabeça de Borah era como uma maçã cujas duas meta­des começavam no repartido no meio dos cabelos e terminavam na cova do queixo redondo.

— Viu a resposta do Presidente ao kaiser? — perguntou ele.

Fui ao cinema. — A Duquesa falava como se de alguma forma ela tivesse acabado de ganhar a guerra no Capitol Theater. — A matinê estava repleta, o que mostra que a guerra está no fim.

Borah assentiu.

Wilson disse ao kaiser que ele terá que abdicar antes de falarmos de negócios. Primeiro sinal de iniciativa em muito tempo.

— Vou discursar — disse W. G. — Tudo isto é muito histórico.

Jess teve permissão para acompanhar os Harding ao supra- sumo dos locais, a sala de descanso dos senadores, um aposento com­prido e estreito, reminiscente do que realmente era — um clube masculino —, com uma fila de armários altos ao longo de uma parede, cadeiras de couro, mesas e sofás ao longo da outra. Portas duplas de vaivém em cada extremo davam entrada ao plenário do Senado.

Como todos os outros lugares, o Senado estava pouco freqüen­tado naqueles dias: as pessoas que não estavam com a gripe evitavam lugares públicos. Uma dezena de senadores estava na sala de des­canso; alguns escreviam; outros conversavam em tom conspirador; vários cortejavam-o senador da Pensilvânia, o chefe republicano Bóies Penrose, um homem tão enormemente gordo que, uma vez en­fiado na maior poltrona do aposento, eram necessários pelo menos dois funcionários para puxá-lo de lá. Jess sabia que Penrose, velho e decadente, ia decidir, como sempre fizera, quem seria o candidato republicano em 1920. Quando avistou Harding, ele acenou distrai­damente; então continuou sua conferência com uma dupla de sena­dores do Oeste. Borah foi para o plenário.

Harding e a Duquesa sentaram-se lado a lado num sofá de couro preto; enquanto o senador estudava suas anotações, a Duquesa con­versava com Jess.

— O que Daugherty não daria para estar aqui... — ela comentou.

— Talvez ele chegue aqui um dia desses — respondeu Jess.

Ele daria uma perna e um braço para ser membro daquele clube extraordinário, contanto, naturalmente, que jamais tivesse que levan­tar-se e fazer um discurso. Mais que a escuridão, as armas de fogo e o infame armário de vassouras, falar em público o aterrorizava. Grande parte do respeito que sentia por W. G. devia-se à facilidade com que este podia postar-se diante de uma multidão e discursar horas a fio sem a menor hesitação ou o menor sinal de nervosismo.

Naturalmente era de grande ajuda ser bonitão como W.G.; e sim­pático...

Não, Daugherty perdeu definitivamente há dois anos. Quem não consegue derrotar Myron Herrick nas primárias republicanas jamais conseguirá eleger-se em Ohio.

O senador do Novo México veio do plenário. Era um genuíno vaqueiro, com um enorme bigode. Tinha sido um dos voluntários de T. R. na Guerra Hispano-americana, e era presença regular nas noites de pôquer de Harding e Longworth.

— Oi, Duquesa. Oi, Jess. Albert B. Fali jamais esquecia o nome de Jess.

Pensei que você tivesse ido para casa, consertar umas cercas disse a Duquesa.

Ela não tinha um interesse verdadeiro pela política, mas adorava eleições. Como uma fã de beisebol, conhecia os pontos de cada um. Fali, por exemplo, ia tentar a reeleição em novembro.

Estou a caminho.

Fali olhou com curiosidade para Harding, que continuava exa­minando suas anotações. Com os óculos colocados e os espessos ca­belos brancos despenteados, W.G. parecia mais que nunca o proprietário-editor do Marion Star que Jess conhecera em criança.

Vai discursar?

Um pouco de falação para sacudir o coro senatorial, irmão Fali. Harding ergueu os olhos e sorriu. Evocarei o amor fra­ternal, para acolhermos mais uma vez no concerto das nações o bom povo alemão, não mais ludibriado por seus líderes malvados que agora foram derrubados de seus tronos.

Isso vai agradar Carrie Phillips. observou a Duquesa, mais sibilando do que propriamente falando.

Jess sentiu o rosto esquentar; as palmas das mãos começaram a transpirar. W.G. parou de sorrir. O senador Fali, que não tinha idéia de quem era Carrie Phillips, disse apenas:

Acabei de fazer mais ou menos o mesmo discurso. Aliás, consegui que o coronel Roosevelt faça campanha para mim.

— Ótimo para você disse Harding, numa péssima imitação do coronel.

Ele adora você, W.G.

Em maio ele disse a Daugherty que, se fosse candidato em 1920, teria Warren em sua chapa. Foi quando estava discursando em Columbus — informou a Duquesa, como se apagasse, com uma profusão de detalhes, sua inoportuna menção a Carrie Phillips.

— Ele vai precisar de Ohio, e Ohio é você, W. G.

Harding tirou os óculos e guardou as anotações no bolso.

— O coronel disse-me certa vez: "Acho que compreendo bastante bem a maioria das coisas, exceto a política em Ohio."

— É simples — retrucou Fali. — Cincinnati é um lugar e Columbus é outro. Muitas pessoas confundem.

Fali então aproximou-se de Penrose e sussurrou algo no ouvido do gordo.

— Onde está Daugherty? — a Duquesa perguntou.

— Em Cincinnati. Ou talvez Columbus. — Harding estava relaxado. — Não tenho notícias dele. Também não parei de viajar.

Com a bênção do Presidente, o chautauqua estava mais popular que nunca, e os políticos que ganhavam a maior parte de sua renda fazendo preleções em barracas eram encorajados a falar sobre o que quisessem, com a condição de que, sutilmente ou não, apoiassem o esforço de guerra. A palestra fixa de Harding tinha sido, durante anos, a carreira de Alexander Hamilton, resultado de ter lido certa vez, enquanto fazia um tratamento em Battle Creek, um romance baseado na vida de Hamilton. Jess ouvira essa conferência dezenas de vezes, e poderia ouvir mais dezenas. Harding nunca modificava uma só palavra ou um dos seis gestos que sempre usava, na mesma seqüência, como era ensinado no livro de retórica. Mas o final do discurso inalterável não era fixo. Harding sempre conseguia ligar seu herói, Hamilton, a qualquer tema contemporâneo que escolhesse — nesse caso, ganhar a guerra para acabar com todas as guerras em nome da democracia.

— Daugherty é um homem brilhante. — W. G. penteou os ca­belos sem usar espelho, algo que Jess, com seus cabelos ralos, jamais poderia fazer. — Mas atualmente ele tem tantos ódios políticos que estou preocupado. Ele leva as coisas muito a sério.

— É um bom amigo — acrescentou a Duquesa.

Desde o início Daugherty fizera dela uma aliada em sua cam­panha para fazer W. G. Presidente; uma empreitada muito difícil, se Theodore Roosevelt se candidatasse, e ele se candidataria. Mas vice-presidente não era tão ruim, como até mesmo Daugherty con­cordava quando ele e Jess discutiam o assunto infindavelmente.

  1. G. pôs-se de pá e ajeitou o paletó, enquanto a Duquesa lim­pava a caspa de seus ombros.

— Eu gostaria — disse ele — que ele não ficasse confundindo minha delicadeza com as pessoas com concordância ou fraqueza. Por uma razão qualquer ele cismou que politicamente sou abaixo da crí­tica. Que sou facilmente "enrolado".

Você é bom para as pessoas. Acredita em todo mundo. — retrucou a Duquesa, ecoando Daugherty.

Acreditando em todo mundo não é preciso acreditar em pessoa alguma. De qualquer maneira, é mais fácil pegar moscas com mel do que com vinagre.

Harding encolheu a barriga e ergueu a cabeça. Na vida pública não existe homem mais bonito, pensou Jess. Então o senador abriu as portas de vaivém e entrou no plenário do Senado e na história daquele dia.

 

Quando o crucifixo foi erguido, Caroline fechou os olhos. Até então tinha assistido a Os boches do inferno uma dúzia de vezes, e a cada vez descobria algo novo de que não gostava, apesar do fato de ter sido favoravelmente comparada a Eleonora Duse, a atriz dos efeitos sutis. Ela própria achava-se mais da escola de Sarah Bernhardt, artificial e cheia de gestos embaraçosamente largos.

Passado aquele momento, ela abriu os olhos e olhou para o Presidente; ele estava absolutamente concentrado na tela, ao passo que ao lado dele a Sra. Wilson abriu a boca, sem perceber, quando o crucifixo mais uma vez teve seu encontro fatal com o crânio do pobre Pierre. Por toda a eternidade, ou até que o celulóide virasse pó ou fosse o que fosse que o celulóide estava destinado a virar, Ca­roline estaria erguendo e baixando o crucifixo e Pierre estaria caindo para trás, para trás, para trás. Seria isso o inferno a repetição?

No final acrescentara-se um novo cartão de legenda, anuncian­do a série de inexoráveis vitórias americanas do Marne ao Argonne, à medida que os boches eram forçados a retroceder em direção ao seu covil do outro lado do Reno. Os convidados no Salão Leste aplaudiram as vitórias, sem que lhes perturbasse o fato de que os Aliados, que tanto tinham contribuído, não tivessem sido menciona­dos. "Faremos cartões diferentes para cada país", dissera Ince. "Assim, todos ganham a guerra, menos os boches." E Tim respondera: "O mercado alemão também é muito grande; por que não deixá-los vencer na Alemanha?"

Houve mais aplausos quando o filme terminou com uma longa tomada de Caroline caminhando galantemente para o futuro, os ca­belos despenteados pelo vento criado por uma máquina, os olhos brilhantes com um forte ataque de klieguite, e desolação por toda parte, rompida apenas no final por uma nuvem que passava e... vejam! O sol! Demorara dois dias para conseguirem esse efeito da nuvem no cais de Santa Mônica.

As luzes no Salão Leste foram acesas. Os convidados do Presidente, de olhos vermelhos, ficaram de pé. O Presidente apertou a mão de Caroline.

Você deve ter orgulho de ter produzido este filme.

Infelizmente acho que foi um pouco tarde para o esforço de guerra.

Caroline, como sempre, espantava-se ao ver que, depois de duas horas vendo-a na tela, as pessoas podiam então virar-se para ela na vida real e não fazer ligação entre a gigantesca imagem de sombras e a miniatura da vida real. Ela se arvorara em produtora porque a Triangle ficara sem dinheiro na metade do filme, e se a empresa fechasse seria fatal para a carreira de Tim pelo menos ela gostava de pensar assim, e ele de dizer.

Os boches do inferno fizera um sucesso espantoso; e havia gran­de curiosidade a respeito de Emma Traxler. Havia também numero­sos convites para filmes, todos dirigidos a ela por intermédio do Sr. Ince, que achava que ela devia levar a sério a nova carreira. Mas Caroline entendia de sorte: havia certos acidentes na vida que não se repetiam. Esse era um. Naturalmente ela podia ser uma atriz velha, mas isso era um pouco pior que ser uma velha senhora que jamais era obrigada a olhar para um espelho.

Edith Wilson deu o braço a Caroline e saiu com ela do Salão Leste, atravessando o saguão e entrando no Salão Verde.

Algumas pessoas vão ficar para um café. Fique também.

Naturalmente, mas...

O Sr. Farrell também. A Sra. Wilson mostrou ter tato. — Não tinha imaginado que um filme pudesse ser tão... bem, tão forte. De certo modo, é mais excitante que o teatro.

Mais rápido, certamente.

Devíamos ter tido música. Eu disse a Woodrow para arranjar o pianista da banda dos fuzileiros. Mas, coitado, ele morreu. De repente. De gripe. E onde é que se encontra um bom pianista em cima da hora?

O Salão Verde estava começando a encher-se de gente. Do Con­selho de Guerra estava o californiano Herbert Hoover, de quem se dizia ser um gênio para a organização pelo menos foi o que

Caroline lera no Tribune. Durante o jantar Caroline achara-o agrada­velmente tímido. Tinham conversado sobre a China, onde ele fora engenheiro na época da rebelião de 1900. Não tinham discutido o racionamento de alimentos, um assunto que seu rosto gorducho per­sonificava paradoxalmente.

George Creel e Tim entraram juntos. Creel estava maravilhado.

Vamos exibir isto em toda ã Europa disse a Caroline. Mostrar a eles o que devem a nós.

Caroline ficou espantada com .aquela declaração.

Eles com certeza sabem melhor do que nós o que nos devem, se é que nos devem alguma coisa.

Você devia dar uma olhada nos jornais deles! Parece até que nem entramos na guerra. Por isso um filme como este é tão impor­tante. Eles vão fingir que venceram sozinhos e então vão tentar encontrar motivos para não aceitarem a proposta de paz alemã.

O aposento dividia-se em grupos. O maior reunia-se em torno do Presidente e do coronel House, que estava para voltar à Europa, onde teria que convencer os Aliados de que os Quatorze Pontos eram as imutáveis condições da América para à paz.

Acho que não vão querer continuar lutando sem nós. Creel sorriu. — Lembra-se do verão passado? A França estava li­quidada. A Inglaterra, falida. Bem, nós vamos fazer a paz, gostem os Aliados ou não. O que vai fazer em seguida, Sr. Farrell?

Tim sorriu seu sorriso de coroinha de igreja.

Agora que a guerra está terminada e vencida, acho que gos­taria de fazer alguma coisa sobre Eugene V. Debs.

Creel ficou perplexo.

Debs? Mas ele está a caminho da prisão!

O líder do Partido Socialista nunca interessara a Caroline, mas, agora que ela era obrigada a ver uma parte do mundo uma parte do tempo através dos olhos do amante, tornara-se interessada em Debs, que recebera um milhão de votos para Presidente em 1912. Então, com retórica violenta, Debs opusera-se à guerra, assim como ao capitalismo. Era também dado a elogiar, senão, talvez, a ler, Marx e Lenin, e não considerava a revolução bolchevique inimitável. O governo dos Estados Unidos prontamente acusou Debs de violar, através do exercício da livre expressão, a Lei de Espionagem de 1917. Prontamente também um tribunal condenara-o a dez anos de prisão. No momento ele estava em liberdade por recurso. Mas todos sabiam que o Supremo Tribunal ia ser unânime em considerá-lo culpado, invocando a famosa teoria do ministro Oliver Wendell Holmes de quando a expressão era livre e quando não era. A expressão era absolutamente livre, ele julgava, exceto quando havia um "perigo claro e presente".

Tim colocara Caroline cara a cara com as realidades desse país agora mais estranho que nunca, cujas contradições brutais ela cos­tumava considerar normais. Embora não fosse tão sentimental quanto ele a respeito de abstrações tais como justiça, sua educação carte­siana deixava-a desconfiada de proposições ilógicas. Ou se podia falar livremente a respeito de assuntos políticos, ou não; se não, que não se dissesse que havia liberdade de expressão quando o seu exercício significava dez anos na prisão. A teoria do "perigo claro e presente" era, para Caroline, um perigo claro" e presente para a própria liberdade. Fora isso que ela argumentara com Blaise, que dissera que ela entendera mal a natureza de uma república cujas contradições eram, de um modo místico qualquer, a sua força.

Enquanto isso, a mente rápida, ativa e grosseira de Creel tinha agora aceitado a idéia de um filme a respeito de Debs, achando-a boa.

Sabe, é uma idéia inspirada, Sr. Farrell. Tem toda razão. O senhor nos mostrou os boches do inferno. Bem, já cuidamos deles. Então, o que vem a seguir? Os bolcheviques, o comunismo, o socia­lismo, os agitadores trabalhistas, o inimigo dentro de nosso próprio país. É aí que está o verdadeiro perigo agora. Mostre Debs e Trotski trabalhando unidos para escravizar cada americano, algo que nem mesmo os boches pensaram em fazer porque somos ambos países cristãos com o mesmo sistema capitalista. Mas os bolcheviques têm uma nova religião, que poderia florescer em nosso país. Veja as greves nas estradas de ferro, nas minas de carvão; não me diga que em algum lugar não existe alguém manipulando nossos operários para destruir nossa liberdade...

Da qual Caroline foi solene a liberdade de expressão é a mais importante.

Exatamente.

Mesmo quando o perigo está claro e presente...

Exatamente!

Creel estava fora de si de entusiasmo com a nova cruzada. Caroline lançou um olhar de repreensão a Tim. Tim deu de ombros. Era inevitável que os Creel encontrassem um novo inimigo para tomar o lugar dos boches. Enquanto Tim descrevia a implacável acusação a Debs que Creel queria que ele fizesse e que ele não iria fazer, Edith Wilson puxou Caroline para a órbita do Presidente.

— Sabe, aquela atriz maravilhosa se parece muito com você. Naturalmente ela é mais velha.

Era o mais perto que as pessoas chegavam de descobrir a iden­tidade de Emma Traxler. A princípio Caroline ficava espantadíssi­ma ao constatar que ninguém percebia que ela era Emma. Mas Tim explicara: "É porque as pessoas não olham realmente para o rosto de quem elas conhecem." O trabalho de Tim era ver precisamente o que via. "Mas um desconhecido que não conheça Caroline Sanford vai ver você na rua e perceber que é Emma Traxler." Isso acontecera mais de uma vez em Nova York e Washington. Mas ela era tão claramente identificada consigo mesma entre aqueles que a conheciam, que simplesmente não poderia ser outra pessoa. Além disso, os ca­belos de Emma eram diferentes; e seu rosto luminoso de Madona- era resultado de uma cuidadosa iluminação, que a vida — a luz — real recusava-se cruelmente a dar.

Emma Traxler é suíça, de Unterwalden, em Schweiz. Uma família muito antiga. Conheci-a em Paris quando ela estava no teatro.

Caroline adorava inventar Emma. Mas o mesmo acontecia com a imprensa, que mudara sua origem para a Alsácia-Lorena, aquela terra de fronteira, terra dividida e maravilhosa, que dera tanta coisa ao mundo, inclusive o criador do estúdio de cinema Universal, Carl Laemmle, da vizinha Württemberg.

O coronel House tomou a mão de Caroline entre as suas. Edith afastou-se. Como um simpático rato cinzento, House sussurrava elogios ao ouvido de Caroline, particularmente pela linha editorial do Tribune. Atrás dele, o Presidente dava audiências.

Os Aliados vão criar problemas, não vão? — perguntou ela.

Caroline jamais conseguira entender a natureza da influência de House sobre Wilson. Obviamente o homenzinho era um hábil lison­jeador, ao estilo exagerado do Texas; obviamente era desinteressado, no sentido de que não queria dinheiro ou posição pública, o que impressionava a todos, menos a Caroline, que sabia que exercer poder no mundo era o mais refinado de todos os interesses; obvia­mente era inteligente. O mistério, se mistério havia, tinha mais a ver com a personalidade singularmente distante de Wilson do que com qualquer plano, não importa quão interesseiro ou interessante, do coronel texano. Wilson não tinha amigos homens porque acreditava, como somente um professor de universidade poderia acreditar, não ter similar; certamente essa era a impressão que dera aos líderes de seu partido, homens que se consideravam tão ímpares quanto ele se considerava. Para uma pessoa tão isolada por sua própria retórica

e pelos poderes constitucionais de época de guerra, um coronel House era uma necessária ligação com o mundo exterior a si.

...embarco em 4 de dezembro. Espero, antes de partir, ouvir boas notícias da Alemanha.

E de França e Inglaterra?

— Temos a maioria dos trunfos, Sra. Sanford. Aliás, talvez todos, por agora. O verdadeiro problema é fazer a paz, depois.

Conheci alguns dos seus rapazes. São formidáveis.

-— Do Inquiry?

Caroline assentiu. Um ano antes, House criara uma junta de jovens eruditos cuja tarefa era fazer planos para o novo mundo que emergiria da conferência de paz. Os historiadores puseram-se a tra­balhar estudando as fronteiras, os grupos lingüísticos, as religiões da Europa; além disso, tiveram permissão para estudar os tratados secretos que os Aliados tinham feito uns com os outros e com países interessados, como a Itália, a quem tinha sido prometida uma boa fatia do Império Austro-Húngaro em troca de uma neutralidade falsa, seguida pela guerra. Os bolcheviques publicaram todos eles, embara­çando o Presidente,, que fingiu não ter conhecimento deles. Como os Quatorze Pontos significavam modificar o mapa da Europa, a nada invejável tarefa do Inquiry era adaptar a generosa "paz sem vitória" de Wilson — uma expressão inventada por um dos homens do In­quiry, um editor do New Republic, Walter Lippniann — aos trata­dos secretos, que representavam a vitória total dos Aliados e não muita paz.

O sussurro suave era eminentemente calmante:

... o kaiser abdicará, e haverá uma república, e um armistício, e então a conferência de paz, onde, espero não estar contando vantagens demais, nós entraremos, aqueles meus rapazes, certamente, os mais preparados de todos. Estamos prontos para qualquer coisa, inclusive, se for necessário, a divisão de Schleswig-Holstein segundo critérios raciais.

— Como os franceses ficarão espantados! Eles nos julgam totalmente ignorantes... a respeito da política européia — ela acres­centou, consciente do desprezo ciumento da França por tudo que fosse americano.

O Ministério das Relações Exteriores britânico também tem uma espécie de mentalidade francesa. — Os olhos do rato cinzento brilharam de bom humor.

Atrás dele, o Presidente, de olhos semicerrados, parecia estar fazendo um sermão.

Quem vai negociar por nós? — Caroline não esperava uma resposta, mas às vezes a maneira como não se responde a uma per­gunta era por si só reveladora.

— Acho que vamos continuar como estamos.

— Com o senhor em Paris... ou em qualquer outro lugar...

— E o Presidente aqui, dizendo-me o que fazer.

Nada de Lansing?

O desagrado que o Presidente sentia pelo seu secretário de Estado era do conhecimento de todos.

— Bem, talvez pouca coisa de Lansing. — House soltou uma risadinha. — De qualquer maneira, não deve demorar muito. Esta­mos prontos, desta vez.

— O Presidente fica aqui?

House assentiu.

— Este trabalho não é para um chefe de Estado. Afinal, ele é o rei e o primeiro-ministro da Inglaterra numa só pessoa. É grande demais para nossa conferência. Provavelmente vai aparecer rapida­mente, mostrar a bandeira. Acham que ele é Deus, sabia? Depois, desaparecer no firmamento, como Deus.

No caminho de volta a Georgetown, Tim estava ao mesmo tempo exultante e impressionado.

— Se o pessoal do bairro pobre de Boston me visse agora...

— A maioria dos que estavam lá veio de bairros pobres. — Caroline estava melancólica e não sabia por quê. — Apenas saíram muito antes de você.

O motorista fez uma parada na Avenida Wisconsin, quando uma comprida fila de carros fúnebres pretos cruzou a rua a caminho — ou voltando — do necrotério.

— Será que todo mundo vai morrer? — Caroline tirou da bolsa a sua máscara de gaze e colocou-a no lugar sobre o nariz e a boca. A maioria das pessoas usava"máscara na rua ou em lugares públicos.

— Isso resolveria muitos problemas. — Tim era otimista; não usava máscara.

— Dizem que já morreu mais gente de gripe do que na guerra. Frederika, a minha cunhada, pegou a gripe.

É sério?

É.

Uma Emma autêntica estava esperando por eles na sala. Era alta, loura e muito parecida com Burden; obstinadamente escapara da beleza. Caroline queria muito fazer alguma coisa por ela, mas Emma não se deixava modificar. Estava feliz com a matemática, um campo para sempre vedado à sua mãe. Agora, porque todas as es­colas estavam fechadas, Emma viera para casa. Caroline ficou feliz porque o relacionamento das duas era suficientemente cortês para que nenhuma pergunta fosse feita quando Tim ficasse para dormir. Emma aceitava facilmente qualquer coisa; Caroline não conseguia decidir se isso era sinal de inteligência ou de total indiferença. Por outro lado, ela também tinha suas reservas de indiferença sempre prontas para serem usadas.

Cinco mil pessoas morreram ontem foi o animador cum­primento de Emma. Ela estava enrodilhada num sofá junto à lareira, cujo fogo estava agora reduzido a cinzas e carvão.

No país inteiro? Caroline removeu a máscara.

Aqui em Washington. Olá, Sr. Farrell.

— Oi, Emma. Tim estava eufórico Com seu sucesso na Casa Branca. Viu a cara de Creel quando eu disse que queria fazer um filme sobre Debs?

Vi, sim. Felizmente ele não entendeu direito.

A democracia devia começar em casa. Tim sentia-se em casa; serviu-se uma dose de uísque puro.

A tia Frederika piorou interpôs Emma.

Ah, meu Deus! Caroline sentou-se perto do fogo. Talvez fosse mesmo o fim do mundo, afinal. A praga entraria em todas as casas, até que todos estivessem mortos. E o tio Blaise?

Está com ela. Ele está bem. Acha que já teve a gripe, de uma forma branda.

Até que ponto você é católica a sério? perguntou Tim a Caroline, seriamente.

Nem um pouco. Tenho medo é desta vida agora, e não da próxima, que não existe.

Sorte sua pensar assim. Ele mudou de assunto. Acho que o Presidente reconheceu você. Eu o peguei olhando para você depois da cena do crucifixo...

Somos velhos conhecidos disse Caroline depressa; Emma não sabia da Emma fictícia. Felizmente não costumava ir ao cinema. Que é que está lendo?

Emma ergueu o livro do colo.

O último livro do tio Henry. Sobre a educação dele. Hoje fui visitar a Srta. Tone. Ela ainda está na casa. É tudo muito triste...

Mais triste para nós do que para ele. Morreu dormindo. Ela olhou para Tim, como se isso fosse, de alguma forma, muito importante.

Ele estava sorrindo quando foram acordá-lo, a Srta. Tone me contou.

— Tanta história... terminada!

Caroline perguntou-se se estaria começando a falar como cartões de legendas de cinema, com muitas reticências e pontos de exclamação.

— Toda a questão dos negros é realmente interessante, e ninguém fez isso ainda. — Tim não pretendia chorar a morte de Henry Adams.

— Interessante por quê? — Para alguém tão cioso da cortesia de sua classe, Emma foi ríspida.

— Veja a situação deles. São 12 milhões vivendo aqui, num país que está lutando para tornar o mundo seguro para a demo­cracia, e a maioria não pode votar ou ter os mesmos direitos dos brancos.

— Talvez eles não queiram esses direitos.

Emma não tinha uma natureza imaginativa, ou mesmo generosa, pensou Caroline, que também não era generosa mas era suficiente­mente imaginativa para entender o que os outros sentiam. Talvez fosse esse estranho dom que lhe tornava possível transformar-se tão facilmente na imaginária Emma Traxler, que por sua vez podia trans­formar-se em Madeleine, uma mãe na frente de batalha.

— Se não quisessem os mesmos direitos, por que centenas de pessoas foram mortas ou feridas em Chicago no verão passado? — Tim olhava para Emma com interesse.

— Talvez os brancos pensassem que os negros queriam alguma coisa que não deviam ter, e então atacaram antes, como fazem no Sul quando lincham um deles — disse Emma.

Inteligente — aplaudiu Caroline.

Para ela, grande parte do encanto de Washington era a sua africanidade, tanto no clima quanto na população. A igualdade racial não significava muito para ela, ou — segundo ela achava — para a maioria dos negros, que ignoravam o mundo dos brancos assim como o mundo dos brancos os ignorava — ou pelo menos assim lhe parecia, cada raça vivendo em universos separados, embora contí­guos, em duas Washingtons separadas, porém simultâneas.

— Não. Eles querem os mesmos direitos. Particularmente agora que' estiveram no Exército, lutando pela democracia...

— Uma palavra tão sem sentido!

Embora qualquer retórica política deixasse Caroline irritada, a invocação respeitosa à palavra "democracia" irritava-a mais que qual­quer outra coisa. O respeitado professor de Harvard, George Santayana, agora aposentado e vivendo na Europa, percebera a capaci­dade curiosamente americana de absoluta crença em coisas absolu­tamente falsas, assim como uma incapacidade curiosamente america­na de perceber uma contradição, porque, como ele escrevera, uma "incapacidade de receber educação, quando unida a uma grande vita­lidade interior, é uma raiz do idealismo". Era isso — o idealismo americano — o aspecto mais insuportável daquele povo. Pela pri­meira vez em muitos anos, Caroline teve vontade de fugir, voltar para a França, ou ir para Timbuctu, para qualquer lugar onde não houvesse essas pessoas com seus discursos hipócritas.

Tim não era hipócrita; mas chegava perigosamente perto disso ao abraçar a causa dos direitos do homem — liberdade, igualdade, fraternidade. Mas enquanto ele acreditava ou pensava que acreditava nessas coisas, os franceses consideravam-nas meros rituais para afastar distúrbios desagradáveis como as revoluções.

— É claro que a democracia não significa coisa alguma para eles. Lá em Chicago estavam carregando um cartaz. A rua estava cheia de brancos que gritavam, negros amontoados, policiais com armas, porretes, e aquele cartaz dizendo, como um cartão de legenda, sabe? "Tragam a Democracia Para a América Antes de Levarem Para a Europa."

Emma encarou Tim com curiosidade.

— Você é comunista? — perguntou.

Não. Sou católico. — Tim sorriu para Caroline. — Católico que acredita.

Tim tem essa preocupação com as massas só porque faz filmes para elas. — Caroline assumiu o tom de uma anfitriã educada.

Griffith também, e O nascimento de uma nação contribuiu mais para reviver a Ku Klux Klan do que qualquer outra coisa em muitos anos.

Caroline respondeu à altura:

O Sr. Griffith faz filmes para as massas brancas que estão dispostas a pagar até três dólares para ver um filme muito longo.

— Meu professor de história estava em Princeton quando o Sr. Wilson era reitor — Emma estava remexendo os carvões com um atiçador. Tinha o rosto vermelho demais para o gosto de Caro­line. Febre? Gripe? Morte? — Ele disse que toda vez que um negro requeria admissão em Princeton o Sr. Wilson escrevia uma carta pessoal dizendo que ficava feliz ao ver um homem de cor tão preparado, mas julgava ser seu dever avisar que muitos dos estudantes eram do Sul e o rapaz teria muitos problemas lá.

E então o rapaz não entrava na faculdade completou Tim, terminando seu uísque.

Não entrava. Emma largou o atiçador e fixou os olhos no fogo reavivado.

Vou para a França declarou Caroline, erguendo-se; então, uma fração de segundo depois, ouviu suas próprias palavras.

Por que foi que eu disse isso? Queria mesmo era dizer que vou para a cama.

Você quer dizer que vai fazer as duas coisas disse Emma.

Devia mesmo ir. Tio Blaise diz que vai. Vai participar da Con­ferência de Paz.

Paz sem vitória. Tim continuou sentado.

Caroline almejava uma cama só para si. A luxúria vinha em ciclos e desaparecia do mesmo modo. Além disso, ela se recusava a pensar morbidamente na morte súbita e silenciosa da gripe durante o ato de amor. Seria possível que Frederika, tão serena, competente, divertida, fosse morrer?

Do quarto de dormir Caroline ligou para Blaise. Ele parecia cansado.

Ela está na mesma. A crise ainda não veio, seja isso o que for. Esses malditos médicos são impossíveis.

— Ela está consciente?

Às vezes. Não diz coisa com coisa. Que foi que aconteceu na Casa Branca?

Os Quatorze Pontos ganharam a guerra, e o coronel House embarca para a França daqui a quatro dias, para fazer a paz eterna.

Ele é o negociador oficial?

É o que insinua. Ajudado por aqueles rapazes brilhantes daquela pensão da Rua 19...

Todos judeus e socialistas.

Vou para Paris assim que for possível declarou Caroline, interrompendo o costumeiro discurso.

Será que nós dois devíamos viajar?

O Sr. Trimble ficaria aliviado se nós dois viajássemos para sempre.

Vamos ver. Blaise parecia exausto. Eu vou ter que ver.

Naturalmente disse Caroline.

Ela despediu-se em seguida. Antes de apagar a luz, passou longo tempo olhando para o retrato de sua mãe, Emma I. A semelhança dela com a imperatriz Eugénie não passara despercebida ao pintor. Embora os olhos escuros encarassem Caroline, não havia neles uma mensagem. Apenas um simulacro pintado de uma mulher que ela não conhecera; no entanto, Caroline por duas vezes dera o nome de sua mãe às suas próprias invenções, como se houvesse algum negócio inacabado no passado a ser levado a termo; se não agora, mais tarde.

 

Burden estava sentado em seu escritório assinando cartas, enquanto a Srta. Harcourt, velha, grisalha e silenciosa, empoleirava-se numa cadeira de espaldar reto junto à escrivaninha dele. Ela usava uma camisa masculina, gravata e paletó; apenas a saia era uma relu­tante concessão aos preconceitos de sua época infeliz, seu lugar in­feliz. A Srta. Harcourt morava com a mãe na parte nordeste de Washington. Trabalhava — esplendidamente, grisalhamente, silencio­samente — para Burden desde que ele entrara para o Congresso, quando o velho século dava lugar ao novo, agora quase um quinto transcorrido.

As cartas eram dirigidas a vários líderes em todo o país e pediam apoio para o Partido Democrata na eleição próxima. Como o próprio Burden "não era candidato à reeleição, podia mostrar-se pes­soalmente desinteressado ao pedir ajuda para o partido. Natural­mente a lista cuidadosamente compilada ao longo de mais de uma década compreendia aqueles que o apoiariam quando chegasse o momento em que ele tomasse a coroa. Estava cultivando essas relações.

Assinada a última carta, ele recostou-se em sua alta cadeira giratória de couro; sentia-se eufórico. O sol da tarde lançava um raio de luz no busto de Cícero diante da escrivaninha. De cada lado da lareira de mármore branco, estantes com portas de vidro continham livros de direito, assim como livros com as leis dos Estados Unidos da América. Acima da lareira estava pendurada uma gravura da rendição de Lee no Appomattox, o que não desagradava a seus elei­tores, cuja maioria, embora agora vivendo no Oeste, descendia de soldados confederados. Sobre a estante da lareira havia a bala que atingira seu pai em Chickamauga — um pedaço de metal colocado num pedestal de mármore. Quando o velho morrera, deixara a bala ao filho, com alguma amargura, como lembrança de quem ele era e o que era a guerra, uma lembrança do povo, do povo, do povo. Ultimamente as palavras tendiam a repetir-se estranhamente em sua cabeça: uma série de ecos não desejados e irritantes começavam e então, estranhamente, cessavam.

A melhor coisa era conversar durante os ecos. Enquanto "do povo" ecoava em sua cabeça, ele falou com a Srta. Harcourt.

O Congressista Momberger está na sala dele?

Não. Ele também está doente. A gripe espanhola. Começou esta madrugada, disse a Sra. Momberger.

— Precisamos entrar em recesso. Lembre-me de conversar com o senador Martin ainda hoje.

"Do povo" parou, deixando-o com dor de cabeça.

— Liguei para a casa dos Sanford — disse a Srta. Harcourt, que ou sabia de tudo e não pensava a respeito ou nada sabia e nada pen­sava. — Ela já passou a crise, acham.

— Ah, ótimo. Preciso... dizer a Kitty para fazer-lhe uma visita quando ela melhorar.

A princípio ele tinha certeza de que Frederika ia morrer. O destino fazia dessas coisas. Mas ela agarrara-se à vida, ou a vida agarrara-se a ela; e quando ele encontrou Blaise no Cosmos Club quase deserto, este dissera que ela ficaria boa.

O telefone tocou. A Srta. Harcourt atendeu, depois voltou-se para Burden.

O Sr. Tumulty quer saber se o senhor poderia ir ver o Presi­dente esta tarde.

Às cinco.

Enquanto a Srta. Harcourt transmitia a resposta ao secretário do Presidente, Burden levantou-se e foi até a janela alta com a vista do monte Capitólio. Mas não olhava para a paisagem familiar atra­vés da vidraça, e sim para seu rosto pouco familiar, pálido e idoso, refletido no vidro. Precisava fazer mais exercício, como cavalgar. Pen­sou em Caroline, como sempre fazia quando pensava em todos aque­les domingos em que costumava cavalgar ao longo do canal junto ao Potomac, terminando a manhã na casa dela. Como não eram casados, o romance teve um final agradável e natural. Um não tinha ciúmes do outro. Gradualmente passaram a encontrar-se cada vez menos às escondidas e cada vez mais em público. Finalmente, depois da dura eleição de 1916 quando Burden passou semanas viajando pelo país, o romance terminara sem uma palavra de qualquer um dos dois.

— Diga a Kitty que vou jantar em casa.

A Srta. Harcourt inclinou a cabeça. Como a maioria das secretárias do Senado, ela estava em permanente desavença com a esposa do senador. Afinal, as secretárias passavam mais tempo com os sena­dores do que as esposas; e as esposas tinham ciúmes de todas aque­las horas, aqueles dias e anos dos quais eram excluídas.

O Presidente e o almirante Grayson estavam jogando golfe no gramado sul da Casa Branca, nos fundos dos escritórios executivos. Um homem do Serviço Secreto cumprimentou Burden pelo nome.

Burden atravessou o campo de golfe improvisado. Wilson dizia a Grayson:

Basta de ar fresco, almirante.

— Ar fresco nunca é bastante, senhor. — Grayson pegou o taco do Presidente. — Tenho bursite no ombro, de modo que o médico me prescreveu golfe. Uma verdadeira tortura.

Burden nunca vira Wilson tão relaxado, até mesmo juvenil, ape­sar das dores.

Vamos ver os carneiros — disse ele.

O gramado sul da Casa Branca era um parque em miniatura, que Edith entregara a um rebanho de carneiros Shrospshire Downs, cuja lã tinha sido vendida por uma boa quantia em todo o país como en­corajamento para as mulheres americanas tricotarem para a paz — sem vitória.

Quando será, Sr. Presidente?

O armistício? Uma semana, talvez, ou duas. Não há qualquer problema da parte dos alemães ou da nossa...

Wilson não terminou a frase. No meio do gramado tinha sido colocado um banco de tal maneira que os passantes não poderiam vê-lo através da grade de ferro, ao passo que o homem do Serviço Secreto via tanto os passantes quanto o banco. Burden muitas vezes fantasiara a respeito da presidência; no entanto, a realidade nunca deixava de surpreendê-lo — uma combinação de banalidade e grandiosidade, de tédio e verdadeiro terror diante da idéia de tanta energia concentrada em um homem, um lugar, uma época.

— Dizem que nunca consulto o Senado. Mas sempre o consulto, não é?

— Às vezes o senhor me consulta.

A antipatia de Wilson pelo Senado era calorosamente correspon­dida. Cada senador era para si mesmo um microcosmo do governo e, junto com seus pares, soberano — um estado de coisas que o verda­deiro soberano, Wilson, não pretendia reconhecer.

— Ainda não discuti isto com o Gabinete. — Wilson entregou a Burden uma declaração datilografada em sua máquina de fita azul. — Mas quero primeiro a sua opinião. Tumulty aprova. Também o coronel House. Mas eles não são políticos como nós.

Enquanto Burden lia o texto, Wilson cantarolava uma canção do último musical do Keith's antes de ser fechado por causa da gripe. Com a alegre canção em seus ouvidos, Burden sentiu-se num pesade­lo. O grande mestre político de sua época e nação cometera, pelo menos no papel, uma enorme imprudência política. Burden dobrou a página cuidadosamente duas vezes, como se pudesse destruí-la duas vezes. Wilson tinha parado de cantarolar.

Você desaprova?

Sim. — Não havia sentido em usar dos costumeiros rodeios evasivos, adequados ao maior autocrata do mundo, como Wilson re- feria-se à sua própria pessoa em época de guerra. — O senhor está fazendo um apelo direto ao povo para lhe dar, ao senhor pessoalmen­te, é o que está parecendo, uma maioria democrata no Congresso, para que possa fazer a paz sozinho. Estou apenas antecipando o que Lodge e Roosevelt dirão.

Wilson mostrou-se brando e racional:

Também lembrei ao eleitorado todas aquelas reformas inter­nas que nós, do Partido Democrata, fizemos e que seriam desfeitas se os republicanos ganhassem.

Burden olhou, desanimado, para os carneiros que pastavam. Que fazer?

Wilson mostrava-se surpreendentemente apaziguador.

— Vance McCormick e Homer Cummings e todo o Comitê Na­cional querem esta declaração agora, pelo menos é o que me dizem.

Senhor Presidente, sem qualquer declaração sua vamos orga­nizar o Senado com uma maioria entre cinco votos para dez a, talvez, 15 para vinte na Câmara. Mas se o senhor interferir e disser ao país que os republicanos não podem fazer o tipo de paz que o senhor pode, será como um pano vermelho diante de um touro...

— Lincoln, McKinley e até o coronel Roosevelt fizeram apelos semelhantes.

— Ultimamente não tenho lido a chamada às armas feita por eles, mas um comentário leve de que não se muda de barco no meio da correnteza é muito diferente de uma conferência... — Ele usou a palavra fatal. O conferencista Wilson endireitou-se, porém Burden seguiu em frente: — ...dizendo ao povo quê se não votarem como o senhor quer que votem, os europeus vão pensar que o senhor foi repudiado. Está sendo pessoal demais, se me permite dizer.

As duas manchas vermelhas de costume surgiram em cada lado do rosto do Presidente.

— Este cargo tem mesmo um lado pessoal, senador.

Mais uma razão para o senhor despersonalizá-lo ao máximo. Não faça de si mesmo a questão principal...

— Eu sou a questão principal. Se perdermos o Senado, Lodge será o líder da maioria. Será também presidente da Comissão de Re­lações Exteriores. Quando eu trouxer um tratado para casa, ele pode atrasá-lo, exatamente como costumava atrasar, e finalmente matar, pelo que me disseram, seu amigo John Hay. Assim, você percebe que devo fazer todo o possível para manter nossa maioria no Congresso.

Burden assentiu.

— Concordo. E a melhor maneira de manter nossa maioria é rasgar este negócio. Depois fale humildemente com o povo, de quem emana o seu pode;-, porque o senhor sabe que em sua justiça essencial eles irão, como sempre, ou pelo menos como em 1912 e 1916, fazer o que é acertado. O senhor conhece essa conversa.

Wilson fixou os olhos nos carneiros, que eram, até mesmo aos olhos rurais de Burden, extremamente desinteressantes. Então o Pre­sidente suspirou e levantou-se.

Dizem que um em cada quatro americanos tem ou terá a gripe.

Burden ergueu-se também.

— Dizem que no mundo inteiro morrerão vinte milhões de pessoas.

Juntos caminharam lentamente de volta aos escritórios executi­vos, onde o homem do Serviço Secreto estava de vigia.

— Eu me pergunto se devo usar máscara na próxima vez em que discursar no Congresso.

— Ou tampões nos ouvidos.

— Como falam! De qualquer maneira, até agora não me passaram a gripe. — Os dois tocaram ria mesma árvore, supersticiosa­mente. — Como foi recebido meu último discurso?

— Aqueles que odeiam o sufrágio feminino não se comoveram. Mas as muralhas sem dúvida conseguirão o direito de votar em um ou dois anos.

— Sempre fui contra deixá-las votar. Mas depois disse a mim mesmo que as mulheres não podem ser mais idiotas que os homens.

Nisso nós concordamos inteiramente.

Além disso, percebi que nas áreas em que as mulheres podem votar, a tendência delas é me apoiar. Acho isso um sinal de grande sabedoria.

Bem, Sr. Presidente, afinal foi Eva quem comeu o fruto do conhecimento.

Wilson riu.

— Cá entre nós, que história estranha essa!

Na manhã seguinte Burden acordou com febre alta, músculos doendo e uma tosse incontrolável. O médico declarou-o vítima da gripe. Com isso ele penetrou num reino de pesadelo, onde Kitty às vezes era o anjo consolador, às vezes o demônio que atormenta. Um dos pesadelos era que o Presidente tinha utilizado sem qualquer alte­ração o texto que Burden lera. Mais tarde, os pesadelos envolviam Roosevelt e Lodge fazendo campanha pelo país, denunciando Wilson. Mas sinos tocavam também. Havia um armistício comemorado pre­maturamente; depois, um armistício que significava o fim da guerra. Tudo isso girava nos sonhos febris de Burden, onde várias vezes ele foi visitado pelo pai em sua farda de cabo, jovem e vibrante, e nos lábios do pai, vez após outra após outra após outra, as palavras "do povo".

Burden voltou à vida e concluiu que preferia a morte ou fosse qual fosse o reino em que ele penetrara depois que o sonho cessou e não havia mais coisa alguma. Abriu os olhos e viu Kitty, que lia um jornal sentada ao lado da cama.

Que horas são? — ele perguntou.

— Ora viva!

Kitty jogou o jornal para o ar. Estava completamente diferente. Mas nada estava como devia estar. Para começar, ele fora transferido de seu corpo vigoroso para o corpo desgastado de um velho. A luz do sol feria seus olhos idosos. Ele os fechou.

— A febre passou, disse o médico. Mas leva tempo para suas forças voltarem. Está com fome?

— Com sede.

Kitty deu-lhe um copo com água. Com grande esforço ele sen­tou-se e bebeu, com dificuldade, pois os lábios estavam rachados pela febre. Depois caiu sobre os travesseiros.

Estive doente — disse estupidamente.

— Muito doente — concordou Kitty. Sorriu para ele, mas o rosto estava abatido, os olhos azuis mostravam-se cansados e havia mais grisalho em seus cabelos antes louros. — Mas agora está bem. Desde a madrugada você... está bem.

Burden ergueu uma das mãos — a mão de um desconhecido, que ele nunca vira antes, dedos cinzentos e esqueléticos a não ser pelas juntas grossas, que eram vermelhas.

Você perdeu peso. — Kitty recolheu o jornal do chão. — Agora sou sua enfermeira. Tivemos duas em tempo integral, dia e noite.

Quanto tempo foi isso?

Quinze dias.

— Meu Deus! —Quinze dias fora do tempo, da carne, da vida. A morte era nada, essa era a mensagem.

Hoje é dia 12 de novembro, e a Alemanha assinou o armistício. Quer ver? — Ela ergueu o jornal. A manchete declarava paz. O Presidente discursaria no Congresso ao meio-dia e revelaria os termos. — Houve muita decepção na semana passada, quando todos achavam que a guerra tinha realmente terminado porque o kaiser abdicou e alguém disse que o armistício estava aprovado, mas depois não estava. Desta vez é real. Todo mundo escreveu ou telefonou — acrescentou ela, indicando as pilhas de cartas, telegramas e cartões de visita sobre a secretária ao lado da janela. — O Presidente me te­lefonou duas vezes para saber como você estava.

Burden queria perguntar por Frederika; mas com seu corpo de velho ele tinha agora a cautela de um velho.

A eleição...?

A eleição tinha sido em 5 de novembro.

Bem, você tinha razão. — Kitty franziu o cenho, mais uma vez em sua condição de política total. — O Senado tornou-se repu­blicano por um voto, e a Câmara por 46.

Em seu espanto, Burden esqueceu sua velhice.

Não é possível! Que foi que aconteceu?

— Primeiro, o apelo idiota do Presidente, como você definiu, espero que na cara dele. Depois, T. R. e os republicanos tiveram mo­mentos gloriosos acusando o Sr. Wilson de ser ditador do mundo, e isso nos tirou os votos dos alemães e dos irlandeses, e das mulheres que podiam votar...

Por que das mulheres?

— Por causa de todos os democratas do Sul no Senado que tinham votado contra conceder-lhes o direito de voto...

Eu avisei. Eu avisei.

Além disso, havia os agricultores de trigo que achavam que dávamos mais apoio ao algodão, que é você...

Quem foi derrotado?

Kitty repetiu de cor a lista inteira. Ela conhecia cada senador não apenas como homem, mas como senador; sabia como ele votava e por quê. Enquanto Burden escutava os nomes, sentia a costumeira combinação de alegria e desânimo. Desânimo por causa dos amigos afastados do clube; alegria por sua própria sobrevivência. O que Wilson conseguira fazer foi criar para si mesmo, no momento de uma vitória militar, a mesma espécie de hostilidade no Congresso que Lincoln enfrentara durante suas últimas semanas de vida e que ocasionaria o impedimento de seu herdeiro.

Um desastre.

Os lábios de Burden pareciam uma lixa. Ele gesticulou pedindo mais água; ela levou-lhe o copo aos lábios.

Sim — concordou. — E ele tem que agradecer a si mesmo. Naturalmente o Comitê Nacional queria que ele fizesse uma decla­ração forte, mas por que lembrar a todos da razão por que não gostam dele? Dizem que ele está secretamente feliz por tantos sulinos terem sido derrotados.

Sem eles, o partido de Bryan não é um partido. Sem Bryan, Wilson não existe. Acho que ele não compreende isso.

Andaram falando em você na Califórnia. Dois jornais o colocaram em primeiro lugar na lista para 1920.

Burden suspirou; duvidava que algum dia tivesse novamente forças para atravessar o quarto, muito menos para candidatar-se a Presidente.

Kitty então leu para ele as diversas mensagens. Guardara numa caixa especial aquelas que tinham alguma importância política. Co­meçou pelos governadores; depois passou para os líderes partidários. Ele estava reunindo apoio, foi sua conclusão. Com Wilson prejudicado por um Congresso republicano, qualquer coisa podia acontecer em dois anos.

E McAdoo? — perguntou.

Muito simpático. Positivo, eu acho.

Burden e Kitty nunca precisavam dizer com todas as letras alguma coisa de natureza política. Completavam as frases um do outro. A carta de McAdoo era muito positiva, e significava McAdoo-Day. Como trocar a ordem? Kitty continuou a ler. Havia uma carta de Blaise.

Coitada da Frederika! ela exclamou de súbito, sem malícia.

Ela não sabia, ele tinha certeza. Ao contrário de Franklin Roosevelt, ele não guardava cartas de amor nos bolsos. Ao contrário de Lucy Mercer, Frederika não sonharia em escrever uma. Coitada da Frederika. Mas ele achava que ela se recuperara. Agora via-a morta, e seu coração disparou.

Os cabelos dela caíram todos, cabelos tão lindos! Ninguém sabe se vão crescer de novo.

Burden respirou com mais facilidade.

Ela se recuperou...

Como você. Ela teve" sorte. Kitty então deu-lhe a lista mais recente dos mortos, dos moribundos, dos doentes. Que in­verno foi este! Mas dizem que a epidemia está terminando, ninguém sabe por quê.

Burden permitiu que a escuridão o engolisse. Dormiu e sonhou que estava voando, com muitos gestos frenéticos com os braços, acima de um campo onde as pessoas estavam reunidas para ouvi-lo discursar e não voar, mas ele voava, para espanto delas e sua própria alegria.

 

Frederika parecia etérea, pensou Blaise, a quem nunca antes essa palavra ocorrera. Ela usava um vestido de noite que era quase inteiramente preto, com uns toques prateados, e na cabeça um tur­bante esplendidamente enfeitado de jóias. Encontravam-se no escri­tório de casa, onde o mordomo maltês a população de Washington estava se tornando exótica, graças ao aumento populacional causado pela guerra — serviu-lhes xerez. Essa noite seria a primeira ocasião social de Frederika desde que a morte mandara seu lembrete de que um dia haveria um convite que não poderia ser polidamente recusado.

Sinto como se o turbante fosse transparente disse Frederika. E todo mundo pudesse ver minha cabeça careca em toda a sua glória.

Ninguém vai suspeitar disse Blaise, em tom consolador. — Diga-lhes que resolveu ser como... qual é o nome dela? A mulher de um Presidente, que sempre usava um turbante.

Dolley Madison. O médico acabou de dar uma olhada em Enid. Ela está bem. Não há razão para medo, diz ele.

Blaise perguntou-se se algum dia aprenderia a aceitar o nome banal de sua filha, colocado no batismo porque sua feroz sogra insistira que a criança tivesse o seu nome e não havia como recusar algo à Sra. Bingham.

O mordomo avisou que o carro estava pronto. Iam jantar com o secretário Lansing, um homem que em todos os aspectos era a antí­tese do Presidente, que raramente o consultava. Onde o Presidente era todo intuição e propósitos elevados, o secretário de Estado era o advogado completo — seco, lógico, freqüentemente mas não sempre previsível. Por exemplo: para surpresa de Blaise, Lansing odiava pro­fundamente os alemães, e conseguia ser muito enfadonho quando falava de autocracia versus democracia, como se qualquer das duas nações fosse realmente uma coisa ou outra. Mas Lansing tinha sido convencido de que os alemães estavam dedicados à conquista do mun­do e que se os Estados Unidos não tivessem entrado na guerra, o kaiser teria ocupado a Casa Branca. Blaise na realidade gostava da companhia de Lansing, porque o secretário era um chato de sua pre­dileção. Além disso, Lansing podia ser surpreendentemente perspicaz, o que significava que ele via as coisas à maneira de Blaise. Lansing era particularmente interessante no que se referia ao Perigo Amarelo com que Hearst periodicamente assustava o povo americano. O se­cretário era essencialmente um advogado cuja especialidade era o direito internacional e as disputas de fronteira, e desejava muito, assim como Blaise, uma détente entre os Estados Unidos e o Japão, cujo expansionismo China adentro ofendia o senso moral de Wilson. Quando o representante japonês, visconde Ishii, viera a Washington para descobrir o que os Estados Unidos pretendiam fazer na Ásia Oriental, Wilson falara vagamente em portas abertas e sobre a integri­dade da China, ao passo que Lansing tentara regularizar as relações entre os dois impérios em expansão. Lansing via a necessidade de boas relações com o Japão assim como com a China, por causa dos mer­cados de que a indústria americana ia precisar depois da guerra. Es­tava também disposto a aceitar a presença do Japão não apenas em Xantung mas também na Manchúria e na Mongólia. O acordo resultante era uma obra-prima de subterfúgios e não podia ser inteira­mente publicado, por deferência à opinião pública japonesa.

A Sra. Robert Lansing recebeu-os à porta da sala de visitas. Blaise conhecera-a ligeiramente quando ela era Eleanor Foster, filha do secretário de Estado de Harrison, cuja casa os Lansing agora ocupavam.

— Você agora é praticamente hereditário — Blaise observara quando Lansing fora inesperadamente promovido depois da partida de Bryan.

Frederika ouviu elogios à sua aparência, e o turbante foi admira­do. Entre os convidados estavam os William Phillips do Departamen­to de Estado e os inevitáveis Jusserand, representando a glória e a civilização francesas. Lansing era cortês e preçiso e, como sempre, um pouco prolixo, a que Blaise reagia com uma sensação de conten­tamento. Ele sempre se sentira atraído por chatos e quando, em sua juventude, Henry James vinha visitar seu pai, ele ficava extasiado com aquelas frases compridas que se enrolavam em volta dele como no­velos de uma-lã reconfortante. As frases de Lansing eram mais curtas, mas existiam em grande número.

Os McAdoo viriam. Mas agora não vêm.

Muito imperial observou Blaise. Muito francês acrescentou, por nenhum motivo a não ser que Jusserand estava en­cantando um grupo de senhoras com seu inglês maravilhosamente marcado pelo sotaque.

Mais britânico. Mais hanoveriano.

Blaise olhou para o belo rosto cinzento do secretário com seu bigode cinzento, aparado e quase invisível.

Problemas entre o soberano e... o príncipe de Gales?

Lansing, tardiamente discreto de propósito? disse:

Acho que Mac vai pedir demissão, agora que a guerra acabou. Eles discordam demais, de um modo amigável. Mas...

A frase foi estrategicamente abandonada.

Que é que ele vai fazer entre agora e 1920?

Ouvi dizer que nessas ocasiões os políticos costumam viajar muito, e fazer discursos.

Lansing agora fazia um favor a Blaise. E Blaise retribuiria na ocasião adequada. A demissão de McAdoo significava que Wilson seria o candidato e que, se fosse, não haveria futuro presidencial para o príncipe de Gales.

Depois do jantar as damas voltaram para a sala de visitas. O porto foi servido, junto com charutos. Blaise sentava-se entre Lansing e Jusserand. A gripe espanhola tinha dominado a conversa durante o jantar; conversa pós-jantar era sobre a iminente Conferência de Paz. Lansing mostrava-se reservado, Jusserand, diplomático, Blaise, curioso.

O coronel House vai representar os Estados Unidos na Con­ferência de Paz?

Ele já está lá. Lansing empurrou sua taça de porto para a frente e para trás. Com seu Grupo Inquiry. Soube que M. Cle­menceau está ansioso para começar.

Lansing olhou para Jusserand, cujas barbas brancas davam-lhe a aparência de um Zeus benevolente.

Há muito trabalho a ser feito. — Jusserand foi vago.

— Nosso correspondente em Paris diz que M. Clemenceau de­clarou que, como o Presidente Wilson não poderia encontrar-se com os representantes europeus num mesmo nível de hierarquia, ele ima­gina que o secretário de Estado, o Sr. Lansing, ou alguém do mes­mo nível, vai chefiar a delegação americana — Blaise gostava de contar às pessoas aquilo que elas já sabiam mas não queriam co­mentar.

Com um sorriso, William Phillips observou:

O nível hierárquico de um coronel texano não é muito alto fora do Texas.

— É, sim, se o Presidente nomeá-lo embaixador especial.

Lansing assentiu.

— O coronel conseguiu que os líderes aceitassem os Quatorze Pontos; qualquer pessoa que consiga isso provavelmente conseguirá negociar. Além disso, o Presidente tem poderes constitucionais para escolher quem quiser. Mais interessante será a. delegação que irá com o negociador...

— Senadores republicanos, se ele for esperto — disse Brandegee, um senador republicano de língua afiada, de Connecticut.

Sugeri o Sr. Root, meu predecessor. —- Lansing mostrava frieza. — Mas o Presidente o considera velho demais, e, talvez, con­servador demais...

Só para M. Clemenceau — comentou Blaise.

Ele piscou para Jusserand, que cochichou-lhe em francês:

— Ainda bem que sou surdo do ouvido direito.

De repente a Sra. Lansing surgiu à porta e gesticulou para que Lansing fosse até lá. Ele pediu licença. Jusserand e Blaise continua­ram a conversar em francês. Jusserand havia tanto tempo fazia parte da vida de Blaise que este pensava nele como algo permanente, além de um lembrete de suas próprias origens francesas.

— Nós gostamos muito, quero dizer, minha esposa e eu, do filme da sua irmã Caroline. É espantoso como tudo parecia realmente à frente de batalha. Todos os detalhes estavam certos, e aquela atriz com o crucifixo estava esplêndida, absolutamente esplêndida.

Apenas Blaise sabia que a atriz era Caroline, e ela fizera com que ele jurasse segredo. Até então, ninguém que eles conheciam ti­nha identificado Emma Traxler, e a imprensa nacional não farejara coisa alguma. Um dia, naturalmente, aconteceria. Enquanto isso, de todos os conhecidos de Washington, apenas o meio-irmão de Caro­line identificara imediatamente a melancólica, muda e gigantesca fi­gura na tela.

Ela diz que o filme está passando em Paris agora. Parece que estão gostando...

É real demais, eu imagino, para ser muito popular. Sabe, eles são loucos se não nos mandarem Root. Jusserand baixou a voz. Ele tem autoridade. É respeitado. É idoso, mas...

Mais jovem que M. Clemenceau, que tem... quantos anos?

Setenta e sete. Concordo, confidencialmente, é claro, com o Sr. Lansing: devíamos tratar de estabelecer .o tratado de paz, um ne- góéio por si só difícil, e depois, separadamente, mais tarde, cuidar da criação de um tipo de liga mundial. Essa liga é uma idéia simpática ao povo daqui, graças ao Sr. Wilson e ao Sr. Taft, mas não é levada a sério em nossa velha e perversa Europa. Alguma notícia de Saint- Cloud?

Ainda é um hospital. Estou tentando ir até lá no próximo mês...

Blaise sentiu uma súbita necessidade de aliviar-se — uma fraqueza congênita nos rins, agravada pela idade. Pediu licença e le­vantou-se. Abriu a porta para o banheiro do térreo e deparou com Woodrow Wilson, pente na mão, diante do espelho.

Sr. Presidente! Blaise exclamou.

Wilson silenciou-o com um gesto.

Não estou aqui sussurrou, guardando o pente. À porta do banheiro, estacou. Poderia ir à biblioteca por um momento?

Quando entrou na biblioteca, Blaise encontrou Lansing sentado junto à lareira e Wilson de pé diante dela. Um retrato do secretário de Estado Foster lançava-lhes do alto olhares carrancudos.

Entre. O Presidente voltou-se para Lansing. — Desculpe- me. Mas o Sr. Sanford me viu, e eu queria ter certeza de que ele nada diria...

Como jornalista?

Como cavalheiro. Wilson mostrou um sorriso simpático. Entre, sente-se. O Tribune nos apoiou galhardamente, pelo menos na maior parte do tempo.

Nunca se consegue agradar inteiramente a um governo.

Os políticos necessitam de muitas atividades prazerosas — afirmou Wilson jovialmente. Parecia ao mesmo tempo perturbado e encantado. — É por isso que deixo Tumulty ler os jornais para mim. Só leio aquilo que ele acha que lerei com prazer...

Blaise ficou espantado, e sorriu seu próprio sorriso simpático. Num país como os Estados Unidos, era perigoso para um Presidente não estudar a imprensa, quanto mais não fosse para tomar conheci­mento das superstições correntes e dos pânicos iminentes. Obviamente Wilson estava muito isolado do mundo por esposa, médico, secretário.

Espero que ele lhe dê para ler a coluna de T. R. no Kansas City Star.

Essa eu leio. — Wilson sorriu. — Mas acontece que devo sempre escutar a ele e a Taft. São meus predecessores, minhas vozes ancestrais...

— ... profetizando guerra — Blaise completou a citação.

Exatamente, Sr. Sanford. Sr. Lansing, importa-se de explicarmos o problema para alguém tão culto quanto nosso amigo aqui?

Embora mostrasse um ar de quem se importava e muito, Lansing assentiu:

À vontade, Sr. Presidente.

— Resolvi ir a Paris no próximo mês. O Sr. Lansing acha que não devo ir. Isto é — Wilson antecipou-se à ressalva de Lansing —, não vê problema em que eu me apresente lá, mas acredita que não devo tomar parte na Conferência de Paz porque estou num nível mais alto, constitucionalmente, que os representantes europeus. Eles são chefes de governo, eu sou' chefe de Estado. Ora, Sr. Sanford, o senhor conhece os franceses muito melhor que eu. Devo ou não to­mar parte?

BJaise não estava preparado para um diálogo tão sério depois do jantar. Assim como o Presidente, percebia as possibilidades teatrais do legendário líder do outro lado do oceano, cujos suprimentos infin­dáveis de homens, armas e alimento haviam, mais do que qualquer batalha específica, obrigado a Alemanha a cessar a guerra e substituir o kaiser por uma república.

Se pudesse fazer isso muito depressa, eu diria para ir.

Por que depressa?

Porque eles farão o possível para envolver o Presidente em detalhes, nos tratados secretos, em velhas brigas como a Alsácia-Lorena. Ele não deve ser desperdiçado nesse tipo de coisa." Deixe-o ir. E conquistar o apoio da opinião pública para os Quatorze Pontos. Fa­zer com que sejam aceitos de uma vez por todas e depois voltar para casa, deixando a conferência nas suas mãos.

Sem aviso prévio ou qualquer preparação, Blaise achou que tinha se saído muito bem. O Presidente parecia satisfeito. Lansing estava menos carrancudo do que quando Blaise entrara no aposento. Talvez houvesse — talvez essa fosse — uma rota pelo centro.

— Entendo o que quer dizer. — Wilson balançou-se nos pás, como fazia com freqüência enquanto discursava. — Certamente não posso ficar fora muito tempo, por motivos políticos e até consti­tucionais.

Jamais um Presidente saiu dos Estados Unidos para participar de uma conferência de qualquer espécie. — Lansing mostrava-se seco. — O Presidente devia ser como o Papa, misterioso, isolado, um personagem que inspira respeito e a quem as pessoas vêm procurar.

Deliberadamente, Blaise fez a pergunta errada, que era, natural­mente, a certa:

Que é que o coronel House acha?

Wilson franziu o cenho e parou de balançar-se.

— Imagino que ele vai continuar como antes. Não disse que não iria. Até agora ele falou por mim; mas sabe que quando eu es­tiver lá, falarei por mim mesmo. Naturalmente, em questões de deta­lhes ele e seus técnicos farão com que eu saiba de que estou falando. Além disso, o Sr. Lansing e seu pessoal estarão comigo, também. O importante — continuou, já completamente fora do assunto e sem ter respondido a pergunta de Blaise — é o Artigo Dez, a liga, o pacto entre às nações. Caso contrário, a iniciativa toda perderá o sentido. Não entramos na guerra para anexarmos minas de carvão ou ganhar novos portos. Entramos para acabar com este fato intolerável de for­ças militares sendo usadas para fins que poderiam ser alcançados pa­cificamente por uma liga de todos os interessados. Acho que posso explicar tudo isso muito melhor que os líderes dos Aliados, que no fundo não aceitam os Quatorze Pontos, os quatorze artigos, mas con­cordam porque os povos de seus países estão a meu favor... por enquanto. Por isso a pressa é importante: as coisas mudam.

— Fazer a paz, isso sim — rebateu Lansing. — Mas atá-la ao estabelecimento de uma liga poderia ser demais para uma só con­ferência.

— Mas não fazer isso é admitir que somos apenas outra nação belicosa atrás dos saques, como os franceses, os ingleses e os italianos.

Que há de errado nisso? — perguntou Blaise.

O rosto do Presidente estava agora rígido, como granito bruto: estava na sala o pastor presbiteriano.

— Há tudo de errado. Não somos como os outros povos. Não devemos ser como os outros povos. Não iremos, nisto, ser como os outros povos.

Mas somos apenas povo, Sr. Presidente. — Blaise falou com suavidade, temeroso da ira de Deus.

— Por isso devemos pelo menos tentar ser melhores do que somos. Não percebe que tenho pouco tempo? Lodge controla o Sena­do e dirige a Comissão de Relações Exteriores. Roosevelt — cada sílaba do nome foi pronunciada como uma maldição de um antigo profeta — já disse que ninguém iria me escutar na Conferência de Paz porque eu tinha sido rejeitado pelo meu próprio povo há duas semanas. Disse também — um sorriso endureceu em vez de suavizar o rosto pétreo — que a contribuição da América para a vitória foi de apenas dois por cento, ele está falando de mortos, dois por cento do total entre os Aliados, de modo que a Inglaterra pode pedir qual­quer coisa, tendo sofrido mais! Bem, isso vai cair em cima dele na próxima eleição.

Wilson parou de falar abruptamente. Tinha rompido sua própria moratória — nada de política até a paz.

— Talvez fosse bom que o senhor chamasse seus dois predecessores para irem à França com o senhor — disse Blaise. — Então haveria em casa uma frente totalmente unida.

— Eu não me importaria com o Sr. Taft. Mas... — Wilson sacudiu a cabeça.

Blaise ergueu-se.

— Já me intrometi demais nas altas questões.

Wilson estendeu-lhe a mão:

Vai guardar segredo?

— Claro que sim. Mas quando é que o senhor vai dizer alguma coisa?

Quando falar ao Congresso na semana que vem. Então o Sr. Lansing e eu partiremos para alto-mar.

Blaise saiu, suspeitando que deixava os dois homens numa con­versa bastante tensa. Felizmente para Wilson, Lansing era essencial mente um advogado que faria o que seu chefe mandasse. Além disso, Lansing, sendo humano, sem dúvida estava adorando ter a oportuni­dade de suplantar o coronel House em Paris. No entanto, Blaise es­tremecia à idéia desse Presidente, todo duro e empertigado, acom­panhado por dois grupos de assessores em guerra um com o outro; cara a cara com os malandros políticos mais inescrupulosos da velha Europa. Clemenceau e Lloyd George devorariam aquele cristão sim­plório. Blaise juntou-se às senhoras e acalmou a Sra. Lansing:

— Vou guardar segredo.

— Você é bondoso — disse ela. — É uma preocupação, não é?

Blaise imaginou que ela se referia à decisão do Presidente, e concordou que era realmente uma preocupação. Mais tarde, enquanto colocava a máscara para sair à rua — um negócio ridículo, já que era mais fácil pegar a gripe num jantar apinhado do que no ar ge­lado de novembro — ocorreu-lhe que ela não poderia saber do pro­pósito do Presidente. Qual era, então, a sua preocupação?

Frederika — sem máscara, como convinha a alguém a quem a praga fizera o pior — respondeu em parte:

— A Sra. Lansing acha que o Presidente está perdendo a lucidez.

Dirigiram pelas ruas desertas da zona nordeste de Washington.

— Ele parece muito lúcido. — Blaise não contaria a Frederika sobre o encontro. — E muito feliz.

— Ela pensa o contrário. Anda esquecido, mal-humorado. ..

Quem não ficaria, depois de perder o controle do Congresso?

Ela acha, o que significa que Lansing acha, que ele está com arteriosclerose.

— Todo mundo depois dos sessenta tem isso, mais ou menos.

Blaise estava agora na meia-idade. Quarenta e dois anos lhe pa­recera muito velho no ano em que o século mudou de XIX para XX; agora que ele chegara a uma idade tão avançada, não a achava dife­rente dos 22. Ainda conservava o que Caroline chamava de seu físico de cavalariço, com suas pernas grossas, levemente arqueadas. Recen­temente passara a interessar-se por aventuras sexuais do tipo que apreciara na juventude — obviamente uma última florada antes da... arteriosclerose. Achava divertido que, praticamente na mesma idade, Caroline também estava tendo um renascimento semelhante com seu diretor de cinema, um tipo físico que Blaise achava repugnante, para certa surpresa sua, já que no passado eles freqüentemente se sentiam atraídos pelos mesmos tipos.

 

Caroline esperava nos fundos do cenário enquanto Tim prepa­rava a cena. O interior de um depósito de ferrovia tinha sido recriado fielmente, Caroline imaginava, pois nunca estivera dentro de um. Po­dia-se presumir que um depósito desses parecia-se com o próprio pa­vilhão de filmagens, no que antigamente fora o cassino Harlem River Park, transformado por Hearst num estúdio de cinema. Ali ele fez a Cosmopolitan Pictures, cujos filmes eram lançados pela Paramount, uma companhia de distribuição que pertencia à Famous Players-Lasky. Para surpresa de Caroline, Hearst recusara-se a levar sua empresa para Hollywood, segundo ele por causa da carreira teatral de Marion Davies. Na realidade, o Chefe estava, mais uma vez, como um lendá­rio personagem obcecado, planejando concorrer ou a governador de Nova York em 1920 ou a Presidente, se Wilson vacilasse. Não ousava deixar sua base em Riverside Drive, no que era facilmente o maior apartamento do mundo, com sua infindável sucessão de aposentos atulhados de obras de arte, algumas genuínas.

Caroline iniciara sua própria companhia produtora, Traxler Productions, e apesar da jovial zombaria de Blaise ela fizera três filmes em seis meses; e todos estavam rendendo dinheiro. Ocorria que, a não ser que se gastasse demais, era impossível perder dinheiro em qualquer filme até a epidemia de gripe. Antes da epidemia, o país inteiro ia ao cinema, e aqueles produtores que tinham capacidade e disposição para lidar com os magnatas do cinema poderiam fazer fortuna.

Mas a grande fortuna não estava na produção dos filmes, e sim em sua distribuição. Adolph Zukor, um judeu húngaro, tornara-se um dos primeiros produtores quando convenceu artistas de teatro famo­sos, como Sarah Bernhardt, a aparecer nos filmes. Nos últimos sete anos, a companhia de Zukor não apenas tinha absorvido uma dezena de outras companhias de cinema, mas ele estava agora em proces­so de comprar, através da Paramount, centenas de salas de exibição de filmes em todo o país. Wall Street também se interessava por salas de cinema, pelo menos como imóveis, e o First National era seu veículo e principal rival de Zukor. No momento, Zukor era o maior de todos, e tanto Caroline quanto Hearst o cortejavam, como ele os cortejava. A publicidade era importantíssima para Hollywood, e po­dia-se contar que Hearst elogiasse incessantemente seus próprios fil­mes em seus próprios jornais. Para os milhões de leitores de Hearst, Marion-Davies era a rainha de Hollywood, mesmo morando em Nova York e fazendo seus filmes com prejuízo na Rua 127.

Embora Tim pudesse fazer filmes em qualquer lugar, Caroline fazia o possível para mantê-lo trabalhando na Costa Leste. Adquirira o hábito de contar nos dedos o número de anos que lhe restavam como uma mulher ainda apta a competir nas Listas do Amor, como definira a escritora inglesa Elinor Glyn, e embora Caroline usasse ambas as mãos para fazer essa contagem, ela se perguntava se não estava sendo indevidamente otimista ao passar dos dedos de uma única mão, o que significava cinco anos.com Tim, e então... não mais dedos, amor, qualquer coisa. Era exatamente o oposto do que ela fora com Burden. Então ela confiara na ausência para manter o interesse mútuo. Agora era a presença que ela almejava todos os dias, todas as noites, até que o último dedo fosse contado. Subitamente perguntou-se: o que significaria o polegar? Deveria contar como meio ano, um ano aleijado? Olhou para as mãos e viu dois punhos cer­rados, as juntas brancas.

— Está certo. José, você está com medo. O cara do sindicato é comunista e você sabe disso, mas ele não sabe que você sabe. Você finge que concorda com ele. Mas na verdade está assustado, só que está tentando não parecer assustado.

A estrela, antiga dançarina do Follies, tinha as proporções regu­lamentares de anã, com um belo rosto latino na frente de uma enor­me cabeça que parecia maior do que era por causa da massa de cachos negros. O sindicalista tinha tamanho e proporções normais, o que significava que ia parecer sinistro na tela. Tinha um rosto um tanto ascético, que Caroline achara inadequado, mas Tim convencera-a de que era sempre interessante colocar atores de" aparência contrária ao tipo de papel que iam representar. O filme tinha sido escrito por uma das melhores escritoras de Hollywood — curiosamente, a maioria dos que escreviam para o cinema era mulher. Na realidade, a de mais sucesso era Frances Marion, que ganhava dois mil dólares por semana de Hearst para fazer por Marion Davies o que já fizera por Mary Pickford. A escritora de Tim era mais barata, porém bastante temperamental. Ela e Tim estavam sempre discutindo sobre "o tema", o que deixava Caroline perplexa, já que a história era muito simples, inspirada por George Creel, que agora queria os bolcheviques substi­tuindo os boches o mais depressa possível como o atual inimigo do americanismo.

No momento, uma dezena de filmes anticomunistas estava sen­do produzida. Para surpresa de Caroline, Tim ficara ansioso em fa­zer um. Compraram os direitos de uma história de revista sobre a infiltração de um sindicato ferroviário por comunistas americanos di­rigidos por Moscou. Um operário, José, a princípio recusa-se a con­cordar com os chefes comunistas do sindicato até ser convencido pela filha do diretor da ferrovia a tornar-se um agente duplo.. Havia enredo demais, achava Caroline. No final, os trabalhadores enxergam a luz, que não é vermelha e sim vermelha-azul-e-branca, e a greve é cancelada, mas é tarde demais para salvar José, que, esfaqueado mor­talmente nas costas pelo chefe comunista, representado por um prín­cipe georgiano, caminha ao longo dos trilhos em direção à filha do diretor, que, sem saber que ele tinha sido ferido mortalmente, espera por ele de braços abertos.

Caroline tinha achado que havia, talvez, demasiadas cenas envolvendo trilhos de trem. Por outro lado, graças a uma vida privile­giada, ela própria nunca tivera um encontro, muito menos uma cena de amor de qualquer espécie, nas proximidades de uma estrada de ferro. Mas Tim assegurou-lhe que o efeito seria deslumbrante.

Quando José alcança a moça, abre os braços — novamente a crucificação — e cai morto. Então, operários felizes surgem de lugar nenhum e erguem o corpo dele, carregando-o de volta pelos trilhos, afastando-se da garota, da câmera, da vida.

Caroline odiava profundamente todo o projeto, mas George Creel adorou. Apesar da preferência de Tim pelos oprimidos, ele parecia bastante contente em servir de instrumento para o capitalismo.

— Engrenar! — gritou ele.

A filmagem teve início. Caroline esgueirou-se para fora do ce­nário e entrou num corredor que levava ao escritório do "presidente da Traxler Productions, ela própria. Tudo era adequadamente mo­desto, como convinha a um antigo cassino do Harlem no final de uma lenta decadência. Mas dentro da concha do cassino Hearst cons­truíra vários estúdios modernos, enquanto não melhorava a proprie­dade, como os banqueiros gostavam de dizer.

A secretária de Caroline reinava no pequeno escritório externo, atendendo o telefone, que tocava sem parar. Todo mundo queria representar, escrever ou fazer qualquer coisa que servisse de porta para o mundo mágico das imagens gigantescas ,e salários redu­zidos: o lucro do cinema em 1918 fora uma fração do que tinha sido no ano anterior, e se a epidemia de gripe mantivesse as salas de exi­bição vazias por muito tempo ainda, 1919 seria um desastre para todos, exceto para os banqueiros e suas propriedades imobiliárias. A produção européia estava também tornando-se competitiva, e Hollywood corria o perigo de perder seu mercado mundial. Feliz­mente Caroline, que dedicara anos a procurar alcançar um impro­vável sucesso com o Washington Tribune, estava acostumada ao tra­balho e à renúncia ao prazer. Além disso, aquele "negócio" em particular era na realidade mais agradável em sua labuta do que o Tribune era em sua glória, porque no jornal ela estava sozinha em sua vida particular, ao passo que agora a vida particular e o trabalho misturavam-se de um modo que ela jamais julgara possível. Contava suas sortes num só dedo.

A secretária deu-lhe uma lista de recados telefônicos e um longo cabograma de Blaise em Paris. Ele estivera em Saint-Cloud-le-Duc: a ala que tinha sido usada como hospital estava vazia agora, e pre­cisando de consertos. Wilson era o messias. O coronel House não era. Isto parece código, pensou ela. Blaise tinha sido convidado pelo Presidente para ir à conferência como observador, e, presumia-se, estava bastante ocupado observando, mas não noticiando para seus leitores.

Blaise embarcara em dezembro no George Washington com o Presidente e a Sra. Wilson. Havia mais de mil americanos na comi­tiva presidencial, e Blaise relatara que Wilson estava muito animado. Nenhum senador de qualquer dos dois partidos tinha sido escolhido para a delegação oficial — um erro fatal, segundo Burden; por outro lado, desde que ele quase morrera de gripe tudo lhe cheirava a fata­lidade. Com exceção do velho Henry White, não havia na delegação um estadista mais velho, apenas os carregadores de lança wilsonianos e Lansing, que estava à mão para atuar como representante do Presidente e dedicava-se a eliminar o coronel House. George Creel também estava presente, para cuidar da propaganda. Mas pelo menos dessa vez George Creel não foi necessário.

Em 14 de dezembro Wilson chegou a Paris como o salvador da Europa. Pelos filmes de noticiário, Caroline constatava que o povo francês era diferente de qualquer coisa que alguém tivesse visto antes, mesmo aqueles idosos membros do Jockey que gostavam de afirmar que nos braços das mães tinham visto Bonaparte passar em triunfo pelas ruas, reis acorrentados a seu carro de ouro. Na reali­dade eram as mães, nos braços de suas mães, que recordavam a glória imperial. A sogra de Plon lembrava-se nitidamente do dia em Fontainebleau quando Napoleão postou-se na escadaria externa e disse adeus à guarda. Caroline conseguia visualizar perfeitamente esse momento num filme.

Sobre a escrivaninha de Caroline empilhavam-se roteiros de filmes. Eram uma mistura de peças com artigos de jornal. Mas a coisa mais interessante era que não havia meio de distinguir um bom de um ruim. O que no papel parecia péssimo tornava-se mara­vilhosamente vivo na tela; e vice-versa. Havia dois filmes sobre Napoleão, por escritores que não tinham tomado o trabalho de ler alguma coisa sobre ele. Caroline perguntou-se ociosamente se ela própria seria capaz de escrever uma história sobre o imperador, con­fiando não tanto em batalhas dispendiosas quanto em diálogos dentro de casa, para economizar nos custos da produção: lágrimas na al­cova, história na cama. A secretária tocou a campainha.

O Sr. Hearst anunciou respeitosamente: tratava-se do Napoleão delas.

Caroline pegou o telefone. Antes que pudesse falar, ouviu a voz fina e alta:

Aqui é o Chefe.

Aqui é a índia velha rebateu Caroline.

Uma pausa.

Desculpe disse Hearst finalmente. Acho que é hábito.

O meu também.

Insensível a ironias, Hearst era sempre um escravo das piadas, principalmente das muito velhas.

Estou no Beaux Arts. Quer vir tomar o café da manhã conosco? Tenho notícias.

Caroline adoraria, disse ela, um segundo café da manhã. Notícias também.

A manhã estava fria e nublada, as ruas desertas. As tropas não tinham retornado, e a gripe ainda mantinha as pessoas dentro de casa. Caroline tornara-se fatalista e não mais usava máscara.

O Beaux Arts na Sexta Avenida atendia a alta boémia de Nova York. Atores e atrizes preferiam seus aposentos altos, as janelas góticas, a sanearia italiana. Ali Marion Davies vivia em tranqüilo esplendor às custas de Hearst. Um mordomo japonês conduziu Caro­line à sala de estar, onde Hearst estava de pé sob um retrato seu que se parecia mais com Hearst do que ele próprio. Marion, toda rosa e ouro natural, saltou do sofá como um gato, rodeou Caroline com os braços e beijou-a com hálito de vinho. O Chefe não gostava de beber e fazia o possível para desencorajar os outros; Marion não se desencorajava facilmente.

Meu filme... A primeira palavra não deu trabalho, a segunda deu. Mas ela continuou, gaguejando, ofegante: só começa na outra semana. Então Pops e eu estamos de férias de verdade, aqui na cidade.. .

— Eu preferia estar em Palm Beach.

Hearst ergueu a primeira edição do American. Mesmo do outro lado da sala Caroline conseguiu ler a manchete: "TR MORTO."

— É uma brincadeira?

Hearst era conhecido por suas brincadeiras, que envolviam man­chetes falsas e artigos planejados para aterrorizar convidados, de tom não muito diferente, Caroline observara, de seus jornais reais.

— Não. Ele morreu em Oyster Bay ontem à noite. Acho que somos o primeiro a dar.

Espero que nós não sejamos o último.

Caroline rezou para que o Sr. Trimble tivesse estado no trabalho de manhã bem cedo. Desde a recente estada de Roosevelt no Roosevelt Hospital, Caroline ordenara que seu obituário fosse atualizado; no entanto, ninguém esperava realmente que toda aquela energia se apagasse na véspera de um restabelecimento político.

Qual foi a causa?

— Um tipo qualquer de coágulo sangüíneo. Ontem à noite. En­quanto dormia. Eu não me importaria de ir assim.

Pops!

Marion serviu-se de mais vinho branco do Reno. Em reação à notícia, Caroline bebeu uma taça de uma só vez.

Você é novo demais — continuou Marion, olhando carinho­samente para o enorme urso em que Hearst se transformara, tão di­ferente do rapaz esguio e exuberantemente vestido que Caroline conhecera vinte anos antes.

Isso muda tudo — observou Caroline, tentando lembrar exatamente o quê seria mudado.

— Bem, os republicanos não têm candidato, isto é certo. TR tinha a coisa toda costurada. Há muitos meses. Ele e Taft tinham enterrado o machado de guerra. Isso cuidou dos ortodoxos. E Beveridge ia correr em sua chapa, para deixar felizes os progressistas. E teria vencido.

Contra Wilson?

— Sim. Mas não contra mim.

Isso foi dito tão casualmente que Caroline por pouco não compreendeu.

— Você? — perguntou. Tinha os olhos fixos estupidamente, não em Hearst, mas na manchete do jornal.

— Pops tem um monte de cartas daquele homem horrível, e cartas para ele também. Aquele que tomou dinheiro do pessoal do petróleo como a Hannah... como era o nome dela?

Mark Hanna era o nome dele. — O sorriso de Hearst estava mais.tenso que o normal. — Dessa vez eu ia mesmo pegá-lo, como ele me pegou no caso McKinley, dizendo que tinha sido eu e o American, naquela época o Journal, que inspiramos o assassino, quan­do há quem pense que ele próprio pode ter tido algo a ver com o assassinato de McKinley.

— Roosevelt? — A cabeça de Caroline girava.

É o que dizem. Roosevelt e Rockefeller estavam metidos nisso, para impedir que McKinley fosse atrás do monopólio da Standard Oil, e esta é a razão por que Roosevelt nunca foi atrás de Rockefeller até que eu o forcei, e então nada fez além de muito barulho.

Como tantos inventores de notícias, o próprio Hearst era capaz de acreditar em qualquer coisa. Logo que se tornara editora, Caroline ficava impressionada com o número de pessoas normalmente sãs que de repente surgiam com "provas" cuidadosamente documentadas de que o assassino do Presidente Garfield, por exemplo, agira a mando dos jesuítas ou dos sionistas. Quando as "provas" mostravam-se falhas, outros documentos surgiam; e a trama crescia. Agora Hearst parecia acreditar que Roosevelt estivera envolvido no assassinato de McKinley.

— Vai incluir isso no obituário? — perguntou ela, tentando brincar.

Não. — Heast levou-as para a sala de jantar contígua. — Mas um dia vou fazer, alguma coisa.

— Coitado do Pops!

Marion tomou seu lugar em frente à Hearst. Caroline sentou-se à direita dele. Enquanto o mordomo japonês servia um requintado café da manhã, Caroline falou do cabograma de Blaíne. Mas Hearst mostrou-se indiferente à Conferência de Paz e a Wilson, a quem não apreciava, principalmente por ser um enfadonho professor que arre­batara o prêmio que deveria caber a ele. Mas Hearst era eloqüente quando se tratava de seu inimigo mais recente, o governador irlan­dês de Nova York, um tal de Al Smith, cujo acordo com Tammany Hall tinha tirado de Hearst a oportunidade de ser prefeito em 1917.

— Agora o governador está reclamando porque fui indicado como recepcionista oficial das tropas quando elas voltarem...

— Uma ótima coisa para o Pops — comentou Marion, olhando melancolicamente para a taça de vinho vazia. — Bem no meio de todas aquelas câmeras de jornal de cinema, quando os navios chegam e os rapazes desembarcam marchando, e lá está o prefeito, que escolheu Pops e nomeou o meu Pop, o meu verdadeiro papai, ma­gistrado municipal até o Bronx.

Essa torrente cessou quando ela parou para encher a taça.

Roosevelt foi a escolha deles para tomar meu lugar na semana que vem quando o Mauritania chegar. Bem, ele não vai estar lá, e eu vou. Mamãe não vai — acrescentou ele.

Mamãe não vai o quê?

— Estar lá. A minha mãe.

— Ela pegou a gripe. — Marion parecia satisfeita.

— Não sabia que ela estava aqui.

Veio durante as férias, para estar com os meninos. Eu avisei. Este lugar é perigoso, eu disse. De qualquer maneira, ela está me­lhorando. Vai voltar para a Califórnia. Deu 21 milhões de dólares para obras de caridade...

— Menos do que você gastou com jornais e — Caroline olhou para Marion e apressou-se a concluir: — arte.

— Eu não sou desse time. Mas estou perdendo dinheiro. E você?

Caroline estava acostumada com a franqueza do Chefe para com ela. Ele a tratava não como uma dama, nem mesmo como outro homem; tratava-a como igual, lisonjeando-a com sua óbvia inveja do que ela tinha feito com o Tribune.

Não. Somos lucrativos. Foi um bom ano para o Tribune e...

— Não estou falando dos jornais. Não se perde dinheiro quando

há uma guerra. Não. Estou falando dos Seus filmes.

— Bem, estamos sofrendo como todo mundo. Mas ainda não estamos no vermelho.

— Mas Pops está — disse a causa imediata dos prejuízos dele, comendo um ovo trufado em galantina. — Ele paga demais ao Sr. Urban e a todo mundo...

— Eu quero o melhor. É como um jornal...

— Tínhamos uma cena em que eu me encontro com o meu amado numa casa de campo inglesa, eu estou fazendo o papel da... esqueci. É tudo muito confuso. Estive em cinco filmes no ano pas­sado, representando cinco pessoas diferentes, com quinhentas roupas diferentes. De qualquer maneira, Pops entra no estúdio e eu estou de pé na frente da lareira, chorando desbragadamente com... Ah, agora me lembro! Ramon Novarro, que não é meu pretendente mas está me chantageando por causa de alguma coisa. E Pops diz: "Esta lareira não é dessa época". Então o Sr. Urban, o cenógrafo mais caro do mundo, que diz ao Sr. Ziegfield o que fazer, responde: "é, sim, e os cinzentos realçam os pretos." Não é o máximo? De qualquer maneira, adivinhe quem vence. Assim, enquanto todo mundo tem que sair procurando nos depósitos de Pops, cheios de coisas velhas, porque ele sabe que tem a lareira certa mas não se lembra onde a colocou, a filmagem pára mas todo mundo continua sendo pago.

— São coisas como essa... — começou Hearst de maneira vaga; e concluiu, a mente em outro lugar: — Devíamos fazer um filme anticomunista...

Estou fazendo um.

Caroline nunca entendera o hábito de Hearst de usar a primeira pessoa do plural, às vezes colegial, outras vezes imperial, editorial.

Zukor também — disse ele. — Ele comprou os direitos daquela peça... você sabe.

Caroline sabia, e também quis comprá-la: Totalmente pago, por Eugene Walter.

Tim diz que está fazendo concorrência a ele.

Filmes assim nunca são demais. Quando não há epidemia, nada como os comunistas para atingir todo mundo.

— Há um fã-clube de Marion Davies em Moscou. — Marion Davies tinha uma comovente admiração por si mesma.

Provavelmente há um em toda parte. E achávamos que os jornais eram o máximo! Engraçado, como os judeus perceberam isso antes de nós.

Como todas as pessoas envolvidas com os filmes, Caroline pen­sara muito no assunto.

— Não acha que é porque são o mesmo tipo de gente que as platéias costumavam ser? Imigrantes recém-chegados que só podiam pagar os níqueis da entrada do cinema?

Então por que não os imigrantes irlandeses ou italianos? — Hearst sacudiu a cabeça e ele próprio respondeu: — Moda.

Que significa isso?

— Zukor e Loew são donos de metade das salas de exibição do país, e a Famous Players e a Paramount, e acabaram de engolir a Triangle e a maioria das pequenas companhias exceto você e eu. Bem, eles não foram a Yale e nós fomos.

-— Você foi. Eu sou apenas uma mulher...

Mostre a ele, Caroline.

Marion estava alta; era, ou pelo menos assim dissera a Caroline, uma sufragista em segredo.

— Eles eram imigrantes, estavam no negócio de peles, e Zukor fez uma pequena fortuna adivinhando qual seria a moda no ano seguinte. Raposa vermelha — concluiu Hearst enigmaticamente.

— Ele gostava de raposas vermelhas? — Caroline interrogou o oráculo.

— Ele deu um grande golpe em junho, imaginando que as mu­lheres todas estariam usando peles de raposa vermelha em outubro. Depois comprou as salas. Depois imaginou que podia ganhar dinheiro com filmes que fossem tão longos quanto as peças teatrais, coisa que todos disseram ser impossível, provando que o que tinha sido bom para as massas agora era bom para as classes. E funcionou. Inacre­ditável! Aí estão eles, na maioria peleteiros judeus, que mal sabem falar inglês, a maioria da Hungria, logo de lá, e eles têm os filmes. Por sorte são bons americanos, tenho que reconhecer. Servem bem ao país. Só que onde é que nós ficamos nisso tudo?

— Certamente D.W. Griffith... — começou Caroline.

— Ele também é judeu. Mas nega. Por ser do Sul, e por querer ser confundido com um cavalheiro, coitado. Além disso, ele foi ator. — Hearst usou o epíteto mais ofensivo de seu ramo.

— Eu sou uma atriz — fez Marion, com um olhar furioso por cima da taça.

— Não — disse Hearst mansamente. — Você é uma estrela.

— Em resumo, há muito dinheiro nos filmes — disse Caroline, de repente uma mulher de negócios dura e fria.

O Chefe assentiu.

Sim. Dinheiro meu.

Juntou-se a eles Edgar Hatrick, o esforçado rapaz encarregado dos empreendimentos cinematográficos de Hearst. Já que obviamente iam discutir negócios, Caroline despediu-se e caminhou pelas ruas frias até o Plaza, um hotel moderno e confortável que substituíra, em 1907, o Plaza Hotel anterior.

Na sala de estar da suíte de Caroline, os dez jornais que ela estudava todas as manhãs, de todas as partes do país, estavam em­pilhados. Enquanto percorria um por um, para tomar conhecimento dos diversos tratamentos dados a um caso, ela encontrou-se deva­neando a respeito de filmes. Eles eram traiçoeiros. Eram como sonhos despertos que então, durante o sono, roubavam os so­nhos de verdade. Havia ali uma força, mas ela não tinha cer­teza do que se tratava. Havia propaganda crua, do tipo que ela fizera por insistência de Creel. Mas os jornais também podiam fazer esse tipo de coisa. Havia mais coisas por trás daquela nova forma de diversão do que qualquer pessoa já percebera, e ela conseguia entender por que também Hearst ficava perplexo com a coisa toda. Para começar, um filme era um retrato de algo que realmente acon­tecera. Ela tinha realmente atingido um ator francês com um cru­cifixo de madeira certo dia e em certa hora, e agora existia, presu­mia-se que para sempre, um registro desse emocionante aconteci­mento. Mas Caroline Sanford não era a pessoa que milhões de pes­soas tinham visto naquela igreja francesa em ruínas. Elas tinham visto a fictícia Emma Traxler personificando Madeleine Giroux, uma mãe franco-americana, que pegava um crucifixo que parecia de metal mas não era e atingia um ator francês personificando um oficial ale­mão numa igreja francesa em ruínas que era na verdade um cenário em Santa Mónica. A platéia sabia, naturalmente, que a história era inventada, assim como sabiam que as peças de teatro eram imitações da vida, mas o fato de que uma história inteira podia atingir as pessoas da forma como os filmes faziam.e assim, literalmente, habitar seus sonhos, tanto dormindo quanto acordadas, criava uma outra realidade paralela àquela em que viviam. Durante duas horas do tempo real Caroline era três pessoas diferentes, enquanto a luz brilhava através de uma fita que se movia, A realidade podia agora ser inteiramente inventada e a história revista. De repente ela soube o que Deus devia ter sentido quando olhou para o caos, sem nada em sua mente além de si próprio.

 

- Blaise apertou a mão de seu irmão de criação. Desde a morte de Plon, André era agora príncipe d'Agrigente. Dez anos mais velho que Blaise, pela aparência podia ser pai dele. Os cabelos eram bran­cos; o rosto era branco; apenas os olhos negros pareciam vivos em todo aquele vazio ártico. Como Plon, fizera um casamento por di­nheiro; diferentemente de Plon, mantinha boas relações com a es­posa, com quem se encontrava várias vezes por ano. Ela morava em Aix-les-Bains, na casa da família. Ele ficava em Paris, com a amante e os dois filhos, nenhum dele, dizia com amargo orgulho, pois era impotente havia vinte anos.

Blaise contemplou com mais curiosidade do que carinho aquele irmão que ele mal conhecera: André não se afastava de Paris e Blaise não se afastava do Tribune.

— Você está magro — comentou Blaise, quando entravam no bar do Crillon. Para todos os efeitos, esse hotel tinha sido inteira­mente ocupado pela delegação americana.

Você não — respondeu André, olhando em volta com curio­sidade. — Nunca tinha visto tantos americanos ao mesmo tempo.

Venha à América.

Para quê? Eles vêm a nós. Você gosta deles?

Sou um deles.

Eu acho que não.

— Eu acho que sim.

Blaise arranjou-lhes uma mesa perto do balcão. O aposento latia e rosnava com a língua inglesa. A maior parte dos homens era rela­tivamente jovem, e não havia muitas damas presentes, já que o Pre­sidente insistira em absoluta seriedade para os mil e poucos ameri­canos que tinham vindo a Paris para providenciar a paz eterna para toda a humanidade. Todos se levavam muito a sério, o Presidente mais que todos.

André pediu uísque; como o resto de sua geração, apreciava muito o estilo inglês. Blaise bebeu Pernod.

— Esse Presidente de vocês é tão estúpido quanto aparenta ser?

André estava acima da política, mas não acima de Saint-Simon. Interessavam-lhe os traços pessoais, e não a política, dos personagens importantes.

— Até que ponto ele lhe parece estúpido?

Blaise surpreendeu-se ao constatar que ficava profundamente irritado quando um europeu criticava qualquer coisa americana, algo que ele próprio nunca cessara de fazer.

— Aqueles discursos! — André girou os olhos para cima. — Ele é tão... protestante!

Bem, essa é a natureza da missão dele.

— Um messias? É, dá para se perceber. Todos vêem isso quando ele passa de carro entre a multidão, e a multidão também fica louca de estupidez. Observei-o entrar aqui: o santo que vem do outro lado do oceano. Imagino que agora ele vá voltar para casa, que é o seu lugar.

Não. Vai ficar até meados de fevereiro. Depois vai para casa, para o recesso do Congresso. Diz que depois volta para cá.

Lansing apareceu na porta do bar. Houve silêncio imediato. Então dois homens ergueram-se e juntaram-se a ele, e os três saíram.

É o grande homem?

— Não. Apenas o secretário de Estado, um dos membros da comissão da paz.

Ao escolher a comissão americana, Wilson não seguira qualquer conselho. Arbitrariamente, o Presidente escolhera Lansing, House, um general do Conselho Supremo de Guerra e, como símbolo dos republicanos, o idoso bruxo-diplomata Henry White, um homem sem qualquer peso político a não ser sua amizade com Theodore Roosevelt, agora criando confusão em Valhalla[3] ou onde quer que fi­cassem os heróis guerreiros.

Depois da entrada triunfal do Presidente em Paris, até Blaise ficou otimista a respeito da pronta assinatura do tratado. Tecnica­mente, tratava-se da Conferência Preliminar de Paz, que discutiria os termos aos quais os alemães, quando finalmente participassem da conferência em si, deveriam submeter-se. Mas apesar das glórias mun­danas o Presidente não conseguiu imediatamente o que desejava. Como a conferência ainda não estava pronta para começar, Wilson foi encorajado pelo primeiro-ministro Lloyd George a exibir-se para uma Inglaterra cheia de gratidão, e pelo primeiro-ministro Orlando para uma Itália cheia de gratidão. Assim, duas semanas tinham sido agradavelmente desperdiçadas. As multidões viravam a cabeça; e a cabeça virada, como os ministros espertamente pretendiam, era a do próprio Wilson. Ele voltou para seu quartel-general em Paris, o Falais Murat, cansado, porém exaltado.

Nesse ínterim, Blaise trabalhara com o coronel House, cuja equipe ocupava grande parte do terceiro andar do Crillon, sob a supervisão do genro dele, Gordon Auchincloss, primo dos ubíquos Apgar. Blaise atuava como ligação não-oficial com a imprensa fran­cesa, que mostrava uma tendência à mordacidade em relação ao seu salvador, seguindo o exemplo de Clemenceau, cuja opinião sobre aqueles que gostariam de mudar a natureza humana era sardônica, quando não venenosa. O conservador André imitava o radical Clemenceau nessa sombria opinião sobre a raça humana.

É inútil pedir-nos para não fazer o possível para esmagar a Alemanha. Veja o que fizeram conosco desta vez! Veja o que fizeram em 1870. ..

Veja o que nós fizemos a eles com Napoleão.

Hoje em dia eles matam mais pessoas, e os sobreviventes recordam por mais tempo. Meu caro Blaise, os alemães voltarão um dia, se não os dividirmos em pequenos países, como era antes de Bismarck.

Blaise conhecia todos os argumentos, todas as respostas. Esse era o problema com a política, fosse nacional ou internacional. Como as grandes questões eram sempre colocadas do mesmo modo, provo­cavam respostas igualmente previsíveis e imutáveis. Como se con­seguia decidir alguma coisa era para Blaise um mistério. Ele imagi­nava que essa particular conferência seria "vencida" pelo mais pa­ciente; mais cedo ou mais tarde Wilson se cansaria. No entanto, Blaise estava convencido também de que o Presidente era certamente um agente da história, ocupando o lugar certo no momento certo, e quando todo o poder estava assim reunido em alguém com um plano, os Clemenceaus, os Lloyd Georges e os Orlandos seriam impotentes. Até mesmo Blaise ficara impressionado com o tamanho das mul­tidões, naqueles três países que tinham perdido milhões de homens durante os últimos quatro anos, assim como outros milhões que morreram de gripe.

George Creel juntou-se a eles, como se tivesse sido convidado. André contemplou-o com a curiosidade divertida de uma pessoa que vai ao circo, ansiosa para deliciar-se com coisas exóticas.

Como está o quarto 315?

Creel gostava de fingir que ele e Blaise estavam em campos opostos, o que, em certo sentido, era verdade. O coronel House e Lansing estavam perpetuamente em desacordo, uma situação que se refletia na equipe de cada um. Embora Creel fosse o grande pro­pagandista, o coronel House e seu genro eram formidáveis manipu­ladores da imprensa, como Blaise, melhor que qualquer outra pessoa, podia reconhecer. Porque o coronel House era aparentemente tão reservado, era a única pessoa que os homens importantes procura­vam. Ele, que fora olhos e ouvidos de Wilson, agora passava por ser também o cérebro do grande homem. No devido tempo, Wilson perceberia tudo isso e, a não ser que Blaise estivesse completamente equivocado a respeito da vaidade humana, o Presidente livrar-se-ia do sussurrante e simpático texano. Lansing não tinha suficiente ima­ginação para causar problemas entre Wilson e House, ao passo que Creel só podia fazer isso indiretamente. No George Washington Blaise tivera a impressão de que Wilson não estava muito satisfeito com qualquer dos dois. Ambos lhe tinham dito, cada um a seu modo, que ele não devia arriscar o prestígio da Presidência no que, afinal, seria nada mais que uma espécie de jogo de pôquer violento, onde os jogadores roubavam e facas cintilavam. Wilson, porém, estava tomado de zelo missionário, aguçado pelas multidões que lhe prova­ram que ele era o instrumento divino de toda a esperança de cada indivíduo que compunha aquelas hordas cinzentas-rosadas-marrons que, como manchas enormes, inundavam praças antigas e escoavam por avenidas largas e modernas. O cheiro das multidões parisienses tinha sido suficiente para enviar Blaise de volta ao seu quarto no terceiro andar do Crillon, onde o coronel House reinava em segredo um segredo amplamente divulgado.

O 315 quer começar assim que possível. E o segundo andar?

Lansing está tendo problemas com Clemenceau. Creel foi direto. Depois voltou-se para André. Espero que você não seja sobrinho dele, ou membro do Gabinete.

Não. Sou um ocioso. Sempre fui ocioso. Mas a coisa que mais gosto de fazer é observar às formigas correndo sem direção depois que o formigueiro foi destruído.

Blaise adorou que seu parente do Velho Mundo não fizesse o menor esforço para agradar o Novo Mundo.

É uma maneira de encarar as coisas. Creel era indiferente à malícia. Clemenceau gostaria de esperar até que as coisas se assentassem antes de o bate-boca começar. Lansing quer começar agora, mas deixar a Liga das Nações para depois que o tratado es­tiver assinado.

Blaise assentiu.

Já que o Presidente está mais interessado na Liga do que no tratado, Lansing não devia surpreender-se com a influência do terceiro andar.

House sempre apoiara o Presidente cara a cara. Lansing ousava argumentar, mas até certo ponto.

O coronel certamente tem o apoio dos membros da sua família. São mais numerosos que a delegação declarou Creel, feliz por retribuir a malícia.

Um pai de família amoroso é admirado em toda parte.

Mas Blaise surpreendera-se com a imprudência inesperada do

coronel quando se tratava de seus assuntos particulares. Além de Edith, Wilson não trouxera pessoa alguma de sua família, nem mesmo o genro Francis Sayre, que tinha trabalhado no Grupo Inquiry. Wilson desencorajara também a presença das esposas. House,. no entanto, trouxera a irmã, além da filha e do marido desta, Gordon Auchincloss, que, por sua vez, trouxera seu sócio na advocacia e a esposa deste. No momento House estava tentando designar Auchin­closs como secretário do Presidente durante a conferência, e a opi­nião da Sra. Wilson era cada vez mais negra a respeito daquela emi­nência cada vez menos parda que era House. O próprio Wilson lembrava a esfinge, seguindo seu próprio e elevado destino a seu modo próprio e eloqüente. Por toda parte havia nuvens de tempestade.

Clemenceau já morou na América.

Creel acenou para um integrante do Inquiry que saía. Essa seria uma noite tranqüila para todos. No dia seguinte a conferência come­çaria às 10:30h, 18 de janeiro, 48º aniversário da declaração do Segundo Reich por Bismarck na derrotada capital da França. Cle­menceau escolhera essa data com um sombrio prazer.

— Casou-se com uma garota de Nova York, depois divorciou- se — continuou Creel.

Isso explica o amor que ele sente pela América disse André, os olhos brilhando.

— O divórcio? — perguntou Blaise. — Ou o casamento?

A experiência.

Você viu o filme da sua... hum... irmã? — Creel sabia que havia um parentesco entre André e Caroline.

— Minha meia-irmã. Não. Na verdade, nunca vi um filme. Jogo bridge. Não se pode fazer as duas coisas. Mas já li a respeito de Os boches do inferno, e percebi que alguém tomou o nome de nossa avó, Emma Traxler. É Caroline?

Não — fez Blaise, sem saber se Creel estava ou não sabendo.

Não — repetiu Creel, sorrindo para mostrar que sabia. — Ela só produz os filmes.

Isto soa como se fosse um mágico produzindo algo de dentro de um chapéu — comentou André.

E é mesmo — respondeu Blaise, consultando o relógio.

A amante de sua juventude convidara-o para as 10:00h, o novo horário da moda ria Paris em guerra, uma cidade ainda abastada apesar dos talões do racionamento e da escassez. Creel viu o gesto dele e levantou-se.

— Tenho um jantar tardio, ou uma ceia adiantada — disse Blaise. — Vai estar amanhã na abertura?

Creel assentiu.

— Vou ficar assistindo até me botarem para fora.

— Vou fazer a mesma coisa, acho.

House dissera a Blaise que podia dar um jeito para ele entrar. Mas se não se providenciara um lugar para o Creel de Lansing, Blaise não pretendia despertar cóleras divulgando o fato de que tinha sido providenciado um lugar para o Sanford de House. Na realidade, as preliminares seriam abertas para um punhado de observadores privilegiados, ao passo que a conferência em si seria fechada e se­creta — se 72 delegados de 26 países não revelassem ao mundo mais do que ele queria saber a respeito de novas fronteiras. O mapa in­teiro da Europa Central seria redesenhado e, teoricamente, Wilson segurava o lápis azul que criaria novos países como a Thecoslováquia, enquanto desmembrava, se não apagava, impérios antigos como o da Áustria.

— Espero que o coronel House esteja recuperado — disse Creel, em seguida, despedindo-se de André.

— Ah, a gripe veio e se foi, como o Presidente.

Quando Wilson viera ao Crillon para visitar House, passara pelo escritório de Lansing mas não parara para cumprimentar o grande estadista. Isso causara um escândalo.

Mas a bexiga está cheia de pedras fez Creel, e saiu.

Não compreendo os americanos! André não parecia triste por isso.

Não se preocupe com isso. Não há necessidade de nos com­preender.

É, você é um deles. Caroline também?

Principalmente. Ela virou nativa.

Minha mãe também fez isso. E trouxe seu pai para a nossa casa, e você também, é claro.

É. Ela é a ligação: Emma de Traxler Schuyler d'Agrigente Sanford. Mas não é sangue meu.

Tant pis fez André, voltando à primeira língua deles.

Blaise teve curiosidade em saber por que os descendentes de

Emma tinham tanto orgulho de uma mulher que, Caroline descobrira, deliberadamente deixara a mãe de Blaise morrer ao lhe dar à luz, para poder então casar-se com o pai dele e o dinheiro dos Sanford. Naturalmente todos se orgulhavam de Aaron Burr, seu ancestral indi­reto através do pai de Emma, um dos muitos filhos naturais do bri­lhante vice-presidente que era agora conhecido somente por ter ma­tado Alexander Hamilton. Quando Blaise era jovem, o fato de haver na família, por casamento, dois assassinos, excitava-o e horrorizava-o um pouco. Mas a arbitrariedade de tantas mortes recentes, de guerra ou de praga, tinham destruído o encanto do assassinato numa onda de estatísticas que só podia ser compreendida quando se entendia que Plon, por exemplo, não estava mais lá para conversar com ele nunca mais.

Blaise era adolescente quando se tornou amante de Anne de Bíeville, cujo filho, mais velho que ele, tornara-se então seu melhor amigo. Blaise mantivera o romance mesmo em Yale, cuidando em não deixar que seus colegas de classe, barulhentos, piolhentos, virgi­nais, soubessem que, enquanto eles se embebedavam e tagarelavam a respeito de garotas, ele era praticamente um homem casado.

O romance terminara tranqüilamente, graças à largura do ocea­no Atlântico, tanto quanto à passagem do tempo. Blaise agora via o rosto dela pela primeira vez em uma dezena de anos, e achou-a a mesma, porém velha; tinha pelo menos 65 anos. Tendo permitido que seu corpo se estragasse, ela estava vestida como uma odalisca, numa espécie de roupão que não tentava revelar onde costumava ficar a cintura ou até mesmo detalhes tais como a localização exata dos seios à medida que reagiam, como toda carne, à gravidade inexo­rável.

Anne recebeu-o à entrada da sala de visitas, onde vinte pessoas estavam alegremente reunidas. A casa era mais modesta do que ele se lembrava. O marido condescendente estava morto havia muito, assim como o amigo dele, filho dela, levado pela guerra.

— Não falemos nele. — Anne foi firme. Segurou Blaise a distância para que seus olhos claros e cansados pudessem dar uma boa olhada nele. — Você, pelo menos, mantéve um belo corpo.

O seu...

Não diga nada, meu amor. Estou aposentada. Mas você ainda parece... como é que Caroline sempre o chamava? Um pônei furioso. Bem ao meu estilo... antigamente. Agora não cavalgo mais.

Está fora da batalha?

— Fora da guerra. Não poderemos conversar agora. Mas venha amanhã, ou qualquer dia às cinco. Quero saber tantas coisas! Vi Caroline naquele filme. Ela fotografa muito bem.

— Você é uma das poucas pessoas que a reconheceram. Ela está adorando ser ao mesmo tempo famosa e desconhecida.

Emma Traxler é o nome mágico desta temporada em Paris. Fale-me sobre Frederika. Não, agora não. Guarde para depois. Os Jusserand estão aqui. Culpa minha. Obviamente você os encontra todos os dias em Washington. Mas eles querem vê-lo. Há também velhos amigos de nossa velha vida. Quase consegui M. Clemenceau. Mas ele está se guardando para amanhã.

Pela primeira vez em vários anos, Blaise sentia-se inteiramente em casa: pela primeira vez em muitos anos estava num aposento cheio de pessoas que conhecera toda a vida e para quem nada mu­dava. Suas fileiras podiam ser — e tinham mesmo sido — dizimadas pela guerra, mas continuavam a ser o que sempre tinham sido, e todo mundo tinha uma relação correta com todo mundo. Cada um dos presentes, por mais vigoroso, jovem e até mesmo rebelde, podia "lo­calizar" cada um dos outros e a si próprio numa teia familiar e his­tórica. Na terra escolhida de Blaise, apenas Boston era assim; mas ele não era bostoniano. Era francês, porque passara os primeiros vinte anos de sua vida em Paris e em Saint-Cloud-le-Duc, e ninguém o esquecera.

Blaise mergulhou naquela banheira morna; nadou graciosa mas velozmente através dos Jusserand e das pessoas preocupadas com a Conferência de Paz, que agora parecia um assunto sem importância. Ali estava o mundo, como diziam alguns, ou a família, como diziam outros, e ele, gostando ou não disso, seria para sempre um membro.

Conhece minha mãe?

O rapaz parecia literalmente familiar. Geração após geração, as semelhanças familiares podiam ser, como ás borboletas, identifi­cadas através de marcas hereditárias, para não mencionar traços de caráter.

Tenho a idade certa para isso.

Blaise sequer se importava de ser tomado por homem de meia-idade, embora a cada momento se tornasse mais jovem e mais... como era que Anne o chamava? Como um pônei furioso. Blaise identificou corretamente o rapaz como um Polignac. Foi apresentado então a uma jovem morena, meio gorducha, a quem não localizou imediatamente, embora o nome fosse famoso: Charlotte, nascida duquesa de Valentinois, pois ela não usava aliança. Blaise alegrou-se com a facilidade com que conseguia retornar ao mundo abandonado na juventude. Charlotte era filha ilegítima de uma atriz — com san­gue negro, diziam alguns; árabe, diziam outros e do solteirão príncipe Louis de Mônaco, cuja falta de herdeiros preocupava tanto o pai dele, o príncipe de Mônaco reinante, que a jovem fora recen­temente legitimada e reconhecida como herdeira daquele conveniente principado junto ao. mar. Pierre de Polignac trabalhava no Ministé­rio das Relações Exteriores.

Embora não vá estar presente amanhã. Sou um dos peixes menores. Mas soube que você estará presente.

Como? — surpreendeu-se Blaise: nada saíra publicado nos jornais.

Temos no Quai d'Orsay uma lista que ninguém pode ver, portanto eu vi.

Muito sensato. Vou assistir à abertura,, pelo menos.

Nós todos adoramos a sua irmã em Os boches do inferno — afirmou a filha da atriz.

Todos a reconhecem aqui, e em casa ninguém! Blaise achou isso ótimo.

Na verdade, o Figaro revelou o segredo esclareceu de Polignac. O mérito não é nosso. Como estou ansioso para ir para a América!

Blaise conversava casualmente, sem pensar o principal prazer dessa sociedade onde, se alguém quisesse pensar, poderia deliciar-se com uma conversa exaustiva ao estilo de Henry Adams; caso con­trário, a conversa envolvia calidamente a pessoa e a incessante nar­rativa de cada um naquele mundo estendia-se, com suficientes sur­presas e fatos inesperados para manter o tédio a distância.

Etienne de Beaumont era um animado mestre do que Blaise gostava de definir como histórias de salão. Era um contemporâneo de Blaise, elegante e vivaz, e os dois tinham se conhecido na infância.

Quem haveria de pensar que você viraria americano!

Eu.

Houve uma leve excitação no salão quando a rainha de Nápoles entrou. Ela perdera o reino anos antes, e agora seu cunhado, o im­perador austríaco, estava prestes a perder seu império para o lápis azul de Woodrow Wilson. Mas a rainha ainda era tão serenamente linda quanto afirmava a lenda, e levava uma vida sossegada em Neuilly, impávida diante da pobreza. As mulheres fizeram uma re­verência profunda quando ela passou. Os homens inclinaram a ca­beça.

Fui influenciado por seu parente, o Beaumont que foi para a América com Tocqueville e escreveu o livro...

— Aquele Beaumont era um monarquista apaixonado; como eu, embora me falte a paixão. De qualquer maneira, Pierre de Polignac, que precisa de emprego, vai casar-se com a jovem Grimaldi e tornar- se o príncipe consorte; de Mônaco. Afinal, ele fracassou na literatura; que é que resta?

O ministério?

Lá ele é só uma peça decorativa.

Em Mônaco?

Uma peça decorativa com salário melhor. Sentimos saudades de você. Vai reabrir Saint-Cloud?

Não é de mim, mas de minha casa que todos sentem saudades.

Somos gente honesta. Ah, meu Deus, os recém-casados!

Um casal de meia-idade dirigia-se resolutamente a eles, acompa­nhado por uma jovem robusta e pesada, de grande vivacidade e feiúra.

Blaise reconheceu o homem, poucos anos mais velho que ele; mas nenhuma das duas mulheres lhe era familiar. Aparentemente, era a mais velha delas que se casara com Louis de Talleyrand-Péri- gord, duque de Montmorency.

Posso dar-lhe os parabéns? Blaise apertou formalmente a mão do noivo.

Este mostrou-se feliz ao ser lembrado pelo americano que per­tencia ao seu mundo e agora retornava em triunfo; a nova duquesa parecia cheia de energia, embora não fosse bela, ao passo que a jovem gorducha parecia cheia de vivacidade. Para espanto de Blaise, ela era americana.

Já nos encontramos uma centena de vezes, Sr. Sanford, mas o senhor não se lembraria. Sou amiga de Elsie de Wolfe.

A partir daí, vários, nomes, a maioria de lésbicas, foram desfechados como fogos de artifício.

Etienne estava se divertindo.

E como vai seu encanto de filho? perguntou à duquesa.

Muito bem, obrigada. Mas ela queria caça maior; voltou- se para Blaise. Vi sua linda residência em Saint-Cloud tantas vezes pelo lado de fora. ..

Precisa ver por dentro...

Volte para nós! exclamou a dama. Nosso velho mundo precisa de sangue novo. É claro, você é muito ocupado com seu jornal. Sabe, o meu marido, o duque, é assinante. Naturalmente todos os jornais chegam juntos. De modo que temos pilhas do New York Times por toda a casa.

O sorriso de Etienne tinha as proporções do de um gato Cheshire.

A americana veio em seu socorro.

Cecilia! trovejou, a voz bastante grossa. Não é o New York Times que ele publica.

Eu sei. Elsa, eu sei. A nova duquesa sorriu para Blaise. Tenho que ir cumprimentar a rainha de Nápoles. Ela deve estar muito deprimida por causa daquela república boba na Alemanha e o coitado do pai dela, o cáiser, prisioneiro na Bélgica!

Os três atravessaram o aposento até onde a rainha estava parada de costas para um espelho, Anne a seu lado.

Cecilia é maravilhosa. Entende tudo errado! Uma obra de arte. Etienne falava como se de alguma forma ele próprio tivesse inventado a duquesa. Não se lembra dela?

Blaise sacudiu a cabeça.

Ela não era tão recebida antigamente, quando era Madame Blumenthal, nascida Ullmann...

Muito rica. Eu me lembro. As lembranças estavam começando a voltar. Ela queria ser uma anfitriã famosa...

— E ter um nome. Conseguiu as duas coisas. Tem também um filho adulto, de M. Blumenthal, e uma das condições de seu casamento com nosso amigo Louis era que ele passasse o título para o filho dela, coisa que ele concordou em fazer em troca de alguns dos milhões dos Ullmann-Blumenthal.

Como é bom saber que nada muda por aqui...

— Bem, algumas coisas mudam. — Etienne franziu o cenho. — Ele nunca teria se casado com ela em nossa juventude, por mais pobre que estivesse.

O caso Dreyfus?

— Aquilo foi só um sintoma passageiro. O mundo muda, infelizmente. De qualquer maneira, nosso pobre Louis, agora nosso rico Louis, é conhecido como duque de Montmorenthal.

Embora Blaise se sentisse confortavelmente em casa ali, ficaya mais estimulado pela anarquia das relações sociais na América, onde quase todo mundo era recém-chegado e obviamente inventado.

Fiquei mais surpreso com a gorducha — afirmou Blaise. — Esta não estaria aqui quando éramos jovens.

Etienne deu de ombros.

— Sempre houve os bobos da corte. Esta é muito vigorosa. Acompanha cantores ao piano, profissionalmente. O nome dela é Maxwell, Elsa Maxwell, e eu diria que será permanentemente sol­teira. A família é conhecida na América?

Blaise protestou ignorância. Depois curvou-se diante da rainha de Nápoles e beijou Anne cerimoniosamente nas faces.

— Se você quiser ser apresentada a Edith Bolling Wilson, rainha dos Estados Unidos, posso providenciar.

É tudo que eu desejaria.

Blaise meditou sobre a atração física enquanto o táxi o levava do Faubourg Saint-German, do outro lado do Sena, até a quase invi­sível Rue de l'Arcade, que era exatamente isso — uma ruela coberta onde, no número 11, o Hôtel Marigny ocupava um prédio estreito, com dois quartos e uma escada de largura e cinco andares de altura.

Quando jovem, Blaise era totalmente absorvido por Anne; então um dia deixou de ser. Seus gostos se modificaram; agora preferia garotas a mulheres. Felizmente ela sempre compreendera ser sim­plesmente uma porta através da qual ele passaria a caminho de sua própria maturidade — aonde quer que isso fosse levar. Ele gostava dela, mas com o passar do tempo ela teria se tornado a mãe que ele perdera ao nascer, e embora ele às vezes se sentisse curioso a respeito dessa personagem, a ausência dela não lhe causara tristeza. Não queria uma mãe adotiva.

Blaise percorreu a pé os poucos metros da praça ao hotel. A noite estava intensamente fria, e o hálito dele era uma nuvem cinza-escuro à luz do único poste da rua.

O calor dentro do Marigny era tropical. Cheiro de nabos cozidos, poeira, incenso. À direita da frágil escada, o escritório do ge­rente não muito maior que um armário do Crillon. Ali, na so­leira, postava-se Albert, um homem pálido, de trinta e poucos anos, de modos requintados.

O cavalheiro americano. Levou Blaise ao escritório, que continha um sofá-cama coberto com pano oriental, uma escrivani­nha e uma cadeira. Infelizmente temos escassez de mobília. Só assumi isto aqui no ano passado, e, se não fosse por amigos, não teria nem mesmo esses poucos móveis. Já o vi antes, é claro.

Blaise assentiu. Sentou-se na beirada do sofá-cama. Recusou uma taça de xerez.

Nosso amigo comum falou-me de seu... — Albert interrom- peu-se com um gesto gracioso.

Aos 16 anos ele fora da Bretanha para Paris, onde trabalhara como lacaio em várias casas importantes, das quais a mais famosa tinha sido a do príncipe Constantin Radziwill, para quem tinha sido composta uma- cançoneta: "É a maior indelicadeza que já se viu falar de mulheres para Constantin Radziwill."

Ao longo dos anos, Albert apaixonara-se tão profundamente pela aristocracia que se tornara especialista em genealogia, chegando a conhecer o parentesco de todas as pessoas melhor, às vezes, do que elas próprias. Como Saint-Simon, ele era fascinado obcecado pela hierarquia. No Faubourg, velhas damas punham a mão no fogo por ele, e era costume consultá-lo antes de um jantar para determinar quem entraria antes de quem e onde se sentaria. Certa vez, Albert enfrentou o desafio mais perigoso: se uma dama convidasse a grande duquesa da França, d'Uzès, uma antiga criação dos reis Bourbon, e a princesa Murat, uma criação dos imperadores Bonaparte, quem teria precedência? Albert respondera severamente: "Nenhuma dama convidaria as duas juntas."

Albert falou educadamente do tempo, dos Estados Unidos; dis­cretamente de certas figuras do grande mundo. Blaise respondeu dis­traidamente. Então Albert indicou que Blaise o seguisse; subiram a escada cheia de ecos até o primeiro andar. Ali Albert abriu uma porta, de tal modo que Blaise pudesse enxergar dentro do aposento sem ser visto por seus ocupantes. Três jovens soldados fardados es­tavam sentados num sofá-cama tomando vinho tinto, enquanto um açougueiro, a quem não faltava sequer o avental ensangüentado, lia um jornal socialista. Blaise estudou os quatro, depois murmurou a Albert:

O soldado louro.

Albert então levou Blaise para um quarto com uma cama de dossel, pesadas cortinas de veludo na janela, uma cortina de seda rasgada a um canto, quase escondendo bidê e pia. O pulso de Blaise batia irregularmente. Ele contemplou-se ao espelho para ver se es­tava ficando de rosto — doentiamente? — vermelho. Mas o rosto que o encarava estava normal, exceto que, graças à poeira que man­chava o espelho, ele parecia vinte anos mais jovem do que se lem­brava, quase tão jovem quanto o rosto que agora olhava por trás de seu ombro.

Blaise voltou-se, e eles apertaram-se as mãos gravemente. O ra­paz — que não tinha mais de vinte anos — murmurou um cumpri­mento. Como Albert, vinha da Bretanha.

— Tive baixa no mês passado. — O sotaque bretão agradou Blaise. — Mas não fui para casa. Devia ter ido, mas estava me di­vertindo. Eu bebo demais.

Calvados?

— Qualquer coisa — disse o rapaz melancolicamente. — Vivi duas semanas com aquela mulher. Ela levou todo o meu dinheiro. É por isso que estou aqui.

— Como os outros soldados naquele quarto.

O rapaz assentiu. Blaise indicou que ele tirasse a roupa. Ele despiu-se devagar, a pele clara enrubescida de vergonha. Obvia­mente não estava acostumado àquilo.

— O rapaz que vestiram de açougueiro — disse, deixando a camisa cair no chão — é ria verdade um estofador, mas o maluco dono daqui...

Albert?

— Não. O velho. Ele é muito doente, muito pálido. Comprou o hotel para Albert. De qualquer maneira, ele gosta de falar de sangue, coisas assim. Então Albert, se não consegue encontrar um açougueiro de verdade, veste um sujeito qualquer, que fica falando com o velho sobre estripar animais. O velho gosta de sangue. É doido de verdade.

As ceroulas caíram no chão e o rapaz postou-se diante de Blaise. As pernas eram como as de Blaise, pernas de cavalariço, e os pêlos louros brilhavam à luz do lampião.

Que é que tenho que fazer? — O desafio estava tão misturado ao medo e à vergonha que a reação de Blaise foi igualmente misturada: ele se sentiu ao mesmo tempo lascivo e paternal.

— Bem, pelo menos não vai ter que falar de sangue.

— Ótimo. — O rapaz sorriu pela primeira vez, um sorriso hei sitante. — Já vi o suficiente de sangue.

Blaise estava agora despido. O rapaz olhou para ele e pareceu aliviado por Blaise não ser um monstro.

— Você é como um pônei — disse Blaise, deslizando a mão pela pele macia do peito glabro do soldado.

— O meu cheiro é esse mesmo — disse o rapaz com tristeza. — Mas não sou eu. Quero dizer, estou limpo. Mas a farda é a única que tenho. Tive que dormir com ela durante semanas.

Nos últimos anos, Blaise tivera tão pouco dos prazeres masculi­nos que quase se esquecera de como era esplêndido estar com um corpo que era igual ao seu mas completamente diferente, e jovem. Mais que qualquer coisa, a juventude do outro funcionava como um gatilho tanto para a luxúria quanto para a memória, e de repente, fugazmente, Blaise uniu-se ao seu eu original. A falta de complica­ção também era. uma perfeita alegria. Mulheres significavam envolvimento, mesmo quando, com uma prostituta, a responsabilidade era anulada pelo dinheiro: o hábito de um relacionamento cujo propó­sito era levar a filhos estava sempre presente. Mas nada desse tipo havia numa cama de dossel com um rapaz suado. Isso era ter prazer sem ter que pensar; e a liberdade. O melhor de tudo: como todos os homens comuns, a não ser que orientados diferentemente por uma mulher ou por um superescrupuloso Albert, eles não beijavam. Isso era coisa de homem-pai com mulher-mãe, depois que a cobra e a maçã estragaram o Éden.

Quando estavam novamente vestidos, Blaise pagou ao soldado o dobro do esperado, e o rapaz deu-lhe um sorriso tímido revelando um dente frontal torto.

— Foi bom — declarou, com certo grau de surpresa.

Você faria isso por prazer?

Bom, talvez, se não tivesse mulher...

Ambos riram e saíram do quarto.

Albert ficou gravemente satisfeito por eles estarem satisfeitos. Blaise tentou lembrar-se do nome do romancista de sociedade que pagara pelo estabelecimento. Já lhe ouvira o nome, recentissimamente, dito por Etienne de Beaumont. O sujeito era um judeu, semi-inválido e, como Albert, obcecado por genealogia e linhagens de sangue, assim como por sangue de verdade. Fosse quem fosse, en­trara em cena depois da época de Blaise em Paris. Mesmo assim Blaise sentiu-se extremamente grato a ele por ter tornado possível encontrar, tão inesperadamente, sua própria juventude numa arcada invernal.

 

À porta do Quai d'Orsay Blaise foi obrigado a mostrar vários crachás e documentos. Felizmente a manhã cinzenta e enevoada ainda não produzira chuva; mas o frio era penetrante e típico do inverno parisiense. Então, atravessando uma multidão de jornalistas, o cor­respondente do Tribune veio apressado cumprimentar seu patrão. Era inglês, criado na França. Conhecia tudo e todos, ou pelo menos era o que dizia e sem dúvida acreditava.

O Presidente está pronto. Está prestes a apresentar ao mun­do a sua namorada. O Sr. Campbell pensava como jornalista.

Blaise observou como aquilo era adequado — 14 de fevereiro de 1919. Depois de quatro semanas de trabalho intenso e na maior parte secreto, Wilson completara seu pacto da Liga das Nações, com pouca ajuda e muita atrapalhação por parte da conferência, reduzida, por motivos práticos, a um conselho de dez, dirigido por Clemenceau, com muito trabalho do coronel House no Crillon, onde a Comissão da Liga das Nações se reunia, do outro lado do rio.

As pedras na bexiga de House não mais o perturbavam, e ele foi capaz de obter para o Presidente o graal que este buscava. Tinha também providenciado para que todas as outras nações, por mais relutantes que se mostrassem, aceitassem a obra deles. Na noite anterior, às sete horas, os 26 artigos do pacto tinham sido aceitos pela conferência. Agora o Presidente ia apresentar sua obra-prima completa, no grande Salão do Relógio; e depois correr para casa para apresentar-se ao Congresso. Blaise viajaria com a comitiva pre­sidencial a bordo do George Washington, que zarparia naquela noite de Brest.

Já telegrafei o texto para o Sr. Trimble. Recebi à meia- noite de ontem, através de um amigo na comissão...

Gordon Auchincloss?

O contingente da Câmara cultivava incansavelmente a imprensa à custa de Lansing e, começava-se a perceber, do Presidente também.

Um amigo repetiu o Sr. Campbell, alegremente misterioso.

Blaise foi obrigado a juntar-se à seção militar na ante-sala do salão apinhado, cujas portas abertas permitiam a visão parcial da mesa em forma de ferradura à qual sentavam-se os delegados dos países vitoriosos e seus futuros clientes.

Os franceses eram mestres nesse tipo de teatro, pensou Blaise, enquanto o Sr. Campbell colocava-o numa cadeira dourada junto a um marechal francês não identificado. Blaise soubera que seu colega editor, Lord Northcliffe, também estava presente, mas não havia si­nal dele na ante-sala. Será que Northcliffe, graças ao primeiro-mi­nistro britânico, conseguiria um lugar melhor do que o editor do jornal mais poderoso de Washington, o que significava do mundo? Blaise mergulhou prazerosamente em fantasias imperiais, identificando-se com os Estados Unidos, cujo Presidente trouxera a paz à Europa no presente e agora estava prestes, a impor uma paz universal no futuro.

O saguão atapetado de vermelho não era grande vinte metros por 15, calculou o Blaise-repórter e era todo multicolorido e dourado. À mesa em forma de ferradura, coberta com uma toalha de baeta de um verde-ácido, sentavam-se os delegados, sob o enorme relógio epônimo entre os braços de uma donzela de gesso rococó. Por uma licença especial, no extremo da ferradura a Sra. Wilson reinava em magnífico escarlate, o almirante Grayson de pé ao lado dela. À cabeceira da mesa, Clemenceau liderava, Wilson a seu lado.

Durante as últimas quatro semanas Blaise tivera uma única con­versa, longa e sem sentido, com Lloyd George, ou melhor, escutara o histriónico galês cuja flagrante insinceridade era tão misturada a um encanto animal que Blaise gostara bastante dele.

Blaise achara o primeiro-ministro italiano, Orlando, triste; sem dúvida porque assinara tantos tratados secretos como preço pela presença da Itália entre os Aliados que agora percebia que não ia ganhar uma parte tão grande do império austríaco despedaçado quan­to seu povo esperava.

De todos, Clemenceau era quem mais agradava Blaise. Conver­saram sobre pessoas mortas, amigos do pai de Blaise. Clemenceau falou sobre a Guerra Civil americana, durante a qual ele tinha sido correspondente de um jornal francês. Ainda se lembrava, afirmou, da aparência da capital confederada, Richmond, após a derrota, pouco depois de Lincoln deixar, vitorioso, a cidade. Lembrava-se tam­bém da capital derrotada da França, Paris, onde Bismarck impusera uma paz alemã. Clemenceau interrogara Blaise intensamente a res­peito de Wilson; e Blaise achou-o menos cheio de suspeitas do que imaginara. Obviamente Clemenceau no início julgava o Presidente um cavalheiro como Lloyd George; agora parecia julgá-lo apenas um tolo.

À cabeceira da mesa, Clemenceau usava um gorro preto e luvas de gaze cinza-pérola para esconder seu eczema. O rosto parecia uma máscara de pergaminho — na qual havia, como os jornalistas gos­tavam de escrever, olhos de tigre. Dizia-se que ele aceitara o pacto de Wilson como um quid cujo quo seriam indenizações vultosas a serem pagas aos Aliados pela Alemanha. O fato de que uma Alema­nha arruinada poderia tornar-se comunista, como fizera a Rússia, não o preocupava.

O Presidente consultou o relógio. Então pegou uma pilha de papéis e levantou-se. Wilson estava mais cinzento que de costume, mas quando falou, a voz era quase tão entusiasmada quanto poderia ser aquela voz clerical. Wilson conseguira, através de sorte, de es­perteza ou de uma combinação das duas coisas, fazer dos Estados Unidos o primeiro país do mundo, como resultado de uma guerra que custara à sua nação cinqüenta mil vidas, ao passo que a Alema­nha, a Rússia e a França tinham perdido cada uma perto de dois milhões de homens, e a Inglaterra, um milhão; uma geração desapa­recera para sempre na Europa, e o verão, assim como a primavera, desaparecera do ano.

O discurso de Wilson foi calmo. Ele leu o que era, como Blaise percebeu na metade, nada menos que uma declaração de interdepen­dência de todos os países do mundo. O que Jefferson fizera por 13 colônias britânicas, seu sucessor estava fazendo pêlo mundo inteiro. Blaise olhou em volta, com certo respeito, para a embevecida atenção do Japão e da China, dos impérios coloniais que incluíam a África, dos dirigentes antípodas, todos presentes sob o relógio de ouro, en­quanto o professor explicava-lhes como a paz podia" ser mantida. Depois que terminou com o texto, ele pousou-o sobre a mesa. Então Wilson falou, com simplicidade, porém comoventemente, sobre o pacto.

— Nasce uma coisa viva, e precisamos cuidar para que as rou­pagens que nela colocamos não a prejudiquem. — Esse eco domés­tico de Jefferson funcionou surpreendentemente bem. — Acho que podemos dizer desse documento que ele é ao mesmo tempo um do­cumento prático e humano. Há nele um pulsar de solidariedade. Há nele uma compulsão de consciência. Ele é prático, no entanto sua intenção é purificar, retificar, elevar...

Até mesmo Clemenceau parecia comovido, ao passo que os olhos azuis de Lloyd George cintilavam como se molhados de lágrimas de felicidade.

O Presidente sentou-se depois que terminou. Não houve aplau­sos. O final tinha sido improvisado a partir de umas poucas anota­ções, algo que deslumbrava a maioria dos estadistas e jornalistas em Paris. O próprio Clemenceau lia cuidadosamente seus discursos, te­meroso de trair-se se improvisasse. Mas os anos de Wilson como pro­fessor de história mostraram-se peculiarmente úteis a ele agora como criador da história. Em certo sentido, estava discursando como se ele próprio já fosse uma figura do passado. Mas o fato era que Blaise tinha a estranha sensação de que tudo que estava agora testemu­nhando acontecera muito tempo antes. O grande relógio dourado acima da cabeça de Wilson já marcara tanto tempo passado que agora o que quer que ele marcasse seria, por seu próprio processo circular, enriquecido e concluído.

O tradutor tomou a palavra e leu rapidamente o pacto; e fez o possível com o improviso do Presidente. Depois de uma votação rápida, silenciosa e unânime, Clemenceau adiou a sessão para outro dia.

Blaise foi empurrado para a frente por uma onda de jornalistas excitados, até chegar à cabeceira da ferradura, onde George Creel estava preparando uma fotografia dos personagens principais.

Wilson parecia singularmente infeliz; e Blaise ouviu-o dizer a Creel:

Não os deixe usar os flashes. Ele ferem os meus olhos.

Mas Creel não conseguia mais controlar a situação. As personalidades estavam enfileiradas, o Presidente um pouco à parte e afas­tado das câmeras. As luzes produziam um clarão terrível. Wilson pestanejava e fechava os olhos. E comentou com Lloyd George:

Vamos todos ficar com cara de mortos num necrotério.

 

Naquela noite havia dois trens para Brest. O primeiro continha a equipe de Wilson e seus escoteiros, entre eles Blaise, e o segundo era para a comitiva presidencial. As tropas postadas ao longo do desvio da ferrovia apresentaram armas quando o primeiro trem par­tiu, vinte minutos antes do trem do Presidente. Blaise dividia um compartimento com os Roosevelt e o jovem tio de Eleanor por casa­mento, David Gray. Eleanor viera para visitar hospitais e ser útil, ao passo que Franklin acabara de chegar de Bruxelas, Coblenz e Renânia, onde colecionara um grande número de lembranças, entre elas um capacete alemão pontudo, que ele guardava a seu lado no banco.

Os Roosevelt acenaram devidamente para a multidão, que não os conhecia. Noblesse — ou politique — oblige, pensou Blaise. Afi­nal, Eleanor era sobrinha do finado Presidente. Ela agora interro­gava Blaise sobre o discurso de Wilson. Estava extraordinariamente pálida, o que, considerando-se sua costumeira falta de colorido, fa­zia-a tão branca e etérea quanto uma nuvem, obviamente uma nuvem grande e inchada. Ela estivera muito doente, com pleurisma.

— De modo que teremos uma liga de nações — concluiu Blaise.

Espero que sim — disse ela.

Embora estivesse conversando com David Gray, Franklin ao mesmo tempo escutava. Interrompeu-se com:

— A opinião pública está com o Presidente agora. Mas vamos esperar que ele consiga passar isso pelo Senado depressa. Antes que os republicanos aticem a oposição...

Mamãe diz... a Sra. James, quer dizer, a Sra. Roosevelt — Eleanor soltou uma risadinha nervosa — ...que todos do grupo dela acham que o Sr. Wilson é um bolchevique, e ela parou de falar com os Whitelaw Reid por causa disso. Mamãe é muito leal.

— Eu gostaria que todos os senadores democratas fossem também. — Franklin franziu a testa. — Tantos são pagos pelos alemães, ou estão tão comprometidos com os irlandeses que se esquecem de que se não fosse por Wilson eles não teriam sido eleitos.

Isso era exagero, pensou Blaise. A oposição ao Presidente dentro de seu próprio partido era o verdadeiro cerne do partido: os chefões de cidade grande com suas obedientes massas de imigrantes e os bryanistas populistas como Burden Day. Como partido dos ban­queiros e dos grandes comerciantes, os republicanos sempre tinham sido os internacionalistas, e, recorriam ao mundo exterior à América para comércio e lucro; não era por acaso que, na medida em que a liga era idéia de alguém, o crédito deveria ser dado ao antigo presidente republicano, Taft, ou a Elihu Root, ou até mesmo ao belicoso

Theodore Rex, que tinha, quando lhe convinha, apoiado uma orga­nização como essa.

Eleanor estava preocupada com os soldados americanos em Paris.

As histórias que a gente ouve! Havia agora traços de cor em seu rosto. Se as mães deles soubessem dos perigos...

Ainda bem que não sabem. Franklin trocou um olhar rá­pido e conspirador com Blaise: o pavilhão masculino devia agora fe­char suas janelas.

— Disseram-me que nossos oficiais são os piores comentou David Gray com tristeza. Enquanto os soldados perguntam o en­dereço do Túmulo de Nepoleão, os oficiais procuram o Maxim's.

— Exatamente o que eu ouvi! A veia na têmpora de Eleanor pulsava.

"Pobre Franklin", diria Alice Longworth, "ele tem Eleanor, tão nobre!" Embora Blaise gostasse de Eleanor, não conseguia imaginar-se casado com tanta energia e idealismo.

Bem, logo estarão em casa continuou ela. De qualquer maneira, espero que não seja verdade... Será? De repente passou a hesitar. Será verdade que os franceses preparam para as suas tropas umas... casas de encontros?

Eleanor estava agora levemente rosada o máximo de cor que o sangue conseguia lhe dar através da pele grossa e cinza-alabastro.

Franklin assentiu gravemente.

Horroroso, porém verdadeiro entoou. Eu estava no es­critório de Newton Baker quando o general March disse a ele o que os franceses faziam, e Baker disse: "'Não conte ao Presidente, senão ele vai parar a guerra."

Um bom motivo afirmou Eleanor com seriedade, ignoran­do as risadas dos três homens.

 

Blaise estava deitado numa cadeira de convés ao lado de David R. Francis, embaixador americano na Rússia; ambos estavam enrola­dos em cobertores de lã do exército como casulos, os quais emergi­riam algum dia como imponentes borboletas. O mar de fevereiro tinha sido demais para a maioria dos passageiros do George Washington — exceto para Blaise, que gostava dos estremecimentos causados pelo encontro do navio com as ondas negro-acinzentadas, como rochas ar­remessadas das profundidades.

O embaixador Francis também apreciava a agitação do mar. Mas apreciava menos, segundo confessou, os bolcheviques.

— No início, pensávamos realmente que era uma coisa boa.

Um chuvisco de água salgada fez com que ele fechasse os olhos; em seguida enxugou o rosto com o canto de um cobertor.

— Eu sei. — Blaise não lembrou ao embaixador sua embaraçosa comparação de Lenin com Washington e do czar com George III.

Mas como foi que tudo se despedaçou?

— Os franceses. Os ingleses. Clemenceau. Francis sacudiu a cabeça. — Queriam a Rússia destruída, de qualquer maneira. Estou convencido de que não é só o bolchevismo.

— Não mais Império Alemão, não mais Império Austro-húngaro, não mais Império Russo... dá para entender. A Inglaterra do­mina as ondas, e a França, o continente.

Francis assentiu.

— Mas, exceto no caso da Áustria, os impérios continuam onde estavam. Apenas os imperadores desapareceram.

Haverá problemas?

— Já há problemas. Nossos rapazes estão neste momento lutando no norte da Rússia, com os Aliados, contra os bolcheviques.

Quantos soldados americanos?

— Mais de cinco mil. — Francis contemplou, com ar infeliz, o céu para os lados do ocidente, opaco como estanho. Então uma onda quebrou por sobre a amurada, e a borracha das capas dos marujos ficou brilhante como pele de foca. — Graças ao Departamento da Guerra, em vez de procurar-me diretamente em Petrogrado eles fo­ram para Archangel e se apresentaram ao comandante inglês. Agora estão presos no gelo, a ferrovia para Murmansk está impedida e quan­do começar o degelo como é que vamos tirá-los de lá?

Abrindo caminho pelas armas, segundo o jovem Sr. Churchill. Ele afirma que há meio milhão de soldados contra os bolcheviques, prontos para derrubar o governo comunista, se nós ficarmos para ajudá-los.

— Seria ótimo — disse Francis com amargura. — Se ele fosse liderá-los. Estive com ele e com o Presidente logo antes de partirmos. Ele estava cheio de... — O embaixador, ex-governador do Missouri, controlou-se.

— Que foi que o Presidente disse?

— Ele ouviu, mais do que falou. Finalmente disse a Churchill que estávamos irreversivelmente — esta foi a palavra que ele usou — comprometidos em tirar nossos soldados de lá quando o tempo me­lhorar. Particularmente, Lloyd George acha que Churchill é um gran­de idiota e que se nós, os Aliados, entrássemos numa guerra total contra os bolcheviques para dividir a Rússia entre nós, que é o sonho de Clemenceau, o povo inglês se tornaria inteiro comunista durante a guerra.

Blaise achou uma certa graça triste.

Pelo menos Lloyd George compreende a natureza da tirania em seu próprio país.

Francis não ouviu ou preferiu não ouvir essa heresia: os países vencedores eram todos democratas e assim garantiam a segu­rança para eles próprios e para todo mundo, contra os déspotas e os revolucionários.

De qualquer maneira, no verão estaremos fora de Archangel afirmou.

Mas, e a Sibéria? Disseram-me que temos 8.500 soldados lá.

Francis sorriu.

Outro engano do Departamento de Guerra. Dissemos aos ja­poneses que mandaríamos sete mil soldados. De modo que o Depar­tamento de Guerra foi e acrescentou mais mil, o que deu aos japone­ses a oportunidade de romper o acordo e mandar dezenas de milhares de soldados para evitar que nós anexássemos a Sibéria.

E nós vamos fazer isso?

Anexar? Não vejo como. Estamos distantes demais, e os japoneses estão perto demais, e o almirante Kolchak ainda está comba­tendo os bolcheviques, e, se ele ganhar, a Rússia se divide em duas. É uma confusão danada para todo mundo.

Blaise apresentou-se à porta da cabine de Wilson justamente quando soava o sino que marcava as três horas da tarde no mar. O almirante Grayson conduziu Blaise para um amplo escritório, com uma grande escrivaninha de mogno na qual estavam colocados dois telefones. Ligados a quê? pensou Blaise.

O Presidente estava vestido como se fosse jogar golfe. O ar do mar trouxera-lhe cor ao rosto; o pincenê brilhava à luz da lâmpada pendurada.

Sr. Sanford, quanta gentileza ter vindo!

Fazia parte da simpatia de Wilson agir como se cada um de seus visitantes estivesse fazendo um extraordinário sacrifício pessoal indo procurá-lo simpatia essa sem dúvida necessária quando lida­va em Princeton com alunos ricos e pais difíceis.

Blaise aceitou a cadeira indicada, à direita de Wilson. Através da escotilha oposta ele via os fuzileiros navais patrulhando e ouvia suas botas batendo ritmadamente no convés. Wilson percebeu o olhar de Blaise.

A Sra. Wilson não suporta o barulho ou a idéia desses rapazes marchando para cá e para lá o dia inteiro. Mas eu acho tranqüili­zador.

O navio inclinou-se de repente; um dos telefones começou a es­corregar por cima da escrivaninha. O Presidente firmou-o.

É a sua linha direta com o vice-presidente?

O vice-presidente? Wilson pareceu perplexo, depois riu. Sim, o vice-presidente. Bem, nós realmente temos uma ligação por rádio com o Departamento de Guerra, e eles nos ligam com a Casa Branca, de modo que imagino que o vice-presidente esteja lá, em al­gum lugar, na outra ponta da linha. De qualquer maneira, graças ao rádio, estou em contato com. a administração pública aqui, tanto quanto estava em Paris ou até mesmo em Washington.

Wilson soava como se estivesse se defendendo. Muitos dos que o apoiavam estavam chocados com o fato de um Presidente sair do país até mesmo por um dia, quanto mais por dois meses.

Vai voltar, então?

Posso falar extra-oficialmente?

Naturalmente, Sr. Presidente.

Ao longo dos anos, Wilson passara a confiar em Blaise, quanto mais não fosse porque o Tribune era geralmente favorável ao seu go­verno, ao passo que no Post não se podia confiar, e o Times, agora manipulado por Hearst através de Brisbane, era hostil. Além disso, Blaise jamais traíra uma confidência nas raras ocasiões em que algu­ma lhe fora feita.

Não vejo como posso abandonar a Conferência de Paz. O coronel House é esplêndido, mas não está bem de saúde. Os france­ses... — Mesmo extra-oficialmente Wilson não confiava em si mes­mo. Clemenceau... — começou; e deixou por terminar. Muita coisa pode dar errado, se eu não estiver lá.

Mas o senhor tem o seu pacto...

Bem aqui disse Wilson, abrindo o casaco para que Blaise visse o famoso documento dobrado no bolso. Em cima do meu coração. Embora Edith insista que aí fica o baço. De qualquer ma­neira, não pretendo me aborrecer, mesmo que a luta no Senado seja brava.

— Por que deverá haver luta?

— Eles querem lutar. Portanto eu tenho que lutar também.

Mas eles... os republicanos... inventaram a idéia, se é que se pode dizer que alguém pensou nisso primeiro.

— E preferem acabar com ela do que nos ver ganhar o crédito pelo pacto. Ah, vai mesmo haver luta. Mas nunca vi alguém ganhar alguma coisa que valesse a pena sem ter que lutar. — Assim falou o chefe escocês ao seu clã na véspera de uma guerra de fronteiras.

Certamente toda a civilização ocidental está construída sobre concessões.

Blaise esperava perturbar o Presidente, e conseguiu. Wilson en­carou-o seriamente, até mesmo com hostilidade.

— Você andou conversando com o coronel House.

Blaise assentiu.

Citei exatamente as palavras dele.

— ... quando ele citou Burke para mim. Sim. Nós discordamos. Minha esposa diz que sou o homem mais obstinado da América.

O sorriso era leve, e não se podia dizer que fosse orgulhoso. — Mas sei o que vou ter que enfrentar. Lodge fará tudo para destruir a Liga ou qualquer coisa que eu proponha.

— Se houvesse uma votação agora neste Senado atual, o senhor venceria.

— Uma votação de dois terços? É o que preciso para aprovar um tratado.

Blaise assentiu. Burden explicara tudo; até mesmo com a nova maioria republicana, não tão segura, por causa da falta de confiabili­dade no apoio do Senador independente La Follette, havia suficientes republicanos e democratas leais para conceder ao Presidente o seu tratado. Blaise então deu ao Presidente a detalhada anatomia que Burden fizera do Congresso e de como seriam os votos. Para sua sur­presa, Wilson não fizera qualquer sondagem a respeito do estado de espírito do Senado. A estimativa de Burden quanto a esse ou aquele voto lhe pareceu estranha.

— Bem, tudo isto que você me conta é tranqüilizador, na teoria - disse finalmente. — Mas não se deve subestimar a esperteza de Lodge. Sabe, durante toda a conferência ele providenciou para que a imprensa e os delegados fossem sempre lembrados de que não te­nho o apoio do povo americano, que perdi a maioria no Congresso, que represento apenas a mim, e mais ninguém. Não dá para imaginar o efeito disso, e como é difícil dissipar as dúvidas das pessoas, principalmente quando se lida com pessoas que desejam o meu... o nosso fracasso.

Wilson recostou-se, o rosto de repente pálido e tenso.

— Atribuo tudo isso a um único homem, Theodore Roosevelt. — Esse nome nos lábios de Wilson soava como um palavrão. — Doente, no hospital, à beira da morte, ele conspirava com Lodge e Root para destruir esta nossa missão. Todos os três desejavam a Liga muito antes que eu aparecesse. Mas por causa da raiva e da maldade de Roosevelt, sim, maldade, ele não podia suportar que qualquer ou­tra pessoa pudesse ficar com o mérito de ter beneficiado o mundo. Não tinha a menor compaixão humana. Só se importava consigo mes­mo e com sua ridícula carreira. Francamente, considero a morte dele uma verdadeira bênção, e rezo para que nunca mais apareça, um mons­tro como ele, pregando a guerra sem razão.

Blaise ficou chocado com a intensidade do ódio de Wilson; mas não se surpreendeu. Durante a vida, Roosevelt tinha realmente feito todo o possível para destruir Wilson, e agora, na morte, graças a Lodge, a maldade persistia. Mas Blaise tinha também certeza de que o Presidente, envolto em glória, prevaleceria, como fizera em Paris contra oponentes muito mais experientes do que meros cavalheiros de Idaho, do Missouri e até mesmo de Massachusetts.

O telefone soou.

— Oi, garotinha — murmurou Wilson, transformado de súbito de profeta do Velho Testamento em marido amoroso. — Sim, claro que vamos ao show esta noite. Sim. — Wilson desligou. — Estavam com medo de que eu não tivesse gostado do programa de ontem à noite.

Um marinheiro, vestido de prostituta, fizera uma dança algo las­civa, e depois cutucara o Presidente sob o queixo. Os marinheiros ti­nham dado gargalhadas; os cortesãos presidenciais tinham ficado bo­quiabertos; o próprio Presidente ficara rígido como pedra.

— Estavam um pouco entusiasmados... — Blaise começou.

— Eu fiquei... — Wilson interrompeu-se e franziu o cenho. — Bem, não gostei, não. Por causa da minha posição essas coisas não podem acontecer. Mas pessoalmente fico aliviado ao ver que as pes­soas não me acham apavorante. Durante minha vida tive muito pouco contato com indivíduos, a não ser para ensinar, o que não é, de modo algum, uma atividade... amistosa, ou então para executar as tarefas de um governante, outra atividade que não é das mais simpáticas.

Wilson recostou-se e suspirou.

Sabe, eu teria me saído bem no teatro musical.

De repente ele relaxou os músculos do rosto e Blaise recordou a cena no Capitólio antes da declaração de guerra. Lentamente, Wilson sacudiu a cabeça. O rosto, totalmente frouxo, era idiótico e cômico. O corpo pendeu, complementando o rosto.

Sou o João Bobo — cantou. — Sou casado com a Maria Meia-Noite...

Com isso ele encetou uma espécie de dança de espantalho atra­vés do aposento, assobiando. Ao terminar, fez uma reverência.

Blaise aplaudiu com entusiasmo.

— Faça isto quando for ao Congresso, Sr. Presidente, e vai con­quistar o país.

Se eu fizer isso, me prendem. — Wilson riu. — Ou então me mandam para os palcos de Keith com a Maria Meia-Noite, o que de modo nenhum é o pior dos destinos.

Mais que nunca Blaise achava-se confiante de que o Presidente conseguiria facilmente dobrar o Congresso, para não falar do fantas­ma de Theodore Roosevelt.

 

[1] Tammany Hall — o Diretório Central do Partido Democrata, em Nova York. (N. da T.)

[2] Chautauqua — palestra ao ar livre, seguindo o modelo das escolas de verão da cidade de Chautauqua, no estado de Nova York. (N. da T.)

[3] O paraíso na mitologia nórdica. (N. da T.)

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"