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HOLLYWOOD / - P.2 Gore Vidal
HOLLYWOOD / - P.2 Gore Vidal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

H O L L Y W O O D

Um Romance da América nos Anos Vinte

Segunda Parte

 

A sala de descanso dos senadores era agora dividida ao meio por uma parede invisível. De um lado, os republicanos trocavam cochi­chos com seu líder Lodge, e no outro os democratas meditavam, sob a liderança benigna, embora não particularmente capaz, de Gilbert M. Hitchcock, Claude Swanson e o próprio Burden, em cuja opinião os três não eram os melhores agentes para conseguir a aprovação do tratado pelo Senado.

Do lado de fora, o soldado de plantão reunira precavidamente um bom número de camas de campanha e cobertores do exército, caso os senadores obstruíssem os trabalhos como tinham feito na véspera, 2 de março, quando La Follette de Wisconsin tomou a liderança ao explorar o direito de qualquer senador de discursar pelo tempo que desejasse. Ostensivamente, o decreto a ser descartado referia-se à concessão de reservas públicas de carvão e petróleo a interesses par­ticulares suspeitos. Mas, como o 65º Congresso era obrigado a en­cerrar em 4 de março, e como uma lei referente a sete bilhões de dó­lares em títulos ainda não tinha sido aprovada, La Follette e seus amigos liberais estavam ameaçando, na realidade, deixar o governo sem fundos até que o 66º Congresso se reunisse, em dezembro.

Como "Wilson não tinha intenção de convocar o Congresso entre março e dezembro, havia uma considerável urgência por parte da minoria democrata em providenciar para que os decretos necessários fossem aprovados e o Congresso fosse para casa. Se o Congresso vol­tasse para uma sessão extraordinária, Lodge e seus aliados consegui­riam, com toda calma, desmembrar o pacto de Wilson enquanto o Presidente ainda estivesse em Paris, trabalhando no tratado de paz definitivo.

Em plena saúde Burden apreciava esse tipo de manobra, mas agora ele estava no máximo em meia saúde. Na convalescença da gripe, ele sentia permanentemente um cansaço mortal e uma alar­mante tendência a cair em sono profundo não importava onde es­tivesse. Kitty lhe implorara que ficasse longe do Capitólio, mas o Presidente lhe implorara que ficasse em seu posto. De modo que agora ele estava sentado com Hitchcock no lado democrata da sala de descanso, os pés apoiados numa cama de campanha.

Até então, tudo que Burden e Hitchcock tinham tentado fazer não dera certo. La Follette e seus amigos tinham desistido de obstruir os trabalhos às 6:40h da madrugada de 2 de março, a pedido dos líderes do Partido Republicano, que não queriam que o partido fosse culpado se a lei não passasse. Houve uma barganha. La Follette levava a sério o roubo de propriedade pública; Lodge levava a sério a destruição do tratado de Wilson. Como líder partidário, Lodge pro­meteu ajudar La Follette mais tarde, se ele cessasse a obstrução. La Follette aceitou; a lei passou. Mas o financiamento do governo atra­vés de uma lei de crédito complementar de 840 milhões de dólares ainda estava pendente. O Senado adiara a sessão para as 10:00h da manhã de 3 de março, o que significava que só haveria 26 horas para conseguir dinheiro para pagar as dívidas do governo federal. Se o dinheiro não viesse, Lodge conseguiria o que queria: o Congresso seria obrigado a abrir na primavera.

Burden consultou o relógio. Eram agora 11:35h. Dentro de 12 horas, ao meio-dia de 4 de março, o Presidente viria ao Capitólio para assinar as leis que o Congresso tivesse preparado pafa ele.

— Marshall está disposto a nos dar a palavra. — Hitchcock olhou através da fumaça do charuto para Lodge, que pontificava num sofá de couro preto. Rodeado de senadores republicanos, ele tinha a aparência grandiosa do rei-filósofo.

— Mas eles não largam. Quando um termina, faz um sinal a outro para substituí-lo. E o vice-presidente nada pode fazer.

Vinda do outro lado das portas, de vaivém, Burden ouvia a voz ligeiramente rouca de... Francis, de Maryland? Sim: a expressão "rei Woodrow" estava sendo repetida vezes sem conta, para a alegria da galeria. Washington inteiro convergira para o Capitólio para di­vertir-se: Frederika e Caroline estavam sentadas lado a lado na ga­leria, e Burden sentia-se um pouco como um galo ao erguer os olhos para as suas galinhas, lado a lado, facilmente as duas damas mais distintas do lugar, agora que Evalyn McLean caíra no sono na sessão diplomática.

Às dez para meia-noite vou fazer minha tentativa. Avisei a Marshall que quando ele me der a palavra vou pedir uma votação.

Vamos rezar para que ainda haja quorum. Eles podem sair correndo para o almoxarifado.

Mandaremos o guarda de plantão atrás deles.

Não somos maioria. Hitchcock estava amargo.

La Follette entrou na sala. Não parecia cansado depois da obstru­ção de sábado. Um homem parrudo, de cabeça grande, muito eficien­te no debate e feroz na defesa dos interesses do povo. Burden sempre imaginara que, como a maioria dos populistas instintivos, La Follette tivèsse tendências pacifistas, e assim apoiaria a Liga. Mas nisso ele era mais progressista ao estilo de Roosevelt do que um verdadeiro homem do povo. Afinal, ele era mais La Follette, o histriónico guer­reiro solitário, do que qualquer outra coisa. Lodge usara inteligente­mente a objeção genuína de La Follette ao decreto do empréstimo para conseguir adiar a votação da lei de apropriação. La Follette con­cordara. Agora Burden perguntava-se que preço o outro pedira por sua colaboração.

Ouviremos sua voz magnífica esta noite, senador? Hitchcock perguntou com grandiloqüência.

La Follette deu de ombros e balbuciou:

Estou com uma pastilha na boca.

Então vamos ouvi-lo afirmou Hitchcock.

Vai discursar a noite inteira? Burden quis saber.

Se estiver suficientemente inspirado pelo meu assunto...

La Follette saiu para o plenário. Burden percebeu que Lodge es­tivera observando La Follette atentamente ansiosamente? Ninguém sabia qual era a estratégia dos dois, além daquela de impedir que o Senado votasse antes do recesso.

Burden foi até a porta e olhou para o plenário. A luz elétrica realçava mais que a luz do dia os verdes predominantes. O efeito era quase como olhar dentro de um aquário onde os senadores, como peixes grandes, flutuavam, e funcionários, como peixinhos, seguiam um, depois outro. O fatigado vice-presidente estava em seu lugar, o retrato do mau humor.

Um democrata tomou a palavra: Martin, da Virgínia. O ex-líder da maioria avisou os colegas sobre o pânico financeiro que haveria se a lei orçamentária não fosse aprovada antes do recesso. Ele foi elo­qüente. O republicano Lenroot, de Wisconsin, ergueu-se para perguntar: se a lei não passasse, o Presidente convocaria o Congresso antes de voltar da França?

Martin foi enfático:

— Em duas ocasiões e em bom inglês ele disse que tinha decidido e sua decisão era definitiva: em nenhuma circunstância o Con­gresso seria convocado antes de sua volta.

Burden cruzou o olhar com o do vice-presidente. Marshall assentiu. Como combinado, Burden tomaria a palavra pouco antes da meia-noite; e pediria uma votação. Burden entrou no plenário e ficou um momento sentado em seu lugar. Frederika sorriu para ele; os ca­belos dela estavam começando a crescer novamente, não louros, mas brancos sob a peruca temporária. Caroline endereçou-lhe um sorriso fraterno.

Atrás de Caroline, Alice Longworth estava sentada com sua pri­ma Eleanor e o senador Borah. Alice, como sempre, era a única que falava, e Eleanor parecia embaraçada. Eleanor era tão favorável a Wilson quanto a prima era contra. Burden perguntou-se como a ami­zade, ou, mais especificamente, o parentesco, sobreviveria a tanta pai­xão política. De súbito o senador Harding sentou-se ao lado de Burden. O belo rosto estava corado — ele gostava de beber.

— Juro que não consigo perceber o sentido de tudo isto — de­clarou. Sacudiu a cabeça melancolicamente. — Seria mais fácil sen­tar-se e estudar o que é possível e o que não é, no tratado, e chegar a um acordo.

— Não acho que isso seja fácil, Sr. Harding. O Presidente deu sua palavra aos Aliados que esse era o motivo por que entramos na guerra, esse tratado, essa Liga das Nações, então eles lhe concederam o tratado, e é por isso que ele não pode chegar e mudar tudo agora.

Burden consultou o relógio: faltavam cinco minutos. O vice-pre­sidente também consultava o relógio. Lenroot ainda estava discursando.

— Bom, não estou convencido de que o jeito dele seja a me­lhor coisa do mundo, e ainda não sei por que entramos nessa guerra estúpida. Isto é cá entre nós. — Harding sorriu. — Naturalmente, em público sou a favor da democracia para todo mundo em toda parte cm todos os minutos. Mas acho que grande parte desse bolchevismo que está acontecendo na Europa, e começando aqui também, é obra do Sr. Wilson.

Burden de repente tomou consciência da presença de Lodge no recinto. A galeria aplaudiu quando Lenroot cedeu a palavra a Lodge, que se dirigiu ao Senado com um documento na mão. Isto não estava de acordo com os planos de Burden.

A esplêndida voz bostoniana de Lodge estava aguçada pela tensão.

— Sr. Presidente, desejo tomar apenas um momento do tempo do Senado. Desejo apresentar a seguinte proposta, que é bastante curta. — Passou a ler: — O Senado considera que, embora seja seu sincero desejo que os países do mundo unam-se para promover a paz e o desarmamento geral, a constituição da Liga das Nações, na forma atualmente proposta pela Conferência de Paz, não deverá ser aceita pelos Estados Unidos...

Os partidários de Wilson arfaram nas galerias; os outros aplau­diram.

Burden pôs-se de pá e acenou pedindo a palavra. Lodge insistiu, enquanto Marshall pedia ordem:

— ... seja imediatamente dirigida à rápida conclusão da urgente tarefa de negociar os termos da paz com a Alemanha...

Burden conseguira atrair a atenção de Marshall tarde demais.

— ...e que a proposta de uma Liga das Nações para garantir a paz mundial deveria então ser cuidadosamente examinada.

Burden tinha certeza de que não havia senadores em número sufi­ciente para aprovar essa ou aquela outra medida com esperanças de sobrevivência até uma votação posterior e mais completa; além disso, muitos dos senadores ali presentes tinham sido derrotados em novem­bro, e os que tinham sido eleitos ainda não haviam tomado posse. Como Lodge sabia que sua proposta não tinha qualquer efeito até a abertura do próximo Congresso, qual seria o seu objetivo? Lodge disse:

— Peço unanimidade na aprovação do atual exame desta proposta.

Burden sabia reconhecer uma armadilha parlamentar. Não havia possibilidade de aprovação unânime, nessa ocasião ou em qualquer outra. Burden voltou-se para Harding, mas Harding desaparecera. Burden ergueu-se e começou a descer o corredor central, pronto para fazer uma objeção quanto à propriedade da medida. Mas Claude Swanson, da Virgínia, conseguira atrair a atenção do vice-presidente, e declarou:

— Protesto contra a introdução da proposta.

Swanson mordera a isca!

Lodge permanecera de pé durante o episódio, a venerável cabeça branca inclinada para um lado, como um pássaro atento; depois as­sentiu com um gesto grave, como se finalmente lhe fosse esclarecido um ponto importante que antes lhe era impossível compreender. Swanson sentou-se.

Aparentando a maior humildade que seu perfil romano lhe per­mitia, Lodge fez uma mesura para Swanson.

O protesto foi feito, e eu o aceito. Desejo apenas acrescentar, como explicação, o seguinte.

Burden sentiu um arrepio: a armadilha funcionara. Em tom de satisfação Lodge recitou os nomes dos senadores republicanos que teriam votado a favor de sua proposta se estivessem presentes e hou­vesse uma votação. Lodge leu os nomes de 37 senadores, mais do que um terço necessário para derrotar a Liga das Nações. Quando as ga­lerias começaram a entender o que estava acontecendo, ouviram-se aplausos; e então vaias. O vice-presidente pediu ordem.

Lodge deixou a tribuna e então recomeçou a obstrução de La Follette, com Sherman de Illinois falando em primeiro lugar. Discursa­riam sem parar a noite inteira até o encerramento ao meio-dia. Não haveria lei orçamentária. Haveria uma sessão extraordinária enquan­to Wilson estivesse fora do país. Não haveria a Liga das Nações se Lodge conseguisse segurar seus. 37 senadores, fato de que Burden du­vidava. Até o próprio Lodge era favorável a uma Liga. O problema era tão simples quanto insolúvel: a Liga de Wilson, aprovada em Paris pelos Aliados, não seria aceita, ao passo que a Liga de Lodge era tão deliberadamente vaga que até mesmo o mais extremado isola- cionista poderia ser capaz de apoiá-la no momento adequado.

Na sala de descanso Lodge presidia a conversa. Quando Burden foi até seu armário, onde guardava uísque e soda, encontrou Brandegee fazendo a mesma coisa.

A idéia foi minha disse este com simpatia. Do abaixo- assinado.

O quê? Além de cansado, Burden sentia-se estúpido.

As 37 assinaturas.

Brandegee serviu-se de sua própria bebida escura, enquanto Burden bebia diretamente da garrafa e sentia-se de imediato menos cansado, porém não menos estúpido.

Não deixe de contar ao Presidente pediu Brandegee. Não quero que Cabot fique com todo o crédito.

Crédito? Por colocar o acordo em risco?

Burden soou mais escandalizado do que pretendia. Na realidade, simpatizava bastante com aquele jogador político profundamente con­servador e ainda mais profundamente cínico que lhe explicou que no domingo de manhã encontrara correspondência acumulada em sua casa, inclusive uma carta de um desconhecido implorando aos sena­dores republicanos que aprovassem algum tipo de resolução decla­rando a Liga inaceitável na forma atual; caso contrário, Wilson vol­taria a Paris e diria que o Senado e a nação o apoiavam.

Depois que li essa carta, fui direto à Avenida Massachusetts e expliquei tudo a Cabot, e disse-lhe que poderia conseguir mais de um terço do Senado, o suficiente para derrotar o tratado, e então ele podia pedir uma votação no último minuto de 3 de março...

Ele jamais teria conseguido uma votação disse La Follette, entrando no recinto.

Ele vinha do saguão, onde presumivelmente estivera no banheiro, esvaziando-se para a obstrução que se seguiria. Ele e os amigos dis­cursariam a noite inteira e toda a manhã seguinte até o encerramento da sessão ao meio-dia.

Sabíamos que não conseguiríamos uma votação continuou Brandegee. Sabíamos também que um de vocês cometeria o erro de protestar, o que o irmão Swanson fez, e então Cabot aceitaria humildemente o protesto e diria que, naturalmente, ele compreendia, pois o Senado não estava lá inteiro, mas que, se estivesse, os seguin­tes senadores tinham declarado que votariam contra a Liga do irmão Woodrow, e foi assim que conseguimos colocar o abaixo-assinado em ata, e agora poderemos enviá-la para nossos muitos amigos e companheiros patriotas rio país inteiro.

Belo trabalho comentou Burden, sem ironia.

Achei que você ia gostar. Respeito o irmão Cabot, mas não quero que ele fique com todo o crédito pelo meu ato de salvar o país no último minuto das mãos de um tirano em potencial e seus aliados decadentes na velha Europa, tão diferente de nossa terra en­solarada, onde nenhuma sombra cai.

A não ser que seja abatida... pelo irmão Frank Brandegee.

Brandegee fez uma mesura e foi juntar-se aos felizes republica­nos no extremo oposto do aposento enfumaçado.

Hitchcock e Swanson conversavam sombriamente com o vice-presidente.

Lamento muito fez Burden. Mas antes que eu pudesse pedir a votação, Lodge tomou a palavra.

Não tem importância respondeu Hitchcock, esfregando o rosto. De um jeito ou de outro eles iam conseguir colocar aquela maldita coisa em ata.

Se eu não tivesse protestado.. . — começou Swanson.

Mas o vice-presidente interrompeu-o.

— Você protestou porque tinha que protestar. Vou para casa. Vou entregar a presidência da mesa a companheiros que sabem que não vai haver votação esta noite ou amanhã de manhã.

Que é que dizemos ao Presidente? —- perguntou Hitchcock.

Diga "bom dia" — respondeu o vice-presidente.

Era um homem de cabelos e bigodes prateados que, como a maioria de seus predecessores, achava cruel o capricho do destino que fazia dele para sempre o segundo. Lá vai o vice-presidente Marshall, dissera alguém recentemente, sem coisa alguma na cabeça a não ser a saúde do Presidente.

Burden concordou em passar a noite capitaneando a minoria de­mocrata de uma cama armada no saguão. Se acontecesse alguma coisa, ele seria despertado imediatamente. Mas nada aconteceu; e ele acor­dou com um susto vendo um contínuo de rosto descansado inclinado sobre ele.

Já é de manhã, senador — disse ,o rapaz.

Burden inclinou a cabeça gravemente, como se estivesse medi­tando e não dormindo, e perguntou-se por que era sempre tão desa­gradável ser apanhado dormindo.

No banheiro amplo, com seus altos mictórios de mármore e pias gigantescas, ele barbeou-se enquanto outros senadores exaustos en­travam e saíam. Água fria no rosto era o revigorante preferido. A obstrução ainda continuava. La Follette discursara durante muitas horas, a respeito de muitos assuntos. Quando Burden entrou no cor­redor, ouviu a voz rouca e rascante vinda do plenário. Dirigiu-se apressado à sala do Presidente.

O Capitólio estava apinhado de jornalistas, diplomatas, cidadãos, todos ansiosos para apreciar o grande obstrutor e o constrangimento de Woodrow Wilson.

O Presidente estava sentado sob um lustre de cristal, atrás de uma escrivaninha sobre a qual pousariam os decretos de última hora para a sua assinatura.

Senador Day!

O sorriso era cálido. Wilson não iria dar a republicano algum a alegria de vê-lo perturbado. Hitchcock estava ao lado dele. O almi­rante Grayson poetava-se logo atrás. Burden tornou a questionar em pensamentos a sabedoria política de ser sempre visto com seu médico.

Infelizmente não conseguimos pagar o governo desta vez.

Bem, tenho certeza de que o Sr. Glass — ele assentiu para o pequenino gnomo que substituíra o Sr. McAdoo — conseguirá pedir emprestado o suficiente entre agora e dezembro para pagar a conta de luz da Casa Branca.

Posso também transformar pedras em pães e peixes. — O sotaque virginiense era ácido.

Wilson pôs-se de pé e acenou para que Burden fosse juntar-se a ele a alguma distância dos outros.

Diga-me uma coisa — falou, em voz baixa. — Lodge fez alguma referência à Liga nos envolver com... como é que ele diz?' "o socialismo e a anarquia internacionais"?

— Ontem à noite, não. Ele foi muito vago. Tem que ser, pois é favorável à Liga, à qual se opõe.

Salomônico. Agora estou sendo pressionado a envolver os Estados Unidos numa guerra contra o bolchevismo...

A Rússia?

Em particular, mas também o socialismo internacional em geral. Esta noite vou discursar em Nova York. Vou dizer que, se­gundo a minha interpretação da Carta de Direitos da Virgínia, qual­quer povo tem direito ao tipo de governo que bem desejar, gostemos ou não. Afinal, não creio que o atual rei George realmente nos aprove. A lei devolvendo as ferrovias aos seus proprietários passou?

— Não. O Sr. La Follette estava ocupado demais dando-nos a sua idéia de um mundo futuro e melhor. Ou pelo menos foi o que me disseram. Dormi numa cama de armar. — Burden baixou os olhos para o Presidente, que era meia cabeça mais baixo que ele. — Quan­do é que o senhor volta de Paris?

— Em junho. — Wilson antecipou-se à pergunta seguinte: — Não vou convocar uma sessão extraordinária antes de voltar, mesmo sé nenhum de nós receber seu salário.

— Vai ser duro.

Wilson fez uma careta e levou a mão à mandíbula.

— Meu dente. Sempre, quando uma pessoa vai viajar, um den­te cria problema. Vamos esperar que os dentistas da Marinha...

Wilson interrompeu-se. O vice-presidente, Lodge e Hitchcock entravam, cada um deles o retrato da auto-importância e do cansaço.

— Sr. Presidente, o 65º Congresso encerrou-se às 11:35h — anunciou Marshall, acrescentando, em tom brincalhão: — Não sine die, mas sine Deo.

— Isto depende, senhor, de qual Deus o senhor serve. — Lodge soou amavelmente carola; e não tirou os olhos do Presidente, sua caça.

Mas Wilson ignorou Lodge. Ergueu a caneta, expectante.

— Há alguma lei aguardando a aprovação do Executivo? — perguntou formalmente.

Lodge declarou que não havia. Marshall disse:

— Há a emenda à proibição, Sr. Presidente. Mas não está pron­ta. Há uma cláusula segundo a qual se os estados não a ratificarem em sete anos a maldita coisa está acabada. Vamos enviá-la ao seu navio, onde o senhor poderá fazer um brinde à proibição de álcool nos Estados Unidos.

— Só farei o brinde fora dos nossos limites territoriais. — Wilson então acenou para que um rapaz jovem e atento se aproxi­masse. Apresentou-o a Burden. — Acho que precisa conhecer meu novo procurador-geral, o Sr. Palmer, e prepará-lo para sua admissão a esta igreja sine Deo.

Burden apertou a mão de Palmer.

— Vou escoltá-lo pelo labirinto do Senado.

Wilson dirigiu-se devagar para a porta. Então voltou-se.

— Cavalheiros, nós nos veremos em dezembro. Desejo-lhes um bom dia.

Lodge tinha os olhos fixos nas costas de Wilson enquanto esse se distanciava pelo corredor. Grande maldade estava sendo prepa­rada para Wilson. Burden perguntou-se: será que para o país também?

 

Aos 35 anos, Cissy Patterson, a antiga — ainda o seria? ninguém sabia — condessa Gizycki, era tão bonita e tão original quanto fora aos 19, quando seus pais compraram-lhe um título polonês e enviaram- na de seu palácio em Dupont Circle para três anos de casamento in­feliz. Agora os cabelos de Cissy eram mais vermelhos do que quando ela era menina, e a maturidade dera-lhe um ar distintamente voluptuo­so, um pouco prejudicado pela inteligência. Caroline considerava-a, se não exatamente uma filha, uma irmã mais jovem.

— Ah, como eu invejo tudo em você! — exclamou Cissy.

Ela observava o escritório de Caroline no prédio do Tribune, com vista para os bondes, os engarrafamentos e os cinemas da Rua F. No momento, um filme produzido por Emma Traxler estava sendo exibido com lotação sempre esgotada no Capitol, ao passo que a própria Emma Traxler podia ser vista no vizinho Mercury, num "veí­culo muito especial", como Thomas Ince denominara o que parecia ser um carro fúnebre para quaisquer ambições que ela pudesse ter tido como estrela do cinema. Seu papel era o de uma adúltera da sociedade na virada do século, o que ela própria fora na vida real. Mas no filme, diferentemente da vida real, ela fora expulsa da so­ciedade e se jogara de uma janela do Waldorf-Astoria. O enredo tinha sido roubado da Sra. Wharton, que se queixara com Blaise, que con­tara a Emma, que avisara Thomas Ince, que dissera: "Ela que pro­cesse." A beleza bastante madura de Emma Traxler tinha sido reco­nhecida por todos, mas a história não era boa, e a própria Emma — isto é, Caroline — ficara algo perturbada por não ter percebido antes os defeitos da história. Porém Tim estava na Califórnia durante as filmagens em Nova York.

— Você precisa comprar um jornal. Afinal, tem a tinta certa no sangue — Caroline declarou. — Seu avô, seu pai, seu irmão, seu primo, todos lançaram jornais. Por que não você? É facílimo.

Sei que é, mas comprar o quê? Hearst tem o Herald de manhã e o Times à tarde. Você e Blaise têm o Tribune e não querem vendê-lo, certo?

Certo.

— Fico pensando no que vai acontecer com o Post se Ned final­mente beber até morrer.

Evalyn vira editora. Por que não começar uma coisa nova?

Caroline ergueu o exemplar do New York Daily News que Cissy lhe trouxera. O irmão mais velho de Cissy, Joseph, fundara-o em ju­nho, com alguma ajuda do primo Robert McCormick, agora dirigindo o jornal da família em Chicago. O News tinha a metade do tamanho de um jornal comum — tamanho tablóide, como era chamado, e Hearst achara graça na idéia: "Ninguém quer um jornal onde não caiba um monte de fotos." Mas dessa vez a esperteza dó Chefe em assuntos jornalísticos falhara. O tablóide de Joe Patterson foi um sucesso instantâneo, e, assim como o irmão de Caroline enciumara-se com o sucesso não tão instantâneo de Caroline com o Tribune, agora Cissy sentia ciúmes do sucesso de Joe, o primeiro na terceira gerarão. Até agora, o gigante da família tinha sido o avô deles, Joseph Medill, cujo Chicago Tribune passara para o genro, pai dela, e agora para o neto, primo dela, Robert R. McCormick.

— Os rapazes ficaram com Chicago e Nova York. Então por que não posso ficar com Washington?

— Você tem dinheiro para iniciar um tablóide aqui?

— Para competir com você e Hearst? Não. Aquele polaco filho da puta está me custando uma fortuna.

— Mate-o.

— Tente encontrá-lo. — Cissy olhou com raiva para o retrato pintado de Caroline, Blaise e o Sr. Trimble, editor deles. — Pelo menos consegui tirar Felicia dele.

A batalha entre pai e mãe tinha atraído a atenção da imprensa popular durante anos. A mãe finalmente vencera, mas o custo fora alto. Cissy agora vivia solitária na casa do pai em Dupont Circle; e sonhava com jornais.

A secretária anunciou a chegada de Blaise. Caroline assentiu: ele podia entrar. Desde o início eles tinham combinado que um jamais entraria de surpresa na sala do outro.

Cissy adorou ver Blaise. A reputação dela tinha sido tão prejudicada por sua guerra conjugal que ela então se pusera, perversa­mente, a prejudicá-la ainda mais aos olhos dos aborígines de Was­hington. Era moderadamente promíscua e bebia "como um homem", como se dizia, e às vezes jogava-se, também como um homem, sobre outras de seu sexo. Embora fosse importante demais em Washington para ser esnobada, a menção de seu nome provocava um lamurioso coro grego de mexericos, na maioria inventados, e todos eles tão agra­dáveis a Caroline quanto indiferentes à inquieta e disposta Cissy.

— Acho que vou escrever um romance. Vai se chamar Telhados de vidro.

Em quem você vai jogar pedras?

— Em Alice Longworth; quem mais poderia ser? E naquele animal polonês. Implorei ao reverendo Woodrow que dividisse a Po­lônia até não sobrar coisa alguma.

— Imagino que ele tenha achado graça no seu humor delicioso — fez Blaise.

Ele gostava de Cissy, que por sua vez, Caroline achava, tinha um certo fraco por Blaise.

Ele não se impressionou. Viu o jornal do Joe? — Cissy ergueu o Daily News.

Blaise assentiu.

— Acabo de ganhar uma aposta com Hearst. A respeito da cir­culação. Ele disse que o público jamais compraria um tablóide.

— Certamente está comprando este aqui. A única coisa que eu faço é ter inveja dos outros. Este é um sinal de falta de caráter, eu sei. — Cissy parecia satisfeita consigo mesma. — Ele chama a si mesmo de capitão Patterson. — E acrescentou, com certa malícia: —

É como a Guerra Civil, hão é? E meu primo Bob quer ser chamado de coronel McCormick.

— Bem, eu sou apenas o Sr. Sanford.

Monsieur, é mais adequado. — Cissy pôs-se de pé. — Há um jornal em Baltimore...

Não! — exclamou Caroline. Blaise comprou-o e tornou a vendê-lo anos atrás.

Há uma maldição sobre aquele jornal — explicou Blaise. — Ninguém o lê, e as oficinas sempre pegam fogo.

— Que sorte a minha ter amigos tão experientes! Diga a Millicent que vou ligar para ela — Cissy recomendou, e retirou-se.

— Millicent? — Blaise perguntou a Caroline.

Smith. Inverness. Ela vai voltar a morar em Washington. Está hospedada comigo até encontrar um lugar. — Caroline olhou para a marquise do cinema no final da rua, onde conseguia distinguir o "xler" de seu outro nome. — Tim vai comprar uma casa em Los Angeles.

— Para ficar perto da fronteira mexicana?

Não acredito que o Departamento de Justiça ouse prendê-lo.

— Eu ousaria — afirmou Blaise, olhando pensativamente para o Daily News que segurava em uma das mãos, o Tribune na outra.

— Imagino que a situação vai piorar — prosseguiu Caroline. George Creel acha que vai. Ele diz que Palmer vai candidatar-se a Presidente...

Por que não? Todo mundo está se candidatando...

Dos dois, Blaise era o mais suscetível à propaganda anticomunis­ta que agora varria o país, os boches substituídos pelos bolcheviques como o novo Satã.

Naquela primavera Tim tinha sofrido um duro golpe quando seu filme sobre os fura-greves fora exibido e, para horror de Ca­roline, ele não apenas era favorável aos grevistas, ao trabalhismo organizado e à semana de oito horas, mas também zombava do pe­rigo bolchevique. O filme fora retirado de cartaz imediatamente, e Tim, indiciado sob a Lei de Espionagem, uma figura da legislação singularmente abrangente, que podia ser usada para prender qualquer pessoa que o zeloso procurador-geral resolvesse castigar. Caroline usara sua influência. Como os tribunais estavam ocupadíssimos, o caso poderia ser adiado até prescrever se o procurador-geral fosse menos zeloso. Caroline tinha a impressão de que Palmer não desejaria ofen­der o Tribune; por outro lado, o Tribune não ousaria ofender Palmer,

cuja casa na Rua R tinha sido dinamitada dois meses antes, tornan­do-o quase um mártir do capitalismo, ao passo que os seus vizinhos, os Franklin Roosevelt, receberam quilômetros de espaços nos jornais: o galante Franklin telefonara para a polícia, enquanto Eleanor, a quem logo juntou-se sua deliciada prima Alice, dava consolo à fa­mília Palmer, que estivera dormindo nos fundos. Ninguém sabia quem tinha cometido o atentado, mas suspeitava-se dos- comunistas. O cri­minoso explodira também, deixando atrás de si, misteriosissimamente, duas pernas esquerdas. O Tribune espojara-se nos detalhes anatômi­cos, e uma grande nação estremeceu à idéia de todos os seus homens públicos, um por um, explodindo durante a noite. Radicais foram presos em toda parte, ao passo que o Departamento do Trabalho aproveitava-se agora da Lei da Sedição, promulgada durante a guerra, que dava ao secretário do Trabalho o poder de deportar os cidadãos nas­cidos no estrangeiro, cuja aparência e discurso ele considerasse per­turbadores.

— Por que Tim fez isso?

Blaise, delicadamente, não lhe perguntara isso antes; mesmo assim ela ainda não tinha pensado numa resposta.

Bem, ele... é um radical, eu acho.

De Boston? Irlandês? Católico?

— Pode-se mudar. Ele mudou. Acho que começou quando man­daram aquele produtor para fazer um filme contra a guerra. Mas não sei. Nunca conversamos realmente sobre isso.

Acha que ele é comunista?

— Duvido. É independente demais para ser qualquer coisa. — Caroline mergulhou de cabeça: — Ele quer que eu me mude para a Califórnia.

Ela encarou Blaise, que parecia genuinamente surpreso... e feliz?

Você não vai.

— Talvez. Acho que posso estar cansada disto — indicou, va­gamente, o retrato dos três editores do Tribune — por algum tempo. Gosto dos filmes...

E do clima. Todo mundo sempre diz isso.

Na verdade, não gosto do clima. É meio bolorento. Mas os filmes ainda são tão... fluidos, e ainda se pode fazer alguma coisa nesse campo.

É melhor agir depressa. Os judeus tomaram conta de tudo.

O desafio é este. De qualquer maneira, Hearst está lá, ou logo estará, diz ele, assim que 1920 estiver para trás...

— E ele se mudar para a Casa Branca.

Mais provavelmente para San Simeon. Está mais rico do que nunca, agora que Phoebe morreu... e muito mais doido, também.

O Sr. Trimble foi anunciado. Caroline não conseguia acreditar que aquele velhinho frágil que não conseguia postar-se ereto tinha sido o bonito rapaz ruivo de 1900. Ela estaria também tão mudada aos olhos dele?

— A reunião terminou — declarou Trimble, acomodando-se lentamente em sua cadeira costumeira ao lado da mesa de Caroline. O ventilador elétrico ficava diretamente sobre ele, movimentando o ar pesado. — Recebi o primeiro telefonema, de um senador que estava lá e que ficará anônimo. — Trimble ainda adorava informa­ções confidenciais, para não mencionar as notícias que o Tribune conseguia dar antes que qualquer outro jornal. — O Presidente perdeu o controle, parece. Toda a Comissão de Relações Exteriores estava presente: Lodge, Knox, Borah.

Caroline perguntou-se qual deles teria telefonado para Trimble, que apreciava Lodge mais que qualquer dos Sanford o fazia.

Perdeu controle, como? Blaise sentou-se na mesa de Ca­roline, sabendo que isso a irritava.

r Fizeram muita pressão a respeito de Xantung. Por que ele fez um acordo com os japoneses? Ele respondeu que ele próprio também não estava muito satisfeito com aquilo, o que soou como fraqueza. Então Borah começou a interrogá-lo sobre todos os tratados secretos que. os Aliados tinham feito, e Wilson não conseguiu lembrar-se de quando ouviu falar deles pela primeira vez, e então, quan­do Borah perguntou se ele sabia dos tratados quando lançou os Qua­torze Pontos, ele disse que não, o que foi uma loucura, pois os bolcheviques já os tinham tornado públicos e todo mundo sabia. Os senadores ficaram meio espantados.

Foi isso que vieram fazer: ficar espantados disse Caroline, subitamente solidária com Wilson.

Como foi que terminou? quis saber Blaise.

Foram todos almoçar, depois de três horas e meia de interrogatório. Trimble tirou do bolso uma folha de papel. Ele ficou completamente sem graça quando lhe disseram que Lansing tinha dito que os japoneses teriam entrado para a Liga mesmo sem o acordo de Xantung.

Você escreveu o editorial?

Trimble assentiu; Caroline pegou o papel da mão dele, leu-o rapidamente e entregou-o a Blaise, que começou a reescrevê-lo en­quanto lia. Trimble suspirou.

— Acho que a Liga é inútil. Pelo menos para nós — declarou.

Caroline sentiu uma leve onda de raiva.

Porque vocês, americanos, querem ter liberdade para anexar as jazidas de petróleo mexicanas...

Diga nós, americanos, chérie — interrompeu Blaise em tom calmo. — Nós também queremos a Sibéria, mas se não conseguirmos não queremos que os japoneses a tenham, de modo que vamos todos entrar para a Liga e discutir.

Pode ser tarde demais. Ambos estaremos na Sibéria — disse Trimble. — E eles têm mais soldados do que nós. De modo que quando a Rússia se dividir...

Pronto.

Blaise entregou a página a Caroline, que leu e concordou: a Liga era a esperança do mundo. Sem a Liga, haveria outra guerra com a Alemanha dentro de trinta anos, por causa da paz cartaginesa sendo imposta pelos Aliados, que não apenas tinham rompido os termos do armistício wilsoniano mas agora pretendiam levar a Ale­manha à falência com as indenizações. Caroline e Blaise estavam sempre de acordo a respeito da selvagem inclinação da velha Europa para jogos de capa-e-espada. Mas, tendo a Europa uma tendência fatal a mergulhar na barbárie, os Estados Unidos ainda não tinham atingido uma civilização da qual decair. Caroline rezava para que o pomposo professor fosse capaz de segurar as rédeas do que ainda era, em essência, um país de camponeses ignorantes, supersticiosos e descabidamente orgulhosos de sua fácil proeminência.

Trimble pegou o editorial corrigido e saiu mancando da sala.

Acho que precisam de um outro sistema de governo aqui — comentou Blaise, descendo da mesa.

Wilson também acha. Ele ainda quer um governo parlamenta­rista. Depois do seu mandato, é claro. Alguma notícia de Saint- Cloud?

— O hospital foi desativado. Estará tudo pronto para nós na primavera.

Vou passar a Páscoa lá. Você também?

— Provavelmente. — Blaise sorriu. — Mas você não vai.

— Por que não?

— Porque você estará em Hollywood com o seu homem. — Imbecil!

Millicent Smith, condessa de Inverness, parecia um galeão com velas de crepe-da-china cor-de-rosa e amarelas, agora enfunadas pelo quente ar de agosto. Duas portas-janelas abriam-se para o pequeno jardim nos fundos da casa de Caroline em Georgetown. Ali, todos os tipos de hera cresciam em desordem, e nenhuma flor brotava, por causa da densa sombra de uma enorme magnólia. Em meio à hera, exércitos de ratos dedicavam-se, como os europeus, à guerra.

Caroline! Tenho recados para você. Em algum lugar. Héloise foi ao médico. Vamos jantar em casa? Eu me esqueci.

Vamos, sim. Só nós duas.

Caroline serviu-se uma faça de vinho. Millicent bebia gim puro em grandes quantidades, sem qualquer efeito daninho.

Encontrou uma casa?

Millicent descreveu as que tinha visto e reclamou ;dos preços, como todo mundo fazia, inclusive a maioria dos operários do país, que estavam em greve, inspirados, segundo o procurador-geral, por Moscou. Millicent tinha almoçado com Alice Longworth, sua rival na Casa Branca.

— Ela está de péssimo humor. — O humor da própria Millicent melhorou consideravelmente ao pensar nisso. — Nick nunca está em casa. Ela reclamou da bebida dele...

— Então ela tem sorte por ele nunca estar em casa' — disse Caroline, perguntando-se se ficaria mesmo em Hollywood.

— Mas com quem ele está quando não está em casa? Esta é a questão. Naturalmente fingi que não sabia dos boatos, e naturalmente ela não disse coisa alguma sobre eles. Ela é tão política, não é?

— Todos nós somos. Isto é Washington.

— Agora. Mas não na minha época. Quando estávamos na Casa Branca, era considerado falta de educação falar de política em públi­co. Como dinheiro, você sabe. Mas acho que ele mudou tudo isso.

O coronel Roosevelt?

Millicent assentiu.

— Para implicar — declarou, rindo. — Douglas Fairbanks faz isso o tempo todo. Acho que ele pensa que é Teddy Roosevelt. É muito atraente, sabe?

— Todas as mulheres do mundo acham isso.

Caroline achava difícil levar a sério qualquer dos grandes galãs da tela. À parte suas proporções de bonecos, ela nunca conseguiria relacionar-se de modo pessoal com um rosto que todos conheciam, e que o próprio dono jamais conseguia esquecer que todos conheciam, mesmo se acontecesse o improvável fato de tentarem esquecer. Em­bora os rostos dos políticos fossem muitas vezes tão conhecidos quan­to os dos atores, seus donos eram essencialmente naturezas-mortas, ao contrário do ator, cujo rosto ao vivo e em movimento era sempre mais interessante que uma foto eternamente fixa na primeira página de um jornal.

Nunca vou ao cinema declarou Millicent. Simplesmente gosto da crueza da vida lá no Oeste. O excesso. A formalidade. Tão parecido com Londres durante a temporada!

Caroline jamais conseguira acompanhar com facilidade o fluxo de pensamentos de Millicent, portanto nem chegou a tentar.

De qualquer maneira, o Sr. Fairbanks está envolvido com a Srta. Pickford.

Ele me deu uma rosa. Millicent sorriu secretamente para seu gim.

— Isto já é muita coisa disse Caroline, com suprema justiça.

Você precisa trabalhar com ele num filme.

Millicent conhecia o segredo de Caroline. Aliás, a essa altura a maioria de seus amigos conhecia. Porém, graças à sua posição de dona de jornal, a imprensa amavelmente a deixara em paz: cão não come cão, no dizer do Sr. Trimble.

Sou velha demais para ele disse Caroline em tom solene.

E ele é velho demais para ser meu filho.

É tarde demais para eu começar a representar?

É. Caroline foi cruel.

A Emma real apareceu, o rosto avermelhado pelo calor.

Conseguimos! A tempo de jantar, se não houver problema.

Claro que não há. Caroline beijou a face da filha. Quem é nós?

Não lhe contei? É Giles.

E Giles entrou na sala. Professor-assistente de história em Bryn Mawr, Giles Decker era dez anos mais velho que Emma. Era louro, robusto e eunucóide, um tipo que sempre atraíra a garota, que se sentia intimidada por homens atraentes, nenhum dos quais, por sua vez, lhe tinha alguma vez presenteado com uma rosa. Foram feitas as apresentações. Millicent controlou-se fidalgamente e deu um sor­riso bondoso ao rapaz. O sorriso bondoso tornou-se extasiado quando o professor Decker revelou que fizera sua tese a respeito do tio de Millicent.

— Principalmente sua política externa.

— Ele tinha isso? — Caroline perguntou.

O tio tinha sido Presidente nos dias ociosos antes que o império tivesse agarrado pelo cangote a república adormecida.

— Não seja rude! — Millicent soou como Alice Roosevelt quando alguém insinuava que o pai dela não era feito de mármore divino, mas de argila humana. — Nós tínhamos enormes quantidades de política externa. A Nicarágua, por exemplo. Sempre. Supurando, como titio dizia. E a China, nós abrimos a China, não abrimos, professor Decker?

— Na realidade, não, Lady Inverness, o Presidente não fez isso. Na verdade, ele...

— Está vendo? — interrompeu Millicent.

Ela serviu-se mais gim, e dessa vez acrescentou angustura. Como uma aurora cor-de-rosa, pensou Caroline, que percebeu que não teria tempo de banhar-se antes do jantar antecipado, ditado pela ausência da cozinheira, cuja substituta tinha medo de ir pafa casa no escuro.

— É tão bom saber que alguns jovens lembram-se de nossa herança... Mas até mesmo os imigrantes estão interessados em nós. Pelo menos alguns deles. Quando sugeri ao Sr. Zukor que a vida de titio daria um filme maravilhoso para o Sr. Fairbanks, o Sr. Zukor ficou muito interessado.

— Tenho certeza de que ele estaria interessado, agora que o Sr. Fairbanks iniciou seu próprio estúdio com a galinha dos ovos de ouro do Sr. Zukor, Mary Pickford. O Sr. Zukor faria qualquer coisa para ter seus astros de volta. Como ele diz, os internos estão dirigindo o hospício.

Todos os três perguntaram:

— O quê?

E Caroline explicou que quando Fairbanks, Pickford e Chaplin, com D. W. Griffith, fundaram sua própria empresa produtora, a United Artists, Zukor fizera esse comentário famoso e nem um pouco jocoso. Afinal, a Famous Players-Lasky de Zukor era o maior estúdio, graças à sua propriedade de centenas de casas de cinema onde ele podia exibir, se quisesse, apenas seus próprios filmes — uma política conhecida como bloqueio de bilheteria. First National, Fox e Loew eram concorrentes menores, ao passo que a United

Artists, com ajuda de McAdoo, que ficara conhecendo os artistas através de seus apelos para os Bônus Liberty, era agora tão lucrativa que Caroline abrira negociações para usá-la para o lançamento dos filmes da Traxler Productions.

Giles ficou muito aborrecido com o filme do Sr. Farrell, Os fura-greves.

O que, ou quem, é um fura-greve? perguntou Millicent, mas ninguém respondeu.

Aborrecido por quê?

Ao fazer a pergunta, Caroline dirigiu a Giles seu sorriso especial de Madona, que tinha um efeito espantoso, dissera-lhe um publici­tário experiente, em rapazes adolescentes de 13 a 16 anos e em mu­lheres lésbicas de qualquer idade, dois grupos extraordinariamente dedicados a freqüentar os cinemas.

Giles, como se viu, não era adolescente nem lésbico.

— Vi-o em Nova York antes que ele fosse retirado de cartaz, e fiquei muito perturbado com a mensagem comunista, que me sur­preendeu, sabendo que a senhora era à produtora...

E o Sr. Farrel é católico acrescentou Emma.

Em Londres não se vêem essas coisas contribuiu Millicent. O duque de Norfolk, sim. Mas até ele tem que ter cuidado onde bota o nariz, não como aqui, onde nem boas empregadas se encontram mais, porque elas estão sempre, com sua licença deu um sorriso de compaixão aos dois jovens —, grávidas.

Bem, o Sr. Farrel não está grávido disse Caroline, ban­cando a ingênua. — Achei que o filme era simplesmente contra a violência. No caso, por parte dos patrões.

Mas este é um assunto comunista, Sra. Sanford. É preciso ter cuidado ao lidar com eles. Eu sei.

Sabe como? Caroline foi mais ríspida do que pretendia.

Giles é muito ativo na Federação Cívica Nacional, e escreve para à revista deles...

Com certeza conhece o editor, Ralph Easley? perguntou Giles.

Segurava agora um cachimbo, mas não o acendeu. Ralph Easley era um editor profissional que andava perseguindo comunistas por todo os Estados Unidos. Causara furor com um artigo intitulado "Se o bolchevismo viesse para a América". Aparentemente todos teriam que se levantar antes do amanhecer, tomar um banho gelado e, como seus carros lhes tinham sido confiscados, caminhar até o trabalho, onde carregariam pedras durante 12 horas. Easley encontrara comu­nistas em toda parte na vida americana, principalmente na imprensa, nas igrejas e nas escolas. Atacara o Tribune por causa de seu edito­rial sobre a necessidade de trazer as tropas americanas de volta da Rússia. Desnecessário dizer, o movimento trabalhista conservador americano o admirava e torcia para que ele expulsasse os comunistas escondidos em suas fileiras. Hearst também o adorava. Caroline achava-o uma piada de mau gosto, ao passo que Blaise julgava que talvez houvesse algo em suas acusações.

Caroline disse que não tivera o prazer de conhecer Easley, mas sabia de sua ocupação.

Nós o levamos muito a sério, Sra. Sanford. Estou no comitê acadêmico para a libertação contra a anarquia, que trabalha intimamente ligado ao Sr. Easley...

Giles redigiu uma exposição de todos os departamentos de história, mostrando como são controlados pelos marxistas.

Pensei que sua matéria fosse a matemática — disse Caroline, olhando com leve desagrado para as feições avermelhadas da filha.

Emma é também uma cidadã consciente...

Esta cidadã consciente vai se trocar para jantar — interpôs a condessa de Inverness.

— Acho que eu também vou. — Caroline ia poder tomar Seu banho, afinal. Ela se levantou. — Vocês dois podem jantar como estão. Seremos só nós. Às oito.

Mas Caroline não pôde tomar seu banho. Quando Héloise estava a ajudá-la a despir-se, Emma bateu à porta.

Entre, minha querida.

Caroline já estava se sentindo culpada pela súbita onda de desagrado que sentira por sua filha única. A luz do final de tarde através da folhagem espessa da magnólia tinha um intenso e pro­fundo tom dourado.

Caroline estendeu-se numa espreguiçadeira. Emma sentou-se sob uma pintura de Saint-Cloud-le-Duc. Caroline lembrou-se com carinho da filha criança, brincando no parque do château, e dela própria, Caroline, brincando nos últimos anos do velho século, que parecia, nessa época de telefones e automóveis e aeroplanos mais pesados que o ar, um milênio antes.

Giles está muito preocupado com você, mamãe.

Diga-lhe para não ficar. Ainda tenho minha... minha esperteza.

— Ele acha que você está sendo enganada por Tim, que é mem­bro do Partido Comunista.

— Eu não sabia que havia um Partido Comunista neste país. Afinal, uma condição de nossa liberdade é que ela seja exercida apenas em apoio à maioria, como o Sr. Debs descobriu.

Emma não achou graça.

— Há um partido secreto, assim como os anarquistas são secretos.

Você conhece os segredos deles?

Giles conhece, e também Ralph Easley. Eles querem derru­bar o governo. Veja o que fizeram com o Sr. Palmer.

Ele perdeu algumas janelas da frente. Eles, fossem quem fossem, perderam as vidas.

Você fala como se concordasse com eles.

— É mesmo? Pensei que falasse casualmente, com indiferença.

Giles acha, e o Sr. Easley também, que você devia tomar uma posição mais ativa e definida contra o bolchevismo.

Caroline perguntou-se se a filha teria sido, de algum modo, en­feitiçada.

— Nunca vi você tomar o menor interesse pela política, e agora vem me dar aulas sobre o Perigo Vermelho.

Emma franziu a testa; o queixo forte, tão parecido com o do pai, salientou-se.

Não me interesso mesmo. Quero dizer, pelas bobagens de sempre. Mas isto é sério, mamãe. Podemos perder tudo, perder nosso país, nossa liberdade, se eles vencerem...

Eles quem?

Trotski, Lenin, os húngaros, os alemães. Estão em toda parte. Trezentas greves este ano, só nos Estados Unidos. Por quê? Pergunte a Lenin. Ele sabe. Ele tem um comitê especial. Em Chicago. Dirigido por Moscou pelo rádio. Quem você acha que ordenou a greve em Seattle? Trotski. Temos suas instruções em código, que conseguimos decifrar. Nós...

Emma falava cada vez mais depressa e cada vez com menos coe­rência. Interrompia-se várias vezes, quando um novo assunto lhe irrompia no cérebro. E, com sua tendência" a começar pelo meio uma afirmação, o assunto muitas vezes não ficava claro.

— Guerra naval. Submarinos. Sob o tratado. A armada verme­lha agora a maior. Saindo da ilha de Catalina. Em junho. Um inves­timento básico de um quarto de milhão de dólares. La Follette, é claro. Sempre La Follette. Ligação entre Moscou... a Terceira Inter­nacional foi convocada em março deste ano. Para todos os países. Em toda parte. Trabalhadores, uni-vos! La Follette sabe tudo sobre isso. Assim como Borah. Por isso o filme de Tim com o seu apoio... no ano passado noventa filmes comunistas foram feitos pelos judeus por ordem de Trotski, um sionista. Todo mundo sabe. A condição do New York Times para apoiar a Inglaterra em 1917. Um lar para o comunismo na Palestina. Hearst é o único que vai falar. Você pre­cisa... — Emma ficou temporariamente sem fôlego.

Preciso? Preciso o quê?

Giles e o Sr. Easley acham que você devia escrever, ou ser entrevistada, ou coisa assim, sobre o comunismo em Hollywood, e como você foi enganada por Tim para fazer aquele filme de propa­ganda comunista...

Caroline esmurrou o braço da espreguiçadeira com tanta força que machucou a mão.

— Você está inteiramente louca? Não sabe coisa alguma de po­lítica ou de cinema ou de qualquer outra coisa além de matemática. Eu não fui enganada...

Como a filha, Caroline enveredara por um caminho que poderia mostrar-se um beco sem saída. Tim realmente a enganara a respeito do filme, e o relacionamento deles ficara seriamente ameaçado. No outono ela iria à Califórnia para ver o que poderia ser feito para juntar novamente os cacos. Caso contrário, poderia simplesmente le­vantar âncora e partir esplendidamente para a meia-idade, sem cabos humanos que a prendessem.

Bem, se fez o filme deliberadamente, então o Sr. Easley está certo, e você sabia mesmo o que estava fazendo, porque é basica­mente uma estrangeira e deveria ser deportada através da Lei da Imigração de 1918 e também da Lei de Espionagem.

Cale a boca! — Caroline nunca falara tão bruscamente com a filha. — Você obviamente precisa de ajuda. Um desses behavio­ristas, ou como quer que se chamem. Não sou estrangeira. Sempre tive um passaporte estrangeiro, quero dizer, americano...

Sua mãe era estrangeira. Eu sei, Ela matou a mãe do tio Blaise...

Caroline pôs-se de pé, gritando com Emma em francês.

Somente o sorriso de superioridade de Emmà diante dessa prova de que a mãe era estrangeira fez Caroline conter-se.

Você está muito... difícil, Emma. Atribuo isso à má influência do Sr. Decker.

Não, mamãe. Já vinha de muito tempo. Acordei, realmente, para o modo como estamos perdendo nosso país para vocês, estran­geiros.

— Talvez fosse melhor você arranjar outro namorado. — Caro­line era novamente a pessoa sedosa de sempre.

Acho que não poderia fazer isso. Sabe, nós nos casamos hoje de manhã em Maryland.

Caroline teve dificuldade em respirar, mas logo se recuperou inteiramente.

— Então você é uma idiota — declarou.

— Eu sei. — Emma suspirou de um modo que, para ela, era teatral. — Mas a culpa não é minha, é? De ser filha ilegítima.

Não — disse Caroline, pondo-se de pé. — A culpa não é sua. Agora... saia daqui.

 

O Presidente estava ocupado em sua máquina de escrever, quan­do Grayson fez Burden entrar no escritório do andar superior.

Um momentinho.

Wilson continuou datilografando, numa velocidade quase pro­fissional. Burden sempre se impressionava com tais habilidades. Como a maior parte do Senado, Burden utilizava secretários para redigir seus discursos. Quando chegava a escrever um discurso, fazia-o a mão, numa caligrafia quase ilegível. O Presidente, porém, não apenas criava sua própria eloqüência como também datilografava-a quase sem erros. Por "outro lado, Wilson não sabia deitar falação, como dizia Harding, que tinha muito fôlego para isso: discursar de impro­viso com paixão incoerente. O próprio Burden tinha um talento de­finido nesse terreno' demagógico. Guardava-o para os comícios. No Senado, orgulhava-se de sua precisa concisão.

Wilson retirou a folha da máquina e deixou-a cair sobre a escri­vaninha; ergueu-se e apertou a mão de Burden. O rosto do Presidente estava mais pálido que de costume — por causa do calor de agosto? O 66º Congresso, que deveria tomar posse em 19 de dezembro de 1919, tinha sido convocado a Washington em maio. O Presidente retornara da França em julho. Agora todo o governo era obrigado a aturar o calor equatorial. O Presidente, Burden percebeu, adquirira um cacoete no canto do olho esquerdo e, de modo geral, parecia tenso. A um gesto de Wilson, Burden sentou-se em sua poltrona costumeira, em ângulo com a escrivaninha. Nenhum dos dois gostava de postar-se cara a cara com alguém.

Para surpresa de Burden, Wilson não mencionou a Liga, que Lodge estava matando aos poucos com emendas no Senado.

Que faria com os trabalhadores, se fosse eu?

O senhor se refere às greves?

— Refiro-me a todos os entendimentos entre patrões e empre­gados.

Em dúvida, é melhor não fazer coisa alguma. O senhor tem dúvidas, Sr. Presidente?

Sim e não. Acho que durante a guerra provamos que podemos dirigir as ferrovias tão bem quanto os proprietários. Bem, mas...

O senhor acha que nós, que o governo, deveria tomar conta delas?

Wilson assentiu:

Seria um modo de colocar na linha tanto os patrões quanto os líderes trabalhistas.

Burden deu de ombros.

Não vejo muita diferença entre o governo tomando conta de alguma coisa ou os proprietários. Apenas vai tornar a vida mais difícil para nós se um sindicato de ferroviários fizer greve contra o governo.

Ou menos difícil. A maioria dos países controla as necessidades vitais como água, eletricidade, transporte. Nós não. Permitimos que qualquer um engane os usuários, explore os trabalhadores.

Burden sorriu.

Com todos os seus problemas, Sr. Presidente, ainda quer ser chamado de socialista?

Por que não? Já fui chamado de tudo mais. Por ter pavor ao bolchevismo é que acho que podemos roubar algumas teorias deles, para impedi-los de roubar nosso país inteiro. Já esteve com meu genro, o Sr. McAdoo?

Burden sacudiu a cabeça.

Imagino que ele esteja em Nova York, advogando.

Wilson recostou-se na cadeira e moveu a cabeça lentamente da esquerda para a direita e depois da direita pára a esquerda. Aparen­temente um tipo de exercício.

Estou sendo pressionado para decidir a respeito do ano que vem. Já disse que não quero um terceiro mandato, e meu genro cer­tamente gostaria de pelo menos um primeiro mandato. O sorriso era amargo. Seria útil para ele se desde já eu me declarasse fora do páreo. Então ele teria um ano para aprontar-se.

Sim. Burden não deixou escapar coisa alguma. Perguntava-se se Wilson sabia a respeito da conversa no Chevy Chase Club.

Gostaria de poder ajudá-lo, isto é, a ele, mas não sei. Até que a Liga esteja a salvo, meu trabalho aqui não está completo. Quando acha que o Senado vai votar?

Lodge está arrastando as coisas. Acha que cada dia que passa fica mais difícil para nós apoiar a Liga, e ele tem razão. Por que não aceitar as emendas dele e terminar logo com a coisa?

Nunca disse Wilson em tom calmo.

Como o senhor provavelmente sabe, hoje de manhã a Comis­são de Relações Exteriores adotou cinqüenta emendas que impediriam os Estados Unidos de algum dia trabalhar em quase todos os comitês internacionais que viabilizariam a Liga. Lodge conseguiu também uma votação de nove a oito revertendo a posição da Conferência de Paz em Xantung.

Enquanto Burden falava, o tremor da pálpebra de Wilson tornou-se "tão pronunciado que o Presidente retirou o pincenê e, fin­gindo enxugar a testa com um lenço, fez pressão no nervo rebelde.

Tumulty me contou.

— Contou-lhe também que Knox, Borah e Johnson, e alguns dos outros irreconciliáveis, como eles próprios se denominam, pre­tendem correr o país, particularmente o Oeste, fazendo comícios con­tra à Liga?

Em silêncio Wilson dobrou o lenço em quatro.

Então nós todos devemos, agora, ir a César.

Aos nossos senhores.

Burden sorriu, como sempre fazia quando pensava na ficção de que o povo americano de algum modo controlava seu próprio des­tino. A Constituição os tinha excluído em grande parte, ao passo que a ampliação do direito de voto tinha, paradoxalmente, limitado qualquer participação importante dos governados no governo. Natu­ralmente era preciso levar em conta as emoções do povo, mas essas emoções podiam facilmente ser manipuladas por demagogos e pela imprensa. Se os irreconciliáveis aproveitassem com habilidade o ódio da América aos estrangeiros, Wilson precisaria aproveitar a acentuada auto-estima do povo num mundo onde os americanos eram agora, acreditava-se, não apenas a maior potência mas também a mais obviamente inocente. Seria muito fácil, se houvesse tempo. Sem qualquer esforço Burden conseguiria fazer uma platéia aceitar a Liga e uma Pax Americana; depois, com a mesma facilidade, ele poderia entusiasmá-la com o fantasma das liberdades perdidas para uma Liga dominada pelos ingleses, que deveria ser rejeitada de imediato em obediência ao sagrado aviso de George Washington contra envolvi­mentos com estrangeiros. A isso se limitava a política na grande de­mocracia. Depois que o professor Wilson percebera isso, optara pelo sistema parlamentarista. Mas o Presidente Wilson agora tinha a coroa e o cetro; e jogava o jogo.

Também vou declarou ele, recolocando o pincenê. A Sra. Wilson e Grayson querem que eu descanse, mas não tenho es­colha.

Vai subir aos palanques?

Wilson assentiu.

Vou seguir os senadores de uma ponta a outra do Oeste.

Wilson citou as cidades onde pretendia discursar, e Burden logo percebeu que aquela intensiva turnê pelo país era o início da cam­panha de Wilson por um terceiro mandato, algo que nenhum Presi­dente jamais tentara.

Burden deu alguns conselhos sobre as cidades a serem visitadas. Wilson fez anotações. Quando discutiram a estratégia para o Se­nado, Wilson pegou a folha de papel que estivera datilografando.

— Isto é anônimo — disse, sorrindo para Burden. Quero que você tome conhecimento, e Hitchcock também. Mas ninguém mais. Secretamente, estou disposto a fazer concessões a respeito do tratado.

Burden ficou atônito e encantado. O louco do Presidente que não cederia porque estava desempenhando uma tarefa do Senhor tor­nara-se, mais uma vez, o mestre político, capaz de qualquer adapta­ção para conseguir o que queria.

Fiz uma lista de quatro áreas de interpretação do tratado a respeito dás quais vocês, a liderança democrata, concordarão em ceder para que a Liga seja aprovada. Mas Lodge jamais poderá saber que isso partiu de mim. Se soubesse, quereria quatro vezes quatro mais concessões. Mas acho que estas cobrem quaisquer divergências e são aceitáveis para qualquer um, exceto os palhaços profissionais.

Burden pegou o papel.

Sinto-me aliviado — disse. — Acho que não teremos problemas, agora que podemos negociar.

Mais cedo ou mais tarde, porém, o Senado, quero dizer, os amigos de Lodge, terão que provar seu próprio remédio.

Wilson não cessava de oscilar entre uma rígida truculência e uma negociação maleável. Burden perguntou-se se isso seria apenas uma atitude de efeito. Em muita coisa o tranqüilo professor de 1912 estava flagrantemente mudado. Estava mais irritável e sensível que nunca, ao passo que sua formidável capacidade de concentrar-se num assunto desaparecera. Finalmente, além da arteriosclerose congênita de Wilson, ele estivera extremamente doente em Paris, Burden sou­bera. Oficialmente, ele tivera a gripe, mas não-oficialmente havia boatos de que sofrera um enfarte. Simultaneamente houvera uma ruptura com o coronel House, o que explicava a desordem no lado americano quando o tratado de paz definitivo fora completado num espírito bem diferente da grandiosa "paz sem vitória" que Wilson proclamara ao levar os Estados Unidos à guerra.

Não haveria um terceiro mandato, Burden concluiu quando o Presidente começou a ler uma lista.

— Sabe que sou pessoalmente, responsável pelo conteúdo da casa na Place des Etats-Unis, assim como fui responsável pela Villa Murat, o que está correto. Nosso governo não deve pagar pelos copos que a Sra. Wilson e eu quebramos, embora ela não tenha quebrado copo algum, e eu apenas um. No entanto, eles escreveram dez copos, o que é intolerável, você há de concordar.

Wilson ergueu os olhos para encarar Burden. Atribuía aos copos quebrados a mesma gravidade que à Liga das Nações.

— Parece que sim, Sr. Presidente. Mas por que não deixa isso a cargo do Sr. Tumulty?

— Se eu pudesse... Mas ele não estava lá. Só eu sei com cer­teza quantos copos foram quebrados. Foi no banheiro, na manhã do primeiro domingo depois que voltamos para Paris e nos estabelecemos na casa nova. Os outros nove copos, se foram quebrados, o foram por outras pessoas. Não excluo os próprios franceses. Afinal, todos os que foram destacados como nossos empregados eram espiões. Cheguei a ouvir dois deles cochichando em inglês. - Fixou os olhos no livro à sua frente. — E agora isto! A moldura quebrada da cópia de Fragonard, que nem era um original mas uma cópia muito primi­tiva, que estava pendurada no quarto da Sra. Wilson...

Edith entrou de repente, serena e autoritária.

Woodrow murmurou, e fechou o livro com a lista. Este é trabalho meu. Como foi que o pegou?

— Vi-o sobre a mesa da Srta. Benson, e claro que preciso veri­ficar cada item, inclusive Fiume, que a Itália...

Burden surpreendeu o olhar de medo da Sra. Wilson; medo de que Burden testemunhasse... o quê? Wilson não era louco, como de­monstrara com sua magistral concessão em quatro pontos, mas es­tava obcecado a um ponto incalculável. Para ele, aquela lista tinha o mesmo peso moral que a Liga, e as duas coisas pareciam misturar- se em sua mente. Grayson também entrara no aposento. Estariam escutando à porta? A esposa e o médico estavam resolutamente ale­gres e simpáticos.

Hora de um passeio de carro disse Grayson.

Está mais fresco.

Dias equatoriais comentou Edith. Minha pobre mãe está quase morta no Hotel Powhatan, com seis ventiladores funcio­nando ao mesmo tempo e uma pedra de gelo no meio da sala.

Wilson, inteiramente são e normal, levou Burden até a porta.

Muito obrigado pela. . . informação. Quanto ao resto... — acrescentou, erguendo um dedo.

Burden assentiu:

Só Hitchcock deve ser informado.

Apertaram-se as mãos. Surpreendentemente, Edith não o acom­panhou até o elevador. Ela e Grayson ficaram com o Presidente en­quanto Hoover, o chefe da portaria, acompanhava Burden. Ao longo dos anos Burden cultivara a amizade daquele alto funcionário. Com freqüência aprendia-se mais em cinco minutos de conversa ociosa com o chefe da portaria ou com um funcionário do Serviço Secreto do que com alguma autoridade.

Estou sabendo que você vai fazer uma longa viagem.

O Presidente vai, senador. Eu fico. Gostaria que ele não fosse.

Ele parece inteiramente recuperado arriscou Burden.

Ah, ele está muito bem, a não ser por este calor, e o cansaço. Estamos todos bastante tensos depois de Paris, e agora com o Se­nado... Com a sua licença, senhor.

Eu sou um dos bonzinhos. À porta do elevador, Burden tcvo a inspiração de 'perguntar: Quem foi que quebrou a moldura da cópia do Fragonard, afinal?

Hoover deixou entrever um brevíssimo olhar de alarme. Em seguida tornou a mostrar-se tranqüilo e natural.

— O Presidente é muito consciencioso, não é? Como se fosse sua propriedade, aquele palácio sujo.

O palácio de Burden estava limpo finalmente, e mobiliado, tam­bém. À luz vespertina, a casa de pedra cinzenta, com dois andares e mansardas, brilhava contra o verde-azulado do Parque Rock Creek. Tinham decidido inaugurar a casa com um chá informal, algo bas­tante popular no mês de agosto quando se morava numa colina ar­borizada acima do Rock Creek, um regato frio e refrescante.

Meia dúzia de garçons de raça negra tinham sido contratados para a ocasião. Kitty já estava pronta, usando um vestido longo verde-amarelado, ao passo que Diana ainda não se deitara: tinha permissão para ver as chegadas da grande janela do primeiro andar com vista para a alameda de entrada, agora a cargo de um policial especial,, que conhecia os convidados e era conhecido por eles. Burden sempre o chamava de Bedel, como o bedel do Senado, que conhecia todos os senadores e suas manias.

Burden tomou um banho de chuveiro e depois vestiu um terno branco do tipo. usado por estadistas sulinos, assim como pelo finado Mark Twain, cujos cabelos e bigodes brancos combinavam perfeita­mente com o terno, quando ele transformava em ocasião para aplau­sos as suas entradas estratégicas pelo topo da escada que descia para a Peacock Alley de New Willard.

Burden foi até a varanda lateral, seu local favorito na casa, e o mais fresco. Atrás do bosque espesso que rodeava a casa ele ouvia riacho correndo em seu leito de pedregulhos. Um pássaro — um car­deal, todo escarlate — empoleirava-se numa cadeira diante dele, es­perando que Kitty o alimentasse. Mas ela estava ocupada demais, e faltava a Burden intimidade com a natureza. Burden contemplou amorosamente seus dois acres de bosques, e perguntou-se por que alguém precisava de algo mais. Ele começara pobre; agora tinha se­gurança, graças à herança de Kitty e à indulgência dos eleitores. Mas a primeira estava sendo gasta e a segunda era, no mínimo, instável. Particularmente agora que tantas coisas estavam confusas nos Estados Unidos.

A guerra tinha sido fraudulenta: os Estados Unidos jamais tive­ram a menor preocupação com o fato de a Alemanha dominar ou não a Europa. Aliás, a maioria dos americanos acreditava piamente que a única razão da existência de seu país era fornecer um refúgio seguro para os europeus que não conseguiam mais suportar as con­fusões e crueldades do Velho Continente. Wilson, por motivos obs­curos, manobrara a república para colocá-la no palco mundial. Se havia um desígnio da história, então Wilson tinha sido obrigado a conformar-se com o inevitável. Se não havia um desígnio, apenas o acaso, então Wilson tinha.por vaidade? feito uma péssima escolha. No que se referia a relações internacionais, o povo americano incliriava-se a lealdades tribais que desapareciam ao longo das gera­ções. Os imigrantes recém-chegados da Alemanha apoiavam o cáiser; os imigrantes recém-chegados da Irlanda odiavam a Inglaterra. Mas nenhuma das duas tribos estava ansiosa para retornar ao antigo con­tinente, definitivamente abandonado. Apenas a propaganda mais con­tundente e incessante poderia excitar uma organização política tão plácida. Como se viu depois, a propaganda tinha sido inspirada, e os alemães tinham sido transformados em demônios. Mas agora, com tanto ódio ainda no ar, o político profissional sabia instintivamente que ele próprio poderia ser vítima daquelas emoções invocadas das profundezas. Para piorar as coisas, iniciava-se uma crise financeira e as pessoas em geral estavam inquietas e desejosas de que eles fossem castigados, fossem eles quem fossem. Ele logo teria que decidir como se apresentaria para a reeleição em 1920.

A princípio a guerra fora altamente impopular no estado; então, do dia para a noite, todos sucumbiram alegremente diante de qual­quer demagogo anti-Alemanha, anticomunismo, antinegros. A Ku Klux Klan estava renascendo, dessa vez nas cidades e não no campo, um péssimo sinal. Os eleitores iriam castigar Wilson e Burden pela guerra? Ou aceitariam a idéia de que, graças aos pró-guerreiros, os Estados Unidos eram agora importantes no contexto mundial? Era difícil acreditar, se a pessoa tinha que caminhar vinte metros numa noite fria para ir ao banheiro. Não pela primçira vez, Burden desejou que Bryan tivesse uma inteligência pelo menos mediana, pois só ele tinha a capacidade de ser porta-voz da maioria confusa. Burden e seu pai louco tinham se separado por causa de Bryan. Para o veterano de Chickamauga, tudo o que era preciso fazer era orga­nizar o povo para que houvesse um governo representativo e um sindicato mais perfeito para todos. Mas Burden sabia que isso jamais poderia acontecer. Uma olhadela pela sala de descanso do Senado era suficiente para demonstrar ao populista mais entusiasmado que ele não tinha chance de afastar pessoas como Penrose. Eles eram donos de tudo, inclusive dele próprio. Não era aquele esperto advogado de Wall Street, McAdoo, que queria, na realidade, alugar Burden para que este participasse de sua chapa como uma isca para os não-representados?

Borah sentou-se diante dele:

— Sonhando acordado?

Burden teve um sobressalto, e desculpou-se:

— Desculpe-me, senador. Este calor...

— É a gripe. — Borah foi compreensivo. — Ela custa a desaparecer. Cheguei um pouco cedo.

Um garçom trouxe-lhes chá gelado. Kitty estava na sala contí­gua com a Sra. Borah, um dragão atento, pronta para intimidar as damas demasiado entusiasmadas.

— Wilson vai viajar.

Burden assentiu.

— Bom, vai fazer-lhe bem. Conhecer o país, depois de todo esse tempo na Europa. Ver as pessoas. Johnson vai cobrir a Califór­nia. Eu vou começar nas Cidades Gêmeas.

Cem por cento contra a Liga?

Borah assentiu.

— Também estou ansioso para tirar nossos rapazes da Sibéria.

— O Presidente também está.

Mas foi ele quem os colocou lá!

— Pensei que você fosse homem de T. R.

E sou. Mas também sou a favor de sairmos dos lugares que não são de nossa jurisdição.

Roosevelt achava que todos os lugares eram de nossa jurisdição, como civilizadores.

— Agora estou mais velho, mais sábio. Gosto de achar que pro­vavelmente há muito que fazer aqui mesmo, em casa. Se começarmos a ter colônias pelo mundo, acabaremos prisioneiros delas. Pensei que Wilson tivesse mais bom-senso. Mas ele está com a cabeça virada por todos aqueles reis, chanceleres e banqueiros.

Burden nunca sabia ao certo como lidar com Borah. Eram ami­gos pessoais, tinham eleitorados semelhantes, mas Burden seguira seu partido e Wilson, ao passo que Borah permanecera fiel ao que jul­gava ser o pensamento da maioria dos americanos. Se as pessoas se sentissem traídas pelo internacionalismo wilsoniano... Burden sentiu um leve arrepio: ele poderia ser derrotado. Por outro lado, se a economia melhorasse e a propaganda a favor da Liga tornasse as pers­pectivas alegres, Borah teria dificuldades.

Acho que a Liga é popular, pelo pouco que o povo conhece

dela.

— Mas não será, quando eu terminar de explicar que perderíamos o controle até de nossas próprias forças armadas, e que, se a Inglaterra nos ordenasse mandar cem mil soldados, digamos, para Constantinopla, nós teríamos que obedecer, gostando ou não.

— Acho que não vai ser exatamente assim.

— Não vai ser coisa alguma — afirmou Borah, a boca fina não mais que uma linha reta e horizontal. — São os bancos que estão fazendo isso conosco. Nova York já é um lugar muito ruim para se conviver. Mas Londres também? Não, obrigado. Já lutamos uma guerra da independência, não precisamos de uma segunda. Sibéria!... — Borah sacudiu a cabeça.

Você permitiria que o Japão a tomasse?

Por que não? Eles são vizinhos. De qualquer maneira, quem quer que fique com aquela geladeira vai ter que negociar conosco.

— E quanto ao nosso hemisfério?

Bem, o México está no nosso próprio quintal. De modo que quando eles pegam nossa terra e matam nossa gente eu sou inteira­mente favorável a castigá-los. Não sou pacifista. O México é impor­tante para nós, portanto lutamos. A Alemanha não é.

E quanto ao Haiti, República Dominicana, Nicarágua, Pana­má, Honduras, Cuba?

— Que é que tem eles?

— Cada um desses supostos Estados soberanos está atualmente ocupado por fuzileiros navais americanos, que obedecem apenas ao Presidente. Nós nos comportamos em relação a eles como o Império Austro-Húngaro comportou-se com a Sérvia, Montenegro e Eslo­vénia...

Não me dê dor de cabeça. Não quero pensar nesses lugares velhos e horríveis. Wilson realmente quer ser o primeiro Presidente do mundo, não quer?

Burden deu de ombros, um tanto deslealmente.

— Ele nunca disse coisa alguma sobre isso. E depois dessa última vez em Paris, acho que não vai querer envolver-se com os europeus novamente. Odeia os franceses, acha Lloyd George um trapaceiro, os italianos uns urubus...

— Bom, fico aliviado ao ver que ele entendeu o essencial, Sabe, não fiquei bem impressionado com ele na Casa Branca. Na verdade, fiquei bastante chocado. Ele mente muito, você não acha?

Burden riu.

Você quer dizer, mais do que eu ou você?

— Eu nunca minto — mentiu o leão de Idaho; sua devoção a si mesmo era mais religiosa do que secular: considerava-se simples­mente Deus, e sabia-se bom. Apesar — ou por causa — dessa cer­teza, Borah era o homem mais popular na política, e não estava disposto a dividir sua divindade com meros mortais. — Não. O que me chocou foi o modo medíocre como Wilson nos mentiu a respeito dos tratados secretos. Certamente ouviu falar deles quando nós ouvi­mos, se não antes, mas diz...

— Ele anda tenso. Perturba-se com facilidade. Esteve doente em Paris...

Encefalite. — Como Deus, Borah era bem informado.

Eu não soube disso. Mas ainda está bastante fraco, e não deveria viajar pelo país agora, com este calor.

Imagino que ele será o seu candidato, não?

Por essa razão Borah chegara mais cedo, concluiu Burden. Até Deus precisava de um palpite político de vez em quando.

Será, sim — mentiu Burden.— Se não houver algo diferente.

Você vai ser companheiro de chapa dele?

— Ele ainda não foi tão longe. Mas pretende entusiasmar o país a favor da Liga.

Enquanto improvisava, Burden ficou algo decepcionado ao des­cobrir que sua mentira improvisada, destinada a confundir o inimigo, era a pura verdade. Naturalmente Wilson estava se preparando para a reeleição como o primeiro Presidente com três mandatos. Natural­mente precisaria de alguém como Burden para equilibrar sua candi­datura. Burden perguntou-se se o raio cairia. Se caísse, será que ele poderia apenas por segurança, concorrer também ao Senado? A lei estadual era ambígua, e a opinião pública, severa: quem concorresse a dois cargos provavelmente perderia ambos; e naturalmente desagra­daria a Wilson uma falta de confiança tão pública.

— Você vai ser de grande ajuda para ele, — Borah assentiu, em divino reconhecimento á uma de suas criações menores.

— E você seria de grande ajuda... para quem? — perguntou Burden.

Com a morte inesperada de Roosevelt às vésperas de seu renascimento político, o Partido Republicano era um grupo sem líder de senhores feudais como Penrose e Plat, sem qualquer herói — ao contrário de uma divindade como Borah, que era grande demais para o cargo de Presidente, ao passo que Lodge era velho, estranho e encolhido demais.

Acho que eu não ficaria bem como vice-presidente Borah declarou sem sorrir. Quanto a ser Presidente, terei que esperar até todos me alcançarem e perceberem que grande erro foi esta guerra.

Kitty surgiu à porta e acenou para que os estadistas fossem juntar-se aos outros.

Kitty conseguira reunir um pouco de tudo para a festa. O Senado estava presente em massa. Os Lansing e os Phillips representavam o Departamento de Estado. Os Longworth e os Momberger simboli­zavam o grande rebanho da Câmara dos Representantes. Os sempre presentes lobistas dos anos de guerra não eram mais vistos sorrindo e esperando para apresentar suas petições. Da antiga Washington, havia os costumeiros Apgar, reverenciando a vetusta Sra. Marshall Field de Chicago, que recentemente, misteriosamente, estabelecera sua corte na capital.

Blaise e Frederika estavam parados diante da lareira de pedra trabalhada, cheia de vasos de flores, algo que Burden vira pela pri­meira vez anos antes na casa de Caroline e gradualmente convencera Kitty a imitar. Frederika usava agora seus próprios cabelos louro-acinzentados, ainda ralos. Parecia mais jovem do que antes da gripe.

Estou tentando convencer Blaise a irmos para o campo, para um lugar fresco como este.

Se a Avenida Connecficut não é campo, onde é o campo? retrucou Blaise com rispidez.

Virgínia, por exemplo respondeu Frederika prontamente. O Potomac Heights. Já temos cem acres lá, logo depois da Ponte Chain. Quero construir lá, onde se possa ouvir o barulho da água, como aqui...

Água? Só consigo ouvir chá gelado disse Blaise, pegando uma taça de champanhe, outro hábito importado de Caroline ao qual Kitty, abstêmia como a maioria de seus eleitores, durante muito tempo se opusera.

Quando estamos sozinhos conseguimos escutar o riacho. Onde está Caroline?

Foi para o Oeste. Foi ser vaqueira disse Blaise, que es­tava ligeiramente bêbado.

Estrela de cinema... — fez Frederika em tom pensativo. Sinto inveja dela. Toda aquela energia! Emma se casou, sabia?

Burden espantou-se por Caroline não ter lhe contado.

Quando? — perguntou, querendo saber com quem.

— Um professor de Bryn Mawr — respondeu Blaise, restauran­do a ordem correta. — Há pouco tempo. Ela o trouxe para a casa de Caroline, e as duas acabaram brigando. Agora estão passando a lua-de-mel conosco na Avenida Connecticut.

— Ele é contra o diretor de cinema de Caroline — acrescentou Frederika.

A chegada de Henry Cabot Lodge obrigou Burden a afastar-se para ir cumprimentar o grande homem, que nos últimos anos enfra­quecera bastante. Sem a esposa, ele parecia apenas meia pessoa, mas essa metade era toda senador.

— Não sobraram muitas pessoas com quem conversar — observou ele a Burden, com uma rudeza perfeita, embora inconsciente.

Existe a história — respondeu Burden, com respeito exagerado.

— A história não responde — retrucou Lodge. — Adoro este parque — acrescentou, relanceando o olhar pelo aposento arejado. — Nós tínhamos vontade de morar aqui, mas não moramos. E se não se faz isso logo, não se faz nunca. O coronel Roosevelt e eu costumávamos atravessar sua propriedade, vindo do vau do rio.

Eu me lembro.

Kitty aproximou-se com o procurador-geral, e Lodge recebeu-o com simpatia. A. Mitchell Palmer estava em estado de euforia desde a explosão em sua casa: o inimigo estava em toda parte, e ele tinha sido escolhido para salvar a democracia do bolchevismo. Com uma simpatia ensaiada, Lodge deu-lhe toda a corda necessária, enquanto Burden continuava a circular, cumprimentando os convidados, mostrando-se conversador.

Jess Smith, senador — disse uma voz cujo dono ele nunca conseguia identificar. —Estou aqui com a Sra. Harding. O senador está de cama.

Jess Smith tinha cara de coruja e queixo frouxo. A Sra. Harding nada tinha de frouxo; os olhos azuis e penetrantes cintilavam atrás do pincenê.

— Sua casa é mesmo linda, Sr. Day. O que prova que a pessoa tem que construir ela própria, se quiser um bom resultado.

Achei sua casa na Avenida Wyoming muito imponente.

A memória de político de Burden raramente o abandonava. Es­tivera na casa dos Harding uma vez e lembrava-se de tudo, inclusive do nome de solteira dela, Kling, e do fato de que ela se divorciara do primeiro marido antes de se casar com Harding, que era alguns anos mais jovem, e de que ela tinha um filho do primeiro marido, e de que seu rico pai desaprovara Harding alegando que ele tinha san­gue negro. Saber coisas nunca era demais, era a teoria de Burden; ou, mais precisamente, esquecer-se das coisas nunca era demais.

— Precisa vir nos visitar, quando Warren voltar do chautauqua. Ele adora essas viagens! A multidão, os hotéis, e os cem dólares por cada palestra, são muito importantes agora que tudo está tão caro. O senhor não faz esse tipo de apresentação, não é?

A Sra. Harding falava como se se tratasse de um preceito religioso que tinha de ser observado. Burden respondeu que não tinha tempo, e muito menos o dom da oratória de Harding. A Sra. Harding não o escutou; prestava atenção nos Longworth, que estavam à porta da sala de jantar com Cissy Patterson Gizycki, os cabelos ruivos real­çados pela roupa verde-jade. Alice parecia triste, apesar do amplo sorriso. Cissy parecia sedutora, e Nick Longworth parecia seduzido, e bêbado.

— A condessa é mesmo uma figura — observou Florence Harding.

Duquesa ela não é, isto é certo — disse o amável Jess.

— Ela sempre foi popular por aqui.

Burden achou que tinha falado como um de seus severos e an­tiquados primos Apgar, em vez de seu jeito costumeiro de rústico representante do povo. Mas ocorria que ela estava na política em Washington, havia mais de vinte anos; conhecera Cissy e Caroline quando elas eram crianças. Aliás, também Alice, a Grande.

—•Ainda bem que o pessoal de casa não sabe o que acontece por aqui — observou a Sra. Harding, encarando-o com severidade, exatamente quando Emma, a filha natural, entrava na sala.

— Tenho certeza de que Washington não é diferente de Marion, quando se trata de... segredos — disse Burden, acertando na mosca.

A Sra. Harding enrubesceu. Jess pigarreou desnecessariamente.

— Marion é tão certinha que já morreu — declarou ele. — Agora, Washington é outra coisa.

Burden, como anfitrião, se não como senador, tinha ido longe demais. Todos sabiam que Warren Harding gostava dos prazeres carnais, e não cabia a Burden trair os segredos de uma confraria cujos membros eram conhecidos pelas mulheres que mantinham. Ele mudou de assunto:

Convidamos os seus amigos, os McLean...

Ela ainda não está saindo. Pelo menos não muito, desde que Vinson morreu. O garoto era tudo para eles. Sempre acompanhado por seguranças para não ser seqüestrado, e de repente o carro o atro­pela. Ela está feito doida, e naturalmente sabe, como eu sei, que a culpa é daqueles diamantes, principalmente o Hope, mas não quer ficar sem eles, e agora Vinson está morto.

Trágico! gemeu Jess.

Burden encontrou Emma junto ao bufê na sala de jantar.

Cadê seu marido?

Já soube?

Burden. deu-lhe um beijo senatorial na face.

Já. Parabéns. Por que tanta pressa?

Teve que ser assim. O casamento. Nós brigamos. Mamãe e eu. Dessa vez foi sério.

Burden encarou seus próprios olhos azuis, enquanto ela encarava os olhos azuis dela própria, sem reconhecê-los; aquele era simples­mente o velho amigo de sua mãe, não seu pai, semicriador.

Isso passa. Seu marido veio?

Não. Ele tinha uma reunião. Com um comitê. Contra o bol­chevismo. Há muitos, nos departamentos de história. Uma das razões. Principalmente Henry Adams.

Henry Adams? Burden não acompanhara inteiramente o rápido discurso dela, atribuindo o fato ao ruído do aposento.

Harvard é a pior, entende? Mas Hollywood também é comunista. Mamãe é uma idiota, ou pior. Espero que não. Se conse­guirmos fixar agora. Conseguiremos! É preciso...

Fixar o quê, Emma? Burden perguntou-se se a surdez hereditária de sua mãe finalmente o atacara.

O limite! Temos que fixar o limite.

Enquanto ela continuava a falar rapidamente, os olhos apertados como se observasse seus próprios pensamentos passando disparados como o mais rápido dos trens, Burden viu a libertação aproximar-se.

Justamente a pessoa com quem você deveria estar conversando...

Mas Emma estava fora de controle agora.

Riram dele no Wihter Palace, 1917. Nossa oportunidade. Kerenski nos avisou. Quisemos escutar? Não. A China. A última maçã a despencar do galho...

Burden agarrou o procurador-geral pelo braço e puxou-o para perto de si, buscando proteção.

Emma Sanford... Ainda não sei seu nome de casada, foi muito recente — disse ele ao procurador-geral. — Conhece a mãe dela, Caroline Sanford.

— Ah, sim. É um prazer.

— Emma, este é o Sr. Palmer. Sr. A. Mitchell Palmer.

Finalmente! — exclamou Emma, encantada. — Sou de Bryn Mawr. Uma carta. Todos nós. A bomba de dois de junho. Trotski... quem mais podia ser? Sua divisão anti-radical. Fantás­tico. Escrevemos para o Sr. J. Edgar Hoover, a pessoa certa. Ape­sar de...

Sim. Foi bastante barulhenta, eu garanto. A explosão.

Mas A. Mitchell Palmer não tinha idéia do que Burden soltara em cima dele. Emma finalmente encontrava a língua, pensou Burden ao afastar-se para cumprimentar outros convidados; infelizmente o cérebro dela movia-se agora depressa demais para que a língua ex­pressasse tanta urgência.

Burden completou sua ronda onde começara, na varanda. Um fragmento de lua crescente enfeitava o céu púrpura-escuro e os últi­mos vaga-lumes da temporada deslizavam preguiçosamente no vento oeste. Do vinhedo aproximaram-se duas figuras enlaçadas, sem perce­berem que ele as observava. Diplomaticamente escondeu-se atrás de uma coluna quando Cissy Patterson, com o batom manchado, subiu à varanda, seguida pelo ligeiramente despenteado Nick Longworth bêbado. Os dois entraram na casa. Burden não ficou surpreso; Nick era um conquistador compulsivo, a quem a bebida desinibia, ao passo que Cissy era inquieta, na melhor das interpretações. Então, por desejo do destino, ou dela própria, Alice Longworth entrou na varanda pela outra porta. Não podia ter deixado de ver Cissy e seu marido juntos.

— Que noite fresca, depois de um dia tão quente — comentou ela, sentando-se de costas para a festa.

— Sempre adorei este parque — afirmou Burden, com mais sentimento do que merecia uma observação tão neutra.

Não consigo pensar numa coisa que eu adore. — Alice estava melancólica. Quando não estava sorrindo o amplo sorriso rooseveltiano, seus lábios finos criavam uma linha de sombra, ao passo que à meia-luz seus olhos cinzentos ficavam opacos. — Este não é um lugar para se viver.

— Em nosso tipo de trabalho, é preciso.

No seu tipo. No de Nick. Eu não tenho trabalho.

— Então vá embora.

Para onde? Sempre achei que ia morar em outro lugar quan­do papai morresse. Mas agora que ele morreu mesmo, não há outro lugar. Vou virar monumento, como esses horríveis Apgar.

Meus primos.

Coitado de você! — Como um gato, Alice pôs-se de pé num salto; a auto-piedade desapareceu rapidamente.

Kitty saiu para a varanda:

— O Sr. Lansing quer falar com você, Burden...

— Vou escutar e contar tudo a Cabot — fez Alice. — Sabe, quando Wilson voltou para a Casa Branca eu fiquei no meio da multidão e roguei uma praga para ele, uma praga muito séria...

Burden foi até a porta.

Praga? — fez Kitty.

— Um feitiço. Uma maldição. Eu sou bruxa, sabia?

Você consegue enxergar o futuro? — perguntou Burden.

— Claro que sim — respondeu Alice. — Mas nunca faço isso. Não tenho coragem. Você teria?

Não — fez Burden.

E foi até o canto onde Lansing e Hitchcock esperavam por ele no. presente que os envolvia a todos como á noite com sua meia-lua e seus ociosos vaga-lumes.

 

O Presidente estava de pé no carro aberto. Edith estava sentada ao seu lado, segurando um ramo de flores. O Presidente segurava o chapéu na mão esquerda e acenava com a direita. O sorriso parecia genuíno; o cansaço também. Então o carro com seus batedores do Serviço Secreto entrou numa rua cheia de trabalhadores. Quando o Presidente acenou, eles cruzaram os braços e olharam em outra dire­ção. De repente um homem ergueu um cartaz: "Liberdade para os Presos Políticos". O Presidente baixou o braço. O sorriso desapare­ceu. Edith ergueu os olhos para o marido com um horrível sorriso fixo, enquanto o veículo, como um carro fúnebre, atravessava a multidão.

As luzes se acenderam na sala de projeção.

Onde foi isso? — perguntou Caroline, adequadamente chocada.

Em Seattle. — Tim acenou para o homem do projetor. — É só isso. Obrigado.

Saíram juntos da sala de projeção e atravessaram o saguão que recendia a mofo até os escritórios que a Famous Players-Lasky tinha alugado para Traxler Productions, na esquina de Vine com Selma. Logo teriam que decidir se compravam ou construíam um çstúdio ou se continuavam pagando aluguel.

Você não pode usar isso. — Caroline foi firme.

— Se eu soubesse como, usaria. Mas não tenho uma história onde colocar isso.

Tim fixou os olhos na fila de aroeiras que ladeavam a Rua Vine. O estúdio Lasky, como todos chamavam, ocupava dois quarteirões. Na Rua Vine ficava o estúdio, um prédio cinzento de dois andares, ao passo que nos fundos, na Rua Argyle, ficava o terreno cercado, cheio de barracões dos técnicos, ruas de Nova York, aldeias fran­cesas, mansões inglesas todo tipo de cenário de que um filme poderia precisar.

Caroline estudou uma pilha de fotos suas. Na última hora, pelo menos para ela, um operador de câmera tinha descoberto que, se um pedaço de seda preta fosse colocado sobre a lente da câmera, subtrair-se-iam alguns anos da pessoa fotografada, acrescentando, por­tanto, alguns anos à vida ativa de atores mais velhos, entre eles Emma Traxler. As rugas desapareceriam ou eram reduzidas a meras essências platônicas. No pior dos casos, Emma simplesmente parecia abatida, porém espiritual, e era isso que o enredo de Os anos peri­gosos exigia: uma viúva rica apaixona-se pelo melhor amigo de seu filho na faculdade, um rapaz que usa calças presas nos joelhos para enfatizar sua pouca idade. Embora o ator fosse apenas uma década mais jovem que Caroline, a nova lente fazia dele um garoto e de Caroline uma conservada mulher de trinta e tantos anos. No final, Caroline cometeria suicídio, algo que ela esperava com ansiedade. Geralmente era vista, no final de um filme, caminhando para o fu­turo num pântano desolado, que quase sempre era o Campo de Golfe Burbank depois que a máquina de fazer neblina disfarçava os bu­racos. Então, um close final de seu rosto luminoso, transfigurado, enquanto o órgão do Sr. Wurlitzer tocava a Quarta Sinfonia de Tchaikovsky e as mulheres na platéia choravam. De alguma forma, misteriosamente e sem querer, Caroline Sanford tornara-se Emma Traxler, se não para sempre, pelo menos pelo tempo que ela deci­disse passar em Hollywood com Tim, e isso parecia ser a maior parte do ano.

Tim recuperara-se do fracasso de Os jura-greves através de um truque simples: reescrevera os cartões de legenda para favo­recer a direção da ferrovia e denunciar os grevistas. O resultado tinha sido elogiado pela imprensa popular como uma vitória para o capita­lismo; e ninguém fora ver o filme. Assim, no final, como Caroline observou, a integridade política tinha sido mantida.

Você tem que admitir que aquela cena daria um final sen­sacional para uma história sobre os wobblies[1]. Sabe, os operários ignorando o Presidente que colocara tantos de seus líderes na prisão.

Para que perseguir o coitado do Sr. Wilson?

Porque ele perseguia o coitado do Sr. Debs.

Caroline tomara a decisão de ignorar a curiosa linha política de Tim. "Filosofia" era uma palavra grande demais para descrever o que a ela parecia ser um impulso perverso de tomar sempre o lado dos fracos e perseguidos. Como os americanos só respeitavam os for­tes e os lutadores, ela pelo menos conseguira convencê-lo de que era ruim para a carreira dele identificar-se demais com os odiados pobres; no entanto, surpreendentemente, quando ela sugerira que fizessem um filme sobre a Revolução de Outubro da Rússia ele não se inte­ressara. Obviamente era mais radical do que revolucionário. Ela pró­pria sabia demais sobre política para acreditar em outra coisa além do fato prevalente da força nos negócios humanos. Henry Adams fora um bom professor.

Quando a secretária anunciou que Grace Kingsley do Los Angeles Times tinha aparecido, Tim deixou o escritório pela porta dos fundos. A coluna de lazer da Srta. Kingsley no Times era lida por todos em Hollywood, e bastante reproduzida em outros lugares. O mundo não se cansava de novidades a respeito do cinema, e a Srta. Kingsley era a principal ligação entre os estúdios e o público. Sendo solteirona, ela era espantosamente pouco escandalosa: não se interes­sava por romances ou escândalos, apenas pelos filmes planejados, em produção ou em lançamento.

Querida Srta. Traxler! — A Srta. Kingsley despiu uma comprida luva da mão pintalgada e Caroline, embora preferindo a luva, apertou carinhosamente a mão. — É ótimo tê-la perto de nós. Meu coração se aperta quando tenho que ir a Burbank ou àquela ultima Thule, a Universal City. Sinto-me uma desbravadora! Tanto cactus, tanta cebola, e o desfiladeiro Cahuenga me apavora.

A Srta. Kingsley acomodou-se numa poltrona forrada de chintz.

— Acabo de vir do Sr. Griffith. Graças ao Sr. Lasky, ele conseguiu financiamento novamente, e vai poder terminar Dias escarlates, sem dúvida um futuro monumento aos filmes de faroeste, que, se minha memória não falha, ele nunca fez. Ele me contou também, e isto cá entre nós, é claro, pois ainda não vou publicar, que vai voltar para o Leste quando terminar seu contrato com a Artcraft aqui. Mas então outro passarinho me contou que ele acaba de assinar um con­trato para três filmes com a First National, e isso vai mantê-lo aqui, imagino, por pelo menos outro ano.

— O estúdio dele está à venda? — quis saber Caroline.

Ela reverenciava o Sr. Griffith, como todo mundo; mas estava muito mais interessada no estúdio que ele construíra na esquina dos bulevares Hollywood e Sunset: dois palcos sonorizados, uma casa cujo proprietário fora despejado, e um laboratório onde era possível não apenas experimentar efeitos especiais mas também criar um filme inteiro, desde a impressão do negativo à edição e à copiagem para os distribuidores.

No caso de Griffith, o processo inteiro raramente levava mais de um mês. Uma vez tendo decidido o enredo, ele fazia seu desenhis­ta contratado desenhar cada cena, que então entregava ao diretor de arte, que chamaria os carpinteiros, pedreiros e pintores do estúdio, para que os cenários fossem construídos. Enquanto isso, Griffith es­taria ensaiando os atores. Durante anos ele próprio fora ator numa companhia de repertório, constantemente em turnê, e aprendera em primeira mão o que agradava ao grande público. Então, numa gran­de explosão de energia, às vezes em apenas 18 dias, ele realizava o filme numa atmosfera muito parecida com uma guerra, segundo Tim, que trabalhara como operador de câmera em dois dos primeiros fil­mes de Griffith. Embora o próprio Griffith fosse sempre muito edu­cado, gostava de criar tensão e inquietação à sua volta. Tim apren­dera com ele tudo que podia, e logo se afastara.

Eu suspeito... não tenho certeza... que ele vai vender, depois que terminar com seus compromissos aqui e se mudar para Mamaroneck, no Leste, só Deus sabe porquê.

— Nós gostaríamos de aumentar nossa produção, sabe? O Sr. Lasky tem sido muito gentil, mas estamos apertados aqui. O Sr. Farrell encontrou um lugar no Beco da Pobreza...

A Srta. Kingsley sacudiu a cabeça e suspirou.

— Não, não. Não para a Traxler Productions. Vocês são um símbolo de qualidade. Naquela rua eles fazem um filme por semana. Filmes vulgares!

Através da janela Caroline contemplou o Beco da Pobreza, qua­se invisível na vizinha Rua Gower. Os estúdios baratos pareciam uma fileira de galpões ou garagens reunidos ao acaso no que ainda era uma vasta plantação de laranjas.

Poderíamos construir, eu acho.

— Faça isso! Como Charlie Chaplin. Aquele é um lindo estúdio. Como gosto de ir lá! Tão inglês! Servem chá o tempo todo, e é claro que é lá que considero minha casa, a verdadeira Hollywood, e não o Vale ou Culver City, apesar do querido Sr. Ince.

O estúdio de Chaplin ficava no lado ocidental de La Brea, abaixo do Bulevar Santa Mónica, ao passo que, dois quarteirões a oeste de La Brea, seu colega da United Artists, Douglas Fairbanks, cons­truíra seu estúdio. Ali Mary Pickford juntar-se-ia a ele se ela, uma católica, conseguisse divorciar-se de seu marido alcoólatra, uma fonte de constante interesse para o mundo inteiro, se não para Caroline, que nada mais queria que um palco sonorizado barato e seu.

Você está pensando em fazer um filme sobre o terror comu­nista na Rússia — afirmou a Srta. Kingsley abrindo seu bloquinho.

— Como soube disso? — Caroline sempre se surpreendia com a quantidade de coisas que a distraída Srta. Kingsley sabia sobre tudo que se referia à "sua casa", a verdadeira Hollywood.

— Um dos meus passarinhos me contou. Ora, você sabe que aquele pessoal da Warner Brothers gastou cinqüenta mil dólares para comprar o livro do embaixador Gerard sobre a Alemanha e a guerra, de modo que existe uma forte tendência a fazer filmes com histórias da vida real de natureza moderna. Você estaria trabalhando a partir de um compêndio sobre o assunto?

Caroline achou tanta graça em ouvir a palavra "compêndio" usada correntemente que disse sem pensar:

— Ah, sim. Sim! O compêndio será Os dez dias que abalaram o mundo. Se conseguirmos os direitos, é claro.

O bloquinho da Srta. Kingsley quase.lhe caiu das mãos.

— Mas me disseram que esse é um "compêndio a favor do bol­chevismo!

— Ah, não da maneira como planejamos fazer o filme.

Vai mudar a mensagem, como fez em Os fura-greves?

A Srta. Kingsley estava longe de ser a tola que aparentava ser, e Caroline já se arrependia de ter falado sem pensar.

— Naquela base, sim. O Sr. Farrell está ansioso para alertar todos os americanos para os perigos do comunismo, que está em mar­cha por toda parte...

A Srta. Kingsley cantarolava alegremente enquanto escrevia sem parar e Caroline improvisava sem parar. Então Emma Traxler foi in­terrogada a respeito de seus planos como atriz. Emma Traxler fizera cinco filmes desde Os boches do inferno e, embora todos eles tives­sem dado dinheiro, nenhum se igualara à sua surpreendente estréia. Mesmo assim, Caroline espantava-se de ser uma espécie de musa que os produtores queriam usar. No ano anterior, Fairbanks convidara-a a representar a Rainha Berengária em seu Ricardo Coração de Leão; e ela aceitara ansiosa. Mas até então não havia planos para o filme. "Todos me acham contemporâneo demais para filmes de época", ele explicara quando se encontraram no restaurante Sala de Jantar dos Astros, no Hotel Hollywood, onde, surpreendentemente, de vez em quando alguns astros jantavam.

— Tenho planos, ou, melhor dizendo, esperanças de represen­tar Mary Stuart antes de ficar velha demais. — Caroline gostava de usar a única palavra que Hollywood não aceitava.

— Ora, ora, ora — murmurou a Srta. Kingsley, como se Caroline tivesse confessado alguma doença incurável. — Não, não, não — prosseguiu. — Nunca velha. O Sr. Farrell vai dirigi-la?

— Acho que não é a linha dele. Eu gostaria de usar esse jovem diretor alemão, o Sr. Lubitsch.

— Vi o Madame Du Barry dele — disse a Srta. Kingsley com ar severo. — Muito europeu, sabe o que quero dizer?

— Mas Mary Stuart também era, e eu também sou — retrucou Caroline, ensaiando uma risada rouca como a de Sarah Bernhardt.

— Parece inteiramente americana, Srta. Traxler.

Depois que a Srta. Kingsley fez seu mais alto elogio, as duas dis­cutiram o filme que Caroline estava rodando, agora em sua segunda semana de filmagem. Hoje ela estava livre porque a companhia es­tava fazendo uma cena de festa ao ar livre à qual sua personagem não fora convidada. A Srta. Kingsley recusou educadamente o convite para visitar as filmagens.

Caroline então acompanhou-a até a porta principal do estúdio, onde, como sempre, uma pequena multidão de fãs inocentes espera­vam para ver os astros entrarem e saírem, não sabendo o que os fãs menos inocentes sabiam: que os astros costumavam entrar pelo ter­reno da Argyle, a um quarteirão dali. O Sr. Lasky em pessoa cum­primentou a Srta. Kingsley à porta, onde um policial do estúdio mon­tava "guarda. Lasky parecia um duende gordinho e alegre. Dos produ­tores judeus, era o único nascido nos Estados Unidos. Enquanto seu sócio, Zukor, era autoritário e ríspido, Lasky era simpático e gentil; era apenas uma questão de tempo, todos achavam, até Lasky ser de­vorado pelo grande predador. Caroline estudava os diversos magna­tas do cinema com todo o empenho e a fascinação de um antropólogo.

— Consegui Maurice Maeterlinck, Edward Knoblok, Somerset Maugham e Elinor Glyn.

Esse foi o cumprimento de Lasky à Srta. Kingsley, que respon­deu com:

Viva! Quando é que eles vêm?

— Em janeiro. Consegui todos eles. Quer um, Srta. Traxler?

Quero, sim. Bernard Shaw.

Lasky franziu o cenho.

Este não vem. Acho que está resistindo. Mas quando perceber que pegamos todos os escritores famosos, virá correndo, garanto.

Caroline deixou o Sr. Lasky com a Srta. Kingsley e atravessou o prédio para chegar ao terreno dos fundos, onde a rua de casas de granito de Nova York sempre lembrava como ela gostaria de traba­lhar em A casa da alegria, da Sra. Wharton.

Estavam filmando na rua. Dois pistoleiros saíram de uma loja, atirando na câmera. Caroline escondeu-se atrás da rua, onde uma es­trutura de metal segurava as fachadas, que eram tão realistas que não se podia perceber que não eram reais. Graças à Exposição de 1915 em San Francisco, Hollywood adquirira diversos pedreiros italianos de primeira classe, trazidos para construir os falsos pavilhões renascen­tistas. Em certa ocasião, Griffith contratara todos para construir a Babilônia de Intolerância, um cenário que ainda podia ser visto, um pouco descascado — elefantes de trombas erguidas e deusas da ferti­lidade — na esquina dos bulevares Hollywood e Sunset.

O cenário de Caroline ficava logo atrás da rua de Nova York — uma mansão com um gramado, rodeada de altas árvores do Leste, o que significava que o departamento de arte transformara, artistica­mente, aroeiras em carvalhos.

Vinte damas e cavalheiros em trajes elegantes bebiam chá enquanto garçons circulavam com bandejas de sanduíches. O diretor es­tava sentado à direita do operador da câmera, um chapéu de feltro puxado sobre a testa. Os diretores se orgulhavam da originalidade de suas roupas. O diretor mais famoso de Lasky, Cecil B. DeMille, ves­tia-se como se fosse jogar pólo; outros, geralmente vindos do teatro, usavam calças listadas e paletós apropriados para um clube mas­culino em Nova York. Oleg Olmstead, diretor de Emma, estava vestido para jogar tênis, com o acréscimo do chapéu de feltro para pro­teger-lhe a cabeça do sol onipresente. Acenou para Caroline, que ace­nou de volta e ficou a observar a cena, na qual a atriz romântica do filme era do tipo ingênuo, uma criatura loura como jamais se sonhara em qualquer lugar a não ser Hollywood, onde o aperfeiçoamento — e até mesmo a brutal recriação — da natureza alcançava o mesmo nível dos pedreiros italianos.

A festa seria observada pela abatida Emma Traxler em seu luxuoso quarto de dormir, cuja janela dava para o gramado. Ela estava acamada com o que o roteiro dizia ser uma tosse, mas que Emma decretara ser uma febre: o operador de câmera já tinha trabalhado demais com ela sem ter que lidar com um rosto contorcido pela tosse. Quando a personagem de Emma finalmente se convencia de que a ju­ventude sempre procura a juventude, ela, apesar de sua fortuna e posição social, prontamente se suicidava, com um veneno não-identificado mas de ação rápida, que fazia seu rosto relaxar suavemente num doce sorriso final.

Quando a cena terminou, os extras foram dispensados e Mary Hulbert juntou-se a Caroline. As duas mulheres saíram juntas do estúdio.

— Você não imagina o que significa para mim estar trabalhando!

Mary fora uma mulher bonita e jovial, a quem a vida maltratara tanto que ela agora era obviamente triste e acabada. O primeiro ma­rido, o Sr. Hulbert, morrera; o segundo, o Sr. Peck, divorciara-se. Um filho adulto vivia na cidade de Nova York com o dinheiro que ela conseguia lhe enviar.

Uns dez anos antes, Mary morava com a mãe numa encantado­ra casa nas Bermudas, e foi lá que recebera o reitor de Princeton, Woodrow Wilson, quando ele passava as férias na ilha sem a primei­ra esposa. Caroline tinha certeza de que os dois tinham sido amantes. Outros achavam que não; afinal, Wilson simplesmente gostava da companhia das mulheres, principalmente das que sabiam recitar poe­sia e falar dele com imaginação. Por mais de uma década os dois tro­caram cartas, e as cartas tinham sido mencionadas na última eleição. O Tribune tinha recebido a oferta de cópias. Mas Caroline recusara, alegando que, embora fossem carinhosas, não podiam ser considera­das cartas de amor. Nessa ocasião Caroline conhecera Mary e a acha­ra encantadora. As próprias cartas eram um mistério, no sentido de que Caroline não tinha idéia se a própria Mary estava por trás da venda. De qualquer maneira, elas não afetaram a eleição, e um dos admiradores milionários do Presidente, Bernard Baruch, comprara-as todas.

No ano anterior, Mary apresentara-se no hotel de Caroline em Los Angeles e as duas se trataram como velhas amigas, principalmen­te porque Caroline adorava o mistério de uma relação que jamais fora segredo para qualquer pessoa, inclusive a primeira Sra. Wilson, que, simpaticamente, convidava Mary à Casa Branca para distrair o Presidente — ao contrário da segunda Sra. Wilson, que ficou muito feliz quando Mary decidiu procurar seu destino na Califórnia como — sucessivamente e sempre sem sucesso — fazendeira, escritora, de­coradora e atriz. Caroline arranjara-lhe trabalho no cinema. Além disso, contratara Mary para escrever um roteiro sobre a rainha Mary da Escócia.

Caroline gostava do conforto de dirigir ela própria seu Graham-Paige preto conversível — nada de motoristas. Quando atravessaram o portão da Rua Argyle, os fãs gritavam "Emma! Emma!". Emma sorria seu fascinante sorriso de Madona e pensava com melancolia na ameaça de seu dentista de extrair um incisivo esquerdo, o que faria, segundo uma dezena de atrizes lhe tinham assegurado, a carne junto à narina afundar-se, o que significaria um rosto assimétrico na tela a não ser que o outro incisivo fosse extraído também — nesse caso, ela poderia ficar com um rosto inteiramente novo e indesejado.

Havia pouco trânsito no que para Caroline ainda era uma aldeia. Ela entrou à esquerda no Bulevar Hollywood, uma rua bastante su­burbana, com casas amplas recuadas da calçada. Acima e paralela ao Bulevar Hollywood ficara a rústica Avenida Franklin, onde muitos astros moravam em colinas arborizadas que ainda eram selvagens: corujas, coiotes e tordos tornavam as noites barulhentas.

Na esquina de Cahuenga e Hollywood havia um pequeno grupo de lojas, inclusive a inevitável filial da United Drug Company, um banco e um grande bazar. Atrás dos prédios baixos das lojas, numa colina, ficava a mansão de Longpre, uma casa vitoriana com duas torretas, muito admirada pelos nativos. O dono, um pintor, oferecera a casa a Caroline, que respondera ser demasiado tímida para morar numa casa tão conspícua. Como estava fazendo, seu papel de Emma Traxler, isso era sem dúvida verdadeiro. Outros castelos, geralmente obra de dentistas e advogados de Chicago, tinham se mostrado igual­mente impróprios. Ela estava agora confortavelmente instalada no último andar do Edifício Garden Court no Bulevar Hollywood, logo depois de La Brea, assim denominada porque a palavra "brea" signifi­cava breu em espanhol, uma lembrança dos famosos depósitos de alcatrão de La Brea, onde antigos residentes do planeta ainda podiam ser observados, mergulhados no breu.

Caroline estacionou diante do Hollywood Hotel pelo lado da Avenida Highland e pensou, como fazia com freqüência, que Hollywood com seus trinta mil habitantes tinha todos os encantos de uma aldeia, sem as desvantagens. Apesar da atenção constante da im­prensa mundial, era possível desaparecer dentro de casa nas mon­tanhas e tornar-se parte da natureza, ou então pisar triunfalmente o palco do mundo, nos hotéis Hollywood ou Alexandria. Felizmente, no final da tarde, o palco do mundo, representado pela varanda do hotel, não estava cheio, e o único garçom lhes trouxe o chá.

Os automóveis que desciam o Bulevar Hollywood costumavam diminuir a velocidade para ver quem estava entrando ou saindo, ou tomando chá na varanda. Nos dias bons, Caroline gostava de ser re­conhecida. Hoje era um desses dias, se não fosse pelo incisivo es­querdo, que agora nunca estava distante de seus pensamentos en­quanto ela imaginava o pesadelo de uma depressão ao lado da narina que poderia enojar as platéias que contemplariam, horrorizadas, a ter­rível assimetria de um rosto antes perfeito. Não sou realmente vaido­sa, pensou ela, comendo um sanduíche de pepino. Sou simplesmente louca, como todos aqui.

— Como é que é ser duas pessoas? — Mary perguntou.

Não são todos? Pelo menos duas, eu diria.

— Não tão publicamente, pelo menos. Você é uma pessoa na tela, uma mulher misteriosa...

— Um segredo sem esfinge? — fez Caroline, contribuindo para sua própria lenda.

— E é também a Sra. Sanford, que todo mundo conhece.

— Só todo mundo no distrito de Colúmbia, que fica muito lon­ge. Adoro isto aqui.

Dá para perceber. — Mary acendeu um cigarro. Sua mão, Caroline percebeu, estava trêmula. — Se eu não tivesse tantos pro­blemas...

— Mary Stuart vai resolver isso. — Caroline já lhe dera um adiantamento pelo roteiro.

— Você tem sido muito generosa. — Mary riu, e Caroline vis­lumbrou o encanto que ela devia ter em melhores épocas. — Eu tam­bém fui generosa: não escrevi um livro.

— Talvez devesse fazer isso — disse Caroline Sanford, empur­rando Emma Traxler para o lado. — O Tribune podia fazer uma série.

— Vou escrever. Um dia. Mas agora não posso. Tenho que esperar até que ele... saia de cena.

— Mas então ninguém vai se interessar.

Ora, ele é eternamente histórico, não acha?

Um rapaz esguio e belo, com feições espantosamente regulares, cumprimentou Caroline, que lhe perguntou:

— Gostaria de ser Bothwell no meu A rainha Mary da Escócia?

— Detesto cavalos — disse ele simplesmente. — Viu o Sr. Griffith?

Caroline disse que não.

— Com certeza está escondido lá dentro. Vamos ter finalmente nossa estréia, no Auditório Clune.

Nunca consigo me lembrar do nome.

— O ramalhete despedaçado. — O rapaz riu. — Faço o papel de um chinês.

O rapaz entrou, e Mary comentou:

Ele daria um Bothwell magnífico.

Daria mesmo, se fosse vinte anos mais moço.

Caroline, que nunca se importara muito com o envelhecimento, agora o odiava: se estava passando por isso tão bem, por que tinha que passar por isso? Um bonde elétrico vermelho passou lá embaixo na rua. Uma mulher acenou para Emma Traxler, que acenou de volta.

— Chegou a conhecer a Sra. Wilson?

Mary sacudiu a cabeça.

— Soube que ela tem ciúmes. Não posso imaginar por quê. Afi­nal, foi ela quem casou com ele.

— Você teria casado com ele?

A risada de Mary era encantadora.

— Ah, teria, sim, mas ele nunca me pediu. Pensei que ia fazer isso. Na verdade, ainda tenho a renda que comprei para o vestido com que esperava casar.

Caroline encarou-a com um interesse renovado. Os enredos dos filmes raramente eram tão inesperados.

— Então você deve ter tido boas razões para achar que ele ia querer casar com você.

— Tinha, sim. Afinal, eu fui a escolha da primeira mulher dele. Durante muito tempo ela soube que ia morrer, e gostava de me ter na Casa Branca para... distraí-lo. Foi o que fiz, ou tentei fazer. Quando eu não estava lá, ele me escrevia todos os domingos, duran­te anos e anos.

As afamadas cartas de amor?

— As difamadas, eu diria, e não eram de amor. Mais de carinho do que de amor, e na verdade mais políticas que qualquer outra coisa.

Acho que foi por isso que ele ficou tão nervoso quando o Sr. McAdoo disse que eu estava mostrando as cartas aos outros. Ele sempre foi muito indiscreto a respeito de outros políticos, e estávamos em ano de eleição.

Caroline agora tinha certeza de que o Presidente e Mary Peck Hulbert tinham tido um caso. A brilhante exposição pública de sua amizade era prova disso. Naturalmente o Presidente era um homem muito estranho mesmo, como uma complicada peça de máquina cuida­dosamente enrolada em torno de si mesma. No entanto, era mais que suscetível à paixão física; daí a indecorosa rapidez do segundo ca­samento, apesar das fortes objeções de seus conselheiros, principalmente o coronel House e McAdoo.

— Como foi que McAdoo soube que você estava mostrando as cartas?

Mary colocou um cubo de açúcar no chá e então, heroicamente, retirou-o.

— Ele não soube. Porque eu não estava mostrando. Foi uma conspiração qualquer na Casa Branca. Todos estavam preocupados, pois se o Presidente casasse com a Sra. Galt ele poderia perder a elei­ção. A coitada da Eilen morrera apenas um ano antes. E além disso havia eu. No outono e inverno depois da morte de Eilen, ele me im­plorou que fosse ficar na Casa Branca. Mas eu não podia. Meu filho tinha perdido muito dinheiro, e eu estava tentando conseguir traba­lho como decoradora em Boston, que não é a melhor cidade para esse tipo de coisa...

Caroline murmurou que não, maravilhando-se com a diversidade dos interesses de Mary. Em sua pobreza, ela tentara todas as profissões exceto a óbvia: o casamento.

— Por que não se mudou para a Casa Branca e casou com ele?

— Eu devia ter feito isso — foi a rápida resposta. — Mas estava preocupada com meu filho, e com dinheiro, e estava escrevendo artigos para o Ladie's Home Journal. Eles disseram que tinham per­dido alguns dos meus artigos, o que eu sabia que era mentira, de modo que fiz o Presidente, que horror, escrever para o editor, que logo encontrou os artigos e os publicou.

Caroline agora chegava à conclusão de que Mary Peck Hulbert era espantosamente , tola. Preocupar um Presidente em época de guerra com algo tão trivial sugeria uma verdadeira megalomania; preocupar de tal modo um homem enlutado e apaixonado por ela era monstruo­so. Caroline contemplou Mary com absoluto deleite.

Conte-me mais coisas sobre McAdoo.

Bem, parece, não tenho certeza, que ele disse ao Presidente que alguém lhe escrevera anonimamente da Califórnia dizendo que eu estava mostrando as cartas dele aos outros, de modo que isso, e mais o fato de que ele tinha me dado 7.500 dólares, fazia parecer que...

Longe da mesa estava a luminosa Madona Emma Traxler; sen­tada agora em seu lugar como um anjo da vingança estava Caroline Sanford, jornalista amarela.

Ele lhe emprestou dinheiro.

Ah, emprestou, sim. Eu estava completamente dura, entende? De modo que fui à Casa Branca, em... bem, logo depois que o Lusitania foi afundado, eu me lembro. Pedi-lhe que aceitasse duas hipotecas minhas de 7.500 dólares, e ele concordou, embora não te­nha me dito que estava prestes a casar-se com Edith. Mas acho que eu já desconfiava. Quero dizer, a gente sempre percebe esse tipo de coisa, não acha?

É, sim. Sempre.

Preciso ir.

Ah, não!

— Você tem sido tão boa para mim, Caroline...

As duas puseram-se de pé.

— Vou levá-la de carro.

— Não. São só vinte minutos de bonde elétrico.

Vai ouvir o discurso dele?

O Presidente iria discursar na noite seguinte no Shriners Auditorium.

— Não vou poder — disse Mary. — Mas vou almoçar com ele e Edith no dia seguinte. No domingo. Estou achando horrível, na verdade.

— Quer que eu vá com você? — Caroline lembrou-se de um tubarão que vira na costa da ilha Catalina e que, como um torpedo, atacara e quase destruíra um barquinho.

— Você iria? — A reação de Mary foi tão simpática e espontânea que sua intenção quase passou despercebida a Caroline. — Sei que você os conhece tão bem...

— Nem tanto assim. Mas o Tribune o apóia, de modo que ambos são amáveis comigo.

— Encontre-se comigo na portaria do Alexandria Hotel ao meio- dia e meia. Vou avisar a eles.

Mary então correu para a esquina de Highland e Hollywood, onde um bonde vermelho esperava. Caroline acenou-lhe quando o bonde elétrico partiu para o leste. Três homens subiram os degraus para a varanda. Ela reconheceu um deles. Ele fez uma reverência pro­funda; ela, uma ainda mais profunda.

Sr. Griffith... —disse, respeitosamente.

Madame Traxler... — Ele tinha uma voz melodramática, teatral, e parecia, apropriadamente, uma águia-careca americana. Deveria estar num palco, trabalhando. Vejo-a parada junto a uma ja­nela. Está amanhecendo. As cortinas brancas e leves atrás de você estão se movendo ao vento...

De dentro ou de fora? fez Caroline, sem conseguir resistir.

O grande homem riu.

Você sabe tanta coisa! Metade dos diretores colocam o.vento do lado de dentro. Preciso muito conversar com você. Depois da estréia...

O Sr. Barthelmess está esperando pelo senhor lá dentro.

Madame... — Outra reverência ainda mais profunda, e então ele entrou; quando passou, ela sentiu o cheiro do uísque em seu hálito.

No Garden Court, Héloise vivia o que considerava unja vida rústica e rural num apartamento renascentista em Hollywood. O apar­tamento de Tim era contíguo ao de Caroline, e a gerência não pusera objeções quando uma porta entre os dois fora destrancada. Mas o Garden Court acabara de abrir, e Emma Traxler era a primeira ce­lebridade a fixar residência ali. Héloise ocasionalmente condescendia em cozinhar para os dois; depois, era cedo para as camas separadas. Caroline achava que fazer filmes era muito parecido com ir à esco­la: acordava-se ao amanhecer, passava-se o dia decorando textos e tentando agradar aos outros, depois ia-se dormir, como se dizia por lá, com as galinhas.

Caroline deitou-se num sofá, uma pilha de roteiros no chão a seu lado. No escritório, Tim fazia anotações para o trabalho do dia seguinte. Na pequena cozinha, Héloise manejava panelas ruidosa­mente.

Isso era a vida doméstica, Caroline concluiu agradavelmente; e também a simplicidade. Nunca morara num apartamento antes; nun­ca vivera sem muitos empregados; finalmente estava livre de verdade, tudo graças à Califórnia e à nova invenção que reunira algumas das pessoas mais extraordinárias do planeta.

Devo morrer de olhos abertos ou fechados?

Psiu — fez Tim, sem parar de escrever.

Abertos, eu acho. Andei praticando. Tudo que é preciso fazer é deixá-los fora de foco bem devagar.

Você vai piscar.

— Não vou, não. Vou almoçar com o seu. novo astro, o Sr. Wilson.

Isso atraiu a atenção de Tim, que pousou seu bloco de anotações.

— Quando? — perguntou ele.

Domingo. No dia seguinte ao discurso.

Vou filmar dentro do Shriners.

Por quê?

— Não sei. Quero dizer, sempre posso usar aquela filmagem dele em Seattle em. qualquer história sobre os sindicatos. Contra os sindicatos, é claro.

É claro. Mas por que filmá-lo no Shriners?

Pode acontecer alguma coisa.

— Acha que vão atirar nele?

— Não seria maravilhoso? — Os olhos azuis de Tim incendiaram-se de prazer. — Mas nunca teria uma sorte dessas.

— Graças a Deus. Gosto muito do Sr. Wilson.

Ninguém até hoje filmou cenas da vida real, sabe, o Presidente num circuito de comícios pelo país, e depois misturou com uma história inventada.

Caroline vislumbrou as possibilidades — e os perigos.

— O que é, então, a história inventada?

— Ora, alguma coisa política. Talvez até relacionada com a Liga das Nações, mas tem que ter também uma história pessoal.

Caroline pensou em Mary Hulbert, uma história tão maravilho­samente despropositada, no entanto estranha, que a ficção não pode­ria abarcar, e os amantes na vida real a rejeitariam. Ela tentou vi­sualizar a carta do Presidente para o editor do Ladies Home Journal. Então olhou para Tim e imaginou a bandeira vermelha atrás dele, ou, pior, a cruz.

— As possibilidades de termos problemas são infinitas, meu querido — disse, voltando para Emma Traxler, carinhosa, compre­ensiva, porém delicadamente repreensiva. — A. Mitchell Palmer está louco para colocar você na prisão por traição, e só o Tribune conseguiu evitar.

Continue evitando — respondeu Tim suavemente.

Por que mexer com política?

Tim assumiu um ar inspirado.

— Porque preciso.

Você é comunista?

-— Poderia ser. Um dia. Por que não?

Caroline suspirou.

Vai se arruinar.

— Pensei que este fosse um país livre.

— Pensou? Então não pense, meu amor, nunca mais. Porque seu cérebro não é a sua qualidade mais... formidável. É o seu coração que o enaltece, e a mim. Estou falando exatamente como um cartão de legenda, e você não vai me escutar.

— Que foi que eu criei? — Tim estava encantado com Emma Traxler, menos satisfeito com Caroline Sanford. — Tenho certeza de que nunca falou assim antes de me conhecer.

— Ninguém fala assim fora do cinema — retorquiu Caroline. — A única liberdade que o americano tem é a de se conformar, como você já percebeu.

Caroline não se importava nem um pouco com a disparidade en­tre a reluzente imagem que o país fazia de si mesmo e a crua reali­dade. Estava inteiramente do lado dos dirigentes, por mais ridículos e desagradáveis que tantos deles fossem. Sentia certa pena do povo em geral, mas nada podia fazer por ele exceto revelar assassinatos através da imprensa e cometer suicídio na tela — com os olhos bem abertos, decidiu; e mesmo quando os sais fossem colocados sob suas narinas ela não piscaria, prometeu.

— Deixe a política de fora — concluiu.

A Warners está indo muito bem com o livro daquele embaixador...

Isso é sobra de material anti-boches.

Um tordo iniciou sua música do lado de fora da janela; Caroline levantou-se e foi conjtemplar Hollywood lá fora. A distância, as enor­mes ruínas da Babilônia persistiam em encher esteticamente o céu oriental com elefantes de gesso. Hollywood, ela concluiu, podia estar em qualquer lugar — exceto na terra e no tempo.

O Alexandria Hotel estava positivamente nos Estados Unidos e no tempo presente. O saguão regurgitava de homens do Serviço Se­creto, policiais militares estaduais, policiais civis, delegações políticas, todos esperando um sinal do alto indicando que o Presidente os re­ceberia. O intermediário era o homem do Serviço Secreto do Presi­dente, Sr. Starling, que estava sentado atrás de uma escrivaninha dourada perto dos elevadores. Tinha à sua frente uma lista de nomes e um telefone, e ostentava o ar abstraído de alguém que escolheu a invisibilidade. Na realidade, apenas aqueles que tinham negócios com o Presidente eram apresentados a Starling por um tenso subgerente.

Para surpresa de Caroline, Mary atrasou-se. Quando, esta atraves­sou o famoso tapete de um milhão de dólares que cobria o chão do saguão, Caroline percebeu que ela mancava levemente.

— Perdi o bonde. Onde eu moro ele só passa de hora em hora.

Mary dirigiu-se ao balcão da recepção, mas Caroline levou-a ao Sr. Starling, que ergueu-se ao vê-la.

— É um prazer revê-la, Sra. Sanford.

— Olá, Sr. Starling. — Caroline sorriu um sorriso Sanford. — Esta é a Sra. Hulbert. Somos esperadas para o almoço.

Starling franziu o cenho para a lista sobre a mesa.

— Pensei que fosse a Sra. Peck.

Sou a Sra. Peck também.

De repente Mary era a Primeira Dama do Local. Starling dedi­cou-lhe um olhar longo e curioso, depois levou-as ao elevador.

Este aqui vai direto ao andar deles. O policial vai fazê-las entrar — informou.

Starling foi ao telefone e as damas subiram.

— O Sr. Griffith mora aqui — comentou Caroline. — Ou mo­rava. Os atores gostam mais de hotéis do que de casas.

— Coitadinhos — compadeceu-se Mary.

Um policial recebeu-as à porta do elevador e acompanhou-as até a sala de estar de uma ampla suíte, onde estava Edith Wilson. Perto de l,80m de altura, ela podia parecer bastante ameaçadora em carne e osso. Cumprimentou Caroline carinhosamente. Então, com impecável cortesia, esticou inteiramente o braço e apertou a mão de Mary nas suas.

— Muito prazer em conhecê-la, Sra. Peck.

— O mesmo, Sra. Wilson. Sabe, voltei para meu antigo sobre­nome, Hulbert.

Lamento — foi a resposta ambígua.

Brooks, o criado negro, abriu a porta do quarto e o Presidente entrou, muito bem vestido num paletó esportivo azul e calças brancas.

Parecia um pouco queimado de sol; no entanto, não aparentava saú­de. Os olhos atrás do pincenê eram vagos. Mas o sorriso era genuíno.

— Mary! — exclamou, e apertou a mão dela durante um longo momento. — Você não muda — acrescentou.

No extremo oposto do aposento, Brooks ajudava um garçom do hotel a preparar uma mesa de almoço para cinco. O Presidente indicou que as duas se sentassem.

— Sra. Sanford, ainda me lembro quando assistimos seu filme com a senhora, e jamais imaginamos que era a senhora que estávamos vendo.

— Eu adivinhei, Woodrow — interpôs Edith, serenamente sábia.

— Você suspeitou — corrigiu ele. — Mas nenhum de nós tinha certeza. Agora a senhora está em todos os filmes!

— Apenas parece que estou em todos os filmes.

— Como é que chora com tanta facilidade? — perguntou Edith. — Quero dizer, nunca tendo representado antes.

— Todos nós representamos o tempo todo em nossa vida...

— Eu sim — fez o Presidente. — Mas pensei que era o único.

— Você é um ator nato — comentou Mary em tom carinhoso. — Nunca vou esquecer o rei Lear que você fez na praia nas Bermu­das, só para Mark Twain e eu.

Muito bom, pensou Caroline, olhando de relance para Edith, cujo sorriso parecia ter sido entalhado na manteiga firmè de seu rosto redondo e cheio.

— Eu não fui ao Shriners ontem à noite — Caroline resolveu intervir. — Mas o Times adorou, e o Sr. Farrell, lembra-se, o meu diretor?, ele disse que foi emocionante.

Wilson assentiu vagamente, olhos em Mary, que estava acenden­do um cigarro. Edith continuava sorrindo.

— Mas não está fazendo discursos demais? Quero dizer, para a sua... — Caroline ia dizer "saúde", mas substituiu: — ...voz?

— Claro que está. — Edith foi firme. — Mas quando resolve uma coisa...

— Tenho que me equiparar à oposição. Hiram Johnson anda por todo o estado atacando a Liga. O pior é o... o...

Wilson interrompeu-se e franziu o cenho. O sorriso de Edith era impenetrável. Caroline suspeitou de afasia, algo de que ela própria sofria quando estava cansada: a palavra necessária, mesmo a mais simples, desaparecia de repente.

— ... a acústica — disse Mary corretamente, para grande desprazer de Edith. — Os painéis de ressonância nunca estão no lugar certo.

— Mas San Diego foi ainda pior — continuou Wilson, feliz por estar novamente na rota. — Eles têm um aparelho novo chamado "fone de voz". A pessoa tem que ficar absolutamente imóvel e falar para dentro dele, e de um modo qualquer ele é ligado a alto-falantes. Como o rádio, imagino. Nunca passei momentos tão difíceis. Gosto de me movimentar, sabem, mas lá estava eu, condenado à morte se me movesse.

— Foi horrível para Woodrow. Mas trinta mil pessoas o escuta­ram como se ele estivesse falando ao ouvido de cada uma delas.

Não, não. — Wilson franziu a testa. — Não é verdade. Bem à minha frente havia uma seção que não conseguia ouvir coisa algu­ma. Absolutamente nada. — O rosto avermelhou-se. Ele sacudiu a cabeça e tossiu. — Asma — murmurou dentro do lenço. — Imagi­nem, logo agora!

Repentinamente o almirante Grayson estava dentro da sala. Cumprimentou Mary e Caroline, tomou o pulso do Presidente, sorriu e disse:

O almoço está pronto. Este era para ser nosso domingo de descanso.

Caroline achou que isso era dirigido a Mary, mas enquanto os levava para a mesa o Presidente descreveu suas aventuras naquela manhã.

Eu estava querendo visitar uma velha amiga da minha esposa, minha finada esposa, que mora aqui mas não tem telefone. En­tão, a primeira coisa que fizemos foi sair pela porta dos fundos, fu­gindo da imprensa e da multidão, e fomos à casa dela, mas ela não estava. Então o homem do Serviço Secreto descobriu que ela tinha ido para a estação ferroviária para me ver, de modo que corremos para a estação e lá estava ela...

— Podem imaginar? — fez Edith. — Nós dois correndo por Los Angeles com o Serviço Secreto muito atrás ou então bem na frente...

Como Mack Sennet — disse Wilson — conhece-o?

Voltou-se para Caroline, que enviou uma afirmação silenciosa, tipo Emma Traxler.

Diga a ele que jamais me cansarei do Ben Turpin. Ele me lembra o Senado...

Ele me lembra você hoje de manhã, tão pouco sério — interpôs Edith placidamente. — De qualquer maneira, lá estava a velha amiga de Eilen no trem na estação, de modo que tivemos mesmo uma conversa íntima, rodeados de milhares de eleitores curiosos. En­tão corri de volta para cá para providenciar o almoço, e Woodrow veio em seguida.

Caroline entendia por que Edith não estava feliz com a idéia de dividir o dia bíblico de descanso com uma amiga da primeira esposa e uma ex-amante do marido. Mary não aumentou a alegria de Edith ao perguntar a Wilson:

— Lembra-se deste vestido?

Ajudou ainda menos quando Wilson assentiu e respondeu:

— Você o usou em maio de 1915, na Casa Branca.

Edith ergueu o cardápio.

O que é, ou são, abalone? — perguntou em voz de fúria contida.

Felizmente a paixão do Presidente pelo cinema agora era maior do que a sua antiga paixão por Mary, de modo que Caroline ganhou inúmeros pontos aos olhos de Edith contando todos os casos de Hol­lywood de que conseguiu lembrar-se. O Presidente estava particular­mente interessado no que seu genro, McAdoo, tinha conseguido na United Artists.

Durante o almoço, Tumulty assomava à porta do aposento con­tíguo e dizia "Convertidos, senhor", e Wilson era obrigado a ir até a outra sala apertar as mãos de delegações de visitantes. Mary e Edith então discutiam os méritos e deméritos da Califórnia, um estado que eles tinham finalmente rejeitado para sua aposentadoria por ser dis­tante demais. Edith não especificou de quê.

Finalmente, liquidados os convertidos e o almoço, sentaram-se na sala de visitas da suíte e Mary contou que pessoas desconhecidas, porém suspeitas, tinham revistado sua casa e roubado as cartas de Wilson.

— Que nossa querida Caroline teve em oferta e recusou, por isso a convidei.

Quem foi que as ofereceu? — Edith voltou-se para Caroline, mas seus olhos não se afastaram do rosto cansado do Presidente.

— Um jornalista que conhecemos. Não quis revelar como as con­seguiu. Os jornalistas nunca revelam essas coisas. Recusei, é claro.

— Pobre Mary, pensar que você passou por tudo isso por minha causa... — suspirou Wilson.

— Bem, com tanta fumaça com certeza há algum fogo — disse Edith, numa tentativa de humor.

Mas com certeza você não era amante de von Bernstorff.

A resposta súbita e pesada de Mary tornava claro por que Wilson costumava adorar sua companhia. Antes de se casar com Wilson, Edith realmente conhecera — até que ponto? — o notório embaixa­dor alemão.

Edith aparou o ataque com aparente simpatia sulina que envol­via um simulacro de risadinha negróide, seguida de:

— Juro que as histórias, que inventam sobre nós são mais inte­ressantes que os filmes.

Felizmente Wilson não percebera — ou compreendera — esse diálogo.

— Pensei em renunciar — disse de repente, e levou o dedo aos lábios, num aviso não inteiramente fingido de que tudo isso era segredo.

— Mas está com ótima aparência. — Mary estava interessada agora em seus próprios problemas, e Caroline podia perceber que uma carta do Presidente para, talvez, seu senhorio, seria necessária.

— Não por motivo de saúde. Por causa da Liga das Nações. Se tiver dificuldade com o Senado, e rezo para não ter depois dessa turnê, mas se tiver vou propor que todos renunciemos, o vice-presi­dente, eu e os senadores que se opõem, e que então tenhamos uma eleição nacional para decidir se a Liga será ou não aceita.

Caroline não podia acreditar que o Presidente estivesse falando seriamente; mas quando viu Edith balançando a cabeça como um Buda, ela compreendeu que Wilson tinha entrado numa fase nova e perigosa.

Os governadores estão dispostos, soubemos — disse Edith. — São eles que têm que convocar a eleição, estado por estado.

Então você terá o governo parlamentar que sempre desejou — fez Mary, permitindo-se distrair-se com a história por um mo­mento.

Wilson sorriu.

— Não tinha pensado nisso. Mas imagino que é o que estaríamos fazendo, indo ao país, como dizem os ingleses, e a respeito de um grande assunto, em vez da política de sempre. Seria um prazer tão grande concentrar aqueles cérebros de minhoca do Senado em algu­ma coisa importante!

Mary então voltou, com gentil persistência, aos problemas finan­ceiros do filho e ao alto custo de vida em Los Angeles. Edith sorria e espumava ao mesmo tempo.

Caroline sentiu-se embaraçada pela monotonia do egocentrismo de Mary. Por outro lado, o Presidente contemplava-a absorto, como se ela ainda fosse encantadora e ele estivesse encantado. Então Grayson entrou. Era o fim da audiência.

Edith ergueu-se.

— Muito obrigada por ter vindo nos visitar — disse a Mary, que acabava de começar a descrever a possibilidade de entrar em so­ciedade com a decoradora Elsie de Wolfe, como associada em Los Angeles.

Edith deixou o aposento para buscar o casaco de Mary. Caroline dirigiu-se — deslizou — para a janela, para colocar a maior distância possível entre o casal reunido pelos astros. Tentou não escutar, con­templando Culver City a distância, entre tantas agressivas plantações de cebolas cuja planura era quebrada abruptamente pelo estúdio em estilo de mansão sulina de Thomas H. Ince, o primeiro produtor dela, cujos visitantes não eram recebidos pelo policial costumeiro mas sim por um gracioso mordomo negro em traje completo.

Que é que posso fazer? — A voz de Wilson era baixa, mas não o suficiente para os ouvidos aguçados de Caroline.

Você poderia ajudar meu filho. Em Nova York. Aqui está. Escrevi o nome e o endereço dele.

Mas e quanto a você?

— Lindo casaco — disse Edith.

Caroline voltou-se para observar o curioso triângulo. As despe­didas foram feitas. Mas Wilson insistiu em levar as senhoras até o elevador. Edith ficou onde estava, em toda a sua plácida imensidão.

Enquanto o policial segurava a porta aberta do elevador, Mary recitou de repente:

— "Com toda a minha vontade, mas bem contra o meu coração, agora nos separamos."

Havia lágrimas nos olhos de Wilson quando as duas mulheres en­traram no elevador e as portas se fecharam. Caroline e Mary desce­ram para o saguão. Perto da janela do caixa, Mary fez uma pausa.

— Conhecem você aqui, minha cara?

Acho que sim — disse Emma Traxler, conhecida por todos.

— Você poderia me ajudar a descontar um cheque minúsculo?

Estive tão ocupada trabalhando no seu filme, e hoje, naturalmente, é domingo...

Emma Traxler obrigou um funcionário relutante a descontar o cheque. Pelo menos, o Presidente fora poupado da indignidade de endossar o cheque de Mary Hulbert.

 

O vice-presidente dos Estados Unidos encarou os olhos cegos dó Cícero de mármore enquanto Burden recostava-se em sua cadeira gi­ratória de couro preto, os pés sobre a escrivaninha.

— Esta é a coisa mais parecida com o velho Bryan que eu já vi — Marshall declarou finalmente.

Burden assentiu num gesto grave. Era para ele uma contínua fonte de prazer que ninguém jamais tivesse reconhecido o busto em tamanho natural como sendo Cícero. Todos pensavam tratar-se de Bryan, progenitor político de Burden.

Depois de um dos verões mais quentes da história, o outono também fora quente; e agora, em outubro, as folhas não tinham ama­relado, mas simplesmente queimado e caído, e o Capitólio parecia poeirento e nu em sua colina marrom.

Marshall sentou-se perto da lareira e acendeu um charuto que custara mais que o "bom charuto de cinco centavos" que ele certa vez dissera tão memoravelmente que o país precisava.

— Esteve na outra ponta ultimamente?

Assim eles se referiam à Casa Branca, no extremo oposto da Avenida Pennsylvania.

Burden sacudiu a cabeça.

— Tumulty não me deixa falar sequer com a Sra. Wilson.

— Esteve ruim — disse Marshall. — Agora está pior. O Presidente está à morte.

Quem lhe contou?

O espanto de Burden não era tanto pela alarmante notícia, quan­to pelo fato de que alguém conseguira descobrir alguma coisa do que se passava por trás dos portões trancados da Casa Branca.

Não posso dizer. Tumulty diz que vai esclarecer. Mas não esclarece. Grayson é médico, e eles não falam... a não ser quando falam. A Sra. Wilson é a presidenta... E tudo o que fazem é nos impingir a ladainha oficial sobre um colapso nervoso, seja lá o que for isto, no trem, de modo que tiveram que voltar correndo para Washington. Soa como se ele tivesse tido uma espécie de derrame, por isso não pode aparecer em público. Agora, hoje de manhã ele foi encontrado caído no chão do banheiro, parece que está paralítico e os rins não funcionam, e os filhos da puta se recusam a revelar ao país ou a mim, o vice-presidente. As notícias que tenho são através dos mexericos.

Embora Burden pessoalmente gostasse de Wilson, a questão ago­ra estava além dos gostos pessoais. Não era um homem que estava doente, e sim um sistema político que estava paralisado.

— Conversou com Lansing?

— Hoje não. Ele está dirigindo o Gabinete de um modo ad hôc, e todos continuam cuidando de seus departamentos como sempre fa­zem, mas, meu Deus, temos uma greve de metalúrgicos nas mãos e uma greve de carvoeiros, e o inverno vindo aí, a lei marcial ém Omaha, graças ao linchamento daquele negro, e além disso Lodge...

Lodge. Se eu fosse você, pegaria Lansing e iria à Casa Branca, pediria para ver o Presidente. Se disserem que não, invoque a Constituição e retire-o do cargo até quando ele estiver capaz de exercer seus deveres.

A posição de Burden era severa e precisa. O governo americano não podia funcionar sem um Executivo, apesar das pretensões dos empavonados senadores.

Não tenho coragem, simplesmente. — Marshall parecia desanimado. — Lansing mencionou o assunto à Sra. Wilson, e ela quase arrancou a cabeça dele.

Burden pensou em como as coisas seriam diferentes se ele, e não Marshall, fosse vice-presidente.

Por quanto tempo eles poderão enrolar todo mundo?

Quem é que vai impedi-los? Você percebe que ele podia morrer e Grayson, Tumulty e a mulher podiam continuar fingindo que ele está ótimo?

Ele ainda precisa assinar as leis. Hitchcock está com quatro em sua mesa, inclusive a proibição às bebidas alcoólicas, e se não forem assinadas ou vetadas dentro de dez dias, serão leis.

Droga, Burden. Você e eu sabemos que qualquer das nossas secretárias pode assinar nosso nome tão bem quanto nós.

Os dois homens ficaram em silêncio. A primeira regência ame­ricana tinha começado e nada se podia fazer a respeito, enquanto a esposa do Presidente e o seu médico dissessem que ele tinha capaci­dade. Enquanto isso, a Liga, pela qual Wilson dera, se não a vida, pelo menos a saúde e provavelmente a sanidade mental, ainda podia ser salva. Lodge concordara com o princípio de duas ligas. Uma no hemisfério oriental e outra no hemisfério ocidental, onde a Doutrina Monroe tinha lugar. Juntas, as auas seriam mais fortes e menos pe­rigosas que uma só. Finalmente, por mais que Lodge odiasse Wilson e toda a sua obra — as forças antiliga que ele orgulhosamente lide­rava denominavam-se o Batalhão da Morte —, ele era também um senador internacionalista da Nova Inglaterra e percebia a loucura dé perder um instrumento potencialmente tão promissor quanto uma liga mundial liderada pelos Estados Unidos; daí a sua invenção de um Augusto do Leste e um do Oeste. Mas agora não havia um Presidente com quem lidar, e seu sucessor legal encarava, desanimado, o fogo da lareira de Burden, um charuto de um dólar entre os dentes.

Só em 17 de novembro foi que Burden e Hitchcock foram con­vocados à Casa Branca. Hitchcock tinha estado lá antes, e avisou Burden para não mostrar surpresa diante do que visse.

— E diante do que eu ouvir?

Hitchcock não respondeu. Os portões da Casa Branca foram des­trancados e o comprido Packard estacionou no pórtico norte. O dia estava frio e seco, e em toda parte havia montes sujos de neve antiga, deixada pela recente nevasca costal que sempre coincidia tão direiti­nho com as greves dos mineiros de carvão. No momento, quase quatro­centos mil mineiros recusavam-se a trabalhar, e o líder deles, John L. Lewis, duvidava publicamente de que os homens do general Wood pudessem cavar com suas baionetas carvão suficiente para aquecer a nação.

A Sra. Wilson e o almirante Grayson esperavam por eles no saguão do andar superior. Ambos mostravam um sorriso incongruente; ambos pareciam não dormir havia uma semana. Fora isso, o corredor normalmente movimentado parecia a ala terminal de um hospital. Nenhuma secretária ocupava a escrivaninha da Srta. Benson, sobre a qual, Burden percebeu, descansavam a bolsa e o tricô da Sra. Wilson. Obviamente ela passava muito tempo à escrivaninha, vigiando a porta.

Temos ótimas notícias, cavalheiros — disse a Sra. Wilson. — Ele está numa cadeira de rodas, e esta tarde vamos sair pela pri­meira vez.

A recuperação tem sido espantosa, realmente espantosa — afirmou o almirante Grayson.

— De quê? — Burden não se sentia nem um pouco cortesão.

Hitchcock lançou-lhe um olhar severo, mas os conspiradores es­tavam preparados para perguntas.

— Primeiro, exaustão da turnê. Depois o que temíamos ser ure- mia. Depois um problema na próstata, que surgiu e, com a medicação, já desapareceu.

— Não queríamos uma operação, Woodrow e eu, embora alguns médicos quisessem. Graças a Deus não quisemos. Agora ele está con­valescendo. — Com uma risada alegre, a Sra. Wilson levou-os para o quarto.

O Presidente estava cuidadosamente arrumado numa cadeira de rodas diante de uma janela cuja luz colocava-o em silhueta, de modo que era difícil distinguir as feições do lado direito de seu rosto, ao passo que o esquerdo estava virado para a janela. Usava um xale, de dentro do qual estendeu a mão direita e apertou firmemente a mão de cada senador.

O Presidente estava inteiramente irreconhecível. Para começar, usava uma comprida barba branca que parecia um acessório de teatro de comédia. O rosto normalmente esguio agora era cadavérico; e a fala levemente arrastada. O boato era verdadeiro, afinal. O lado esquerdo de Wilson estava paralisado. Fossem quais fossem seus ou­tros problemas, ele sofrera um grave derrame.

— Não sou a imagem da saúde — disse, com meio "sorriso. O lado esquerdo do rosto, embora voltado para outro lado, mostrou cair quando o direito ergueu-se. — Porém, comparado com o que eu era há poucas semanas, sinto-me um garoto.

Ele fez um gesto para Grayson com a mão direita, e esse retirou- se com relutância. Para surpresa de Burden, Edith ficou sentada perto deles, tomando notas da conversa. Que pretenderiam os regentes?

— Tivemos alguns visitantes importantes. — O Presidente mos­trava-se deliberadamente tagarela. — O príncipe de Gales queria sa­ber em que quarto seu avô dormiu, na época de Buchanan. Contei- lhe que seu avô certa noite fugiu pela janela para ir a uma festa. Ele quis saber qual janela. — Wilson ergueu a mão direita e deixou-a cair no colo. — Então o rei e a rainha da Bélgica vieram retribuir nossa visita. Eu estava usando um suéter, que achei menos inadequa­do que um roupão. A rainha contou à imprensa que eu usava um suéter pesado, o que foi entendido como um suéter rasgado, retratan- do-me como um pobretão, e centenas de generosas senhoras mandaram novelos de lã para minha esposa me consertar. — A cabeça girou na direção dos senadores. — Quero que o preâmbulo revisto seja retirado do tratado. Se não for, vou vetar o tratado com todas as emendas.

— Então, senhor, devo instruir os senadores de nosso partido a votarem contra o tratado se o preâmbulo permanecer?

Wilson assentiu.

Não entende que se eu me recusar a vetar, mas não aceitar o tratado com as emendas, deixando-o no fundo da gaveta, Lodge não poderá dizer que matei minha própria Liga?

— Mas não é o que está fazendo? — Por mais sutil que fosse, a lógica que se baseava numa falsa hipótese costumava irritar Burden.

Não. — A voz do professor de história era neutra e fria. — Ficará claro, quando os senadores demperatas votarem contra o tra­tado, que o tratado não é mais o que era. Então, quando o Senado entrar em recesso, o público e a imprensa terão tempo para conven­cer pelo menos dois terços dos senadores de que o jogo de Lodge é simplesmente um interesse partidário e não um reflexo da vontade das multidões que encontrei no Oeste, dia após dia, até... — A voz interrompeu-se.

— Naturalmente um tratado qualquer è melhor que nenhum tratado, a essa altura... — insistiu Burden.

— O Presidente precisa tomar seu remédio — disse a Sra. Wilson, pondo-se de pé.

Os senadores ergueram-se. Wilson estendeu a mão direita a cada um deles; mais uma vez, o aperto foi surpreendentemente vigoroso.

— Talvez tenha chegado a hora de levantar a bandeira branca — afirmou Hitchcock, sempre inoportuno aos olhos de Burden.

— Deixe que Lodge faça isso. — O velho de barbas brancas parecia entalhado em gelo.

No saguão, a Sra. Wilson voltou-se para Hitchcock:

— Acho que o senhor tem razão, senador. Eu aceitaria qualquer emenda para resolver essa coisa horrível, e ele possa ficar bom. Mas ele me pediu. — Os olhos escuros e apertados, olhos de índio, brilhavam com lágrimas. — Ele disse: "Garotinha, não me abandone, eu não poderia suportar. Não tenho o direito moral de aceitar qual­quer mudança num documento que assinei sem dar aos outros sig­natários, até mesmo aos alemaes, o direito de fazer a mesma coisa. Não que eu não pudesse aceitar; é a honra do país que está em jogo."

Hitchcock ficou visivelmente comovido. Burden ficou visivel­mente irritado — era o que esperava.

Que é que o coronel House aconselha? — perguntou.

Não sei. Não estivemos com ele. — Isso confirmava o boato de que House tinha sido excluído da equipe do Presidente. — Disse­ram-me que ele está em Washington. Mas infelizmente nossa porta está fechada.

Até mesmo para Lorde Grey?

O secretário de Relações Exteriores britânico chegara no mês anterior para assegurar a todos que o governo de Sua Majestade não criaria fortes objeções às várias emendas de Lodge, contanto que no final houvesse uma Liga das Nações mundial. Mas o Presidente não o recebeu porque, segundo Alice Longworth, cujos mexericos eram sempre escandalosos mas nem por isso menos acurados, um dos asses­sores da embaixada britânica fizera uma piada imperdoável a res­peito da Sra. Wilson (Pergunta: "Que foi que a Sra. Galt fez quando o Presidente lhe propôs casamento?" Resposta: "Caiu da cama"), e quando a Sra. Wilson pedira a demissão do assessor, Lorde Grey recusara, e agora estava sendo castigado e a porta estava fechada para ele também, assim como para o coronel House.

— O príncipe de Gales tocou no assunto! Imagine, envolver um garoto numa coisa dessas! Nós só o recebemos porque os pais dele foram muito bons conosco quando chegamos no meio dos fe­riados de Natal. De qualquer maneira, não devemos coisa alguma a Lorde Grey; muito pelo contrário.

Uma campainha soou no quarto.

— Não vão — ela pediu, e correu ao quarto do doente.

— Vamos conversar com o vice-presidente — disse Burden se­camente.

Já conversei. Ele não vai mover uma palha. Sabe como é que mantém contato com ele? — Hitchcock estava agora sussurrando. — Tumulty conta ao seu amigo no Baltimore Sun o que está aconte­cendo aqui e esse amigo conta a Marshall.

Então talvez tenhamos que ir à justiça para tirar essa gente.

Burden espantou-se com sua própria raiva e sua total falta de

compaixão. Ou a nação era séria, ou não era. Ou havia um Presi­dente trabalhando ou havia uma perigosa ausência. que não podia ser preenchida por uma esposa leal e um médico da Marinha.

Mas ele não está incapacitado. Vetóu a Lei Volstead. Está fora da cama...

A esposa leal retornou.

— O Presidente disse que os democratas devem votar contra o tratado, mas em vez de dizer que estão derrotando o tratado, devem dizer que o estão anulando.

Com isso, o líder da minoria do Senado e seu vice partiram. Burden via um futuro desastroso e um Presidente republicano no ano seguinte.

 

Jess e a Duquesa estavam sentados com os McLean na galeria do Senado. Mais uma vez, toda Washington reunira-se para ver o Batalhão da Morte esmagar o Presidente e a Liga das Nações. Abaixo deles, W. G. acenou para a Duquesa, enquanto os senadores en­chiam o plenário. Na realidade, o Senado inteiro estaria presente para ouvir Lodge apresentar o relatório de seu comitê. Então, depois de um debate, a Liga seria colocada em votação. W. G. já tinha sido convidado por Lodge para abrir o debate pelo lado republicano, em apoio à Liga modificada a qual os democratas iriam então confusamente votar para anular.

— Warren está muito nervoso — disse a Duquesa a Evalyn McLean. — Passou dias ensaiando na frente do espelho.

— Pensei que ele improvisasse na hora de falar.

Evalyn voltara a ser como antes; Ned, por outro lado, estava sóbrio, sinal de algo de novo em sua personalidade, ou em seu fígado.

Jess observou a galeria apinhada. A autodesignada coronela do Batalhão da Morte, Alice Longworth, estava acompanhada por Ruth Hanna McCormick, filha de Mark Hanna, esposa de Medill McCormick, recentemente eleito senador por Illinois: jovem, agressivo e ambicioso, irmão de Robert McCormick, do Chicago Tribune. Medill ia ser Presidente um dia, diziam todos, inclusive Alice, que adorava a esposa dele, uma senhora tão agressivamente partidária quanto ela. As duas reinavam no final de uma fila de poltronas. Vários senadores agrupavam-se em volta de Alice, que era como aquela mulher que tricotava junto à guilhotina num dos filmes favoritos de Jess. Sempre que ela passava um ponto, dizia: matem, matem, matem.

Jess chegara a ouvir a Sra. Longworth chamar o senador Lodge de senador Lord, porque ele pretendia estabelecer uma liga não-wilsoniana. Ao mesmo tempo, sempre que algum senador ousava sugerir que o magnífico Theodore Roosevelt algum dia pensara numa liga, ela lhe mandava um severo bilhete da galeria. Alice tinha sido escolhida pelos céus e por ela mesma para ser á guardiã da chama de Roosevelt, assim como a madrinha do herdeiro de Roosevelt, o general Leonard Wood, o candidato republicano progressista que tão pouco tempo antes deliciara o país ao liquidar as greves usando o Exército, em guerra aberta contra o que ele chamava "radicalismo" e a que Jess podia apenas dizer "amém". Mas Daugherty achava que o general Wood ia perder o impulso. Quando isso acontecesse, o partido voltar-se-ia para W. G. Ate então W. G. não se pronunciara.

Houve um frêmito no salão quando o vice-presidente entrou pelas portas de vaivém, subiu com passos elásticos os degraus para o trono elevado e murmurou algo para o parlamentar que nunca estava muito afastado dele. Então Thomas R. Marshall bateu o mar­telo com força. O Senado estava em sessão, e até Alice Longworth sossegou.

O senador Lodge, mais do que nunca parecendo uma abelha es­branquiçada — por demasiado... pólen presidencial? — leu o re­latório da comissão de Relações Exteriores a respeito do tratado, com 14 emendas, uma para cada um dos famosos Quatorze Pontos de Wilson. Então o senador Harding ergueu-se para endossar o árduo trabalho da comissão.

Jess achou W. G. magnífico, como sempre. Ele usou todos os seus famosos seis gestos da maneira mais natural. A voz tinha enor­me vigor. Os argumentos, bons ou não, arrepiavam Jess e a galeria. Até mesmo Alice Longworth ergueu-se e aplaudiu quando ele pro­clamou:

— Tenho a profunda convicção de que o Acordo da Liga das Nações, como foi negociado em Paris, ou cria um supergoverno dos países que dele participarem ou mostrar-se-á a maior decepção de nossa era. Não posso acreditar que nossa república deva aceitá-lo em qualquer dos dois casos.

Só a ameaça do vice-presidente, de evacuar a galeria, pôs fim à demonstração de entusiasmo. As pessoas favoráveis à Liga pare­ciam desanimadas, na melhor das hipóteses. Burden Day foi tão eloqüente quanto Harding, mas não recebeu aplausos porque apoiava a Liga original aprovada pelo Presidente Wilson em Paris, e não aquela que Lodge recriara com tanta habilidade. Day insinuou tam­bém que um meio-termo na forma de duas ligas poderia ser aceitável por todos, mas isso foi recebido em perplexo silêncio.

À medida que as horas passavam, Jess ficava cada vez mais exausto, mas a Duquesa não queria sair até tudo terminado. Pouco antes das 11 da noite, o melífluo senador Underwood, rival de Hitchcock na liderança da minoria, propôs uma resolução incondicional de ratificação.

O vice-presidente pediu então uma votação; e a liga do Presidente foi energicamente derrotada a pedido do Presidente, que não aceitaria qualquer coisa vinda de Lodge. Lodge, então, agora senhor de sua própria casa, pediu uma votação sobre o tratado de Wilson, sem emendas. Como todos os republicanos, menós um, votaram con­tra a Liga, a guerra entre Lodge e Wilson estava terminada; e Lodge era o vencedor.

Enquanto a galeria aplaudia, a Duquesa ergueu-se e aplaudiu o Senado como se tivesse acabado de ver o pano cair depois de uma peça particularmente interessante. Então ela e Jess abriram caminho através da multidão até a rotunda, onde Harding esperava por eles.

Acabamos de receber um convite — informou ele.

— Vá você. Eu vou para casa — disse a Duquesa em tom firme. — Meus tornozelos estão me matando.

Bem, acho que errei ao aceitar o convite de Alice Longworth para cear na casa dela.

Jess sabia que a recusa da Sra. Longworth,em convidar a Sra. Harding para qualquer ocasião que não fosse o jogo de pôquer irri­tava profundamente a Duquesa. A primeira reação dela foi de susto.

Por que agora? — quis saber.

Harding fingiu não ter entendido:

— Porque nenhum de nós jantou. E como ela e a coronela de nosso batalhão, quer alimentar a tropa.

— Bem, se isto a faz feliz... — foi o comentário da Duquesa.

Quando começavam a atravessar a rotunda, o senador Ixdge, à frente do que parecia ser uma procissão de admiradores, parou para apertar a mão de Harding.

Foi um excelente discurso, senador.

— Espero que não tenha feito estrago — respondeu W. G., com sua. costumeira modéstia simpática.

— Não. Só fez bem.

Jess ofegava: tanta história!

Nunca passei por uma coisa assim antes — afirmou Lodge; então franziu a testa. — Não. A luta para a anexação das Filipinas foi quase tão ruim. — Voltou-se para o senador Wadsworth: — Lembro-me que logo depois da votação encontrei seu sogro, John Hay, exatamente neste local, e ele estava felicíssimo, nós todos estávamos.

Lodge então seguiu seu caminho. A Duquesa, provavelmente ansiosa para contrariar a Sra. Longsworth, insistiu para que Jess fosse com eles.

Quando os Harding chegaram à Rua M, a pequena casa estava cheia de gente. Havia os irreconciliáveis: Borah, Reed, Brandegee, Moses; e os emendistas, Freylinghuysen e os Wadsworth; e o emendista democrata, Gore, o senador cego, com a esposa.

— Bem, aquele discurso .foi um terremoto! — exclamou Alice, cumprimentando W. G. carinhosamente. — A senhora deve estar muito orgulhosa, Sra. Harding.

Ah, já vi Harding fazer discursos melhores.

— Mas nunca por uma causa melhor.

Jess contemplou atônito todas as cabeças de animal empalhadas e penduradas nas paredes — presas de caça de Theodore Roosevelt. Alice, que nunca se recordava de Jess e tampouco desejava fazê-lo, viu-o de olhos fixos na imensa cabeça de um poderoso cervo.

Vou colocar a cabeça de Wilson bem ao lado do cervo de papai.

Nick Longworth não estivera no Senado. Jantara em casa com seu cunhado francês. Agora cumprimentava os convidados anun­ciando:

— A cozinheira foi para casa.

— Temos bastante ovos — disse Alice.

Eu cozinho.

A Duquesa marchou para a cozinha, deixando a coronela do Batalhão da Morte saboreando sua vitória na sala de estar, seu campo de batalha escolhido, entre seus soldados escolhidos.

Brandegee brindou Alice, que disse:

— Faremos isto de novo em março, na votação final, como a execução da hipoteca do Sr. Wilson.

Embora Jess não compreendesse muito bem por que o processo inteiro teria que ser repetido, estava claro agora que o Presidente perdera sua Liga e W. G. atraíra a atenção do país. Ele mal con­seguia esperar os jornais do dia seguinte. Enquanto isso, W. G. es­tava sentado no sofá entre Nick e Borah, e parecia extraordinaria­mente satisfeito.

Em agosto, o todo-poderoso. Penrose perguntara a Harding se ele gostaria de ser Presidente, e W. G. respondera, tipicamente, que, não podendo concorrer a dois cargos ao mesmo tçmpo, preferia manter o que já tinha: concorreria ao Senado. Isso apenas excitara ainda mais o gordalhão. Ohio era a peça mais importante da eleição, e Harding era o filho favorito de Ohio. Depois da atitude imperial de Wilson em relação à guerra e à paz, o país precisava de um descanso, uma volta a um homem do tipo do bom e tranqüilo McKinley. Mais tarde, no mesmo mês, numa noite quente na varanda da casa em Marion, W. G. discutira o assunto com Daugherty e Jess. Depois que a Duquesa recolhera-se com seu rim doente, W. G. expusera todas as razões pelas quais não poderia ser indicado, come­çando pela favorita de todos, o general Leonard Wood. Daugherty anulara o.grande paladino com uma única palavra:

Dragonas.

— Que significa isso? — perguntou Jess.

  1. G. respondeu-lhe:

Harry acha que nenhum homem que foi general durante a guerra vai conseguir o voto de qualquer homem que não foi general. — W. G. deu uma risadinha. — Pode ser. Mas Wood tem todos os ricos do Leste atrás de si, e eles geralmente conseguem comprar qualquer emprego.

— Desta vez, não. — Daugherty foi incisivo. — Ele não tem seguidores. Ninguém gosta dele. Todos gostam de você.

Bom, muita gente aqui em Marion e em Washington Court House me açha o máximo, mas tenho a intuição de que há muitos lugares lá em Nevada onde estão se lixando para mim.

  1. G. mastigou o tabaco que tinha na boca e depois cuspiu-o por cima da grade num arco perfeito.

Jess invejou-lhe essa habilidade tão necessária ao lidar com pes­soas simples. Durante anos Jess tentara mascar tabaco, mas sua tendência natural de salivar demais tinha estragado mais de uma camisa, inclusive várias que não eram suas.

— Além disso, há o governador Lowden. — Harding enxugou os lábios com as costas da mão. — Ele tem o Illinois, e é rico.

Rico demais. A mulher dele é uma Pullman. Nem mesmo o Partido Republicano vai eleger uma pessoa que tenha dinheiro de ferrovia.

— E Lincoln? — observou W. G. em tom tranqüilo.

— Ele era apenas um empregado, um advogado da ferrovia. Lowden casou con^ a filha do patrão. De modo que só resta você.

— Sabe, Harry, nem nas minhas fantasias eu alguma vez me vi como um outro Lincoln — brincou W. G.

Daugherty riu.

Vou lhe contar um segredo: nem você, nem ninguém. Mas vou lhe contar outro segredo: este país não deseja outro Lincoln, nunca mais. Ora, ele matou meio milhão de homens e começou todo este problema dos negros. Não, senhor, nós elogiamos Lincoln mas nunca mais elegeremos alguém como ele. A mesma coisa em relação a Wilson. As pessoas agora querem um pouco de sossego para poder ganhar algum dinheiro.

Houve um longo silêncio, rompido apenas pelo som da cadeira de balanço de W. G. Então uma coruja piou numa árvore próxima, e Jess estremeceu; as corujas o apavoravam com seu olhar fixo e seu bico assassino e aguçado que podia retalhar uma garganta.

Finalmente Harding declarou:

Acho que devíamos começar a nos movimentar e falar sobre a idéia. Fora de Ohio, não há como eu ser a primeira escolha de alguém, mas, se for a segunda escolha de todos, eu chego lá.

Jess ficou impressionado com a simples clareza de W. G. Até mesmo Daugherty, que preferia ser a pessoa que falava, impressionou-se. Voltou-se na cadeira e ficou de frente para Harding, que agora esticava os braços.

— O único problema é: que é que você vai fazer quando tiver chegado lá e não houver guerra?

— Bem, joga-se a primeira partida de beisebol da temporada.

— Isto é oportuno e agradável — assentiu Harding. — Mas que mais, em tempos de calmaria?

— Rezar para que seja mesmo tempo de calmaria. A vida é cheia de surpresas. Veja Wilson. Ele nunca esperou ser Presidente durante uma guerra ou, talvez, Presidente mundial. De modo que agora está um farrapo. Mas de vez em quando a história vai dormir. Vamos esperar que tenhamos uma dessas sonecas bem compridas.

— E que as pessoas possam. ganhar dinheiro — acrescentou

Jess.

— Se eu não conhecesse todo mundo na vida pública, diria que não sou suficientemente grande para o cargo, não sou digno. — Harding levantou-se. Mas conheço todo mundo, de modo que... por que não?

— Boa noite, Sr. Presidente — fez Daugherty, quando Harding abria a porta de tela para o interior da casa.

Harding olhou para trás e sorriu; depois sacudiu a bela cabeça e deixou a porta de tela bater atrás de si.

Agora Warren Gamaliel Harding escutava respeitosamente o senador Borah falar sobre o senador Borah enquanto o senador Gore, um homem de aparência juvenil e cabelos brancos, comia ovos me­xidos com um garfo que ele segurava na mão direita enquanto usava o dedo indicador esquerdo para ter certeza "de que os ovos estavam bem presos ao garfo. Mas como, perguntou-se Jess fascinado, ele podia saber tão direitinho onde ficava a boca, se não conseguia ver o garfo? De todos os senadores democratas era Gore que Wilson mais odiava. Ao passo que Gore dissera do Presidente:

— Ele fica perturbado se a gente olha acima do terceiro botão do colete dele.

  1. G. considerava a Sra. Gore, com seus olhos negros, a mais atraente das esposas dos senadores; diziam que ela tinha sangue indígena. Jess achava graça, pensando nos dois juntos, um meio indí­gena e o outro meio negro. Ainda bem que o público nunca ficava sabendo de metade dos segredos que Jess Smith descobrira, a come­çar por Washington Court House e terminando, por enquanto, bem ali no coração do Senado dos Estados Unidos.

Alice Longworth propôs um brinde:

— Abaixo Wilson!

Todos beberam, exceto o senador Gore, que continuou sua deli­cada demonstração de equilíbrio. Naturalmente ele era cego desde os dez anos e tinha muita prática.

 

A ampla janela da "casa palacial" de Pamela Smythe, acima da Avenida Franklin, postava-se a maior escritora viva, Elinor Glyn, as costas voltadas para o sol poente. Com muito respeito a Sra. Smythe apresentou Caroline à autora de Três semanas, e Caroline quase fez uma reverência à robusta mulher, envolta, como uma pol­trona, numa capa de veludo púrpura que de alguma forma diminuía o efeito da turbulenta massa de cabelos da gloriosa cabeleira ver­melha repartida no meio da cabeça ursina onde viam-se as feições inteligentes de uma garota irlandesa de olhos verdes, dentes algo compridos.

— Emma Traxler! — A voz era rouca e convincentemente grã- fina, ao contrário da voz da Sra. Smythe, cujos ditongos ocasional­mente sugeriam Liverpool e seu mar acariciante.

A mão de Caroline sumiu dentro das patas de urso, e os olhinhos cintilantes e inteligentes encararam os dela. Cumprido o dever de anfitriã, a Sra. Smythe foi receber os outros convidados, que sempre chegavam na hora do poente, jantavam na primeira hora de escuridão e então, depois de horas de charadas, corriam para casa para deitar-se e poderem apresentar um rosto descansado ao sol benigno e fraco do início da manhã.

Srta. Glyn, que... prazer para mim!

Caroline escolhera a palavra exata. Do ponto de vista humano, Hollywood era o prazer absoluto. Grão-duques russos de verdade eram vistos com grão-duques inventados, e os falsos eram em geral mais convincentes que os Romanov, explicando assim, como Caroline já observara devidamente, a revolução. De qualquer maneira, api­nhadas num espaço relativamente pequeno podiam ser vistas algumas das criaturas mais exóticas do mundo, procurando furiosamente o ouro do cinema.

A Sra. Kingsley me disse que você nunca esteve tão maravilhosa! E, segundo o Kine Weekly, Flor da noite vai faturar três milhões aqui no país, e com os fãs que você tem só na pequena Inglaterra... ma foi!

Caroline resmungou modestamente. Pelo canto do olho viu Tim conversando com uma bela garota de cujos famosos três sobrenomes ela nunca conseguia lembrar-se. Mas sabia, como o mundo inteiro sabia, que a garota estava sendo preparada pela Famous Players-Lasky para substituir Mary Pickford, que naquele dia casara com seu amante de longo tempo e atual sócio na United Artists, Douglas Fairbanks, que recentemente construíra um já lendário — isto é, com muita publicidade — ninho de amor para os dois numa das colinas menos povoadas de Beverly Hills.

Eu adoraria criar para você — afirmou a Srta. Glyn, toda negócios. — Você é aquela coisa rara, uma mulher d'un certain âge... Fala francês, naturalmente?

— Ah, o menos possível.

Mas Elinor Glyn estava agora em plena função de alta sacerdo­tisa:

— Uma mulher de uma certa idade — traduziu prestimosamente. — Mas com encanto. Possuindo o que eu chamo, na falta de uma palavra mais rica, mais específica, por motivos óbvios: "aquilo"!

Aquilo?

Aquilo.

Aquilo. — Caroline ofereceu à Srta. Glyn seu sorriso de Madona em lugar de um contrato com a Traxler Production. — Eu pensava que só as mulheres em idade de procriar poderiam ter "aquilo".

Não me refiro ao fluxo menstrual — retrucou a Srta. Glyn, direta e, para a delícia de Caroline, prosaica. — Mas àquele poder de sedução inerente com o qual algumas mulheres nascem, como você, Srta. Traxler, e que as outras mulheres têm de adquirir da ma­neira mais difícil, como eu...

— Certamente não lhe foi tão difícil — murmurou Caroline.

A Srta. Glyn não estava acostumada a ouvir.

— Oxalá... — disse, como se essa palavra fosse de uso cotidiano e não um botão colhido nas páginas de vívida ficção. — Até mesmo uma mulher com a minha substância essencial, voluntariosa, imponente na aparência, sim, e, talvez, ah, um pouquinho de nada na vida real, ainda pode, quando a lua brilha no céu e há um per­fume de flor de laranjeira no ar, fazer um impulsivo Romeu cair de joelhos num êxtase de desejo...

Uma posição, espero, apenas temporária...

— Romeu tem que começar de joelhos. O resto depende de... Kismet.

E "aquilo".

— Ele não estaria de joelhos em primeiro lugar se não houvesse "aquilo". — A Srta. Glyn mostrava-se paciente. — Agora eu soube que o roteiro de A rainha Mary da Escócia da Sra. Hulbert é uma porcaria.

— Digamos que houve alguns problemas — respondeu Emma Traxler, com sua generosidade lendária.

— Sou descendente de Mary da Escócia.

A Srta. Glyn jogou ousadamente seu trunfo inglês, que nunca deixava de impressionar os americanos, principalmente os que traba­lhavam no cinema. Por outro lado, o artigo genuíno era com fre­qüência olhado com desconfiança, como acontecia com o jovem ar­quiduque austríaco que acabava de entrar. Desprovido de queixo, na melhor tradição dos Habsburg, Leopold era considerado falso por metade das anfitriãs das colinas de Hollywood.

— Como devem temê-la em Windsor aqueles usurpadores alemães!

— Eles são Stuart também, embora menos que eu. Francamente, gostaria de dar, como vocês dizem aqui, uma "tentada" em Mary. Naturalmente estou sob contrato com a Famous Players, mas você pode se emprestar a eles...

— Ou eles nos emprestarem você.

Agora não, ai de mim! Dentro em breve, talvez. Sabe, estão capitalizando impiedosamente o meu nome, principalmente o Sr. De-Mille, que é realmente lúbrico, não acha?

— Ele chega a...

No entanto, não se deve ser óbvio demais ao apelar para as emoções mais selvagens. Certamente o homem, o herói, o ator, deve estar sempre sorrindo, e no entanto, é claro, não parecer um débil mental. Deveria sorrir com entusiasmo, e se ele, por... como posso chamá-lo? Não é "aquilo"... por impetuosidade juvenil co­mete um engano, não o faz deliberadamente.

Como na vida real.

Sim — fez a Srta. Glyn, sem escutar.

Seus olhos estavam fixos na linda figura de Mabel Normand, uma das poucas estrelas do cinema realmente interessantes além de eróticas. Natural de Boston, Mabel Normand era considerada mais inteligente do que os costumeiros astros algo bovinos de Hollywood. Gostava de ouvir jazz durante as filmagens, e seu gosto pela cocaína emprestara, como Tim observou certa vez, um novo significado à ex­pressão "empoar-se o nariz". Alguém estava agora ao piano, tocando jazz de Nova Orleans, e Mabel Normand, toda em prateado, mar­cava o ritmo com o corpo inteiro e eletrizava o salão.

— Estou escrevendo uma série de livretos, O sistema de escre­ver de Elinor Glyn. No devido tempo cuidarei da parte de roteiros para o cinema, mas primeiro preciso dominar esse extraordinário meio de comunicação, coisa que o Sr. Lasky não me dá tempo de fazer, pois está sempre me colocando para posar com o Sr. DeMille e a mundana que eles estejam promovendo no momento. Como an­seio fazer Três semanas novamente, da maneira certa! Trazer à tela a verdadeira sensualidade, com uma sensibilidade da qual o Sr. De­Mille é incapaz, principalmente quando se trata de mostrar nossa aristocracia como ela realmente é.

— Conheço Lorde Curzon — declarou Caroline, nocauteando a adversária.

— Como? — espantou-se a Srta. Glyn. Era fato sabido que a Srta. Glyn tivera um caso de oito anos com o antigo vice-rei da Índia, e que ele então casara com uma certa Sra. Alfred Duggan, restando à Srta. Glyn ler a notícia do casamento no Times.

Em Londres, eu acho. Nunca me lembro onde conheci as pessoas; você se lembra?

— No caso de um personagem tão importante...

Isso é ainda pior. Pelo menos para mim. Se a gente ouve falar muito no... no personagem antes de conhecê-lo, então fica tudo uma confusão entre o que se ouviu dele e o que ele é realmente. De qualquer maneira, todos conhecem os Leiter...

A Srta. Glyn suspirou de alívio.

A Esposa Americana — entoou, como se se tratasse de um cartão de legenda. — Sim, é claro. Uma morte tão trágica... É ver­dade o que eles falam da Sra. Hulbert e o seu Presidente?

Que é que eles falam? — A encantadoramente etérea Emma tomava o lugar da durona Caroline. — E quem são eles?

— Boatos. Cartas roubadas. Um romance apaixonado que quase fez à Nave do Estado naufragar nas rochas do desejo louco e irreprimido, nas Bermudas.

Caroline escutou com desagrado enquanto Elinor Glyn ditava-lhe uma página de conjeturas românticas. Quando ela terminou, os amantes sozinhos num recife de coral cor-de-rosa, foi Emma e não Caroline quem declarou timidamente:

Espero que esteja certa; espero que eles tenham conseguido ter alguma felicidade. Dizem que ela era muito atraente na época.

— Agora não há nem vestígio disso — foi o veredito da especialista.

Durante o jantar Caroline ficou sentada ao lado do mais atraente dos homens, William Desmond Taylor, um diretor inglês que tinha a sua idade. Do outro lado da mesa, Tim estava ladeado por Mabel Normand e a jovem de três nomes que aparecera no recente filme de Taylor, Jenny, seja boazinha. Embora a imprensa tivesse previsto que ela nunca tomaria o lugar de Mary Pickford, ela e o filme foram elogiados.

Caroline fez a pergunta do dia:

Foi ao casamento?

Taylor sacudiu a cabeça.

— Para minha surpresa, não fui convidado, embora Mary e eu nos conheçamos há séculos. Eu costumava dirigi-la, não muito bem, infelizmente...

Talvez por isso não tenha sido convidado.

Taylor riu.

Se isso fosse lei por aqui, nenhum de nós iria a lugar algum. Não. A astrologia determinou o dia e a hora, e provavelmente a lista de convidados também.

Astrologia?

Taylor assentiu. O mordomo negro aconselhou:

É melhor comer a galinha-d'angola enquanto está quente.

— Obrigado. — Taylor era tão educado com os mordomos

quanto com os astros; era considerado o perfeito convidado extra. — Bem, a pedido de Doug, Mary divorciou-se de Owen Moore em algum lugar de Nevada, num dia favorável...

Ela não é católica?

— Só quando lhe convém. Então o astrólogo de Doug disse-lhe que ele poderia começar uma vida nova, uma vida fabulosa, 13 dias depois dos Idos de Março, que é hoje, 28 de março de 1920.

Acredita em astrologia?

Só quando me convém.

Os dois riram. Caroline cumprimentou-o por ter sido eleito presidente da Associação dos Diretores de Cinema e ele respondeu cortesmente que sem a ajuda de Tim teria perdido a eleição. En­quanto falavam de negócios, ela percebeu que o achava atraente, coisa que não mais acontecia em relação aos homens em geral. Tim tornara-se menos amante do que irmão mais novo, num relaciona­mento que sempre se baseara na fascinação mútua por contar histó­rias através de quadros fotográficos em movimento. Ela agora viciara- se nessa vida misteriosa e fictícia; e ele era apaixonado pela coisa. Ela percebera que as poucas vezes, ultimamente, que ele a achara fisicamente atraente foram logo depois de um longo dia na sala de montagem, olhando para Emma Traxler, cuja beleza etérea e outonal o excitava de um modo que a quarentona Caroline Sanford não con­seguia fazer na vida real.

Caroline sentia um agradável espanto diante da tranqüilidade — ou seria insensibilidade? — com que aceitava o que parecia ser o fim do romance. Era como se estivesse assistindo um filme estrelado por Emma Traxler, cujo talento de atriz nunca surpreendia a platéia. Eles a queriam nobre, magnânima e corajosa, e ela lhes dava exata­mente o que queriam numa bandeja de prata, como diria Marion Davies. O que Caroline Sanford queria era um mistério. Naturalmente ela queria ver o filme até o final; e talvez soluçar uma ou duas vezes num lenço úmido, na escuridão, enquanto Emma, na tela, ca­minhava resolutamente através da neblina artificial, atravessando os pântanos, o que significava do primeiro ao segundo buraco do campo de golfe do Burbank Golf Club, Porém, depois que as luzes se acendiam, e aí? Golfe?

Jogo golfe pelo menos uma vez por semana — estava dizendo Taylor, e suas palavras casaram com os pensamentos dela como os sonhos, quando chegam ao final, ajustam-se tão perfeitamente aos ruídos do mundo real. — Você joga?

— Não jogo há anos. Preciso voltar a jogar. Sou sócia, isto é, Tim é sócio, do Burbank.

Tim estava obviamente impressionado com a garota do Jenny, seja boazinha. Caroline perguntou-se quantas vezes ele lhe tinha sido infiel — uma palavra que não fazia sentido quando não se possuía qualquer fé religiosa. Ela própria dissera não a um bom número de rapazes cujo interesse, ela suspeitava, tinha mais a ver com seu poder de projetar a imagem deles numa tela do que com seu encanto fa­nado. Talvez devesse tentar alguém de sua idade, pensou, olhando para William Desmond Taylor, que dava a impressão de ser, a seu modo jovial-e britânico, o homem — assim como o diretor — perfeito para ela.

— Achei maravilhosa a sua cena de morte — ele disse em voz baixa, como se já houvesse uma intimidade sutil entre eles. — Seus olhos, na filmagem em close, e o modo como a luz desaparece deles, até a escuridão...

Caroline e Emma conheceram o êxtase simultaneamente. Isso era o que significava "ser compreendida".

— Tim e eu passamos dias brigando por causa daquela cena. Morrer com os olhos abertos ou fechados. De modo que fizemos dos dois jeitos. O meu ganhou, felizmente. Como a gente fica vai­dosa! — exclamou, lembrando-se de rir bem a tempo.

Não se trata de vaidade. É profissionalismo. É preciso ter gratidão pelas coisas que se faz bem. Pela beleza, também. Fui ator durante anos, antes de começar a dirigir. É preciso construir com o que se dispõe...

Alegremente os dois conversaram sobre sua profissão.

Depois do jantar Caroline e Taylor foram sentar-se na sala de estar em estilo Tudor da Sra. Smythe, e ela confiou a ele suas difi­culdades com A rainha Mary da Escócia. Ele disse que conhecia um escritor excelente. Ele próprio adoraria dirigi-la num filme tão espe­cial — isso, naturalmente, se Tim não estivesse interessado. Ela res­pondeu, corretamente, que Tim jamais se interessara muito por estudos históricos de natureza romântica. A bela cabeça agrisalhada de Taylor assentiu pensativamente por cima do conhaque pré-Proibição que o mordomo lhe trouxera.

Poderíamos fazer o filme no estúdio de Doug. De Doug e Mary.

Ele sorriu; os olhos eram infantis, uma qualidade que Caroline não apreciava muito nos homens mas no caso de Taylor era com­preensível, pois ele fizera vários filmes de muito sucesso sobre figuras americanas bucólicas, como Huckleberry Finn, Tom Sawyer e outras crianças do passado arcadiano não tão distante.

Poderíamos lançá-lo pela United Artists — continuou ele, olhos fixos na boca de Caroline.

Ela sentiu-se enrubescer.

Tenho um contrato de quatro filmes com Lasky, através da Traxler Productions — sussurrou, esperava que eroticamente. — Qualquer acordo de empréstimo de Emma Traxler tem que ter a concordância do Sr. Zukor. — Palavras de mel, ela sabia.

— A Associated Producers Incorporated de Tom Ince poderia, através do Sr. Zukor, conseguir um empréstimo em troca de um quinto filme com Lasky, e então, comigo, podíamos montar uma unidade separada na Pickford-Fairbanks com distribuição através da United Artists a 15 por cento menos que o Sr. Zukor cobra para um lançamento pela Paramount.

Alguma mulher já fora cortejada dessa maneira?, pensou Caro­line, perplexa. Se Elinor Glyn pudesse escutar a verdadeira lingua­gem do romance ao estilo de Hollywood...

Mabel Normand aproximou-se deles dançando, os pés virados para dentro, as mãos para fora, sua marca registrada.

— Me dá uma carta boa? Meu jogo está fraco. Oi, Srta. Traxler.

Mabel falava com rapidez, de um modo a que Caroline estava bastante acostumada. Cocainômanos eram tensos e necessitavam cons­tantemente da súbita onda de energia que subia ao cérebro e que — Caroline tinha experimentado — não durava mais que um quarto de hora. A morfina era mais benigna e sonhadora, preferida. pelas senhoras de Washington, ao passo que o ópio era a matéria dos sonhos em Paris. Caroline poderia facilmente ter se habituado ao ópio; seu meio-irmão André era homem de dois cachimbos por dia. Mas nesse arriscado estágio de sua vida ela preferia ter os sentidos inalterados.

Percebeu que Taylor não gostara do pedido de Mabel Normand.

— Chega de cartas para você, minha querida — disse.

Abriu a cigarreira e ela tirou um cigarro escuro, com a ponta dourada. Caroline ficou curiosa: era assim que se fazia? Mabel fran­ziu a testa e afastou-se às pressas. Caroline percebeu que Taylor observava-a com atenção.

Ê, eu compreendo — disse ela.

— Você não compreende como é duro fazê-la largar isso. Mabel! —chamou ele; a estrela já estava no saguão de entrada.

Que é? — fez ela, voltando-se à porta.

... Seja boazinha. — Ela saiu, e ele voltou-se para Caro­line. — "Mabel, seja boazinha" é uma piada nossa, acho que não muito boa.

De repente ele parecia cansado, mas ainda atraente. Nos filmes que Mabel fizera com Chaplin como co-diretor, o nome dela costu­mava aparecer no título: O dia ocupado de Mabel, A vida de casada de Mabel, O novo emprego de Mabel. Agora, A cocaína de Mabel estava se tornando um problema.

Isto é curável, não é?

Para algumas pessoas. Para outras, não. Como a bebida.

Preciso ir para a cama na hora de sempre — disse Caroline.

Ela pôs-se de pé, e ele, com muita elegância, beijou-lhe a mão.

Não! — bradou uma voz. — Para um efeito romântico com­pleto, você tem que beijar a palma da mão dela!

Elinor Glyn estava sobre eles.

— Talvez, Srta. Glyn, o efeito romântico completo não seja apropriado — retrucou Caroline, com muita expressão no rosto, por força do hábito de ser Emma Traxler.

— É sempre adequado, na melhor sociedade.

Ah, quanta coisa a senhorita já viu! Ultrapassa as minhas mais loucas fantasias!

— Eu lhe telefono — disse William Desmond Taylor.

Caroline ficou um pouco perturbada por Tim não sentir o menor ciúme. Estavam sentados na sala do apartamento dela, con­templando a vista da Babilônia de Griffith ao luar.

— Eu não deixaria a Srta. Glyn chegar perto da rainha Mary.

Claro que não!

Caroline olhou para os três roteiros sobre o assunto que ela já adquirira. O pior deles, previsivelmente, era o da Sra. Hulbert, mas na verdade Mary apenas usara o roteiro como pretexto para longas conversas com Caroline a respeito de si mesma, com um pedido oca­sional de um pequeno empréstimo. O colapso do Presidente Wilson perturbara-a muito menos què uma das recentes dificuldades finan­ceiras do filho. Tinha sido um alívio para Emma Traxler poder descartá-la, com delicadeza. Mas não antes de Caroline ter conseguido material suficiente para um filme sobre uma mulher muito encan­tadora e inteiramente egocêntrica que joga fora todas as possibili­dades em sua vida porque nunca percebeu que as outras pessoas existem.

Caroline voltou-se para a lareira a gás. A noite era úmida e fria.

Estou ficando reumática — ouviu-se dizer. — Preciso ir à Sauna Bimini. Onde é mesmo que fica?

Terceira com Vermont. — Tim estava usando apenas a roupa de baixo; o corpo magro parecia desanimadoramente infantil. Taylor era elegantemente magro, e nada infantil. — É construída em cima de um poço artesiano. Sabe, ele se droga.

Quem faz o quê?, — Caroline fingiu não entender, enquanto servia o chá de uma garrafa térmica preparada por Héloise, que se adaptara perfeitamente ao hábito hollywoodiano de deitar-se com as galinhas.

Bill Taylor. Mabel Normand diz que foi ele quem a viciou em cocaína.

— Ela certamente nasceu com um... cheirador, ou como quer que chamem esse negócio, no nariz, como um colher de prata.

Está pensando nele para a rainha Mary?

— Estou. Afinal, ele faz muito sucesso em filmes históricos. Como Huckleberry Finn — acrescentou, e ela própria achou graça. — Poderíamos fazer A rainha Mary da Escócia no Mississippi, numa barcaça.

Fiz uma edição da filmagem de Wilson.

Tenho que conversar com Blaise.

A menção a Wilson lembrou-lhe seus deveres negligenciados, sua personalidade extraviada, se não perdida, Caroline Sanford. Do Washington Tribune. Da eleição iminente.

Está interessada? — perguntou Tim.

Ela observou que Tim estava bebendo muito uísque.

— Não. Francamente, não. O jornal está bem dirigido sem mim. Mas temos que tomar uma posição qualquer. Blaise com certeza vai se mostrar republicano em demasia. Eu terei que...

Estou falando da filmagem de Wilson.

Ah, isso. — Ela soou mais distraída do que pretendia.

Não está. Vou dormir.

— Não! — Emma Traxler reapareceu em cena, embora cansada. — Desculpe. Tive um dia duro. Os estúdios de Griffith não estão disponíveis, afinal.

Tim parou junto à porta de ligação com a sua suíte.

— O trabalho é sempre duro para quem não está acostumado.

— É uma observação muito estranha para ser feita a mim — retrucou Caroline Sanford, a primeira mulher no mundo dona de um jornal por esforço próprio. — Dizem que sou uma inspiração para todas as sufragistas do país.

— O seu rosto?

O meu jornal.

Boa noite.

Ele se retirou. Caroline pensou: o hábito é mais forte que o amor. Ela poderia passar sem o hábito de Tim? Enquanto contem­plava a fila escura de elefantes banhados pelo luar cinzento, a buzina de um carro estrangeiro soou lá embaixo no Bulevar Sunset, como um fundo musical numa ópera-bufa. Mas o que era Emma Traxler senão um personagem de Offenbach? Agora sob o risco de transformar-se num personagem de Strauss, Marschallin. Seria me­lhor voltar para sua verdadeira personalidade, se tal coisa ainda exis­tia. Como se para lembrar a' si mesma dessa verdadeira personali­dade, ela pegou a mais recente pilha de páginas da filha — um exacerbado testemunho do completo fracasso de Caroline çomo mãe.

Aparentemente, o novo filme de Tim seria sabotado pelos anti­-comunistas, ao passo que Emma Traxler figurava numa lista de ame­ricanos suspeitos. Emma Sanford escreveu páginas e páginas sobre as maravilhas de se viver num país livre, vangloriando-se, ao mesmo tempo, de todas as publicações que seu grupo conseguira fechar, assim como dos professores demitidos, os políticos derrotados, os líderes trabalhistas aprisionados. A garota estava louca. O país também?

Caroline não tinha uma idéia real do novo Estados Unidos, nem mesmo do antigo. Conhecera apenas a sociedade americana mais rarefeita, os copas de Henry Adams; e adorava o distrito de Colúm- bia e ultimamente a excitante irrealidade — até mesmo surrealismo — de Hollywood; mas o que sabia, afinal, dos verdadeiros ameri­canos, a começar por sua filha e seu genro? Haveria muitos outros como eles por lá, com sonhos sinistros de absoluto conformismo com

algum ideal primitivo? Realmente, a antiga nação de camponeses finalmente encontrara a velha Europa civilizada, e a Europa lhe ofe­recera guerra, revolução e bolchevismo. Não era de se admirar que os camponeses verdadeiros e em potencial estivessem decepcionados. Mas qual era a verdadeira origem de seu pânico irracional? De que os americanos tinham medo? Ela gostaria que Henry Adams esti­vesse vivo para explicar-lhe tudo isso. Então, na falta da presença dele e da sua sabedoria reconfortante, rasgou a carta da filha e jogou os pedaços na cesta de lixo. Não sentia coisa alguma por sua própria filha. Porém Mlle. Souvestre sempre dizia que quando uma filha não é mais criança, mas uma mulher adulta e casada, as duas mu­lheres, mesmo uma sendo demi-creatrix da outra, devem seguir ca­minhos separados.

Caroline terminou o chá e foi para o quarto agora tão raramente visitado por Tim. Obviamente chegara a hora de renovar-se; dessa vez com William Desmond Taylor. Afinal de contas, o relógio nunca cessava sua marcha, mesmo quando ela não tinha consciência disso. De uma forma ou de outra, a maior parte do dia já tinha trans­corrido.

 

Jesse estava gostando mais do brilhante sol de abril que do edi­torial do New York Times que estava lendo:

"Harding está fora. Mesmo que seu nome seja apresentado à convenção..."

Jesse sentiu a saliva começar a escorrer-lhe pelo queixo; enxugou-a com o Times e torceu para não ter sujado o rosto. No extremo oposto da varanda, o candidato em pessoa estava sentado, conversando com as pessoas que passavam. Feitas as contas, as duas últimas primárias tinham sido desanimadoras. Harding vencera em Ohio, como filho da terra, mas mesmo assim o general Wood, com todos os seus injustos milhões de dólares, tinha conseguido — melhor dizendo, comprado — nove dos quarenta e oito delegados do es­tado e, o golpe mais cruel, o próprio Daugherty não conseguira eleger-se delegado.

Uma semana antes, por insistência de Daugherty, Harding en­trara na primária de Indiana. Wood, Johnson e Lowden chegaram nai frente de W. G., que conseguiu ganhar apenas dois dos 56 condados. Jess sabia a razão: simplesmente não havia dinheiro para Harding. Os banqueiros ricos e os homens de Roosevelt estavam financiando Wood, e a Sra. Lowden estava financiando o gover­nador Lowden. Jess e Daugherty mal tinham conseguido levantar cem mil dólares contra todos aqueles milhões, e era por isso que o New York Times podia agora escrever professoralmente: "...to­dos saberão que ele é um candidato impossível". Embora W. G. estivesse profundamente contrariado com o resultado em Indiana e falasse publicamente de sua própria impossibilidade como candi­dato, em particular estava surpreendentemente tranqüilo. "Tudo isso vai se virar em meu favor, se não houver intervenção divina", dissera a Daugherty e a Jess, enquanto a Duquesa, reforçada por previsões de teor mais astrológico vindas de Madame Mareia, concordava.

A estratégia de Harding era ser ele próprio. Tinha conquis­tado a simpatia de Lowden ao prometer não ir atrás de qualquer dos delegados favoráveis ao outro, e Lowden, grato, prometera o mesmo. Harding fizera uma simples conta de somar e diminuir e chegara à conclusão de que, se nenhum candidato fosse indi­cado no primeiro escrutínio, o número dois de todos venceria no centésimo, ou no último de quantos escrutínios fossem necessários. De modo que ele ia cuidar de ser o segundo favorito de todos. Daugherty aceitara a estratégia e os dois viajaram discretamente pelo país inteiro, conquistando a simpatia de todos e sem perturbar pes­soa alguma.

Jess...

Jess baixou o jornal e, para seu horror, ali estava Carrie Phillips. Estava elegantemente vestida, ele observou com o olho clínico de comerciante e árbitro da moda.

Carrie Phillips — ele sussurrou, de modo que W. G., que tinha as costas voltadas para eles, não escutasse, ou, que Deus os livrasse, a Duquesa, que estava dentro de casa telefonando, sua principal atividade nesses dias.

Pensei que você não viesse por aqui agora. — A cadeira de balanço de Jess estava na beirada da varanda, e ele conseguia debruçar-se ao ponto de as cabeças dos dois quase se tocarem.

Saí para dar um passeio, só isto. Estamos num país livre.

Jess sabia que tinha havido uma troca "final" de cartas entre Carrie e W. G. Para começar, Jim agora sabia de tudo. Para ter­minar, embora a imprensa ainda não tivesse mostrado um inte­resse especial na campanha de Harding, havia sempre o perigo de que um repórter ambicioso pudesse xeretar antes da conven­ção, e, com todos em Marion sabendo da vida de todos, a imagem de W. G. como um bom pai de família podia facilmente ser alte­rada para... para o Sátiro dos chautauquas, pensou Jesse descon­troladamente.

Só quis passar para dizer oi. Só isto. Estou andando na ponta dos pés, está vendo?

Assim, na ponta dos pés, Carrie aproximou-se de W. G., agora solitário em sua cadeira de balanço no outro extremo da varanda, lendo, não o editorial do Times, mas a página esportiva. Sorriu largamente ao ver Carrie. Mas ela levou o dedo aos lábios e sus­surrou algo que o fez debruçar-se, cabeça baixa e mão segurando a grade da varanda. Agora eram eles quem tinham as cabeças quase se tocando; e Jess sentiu-se mal. Que diria Daugherty? Que faria a Duquesa?

A Duquesa não disse coisa alguma, o que já era um mau presságio. Em vez disso, apareceu à porta da casa e por um longo momento olhou com raiva para o casal adúltero. Como se tivesse olhos nas costas, coisa que ele até podia mesmo ter quando se tratava da esposa, W. G. recostou-se mas não se virou ou acusou a entrada em cena da Duquesa.

Carrie continuou a falar com W. G. em voz baixa, ignorando a Duquesa, assim como o espanador de pó que de repente veio voando em sua direção. A Duquesa, agora de rosto muito corado, entrou em casa para pegar uma cesta de lixo de metal, que atirou com extraordinária pontaria em cima de Carrie; esta saltou de­pressa para o lado, enquanto continuava a conversa com W. G., que agora olhava para a Duquesa por cima do ombro.

Quando Florence Kling Harding tornou a entrar para buscar mais munição, Jess olhou em volta para ver quem estava assis­tindo o espetáculo: vários anciãos de Marion, acostumados a essas demonstrações, e um desconhecido bem vestido, que assistia horro­rizado essa cena doméstica. Jess rezou para que não fosse um jornalista.

A Duquesa voltou, trazendo nos braços um banquinho de piano de quatro pernas, cujo assento giratório tinha um peso considerá­vel. Com a força, por assim dizer, de dez pessoas, a Duquesa arremessou a prosaica peça em cima de Carrie. En route, a ban­queta errou por pouco a bela cabeça do filho famoso e literal­mente favorito de Ohio, e só um salto de balé para a esquerda fez com que a loura adúltera conseguisse evitar uma concussão. Derrotada por force majeure, Carrie jogou um beijo gracioso para Harding e desceu devagar a Avenida Mount Vernon, aproveitando o sol da primavera. A Duquesa retirou-se em triunfo. Não dissera uma só palavra; e nem era preciso, quando seus atos tinham sido tão eloqüentes.

Harding pôs-se de pé com certa dignidade e dirigiu-se às costas da mulher:

Florence, isto não fica bem, não é apropriado.

Mais tarde, no mesmo dia, Daugherty chegou a Marion e Jess relatou tudo, os dois sentados no bar do Old Heidelberg, agora restaurado, onde uísque em xícaras de chá era servido aos fre­gueses regulares, em contravenção à 18a. Emenda, que impedia que o cidadão americano, cuja Carta Magna lhe garantia a vida, a li­berdade e I a busca à felicidade, ingerisse álcool. Jess, que não era perito em direito constitucional, não deixava de se perguntar, de vez em quando, como os Estados Unidos podiam ser, como todos sabiam, o país mais livre da terra, quando havia um go­verno ocupado em proibir tudo aquilo que ele achava que o povo não devia ter. Na Europa, dizia-se, as velhas raças decadentes es­tavam rindo de seus recentes salvadores. Felizmente todas as ci­dades tinham o seu Old Heidelberg, e Jess bebericava uísque es­cocês importado do Canadá, enquanto Daugherty dizia:

Temos que tirar a Duquesa... e ele!... da cidade até depois da convenção. Não! — O olho castanho piscou violenta­mente, ao passo que o azul permanecia tranqüilo. — Até depois da eleição!

Ele? W. G.?

Não, não. Jim Phillips. Ele sabe de tudo, e não consigo entender por que Carrie continua aparecendo assim a não ser que...

Queiram dinheiro?

Daugherty assentiu.

Claro que tinha que acontecer numa época em que acabamos de gastar tudo que tínhamos.

E quanto a Ned McLean?

Mas o cérebro ativo de Daugherty já passara para outros assuntos.

Jake Hammon vale um milhão de dólares para nós lá no Oklahoma. Mas o preço dele é um terço das terras petrolíferas da Marinha, e não vejo como possamos prometer isso.

Jess ficara enormemente impressionado com o grande e baru­lhento homem do petróleo de Oklahoma com sua amante espalha­fatosa e suas maneiras extravagantes. Mas não via razão para con­fiar nele; tampouco Daugherty via.

— W. G. está contando com um impasse. — Daugherty comentou, pensativo. — Se Wood e Lowden empatarem, não conse­guirão desempatar, e não há alternativa, senão W. G.

Johnson?

Nunca. É uma provocação para os conservadores. Mas W. G. calcula que talvez um quarto, talvez mais, dos delegados se lembrem de que há quatro anos atrás ele fez aquele grande dis­curso na convenção. Ou mesmo que há oito anos ele indicou Taft, e como manteve contato com muitos deles... Gostaria de ter tanta certeza disso quanto ele tem.

Jess ficou intrigado.

Pensei que era o senhor que tratava de promovê-lo.

É como ele quer que pareça. Fica todo humilde e mo­desto, cheio de "não sou digno" e "não mereço", enquanto eu banco o empresário esperto que o empurra para a frente. É claro que ele é o candidato de centro ideal, que é o que ele acha que o país quer, e se for assim...

Acha que ele vai conseguir?

Daugherty deu de ombros.

Como? Todo o dinheiro está com Wood e Lowden, e o Partido Republicano é o partido do dinheiro. Jess, lembra-se de Nan Britton?

Jess assentiu. Toda Marion sabia que Nan, filha do Dr. Britton, quando ainda bem jovem apaixonou-se pelo belo editor do Marion Star. Nunca fizera segredo do fato de que costumava recortar re­tratos de W. G. nos jornais para seu caderno de recordações; chegava até a perambular perto da casa da Mount Vernon, para grande embaraço de W. G. e fúria por parte da Duquesa. Depois da morte do Dr. Britton, Nan mudou-se para a cidade de Nova York; e Jess imaginava que a essa altura ela estava casada e sos­segada.

Ela está em Chicago. Arranjou um emprego de secretária, e está morando com a irmã Elizabeth.

Lindas moças, as duas. Imagino que estejam todas casadas e... crescidas — Jess acrescentou distraidamente. Sentia a saliva começar a formar-se em sua boca. Pegou o lenço, preparado para não cuspir, um hábito que enfurecia Daugherty.

Elizabeth está casada. —- Daugherty tirou do bolso um pedaço de papel. — Com um homem chamado Willits. Ele toca violino ou algo assim na Companhia de Ópera de Chicago. Nan está morando com eles. Aqui está o endereço.

— Para quê?

Daugherty terminou o chá e encarou, distraído, o vendedor ambulante no outro* extremo do bar enfumaçado.

  1. G. está tendo um caso com Nan há... Nem sei há quanto tempo. Descobri em 1917, quando ele lhe conseguiu um emprego de secretária em Nova York e costumava fugir até lá para encontrá-la, em diversos hotéis, num dos quais... — Daugherty interrompeu-se. — Não vem ao caso.

Carrie e também Nan? — Jess, incapaz de ser ativo com sua querida Roxy, encheu-se de inveja. Por outro lado, com a Duquesa como esposa um homem precisava de algum alívio. — Ela está criando problemas? — perguntou, pois entendia muito de chantagem.

Não. Pelo menos, ainda não. Está apaixonada por ele.

E ele está por ela?

Que pergunta! — Daugherty encarou Jess com tanto desagrado que instintivamente este enxugou o lábio inferior, só para certificar-se de que ele próprio não era desagradável. — Como é que vou saber? E nem me interessa! Somos políticos, pelo amor de Deus! Amamos o povo, pelo menos os que votam. Tudo que sei é que W. G. ainda tem um fraco por ela. Escreve-lhe cartas.

Cartas! — Um alarme soou na cabeça de Jess.

É. Cartas.

Como o Presidente Wilson fez com a Sra. Peck?

Essas são um pouco mais domésticas, Jess — ironizou Daugherty. — W. G. jura que não há nada de comprometedor, mas, droga, qualquer carta para uma garota com a metade da idade dele, falando de quartos de hotel, horários e lugares, vai ficar muito mal.

Quer que eu compre as cartas?

Daugherty sacudiu a cabeça.

Não. Ela não quer vender. Já tentei. Acho que pensa que um dia a Duquesa vai morrer ou desaparecer e W. G. vai casar com ela. Mas o problema não é este. — Daugherty entregou a Jess um envelope que, pelo tamanho e peso, continha dinheiro. — Quero que vá a Chicago e lhe dê este dinheiro.

Então ela está mesmo fazendo chantagem.

Não. É para o sustento da criança. A filha deles, nascida cm outubro.

Jess encarou Daugherty como se este tivesse feito uma piada complicada, que Jess era obtuso demais para entender. Será que devia pedir que o outro repetisse?

  1. G... Ele assume?

Daugherty assentiu.

Ele vai ajudar no que puder — explicou.

Mas a convenção vai ser em Chicago. — Jess estava entrando em pânico.

Muito conveniente, não é?

No domingo, 6 de junho de 1920, Jess encontrava-se pela terceira vez no exíguo vestíbulo do apartamento de quatro cômo­dos dos Willits — Avenida Woodlawn, 6.103, na esquina da Rua 61, em Chicago. Ele tinha decorado o endereço.

Nan estava sozinha e chorando.

Esperei e esperei na estação Englewood, mas ele não saltou.

Mesmo assim, com os olhos e o nariz vermelhos, ela era uma

- mulher bonita. Não havia sinal do bebê, que estava na casa de uma babá perto dali.

Bom, é por isso que estou aqui. W. G. ficou muito chateado. Mas a Duquesa ficou com ele o tempo todo, e não houve modo de saltar na estação Englewood. Mas ele me mandou dizer a você que vai tentar amanhã mais ou menos a essa hora. Sendo domingo, a sua irmã...

Ah, posso dar um jeito para eles irem à igreja ou qual­quer outra coisa. — Nan enxugou os olhos e pegou uma foto, emoldurada em bambu, dela mesma segurando um bebe. — Esta é a Elizabeth Ann no dia em que completou seis meses. Ele não quer vê-la, sabe?

Bem... — foi o melhor que Jess pôde fazer.

É a cara dele, não é? Rezo para que ele apareça para vê-la; ou então eu posso levá-la ao parque como costumo fazer, ele pode passar por lá casualmente e dizer oi. Que é que está acontecendo ná convenção?

Só vai começar na terça-feira, e só vão votar na sexta. Ninguém ainda é franco favorito. Imagino que a coisa vai ser decidida em salas enfumaçadas.

Como a maioria do país, Jess apreciava essa expressão, largamente atribuída a Daugherty pela imprensa; ele dera uma entre­vista dizendo que, se a convenção chegasse a um impasse logo no início, os magnatas do Senado decidiriam, numa sala enfumaçada, quem ganharia a indicação.

A pesquisa do dia do Literary Digest mostrava que Harding semeara o sexto lugar nos corações de seus companheiros repu­blicanos, ao passo que, pelo número de delegados comprometidos, Harding era o quarto, com Wood, Lowden e Johnson bem à frente. Era um alvo muito alto, e Jess apostava pouco. Daugherty estava agitado, porém pessimista. W. G. estava estranhamente relaxado, como se soubesse algo que os outros não sabiam, ao passo que a Duquesa estava convencida de que os astros já tinham feito a sua escolha. Na semana anterior, Madame Mareia fora enfática, e a Duquesa repetia sem parar:

Trígono da lua no signo de Aries.

Andei lendo que ele parou inteiramente de fumar e beber.

Bom, isso é coisa da Duquesa. Não quer fotos dele com um charuto ou, pior ainda, um cigarro, que é o que os desocupa­dos fumam, de modo que ele masca tabaco quando hinguém está vendo. Mascar não aparece nas fotos.

Mas Nan não estava escutando; estava parada diante de um aparador onde, em meio à louça, havia, pilhas de recortes de jornal mostrando W. G.

Acho que ele está um pouquinho gordo demais nesta aqui, Mas aqui, no Delineator, ele está lindo. Esta foi tirada quando ele estava num chautauqua, e eu estava na mesma rua, num ho­tel, onde...

Querida?

A voz era baixa e inteiramente familiar a ambos. Jess pôs-se de pé num salto, enquanto Nan corria a abrir a porta. Ali estava o senador Harding, que, ao ver Jess, entrou depressa na sala, an­tes que Nan pudesse abraçá-lo.

Eu ia passando por acaso — disse, em fom tão casual que Jess, se não soubesse da verdade, poderia ter pensado que um senador de Ohio estava simplesmente fazendo uma visita de cortesia à filha de um correligionário atualmente domiciliada em outro Estado. — De modo que pensei em dar um pulo até aqui e ver você e Elizabeth. Foi um pedido específico do juiz Scofield, quando saí de Marion.

Elizabeth saiu. Foi passar o dia fora.

Bem, então é melhor que eu...

Não, não. Sente-se. Ela vai voltar a qualquer momento. Quero dizer, ela...

Jess ficou fascinado. Nem mesmo Roxy representara tão bem uma cena por causa dele, como Nan e, W. G. estavam fazendo. Enquanto Jess saía, W. G. comentava:

Acho que estão todos no Gongress Hotel, nosso quartel- general, no Salão Florentino. O mesmo — voltou-se para Nan — que Theodore Roosevelt usou em 1912.

Jess despediu-se dos amantes, que o ignoraram.

O Salão Florentino era uma maravilha de madeira escura entalhada, couro folheado a ouro e pesados lustres de metal. Em todas as paredes havia retratos de Harding, e as mesas de refei­tório estavam cobertas de panfletos, botões, chapéus de palha. Uma dúzia de voluntários supervisionavam o mostruário, enquanto Daugherty e a Duquesa colocavam-se a um lado da porta principal, como para se protegerem de uma súbita invasão de fãs.

Onde está Warren? — foi a primeira pergunta da Duquesa.

Acho que na suíte do La Salle. Estive no Coliseu. — Jess tinha realmente visitado o auditório onde teria lugar a convenção, e ficara muito impressionado com os mais modernos painéis acústi­cos colocados nos fundos. -— Visitei também a suíte que vocês reservaram no Auditorium Hotel. — Ele voltou-se para Daugherty, qualquer coisa para evitar o olhar azul e contundente da Du­quesa. — Tudo está preparado por lá. E aqui?

Temos quarenta quartos aqui — disse a Duquesa. — São 750 dólares por dia durante dez dias. Daugherty está gastando dinheiro como se fosse água...

Para que mais ele serviria agora? Se gastamos, elegemos...

Nesse momento chegou George Christian, um rapaz de Marion

que Harding contratara como secretário. Era um jovem moreno, entusiasmado e eficiente, de uma antiga família de Marion.

Bem, temos gente em cada hotel onde haja uma delega­ção. Todas as informações sobre todos os delegados estão sendo atualizadas aqui no quartel-general. Temos quinhentos organizado­res em tempo integral, e na sexta-feira esperamos ter quase dois mil. Estamos sendo discretos e otimistas, e esperamos realmente que os senhores se lembrem do senador se houver algum problema...

Nesse momento o som de vozes masculinas cantando em unís­sono veio do saguão.

Meu Deus, que é isto? — fez a Duquesa.

Você hão tem bom ouvido, Duquesa — retrucou Daugherty.

É o Clube Republicano da Alegria, de Columbus. Todos os dias, a essa hora, vão cantar para nós no mezanino. São 75. Agora estão cumprimentando...

Daugherty ficou escutando por um instante, e todos ouviram uma frase cantada com melancolia: "Wabash, tão distante..."

— ... a delegação de Indiana. Depois, à noite, eles vão rodar todos os hotéis, fazendo serenata para todos os outros candidatos, criando boa vontade.

Trígono da lua — murmurou a Duquesa çonsigo mesma. Em voz alta, disse: — Dizem que o preço dos delegados do Sul agora é de cinco mil dólares por cabeça.

Isto para os que estão à venda — confirmou Daugherty.

Os comprometidos custam mais caro.

O presidente do Comitê Nacional Republicano entrou no Salão Florentino, seguido por vários membros da imprensa. Will Hays era muito jovem e, aos olhos críticos de Jess, muito feio, com orelhas de abano, nariz pontudo, queixo inexistente e a voz esga­niçada, com um forte sotaque de Indiana. Era supostamente neu­tro, mas todos sabiam que ele inclinava-se a si mesmo como aza­rão: era o bichinho de estimação da cabala do Senado.

Alguém me disse que o senador estava aqui. — Ao ver a Duquesa, dirigiu-lhe um sorriso de roedor e apertou-lhe a mão.

Sra. Harding, diga ao senador que faremos qualquer coisa ao nosso alcance. O Comitê de Credenciamento fica aqui no hotel, no anexo, e se houver algum problema é só falar conosco.

Vou dar o recado, Sr. Hays.

Como estão os sulinos? — perguntou Daugherty.

Hays revirou os olhos comicamente e retirou-se. Jess fixou o olhar no cartaz de Warren Gamaliel Harding na parede à sua frente e perguntou-se o que aconteceria se o mundo soubesse que u nobre senador romano estava no momento na cama com Nan Britton no outro lado de Chicago.

 

Para Jess Smith, aquela semana foi de inteira confusão. Ele foi enviado em várias missões, muitas vezes com envelope de dinheiro para os delegados sulinos. W. G. recebia os visitantes no Sulão Florentino; raramente sorria. Daugherty comandava seus dois mil soldados com grande precisão, mas ninguém sabia dizer com que propósito. Wood e Lowden ainda eram os principais candi­datos e Harding era apenas um de uma dezena de outros cavalos no páreo, que iam de pouco cotados a ignorados. Pior de tudo, na sexta-feira à noite ele tinha que decidir se ia ou não concorrer à reeleição ao Senado. Se não se registrasse antes da meia-noite, não poderia concorrer. Se se registrasse, estaria declarando que não esperava ser indicado para a eleição presidencial. Durante toda a semana ele tivera a intenção de registrar-se para o Senado, ao passo que a Duquesa ainda estava sob a influência de Madame Mareia. Agora, na sexta-feira, dia do escrutínio, era ela quem in­sistia para que ele concorresse ao Senado, e ele ficava enigmá­tico de repente.

Durante algum tempo Jess sentou-se na galeria, com um leque de palha que não apenas não o refrescava quando ele se abanava, mas também deixava-o com mais calor por causa da energia gasta para isso. Todos estavam em mangas de camisa. Lá embaixo as delegações estaduais conversavam entre si em voz tão alta que ninguém conseguia escutar os oradores que apareciam, um por um, na ponte de comando, como era chamada. Ali, um grande cartaz pedia-lhes que ficassem de pé dentro de um círculo branco, para que os curvos painéis de som atrás deles, junto com uma complicada peça de equipamento telefônico, pudessem fazer que o ora­dor fosse ouvido pelas 13 mil pessoas do auditório. Mas nenhum sistema de som poderia competir com o tagarelar dos delegados ngrupados em volta das bandeiras de seus estados.

De repente fez-se silêncio no auditório, quando o presidente da convenção, Henry Gabot Lodge, velho e macilento, apareceu na ponte de comando. Ficou por um instante contemplando o salão repleto. Eram cinco horas da tarde e a temperatura lá dentro devia atingir mais de quarenta graus, pensou Jess. Mas Lodge parecia frio, e a voz era fria.

Vamos começar o escrutínio estado por estado.

Houve um suspiro geral de alívio e algum aplauso. Jess pegou seu lápis e o bloco de anotações. Os estados foram chamados um por um em ordem alfabética, e o porta-voz de cada um declarava o voto do estado. Havia dez candidatos. Alguns eram filhos da terra, como Nicholas Murray Butler de Nova York e o governador de Massachusetts, Calvin Coolidge, enchendo o buraco até que a delegação estadual pudesse fazer um acordo com o vencedor; ou­tros, como Herbert Hoover, eram apoiados por correligionários desin­teressados. Na realidade, Hoover teria sido a escolha do país in­teiro, se o povo pudesse expressar sua preferência. Mas o que su­cedia era que as galerias — irrelevantes — estavam repletas de entusiastas de Hoover, ao passo que o salão — a única coisa im­portante — não estava.

Era claro que nem Wood, nem Lowden pretendiam ceder. Wood terminou o escrutínio com 287 votos, Lowden com 211. Johnson teve 133 votos e Harding, 65, 31 menos que o professor Butler de Nova York. Terminada a votação, Jess saiu às pressas do auditório para a suíte de Harding no Auditorium Hotel. Dau- gherty em pessoa fê-lo entrar. Harding estava estendido num sofá, uma garrafa de uísque e dois copos bem à mão. Parecia exausto. Não tendo se barbeado, parecia pálido como um fantasma. George Christian estava ao telefone. A Duquesa não estava à vista.

Acho que eu devia ter escolhido a reeleição — disse Harding, mais para si próprio.

Daugherty argumentou:

Você ainda tem até a meia-noite. Vamos rezar para que ninguém descubra, porque essa coisa não vai se resolver para o nosso lado hoje, talvez nem amanhã.

Harding serviu-se uma dose de uísque. A mão, Jess percebeu, estava firme. Christian largou o telefone.

- Bom, os senadores vão entrar em ação. Uniram-se para impedir Wood — informou.

Como? — perguntou Daugherty, apanhando outro telefone.

Vão pressionar seus candidatos para apoiarem Lowden.

Não se pode ter mais que um vice-presidente. — O tom de Daugherty era amargo, mas quando falou ao telefone sua voz era baixa e cálida. — Por favor, posso falar com o senador Penrose? Aqui é Harry Daugherty, de Chicago. — A resposta foi uma brusca negativa. — De qualquer maneira, muito obrigado — disse ele, e desligou.

Pertrose está em casa, moribundo — disse Christian.

Bem, enquanto ele está ocupado morrendo, mantém uma linha especial com a delegação da Pensilvânia. E está usando essa linha. Uma. palavra por parte dele... — Um assessor assomou à porta. — O senador Fali gostaria de falar com o senador Harding.

Harding pôs-se de pé num salto, ajeitou as roupas e penteou os cabelos, tudo num único movimento rápido.

Faça-o entrar.

Jess admirava muito Fali. Para começar, ele parecia um vaqueiro de verdade, com seus olhos penetrantes e o bigode cheio. Era também um dos maiores amigos de W. G. no Senado.

Os dois homens apertaram-se as mãos calorosamente. Então Harding levou Fali para o extremo oposto do aposento, onde nin­guém poderia escutá-los, e até mesmo Jess teve dificuldades nisso, porque tanto Daugherty quanto Christian estavam usando os tele­fones ruidosamente, dando ordens, oferecendo acordos.

Fali estava fazendo o possível para alegrar W. G.

Borah e Johnson estão ameaçando sair do partido se Wood ou Lowden forem indicados.

Por quê? — W. G. estava confuso, o que não lhe era comum.

Estão preocupados com todo o dinheiro que os dois andaram gastando. Borah está particularmente contrariado com o modo como o pessoal de Lowden comprou aqueles delegados do Missouri. Está dizendo que a Presidência não devia ser comprada.

Um pouco tarde para preocupar-se com isso — disse W. G., uma ponta de sarcasmo na voz.

Bem, você sabe como eles são.

Sei que isto é bom para nós — sorriu W. G.

O telefone tocou. Christian atendeu. O segundo escrutínio estava terminado. Lowden conseguira mais 48 votos, Wood apenas dois. Harding perdera quatro votos.

Bem, nossos colegas senadores fizeram tudo que podiam, por enquanto. — Fali não estava achando ruim. — Só que Nova York poderia ter iniciado um estouro de boiada quando Butler saiu, e não o fez.

Imagino que vamos ficar aqui a noite inteira — disse W. G. de repente, tranqüilo como sempre.

Mas antes do final do quarto escrutínio Jess observou fascinado a cabala senatorial entrando em ação no palco do auditório. Uma dezena dos homens mais poderosos do país estavam fazendo uma reunião importantíssima, abertamente. A liderança de Wood não caíra, apesar de todos os esforços deles; no entanto, os votos de Lowden não mostravam sinal de uma perda grave. Lodge pos­tava-se na ponte de comando enquanto se somava o quarto escru­tínio. Então anunciou o resultado: Wood estava a 177 votos da indicação. Houve aplausos quando os números foram lidos. Os sena­dores, os verdadeiros chefes — ou pelo menos assim acreditavam — da convenção, do Senado, do país, finalmente tinham chegado a uma conclusão. O solene senador Smoot subiu à ponte de comando e disse em voz alta:

Proponho que a convenção fique adiada para as dez horas da manhã de amanhã.

Houve um silêncio atônito. Então, antes que pudesse haver reação por parte dos delegados, Lodge disse:

Aqueles que forem favoráveis ao adiamento digam "sim".

Ouviram-se alguns "sim".

Os que são contrários digam "não". — Lodge mais que nunca tinha a aparência de ter sido mumificado recentemente.

Os "não" quase derrubaram o Presidente de cima da ponte de comando. Mas Lodge, agarrando-se à mureta, ergueu o martelo e disse, com um sorriso acanhado:

Os "sim" ganharam, e a convenção está adiada para ama­nhã às dez horas.

Jess pensou, com um arrepio: aquilo era o poder em sua forma mais crua. Além disso, a profecia de Daugherty estava prestes a ser cumprida. Nessa noite os senadores iriam escolher o próximo Presidente, e sem dúvida os quartos de hotel onde se reuniriam estariam enfumaçados. Mas W. G. emergira da fumaça? Jess fi­cara profundamente decepcionado com a falta de apelo de Harding até então. Ninguém era apaixonadamente favorável a ele, ao con­trário dos que apoiavam Wood, Lowden e Johnson. Por outro lado, ninguém era apaixonadamente contra ele. Essa tinha sido a estratégia de Harding desde o início: se os principais se anulassem uns aos outros, só ele sobraria, pronto para tomar a coroa.

Jess entrou no Blackstone Hotel, onde as delegações mais importantes estavam hospedadas. A suíte de Will Hays era agora o eixo da panelinha senatorial. Ao cruzar a portaria cheia de gente em direção aos elevadores, Jess foi abordado por um homem de aparência distinta, com uma pilha de panfletos na mão.

Senhor, vejo que é um delegado.

Jess ficou lisonjeado demais para negar.

Quequiá? — perguntou instintivamente.

O que há? — O homem sorriu. — Há que um dos candidatos à Presidência é negro, e há que só tragédias podem acon­tecer a um país branco que elege um negro...

Jess calculou que aquele devia ser o inimigo de Harding, William Estabrook Chancellor, professor na Universidade Wooster, no Ohio. Sempre que Harding candidatava-se a qualquer coisa, Chancellor aparecia com seus panfletos e genealogias, sempre financiado pelo próprio bolso, e embora não tivesse até então causado grandes problemas, Jess sabia que ele poderia fazer um grande estrago numa corrida apertada. Jess recusou o panfleto e dirigiu-se apressado para o elevador.

No quartel-general da delegação do Ohio, Jess encontrou o pró­prio W. G. Houvera nele uma transformação considerável desde o Coliseu. Harding agora estava bem vestido, recém-barbeado e exa­lando confiança! Havia agora uns cinqüenta homens e mulheres no aposento comprido e estreito, com uma mesa comprida e es­treita onde normalmente os vendedores exibiam suas mercadorias. Harding estava confortavelmente sentado à mesa diante de um enorme cartaz de si próprio.

Agora sei que existe a tentação de acompanhar aquele que vocês pensam que pode ser o vencedor, o general Wood, e sei que há alguns companheiros comprometidos comigo que estão tentando convencê-los a mudar amanhã no primeiro escrutínio e dar a in­dicação ao general .Wood. Mas ele jamais será o indicado. Isto é muito claro. Tampouco o governador Lowden.- Ainda estamos na corrida, e ainda somos o estado onde os republicanos precisam vencer para ganhar a eleição...

Jess olhou em volta da sala para ver o efeito que W. G. es­tava tendo no grande homem da delegação, o velho Myron Herrick; este assentia, concordando. Como o governador Herrick era o fato principal da política do Ohio, W. G. ainda se agarrava a seu estado natal, apesar dos sinais de rebelião.

No extremo oposto da sala, Jess avistou Daugherty sentado de costas para Harding, escrevendo num caderno. Jess foi até ele do modo mais invisível que conseguiu.

Quequiá? — sussurrou.

Saberemos dentro de uma hora. Estão todos reunidos na suíte de Will Hays.

— W. G. registrou-se para a reeleição ao Senado?

Daugherty assentiu e levou um dedo aos lábios.

Mas vamos vencer. Aqui. Esta noite.

Como?

 

Blaise fez a mesma pergunta a Lodge. Estavam sentados a um canto da suíte que Will Hays compartilhava com o editor do Harvey's Weekly, George Harvey, um antigo amigo e agora dedicado inimigo de Woodrow Wilson. Mais cedo, Blaise jantara com Lodge, Brandegee e Curtis, do Kansas, na suíte 404, onde "a coisa" seria re­solvida. Uma dezena de senadores estavam agora em sessão mais ou menos permanente enquanto o anfitrião, Will Hays, entrava e saía da sala, falando ao telefone em seu quarto, encontrando-se com misteriosos desconhecidos no quarto de Harvey, fazendo rela­tórios aos senadores.

Lodge parecia um rei, sentado no centro da sala, uma pintura das Cataratas de Niágara atrás de si. O uísque num aparador de vez em quando era procurado pelos senadores, que tinham, em sua maioria, votado a favor de sua proibição para todos os americanos.

O "como" é a parte fácil — disse Lodge em tom profes­soral. — Quando dermos o sinal, os candidatos apoiâdos por nós vão renunciar, e os delegados vão votar conforme a nossa escolha. O "como" é deliciosamente simples. O "quem" é que está nos causando problemas.

Hays veio do quarto.

Consegui falar com Penrose.

Ele está morto? — perguntou Harvey, que mostrava si­nais de muito uísque e poucas horas de sono.

Não que dê para notar — Hays respondeu com simpatia. — De qualquer maneira, ele largou Wood.

Os senadores acharam ótimo. Brandegee ergueu um brinde a Penrose.

Parece que o velho Penrose pediu a. Wood três cargos no Gabinete e Wood disse que jamais, e Penrose desligou na cara dele.

Wadsworth, de Nova York, interpôs:

Isto afasta Wood, mas não ajuda Lowden ou Johnson...

Johnson é impossível — afirmou Smoot.

Brandegee suspirou.

Ele diz que vai sair do partido. Acha que podemos obrigá- lo a cumprir essa promessa? — Os outros riram, e Brandegee con­tinuou: — E o filho favorito de Massachusetts? — perguntou, olhando para Lodge.

Fiz setenta anos no mês passado — disse este.

Parecia triste. Blaise perguntou-se qual deveria ser a sensa­ção de passar a vida inteira desejando uma coisa e então simplesmente, por causa do calendário, ver essa coisa desaparecer.

Brandegee sorriu.

Eu estava pensando no outro candidato de lá, o governador, Coolidge.

Embora, como a maioria dos americanos pensantes, Blaise pre­ferisse Herbert Hoover, que não era político — Franklin Roosevelt dissera que Hoover daria um esplêndido Presidente por qualquer dos dois partidos —, Coolidge era uma figura intrigante, muito admirada por todos por ter dito à polícia de Boston que eles não tinham o direito de entrar em greve prejudicando a segurança pública.

Smoot sacudiu a cabeça.

Ele não tem seguidores, e parece um joão-ninguém, exatamente o que é na realidade.

Acho que não devíamos indicar um homem que divide com outra família a casa onde mora — afirmou Lodge; pensativamente.

Harvey declarou:

Eu apóio Will Hays, naturalmente...

Eu também — disse o próprio. — Mas não posso ser indicado, pelo menos por enquanto.

Smoot sentou-se no braço de um sofá.

Acho que Harding é nosso melhor palpite.

Mas não havia grande entusiasmo por Harding. Brandegee obser­vou que ele tinha uma aparência presidencial, mas isso seria sufi­ciente? Lodge comentou que em Washington Harding dividia a casa com outra família, de modo que não poderia habitar o senho­rial esplendor da Casa Branca.

Blaise permaneceu até a meia-noite escutando os grandes homens discutirem as várias escolhas possíveis. Por volta da uma da manhã, ele percebeu que não apenas eles não tinham um plano comum mas que, apesar da leviana afirmação de Lodge de que os delegados fariam o que lhes fosse ordenado, a convenção estava fora de controle e se Wood e Lowden permanecessem na corrida não haveria meio de romper o impasse até que o cansaço fizesse os delegados escolherem Johnson ou Harding.

Às 2:00h, Blaise saiu despercebido, assim como o senador Smoot.

Quem vai ser? — perguntou Blaise.

Bom, vai ser aquele com o menor número de inimigos. De modo que isso deixa Johnson de fora.

A porta do elevador abriu-se. Lá dentro estava um repórter do New York Telegram, um homem que Blaise conhecia de vista e o senador Smoot de nome.-Quando o outro lhe fez a inevitável pergunta, Smoot declarou em voz baixa:

Todos nós decidimos por Harding. Ele é o homem.

Posso publicar isso?

Smoot sorriu.

Mas sem dizer a fonte. Por enquanto. Amanhã vamos deixar Lowden concorrer em alguns escrutínios e à tarde indicare­mos Harding.

O repórter saiu correndo do elevador e atravessou a portaria em direção a um telefone público. Blaise, perplexo, voltou-se para Smoot.

Mas não houve decisão de apoiar Harding ou qualquer outro!

Bem, Sr. Sanford, na política nem sempre se diz o que se quer dizer. Aliás, o político esperto acompanha os acontecimentos. Meu grupo de irmãos lá em cima estava eliminando, e não esco­lhendo, e embora não digam diretamente "o homem é Harding", é o que estavam fazendo quando rejeitaram Johnson e Coolidge.

Blaise lembrou-se de repente que ele também era jornalista,

O New York Telegram vai publicar na primeira página.

Foi por isso que falei com o rapaz. Então a Associated Press vai ficar sabendo, e ao meio-dia todos os delegados estarão lendo que nós escolhemos Harding para eles.

Acha que vai funcionar? — Blaise estava impressionado com a confiante maestria de Smoot ao lidar com os segredos da política.

Acho, sim.

Os dois se separaram; Blaise foi ao telefone e ligou para Trimble em Washington, com uma história mais plausível, na qual previa, de uma forma ou de outra, a vitória da oligarquia reinante no Senado.

Harding, acompanhado apenas por Jess, entrou na suíte de Hiram Johnson, onde foi carinhosamente cumprimentado por John­son e mais uma dezena de homens que Jess não conhecia, à ex­ceção do publicitário Albert Lasker, famoso por ter transformado certos biscoitos intragáveis numa iguaria muito procurada, simples­mente mudando-lhe o nome; inventara também a expressão "pele de garota de escola", um estado que só podia ser mantido com o uso constante do sabonete Palmolive.

Cabelos cuidadosamente repartidos ao meio, Johnson parecia resoluto e grave, como sempre.

Podemos conversar um instante?

Harding era senhor da situação; e Jess perguntou-se por quê. Johnson levou Harding para o quarto de dormir, com Jess junto. Este fechou cuidadosamente a porta, esperando W. G. dizer-lhe para esperar lá fora. Mas W. G. nem mesmo o notara.

Finalmente foi decidido — disse W. G. com seu sorriso mais encantador.

Quem decidiu o quê?

Nossos colegas senadores. Wood está fora. Lowden não vai conseguir chegar lá, como veremos amanhã, isto é, hoje, nos quatro ou cinco primeiros escrutínios. De qualquer maneira, quero você na minha chapa.

A careta de Johnson foi horrível.

—Você...?

Ohio e Califórnia. É difícil ganhar disso.

Você. .. para Presidente?

Hiram, sei que não pertenço ao seu time, nunca pertenci. Por isso preciso de você. É um dos melhores e mais populares homens públicos...

Mas não suficientemente popular para Lodge, Brandegee e Wadsworth...

Bem, sabe como eles são. Você assusta os camaradas. De qualquer maneira, por favor não me feche a porta. Espere um pouco e pense no assunto, está bem?

Harding apertou a mão de Johnson, abraçando-o com o braço esquerdo. Então, seguido por Jess, saiu do quarto, deixando Hiram Johnson entregue ao que, aos olhos de Jess, era obviamente uma fúria assassina.

 

Blaise tomou o café da manhã no Blackstone com Alice Longworth e Harvey, que estava visivelmente de ressaca. Para espanto de Blaise, Harvey declarou:

Decidimos por Harding. Era a única coisa que podíamos fazer...

— Harding! — assustou-se Alice. — Mas ele é tão... tão...

Segunda classe — concordou Harvey. — Mas é quem tem menos inimigos. É também o que os delegados querem, agora que Wood e Lowden anularam um ao outro.

Quando é que isso foi decidido? — quis saber Blaise. — Eu estive lá até uma da manhã, e nada tinha sido resolvido.

Foi por volta das duas e meia, acho. Chegamos até a chamar Harding, para contar a ele. Então lhe perguntamos se havia alguma coisa em sua vida particular que pudesse prejudicá-lo, e ele disse que não...

Além do sangue negro — fez Alice.

Harvey riu.

Alguém mencionou isso a Penrose no telefone, e Penrose disse: "Considerando-se os problemas que estamos tendo com o voto dos negros, isso poderia ser de grande ajuda"...

Enquanto Alice aliviava-se de um bom número de verdades a respeito de W. G. e da Duquesa, Blaise tinha certeza de que Harvey estava mentindo. Mentira a respeito de Wilson no passado; e agora estava mentindo novamente para poder fazer-se importante no pro­cesso da fabricação de um rei. Blaise tinha certeza de que nenhuma escolha fora feita e duvidava muito de que Harding tivesse sido con­vocado e interrogado, como um candidato a caixa de banco. Por razões próprias, Harvey queria fazer-se essencial à agora famosa previsão de Daugherty quatro meses antes — que por volta das 2:1 lh da manhã, 15 ou vinte homens exaustos voltar-se-iam para Harding.

Por que não Knox? — perguntou Alice em tom de queixa.

Mas Harvey foi chamado ao "telefone. Voltou com ar de sapiência.

O primeiro escrutínio já terminou. Lowden está à frente. Wood está caindo, Harding ganha uns votos aqui e ali. Johnson está caindo.

O senador Borah estava no 404? — quis saber Alice.

Hum... não, não estava, mas nós o mantivemos infor­mado, e ele... ele concordou. . .

Concordar não faz muito o estilo dele, não é? — Alice era esperta. Blaise perguntou-se se ela estava acreditando em Harvey. Ela prosseguiu: — De qualquer maneira, por que os velhinhos não aderem logo e colocam Harding na frente no próximo escrutínio? Por que arrastar as coisas?

Logística — explicou Harvey. — Não havia tempo de fa­lar com todas as delegações antes do início da convenção. Mas a notícia está correndo agora.

Cabot com certeza não quer Harding. — Alice estava con- trariàda com os caprichos da democracia.

Cabot só quer destruir Woodrow Wilson e a Liga das Nações. — Pela primeira vez Harvey foi preciso. — Não se importa com quem seja indicado, contanto que a pessoa não viva numa casa modesta. Na terra natal, é claro.

Os padrões de Cabot são tão altos! — fez Alice, sem conseguir comer o ovo à sua frente.

Blaise perguntou-se por que ninguém pensara no marido dela como -um candidato potencial. Afinal, Nicholas Longworth era agora líder de bancada na Câmara de Representantes, o que o tornava um homem muito importante. Mas ninguém jamais pensava no simpático e encantador beberrão Nick para coisa alguma.

 

Se a conspiração senatorial tinha pré-decidido a convenção, os próprios delegados não tinham sido instruídos. Blaise achou que os primeiros cinco escrutínios lembravam os de sexta-feira. Wood e Lowden alternavam-se em primeiro. Johnson caía e Harding subia imperceptivelmente.

Blaise abriu caminho através do calor equatorial até o palco, carregando sobre o braço o casaco dobrado, tentando não respirar o ar fétido. No palco encontrou Brandegee com aparência doentia.

— Que é que está havendo? — foi a pergunta pouco brilhante de Blaise.

Brandegee balançou a cabeça.

— Nada. É isto que está havendo.

— Pensei que ontem à noite os senhores senadores tinham de­cidido apoiar Harding.

— Quem lhe disse isso?

O meu jornal.

George Harvey, com certeza. É um imbecil. Não tomamos decisão alguma, a não ser que nós todos gostaríamos de ver Hays indicado, de modo que instruí a delegação de Connecticut a apoiar Will Hays no próximo escrutínio.

Se Connecticut apoiar Hays...

— Connecticut não vai fazer isso.

Mas o senhor é o senador...

— Mas não sou o estado. Os delegados querem Harding. Man­daram-me ir para o inferno. A coisa está uma confusão danada.

— Acabou-se a cabala senatorial.

— Coisa que os jornais inventaram para nós — disse Brandegee. — Nossa única esperança agora é um recesso. Então convence­mos Lowden a dar o fora, e Hays triunfa.

Blaise queria perguntar por que Hays, entre tantos outros. Mas naquele momento a pergunta não fazia sentido. Por que qual­quer um?

Lodge anunciou um recesso. Houve poucos aplausos e muitas vaias. Os fabricantes de Presidente agora tinham três horas para in­dicar Will Hays Presidente. Enquanto isso, espalhava-se o boato de que Harding e não Hays era a escolha do Senado. Blaise perguntou-se para que serviria tanta esperteza. Para tornar a indicação de Harding possível ou impossível?

Enquanto os delegados começavam a deixar o auditório, Blaise viu Daugherty discutindo exaltadamente com Lodge na ponte de comando.

— Não vai conseguir derrotar esse homem assim — Blaise ou­viu Daugherty gritar para o imperturbável Lodge.

Este murmurou algo sobre a "união do partido" e virou-se para o outro lado.

Jess reuniu-se a Daugherty num aposento nos fundos do palco, onde W. G. já se instalara em segredo. Daugherty estava suando e nervoso. Harding estava inteiramente à vontade.

Onde é que a Duquesa está sentada? — perguntou.

À esquerda da ponte de comando — esclareceu Jess.

— O próximo escrutínio com certeza vai ser decisivo.

Harding penteou os cabelos diante do espelho e Jess perguntou-se se ele ia aparecer diante da convenção quando fosse indicado. Certamente seria teatral, mas talvez não fosse permitido. Jess não conseguia lembrar-se do procedimento das convenções anteriores.

Bateram à porta e Jess abriu uma fresta. Era Toby Hert, de Kentucky, mestre-sala de Lowden. Atrás dele vinha o governador Lowden em pessoa.

Entrem! — exclamou Jess, cuspindo em si mesmo.

Harding e Lowden apertaram-se as mãos calorosamente.

— Imagino que saiba por que estou aqui — disse o governador.

— O senhor sempre foi a minha escolha pessoal — disse W. G., generoso na vitória.

Toby foi direto ao assunto.

— Liberamos todos os nossos delegados, e a maioria vai apoiar o senhor. Mas muitos votos lá fora estão sendo comprados para Hays.

— A quanto? — perguntou Daugherty, sempre prático.

— Entre mil e dez mil dólares.

Daugherty assobiou.

— É tarde demais para Hays — disse Lowden. — O senhor é o próximo da fila, e ninguém jamais vai poder dizer que um grupo de senadores forçou os delegados a escolherem-no.

— Ah, muitos vão dizer, sim — sorriu Harding. — Mas nós sabemos que não foi assim. Na verdade, meus amigos no Senado ten­taram me deixar de fora. Mas vou perdoar-lhes, pois não sabem o que fazem.

— Amém — disse Daugherty, exausto.

Blaise estava sentado atrás da Sra. Harding quando o novo escrutínio foi iniciado, às 4:50h. Hays não mostrava força alguma; isso liquidava os chefões na sala enfumaçada. Não houve uma mu­dança significativa em relação ao escrutínio anterior até chegar a vez do Kentucky, cujo porta-voz levantou-se e votou não em Lowden, mas em Harding. Foi o sinal de que Lowden estava fora da corrida. Um brado geral fez-se ouvir.

Severamente Lodge bateu com seu martelo. A Duquesa retirou o chapéu e colocou-o no colo. Na mão direita segurava dois grandes alfinetes de chapéu, como se estivesse pronta para lutar até a morte por aquele que os astros escolheram para Presidente. Então Daugherty sentou-se ao lado dela.

— Ele vai ser indicado no próximo escrutínio. A Pensilvânia agora está conosco — informou ele.

A Duquesa fez um gesto convulso e enfiou os alfinetes na perna de Daugherty — pelo menos foi o que Blaise imaginou e que Dau­gherty deve ter sentido, pois ficou muito pálido, porém logo se refez.

— W. G. está lá nos fundos, com Lowden — prosseguiu. — De­pois da indicação vamos levá-lo para o La Salle. Já alugamos uma suítè maior, com elevador privativo.

A Duquesa assentiu, emocionada demais para falar.

Jess estava sentado com Nan Britton bem no alto da galeria. Juntos devoravam um saco de amendoins. O calor era sufocante mas nenhum dos dois se importava, pois estava começando o décimo es­crutínio. Aparentemente W. G. estivera com Nan três vezes na úl­tima semana, e havia até um plano para um encontro no dia seguinte no parque, onde ela estaria passeando com a criança. Jess pergun­tou-se o que Daugherty diria se soubesse; perguntou-se se deveria ou não contar a Daugherty. Até então, W. G. tomara sozinho o trem ele­vado para a Rua 61 três vezes, sem ser reconhecido. Nan dissera-lhe que ele era louco de fazer isso, mas ele não conseguiu controlar-se. Paixão.

O grande momento ocorreu quando a Pensilvânia foi chamada e o chefe da delegação, consciente de sua missão histórica, entoou gravemente:

— A Pensilvânia dá 61 votos para Warren G. Harding.

Aplausos exaustos dos delegados e dos assistentes marcaram a vitória de Harding.

Lodge anunciou que a votação tinha sido unânime para Lowden o foi vaiado. Quando disse o nome correto, as vaias continuaram. Wisconsin não apoiaria outra pessoa senão La Follette, ao passo que Wood ainda tinha mais de cem votos.

Com uma careta de desprezo Lodge bateu o martelo com força e gritou com sua rouca voz de fidalgo:

— Warren G. Harding foi unanimemente indicado por esta convenção como candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos!

Não acredito! — fez Nan.

— Eu sim — respondeu Jess. — Daugherty e eu sempre soube­mos que um dia conseguiríamos, e agora conseguimos.

 

Os candidatos democratas a Presidente e vice-presidente estavam sentados no escritório de Tumulty, que dava para o gramado sul da Casa Branca. Burden fazia-lhes companhia enquanto Tumulty orga­nizava o Presidente. O candidato à presidência, o governador James Cox, de Ohio, era um homem pequeno, de cabeleira rala e rosto re­dondo e corado; usava um terno de três botões com os três botões devidamente abotoados. Parecia ao mesmo tempo presunçoso e inti­midado. O candidato à vice-presidência era Franklin D. Roosevelt, com 38 anos; embora incapaz de sentir-se intimidado diante de al­guém exceto, talvez, outro Roosevelt, ele estava nervoso.

— Acha que vamos estar com ela? — perguntou ele a Burden.

Quem sabe?

Burden mostrava-se menos que simpático. Se alguma vez um partido político escolhera um par de perdedores perfeitamente equi­librado, era ele o arrogante Roosevelt, cuja imitação de T. R. era me­nos convincente do que a da maioria dos cpmediantes, e o digno, po­rém mortiço Cox, que recebera a indicação depois de 44 escrutínios durante os quais os dois principais contendores, o inimigo do bolche­vismo A. Mitchell Palmer e William McAdoo, destruíram-se um ao outro. Burden fizera o possível por McAdoo, mas o líder natural do partido fora solapado por seu sogro, o Presidente, que deixara esca­par que ele próprio gostaria de um terceiro mandato para combater em prol da Liga. Como Wilson no momento encontrava-se incapaci­tado para desempenhar o trabalho de Presidente, parecia muito im­provável que esse inválido fosse receber mais quatro anos. De qual­quer maneira, mesmo que Wilson estivesse com ótima saúde, o país, se não o seu próprio partido, o teria rejeitado.

Quando a língua de Harding tropeçara durante um recente dis­curso, transformando uma volta à "normalidade" em "normalismo", o país em uníssono soltou um grande suspiro de alívio — chega de grandes homens! — e a estranha palavra de Harding foi recebida com absoluta satisfação como uma definição do estado de espírito na­cional.

Burden olhou para Roosevelt com leve desagrado. Se um político alguma vez tivesse nascido com todos os trunfos na mão, era essa criatura alta e elegante em suas calças brancas, paletó escuro e sapatos brancos, mais apropriados para uma vigorosa partida de cro­que do que para uma corrida pela vice-presidência. Felizmente ele logo seria derrotado e desapareceria do cenário nacional, já que agora havia todos os sinais de que os republicanos, uma vez no poder no­vamente, poderiam ocupar a Casa Branca pelo mesmo tempo que da primeira vez, de Lincoln a Cleveland.

Em certo sentido Burden ficava feliz por McAdoo e ele não te­rem sido indicados. Embora fossem figuras mais fortes que os dois homens nervosos sentados diante de si no escritório ensolarado de Tumulty, o país estava querendo normalismo, sono e dinheiro. A corrida de Burden para o Senado mostrava-se mais difícil que antes, e Kitty já estava em American City dirigindo a campanha. Numa via­gem para levantar fundos em Nova York, ele encontrara Franklin fazendo a mesma coisa; a pedido de Roosevelt, ele concordara em aju­dá-lo e a Cox com uma difícil reunião com o Presidente, cujo endosso talvez ajudasse menos que a sua inimizade, pois no fundo Wilson era o único tema da campanha. O país era contra ou-a favor da Liga? Contra ou a favor de presidentes mitológicos? Contra ou a favor de um papel de liderança num mundo tão misterioso para a maioria do povo quanto o reino dos céus?

— Não fui perdoado pelo Natal. — Roosevelt acendeu um cigarro. Cox fixou os olhos sem expressão no gramado sul da casa onde ele nunca moraria. — O coitado do Lorde Grey ficou sem saber o que fazer. O Presidente não queria recebê-lo por causa da... você sabe, a piada que um dos rapazes da embaixada fez a respeito da Sra. Wilson. De modo que Eleanor e eu o convidamos para passar o Natal conosco, e a Sra. Wilson está criando caso desde então.

— Por que será que ele demitiu Lansing? — perguntou Cox, dando as costas à janela. — Quero dizer, qual foi a verdadeira razão? Não pode ter sido porque ele estava fazendo reuniões do gabinete enquanto o Presidente estava doente.

Ela nunca gostou de Lansing.

Franklin, na opinião de Burden, tinha uma visão exagerada do papel das mulheres na vida pública de seus maridos, até mesmo uma mulher que era geralmente considerada a verdadeira Presidente na­quilo que há mais de um ano vinha sendo uma espécie de regência.

— Foram várias coisas — disse Burden. — Primeiro, o Presidente jamais gostou dele. Segundo, Lansing conversou mesmo com o vice-presidente sobre a possibilidade de destituir o Presidente do cargo...

Lansing estava envolvido naquilo? — perguntou Cox, intrigado.

Burden alegrou-se por saber algo que o chefe titular de seu par­tido — até a primeira terça-feira de novembro — não sabia.

— Estava. Marshall também. Eu também. E também, acredite, Cabot Lodge. Foi quando enviamos os senadores Hitchcock e Fali para verem como o Presidente realmente estava.

Wilson fizera um esplêndido espetáculo. Quando os senadores estavam de partida, Fali afirmara, melosamente: "Sr. Presidente es­tamos rezando pelo senhor"; e Wilson, com a habilidade de um ator teatral, respondera: "Para que me aconteça o quê?"

— Finalmente — continuou Burden —, quando o assessor de Lansing, aquele idiota do Bill Bullit, testemunhou no Senado que Lansing achava que a Liga era inútil, o Presidente resolveu que era hora de Lansing ir para a guilhotina, e foi o que aconteceu.

Alguns meses depois — acrescentou Franklin.

Houve o derrame do Presidente...

— E o início da regência — completou Franklin, apagando o cigarro não fumado.

— Não creio que exista uma regência — declarou Burden, espantando os outros dois. — Estive diversas vezes aqui, gosto bastan­te da Sra. Wilson, e, não importa o que dizem, não acho que ela e Grayson estejam dirigindo o país.

— Então quem está? — perguntou Cox.

— Não contem a ninguém — fez Burden. Em seguida cochichou dramaticamente: — Ninguém!

— Você quer dizer, como se não houvesse um Presidente? — quis saber Cox.

— É exatamente assim, e acho que os republicanos nunca irão mencionar o assunto, porque há uma boa chance de que o pessoal goste da idéia e' resolva abolir o cargo e economizar muito dinheiro ao país.

— Deus nos livre! — exclamou Franklin.

O corpulento e desleixado Tumulty apareceu.

— Ele está a caminho. Vai recebê-los na varanda sul. Viram

isto?

Ergueu um panfleto com a manchete "Um Presidente Negro?". Sob a manchete havia uma fotografia borrada de Harding, inteira­mente desbotado.

— Claro que sim — respondeu Cox. — Coisa horrível. Mandei não ser usado.

— Acha que é verdade? — quis saber Franklin.

— Quem sabe? — A Burden aquilo era indiferente. — De qual­quer maneira, toda vez que Harding se candidata a alguma coisa, o mesmo maluco aparece com suas supostas provas.

— Isto nos daria todo o Sul, o Sudoeste, grande parte de Ohio e da Califórnia, coisa de que precisamos desesperadamente... — recitou Tumulty com ar melancólico.

— Já temos o Sul — disse Cox.

— Neste negócio nada é seguro — retrucou Franklin, folheando o panfleto.

— De qualquer maneira, esqueça. O Presidente disse não. — Tumulty suspirou. — Acho que isso elegeria vocês dois, mas quem sou eu? De qualquer maneira vocês vão vencer, mas mesmo assim...

— Que significa o Presidente dizer não? — Os olhinhos frios e apertados de Roosevelt encararam Tumulty, e seu súbito alto nível de atenção realçava a desagradável assimetria do rosto oval.

— Significa, Sr. Roosevelt, que se alguém tentar mandar um destes pelo correio o carteiro vai confiscá-lo.

— Com que autoridade? — perguntou Franklin, agora muito nervoso.

— Sob os poderes de guerra do Presidente, que ainda não foram anulados. Especificamente, a Lei de Espionagem de 1917.

— Precisamos fazer alguma coisa a respeito de todo esse poder ditatorial que demos a César — Burden declarou com um sorriso amigável a Franklin.

Depois do governo do Sr. Cox — riu Franklin. Assoou o nariz e perguntou: — Por que será que o Potomac afeta o meu nariz mais que o Hudson?

— O lar é melhor, imagino — sorriu Burden.

Tumulty estava à janela.

— Lá vem ele. Vamos para fora.

Na varanda sul, Woodrow Wilson estava arrumado numa cadeira de rodas de aparência estranha. Apesar do calor do dia, um xale cobria seu lado esquerdo paralisado. À exceção de um homem do Serviço Secreto, ele estava sozinho. Obviamente a Sra. Wilson não desejava aparecer como regente, nem como intérprete. O pescoço do Presidente estava murcho, o rosto emaciado, a boca caída do lado esquerdo. Cox cochichou a Roosevelt:

— Não sabia que ele ainda estava tão doente.

Quando entraram na varanda, Wilson estendeu a mão.

Estou feliz por terem vindo.

— Sr. Presidente... — começou Cox. Parecia impressionado com a extensão do estrago diante de seus olhos. — Sempre admirei sua luta pela Liga.

Burden considerou aquilo singularmente infeliz. Se não fosse pela luta fatal, Wilson e não Cox seria o indicado e estaria com uma saúde estúpida, como diziam os ingleses. O fanatismo cego de Wilson arruinara a Liga, o partido e ele próprio. Quando se tratava de prá­tica política, o nível de compaixão humana de Burden nunca era alto.

A guerra ainda pode ser ganha — retrucou Wilson.

Assim dizendo, passava adiante a arma do suicídio; como um

guerreiro japonês rendendo-se à geração seguinte — uma espada que servia apenas para ser enfiada no próprio ventre. Burden percebeu que Franklin, embora flutuasse de um lado para outro exalando euforia, fazia apenas ruídos simpáticos, sem dizer coisa alguma a respeito da Liga ou de qualquer outra coisa. Talvez fosse mais inte­ligente do que Burden suspeitava.

Vai gostar de morar na Casa Branca — disse Wilson. Sem o lado esquerdo da boca e da língua para ajudar a formar as palavras, a voz ficava indistinta; além disso, mostrava uma tendência a deixar a boca aberta depois que terminava de falar. — Nós gostamos, du­rante a maior parte do tempo, mas agora, naturalmente...

Cox obviamente não possuía os requisitos necessários para uma cena tão fundamental e dolorosa.

— Sr. Presidente! — discursou. — Vamos estar um milhão por cento do seu lado e de seu governo, e isto significa a Liga das Nações!

Novamente o Presidente tornou a murmurar:

Fico-lhe grato. Fico-lhe muito grato.

Franklin mostrou a dentadura hereditária dos Roosevelt como se fosse um talismã e pôs-se a desfiar um rosário de palavras amá­veis e sem sentido; então ele e Cox apertaram a mão do Presidente e Tumulty levou-os de volta aos escritórios. Burden teria seguido com eles, se Wilson não o segurasse firmemente pelo pulso, dizendo:

Fique.

Uma vez os candidatos fora de vista, Edith entrou na varanda. Cumprimentou Burden com carinho, embora com cansaço; então ela e Burden sentaram-se de cada lado da cadeira de rodas.

— Tivemos dificuldades em encontrar o tipo certo de cadeira, até que eu me lembrei daquelas maravilhosas de Atlantic City, sabe? Onde os garotos nos empurram pela calçada. Então compramos uma. Só cinco dólares — contou Edith, parecendo orgulhosa de si mesma.

Já consigo andar — disse Wilson.

Já consegue ficar de pé e andar sem ajuda — emendou Edith.

Não çonsigo levantar a perna esquerda ainda. Mas isso virá logo. Tarde demais! — Wilson golpeou o braço da cadeira. Devia ter lutado. Mas havia o Mac...

Burden agradeceu à entidade que porventura presidisse os des­tinos dos políticos por Edith e Grayson, e todas as pessoas próximas ao Presidente, terem-no impedido de disputar um terceiro mandato. Ele parecia tão completamente alheio à extensão de sua impopulari­dade quanto à extensão de sua debilidade física. Chegara a enviar o novo secretário de Estado, Bainbridge Colby, à convenção democrata em San Francisco, para conseguir apoio ao seu terceiro mandato. Burden, como delegado de seu estado, fizera o possível para explicar a Colby a situação política. Mas o Presidente dera suas instruções e Colby era obrigado a obedecer.

McAdoo liderara o primeiro escrutínio. Uma palavra de Wilson, e seu genro teria sido o candidato e provável vencedor. Quando o diretor geral dos Correios, Burleson, telegrafara ao Presidente pedin­do que ele apoiasse McAdoo, Wilson transformara-se em Rei Lear so­bre a colina. Ameaçou demitir Burleson; depois ordenou a Colby que apresentasse seu nome. No final, nem mesmo Colby ousara apre­sentar o nome de Wilson à convenção.

Mac é um excelente executivo, mas não tem o poder de execução.

Edith, que ouvira essa frase muitas vezes, corrigiu:

Você quer dizer poder de reflexão.

— Claro, foi o que eu disse. — Wilson voltou-se para Burden. — Quando sairmos daqui vou praticar advocacia. Em Washington, com o Sr. Colby.

Burden desejou boa sorte aos novos sócios, enquanto Edith en­carava-o com ar estranho, sem saber como ele usaria essa informação.

Naturalmente vou escrever sobre história. Ou tentar. Estou um pouco sem prática. Ele não é nem um pouco como T. R., certo?

A atenção de Wilson para qualquer assunto não era mais inten­sa, e as transições eram abruptas e misteriosas. Edith traduziu:

— Woodrow está se referindo ao Sr. Franklin Roosevelt. Eu não gostaria de ser a pobre Sra. Roosevelt — acrescentou.

Certamente tudo isso já passou.

No inverno anterior Lucy Mercer casara com um certo Wintie Rutherfurd.

Mas o jeito como ele a trata! Não pense que não soubemos tudo sobre a noite em que ela o deixou numa festa muito animada, foi para casa e descobriu que tinha esquecido a chave, de modo que teve que esperar no vestíbulo gelado até ele chegar em casa de ma­drugada.

Eu teria tocado a campainha — retorquiu Burden, que tam­bém ouvira várias versões da mesma história.

Wilson endireitou-se, com o auxílio do braço bom.

Foi bondade sua ter vindo — disse.

Burden apertou-lhe a mão.

— Fico contente por vê-lo tão bem.

— É impressionante, não é? — respondeu Wilson.

Estaria sendo irônico?

Edith nada revelou:

E como ele trabalha! Nós dois trabalhamos!

O rosto prematuramente idoso ergueu-se para Burden; os olhos cinzentos e opacos cintilaram como os de um lobo à luz do sol; os dentes compridos também eram nitidamente lupinos, ao passo que a voz tornou-se de repente um rosnido baixo:

É horrível ficar incapacitado.

Sim, pensou Burden, o lobo sabia que estava numa armadilha mortal, no entanto ainda queria matar.

Um funcionário acompanhou Burden até o andar principal da Casa Branca, que parecia um hotel deserto fora de temporada. Nos salões Verde, Azul e Vermelho os tapetes tinham sido retirados. Ape­nas o Salão Leste estava em uso, como sala de projeção de filmes. Todos os dias os Wilson e os Grayson sentavam-se em solitário es­plendor, olhos fixos nas imagens trêmulas sobre um lençol pendura­do num lustre de cristal.

Burden estremeceu sem querer; e partiu para Rock Creek, onde uma amável viúva esperava por ele na própria casa dele, fechada du­rante a temporada. Quando o carro saiu da Avenida Connecticut e entrou no Parque de Rock Creek, ele entendeu por que Wilson proi­bira o uso das supostas provas da ascendência negra de Harding: que­ria que Cox e Roosevelt perdessem — a última chacina do lobo.

 

No 55º aniversário de Warren Gamaliel Harding, em 2 de novembro de 1920, o eleitorado americano fê-lo Presidente. Embora menos da metade dos que poderiam votar o tivessem feito, Jess sabia, pelas cifras escritas no quadro-negro na sala de estar de George Christian, que W. G. estava vencendo quase que pelo dobro. Além disso, tanto o Senado quanto a Câmara de Representantes eram republicanos, e a era de Woodrow Wilson era agora tão remota quan­to a de Cleveland.

Jess era um de uma meia dúzia de voluntários de confiança que estavam na casa que Christian alugara, ao lado da dos Harding, e falava pelo telefone com vários agentes em todo o país, para ter uma idéia de quem voltaria ao novo Congresso e quem não voltaria. Vários senadores famosos tinham sido derrotados, e novos nomes tomavam seus lugares.

O telefone tocou. Jess atendeu. Era o simpático herói de guerra Charlie Forbes, ligando de Seattle.

— Diga ao Presidente que ele varreu todo o Nordeste — disse ele, soando quase como se não estivesse bêbado.

— Quequiá? — disse Jess; a palavra "Presidente" estava começando a registrar-se.

— Diga-lhe feliz aniversário, e que nós o veremos em Washington.

Este, Jess decidiu, seria seu último telefonema. Largou o telefone. Ouviu a risada de W. G. no aposento contíguo, seguida pela voz da Duquesa, com o costumeiro:

— Ora, Warren!

Na sala de jantar da casa alugada, o Presidente eleito sentava-se à cabeceira da mesa de jantar, à sua frente os restos de um bolo de aniversário. Daugherty e Christian o ladeavam, ao passo que a Duquesa e o pai de W. G., o velho Dr. Harding, estudavam números à outra ponta da mesa.

— Era Charles Forbes — informou Jess a W. G. — Vitória total no Nordeste.

Grande Charlie!

Em seu momento de triunfo, W. G. exalava calor humano, ao passo que Daugherty estava relaxado pela primeira vez em mais de um ano. O operoso Christian ocupava-se com os vários jornalistas que vinham pedir um pouco de "cor local", como eles diziam. Até então, a única cor era a do guardanapo que W. G. tinha enfiado no cós das calças e esquecido de tirar.

Foi a Duquesa quem perguntou:

— Por que tão poucos votaram?

As mulheres, que Deus as abençoe! — O olho azul de Daugherty estava nublado, não de sentimento, mas de cansaço. — É a primeira eleição presidencial delas, e a maioria não chegou a regis­trar-se para votar.

A Duquesa voltou-se para Christian:

George, deixei duas garrafas de champanhe perto da porta da frente da nossa casa. Leve-as para os jornalistas. É claro que não fomos nós quem as enviamos, pois obedecemos às leis do país.

Daugherty interpôs:

— Tecnicamente falando, o Presidente ainda não jurou respeitar essas leis, de modo que, como antigo senador e não ainda Presidente, pode cometer uma contravenção em boa-fé.

— Mas nada de mau gosto — ressalvou W. G., mastigando a ponta de um charuto já apagado.

Jess perguntou-se qual seria a sensação de descobrir-se Presidente durante o jantar. Naturalmente não tinha sido só isso. Durante mais de um ano, Daugherty e Harding tinham trabalhado em cada estado, reunindo apoio. Agora, ali estava o resultado.

Ah, George, não dê coisa alguma ao pessoal do noticiário de cinema — fez a Duquesa, que ainda não tinha terminado. — Já falei a eles que quando estivermos na Casa Branca eles não poderão entrar, depois daquela filmagem que fizeram de nós na semana pas­sada, quando não estávamos olhando.

Ora, ora, Duquesa — acalmou-a W. G.

Além disso, fiz uma agenda — disse Florence Kling Harding, os olhos brilhando como holofotes azuis. — Todo mundo que já nos esnobou em Washington está anotado. Essa gente não vai pôr os pés na nossa Casa Branca, fiquem sabendo.

Coitada da Alice Longworth — observou Daugherty.

Acho que abriremos uma exceção para ela — sorriu W. G.

Ora, ela é a pior, ela...

Querida, Nick é o líder da Câmara. De modo que vamos ter que deixá-los entrar.

Bem, só quando for absolutamente oficial.

Christian assomou à porta.

— A Associated Press quer saber se quando o senhor foi indicado, em Chicago, comentou: "Bem, jogamos os dados e ganhamos o bolo."

Claro que não — fez a Duquesa.

Harding suspirou.

Não vai adiantar — comentou em tom melancólico. — Depois que pregam uma frase dessas na gente, ela nunca mais se desprega.

Daugherty riu.

— Como Hiram Johnson. Dizem que quando você lhe ofereceu a indicação para vice-presidente ele perguntou: "Você colocaria as batidas do seu coração entre mim e a Casa Branca?"

— Tão metido! — fez a Duquesa., — Ainda bem que ficamos com Calvin Coolidge no lugar dele. Coolidge conhece o seu lugar. Infelizmente a mesma coisa não acontece com ela.

Jess estava empoleirado numa cadeira entre Harding e Daugherty. Do lado de fora vinham aplausos, e de vez em quando um carro que passava tocava a buzina. Marion inteira ia passar a noite comemorando.

Mãos juntas atrás da cabeça, Harding resumiu:

É como aquele grupo do Senado, como é que o sujeito do New York Times descreveu? "O soviete do Senado": Dizem que eles se reuniram na suíte enfumaçada de Will Hays...

— Esta parte é minha — interpôs Daugherty. — Na primavera passada, consultando minha bola de cristal...

— Então eles decidiram, por vários motivos, todos sinistros, que na manhã seguinte eu seria feito candidato.

Harding franziu o cenho pela primeira vez desde que a glória o envolvera como um Roupão Dragão Chinês Deluxe de Seda e Cor­dões do Ouro Genuíno do Armazém Smith. W. G. livrou-se do toco de charuto mastigado e deliberadamente acendeu um charuto Havana.

Apesar dos resmungos de aviso da Duquesa, Harding tragou profun­damente, com satisfação, e disse, quase sonhadoramente:

— No entanto, no dia seguinte, nos quatro primeiros escrutínios, os 13 senadores, que supostamente tinham concordado na vés­pera que eu seria o candidato deles, votaram todos contra mim.

Para surpresa de Jess, Daugherty assentiu, concordando. Geral­mente ele se comprazia em tomar para si o crédito do que suposta­mente acontecera na suíte de Will Hays às 2:1 lh daquela famosa madrugada de sábado. Na realidade, Daugherty não soubera da reu­nião até de manhã, quando outras forças já estavam agindo.

— Foi por isso que quando Lodge pediu um recesso eu pensei que ia ter um enfarte — disse ele.

— Foi porque você não sabia que Lowden e eu estávamos con­fabulando sobre o que fazer. — W. G. lançou um olhar benigno a um grupo de jovens parentes de olhos arregalados reunidos em volta da Duquesa. — Até o nono escrutínio meus colegas senadores ainda esperavam indicar Hays. Mas então Lowden e eu já estávamos de acordo. No nono escrutínio, dez dos meus supostos empresários se­natoriais votaram contra mim, ao passo que os três que passaram a me apoiar estavam na rede havia muito tempo, como diria a imprensa.

— Mas isto significa — Jess não conseguia controlar-se — que os senadores nada fizeram para conseguir-lhe a indicação?

  1. G. assentiu.

— Quando os candidatos números um e dois eliminam um ao outro, o número três é geralmente o escolhido. Bem, eu era o número três. Simplesmente isso. Eles não puderam me derrotar uma vez que o governador Lowden e eu nos juntamos. O fato de que somente alguns deles continuavam tentando conseguir a indicação para Hays entre o oitavo e o nono escrutínios mostra o quão pouco sabem sobre essas coisas. Na verdade, as pessoas iam ficar escandalizadas se os senadores tivessem conseguido me derrotar.

— Então, depois que vencemos, aquele blefador do Harvey e alguns outros começaram a falar sobre a suíte enfumaçada, fingindo serem os chefões — disse Daugherty. — Mas não eram. Foi você quem fez tudo. Você foi a escolha da convenção.

  1. G. esfregou os olhos.

— E foi exatamente como planejamos. Claro, por um instante tive medo...

Quando o Presidente eleito não completou seu pensamento, Jess perguntou-se se isso podia ter algo a ver com as galerias, com todas aquelas pessoas que realmente queriam Herbert Hoover, que aos olhos do partido nem ao menos era candidato. No entanto elas não paravam de clamar: "Hoover! Hoover!"

Christian entrou sorrindo, e anunciou:

— O governador Cox reconheceu a derrota.

— Não acredite nisso! — exclamou a Duquesa. — Aquele Jimmy Cox é traiçoeiro como ninguém. George, verifique...

Mas todos estavam agora ocupados demais aplaudindo, quando um grupo de jornalistas e fotógrafos rodeou o Presidente eleito.

Daugherty chamou Jess de lado e entregou-lhe um envelope.

— Ela vai chegar no das 7:00h de Chicago. Vai diretamente para o Marion Hotel. Vá encontrá-la por volta das 8:00h.

Ela está... sozinha?

Reze, Jess, Eu também vou rezar. Vou para a cama. Conseguimos.

— Conseguimos — repetiu Jess. Então perguntou-se que diabos iam fazer com Nan Britton nos próximos quatro anos.

Jess encontrou Nan na cafeteira do Marion Hotel. Além de uma mulher de aspecto cansado atrás do balcão, não havia pessoa alguma à vista. Nan estava lendo o Chicago Tribune, que devia ter trazido consigo: a manchete da véspera predizia uma vitória dos republicanos. Jess tinha consigo um exemplar do Marion Star com a grande notícia: "Harding Conquista a Nação." Automaticamente, Jess cumprimentou perguntando:

Quequiá?

Nan respondeu:

— Que maravilha! Eu estava tão exausta que dormi no trem, e só quando acordei, às 6:30h, foi que perguntei ao funcionário quem tinha ganho e ele disse: "O homem é Harding, madame."

Vai querer panqueca com geléia como sempre, Jess? — perguntou a senhora atrás do balcão, olhando-os sem curiosidade.

Com uma porção de filé cortadinho.

Esse fora o desjejum de W. G. no dia da eleição. Enquanto a mulher preparava a comida, Jess entregou a nota de Daugherty para Nan, que leu e guardou-a na bolsa. Certamente ela era bonitinha, Jess concluiu, mas para um Presidente que podia escolher Mary Miles Minter òu Gloria Swanson, ou, por que não? — Mary Pickford, embora esta estivesse recém-casada, Nan era um pouco puxada para o comum e o prosaico. Como se para enfatizar esse fato, atrás da mesa deles havia pilhas da revista Photoplay trazendo o casamento e a vida doméstica de Mary Pickford.

— Imagino que você vá continuar em Chicago — Jess jogou verde, nada sutilmente.

Nan assentiu, uma expressão triste no rosto.

— Minha irmã está disposta a adotar Elizabeth Ann, se... — Nan suspirou.

— Tenho certeza de que vão ajeitar tudo direitinho, porque "Meu Deus, Como Entra Dinheiro!"

Cantarolou uma frase da canção popular e dedicou-se à panqueca. Nan pegou uma torrada.

Que aconteceu com Carrie Phillips? — perguntou, tentando inutilmente assumir um tom casual.

Bom, ela e Jim partiram para o Japão no verão, para procurar novidades de seda para a loja, e ainda estão viajando, segundo as últimas notícias.

Dizia-se que Albert Lasker, por ordem de Will Hays, dera aos Phillips cinqüenta mil dólares para que ficassem sumidos até depois da eleição. Jess suspeitava que a quantia provavelmente fora menor. Carrie adorava viajar, ao passo que Jim efa um homem importante demais para envolver-se em algo tão vulgar quanto um suborno.

— Veja isto. — Nan extraiu do bolso uma grande fotografia de W. G. — Vou pedir a ele para autografá-la para mim.

Isto mesmo — disse Jess.

Afinal, isso agora era da alçada de Daugherty, para não mencionar o Serviço Secreto. Ele já fizera seu trabalho de pombo-correio.

— Imagino que eles vão diretamente para Washington — fez Nan, melancólica.

— Não. Para o Texas. Os McLean vão com eles, em seu vagão particular, e dois ou três senadores, e o Dr. Saywer, que vai ser clí­nico geral agora, para poder ir para Washington cuidar do rim da Duquesa.

O Dr. Sawyer, clínico geral?

Nan riu, e a idéia era engraçada: o médico local era um homen­zinho insignificante que ninguém jamais notara a não ser a Duquesa, que lhe confiara o destino de seu rim remanescente. Ele lhe salvara a vida uma dúzia de vezes.

— Depois planejam ir ao Panamá. Sabe como W. G. gosta de trabalhar.

Eu sei? Ora, até mesmo nos chautauquas, logo que chegáva­mos a uma cidade ele já estava telefonando para a seguinte. "Você não sabe ficar sossegado?", eu perguntava, e ele dizia: "Meu amor­zinho, sou um viajante." Ele vai adorar ser Presidente, você não acha?

— Quem não adoraria? — fez Jess, pensando em quanto ele e Daugherty iam gostar do governo Harding.

Quanto a W. G., porém, Jess não tinha tanta certeza. Ele não ia poder escapar facilmente da Duquesa, por exemplo, e tomar um trem para Nova York para encontrar-se com Nan e com Theda Bara no Biltmore. A viagem de julho pelo elevado de Chicago para ver Nan fora provavelmente o último transporte público em que ele poria os pés. De agora em diante, ele era propriedade nacional, vi­giado pelo Serviço Secreto e observado pela imprensa, que tinha mais e melhores olhos que até mesmo a Duquesa. De súbito Jess sentiu pena de W. G.

Ele vai poder ir aonde quiser com seu vagão particular e seu próprio iate — disse a Nan.

— Mas eu nunca vou poder estar com ele, não é?

Não vai, não, querida. Pelo menos em público.

Will Hays, ainda cnefe do Comitê Nacional Republicano, entrou na cafeteria. Mesmo tão cedo ele parecia um rato limpo e de olhos arregalados procurando queijo.

Bom dia — disse a Jess, reconhecendo instantaneamente o rosto, senão o nome, de uma parte da comitiva presidencial.

— Quequiá? — cumprimentou-o Jess.

Hays sentou-se ao balcão, pediu café e leu vários jornais ao mesmo tempo. Todos diziam que éle estaria no Gabinete. Segundo Daugherty, até mesmo Jess poderia ter um cargo" importante nas altas esferas do governo, mas Jess achava que preferia a liberdade do ano­nimato. Havia muitos negócios a serem feitos durante os próximos quatro anos, e ele nunca gostaria da idéia de freqüentar regularmente um escritório.

 

Através da fumaça as pequenas figuras pareciam fantasmas anões. Blaise piscou para acostumar os olhos ao calor e à névoa, e assim turvou mais ainda a visão. Então encontrou seu anfitrião.

Usando' apenas uma toalha enrolada na cabeça, aquele homem pe­queno e musculoso estava conversando com outro homem pequeno e menos musculoso, sem toalha alguma. Embora Blaise não fosse alto, ele se erguia acima de Douglas Fairbanks e de Charlie Chaplin, que estavam discutindo sua empresa conjunta, a United Artists.

Sr. Sanford. Blaise.

Fairbanks cumprimentou-o com toda a formalidade possível a um homem sem roupa. Com a mão direita apertou a mão de Blaise; com a esquerda cobriu a genitália num gesto de modéstia pro forma, que logo em seguida esqueceu. Blaise e Chaplin cumprimentaram-se gravemente, e Blaise não pôde deixar de observar, mais uma vez, como essas pessoas, tão grandiosas nas fantasias do mundo, eram tão pequenas na vida real. Percebeu também que Chaplin, ao contrário do que todos pensavam, não era judeu.

O senhor está muito bem — disse Blaise.

Como parte dos estúdios do Bulevar Santa Mónica, Fairbanks construíra uma academia de ginástica particular, assim como uma sauna com treinadores e massagistas profissionais sempre a postos. Agora que Fairbanks se estabelecera como um astro atlético com A marca do Zorro, trabalhava o corpo constantemente. Aliás, acima da entrada da academia havia um cartaz, Basílica Línea Abdominalis, lembrando ao astro e aos seus amigos que a cintura era, pelo menos para Fairbanks, o centro não apenas de seu corpo mas de todo o seu mundo. Como. resultado, os quadris de Fairbanks eram facilmente os mais esguios que Blaise já vira num homem com quase quarenta anos.

De repente, quando o duende Chaplin executava uma pequena dança imitando uma adúltera surpreendida pelo marido furioso den­tro do chuveiro quente, reuniu-se a eles o treinador de Fairbanks, alto e deslocado no meio dos pequenos astros, e um belo piloto do exército que fora jogador de futebol americano em West Point. O fato de que o piloto tinha três testículos do mesmo tamanho deli­ciava os astros e de modo algum embaraçava o oficial, cujo corpo parecia uma escultura feita para ser sempre vista despida e em todos os detalhes, a não ser a piada genital. Como resultado do calor e da companhia excêntrica, a suscetibilidade de Blaise para com o seu próprio sexo foi abruptamente desligada. Além disso, o antiafrodisíaco definitivo, Fairbanks, queria falar de política com o editor do Washington Tribune.

— Convidaram-me para me juntar ao grupo de Al Jolson para apoiar Harding na campanha. Mas sempre fui homem de T. R., e não poderia fazer isso, mesmo que Harding tenha sido a escolha final do Partido Republicano. Talvez devesse ter aceito. Mary também sentiu-se tentada. Mas acontece que estávamos realmente torcendo por Mac, e ele não foi o indicado. Então deixamos a coisa acontecer sem nós.

Melhor assim, eu diria — fez Blaise.

Ele não tinha votado, porque como morador do distrito de Columbia não tinha esse direito. Mas agora, que estava estabelecido na Laurel House, no lado virginiense do Potomac, sem dúvida regis- trar-se-ia, como Frederika fizera com inesperado entusiasmo ao ver-se finalmente uma Mulher Emancipada. E depois esquecera de votar.

Sei que as pessoas são contra os atores de cinema falarem de política — disse Fairbanks. — Mas por que não podemos falar? Também somos cidadãos. Pagamos bastante imposto.

É muito simples, Dougie. — A voz de Chaplin era curiosamente aguda, e muito inglesa. — Nos filmes nós não falamos, e eles nos amam. Mas se começarmos a tagarelar em público, podem passar a nos odiar.

Você mesmo nunca pára de falar — observou Fairbanks em tom pensativo.

Só em particular, com você. Com aqueles que amo. De qual­quer maneira, falo apenas para instruir e distrair meus amigos. Mas para o mundo, Carlitos é eternamente silencioso.

Com isso ele saiu da sauna com seu famoso passinho, e mesmo sem os enormes sapatos o efeito era estranhamente cômico.

Depois da sauna seca, do mergulho frio e das massagens, eles foram embrulhados em toalhas e acomodados em espreguiçadeiras de madeira, enquanto um garçom servia sanduíches de tomate e Château d'Yquem, que Blaise odiava e o anfitrião, abstêmio nato, não bebeu. Blaise contentou-se com água tônica.

Fairbanks discutia futebol com o oficial do exército e Chaplin discutia Caroline com Blaise.

— Ele está para trabalhar com um velho amigo meu, William Desmond Taylor, um cavalheiro de verdade, daquilo que se costu­mava chamar de "velha escola". Tão diferente da nova escola! Eu próprio sou autodidata.

Em imitação a um coelho, Chaplin mordiscou um canto de um sanduíche de tomate.

— Como eu — disse Blaise. — Larguei Yale...

Para nós, da nova escola de cavalheiros, Yale é apenas outra porta a ser arrombada. Naturalmente venho das ruas de Londres, pobre, porém nunca, jamais, orgulhoso. Agora, o Taylor é um verda­deiro cavalheiro. Irlandês, eu acho. Protestante, é claro. Alistou-se na guerra, com uns 41 anos, ao passo que Doug e eu, jovens e feitos de carne de canhão, fomos dispensados se vendemos Bônus Liberty.

Vocês financiaram a guerra.

— O negócio é o seguinte. — Chaplin encarou Blaise de repen­te, e este achou altamente desconcertante ser encarado por um rosto que ele próprio contemplara durante tantas horas nos últimos sete anos. Sem o bigodinho de escova de dentes, Chaplin nem mesmo se parecia com Carlitos; no entanto havia algo em seus olhos que pren­dia a atenção de Blaise de um modo semelhante ao dos olhos do rosto da tela. O homenzinho era todo força e energia, e inteira frieza. — O coitado do Taylor meteu-se numa posição horrível, com duas estrelas e uma dama, ou pelo menos é assim que esta última gosta de se apresentar. Pergunto-me se a linda Emma, a sua Caroline, sabe onde está sç metendo.

— Eu tinha a impressão de que ele simplesmente ia dirigi-la em A rainha Mary da Escócia.

É um dos melhores diretores que temos, o que não quer dizer coisa alguma, pois qualquer pessoa pode dirigir e quase todo mundo o faz. Mas ele é melhor que a maioria.

— Melhor que Timothy X. Farrell? — perguntou Blaise.

Afinal, se Chaplin sabia tanto, Blaise não via razão para escon­der o que ele próprio sabia, e que obviamente era menos do que qualquer dos contemporâneos de Caroline em Hollywood sabia.

— Diferente. Gosto de Farrell. Mas ele vai ficar encrencado se insistir em fazer filmes políticos. Este país é dedicado demais à li­berdade para permitir liberdade de expressão. — O sorriso de coelho de Chaplin foi súbito e inteiramente encantador. — Estou brincando, é claro.

É claro.

Fairbanks agora estava plantando bananeira, a toalha caída no chão.

Doug é muito vaidoso, sabe? Todos esses músculos... Ouviu falar em Mary Miles Minter? Minha favorita, depois de Pola Negri.

Blaise assentiu.

Dizem que é a nova Mary Pickford — comentou.

— Foi o que decretou o grande peleteiro Zukor. Mas o nariz dela é grande demais para a nossa tela, e o talento é pequeno demais. Pior ainda, ela tem uma mãe, a dama a quem me referi. A mãe já foi uma atriz chamada Charlotte qualquer coisa. Colocou Mary ainda criança no palco, e Mary, que ainda tem apenas 19 anos e é glorio­samente casadoura, no devido tempo chegou até aqui. Guiada por Charlotte ela alcançou muito depressa o estrelato e um enorme salário, do qual trinta por cento vão para a mãe.

Blaise perguntou-se por que o outro estava lhe contando aquilo tudo; e por que Chaplin se preocupava.

Trinta por cento é muito.

É muito, mesmo. Agora, quando a pequena Mary Duplo M. tinha uns 15 anos, e já era uma estrela, ela teve um caso com um amigo meu, um diretor, de quem ficou grávida. Charlotte avisou ao diretor que se ele tornasse a ver a garota ela o mandaria prender por sedução de uma menor, que era também uma propriedade valiosa do cinema. Então a Triplo M fez um aborto. Agora Mary Miles Minter está apaixonada por meu amigo Taylor, assim como a mãe, Charlotte. Então você está vendo o que Emma Traxler, nascida na Alsácia-Lorena dilacerada pela guerra, de família nobre, porém altaneira...

Pensei que tinha sido em Unterwalden...

— Não importa. Ela usa, o tempo todo, uma coroa invisível, diante da qual até o jacobino mais vil tira seu barrete frígio. Embora os Três Emes estejam no momento trancados em seu quarto num palácio no Boulevar New Hampshire, mais ou menos como se faz com uma gata no cio, a garota de vez em quando foge para ver Taylor. Enquanto isso, Charlotte, em cio constante e abrasador, joga jóias pela janela dele, emitindo gemidos lancinantes de luxúria insatisfeita.

Quem é a segunda estrela? — perguntou Blaise, consciente do perigo dessa saga narrada em tom jocoso.

Mabel Normand. — Com ar de leve desagrado, Chaplin obser­vou Fairbanks dar um salto mortal. — Ele um dia ainda vai quebrar esse pescoço grosso, ou ter um ataque de coração, ou as duas coisas. — Voltou-se novamente para Blaise. — Nós todos amamos Mabel. Eu mais que todos. Já representei com ela, já a dirigi e ela já me diri­giu. É esplêndida na comédia. Em tudo. Mas está passando por mo­mentos difíceis. Goldwyn acaba de mandá-la embora e ela voltou para Mack Sennett, um retrocesso neste nosso negócio. Está também apai­xonada, ou pensa que está, por William Desmond Taylor. Como ele dirige todo esse trânsito naquele seu bangalô eu não consigo imagi­nar. Agora Emma Traxler, a princesa da Transilvânia, junta-se ao... à história.

Minha irmã é uma excelente diretora de trânsito — disse Blaise, sem faltar à verdade.

Eu detestaria que acontecesse alguma coisa...

A Taylor?

— Não. Os homens sabem cuidar de si mesmos. A Mabel Normand. Que é que o traz aqui, Sr. Sanford? — A transição foi ra­pidíssima.

Eu tinha ouvido dizer que meu velho amigo Hearst estava tentando comprar o Los Angeles Herald. De modo que pensei em fazer uma oferta, para animar as coisas.

Eu vivo dizendo ao Doug que devíamos usar todo esse dinheiro que ganhamos comprando jornais. Todos eles. Então não ha­veria mais esses escândalos sórdidos a nosso respeito. Nenhum deles, posso garantir, Sr. Sanford, verdadeiro. Todo artista, seja homem ou mulher, vai para o leito nupcial virgem, e é por causa dessa castida­de prolongada que nosso desempenho...

Com um estrondo, Fairbanks caiu no chão.

— Que beleza! — Chaplin bateu palmas. — Coitado do Doug! Você se machucou? — perguntou em voz alta. — Alguma coisa pe­quena, porém essencial à United Artists, se quebrou?

Um breve olhar a Blaise e este ruborizou-se de vergonha: Chaplin lera seus pensamentos na sauna.

Meu filho! — Chaplin era agora um velho cigano, girando em volta de Fairbanks ainda caído. — É o sangue cigano! Eu sei. Eu sei. O tocai. Nas estepes. A balalaica. E o férvido sangue cigano como mercúrio em suas veias. — Chaplin estalou os dedos como cas­tanholas e dançou por cima de Fairbanks. — Não se pode enganar uma extremosa mãe cigana. Sei por quem você está esperando, pen­durado num mero gancho de tenda. É a gloriosa jovem inglesa que deixou seus sentidos enlouquecidos. Oh, meu pobre filho! Nascido para o clero! Um sodomita passivo no Monte Athos por, ah, tanto tempo! E agora Deus o perdeu para um par de picantes olhos azuis!

A velha cigana tornou-se de repente uma orgulhosa jovem inglesa.

Não posso, sabe? Deixar meu pai, o duque de Quimsberry, agora a bordo de seu magnífico iate ancorado pertinho deste acam­pamento cigano banhado pelo luar nos Bosques de Viena. — Chaplin "tornou-se um dançarino cossaco. Saltou no ar. — Dance," seu tolo, dance! — rugiu. — Meu sangue cigano está em chamas. Você me enlouquece. Então, se é foder que você quer, é o que vai ganhar, Lady Sybilla. — Então, como Lady Sybilla, gritou — Pensei que você fosse um cavalheiro! É verdade que em suas veias corre sangue cigano, no entanto. . . Corre nas minhas também, agora. Ah, que isto possa nunca terminar! Mas atenção! Que é isso vindo em nossa di­reção através dos Bosques de Viena? Ah meu Deus! É o iate do meu pai, o duque!

Com isso, Chaplin transformou-se, aos olhos de todos, num gran­de iate movido a vapor, abrindo caminho lentamente através dos Bosques de Viena e quase atingindo uma árvore em seu imponente prògresso.

— Charlie encontrou sua voz — foi o comentário de Fairbanks.

Embora Caroline insistisse para que Blaise ficasse com ela, ele se hospedara no novíssimo Ambassador Hotel, a meio caminho entre Hollywood e Los Angeles, onde ficava o Herald. O hotel em si era muito grande e moderno, e lembrava um pouco um acampamento militar, com guardas particulares e policiais em toda parte. No momento, Los Angeles passava pelo que a imprensa denominava uma onda de crimes, em parte obra de imigrantes que tinham vindo para esse novo Eldorado apenas para descobrir que o melhor ouro já tinha sido empenhado, e em parte obra de criminosos locais em guerra uns com os outros por causa dos vários territórios de distri­buição de drogas, nenhum deles particularmente lucrativo, já que uma carta — um grama — de cocaína custava apenas dois dólares. A morfina era cara, porém menos popular. De qualquer maneira, quando se tratava de um crime sério a polícia mantinha-se alheia; ou era subornada, ou intimidada. Mas os imigrantes eram tratados com brutalidade.

O Coconut Grove do Ambassador parecia mesmo com um coqueiral. Ali, no final da noite, em meio aos coqueiros artificiais, cantores populares exibiam-se com uma grande orquestra, cantando, vezes sem conta, Há males que vêm para o bem, enquanto os astros e estrelas que não tinham que trabalhar no dia seguinte dançavam. Caroline avisara solenemente a Blaise que a noite de sábado no Grove era o lugar onde ele e Frederika precisavam ser vistos se qui­sessem ser aceitos como eternamente jovens e grã-finos.

Frederika instalou-se confortavelmente ao lado de um coqueiro, enquanto Blaise bebia gim com leite de coco de uma casca de coco, tudo sob o olhar gélido de policiais à paisana e guardas de seguran­ça do hotel, uniformizados. O Grove estava cheio pela metade com pessoas que jantavam; a orquestra tocava música suave e alguns ca­sais dançavam.

Compreendo Caroline — disse Frederika, olhando em volta com a fascinação de uma turista. — Só queria ter visto mais filmes, para poder saber quem é todo mundo.

Tudo isto é um pouco como. . . como o Mardi Gras,[2] não é? — comentou Blaise.

Ele não estava acostumado com sociedades tropicais, ou semi- tropicais. Um dia passado com o proprietário do Herald tinha sido como o que ele imaginara que era fazer negócios no Taiti.

É o que torna este lugar tão... diferente, Caroline mostrou- me os cenários de A rainha Mary da Escócia. Tudo com ar muito autêntico, a não ser pelos tomates numa cozinha. Lembrei a ela que naquela época os europeus do norte não comiam tomates. Ela deu muitas desculpas.

Blaise ficou intrigado, não com o anacronismo, mas com a cozinha.

Que é que uma rainha estaria fazendo numa cozinha?

Ora, querido, afinal trata-se da Escócia. Com certeza ela cozinha haggis para Bothwell.

De braços dados com seu mais novo diretor e amante, William Desmond Taylor, Caroline fez uma entrada lenta e majestosa. À por­ta, permitiu que os fotógrafos tirassem fotos; eles depois se retiraram.

Você nunca esteve tão radiante — disse Blaise, alfinetando Caroline.

— Sei disso — retrucou ela, dando um beijo na cunhada. — Na realidade, é uma luz interior. Ou a pessoa tem "aquilo", como diria Elinor Glyn, ou não tem.

Blaise achou Taylor encantador — o retrato do cavalheiro inglês que aparecia nos palcos da Broadway. Era alto e magro, e tinha quase a idade de Caroline. Blaise perguntou-se quem ele seria na realidade. Caroline contara-lhe tanta coisa a respeito dos nomes reais e das verdadeiras origens dos artistas que ele suspeitava de todos, particularmente de Emma Traxler, a trágica opala de iogo da Alsácia-Lorena, cuja mãe tinha sido afogada pelos boches em seu próprio castelo. O espírito de Hearst agora informava os estúdios de Hol­lywood, e o resultado ultrapassava qualquer coisa que o velho jornalista amarelo tivesse sonhado.

Quando começa a filmagem? — perguntou Blaise, que gostava de se interessar pelos assuntos de Hollywood.

No dia dos bobos, primeiro de abril — respondeu Taylor, sorrindo para Caroline. — Finalmente conseguimos um bom roteiro. De Edward Knoblock.

Blaise assentiu; aparentemente, devia saber de quem se tratava.

— Ele escreveu Kismet, aquela peça que ficou tanto tempo em cartaz — esclareceu Caroline. — É de Nova York, mas mora em Londres. Foi um dos escritores que o Sr. Lasky importou, junto com Maeterlinck, Maugham, Elinor Glyn e todos os outros. Está moran­do com William e trabalhando no roteiro.

Blaise perguntou-se: seria possível que essa fosse mesmo sua irmã-Caroline? A amiga de Henry Adams e Henry James, agora elo­giando o autor de Kismet? Ou, talvez, em termos mais práticos, se tratasse simplesmente do Doppelgänger de Caroline, Emma, uma atriz envelhecida tentando sobreviver num mundo veloz, furioso e nada sentimental? Frederika tinha certeza de que o rosto de Caroline fora esticado por uma cirurgia. Blaise achava que não; por outro lado, ela parecia perturbadoramente perfeita, num estilo que não era intei­ramente humano.

Taylor tirou Frederika para dançar, e os dois irmãos puueram conversar.

O Herald... — Caroline começou.

Caro demais...

— Ouvi dizer que Hearst já comprou. . .

Através de Barham? Provavelmente. Cheguei tarde demais...

Culpa minha. Eu devia ter agido no ano passado, mas...

Conversavam em sua linguagem particular, muito rápida; nenhuma elipse precisava de preenchimento. Ele perguntou:

— Que aconteceu com Tim?

Nada. Ainda está morando no Garden Court. Como você está obviamente curioso, trancamos a porta entre nossos apartamentos.

Entendo.

Entende o quê? — Caroline observou Taylor e Frederika valsando decorosamente no centro do salão. — De qualquer maneira, foi tudo muito amigável. Ainda trabalhamos juntos. Ele encontrou alguém mais jovem.

— E você encontrou alguém mais velho. Ele parece boa pessoa.

Blaise ainda pensava na saga de Taylor, as duas estrelas e a mãe.

Deve ser muito popular.

— Demais — concordou Caroline, sincera como sempre. — Ele está tentando fazer Mabel Normand parar de cheirar cocaína, e impedir Mary Miles Minter de suicidar-se por amor.

A ele?

— Parece que sim.

Onde é que você entra?

Uma mulher de certa idade, carinhosa, generosa... sábia, também, como só uma mulher como ela pode ser. Uma mulher que sabe o que é um coração partido...

Isso é você ou Emma Traxler?

Caroline riu.

Um pouco de cada. Não se preocupe. Consigo manter as duas separadas. De qualquer maneira, depois de A rainha Mary Emma vai afastar-se da tela prateada. ..

E voltar para a Alsácia-Lorena?

Não. Para Santa Mónica. Quero continuar produzindo filmes.

Com William Desmond Taylor?

O diretor e Frederika voltaram para a mesa. Frederika estava deliciada.

— Gloria Swanson está ali, com alguém que parece o genuíno tipo do amante latino.

Todos vêm aqui — disse Caroline, olhos postos em. Taylor enquanto ele tirava do bolso um envelope e derramava o conteúdo num copo d'água.

— Cocaína? — perguntou Blaise em tom casual.

Caroline encarou-o com raiva. Taylor riu.

Não — respondeu. — É para a minha úlcera. Ossos do ofício. Depois que as filmagens terminarem, quero ir para o mais longe possível.

Verão na Europa — acrescentou Caroline.

— Leve-o a Saint-Cloud — sugeriu Frederika.

— Preciso ficar aqui — respondeu Caroline, bebendo chá de verdade numa xícara de verdade.

— Eddy, isto é, Edward Knoblock, alugou-me sua casa em Londres, e vai ficar com a minha aqui na cidade — disse Taylor. — Já nos conhecíamos — acrescentou, voltando-se para Blaise. — Foi há muitos anos. Você era bem jovem. Eu também, é claro. Num antiquário na Quinta Avenida, número 246: The English Antique Shop, lembra-se? Eu era gerente. Caroline também foi lá. Mas não eom você.

— Pensei que você fosse ator.

Eu era. Mas os atores precisam comer. Você estava com uma francesa...

Anne de Bieville — murmurou Caroline.

Você tem ótima memória — disse Blaise, que tinha péssima memória e não se lembrava de Taylor.

Achava também perturbador que Taylor se lembrasse dele de­pois de tantos anos. Por outro lado, se uma pessoa tivesse vivido vidas diferentes, provavelmente era melhor confessá-las antes de ser desmascarada. Taylor parecia autêntico, apesar de um grande anel de diamante, algo que geralmente não se via na mão de um cavalheiro. Por outro lado, estavam em Hollywood, como Taylor tornou a de­monstrar ao exibir, a pedido de Frederika, uma cigarreira de platina contendo cigarros escuros com ponta dourada.

A orquestra agora tocava Blue moon, uma nova canção que Blaise gostava de cantar quando estava absolutamente sozinho. Ele estava começando a entender como alguém poderia sucumbir diante do encanto taitiano da Califórnia. O único mistério era como con­seguir trabalhar naquele ambiente tão langoroso; no entanto, as pes­soas em Hollywood nunca descansavam, se pudessem evitar. Um artista podia fazer uma dezena de filmes de longa-metragem num ano e ainda ter tempo para divorciar-se e casar-se novamente. Natu­ralmente, todos eram muito jovens, exceto Caroline e Taylor.

Enquanto Taylor apontava as celebridades para Frederika, Blaise foi direto ao assunto:

— Você me venderia sua parte no jornal?

Caroline encarou-o por um longo momento, procurando, talvez, o lado bom da proposta.

Por que agora?

— Por que não agora? Você perdeu todo o interesse nele, em Washington, na política. . .

Perdi? — Os olhos famosos, até mesmo para o meio-irmão, arregalaram-se. Eram luminosos e estavam algo avermelhados. — Será que adormeci aqui durante cem anos, agora é hora de acordar e não sobrou ninguém?

— Bem, eu estou aqui. Pode parecer cem anos, mas...

— Não. Passou muito depressa. — De repente Caroline ficou séria. — Se quero vender? Não sei. Se quero ficar aqui? Depende.

Dos próximos cem anos?

Caroline assentiu.

Falou-se em casamento — disse, mais baixo que a música.

Então você vai ter que ficar. Não consigo vê-lo... hum... feliz em Washington.

— Falou-se, só isso. — Caroline mostrava-se vaga. — Não sei. Vamos ver o que acontece com o Rainha Mary. Aquelas golas elizabetanas, cheias de babados, são uma bênção para os pescoços enve­lhecidos.

Um amante latino moreno parou à mesa; era o ator espanhol Tony Moreno. Olhos e dentes reluziram durante as apresentações; então Moreno dirigiu-se a Taylor:

— Posso falar com você um instante?

Taylor pediu licença, e os dois saíram da boate.

— Como todos aqui são bonitos! — exclamou Frederika, arras­tando as sílabas.

É porque não permitimos senadores nos lugares públicos — respondeu Caroline.

Ela agora tinha os olhos fixos no saguão, onde, distante dos dois guardas de segurança uniformizados, Moreno e Taylor conver­savam absortos. Blaise estava começando a fazer uma idéia do que se passava, e ficava intrigado com todas as possibilidades de desastre que Caroline tão compulsivamente procurava para si. De repente os dois homens não estavam mais visíveis no saguão.

Nesse momento, uma mulher alta, elegante e maquilada com exagero parou à mesa, acompanhada por um rapaz com a metade da sua idade.

— Emma querida! — exclamou. O sotaque era sulino.

— Charlotte Shelby. — Caroline apresentou a dama a Blaise e Frederika. O acompanhante foi ignorado. Blaise simpatizava com o modo como as cerimônias tinham sido reduzidas ao essencial.

Sr. e Sra. Sanford, vocês precisam vir nos visitar na Casa de Margarita, nossa mansão particular na Avenida New Hampshire, isto é, quando não estamos em casa, na plantação de mamãe em Shrevenport, na Louisiana.

Eu adoraria, naturalmente — disse Frederika, exibindo sua simpatia sulina do distrito de Columbia.

— Cumprimente William e diga que a pequena Mary está melhor.

Como o iate de Chaplin nos Bosques de Viena, a Sra. Shelby afastou-se de velas enfunadas, rebocando o acompanhante.

Que era isso? — quis saber Frederika.

Uma ex-atriz chamada Charlotte Shelby — explicou Caroline.

Mais conhecida como a mãe de Mary Miles Minter — concluiu Blaise, em tom complacente.

— Como sabe disso? — perguntou Caroline, espantada.

— Sempre leio a revista Photoplay, sabe, no barbeiro...

Você sabe das coisas — disse Caroline em tom neutro.

Taylor então voltou, sem Moreno. Caroline cocKichou-lhe algo, e ele acenou para Charlotte Shelby do outro lado da pista de danças; ela inclinou a cabeça. Blaise percebeu que, apesar da maquilagem pesada, os lábios dela eram finos, e a boca, presa num sorriso, era triste. Estaria com ciúmes de Caroline? Ou aliviada por Taylor não estar mais apaixonado pela famosa criança?

... cartas — disse Taylor, e levou Caroline para a pista de danças.

Bem... — fez Frederika.

Bem... — ecoou Blaise.

Acha que o amante latino estava dando drogas ao Sr. Taylor?

Frederika! Você foi para Hollywood, como gostam de dizer

aqui.

Mas Blaise suspeitava que aquilo podia ser parte de uma transação mais complexa. Começava também a perguritar-se se a própria Caroline poderia estar envolvida com drogas. Obviamente ela não era mais a pessoa que ele conhecera; por outro lado, porém, eles nunca tinham se conhecido muito bem. A meia consangüinidade talvez fosse, em si mesma, o mesmo que nenhuma. "Cartas", Taylor dissera. Cartas de quem? Blaise ficou curioso.

Ela vai acabar voltando para casa — disse Frederika, parecendo melancólica. — Isto não pode durar para ela, para ninguém. Mas entendo o encanto. Imagine um lugar onde ninguém se importa com quem é o novo procurador-geral ou se o Sr. Harding é fantoche dele.

— Acho que o procurador-geral seria o único político em quem todos eles estariam interessados.

Por entre os coqueiros de papier-mâché havia guardas — e criminosos também. Até mesmo o amante latino, Moreno, parecia capaz de rasgar a garganta de alguém simplesmente por prazer. A falsa selva artificial era uma selva bem real, e Caroline podia ficar com toda ela, no que dizia respeito a Blaise. Um macaco de tamanho real, na base de um coqueiro defronte a eles, começou de repente a piscar olhos de luz elétrica vermelha.

 

No terreno da Argyle, agora deserto no final do dia, pedaços do castelo de Edinburgo tinham sido recriados, e Caroline e Taylor passeavam pelos aposentos.

Bem, pelo menos agora sabemos o que o Sr. Griffith deve ter sentido quando construiu Babilônia — disse Caroline.

— É mesmo. E sei também o que o banqueiro dele deve ter sentido — retrucou Taylor, franzindo o cenho.

Embora a Traxler Prodüctions financiasse os custos, era Taylor quem mais se preocupava com as despesas. Até então, a produção estava quase cem mil dólares acima do orçamento calculado, e as filmagens ainda não tinham começado.

Tim fora sardônico. "Você poderia ter alugado Edinburgo inteira com esse dinheiro", dissera, e depois desaparecera no Noroeste, para fazer o tipo de filme que iria enlouquecer a filha e o genro de Caroline. Graças em parte aos esforços deles, o filme, com filmagens de Woodrow Wilson intercaladas, tinha sido proibido em quase todas as cidades. Felizmente como o novo procurador-geral, Harry M. Daugherty, não era candidato à Presidência, Tim poderia continuar à solta por mais algum tempo. Até então, houvera apenas uma única cena a respeito de Taylor, cena essa que Caroline tinha "Emma Traxlerado" com uma nobreza digna de uma heroína de Elinor Glyn. Tim deixara-a magoada por não ter ficado enciumado, e sim espantado com a escolha dela.

Eu passo pelo portão — disse Caroline, imaginando-se a cavalo, montada de lado, uma pluma no chapéu, o apaixonado Bothwell a seu lado.

As tentativas de conseguir Barthelmess para Bothwell tinham fracassado; e um ator mais velho foi contratado para fazer Caroline parecer jovem e indefesa. Quanto à rival de Mary, a rainha Elizabeth, eles quase tinham conseguido Sarah Bernhardt, cuja versão teatral de Rainha Elizabeth vinha enchendo os teatros franceses desde a aurora dos tempos. Mas no último momento a divina Sarah decidira não arriscar sua fama legendária pela segunda vez num perigoso filme realista. Então tinham contratado uma distinta atriz de setenta anos, uma garantia de fazer Caroline parecer adolescente. La Glyn tinha oferecido seriamente os seus serviços no interesse da Autenticidade, já que também descendia da rainha Tudor, mas Caroline assegurara- lhe que ela era bonita demais para servir de realce à coitadinha de Emma Traxler; com certa rudeza, La Glyn concordara: "Quanto a isso, madame Traxler, a senhora está certíssima." Para surpresa de todos, Elinor Glyn agora não só escrevia, mas também produzia seus próprios filmes. Tornara-se um sucesso em Hollywood, elogiada pelo Kine Weekly.

—- Primeiro filmaremos todos os exteriores — disse Taylor.

Ele tomou-a pelo braço e ela ficou satisfeita, como sempre ficava quando ele tomava a iniciativa física. Até então, nada acontecera entre os dois, e pela primeira vez na vida de Caroline ela sentia um pânico repentino e cego à idéia da velhice. E se finalmente houvesse alguém a quem ela desejasse — como agora — e que não a dese­jasse? Alguém que preferisse mulheres mais jovens como Mary Minter e Mabel Normand? Que faria ela? A desanimadora resposta era: nada.

Caroline apoiou-se muito de leve contra Taylor enquanto cami­nhavam pelas ameias onde Mary esperaria em vão por seu amante que, sem que ela soubesse, estava morto. Lágrimas espontâneas de pena de si mesma encheram-lhe os olhos. Mary era um papel que ela teria que esforçar-se muito para não representar.

Juntos estacaram perto do parapeito e contemplaram o muro alto que rodeava o terreno. O trabalho daquele dia terminara, mas em certos cenários os técnicos estavam fazendo alterações de última hora — hora extra!

— Acha mesmo que Mary devia encontrar Elizabeth no parque e não na prisão?

Isto era algo em que os dois não concordavam.

— A essa altura teremos que sair para o ar livre. Temos seis interiores seguidos. A história está ficando um pouco claustrofóbica.

Mas gosto disso. É como Mary se sentiria. Quero dizer, afinal ela é mesmo uma prisioneira.

O perfil de Taylor era quase perfeito. Durante anos ele sempre pudera escolher seus papéis, mas depois do sucesso em Capitão Alvarez, optara por dirigir.

Edward diz que sempre acontece 'no parque.

Caroline não apreciava muito Edward Knoblock, o gorducho inglês de Nova York que continuava hospedado no pequeno bangalô de Taylor, estorvando bastante, no ponto de vista de Caroline.

Isto é porque Edward roubou o enredo de Schiller e não lhe deu o crédito.

— Ora, ora — fez Taylor, apaziguador. — Se não fosse por esse tipo de roubo, aliás de muito bom gosto, todos nós estaríamos desempregados. Por que seu irmão não ficou mais tempo?

Ele pensa que o governo vai parar se ele não estiver lá para guiá-lo. Eu também era assim.

Não sente falta?

Caroline automaticamente contou até três em pensamento, como fazia para assegurar o efeito de um close; depois falou.

— De vez em quando. Aqui é mais divertido, é claro. Mas um dia não vou mais ser capaz disso.

Um dia nenhum de nós vai ser capaz de fazer alguma coisa. Por que antecipar?

Nesse momento juntou-se a ele Charles Eyton, chefe de produção da Famous Players-Lasky.

Apagando as luzes? — perguntou Taylor, sorrindo.

Não brinque! É exatamente o que tenho que fazer. Tanto desperdício!... — Eyton era um homem muito prático e metódico, que se envolvia com tudo e todos no estúdio, inclusive produtoras de fora como a Traxler. — Aposto que estão loucos para começar — acrescentou, franzindo o cenho ao olhar para o portão do castelo de Edinburgo.

Taylor antecipou-se a ele.

Nós podemos vender-lhe o cenário, se você não usá-lo até um ano depois do nosso filme.

Eyton assentiu seriamente.

Ivanhoé vem aí. Mesmo tipo de castelo, acho. Quero dizer, são todos iguais. — Voltou-se para Taylor. — Está tudo resolvido. Mas diga a ela para deixar de ser criança.

Isto é uma coisa que só a natureza poderá fazer, Charlie. Ela ainda é criança.

Taylor levou Caroline de carro à casa dele na Rua Alvarado. O bangalô fazia parte de um conjunto de construções que crescera, pelo que Caroline sabia, junto com Hollywood: meia dúzia de ban­galôs construídos em três lados de um pátio contendo palmeiras e um chafariz. O quarto lado era a calçada e a rua. O proprietário ocupava o primeiro bangalô e funcionava como gerente e guarda armado. Um ator famoso e a esposa, amigos de Taylor, moravam defronte a ele. Caroline gostava da vida de cidade pequena que se vivia no conjunto, apesar da falta de privacidade nas idas e vindas sob as palmeiras. Por outro lado, havia privacidade se se entrasse no bangalô de Taylor pela Avenida Maryland, nos fundos. Caroline viera por ali várias vezes, preparada para o amor; em vez disso, ganhara um jantar à luz de velas, servido por um empregado com cara de mau chamado Eddie Sands; depois jogaram gamão.

Quando Caroline retribuiu, Héloise servindo um jantar à luz de velas com a alegria de Santa Teresa banhando um leproso, a noite terminara novamente em gamão. Caroline passara a odiar Mary Miles Minter, que, do ponto de vista jurídico, ainda era uma criança.

O problema, na verdade, é só esse — disse Taylor.

Ele preparou um martíni para Caroline e ela bebeu rapidamente. Se estava destinada a frustrar-se, podia muito bem anestesiar-se.

— Ela se apaixona loucamente pelas pessoas... — continuou

ele.

Por você?

Entre outros. Então escreve cartas indiscretas e o coitado do Charlie Eyton tem que comprá-las, para impedir uma chantagem ou coisa pior.

Charlotte?

Taylor assentiu.

— A última fornada de cartas era para um diretor, pai do filho dela.

— Mas Charlotte soube de tudo, na época.

A essa altura, Caroline parecia conhecer intimamente a apaixo­nada Charlotte. Taylor confessara um flerte com a mãe, assim como com a filha. De modo que, quando ficara óbvio que Taylor seria o segundo diretor — e grande amor — na vida de Mary Minter, Charlotte comportara-se como uma Medéia sulina. Em várias ocasiões Mary era trancada no quarto e a mãe de Charlotte ajudava-a a fugir; ela aparecia no número 404 da Rua Alvarado e Taylor então... fazia o quê? CaroliRe não sabia. E ele negava ter tido um caso com a garota. Por outro lado, também negava seu longo romance com Mabel Normand. Pelo que ele dizia, era uma espécie de médico — como Rasputin, Caroline comentara em tom doce. Mas de tanto curar os outros ele adquirira uma úlcera.

Estou louco para ir para a Europa. Faço qualquer coisa para sair daqui — disSe ele, passeando o olhar pela agradável sala de estar.

Knoblock tinha ido jantar fora, e os dois jantariam sozinhos — e, naturalmente, cedo. Felizmente Eddie era um bom cozinheiro, o que melhorava um pouquinho as coisas.

Talvez eu abra Saint-Cloud, ou você odeia a França?

Não, não. — Ele sorriu para ela através da nuvem de fumaça perfumada de um cigarro de ponta dourada. — Eu adoraria, e se você estivesse lá...

Caroline esperou, ansiosa, a declaração. Mas Taylor apenas suspirou.

O problema das duas é que a carreira delas terminou e elas não sabem disso.

— Coitadas!

Caroline odiava "as duas" com uma pureza de que jamais suspeitava ser capaz. Uma era estrela mundialmente famosa de 19 anos e um fracasso; a outra, estrela mundialmente famosa de 26 anos, uma ruína viciada em cocaína.

— É claro que Mary não sabe, ou não liga. Ela odeia o cinema, odeia a vida dela...

Odeia a mãe?

Taylor deu de ombros.

— Ela diz que sim. Mas se o'diasse mesmo, poderia morar longe dela.

Uma criança? Uma menor de idade? A Menor Mary Miles Minter?

Caroline imaginou o prazer que teria em arrancar um por um aqueles cachinhos cuidadosamente penteados, feitos especialmente para substituir na tela os de Mary Pickford, os quais, quando final­mente cortados, levaram um país inteiro ao desespero.

Ela tem a avó —, disse Taylor em tom pensativo. — Mas existe o tal contrato que ela assinou, dando trinta por cento a Charlotte...

Caroline sentia-se entediada como jamais se sentira antes. Disse:

que a pequena Mary era apenas uma ovelhinha quase recém-nascida na época do contrato, ele não é válido, pelas leis deste estado. Diga a ela para entrar na justiça.

Ainda é menor de idade. Sabe, ela tentou matar-se com a pistola da mãe.

A atenção de Caroline, mas não a sua solidariedade, foi despertada.

Por que com uma pistola?

Porque Mary achava que estava apaixonada por alguém e Charlotte não deixava que eles se encontrassem.

— Já tinha adivinhado isso — disse Caroline. — Por que Char­lotte tem uma pistola?

— As senhoras do Sul estão acostumadas a proteger-se, e à sua honra, da violação — respondeu Taylor em tom brincalhão.

O tom de Caroline foi ainda mais brincalhão:

No caso de Charlotte Shelby, imagino que um "não" murmurado suavemente faria o mesmo efeito. Ou talvez — continuou, achando divertido — um "sim" entusiasmado fizesse fugir até "o estuprador mais renitente.

— Precisamos arranjar uma comédia para você — disse Taylor.

— Já arranjei — retrucou ela.

Isto ficou provado mais tarde, depois do jantar. Taylor colocou a mão no ombro dela, como se soubesse exatamente até que ponto ela estava pronta, até mesmo ansiosa.

Sim, William? — ela sussurrou.

Os dedos dele queimavam-na através da seda da blusa.

Um centavo o ponto — ele murmurou, e levou-a para a mesa do gamão.

 

Meu Deus, como entra dinheiro! — cantou Jess, desafinando.

Por mais que tentasse, nunca conseguira aprender o resto dessa canção, ou qualquer outra além daquela única linha do refrão, que resumia perfeitamente sua situação. Na sala acanhada do número 1509 da Rua H, Ned McLean dormia a sono solto no sofá. Desmaiara ali muito antes da meia-noite, quando o jogo de pôquer terminara; e Daugherty telefonara para Evalyn para dizer que Ned estava sendo bem cuidado. Agora Daugherty estava dormindo no andar de cima, enquanto uma faxineira negra retirava garrafas e cinzeiros transbor­dantes da sala malcheirosa.

Jess estava sentado diante da escrivaninha de tampa corrediça, fazendo contas. Estava, e sabia disso, muito bem vestido, com um terno marrom-chocolate e um colete lilás. Fora uma desagradável dor no quadrante inferior direito da barriga, ele estava em perfeitas con­dições, tanto a diabetes crônica quanto a asma fora de ação. Ele então deu o primeiro de vários telefonemas, para o seu — deles — corretor Samuel Ungerleider, natural de Columbus, Ohio.

— Quequiá? — anunciou Jess.

Ungerleider, porém, respondeu que a única coisa que havia eram as cifras do mercado na véspera. Sam cuidava dos investimentos dos Harding, de Daugherty, de Jess e de muitos outros conterrâneos. Como Jess estava envolvido numa complicada série de especulações, estava sempre precisando de dinheiro rápido para cobrir as operações que Sam custeava para ele; Sam era tão honesto quanto Jess era escrupuloso em aparecer com o dinheiro dentro do prazo.

— Você vai precisar de uns 11, 12 mil até o meio-dia — Sam anunciou.

Já está na mão. Como vai o Sr. Daugherty?

Muito bem. Ele não joga dados, como você, Jess.

E o Presidente?

— Parece uma viúva...

É coisa da Duquesa. Ela não deixa que ele arrisque.

Podendo ganhar tanto dinheiro...

Sei disso. Vamos continuar ganhando.

O primeiro visitante do dia chegou às sete e meia.

Quequiá? — Jess borrifou o ar entre eles, mas o homem, um sinistro contrabandista de bebidas da Virgínia, pareceu não notar.

Muita gentileza sua, Sr. Smith, receber-me tão cedo.

Qualquer amigo do... daquele cara é meu amigo.

Jess abriu uma gaveta, da qual só ele tinha a chave, e tirou de dentro dela um formulário do Departamento do Tesouro.

Bem, vou fazer do senhor o agente da Virgínia e do distrito de Columbia para a Companhia Geral de Drogas, com o quartel-general em Chicago, e com esse cargo o senhor gostaria de retirar da custódia federal, para fins medicinais, quanto?

Mil caixas de uísque escocês. Quinhentas do melhor gim. Setecentas...

Opa! Opa! Vá mais devagar. Não consigo escrever tão depressa.

Queira desculpar-me, Sr. Smith. Mas a idéia de ter o melhor para vender aos meus clientes significa muito para mim.

— Para eles também — disse Jess. — É de espantar que metade do estado da Virgínia não esteja à morte de tanta bebida ilegal. Devia haver uma lei. ..

O virginiense disse em tom triste:

Ah, a lei existe, mas hoje em dia ninguém se importa com

leis.

Jess assobiou uma frase de Chuvas de abril enquanto assinava o nome de um imaginário funcionário do Tesouro no formulário.

— Pronto. Apresente isto a qualquer depósito interditado pelo governo e eles lhe entregarão a mercadoria diante desta genuína ordem do Departamento do Tesouro.

Fico-lhe deveras grato, Sr. Smith.

— O Alexandria é o depósito mais fácil. Se houver algum problema, ligue para mim em meu escritório no Departamento de Jus­tiça. São 2.500 dólares, por favor. Em dinheiro, como sempre.

O virginiense pagou e retirou-se. Os dois visitantes seguintes precisavam de orientação interna para conseguirem favores do go­verno. Cada um deles pagou dois mil dólares. Então, enquanto o procurador-geral dos Estados Unidos descia a escada, o último visi­tante foi levado à porta. Jess nunca contava a Daugherty sobre seus negócios particulares, e Daugherty nunca perguntara.

Daugherty olhou para Ned McLean e sacudiu a cabeça com tristeza.

Este rapaz devia se controlar, senão vão interná-lo. Devíamos tê-lo mandado para casa ontem.

Bem, esta também é a casa dele, não é? — fez Jess, protegendo seu amigo Ned, que gemeu no sono. — Quer tomar café?

Não. Comeremos qualquer coisa no Departamento.

Vai haver pôquer à noite?

Daugherty resmungou.

— Pergunte à Duquesa — disse. — Eu tenho um dia cheio.

Ele abriu a porta da rua. Lá fora, o carro do procurador-geral estava à espera. O motorista fez uma continência para Daugherty, chamando-o de "general", o título costumeiro do principal agente da lei no país. Daugherty gostava bastante desse título; e do emprego também. Entrou no carro e foi levado para o Departamento de Jus­tiça, que não era longe.

No dia anterior, Jess recebera um recado da Casa Branca dizendo que a primeira dama queria que ele a ajudasse a escolher fazendas; assim, tendo dado instruções à faxineira de rosto severo a respeito do que fazer quando o dono da casa despertasse, Jess saiu para a clara manhã de primavera e contemplou com seu olhar míope os cornisos floridos no jardim da casa oposta e então, num estado de espírito próximo ao total contentamento, venceu a pé a pequena dis­tância até a Casa Branca.

O contraste entre a mansão agora e na época dos Wilson era marcante. Poucas semanas antes, os portões principais eram trancados a cadeado, o público era mantido a distância e apenas a ala oeste funcionava. Agora os portões estavam abertos e turistas entravam e saíam ("Á Casa Branca é deles", proclamara a -Duquesa ao tomar posse.) Os guardas no portão norte fizeram sinal para Jess entrar, mesmo tendo ele seu crachá do FBI na'mão, um presente do solí­cito subdiretor, J. Edgar Hoover, um rapaz que tinha pavor de ser substituído por uma das criaturas de Daugherty. Mas Daugherty seguira a cartilha: obedecia todas as leis e a maioria dos costumes.

De vários modos o governo Harding era o mais capaz e o mais notável do século, pelo menos segundo os redatores de editoriais que não apreciavam a pessoa de Harding. Era verdade que um dos ho­mens mais ricos do país, Andrew Mellon, era secretário do Tesouro, mas sua fortuna assegurava que ele não teria que vender uísque contrabandeado para cobrir as despesas com seus corretores. Além disso, todos sabiam que Mellon criaria um ambiente no qual os me­lhores. elementos do país poderiam prosperar. Embora Harding tivesse desejado aumentar o imposto de renda dos ricos, Mellon o dissuadira; Wall Street e seus jornais aplaudiram o Sr. Mellon. Tam­bém admirado era o secretário de Estado, Charles Evans Hughes, que concorrera contra Wilson em 1916. Igualmente tranqüilizadora era a presença, no Departamento de Comércio, da figura pública mais popular do país, Herbert Hoover, famoso por sua competência e honestidade, ao passo que Will Hays, como diretor geral dos Correios, seguia seu elevado destino. O secretário do Interior, sena­dor Fall, tinha sido unanimemente aplaudido pelo Senado. Só Daugherty inspirava protestos; mas a todo Presidente era permitido ter pelo menos um empresário político em sua folha de pagamento.

Jess entrou pela porta principal. Um funcionário cumprimentou-o e informou que a Sra. Harding estava na sala familiar do andar superior. Quando atravessava em direção ao elevador, Jess observou que a longa fila de turistas passando do Salão Vermelho para o Salão Azul, o Salão Verde e o Salão Leste estava olhando para ele, perguntando-se quem seria aquele figurão que usava um sobre­tudo Chesterfield novinho e óculos de armação grossã — para dar uma aparência intelectual. Houve um suspiro de êxtase quando o elevador privativo chegou e ele entrou.

No salão oval, a Duquesa desdobrava metros de pano sobre todos os móveis. Um assustado vendedor da Loja Woodward e Lothrop postava-se à disposição dela.

Jess Smith, venha cá e comece a trabalhar. Isto aqui é ve­ludo de verdade, ou imitação?

O empregado não ousou dizer coisa alguma. Jess manuseou o material. Havia muito pouco que ele desconhecia a respeito de panos.

É veludo de verdade.

— Só queria ter certeza. Claro que Donald Woodward jamais tentaria nos enganar, mas às vezes há enganos — declarou ela, olhan­do furiosa para o funcionário.

Jess ajudou-a a escolher várias fazendas que, ele tinha certeza, ficariam bem nela. Agora que Florence Kling Harding era a primeira dama, pretendia vestir-se de acordo com isso. O resultado não era inteiramente agradável aos olhos de Jess. Para começar, ela dera para usar duas manchas de ruge no rosto cinzento, como a maquilagem dos palhaços de circo, ao passo que os cabelos eram regularmente, impiedosamente/ondulados. Do modo mais diplomático possível Jess afastou-a de brocados de ouro e prata durante o dia e chifons em tons pastel claros durante a noite.

Mais apropriados, talvez, para a intimidade disse ele, assumindo inconscientemente.o tom lisonjeiro que usava em sua Loja Smith's.

Feitas as encomendas, o funcionário partiu.

Sente-se, Jess. Warren quer jogar pôquer esta noite na Rua H. De modo que avise aos de sempre. Eu não vou. Isto quer dizer que você vai se encarregar de que ele esteja em casa antes da meia- noite.

Jess garantiu que faria o possível, como sempre.

Além disso, não deixe que ele masque tabaco. É ruim para ele. Um charuto, tudo bem, quando não há fotógrafos por perto, mas fique de olho nele se ele mascar.

Como faço para impedi-lo?

Diga-lhe que vai contar para mim e para o Dr. Sawyer. Isto deve bastar.

Vou tentar, Duquesa.

Jess imaginava que essa missão fracassaria. Tão viciado estava Harding em mascar tabaco que Jess o vira, em várias ocasiões, des­manchar um cigarro e colocar o tabaco na boca.

Como vai a situação doméstica? perguntou.

A boca fina abriu-se como uma caixa de correspondência.

Finalmente consegui colocar a cozinha sob controle. Sabe, os Wilson deixaram tudo desnioronar. Então, quando a Sra. Wilson me disse, foi a primeira coisa, que a governanta era muito eficiente, depois que vi a jcasa a primeira coisa que tive vontade de fazer foi livrar-me dela. Mas ela está se saindo bem. Quem" atrapalhava era a Sra. Wilson. Não se importava com coisa alguma a não ser aquele seu marido doente. Eram pessoas extremamente egoístas.

A Duquesa encontrava-se agora junto à gaiola que continha o muito amado só por ela canário.

Pete, canta pra mamãe. Pete! — ordenou a Duquesa; então ela, e não o taciturno canário, assobiou. — Juro que este passarinho está ficando cada dia mais temperamental. Vive de mau humor. Por que não aceitou aquele emprego que Warren lhe ofereceu?

Ah, a senhora sabe que gosto de me misturar aos fregueses, como dizemos no comércio.

Você é a única pessoa do Ohio que recusou um emprego — declarou a Duquesa, e Jess tentou parecer modesto. — É claro que já é bastante rico — acrescentou ela. — Pete canta como um rouxi­nol quando não está de mau humor.

Na realidade, Jess ficara encantado quando lhe ofereceram o cargo de comissário dos Negócios Indígenas; e ficara triste quando os senadores do Oeste disseram informalmente ao Presidente que ele não servia. W.G. perguntara-lhe então se ele gostaria de ser tesou­reiro dos Estados Unidos, um emprego cerimonial que envolvia pouco mais que permitir que sua assinatura fosse impressa nas notas de dinheiro. Mas como Jess tinha outros planos para o dinheiro, agra­decera calorosamente ao Presidente e dissera que preferia ser útil ao governo de maneira menos formal.

Laddie Boy, o cão collie do Presidente, entrou de supetão na sala, saltou sobre Jess e latiu para a Duquesa, que disse:

Cale a boca. Warren está chegando. Aí está ele.

Não era, porém, o Presidente, e sim Charlie Forbes.

— Oi, Duquesa! Oi, Jess! — cumprimentou. Forbes era o bobo da corte do Presidente, um homem de rosto redondo, óculos de coruja e, apesar dos cabelos, ruivos, uma leve semelhança com Jess. — Vim para o almoço. O Presidente prometeu wienerwurstels e sauer- kraut, de modo que deixei meus veteranos fazendo farra e vim correndo.

—• Olá, Charlie — fez a Duquesa, que não gostava de alusões sexuais.

Mas Charlie agora brincava com Laddie Boy, e Jess invejou-lhe a simpatia. Jess era chamado apenas para desempenhar tarefas, mas Charlie Forbes era chamado para alegrar a todos. O coronel Forbes, construtor em Spokane, Washington, era um genuíno herói de guerra que recebera a Medalha de Honra do Congresso. Todos concordaram que ele seria a pessoa indicada para diretor da Seção de Veteranos. Democrata na linha de Wilson, Charlie tinha de tal maneira encan­tado o senador e a Sra. Harding, e ficara encantado com eles, durante uma viagem oficial de senadores ao Noroeste, que mudara de partido e organizara a região em favor de Harding. Finalmente, Charlie era o único dos amiguinhos de W. G. que a Duquesa adorava.

Espero que Warren consiga o almoço que pediu. A cozi­nheira faz uma grande confusão cada vez que ele pede sauerkraut. E palitos. Meu Deus, quantos problemas estou tendo com Warren! Ele diz ao mordomo que quer palitos na mesa, o que nunca acon­teceu antes na Casa Branca...

— O primeiro Presidente com dentes naturais — disse Charlie.

Eles deviam ficar orgulhosos.

— Então o mordomo vem me procurar e eu digo não; e então Warren chama a governanta e grita... Laddie Boy saiu da sala aos saltos.

— Isso significa que Warren está recebendo cumprimentos no Salão Oval. Meia hora todas as manhãs, de qualquer maneira. E ele gosta, imaginem só!

A Duquesa suspirou. Charlie suspirou, e disse: — Arranjei um comprador para a Avenida Wyoming.

Sabe o preço?

— Ele paga, não se preocupe. É o meu assessor jurídico na Comissão. Charles Cramer. De primeira classe. Da Califórnia. Uma grande firma de advocacia.

Vou odiar perder aquela casa...

— Dias muito ocupados — murmurou Charles. Era tão cheio de energia que Jess ficava cansado só de vê-lo dançar pelo aposento.

Estamos construindo, construindo, construindo! Hospitais por toda parte... Ah, Duquesa! Vamos empregar Carolyn, no De­partamento de Pessoal.

Warren já sabe? — perguntou a Duquesa, de cenho franzido.

Afinal, é irmã dele.

— Ele está feliz por termos conseguido um lugar para ela. O Presidente e Laddie Boy entraram juntos. — Bom dia, senhores, Duquesa, Pete.

Ele não quer cantar — informou a Duquesa.

Jess, diga a Harry que vamos nos reunir na Rua H depois do jantar. Portanto convoque o pessoal.

Sim, Sr. Presidente.

George Christian apareceu à porta:

Pode receber "o senador Borah e o senador Day depois do almoço?

— Ora, posso? Você é a pessoa que sabe.

— Pode, sim, senhor. Posso encaixá-los. O senador Borah diz que é importante.

— Tudo do Sr. Borah é importante — interpôs a Duquesa. — É um escândalo o modo como ele e Alice Longworth estão agindo, não que aquele Nick se importe, mas a coitada da Sra. Borah é uma santa...

Harding assentiu para Christian, que desapareceu, assim como Jess. Embora gostasse de dizer que odiava escritórios, adorava o que Daugherty lhe dera no sexto andar do Departamento de Justiça. Não recebia salário, mas podia escrever cartas com o timbre do Departa­mento de Justiça e, melhor que tudo, tinha acesso aos arquivos. Numa cidade onde a única coisa que importava era quem sabia o quê, ele estava adquirindo muito conhecimento. Finalmente, como braço direito do braço direito do Presidente (Daugherty tinha uma linha direta com o escritório do Presidente), todas as portas estavam abertas para ele em seu negócio, que era manter o dinheiro entrando.

 

A sala de jantar da família cheirava a wierners e sauerkraut, um dos pratos favoritos de Burden. O Presidente recebeu-os à cabe­ceira da mesa já esvaziada. Mastigava um palito e pareceu a Burden ter crescido, literalmente, no posto. Não tanto que estivesse mais corpulento — como uma geleira, o estômago alto elevara-se mais uma polegada costela acima — porém tratava-se mais de uma aura de grandiosidade no grande rosto de bronze, nos espessos cabelos brancos, nas sobrancelhas pretas, na sensação de perfeito equilíbrio. Burden perguntou-se se não teriam sido todos levados a subestimar Harding — levados pelo próprio Harding.

A primeira mensagem de Harding ao Congresso certamente tinha deixado claro que ele não apenas era o Presidente como também não estava disposto a ceder qualquer de seus poderes ao ramo legislativo, particularmente àquele Senado que supostamente o criara. Duas vezes troçara publicamente da idéia de que tinha recebido o cargo dos chefões do Senado; Burden estudara as expressões de Lodge, Brandegee e Smoot, e viu nelas um certo grau de confirmação. Ultima­mente, os republicanos vinham reclamando na sala de descanso que os "crânios" do Gabinete, Hughes e Hoover, estavam exercendo de­masiada influência sobre o Presidente. Agora Borah, com ajuda de seu amigo democrata James Burden Day,. estava prestes a exercer um pouco de sua própria influência.

Harding indicou que os dois se sentassem ao lado dele. Serviu- se café. O cão mastigava um osso aos pés de Harding.

— Achei que este seria o local mais tranqüilo, assim em cima da hora.

Harding esperou que o mordomo saísse com o café. Quando a porta fechou-se atrás dele, Harding sussurrou:

Rapazes, saibam que este lugar parece a época daqueles Luíses da França, ou talvez os Bórgia. Todo mundo fica escutando o tempo todo. Quase sempre falamos em código, para não terminar­mos nos jornais de Hearst. — Voltou-se para Burden. — Ouvi dizer que você teve uma corrida meio dura.

— Graças ao senhor, quase perdi.

A maioria de Burden tinha sido realmente muito pequena, ao passo que duas das cadeiras que sempre foram democratas tinham se tornado republicanas. Kitty tinha sido inquebrantável, e Burden não estivera em sua melhor forma, com as energias depauperadas desde a gripe. Perguntava-se se algum dia ficaria bom.

— Além disso, Jake Hamon gastou um dinheirão no nosso estado, o que não ajudou.

— Coitado do Jake — fez Harding, sacudindo a cabeça. — Bom, se ele tinha que ser assassinado, foi mais próprio que tenha sido pela amante e não pela esposa.

Borah concedeu cinco minutos para a conversa leve. De algum modo misterioso -— pelo menos para Burden — o lobo solitário do Senado tornara-se a sua maior força. Aliás, quando Lodge e sua fraternidade senatorial tinham tentado recriar à Liga das Nações sem Wilson, Burden ouvira Borah avisar a Lodge que, se ele tentasse apoiar qualquer tipo de Liga, Borah o destruiria. Lodge respondera, em tom gélido, que era muita insolência de um jovem como Borah falar de tal maneira com alguém mais velho (e, por inferência, melhor) que ele, ao que Borah respondeu que o pior ainda viria, se Lodge e seus amigos tentassem trair o eleitorado. Quando Lodge ameaçou renunciar ao posto de líder da maioria, Borah trovejara: "Renunciar? Nunca! Nós não deixaremos. Nós o expulsaremos, como exemplo"; era óbvio que naqueles dias todo o drama estava no lado republicano. Os democratas mostravam-se reservados e acrimoniosos por sua derrota eleitoral.

Sr. Presidente... — Borah começou.

Burden sentiu um arrepio: assim o loquaz tribuno dirigia-se ao Presidente do Senado. Será que iria falar durante horas? De repente Harding tornava a ser apenas um guerreiro contemplando, hipnoti­zado, o maior dos chefes da tribo do Senado. Borah continuou:

Já tivemos nossas desavenças no passado. Não o apoiei até setembro, quando o senhor me assegurou que nunca concordaria com nossa participação em qualquer Liga das Nações.

Os olhos de Borah estavam fixos em Harding, que pestanejou, descansou a face na mão direita e pôs-se a mascar a ponta de um charuto apagado.

Borah tomou o silêncio como concordância.

Meu medo de envolvimentos estrangeiros é bem conhecido. Mas não sou avestruz. Sei o que vai acontecer se as nações inicia­rem uma corrida armamentista num mundo em paz. Estou aqui para lhe dizer que se houver um fortalecimento competitivo das esquadras, estaremos em guerra com o Japão dentro dos próximos 25 anos, e, francamente, considero tal guerra nada menos que um crime contra a humanidade, provocado por nós em nossa negligência.

Borah calou-se e bebeu um copo d'água. Aproveitando a pausa, Harding endireitou-se na "cadeira e disse:

— Senador, é perfeitamente claro para mim e para o secretário Hughes que os problemas com o Japão já começâranl, especifica­mente na questão de quem vai controlar a ilha de Yap agora que a Alemanha saiu do Pacífico e, de modo geral, na questão de quem vai controlar nosso oceano comum, o Pacífico.

Burden ficou surpreso com o súbito domínio dos detalhes impor­tantes demonstrado pelo Presidente, geralmente uma pessoa vaga. Olhou para Borah pelo canto do olho e viu que este tinha a boca entreaberta — de surpresa? Geralmente, quando Borah estava num aposento, só Borah falava.

— Portanto — continuou o Presidente, largando o charuto —nós por aqui não desejamos deixar todo mundo nervoso outra vez com o Perigo Amarelo, como em 1913, quando quase tivemos uma guerra com o Japão. Por outro lado, entendo seu ponto de vista, senador, sobre a necessidade de entrarmos em acordo com eles fora da Liga das Nações, que o assusta mais que a mim, mas trata-se do nosso modo de ser, o seu e o meu. Para mim, a Liga é uma idéia perfeitamente boa, que provavelmente não funcionaria mesmo que participássemos...

Sr. Presidente, se entrássemos para a Liga, nossa liberdade seria cerceada...

O Leão de Idaho começara a rugir. Mas o Presidente ergueu a mão e sorriu.

Ainda não terminei, senador. Certamente conheço sua eloqüente opinião sobre o assunto.

Harding olhou para Burden, como se pedisse confirmação. Burden respondeu com um gesto de assentimento. O Presidente prosseguiu:

Vou preparar uma campanha de desarmamento bem parecida com a sua lei de 14 de dezembro que me autorizava... ou me ordenava? — o sorriso de Harding era matreiro — ... a convidar os governos do Japão e da Inglaterra a unir-se a nós no corte de cinqüenta por cento dos projetos navais. O Sr. Hughes e eu estamos trabalhando nisso desde que chegamos aqui, embora nenhum de nós tenha falado sobre o assunto em público. Descobri uma coisa sobre este emprego. — Harding esticou os braços, depois aninhou a nuca nas mãos. — Alguém, no caso presente o senhor, pode surgir com uma boa idéia que o Presidente aprecia, mas isso nem sempre é o suficiente, porque muitas vezes, mesmo que eu concorde com o senhor a respeito de um modo de agir, tenho que dizer não e esperar, parecendo triste e desanimado, até o senhor me forçar a fazer a coisa certa.

No caso presente, pode contar que vou forçá-lo, Sr. Presidente.

Borah ficara algo desconcertado com a inesperada compreensão de Harding da .essência do poder. Burden muitas vezes observara que muitas teorias boas tinham fracassado na prática por erro na escolha do momento. O Presidente declarou:

A vantagem neste caso é que o desarmamento é tão popular com os pró-Liga, como Bryan, quanto com vocês que são contra a Liga. Só o Sr. Hearst e a Subcomissão Naval de Burden não gostam da idéia, o que prova que estamos no caminho certo.

Burden sorriu.

Eu gosto dela, mesmo que o resto da subcomissão queira mais, maiores e melhores navios de guerra.

Tantos contratos! — Harding sacudiu a cabeça em falso desespero. — Tanta burocracia! Chega a dar dor de cabeça, não é verdade? Agora, cavalheiros: quero que os senhores dos dois lados do Senado mantenham a pressão em cima de mim. Vou parecer sério e preocupado, e vou me perguntar em voz alta como é que vocês podiam ter confiado que os ingleses e Os japoneses iriam manter sua promessa de desarmamento, quando não confiam neles o bastante para participar de uma Liga com eles.

Burden ouviu Borah inspirar com força, quando a alfinetada atingiu o alvo. Mas o Presidente tinha o controle total da situação.

Portanto vamos manter contato constante nas próximas semanas.

Harding ergueu-se, e os dois senadores o imitaram. Laddie Boy ergueu com elegância uma pata traseira de encontro a uma cadeira. Harding deu-lhe um empurrão e disse em tom melancólico:

Queria que ele parasse de fazer isso...

Depois voltou-se para Borah:

— Deixe-me terminar minha expedição de pesca com os japoneses. Os ingleses já estão a bordo, é o que eles dizem. Podemos também ter que incluir os franceses e os italianos para que eles se sintam bem. Então, quando estivermos prontos, eu lhes darei o sinal para encostarem um revólver na minha cabeça com um projeto de lei, e então cederei, e mandaremos os convites para uma conferência aqui em Washington, provavelmente em julho. O Presidente levou-os até a porta. Sabem, quero que este país seja conhecido como o defensor da paz em toda parte.

Nisto nós concordamos declarou Borah, apertando a mão do Presidente.

Wilson também observou Burden. Mas ele teria feito um discurso brilhante e prematuro. Então teria denunciado todos que discordavam dele e... bem, imagino que teria decretado lei marcial, se pudesse.

Sou um Presidente mais mole sorriu Harding. Como não há chance de ficar conhecido como um Presidente grandioso ou brilhante, como Wilson, só posso esperar ser um dos mais amados, se algum político algum dia puder ser objeto de tal sentimento.

Tal coisa é bastante possível disse Borah, obviamente impressionado.

Harding deu tapinhas nas costas de ambos e levou-os ao saguão.

De qualquer maneira, o que tenho realmente a meu favor é que, como ninguém tem a menor esperança em mim, o que quer que eu faça de bom vai despertar admiração.

Harding então mergulhou num grupo de turistas, apertando mãos e visivelmente espalhando euforia.

Enquanto Burden e Borah esperavam o carro no pórtico norte, Burden afirmou:

Em princípio, eu diria que o Senado não está guiando o Presidente, como anunciado até agora. Aliás, exatamente ao contrário.

Borah resmungou:

Quem guia é Hughes e Hoover.

Não tenho tanta certeza.

Que diferença faz?

Borah entrou no carro primeiro, embora Burden fosse mais velho. Burden entrou depois. O carro recendia a jacinto, que o mo­torista colhera em algum lugar onde? Os jacintos em Rock Greek já tinham murchado.

Enquanto estivermos indo na mesma direção, tudo bem. Mais tarde, quando discordarmos... — fez Borah, com expressão grave.

Borah fora feito para a oposição. Era eloqüente, honesto, inteli­gente; e Burden achava-o um perfeito chato.

 

Como uma lagartixa imperial, a rainha Elizabeth corria de um lado para outro por entre as árvores de papelão, as quais, apesar da esplêndida iluminação sombria! —, pareciam exatamente árvo­res de papelão com folhas de papel. A rainha Elizabeth era muito, muito velha, e a rainha Mary da Escócia era simplesmente velha. Caroline afundou-se na cadeira e observou-se exibir, um por um, seus não muito numerosos truques. Como eram poucos, no final das contas! E agora todos pareciam estar no final.

À luz pulsante que vinha da cabine de projeção ela percebia que Charles Eyton não estava afundado na cadeira; sentava-se muito ereto, fumando um cigarro cuja fumaça tomava forma de nuvens no raio de luz que levava em seus impulsos as imagens de A rainha Mary da Escócia da Traxler Productions, estrelando Emma Traxler. Uma produção "difícil", como Miss Kingsley a chamara no Los Angeles Times, cujo orçamento passara de um para quase dois mi­lhões de dólares "sem um enredo de amor jovem para atrair a ga­rotada", nas palavras do Kine Weekly. Como Emma era o enredo de amor maduro, Taylor, para grande alívio dela, cortara um suben- redo envolvendo dois namorados jovens. Agora ela ansiava por ver na tela lábios orvalhados e pescoços sem rugas — qualquer coisa além de sua obviamente bonita gola de babados e seus olhos can­sados e um pouco menos bonitos. Bothwell tinha a idade certa para ela, o que significava'que ambos estavam na idade errada para as platéias de cinema, ao contrário do teatro, onde, vistos de longe, eles teriam encantado e convencido.

Caroline fechou os olhos durante o close em que ela atacava a rainha Elizabeth na floresta de papelão. Apesar da iluminação cuida­dosa, os olhos luminosos, amados pelos rapazes adolescentes e pelas mulheres lésbicas de todas as idades, brilhavam através de uma de­licada rede de rugas muito pequenas, nunca antes visíveis em seu espelho ou, presumivelmente, ao mais caro maquilador do ramo. Agora, como os canais de Marte, elas apareciam na tela trinta vezes maiores que o tamanho real. Caroline estava começando a sentir-se mal. Agarrou a mão de William e achou-a suada. Ele retribuiu o aperto rapidamente, depois desvencilhou a mão e acendeu um cigarro. Houve alguns pigarros vindos do resto da platéia, profissionais que logo estariam tentando vender o muito esperado Rainha Mary.

Uma cena de batalha veio como um alívio. Depois, novamente a prisão de Mary, e muitas marchas de um lado para outro, braços jogados para cá e para lá como,um moinho holandês na ventania. Enfim o final: uma multidão de extras gritando impropérios e pare­cendo os mesmos de todos os outros filmes. Dizia-se que os viciados em cinema em todo o país tinham decorado o rosto de centenas de extras e aplaudiam quando um "favorito aparecia lutando na Revolução Francesa ou Americana, ou jogando calmamente no cassino de Monte Carlo, ou empurrando um carrinho nas favelas da velha Nova York.

Finalmente: os grandes portões do castelo se abrem e Mary aparece sozinha, de preto, segurando uma cruz, uma Bíblia, um ro­sário. Está majestosa em sua postura, mas de certo modo vulnerável, como estaria quase qualquer pessoa prestes a ter a cabeça cortada fora. De quem ela fazia Caroline lembrar? Mary estava ao pé da escada do cadafalso quando Caroline recordou-se: a Srta. Glover, professora de matemática na escola de Mlle. Souvestre, uma mulher com um resfriado eterno, olhos lacrimejantes e nariz escorrendo.

Caroline estremeceu observando a Srta. Glover, com um lencinho muito usado na mão, subir lentamente os degraus até onde o carrasco encapuzado, segurando um machado, espera por ela. Sabia­mente, Caroline decidira manter, a gola de babados até o último mi­nuto. William sugerira que ela o mantivesse mesmo enquanto a cabeça era cortada, pois ninguém saberia a diferença e, além disso, um machado que podia atravessar um pescoço certamente podia destruir um simples babado; mas Caroline achava que a história exigia um certo grau de respeito.

Tomadas da multidão cobriam a remoção do babado. Onde antes zombavam, agora estavam dominados pela piedade, particularmente um escocês corpulento que exibia num pulso peludo um caro relógio Longine. Teriam que cortar aquilo, pensou Caroline. Tim teria visto a tempo aquele relógio. No entanto, para esse? tipo de coisa William Desmond Taylor era melhor diretor. Por outro lado, porém, que era exatamente — ela se perguntou, num início de pânico — esse tipo de coisa?

A rainha Mary da Escócia olha em volta — um último olhar luminoso sobre um mundo que ela agora está prestes a deixar para sempre. Então, ignorando a interpolação de Knoblock sobre a frase "Que pescoço tão pequeno!" de Ana Bolena ("Quem é que vai saber quem disse isto?", ele perguntara), Mary — não, a Srta. Glover novamente — aperta Bíblia e cruz de encontro ao peito. Um cartão de legenda assegura à platéia que ela está a caminho de um mundo melhor, onde a trigonometria é o estudo de triângulos. Então a Srta. Glover — eternamente escrava da Trindade como o triângulo definitivo — aproxima-se do carrasco; ajoelha-se e coloca a cabeça sobre o bloco de madeira.

A piedade e o medo dominam os extras, assim como fará com as platéias, dependendo de.quem está tocando o órgão Wurlitzer no Strand de Nova York ou, se tiverem a sorte de serem levados no Capitol, uma orquestra sinfônica inteira, garantindo despertar emo­ções'fortes em qualquer platéia durante esses últimos minutos em que a Srta. Glover perde a cabeça e a câmera passa dos joelhos do carrasco à sua cabeça encapuzada e daí para a torre do castelo atrás, e para o céu tempestuoso acima,, onde o sol emerge de trás de uma nuvem para criar mil prismas na lente da câmera enquanto a alma perturbada da rainha Mary da Escócia é recebida por anjos — ho­sana, hosana, hosana!

Caroline tinha vontade de assassinar, senão a si própria, Emma Traxler, cuja vaidade cega a colocara naquela situação humilhante.

Quando as luzes se acenderam na sala de projeção, Charles Eyton levantou-se e sacudiu a cabeça, extasiado.

Nunca vi uma coisa assim. Parabéns a vocês dois!

Precisa de um certo polimento respondeu William, sem se alterar. Vamos fazer a pré-estréia em Paladena e ver... sabe, como ele se sai.

Charles assentiu e enxugou os olhos.

— Leve-o para Bakersfield também.

Então era tão ruim quanto Caroline suspeitava. Bakersfield sig­nificava uma platéia operária, que teria odiado A rainha Mary ainda mais se ele fosse bom. A platéia de Bakersfield era também conhecida por falar com' a tela, aconselhando os personagens a respeito de seus próximos atos. Eyton retirou-se, e Caroline aceitou os parabéns de seus colegas fabricantes de sonhos. Nenhum olhar procurou o dela. Ela voltaria para Washington.

Caroline deixou William na casa dele. Embora tivesse vontade de conversar com Tim, que estava fazendo um filme em Culver City, William convidou-a a entrar, um pouco mais insistentemente do que o normal. Felizmente Eddie não estava à vista.

Quer que eu prepare um chá? ele perguntou.

Caroline disse que não, que ela própria prepararia uma bebida para si, o que fez, de um móvel cheio de garrafas de cristal e porta-retratos de prata com fotos de grandes astros respeitosamente arru­mados, como deuses domésticos romanos. Como em todos os lares de Hollywood, Mary Pickford era a deusa principal. Presumivelmente, quando ela ficasse velha e parecida com a Srta. Glover seu retrato seria retirado de mil móveis e de cima de dez mil pianos, e Gloria Swansen ou alguém mais tomaria o seu lugar. Pela primeira vez Caroline percebeu um retrato de uma mulher muito atraente, embora não fosse bonita, com um chapéu de abas largas e enormes olhos escuros.

Quem é esta?

Charlotte Shelby. Você conhece. A mãe da pequena Mary Minter.

A pequena Mary Minter murmurou Caroline, olhos fixos numa grande fotografia de uma criança de cachos dourados, olhos grandes e nariz batatudo.

A estrela virou-se para o diretor.

Bakersfield disse.

Nunca ouvira aquela voz de si própria antes: Lady Macbeth es­tava agora ao seu alcance. Poderia fazê-la no palco. O diálogo que nunca conseguiria decorar ficava pregado nas costas de cadeiras e co­lunas, e ela trovejaria suas falas enquanto caminhava, coberta de sangue, pelo Castelo de Glamis ou onde quer que fosse, na Escócia. Não, Escócia de novo, não. Ela deixara tudo que era celulóide — se­não mortal de Emma Traxler no terreno da Argyle a Escócia de novo!

Acho que mesmo em Bakersfield eles vão gostar consolou-a William. Você está envolvida demais. É só isso. Acho que o enredo funcionou maravilhosamente.

Ele funciona, William. Eu é que não funciono. Caroline sentou-se diante da escrivaninha dele como se fosse a sua. O ca­lendário me pegou.

Não seja absurda disse ele: tudo que ela queria ouvir.

Vamos estrear no Capitol?

William deu de ombros:

Por que não? Você é popular lá. É o que eles chamam de classudo, e você também é. Vou viajar em de junho.

William apertou o diafragma. Por mais de um ano ele vinha tendo dores intermitentes, ainda sem diagnóstico.

Para onde? perguntou Caroline, sem saber se estava ou não sendo convidada para ir com ele.

Para Londres. Eu.lhe contei. Knoblock emprestou-me a casa dele em Londres e vai ficar com esta aqui. Uma troca. Estarei de volta no outono. Preciso de um descanso.

Ele parecia mesmo cansado. Embora todos pensassem que William Desmond Taylor usasse drogas, não havia sinal disso em seu com­portamento, áo contrário de Mabel Normand ou Wallace Reid, a quem o estúdio fornecia morfina na hora do trabalho para que ele pudesse agüentar as filmagens do dia. Hollywood estava ficando cada vez mais viciada, e os vendedores de* drogas os "distribuidores de cartas de jogo", como eram conhecidos estavam por toda parte, disfarçados de príncipes russos em jantares elegantes ou como vendedores de amendoim vendendo saquinhos de papel contendo papelotes de cocaína. Caroline tinha com freqüência a sensação de estar vivendo numa sociedade codificada em que só a ela faltava a chave do código.

E quanto a Tentação verde?

Aquele seria o próxima filme de Taylor, sem papel para Caroline.

Adiado. Ele encarou-a com certa ansiedade. Por que não vem também?

Tantas vezes William conduzira Caroline pelo caminho coberto de cactus do desejo insatisfeito que ela agora relutava em expor-se novamente a um deserto que não continha mel nem frutas.

Não sei se posso. O jornal... — Ela sempre mencionava sua outra vida quando a atual se mostrava insatisfatória.

É claro fez ele, depressa demais. Compreendo perfeitamente. Simplesmente achei que você poderia gostar de Londres, dos teatros, do seu sucesso na Europa...

Um sucesso em decadência, a essa altura.

Enquanto zombava de si mesma, da Europa e dos filmes, ela brincava nervosamente com uma carta sobre a escrivaninha. Leu vá­rias vezes a frase em tinta preta no papel de carta azul: "Vou lhe dar um tiro, isto é uma promessa." No entanto, estava preocupada de­mais com seu próprio desempenho e não apreendeu o sentido das palavras. Eram simplesmente garranchos sem nexo, parte de um en­redo diferente daquele em que ela estava envolvida, outro código sem chave. Só depois que ela fez uma meia promessa de não ir, mui­to mais estratégica do que uma meia promessa de ir, foi que Caroline entendeu o que tinha lido. Porém a essa altura ela estava na cama com Tim pela primeira vez em vários meses. Ele tinha chegado cedo do estúdio. Héloise deixara-o entrar e ele adormecera na cama dela. Caroline aproveitara a oportunidade.

Que é que ele vê em mim? ela tornou a perguntar; algu­mas das respostas de Tim a essa velha pergunta agradavam-na mais que outras.

Dinheiro disse ele, deitado ao lado dela: magro, peludo e egocêntrico.

Por que o meu? Há tantas pessoas aqui que têm mais que eu! Ele quer que eu vá para a Europa com ele. Por quê?

Para que você o apresente a seus amigos grã-finos.

Não tenho amigos grã-finos. De qualquer maneira, ele tem mais. Já conhece todas as pessoas do tipo que... que o conhecem concluiu, com exata crueldade.

Ainda não levou você para a cama?

Caroline sacudiu a cabeça.

Imagino que eu seja velha demais. Aquele que reverencia o santuário dos Três Emes não acenderá uma vela sequer para a mi­nha idosa imagem.

Como você zomba da minha religião!

Minha também disse Caroline.

Ela via-se num hábito de freira, voto de silêncio, fazendo caridade numa colônia de leprosos. Então lembrou-se do comentário de Lubitsch, de que toda atriz com mais de quarenta anos queria representar uma freira para poder esconder o pescoço.

Já lhe ocorreu que ele seja um daqueles? — perguntou Tim.

Ele sempre separava todas as pessoas em duas rígidas categorias sexuais, o que, Caroline sabia, não" era possível no mundo real, pelo menos em meio às damas parisienses cujo trabalho na vida era manter em perfeito equilíbrio o marido, o amante e a amada amiga.

— Talvez seja. Às vezes. Mas você acha que um afeminado escreve cartas a outro em caligrafia feminina e papel perfumado, ameaçando matá-lo?

Tim sentou-se na cama.

Não que eu saiba.

— Que ninguém saiba. Não, era carta de mulher. Dá para saber. Não sei como. A cor do papel, os pontos de exclamação... De qualquer maneira, estava sobre a escrivaninha dele, e eu estava sen­tada ali. Não pretendia ler, mas claro que li, bem na frente dele, sem prestar a menor atenção ao que aquilo queria dizer.

Falava em "matar"?

— Na verdade, falava em "atirar".

Só um homem escreveria "atirar".

— Bem, essa mulher-escreveu "atirar".

Tim franziu a testa.

— Dizem que Taylor está muito envolvido com drogas. Um ou­tro traficante, talvez?

— Não sei. Só sei que... quero ficar com ele.

A razão precisa por que Caroline queria ficar dia e noite em companhia de um homem com quem ela não tivera um caso era um mistério não apenas para o paciente Tim, mas para ela própria. Ela já era uma pessoa bastante vivida, e sempre conseguira, por sorte — boa ou má? — ou por instinto basear sua vida em si niesma e não em outros. De Burden a Tim, ela fora capaz de manter um relaciona­mento tão agradável quanto era possível com homens, não lhes per­mitindo acesso à sua vida além, por assim dizer, da cama. Agora, sem cama, por assim dizer novamente — como tinham zombado do estilo idoso de Henry James, e como era útil quando se tratava de reunir emoções contraditórias para poder classificá-las! Sem cama, ela sen­tia ciúmes a um ponto que jamais sentira antes. Tinha interrogado todo mundo, esperava que sutilmente, a respeito de Taylor. Tinha lisonjeado a infeliz Três Emes nas festas, e retribuíra com calor, porém penosamente, a simpatia de Mabel Normand, simpatia essa que era, como a de tantos artistas naturais, calculada para agradar a ambos os sexos. Mas no centro de todo esse desejo estava William Desmond Taylor, um perfeito enigma. Ele era apreciado por homens "de ver­dade", até mesmo Chaplin era amigo dele, até o ponto em que aquele estranho espírito mundial poderia tomar conhecimento de alguém que não fosse como platéia. Os profissionais admiravam Taylor; as mu­lheres sentiam-se atraídas por ele. No entanto, ela não conseguia tocá-lo, muito menos conhecê-lo. Boas maneiras — as dele — impediam-na de jogar-se sobre ele. Normalmente, quando se sentia frustrada, Ca­roline tinha a sabedoria de passar para outra. Mas dessa vez ela ficou. Ele lhe falava constantemente de Mary e Mabel, e ela escutava, so­lidária, como se fosse mãe delas.

Acho que o Sr. Eyton não gostou de Mary Miles... isto é, de A rainha Mary — disse ela, vestindo o roupão.

— E você gosta? — perguntou Tim, deitado na cama, usando apenas uma liga, que ele esquecera de tirar.

Pareço muito velha.

— Provavelmente não tanto quanto pensa. Lembre-se, você se olha com muito mais atenção do que a platéia vai olhar. Você reage com exagero.

— Eu represento com exagero.

— Eu teria impedido.

William tentou — disse çla, defendendo sua paixão. — Acho que eu estava desconfiando que estava feia, parecida com a Srta. Glover, uma professora que eu tinha na escola. — Ela contemplou-se no espelho da penteadeira. — Acho que vou cortar os cabelos bem curtos.

Então não ia ficar com cara de Emma Traxler.

Exatamente.

Esqueça. Vá para a Europa com ele. Saia daqui por algum tempo. Não leia as críticas. Procure a sua amiga Sra. Wharton e com­pre o novo livro dela, aquele que você gosta e eu não consigo ler. Todos aqueles ricos... Você vai precisar dos cabelos compridos.

Tim alegravá-a tanto física quanto moralmente. Era curioso que à medida que ela envelhecia o ato de amor parecia-lhe cada vez mais necessário do que quando era jovem; no entanto, o estado de espíri­to ficava mais melancólico a cada novo ano, anos alados, como ela pensava neles, passando cada vez mais depressa, como morcegos ao anoitecer.

Caroline também o alegrava, e ambos jantaram cedo no Sunset Inn na Avenida Ocean, onde ela tentou convencê-lo a desistir de um filme sobre um linchamento no Sul.

Você está ficando típico, como costumam chamar ela de­clarou, contemplando a lua quase cheia a iniciar seu espalhafatoso caminho pelo céu acinzentado do Pacífico.

Abaixo deles, as ondas subiam e desciam lentamente, batendo nos frágeis pilares de madeira do restaurante enfiados na areia. Do outro lado do salão, comendo muito e bebendo demais, havia meia dúzia de atores cômicos e suas namoradas, conhecidas como starlets.

É preciso haver pelo menos um diretor típico.

Mas Tim não parecia muito satisfeito com esse título. Diziam que ele tinha brigado com Ince. Como não havia muitos outros es­túdios onde ele pudesse ter tanta liberdade, e como ele se negara a deixar que a Traxler Productions também se tornasse "típica", só lhe restava a Europa, que não era o que ele desejava.

As cartas insultuosas cessaram disse ele.

Coitada da minha filha suspirou Caroline.

Emma agora me manda panfletos insultuosos. Como foi que ela ficou assim?

Como ela não tem pai, imagino que a culpa seja minha. Mas não sei como.

Washington?

Talvez seja. É difícil para nós... Bem, para mim... acredi­tar que todos aqueles discursos que nossos amigos fazem do Senado e que nunca escutamos, eles escutam...

O público?

Caroline assentiu.

E também os senadores que os fazem. Eles insistem em falar tanto no bolchevismo que, acho, acabam acreditando em tudo. Como os boches.

— Exatamente como os boches. Tim levantou o olhar, e seus olhos se arregalaram. Aí vem ela.

Caroline voltou-se quando Elinor Glyn fazia sua entrada, com três rapazes, um deles um astro em ascensão cujo nome Caroline nun­ca conseguia recordar.

O olhar de águia da Srta. Glyn abarcou todo o restaurante. Quando viu Caroline, deixou os amigos e passou perto da mesa dos cômicos, que pararam tudo para contemplar respeitosamente uma lenda.

Querida Srta. Traxler!

Caroline e Tim levantaram-se.

— Sentem-se, sentem-se. Por favor — continuou a recém-che­gada. — Estamos comemorando. Acabei de receber o que chamam de "vá em frente" para o meu segundo filme...

— Sente-se — convidou Emma Traxler, toda negócios, a ironia expulsa pelo profissionalismo.

— Vou filmar perto do senhor, Sr. Farrell, em Culver City, com o encantador Sr. Goldwin, que acaba de dizer à imprensa que o meu nome é "anônimo" de apelo sexual. Uma mudança bastante brusca, eu acho, mas pobre não pode escolher muito...

Caroline pediu detalhes."

Eu produzo — esclareceu Elinor Glyn. — O Sr. Sam Wood dirige novamente para mim. Ele tem um nome ótimo, mas não tem importância. Terei ainda mais liberdade do que tinha com Lasky. Existe um tal de Sr. Gibbons no departamento de arte que já viu uma mansão por dentro e ele próprio é quase um cavalheiro. Chega de palmeiras secas e patas de elefante nas salas de visitas de Mayfair.

— Tão diferente de Sandringham e Osborne... — comentou Caroline, exibindo seu trunfo.

— Você se hospedou Hessas mansões?

— Nos velhos tempos da rainha Victoria. Caroline passara um fim de semana em Sandringham quando o príncipe de Gales, e não a rainha, estava lá. Havia, ela se lembrava, várias patas de ele­fante contendo bengalas e guarda-chuvas. — Mas quem faz o papel principal? Gloria Swanson novamente?

— Ainda não foi decidido. Mas ele eu já tenho! É a personifica­ção daquilo! Rodolfo Valentino. Ele vem jantar conosco hoje, com suas duas damas. Tão simpático! Você fala italiano?

— Ah, falo, sim! — mentiu Caroline, ou melhor, Emma.

No ano anterior, Rodolfo Valentino tornara-se um astro mundial com O sheik e Os quatro cavalheiros do Apocalipse.

— Rodolfo é essencialmente puro, intocado pela Maldição da Califórnia, como eu a chamo; A Bruxa Malvada que no final estraga tudo para todos que vêm para cá buscando o ouro dos tolos...

Mas na realidade o ouro é bem verdadeiro — interpôs Tim, recuperando-se de seu susto ao avistar Elinor Glyn.

E os tolos também — disse Caroline.

Ela sorriu radiantemente, com a consciência de que ao sorrir seu rosto tornava-se uma teia de rugas e assim, graças àquele cacoete sui­cida, ela não estaria com Rodolfo Valentino em Além dos rochedos.

Uma história de inocência encontrando-se com a sofisticação. Theodora, jovem, inocente e confiante...

Se não o papel de Theodora, então talvez ela pudesse represen­tar a mãe dela, pensou Caroline, permitindo que seu sorriso desa­parecesse com a maior rapidez possível.

Com Rodolfo como Lorde Bracondale, cansado da vida mun­dana... — disse.

Elinor lançou-lhe um olhar cheio de suspeitas, e afirmou:

Os Lambton são muito mais morenos que o adorável Rodolfo...

Mouros, dizem. Estou falando dos Lambton. A mulher morena de Shakespeare não era parente deles?

— Isto foi antes do meu tempo.

Empertigada, com a peruca apontando para o alto, Elinor Glyn voltou para sua mesa. Não houvera menção a Rainha Mary da Escócia.

Bem, isto decide tudo disse Caroline. A Maldição da Califórnia caiu sobre mim. É preciso fugir.

Para onde?

Para Washington, onde mais?

Pensei que você tinha terminado com jornais.

Caroline perguntou-se se não tinha, talvez, terminado com tudo; com a vida, também.

Posso voltar para a França e me tornar uma velha dama.

Tim sacudiu a cabeça.

Primeiro você cometeria suicídio. Por que não leva tudo isso mais a sério?

Tudo isso o quê?

O cinema. Por que acha que insisto em tentar fazer filme sobre a vida real?

Porque você é tolo. Isso não é a vida real. Isso é... divertimento.

Tim sacudiu a cabeça.

Não, não é só isso. Lembra-se do seu primeiro filme?

Eu era incrivelmente nobre. E estava maravilhosa.

Tim suspirou.

Essas atrizes! Então não sabe o que você, o que nós fizemos? O governo queria que todos os americanos odiassem os alemães, e nós, você e eu, acabamos com isso.

Com certa ajuda de milhares de outros filmes, da imprensa, de George Creel, dos alemães...

Isso não importa. Em certo momento conseguimos uma... união com o público, como o... o Zeitgeist. Conseguimos fazer to­dos sentirem o que queríamos que sentissem.

Caroline olhou para Elinor Glyn, que tinha os olhos fixos no relógio: Rodolfo estava atrasado.

Você fala como Chaplin quando ele fala do cinema como um Poder para o Bem.

Ele está certo. Embora eu não saiba o que ele julga ser o bem. Acontece que estamos dando ao mundo todo tipo de sonhos e idéias. Bom, por que não formamos deliberadamente esses sonhos?

Finalmente Caroline Conseguiu escutar Tim através da grande nuvem aveludada de pena de si mesma na qual ela se envolvera.

Você é ambicioso — ouviu-se dizer ao começar a emergir da nuvem. Mas entendo o que quer dizer. Aqui não existe um país real... Em lugar nenhum existe um país real, acho, a não ser em sonhos. Mas o que você quer que eles sonhem?

Tim deu de ombros.

Com Eugene V. Debs? sugeriu.

Caroline sacudiu a cabeça.

Isso é apenas propaganda, e a maioria das pessoas sabe como ignorar um pedido especial. Um sonho é algo mais sutil, universal, invisível na ocasião mas inesquecível depois. O modo como Richard Barthelmess caminha em Flores partidas. Mas não vejo como você, nós, qualquer um, possa garantir que isso vai funcionar.

Ninguém garante. Simplesmente faz. Mostra coisas do modo como elas são, mas de um ângulo bem calculado, como a câmera faz, para que a platéia veja o que você quer que ela veja...

Que é o quê?

Tim riu, parecendo muito jovem.

Se soubéssemos a resposta disso, saberíamos tudo e morrería­mos felizes. O negócio é fazer.         

Caroline estava começando a entender. Pôs-se a improvisar:

Até agora deixamos que o governo nos dissesse o que fazer e como fazê-lo. Portanto, por que não reverter o processo Caroline colocou os pés com muita deliberação na estrada para Damasco e fazer o governo fazer e ser o que queremos que ele faça e seja?

Tim adorou.

Os anos de editoriais capitalistas e estúpidos deixaram você bem treinada.

Não tenho muita certeza de que fossem estúpidos retrucou ela, serena. Mas se Hearst inventava notícias sobre pessoas, nós podemos...

Ela estremeceu involuntariamente, sem saber por quê.

Podemos fazer o quê?

Eu ia dizer que podemos inventar o povo. Podemos?

Por que não? Ele está esperando para ser inventado, para que digamos quem e o quê ele é.

Caroline percebeu de repente que ela e todo mundo encarava esse novo jogo pelo ângulo errado. Os filmes não existiam simplesmente para refletir a vida ou contar histórias, mas para exis­tirem por conta própria, autônomos, e para olharem de volta, por assim dizer, para aqueles que os fizeram e aqueles que os assistiam. Os filmes tinham sido usados com sucesso para denegrir os inimigos nacionais; agora, por que não usá-los para modificar a percepção que o espectador tinha de si mesmo e do mundo? Assim, ela poderia fi­nalmente ultrapassar Hearst. A pena de si mesma foi substituída pela megalomania do tipo mais agradável. Ela até mesmo tornou a apaixonar-se por Tim. Que bela obra poderiam fazer juntos, agora que sabiam o que era isso! Então, como se as bênçãos não cessassem mais, ela e Elinor Glyn entenderam que Rodolfo Valentino faltaria ào en­contro, enquanto os comediantes da outra mesa faziam cada vez mais barulho até que um deles, úm homem muito gordo que antes do sucesso tinha sido bombeiro hidráulico, dirigiu-se ao toalete, imitando o caminhar de Elinor Glyn, para divertimento de todo o salão exceto da inventora da paixão, que fez cara feia. Caroline riu com abandono. Inesperadamente, Tim segurou a mão dela por baixo da mesa.

 

Buden assentiu, e estremeceu. Obviamente, jamais voltaria ao que era antes da gripe; simplesmente continuaria a arrastar-se até o fim. Olhou com melancolia para o caixão de pinho, envolto na bandeira, que continha os restos do "soldado desconhecido", um fetiche corrente no mundo inteiro: os líderes mundiais enterravam um conjunto de ossos não identificados, honrando assim, como eles gostavam de dizer, as multidões anônimas que eles próprios tinham sacrificado à toa. O caixão estava colocado sobre uma mesa escondida por coroas de flores. Burden perguntou-se quem — o quê — estava dentro do caixão.

No palco no centro do anfiteatro, os líderes mundiais ou seus representantes militares ajeitavam-se solenemente. Tinham sido con­vocados a Washington para a Conferência de Limitação de Armas. Harding apropriara-se da idéia original de Borah; depois, mano­brara sutilmente todo o sistema político americano para que este aceitasse uma espécie qualquer de desarmamento. Se Harding e Hughes tinham conseguido convencer os líderes estrangeiros, isso ficaria claro no dia seguinte, quando a conferência iniciasse seu trabalho. Enquanto isso, aquela celebração do soldado desconhecido tinha sido calculada cuidadosamente para influenciar o público de toda parte: nunca mais haveria matança.

Dos dignitários estrangeiros, o mais importante era Aristide Briand, primeiro-ministro da França, todo de negro, contrastando com os militares cheios de medalhas que enchiam a plataforma. Até mesmo o ex-primeiro-ministro britânico, Arthur Balfour, encon­trara um vistoso uniforme para usar. Burden pensou com azedume: como os ingleses gostavam de se enfeitar! O estado de espírito de Burden andava bastante azedo. Ele olhou sem interesse para o ma­rechal Foch e o almirante Beatty, para os comandantes chineses e japoneses, seus "galões de ouro e prata cintilando ao frio sol da manhã. Antes disso, tinham todos desfilado diante da Casa Branca, e depois, tendo causado um enorme engarrafamento no trânsito, o contingente estrangeiro conseguira atravessar o Potomac .para che­gar ao cemitério, tendo nesse processo, segundo Borah, perdido o Presidente.

O carro dele foi visto pela última vez saindo da estrada e entrando no cemitério; um atalho, pode-se dizer, para a imorta­lidade — declarou o Leão de Idaho, com discreta satisfação.

Borah agora sentava-se ao lado de Kitty, a Sra. Borah ao lado de Burden.

Viu o coitado do Sr. Wilson? — quis saber a Sra. Borah, com seu ar de ovelha atenta.

Burden assentiu, e Kitty respondeu. As utilidades da esposa de um político eram muitas.

Parecia abatido, sentado no carro, com Edith, que parecia muito bem. Ela emagreceu uns quilos, eu diria.

Costuma encontrar-se com eles? — perguntou Borah.

Não. — Burden não se sentia tão culpado quanto deveria: tinha sido aliado político do ex-Presidente, não seu amigo. — Acho que não estão interessados em visitas. Ele tem sua própria corte.

Eu não sairia em público se estivesse tão mal — disse Borah, implacável.

Decerto a imagem de Wilson frágil e semiparalisado, passando diante do extremo oeste da Casa Branca no longo cortejo do sol­dado desconhecido, era contundente. Quando Harding vira seu predecessor passar por ele como um fantasma da guerra, fizera uma profunda reverência, e Wilson erguera a mão comprida e branca, como resposta — o passado e o presente. Quem seria o futuro?

Borah resmungava em tom descontente:

Não estou gostando da cara disto tudo.

Estamos apenas honrando os mortos — disse Burden contritamente.

Não é isso. É esta conferência. Não é o que eu pedi. Não é o que eu queria, de jeito algum. Desarmamento, sim. Para todos nós. Mas isto vai acabar virando outra Liga das Nações. Se acon­tecer isso, vou fazer oposição. Já avisei a Harding.

Borah estava obviamente ressentido porque o Presidente rece­beria o crédito do que ele julgava ser exclusivamente idéia sua.

Fossem quais fossem as aventuras que os Harding tiveram ao atravessar o engarrafamento, estavam agora no palco do anfiteatro. O Presidente tinha a aparência nobre e bela de sempre, usando um sobretudo com uma única fileira de botões e portando um cha­péu, ao passo que a Sra. Harding vestia-se apropriadamente de negro, usando inclusive um véu.

A banda dos fuzileiros navais tocou o hino nacional. Um capelão exortou Deus de um modo muitíssimo ecumênico. Então, exatamente ao meio-dia, um corneteiro solitário executou o toque de silêncio, e os olhos de Burden encheram-se de lágrimas. Que seria melhor do que morrer ná juventude para defender seu país e seus compatriotas? Que era pior que viver até a meia-idade, um estadista periférico? A soprano Rosa Ponselle cantou Sei que meu Redentor está vivo, e a tristeza de Burden continuou elevada e pura. Então a banda executou America, um hino enérgico e estri­dente, calculado para matar todos os sentimentos elevados, em Bur­den ou em qualquer outra pessoa. Ele enxugava os olhos quando o secretário de Guerra apareceu no palco, onde um microfone num pé de metal transmitia a cerimônia por telefone para o Madison Square Garden em Nova York e para o Auditorium em San Fran­cisco, assim como pára as multidões ali' mesmo em Washington. Seria a maior audiência na história," graças ao aperfeiçoamento do rádio.

Senhoras e senhores, o Presidente dos Estados Unidos.

Todos se ergueram enquanto Harding, sem o sobretudo, aproximava-se do microfone. Fez um gesto para a platéia: que se sentasse. Como a imprensa gostava de declarar a respeito dos presidentes no segundo ano de mandato, ele tinha "crescido no posto". O senador um tanto rústico, que Lodge chamara de "per­sonagem de um romance de Dreiser a respeito de gente pobre" era agora, com sua cabeleira prateada, a personificação de tudo que era bom, são e normal em seu país.

Harding adotou — quem não o faria em tal ocasião? um tom que lembrava Lincoln.

Postado hoje em solo consagrado, consciente de que a Amé­rica inteira parou para compartilhar esse tributo do coração, da mente e da alma a esse compatriota americano, e sabendo que o mundo percebe essa expressão de nosso cuidado, cabe dizer que o sacrifício dele e dos milhões de mortos não terá sido em vão.

A voz ressonante quase convenceu." Mas Burden sabia, como todos sabiam almirantes da armada inglesa e marechais da Fran­ça —, que á vida era tudo que aquela pobre ossada no caixão al­gum dia tivera; e a perdera para que estadistas suspeitos pudessem redesenhar as fronteiras e os espertos pudessem ganhar dinheiro.

É preciso que haja, e haverá, uma voz de comando de uma civilização consciente contra a guerra armada...

Burden perguntou-se quantas vezes, depois de guerras semelhantes, os gansos do Capitólio tinham grasnado a mesma mensa­gem fervorosa, na esteira de alguma matança terrível. Mas era necessária apenas uma geração para que se esquecesse os horro­res da guerra e se ansiasse, mais uma vez, pelas emoções e pelos lucros da guerra. Como a raça humana era estúpida, pensou Bur­den, olhos postos num príncipe japonês cheio de medalhas que, sabia-se, estava tramando uma guerra no Pacífico. Os japoneses não suspeitavam que a gentil e poliglota república da América do Norte provaira agora o gosto do sangue e não haveria como segurá-la. Guerra significava dinheiro. A guerra era a expressão definitiva daquele orgulho racial do qual a tribo caucasiana branca era tão profusamente dotada. Seria muito mais adequado que Harding exe­cutasse uma dança de guerra, com machado e cocar emplumado, emprestados do chefe indígena postado, tão incongruentemente, junto aos grandes comandantes condecorados. Ao toque dos tambores, todos gritariam "Sangue!", e as guerras continuariam, cada uma mais destruidora que a outra, até que na terra não sobrasse al­guém vivo.

Ao devolvermos esses pobres ossos à sua terra natal, enfeitados de amor e cobertos das condecorações que apenas os países podem outorgar, sinto as orações de nosso povo, de todos os povos, para que este Dia do Armistício marque o começo de uma nova e duradoura era de paz na terra e boa vontade entre os homens. Permitam que eu me junte a essa oração.

O Presidente então recitou o pai-nosso, e as pessoas à volta de Burden rezaram com ele. Senadores e embaixadores tinham as faces molhadas de lágrimas. Burden estava tomado de desprezo por tanta hipocrisia generalizada. O toque de silêncio e uma ossada con­seguiam provocar nele a sensação de sua própria mortalidade, de sua semelhança com todos os outros. Mas orações carolas o es­friavam, e um quarteto da Metropolitan Opera cantando O supremo sacrifício fê-lo pensar no frio que estava sentindo, enquanto o Pre­sidente prendia a Medalha de Honra do Congresso na bandeira que cobria o caixão. Ele foi seguido pelos outros comandantes de guerra. Enquanto cada um deles acrescentava uma medalha à cons­telação, Burden voltou-se para Borah:

Quando teremos nossa próxima guerra?

Borah pareceu espantar-se; depois quase sorriu.

Dentro de vinte anos, se não fizermos o desarmamento agora — respondeu.

E se fizermos?

Bôrah grunhiu, e o próprio Burden respondeu:

Dentro de vinte anos, se fizermos o desarmamento. Vamos esperar que na próxima vez tenhamos a mesma sorte que tive­mos nessa.

Surgiram os encarregados de carregar o caixão. Com Harding à frente, desceram até uma cripta de mármore logo abaixo do anfiteatro.

Acho que nunca mais vamos encontrar o nosso carro — comentou Kitty.

Ela não se comovera. Por um motivo qualquer, as mulheres nunca se deixavam afetar pelo sofrimento dos guerreiros, ou, mais precisamente, o sofrimento dos dirigentes tribais, que sonhavam com guerras futuras por trás das lágrimas atuais.

 

A Duquesa estava furibunda.

É a terceira carta esta semana, e que é que o Serviço Se­creto faz? Nada! — exclamou. Depois voltou as baterias contra Daugherty: — E esse seu FBI, que é que ele faz?

A especialidade do FBI são carros roubados e bolchevi­ques — começou Daugherty.

Mas a Duquesa estava a todo vapor.

A vida do Presidente é ameaçada diariamente. — Ergueu a carta. — O dia de Natal será seu último dia na terra, diz esta aqui, e vocês ainda não conseguiram descobrir quem manda as cartas, quem escreve...

Jess sentiu pena de Daugherty, que agora olhava sombriamente pela janela, para a chuva caindo no gramado sul. Um momento antes, o Monumento a Washington desaparecera numa lufada de neve. O mundo lá fora contraía-se, ao passo que a sala estava quente demais para Jess; mas ele jamais conseguira suportar muito calor. Junto com suas outras mazelas, agora era oficialmente diabé­tico, segundo um lúgubre médico que lhe informou que ele não podia comer, beber, fazer coisa alguma. Sua última alegria na vida era servir de "pára-choque" para Daugherty, como se dizia em Ohio, venerar os Harding e cuidar para que o dinheiro continuasse en­trando. A vida era injusta, ele concluiu. Deveria estar por cima no mundo, e agora o peso do mundo estava por cima dele. Ulti­mamente a saúde de Lucie Daugherty vinha piorando, e Jess era obrigado a cuidar dela durante a noite para que Daugherty pu­desse dormir um pouco. Os três moravam agora no Wardman Park Hotel, e a porta entre o quarto de Daugherty e o de Jess estava sempre aberta à noite, para que Jess pudesse pedir ajuda caso ti­vesse um pesadelo, ou Daugherty pudesse convocá-lo para um papo nas horas perdidas das noites em que tinha insónia. Washington Court House era mais divertido e Jess tentava passar pelo menos uma semana por mês em casa, mexericando com Roxy a respeito de sua vida grandiosa que não era assim tão grandiosa, com a dia­betes e a saúde de Lucie Daugherty.

Laddie Boy anunciou a chegada do Presidente.

— Não conte a Warren! — ordenou a Duquesa, enfiando as cartas dentro da blusa e mostrando os dentes num aterrorizante sor­riso de boas-vindas.

Harding parecia cansado, apesar de seus recentes triunfos. No dia 12 de novembro ele deixara o mundo atônito ao sugerir à Con­ferência de Desarmamento que os Estados Unidos estariam dis­postos a destruir trinta navios de linha. Charles Evan Hughes, se­cretário de Estado, expusera os detalhes do plano secreto de Harding, para grande consternação dos guerreadores presentes. Inglaterra, Ja­pão, França e Itália eram convidados a livrar-se de navios de guerra no total de quase dois milhões de toneladas.

Harding tinha calculado que se uma só palavra do plano vazasse para a imprensa, os expansionistas militares teriam tempo de influenciar a opinião pública contra o desarmamento. Daí a bomba detonada por Hughes na presença de seu afável criador, o Presidente. Harding tinha a teoria de que, uma vez firmada a opi­nião pública, os diversos governos não teriam como recuar.

Harding arriscou e ganhou: o mundo ficou fascinado, e no decurso de uma única manhã ele se tornou a figura mais impor­tante do cenário mundial, e a mais admirada.

Mas W. G. não era o histórico Presidente Harding em tempo integral. Na maior parte do tempo era um político apoquentado, casado com a Duquesa. Agora, na sala de estar, ele se deixou cair numa poltrona junto à lareira e descansou a face na mão direita.

Vou dizer ao Congresso que um único mandato para o Presidente é mais que suficiente. Não agüento mais isto aqui. Hoje em dia ninguém agüentaria. Se eu conseguir que o Congresso limite a Presidência a um só mandato, será que se aplicará a mim?

  1. G. voltou-se para o procurador-geral.

Não — respondeu Daugherty. — Além disso, o Congresso não pode modificar a Constituição. Podem apresentar um projeto de lei pedindo a alteração, mas então caberá aos estados ratificá-lo, e isso leva anos. Se não gosta do emprego, não concorra outra vez.

Warren, você andou comendo sauerkraut de novo? — interrogou a Duquesa com severidade. — Isso lhe dá gases, então você acha que está tendo um ataque do coração e fica todo nervoso.

Em março de 1929, depois de dois mandatos neste inferno, eu estarei com 66 anos, bem velho, e então?

É o sauerkraut: — A Duquesa massageou a nuca de W. G. — Você está todo tenso.

—- Se você vai ficar se sentindo assim quando é o homem mais popular do mundo, como é que vai se sentir quando alguma coisa der errado? — perguntou Daugherty.

  1. G. grunhiu, mais de contentamento, enquanto os dedos for­tes da Duquesa trabalhavam os músculos tensos de sua nuca.

É sério. Estou falando do princípio geral, não de mim. Um mandato de seis anos tornaria possível termos alguns presidentes realmente bons, para variar...

Warren, como você está mórbido!

  1. G. suspirou e fechou os olhos.

Como o tempo todo tenho que pensar na reeleição, exata­mente como todos que já moraram nesta casa, passo a maior parte do tempo, fazendo favores para uns e outros, para que eles me apóiem depois. Bem, não é assim que se governa, subornando as pessoas. É incrível que alguém ainda consiga fazer algumas coisas boas, levando-se em conta a razão por que elas são feitas!

Exceto por mim, você tem o Gabinete mais admirado do século — retrucou Daugherty.

Bem, você compensa uma porção de coisas — fez a Duquesa, num de seus inesperados toques de humor negro. — Agora, Warren, quanto ao Natal...

No momento, porém, em que a primeira dama ia mencionar o assunto das ameaças de assassinato, Harding endireitou-se e anunciou:

-— Harry, vou perdoar Debs. Antes do Natal.

Warren! — A Duquesa ficava cada vez mais contrariada. Odiava igualmente o comunismo, agitadores trabalhistas e Alice Roosevelt Longworth. — Já passamos por isso antes!

Isso realmente acontecera, e Jess tinha tomado parte na trama secreta de W. G. para libertar Debs e todos os outros prisioneiros políticos que Wilson trancafiara. Pouco antes da posse, W. G. pe­dira a Daugherty para ter uma conversa com Debs; se ele não constituísse ameaça aos Estados Unidos, seria indultado. No mo­mento Debs estava cumprindo pena de dez anos numa prisão de Atlanta. Daugherty fez tudo a seu modo pouco ortodoxo: Debs foi colocado num trem para Washington, sem vigilância; Jess o rece­beu na estação Union, e achou-o um velhote amável e perspicaz. Juntos foram ao Departamento de Justiça, onde Daugherty teve uma longa conversa com o principal socialista do país, e não encontrou nele defeito grave além de uma afeição perversa e po­tencialmente perigosa pelo povo em geral. W. G. planejava libertar Debs no Quatro de Julho de 1921, mas o New York Times ficou sabendo de tudo e anunciou, severamente, que Debs "está onde tem que estar. É lá que deve ficar". W. G. fez diversos comentá­rios impublicáveis no sentido de que as simpatias pró-Alemanha do Times tinham causado muito mais dano à causa Aliada do que o Partido Socialista; depois recuou provisoriamente. Agora o tratado de paz com a Alemanha tinha sido assinado e a guerra terminara oficialmente.

Voltamos ao normal — disse W. G., iniciando um jogo de encarar com Laddie, que invariavelmente perdia, com latidos desenfreados e muita correria em volta da sala para fugir ao olhar do dono. — De modo que é muito apropriado fazermos as pazes com nossa própria gente.

Eles vão derrubar o governo, Warren. Ouça o que estou lhe dizendo.

Acho que o Sr. Debs não quer fazer isso — retorquiu Daugherty, tentando apaziguá-la.

A única coisa que ele queria, quando o levei à estação, de, volta para a cadeia, era meio quilo de palitos de dentes — foi a contribuição de Jess à história.

Daugherty sacudiu a cabeça em negativa, o que freqüentemente significava "sim".

Vou redigir o indulto, se é isso que você quer — disse.

É o que eu quero, Harry.

Laddie Boy soltou um uivo de terror extasiado, e saiu em disparada do aposento.

Mas todos eles terão que assinar um compromisso de que vão levar uma vida direita e obedecer as leis...

Não. — W. G. pôs-se de pé e começou a tirar ociosa­mente os pêlos de cachorro de seu paletó. — Esse tipo de coisa é humilhante. Parece que ele está barganhando conosco para ficar livre, e ele não está. Eu estou.

Por quê? — quis saber a Duquesa.

Porque foi para isso que fui eleito: restaurar o país. A guerra acabou...

A guerra do Sr. Wilson. — Assim, a Duquesa cedeu.

Então um dos homens do Serviço Secreto apareceu à porta e com ar constrangido chamou Jess com um gesto. Os outros, preo­cupados com o caso de indulto, não perceberam a partida de Jess.

Nan Britton estava no escritório do Presidente, sentada tranqüilamente num sofá junto à lareira. Jess perguntou-se qual seria o preço corrente pelo assassinato de uma amante presidencial. Cer­tamente a Mão Negra italiana poderia ser convencida a envolvê-la em cimento e arquivá-la em algum rio.

Ah, Jess! Eu simplesmente não consegui deixar de vir, depois daquela linda cerimônia em Arlington, que a gente ouviu per­feitamente bem lá no Madison Square Garden, tão longe!

Quequiá? — respondeu Jess com cordialidade.

Mas ultimamente sentia uma leve náusea todo o tempo, e dores no lado direito, que o médico disse não ser coisa alguma; mas sua urina cheirava a maçã, e esse era um sinal de diabetes. Ele tomava comprimidos, tentava fazer dieta, bebia litros de água.

Bem, Elizabeth Ann está ótima, com a minha irmã. Ainda vou à Escola de Jornalismo de Columbia e eles todos dizem que tenho grande talento como escritora, principalmente quando escrevo sobre emoções.

Isso seria uma chantagem? Jess não sabia. Até então ela não fora particularmente exigente. W. G. sempre a ajudara financei­ramente, e ela fizera várias visitas à Casa Branca em segredo, como essa. Um dos agentes, Jim Sloan, estava em contato constante com ela, e sempre que ela quisesse ver W. G., falava com Sloan. No verão anterior W. G. mandara buscar Nan — pelo menos foi o que ela contou a Jess. Encontraram-se num dos escritórios, num domingo como esse. Mas não tinham lugar para fazer amor. Os guardas que passavam regularmente pela frente das janelas do es­critório oval tinham uma visão total do que acontecia lá dentro. Finalmente W. G. encontrara um armário por perto e ali dentro os amantes contrariados pelos astros — melhor dizendo, pela Du­quesa — tornaram-se um só por entre sobretudos e guarda-chuvas, um lugar pouco menos assustador para Jess do que seu próprio armário tão sinistro de Washington Court House.

Mas andei pensando seriamente sobre o futuro.

Nan olhou Jess nos olhos, e ele se perguntou o que W. G. teria visto nela. Era bonitinha, apenas; nada mais que isso. Por outro lado, não havia dúvida de que estava apaixonada por um homem com idade para ser seu pai, e que já o amava muito antes da Presidência; de fato, durante a maior parte de sua vida, Jess perguntou-se como seria ser amado assim.

Fiz umas visitas aos estúdios de cinema lá em Nova York, e eles acham que mostro um potencial considerável para representar, foi o que disseram, porque, disse o Sr. Hirsham, que tra­balha na Cosmopolitan Pictures, tenho as emoções reprimidas que sempre transparecem na tela, como Pola Negri.

Nan... — começou Jess, tomando cuidado para não pa­recer assustado demais. — A Cosmopolitan pertence ao Sr. Hearst, cujos jornais fariam qualquer coisa para descobrir sobre você e o Presidente.

Não seja bobo, Jess. Como poderiam descobrir? Nós não vamos contar a eles. Então, quem vai? De qualquer maneira, re­presentar parece facílimo, se a pessoa tiver essas emoções para a câmera mostrar, como uma radiografia de certo modo. Bem, eu tenho mesmo emoções reprimidas.

Começou a chorar suavemente. Jess observou que ela tomava cuidado para não deixar que os olhos ficassem vermelhos, nem borrar a maquilagem.

Pronto, pronto — fez Jess, em tom avuncular. Então, quando ela fez uma pausa no desempenho, ele perguntou: — Por que aquele agente novo foi me procurar há pouco?

Porque Jim teve que ir para casa ria última hora. De modo que pediu ao amigo para me trazer. Fingi que vim para falar com você sobre negócios em Ohio. Jim vai deixar o Serviço Secreto, sabia?

Sabia, sim — afirmou Jess.

Ele próprio tinha conseguido um emprego para Sloan como gerente de Samuel Ungerleider em Washington. Ficava tudo em família, ele explicara a Daugherty, que respondera com um rosnado. Decerto seria impossível deixar Jim Sloan solto no mundo com tudo que ele sabia sobre a vida particular do Presidente.

De qualquer maneira, de agora em diante devo. escrever aos cuidados de Arthur Brooks, o criado particular, foi o que Jim me disse, e não me importo nem um pouco. Bem — continuou, agora recuperada, os olhos brilhando —, pode ir dizer a ele que estou aqui?

Enquanto Jess se punha de pé, Nan atravessou o aposento è foi até a mesa do Presidente, onde pegou um retrato em miniatura da mãe de W. G.

Ele gostava muito dela, todo mundo diz. Não está linda aqui? Como a neta, Elizabeth Ann.

Jess voltou para a sala de estar do andar superior. Outras pessoas tinham vindo reunir-se ao Presidente. O general Sawyer, franzino e arguto, dava instruções à Duquesa, quê escutava com inteira docilidade, pois ele era o único que compreendia o rim que lhe restara e seus caprichos. Charles Forbes estava deliciando o Presidente e Daugherty com histórias entusiasmadas; o secretário do Interior estava sentado junto à lareira, bebendo chá com ex­pressão de desagrado. Depois de muito debate, o Presidente deci­dira que em seus alojamentos particulares — especificamente os quartos de dormir da Casa Branca — a lei que proibia o álcool poderia ser desobedecida, mas devia, ser cumprida nas partes da Casa Branca que obviamente pertenciam à nação. Não chegava a ser uma concessão, mas tampouco a Proibição chegava a ser uma lei. Mesmo assim, W. G. levava muito a sério a dignidade de seu posto, e não faria qualquer coisa inconveniente, se pudesse evitar. Agora, naturalmente, não poderia evitar: logo estaria com Nan den­tro do armário do vestíbulo.

Jess simplesmente encarou o Presidente até que este o percebesse. Calmamente, entre sorrisos, W. G. deixou o grupo que ria com Charles Forbes e dirigiu-se a Jess, que cochichou:

Ela está no seu escritório.

O sorriso de Harding não desapareceu; mas o olhar tornou-se alerta. Olhou de relance para a Duquesa e o general Sawyer; ne­nhum dos dois tinha consciência de qualquer coisa no mundo ex­ceto o rim restante. Então o Presidente e Laddie Boy saíram da sala. Só Daugherty percebeu. O olho azul encarou Jess, que assen­tiu. O olho castanho piscou enquanto Daugherty assentia, signifi­cando "não".

Jess sentou-se ao lado do secretário do Interior, que disse:

Jess, quer saber o que é que há? Bem, há que não vejo a hora de me mandar daqui e voltar para o Novo México, para casa. — Fali tossiu longamente num lenço enorme. — Bronquite — explicou. Ergueu a mão nodosa. — Artrite. E agora pleurisia, disseram.

Pergunte ao Dr. Sawyer.

Prefiro consultar um veterinário. — Fali contemplou o franzino médico com desfavor. — Tenho também um buraco no pulmão, que não ajuda as coisas. Estou sempre pedindo ao Presi­dente para me liberar, mas ele diz que não ficaria bem, tão no início do governo. Agora fiquei entalado com as reservas navais de petróleo porque Denby não quer se amolar com elas, com to­dos os vigaristas do país tentando botar a mão em todo esse pe­tróleo do governo.

Fali estava cheio de queixas, e Jess queria ouvir todas, porque tinha — quem não tinha? — amigos muito interes­sados em adquirir aquelas terras petrolíferas que pertenciam ao governo. A Marinha acreditava implicitamente que, como uma guerra contra o Japão fatalmente estouraria mais cedo ou mais tarde, os navios de guerra americanos precisavam ter acesso imediato a seu suprimento de combustível. De modo que o Presidente Wilson se­parara terras de reserva petrolífera na Califórnia e no Wyoming. Agora a paz retornara; e as esquadras do mundo, em vez de cres­cerem, estavam diminuindo, graças a Harding, e o obscuro secretário da Marinha, Denby, passara o problema para o Departa­mento do Interior um presente de grego, segundo Fali.

Agora, desde maio que o problema todo cai em cima de mim. Denby ficou de fora, e eu dentro. Esses favores... Favores especiais! resmungou Fali dentro do vasto bigode, sacudindo a cabeça melancolicamente.

Bem, o governo pode ter um bom lucro leiloando essas reservas. É uma solução aventou Jess, o pulso batendo rapi­damente; dessa vez não era a diabetes, e sim o dinheiro, que afe­tava seu sistema nervoso.

Se eu puder respondeu Fali misteriosamente. Fizemos uma licitação aberta no verão passado para Elk Hills, na Califórnia. Não havia grande coisa para nós. Mas ihuito petróleo... muito dinheiro para o ganhador.

Edward Doheny.

Fali olhou para Jess com certa surpresa por alguém ter se preocupado em acompanhar um assunto tão insignificante.

Ele mesmo disse, lacônico. —- O grande problema não é o petróleo. São aqueles malditos conservacionistas, como o jovem Roosevelt.

Fali atacou o subsecretário da Marinha, que, como seu primo Franklin e seu pai Theodore, ocupava o lugar da família no De­partamento da Marinha. Jess ficou espantado com a veemência de Fali, considerando-se que o senador era um republicano de Roose­velt, antigo soldado da cavalaria, um verdadeiro progressista, fosse isso o que fosse.

Então anunciou-se o jantar, uma refeição informal para os amigos particulares de W.G. no governo. Como Jess não era con­vidado para esses jantares com a freqüência que desejaria, não se importou de ser colocado junto ao conselheiro-geral da Seção de Veteranos, Charles F. Cramer, um californiano incolor cuja prin­cipal distinção era ter comprado a casa dos Harding na Avenida Wyoming. Além disso, admirava imensamente seu patrão, Charles Forbes, um homem de quem tanto Daugherty quanto o Dr. Sawyer desconfiavam, para surpresa de Jess, já que Daugherty jamais desa­provava alguém e o único interesse do médico em Forbes seria no terreno médico, envolvendo todos aqueles hospitais que, dizia- se, não apenas eram de primeira classe como também altamente lucrativos. Jess suspeitava de um certo grau de ciúmes por parte de Daugherty: Charles sempre fazia W. G. rir, Daugherty geral­mente o fazia franzir o cenho.

Nesse momento, W. G., de rosto vermelho, ria de uma das piadas de Charlie. Presumivelmente o encontro com Nan fora satis­fatório, embora breve. Cramer voltou-se para Jess:

Onde está morando agora?

Parecia que todos sabiam que a casa de Ned McLean na Rua H tinha sido abandonada no mês anterior, quando Daugherty, Lucie e Jess mudaram-se para 0 Wardman Park.

Bem, estou acampado com o general Daugherty — informou Jess, sentindo prazer em mencionar o título do amigo.

Pensei que você estivesse agora na Rua K — retrucou Cramer, não tão obtuso quanto parecia. — Na casa verde.

Jess sacudiu a cabeça.

Ali mora meu velho amigo Howard Manning. Estabeleceu- se lá, fazendo negócios, diz ele. Eu o visito de vez em quando.

Aquilo era informação suficiente, Jess decidiu. A operação no número 1.625 da Rua K ia muito bem. Jess e dois velhos amigos eram agentes da sedenta Companhia Geral de Drogas. Também faziam todo tipo de negócios com homens desesperados que que­riam imunidade para não serem processados ou, simplesmente, in­formações constantes dos arquivos do Departamento de Justiça, dos quais Jess, em seu escritório no sexto andar, tinha a chave. Porém não importava quantos negócios eram realizados na casinha verde na Rua K ou no escritório de Jess no Departamento de Justiça. Daugherty, de propósito, não era informado de tudo, ao passo que o Presidente jamais desconfiava que havia algo errado além de um clamoroso tráfico de bebida em noites de pôquer.

Meu Deus, como entra dinheiro! — Jess cantarolou.

 

Blaise olhou pela janela da Laurel House e, como Deus antes do Éden, ficou satisfeito com a sua criação. A casa em si era con­fortável mas não grande demais para o campo da Virgínia. O es­tilo falsamente georgiano tendia à simetria, assim como Blaise, que instintivamente, como Deus ao criar Adão, fazia as coisas em pares — um obelisco de mármore à esquerda do gramado combinava com o da direita. A casa da piscina, agora visível através das ár­vores despidas de folhas no inverno, era igualmente equilibrada: o pavilhão da, esquerda era dela, o da direita era dele. Só as ár­vores originais puderam escapar da paixão binária de Blaise; erguiam-se como cortes e arranhões negros, feitos no céu de um cin­zento escuro, invernal.

Atrás das árvores, bem abaixo do nível do gramado e da casa, o veloz rio Potomac lançava-se sobre a profusão de pedras que ladeavam as margens íngremes do rio, um sinal da falta de arte e de simetria da natureza. Aqui e ali, por entre as rochas, a água congelara em sólidos lençóis brancos, e à noite, na cama, Blaise gostava de escutar os rangidos e os estranhos estremecimentos do gelo que se deslocara pela ação da água que descia das Grandes Cataratas.

Frederika estava tão encantada de morar no campo que aproveitava qualquer chance para atravessar o rio na ponte Chain e visitar amigos em Washington, sabendo que um paraíso terrestre a aguardava no lado da Virgínia, com seu jardim bem planejado e bosques selvagens cortados por trincheiras da Guerra Civil, pois a Casa dos Loureiros, como se chamava a propriedade, ficava na estrada para Manassas onde por duas vezes o exército da União perdera para os confederados em Buli Run. Perto das estufas — construídas originalmente em L, até Blaise reconstruir a base do L, transformando-o num T bem equilibrado -— havia uma cabana de escravos completa, inclusive com o escravo original. Embora liber­tado muito tempo antes, ele nunca abandonara a cabana onde nas­cera: pertencia à propriedade, escravizando assim os proprietários, como já fora escravo deles. Blaise mantinha o ancião como uma espécie de faz (quase) tudo e uma fonte de folclore, tanto confe­derado quanto africano. As duas coisas, Blaise concluíra, eram quase iguais. O ancião tinha um discurso que gostava de recitar para quem quisesse ouvir: sobre os bacanas que tinham vindo de Wash­ington para assistir o exército da União derrotar os rebeldes e ti­nham passado na porta da cabana dele — ele tinha uns sete ou oito anos, e os aplaudira. "Mas estavam completamente diferentes à noite, fugindo disparados pra casa." Era um filho leal da Vir­gínia, e odiava todos os ianques exceto Lincoln.

Frederika entrou no quarto dele:

— Feche esta janela, está gelado.

Usava um vèstido de verão, impróprio para um almoço de inverno, mas o âlmoço era uma ceia de Natal no palácio dos McLean na Rua H e qualquer fantasia ficava bem naquela casa de fantasia. Enid e Peter entraram no quarto de Blaise atrás da mãe, e Peter subiu na perna do pai enquanto Enid reclamava que não era justo abandoná-los no dia de Natal, apesar da orgia ma­tinal de abertura de presentes na sala de estar recendendo a pinho; lá fora montada uma árvore de Natal, a base rodeada por um material grosso e branco, parecendo neve, que continha algo muito parecido com vidro moído que grudara-se à pele de Blaise que fora o Papai Noel —, fazendo com que ele se retorcesse com o desconforto.

Voltaremos cedo para casa, meus amores. Frederika era admiravelmente paciente e serena com qualquer criança, por mais difícil que ela fosse. Vamos jantar juntos. A Srta. Claypole vai levar vocês para andar de trenó, se houver neve suficiente.

Há mais que suficiente perto dos estábulos informou Enid, uma criança morena e de aparência encantadora.

Peter assentiu, mastigando um pirulito vermelho e branco tirado da árvore e que não era para ser comido. Peter estava sem­pre com fome. Frederika préocupava-se; Blaise, não que as crianças se divirtam! Mais tarde não teriam muito divertimento, ele dizia, como só um homem cuja vida fora inteiramente fácil e bastante feliz poderia dizer.

Desceram em procissão a escadaria entalhada e chegaram ao saguão decorado com azevinho e visco. A véspera do Natal tinha sido comemorada com amigos e parentes. Apesar da tentativa de última hora de Peter de fazer o pai ler para ele o capitão Marryat, Blaise e Frederika conseguiram partir sem lágrimas.

A neve cobria o solo em rajadas. A estreita estrada para a ponte Chain, estava perigosamente congelada, e a adição de sal mineral à sua superfície não ajudara muito. Frederika mantinha-se alerta enquanto o motorista fazia as curvas como Um esquiador experiente. Blaise, que não tinha medo de acidente ou morte? — sentava-se recostado para trás, apreciando o calor da coberta de vicunha.

Na ponte Chain, Frederika relaxou, apesar do alerta fornecido por um Ford Modelo A que derrapara e atingira a grade. Abaixo deles o rio estava cheio de pedaços de gelo. O céu acima da ci­dade estava amarelo como um diamante barato.

Evalyn disse para não contarmos a ninguém, mas este é o dia em que o Presidente será assassinado.

Na casa dos McLean?

— Se ele chegar lá inteiro... É muito excitante — respondeu ela em tom tranqüilo.

Quem quereria matar Warren Harding?

O vice-presidente, imagino. Dizem que ele nunca fala, mas quando estou sentada ao lado dele num jantar ele não pára de falar.

Você causa esse efeito nas pessoas.

Não em você.

É uma condição do casamento: longos silêncios sem sentido.

Estavam no meio da cidade quase deserta quando Frederika perguntou:

Você não acha que vão tentar, acha?

Quem vai tentar o quê?

Blaise já estava em seu mundo próprio, que, naqueles dias, envolvia Paris, a esposa de um amigo e um quarto particular no Prudhomme onde, durante dois séculos, escreviam-se as iniciais na vidraça da janela com diamantes — brancos ou azuis, mas nunca amarelos.

Os assassinos, seja quem for. O Serviço Secreto leva tudo isso muito a sério. Por isso é que ficaram contentes de tirar o Presidente da Casa Branca e levá-lo para a casa da Rua I, onde dizem eles, é mais fácil vigiá-lo, mas eu duvido.

Tenho certeza de que Evalyn e Ned escreveram as cartas, só para garantir a presença dos Harding na ceia de Natal.

Frederika sacudiu a cabeça. Não estava convencida.

Estão com ele o tempo todo. Talvez os anarquistas tentem explodir a casa, como fizeram com a do Sr. Palmer.

Blaise foi recebido carinhosamente por seu rival no jornalismo. Ned estava num novo regime, que ele denominava "beber à in­glesa". Isso envolvia um primeiro drinque às ll:00h da manhã, e depois continuar bebendo a intervalos regulares. O resultado até então era satisfatório. Embora ele nunca ficasse bêbado, tampouco ficava sóbrio, bem à maneira inglesa, conforme Millicent Inverness comentou com Blaise, ela própria uma anglófila declarada, nessas questões.

Evalyn, enfeitada de diamantes azarentos, fazia o possível para competir com o que devia ser a maior árvore de Natal de Wash­ington, cuja estrela atingia o teto da sala de estar, que por sua vez era três vezes mais alta que qualquer outra sala de estar da cidade. O esplendor era o estilo dos McLean, e os Harding pare­ciam tão à vontade quanto deslocados naquele palácio.

Blaise sentou-se diante do Presidente na frente da lareira, enquanto a meia dúzia de senhoras rodeavam Evalyn.

Bem, Blaise — fez Harding, segurando um copo de uísque bastante diluído em água —, não consigo imaginar um lugar me­lhor para ser assassinado.

Ou uma data tão auspiciosa.

Melhor que o Dia dos Bobos — retrucou Harding com uma risadinha.

Blaise nunca conseguira calcular a inteligência do Presidente. Harding não lia livros, e a arte o deixava indiferente, a não ser os shows de garotas no teatro do Gayety Burlesque, onde ele gos­tava de entrar despercebido e ocupar um camarote, para alegria do excitado gerente. Mas cultivar as artes não era sinal de inte­ligência prática. O sucesso espantoso da carreira de Harding não podia ser atribuído apenas à sorte ou à simpatia. Sem sorte ou simpatia, Harding provavelmente não teria uma carreira política; mas ele tinha sorte, simpatia e mais alguma coisa, difícil de ser definida, por ele ser tão insistentemente modesto.

— O Sr. Hughes pegou todo mundo de surpresa — disse ele com satisfação, como se o secretário de Estado fosse o único res­ponsável pelos termos da Conferência de Desarmamento. — Achei que o almirante Beatty ia ter um enfarte quando o Sr. Hughes olhou bem para ele e lhe disse quantos navios a Inglaterra teria que destruir.

Harry Daugherty juntou-se a eles.

Com licença? — pediu ao soberano, que assentiu. Daugherty sentou-se ao lado de Blaise. — Estamos cercados pela im­prensa, Sr. Presidente.

No caso de eu me juntar a McKinley, Garfield e Lincoln lá no céu, quero que Ned e Blaise sejam testemunhas das minhas últimas horas na terra, sem omitir qualquer detalhe hediondo, ex­ceto um. — Ergueu o copo. — O povo jamais deverá saber que morri violando a 18ª Emenda. Isso não seria apropriado.

Então o Harding editor do Marion Star sobrepujou-se ao Presi­dente, e Blaise achou-o. ao mesmo tempo culto e interessante em seu campo comum. Enquanto conversavam, Blaise tinha consciência dos homens do Serviço Secreto no saguão e no aposento contíguo. A atenção deles era dividida irmamente entre vigiar o Presidente e observar todas as entradas e saídas concebíveis. O secretário da Guerra, John W. Weeks, teve permissão para entrar, seguido pelo senador Curtis, de Kansas, meio índio, com olhos negros. Faziam parte do que Harding denominava seu gabinete de pôquer. Blaise achou o Presidente uma curiosa mistura de imobilidade quase bu­dista, e a intervalos regulares, uma inquietação de garoto pequeno. Ele devia jogar golfe. Devia jogar baralho, principalmente pôquer. Devia viajar o máximo que o cargo lhe permitia. O movimento cons­tante era-lhe uma distração necessária. No entanto, com a mesma facilidade conseguia permanecer imóvel como uma estátua, sorri­dente e feliz. Feitas as contas, ele era um mistério para Blaise, mas nem por isso menos agradável.

Como se tratava do dia de Natal, não se falou de política, exceto um comentário amargo de Curtis de que Borah estava ou­tra vez descontente.

Está furioso porque o senhor está recebendo todo o cré­dito pela Conferência de Desarmamento, que devia ser dele.

Que é que posso fazer? — perguntou Harding, parecendo genuinamente preocupado.

Nada — respondeu Daugherty. — Não há como agradar aquele filho da puta.

De qualquer maneira, temos os votos. — Curtis piscou um olho negro para Blaise, com um efeito desconcertante. — Seja qual for o tratado que o senhor conseguir, o Senado vai apoiá-lo.

Daugherty dirigiu-se a Harding:

Graças ao senhor ter feito Lodge delegado. Foi uma ins­piração, Sr. Presidente.

Concordo — fez Harding, com uma risadinha. — Na verdade, fui literalmente inspirado pela recusa do Presidente Wilson em deixar que ele participasse da Liga das Nações. Sabe — Harding olhou de relance para o agente do Serviço Secreto no saguão —, quando Wilson e eu estávamos indo de carro da Casa Branca para o Capitólio, eu estava tentando puxar conversa, o que já não era fácil quando ele estava bem, e muito mais difícil com ele tão doente. De qualquer maneira, não sei como, entrei no assunto de elefantes; lá estávamos nós, descendo a Avenida Pennsylvania e eu contando a ele que os elefantes se apaixonam por seus trata­dores e ficam com ciúmes, e, no caso daquela elefanta, quando o tratador morreu,, ela também morreu de tristeza. Então olhei para Wilson e ele estava chorando; achei que era um final estranho para uma Presidência. Um início estranho para mim, também, eu acho.

O jantar de Natal foi servido com a costumeira prodigalidade dos McLean. Ned parecia algo estupidificado por seu novo regime alcoólico, mas não embaraçou Evalyn, que interrogou Blaise em detalhe a respeito de Caroline.

Adorei o Rainha Mary da Escócia e não entendo por que todos falaram tão mal dele.

Blaise murmurou algo a respeito da inveja; na realidade, ele próprio sentia inveja do sucesso de Caroline no cinema, e per­guntava-se porquê. Não que tivesse a mais longínqua ambição nesse campo; no entanto, o fato de mais uma vez ela lhe ter pas­sado à frente era uma fonte de irritação. Felizmente houve o re­cente fracasso dela, que lhe tinha sido agradabilíssimo. Ele tivera o maior prazer em ler todas as críticas americanas. O veredito: finalmente ela estava velha demais. Naturalmente ele era mais velho que ela, mas não vendia seu rosto nas telas, como ela.

Onde é que Caroline está agora?

Não sei. Acho que em Paris. Ela reabriu Saint-Cloud no verão, mas aquele não é um lugar para se passar o Natal sozinho. Imagino que esteja com amigos.

Não havia um diretor...? — começou Evalyn, ansiosa por um mexerico.

Dois diretores — corrigiu Blaise, agora compulsivamente desleal. Mas não creio que ela esteja com um deles. Pode estar fazendo um filme em Paris, onde a idade avançada é uma van­tagem acrescentou, perguntando-se se estaria lançando olhares lúbricos e descontrolados para Evalyn, que agora queria discutir Mary Pickford. Todo mundo queria discutir Mary Pickford!

Se não quiser jogar pôquer com o Presidente, vou exibir o novo filme dela, O pequeno Lord Fauntleroy.

Vou assistir declarou Blaise, que detestava o pôquer ainda mais que detestava a namorada da América.

Fiquei conhecendo toda a família dela Evalyn afirmou.

Ela estava mais envolvida com Hollywood do que Blaise suspeitara. Porém ultimamente todo mundo tinha duas vidas, a pró­pria e a vida nos filmes. Embora Blaise fizesse o impossível para ignorar o novo e triunfante mundo de Caroline, achava-se incapaz de não ler qualquer mexerico a respeito dos artistas, e de vez em quando exibia filmes na Casa dos Loureiros quando ele e Frede­rika estavam sozinhos — suprema perversão.

De qualquer maneira, são todos uns bêbados, a turma toda, inclusive Mary, o irmão dela, Jack, e aquela maravilhosa velhota irlandesa que é a mãe dela, e que, logo antes da Proibição, saiu e comprou uma loja de bebidas inteira, levou todas as garrafas para o porão e trancou a porta para Jack não entrar.

Hoje em dia eles são os reis, esses Fairbanks — fez Blaise, sucumbindo novamente a Hollywood.

Caroline levara-o para jantar em Pickfair, onde a ascensão social era assunto constante. Títulos de nobreza pipocavam à mesa, e membros de famílias reais eram chamados pelos apelidos. Natu­ralmente o rei e a rainha de Hollywood estariam interessados em seus pares. Avisado da queda da Srta. Pickford pela garrafa, Blaise observara-a atentamente, Mas ela exibia a mesma compostura que mostrava na tela, e a impressão que dava na vida real era a de uma garotinha um tanto matronal, ao passo que Fairbanks, agora que se firmara como astro e espadachim atlético, tinha a tendência de trotar pela sala discursando sobre a força, tanto, física quanto moral. A respeito de divórcio, um assunto delicado, ele anunciara: "César e Napoleão eram divorciados, e ninguém pode dizer que eles eram fracos!" Era assim que ele se classificava.

A sogra de Fairbanks era mais divertida, particularpiente quando confidenciou a Blaise que "Mary dá o melhor de si como atriz quando tem um bom diretor por cima".

Depois do jantar, os convivas, saciados, acomodaram-se por perto da árvore de Natal, esperando o Presidente ser assassinado. Os homens falavam em voz baixa sobre o escândalo de Fatty Arbuckle — outra vez Hollywood. Harding ficou particularmente fas­cinado pelos detalhes, que o secretário da, Guerra conhecia per­feitamente.

Durante uma festa muito animada em San Francisco, o imensamente gordo comediante Fatty Arbuckle, um ex-bombeiro hidráu­lico, como a imprensa não se cansava de mencionar, jogou-se sobre uma jovem e estourou-lhe a bexiga — pelo menos era o que se dizia. Diariamente, a imprensa, inclusive Ned McLean e Blaise, trazia histórias horrendas sobre a nova Sodoma e Gomorra, enquanto Hearst exortava diariamente o Todo-Poderoso, senão a polícia, a destruir aquela cidade do planalto e transformar todos os seus ha­bitantes, exceto Marion Davies, em sal. O desafortunado Arbuckle tinha finalmente atraído a ira coletiva da América Puritana sobre os pecaminosos astros do cinema que, depois de desempenhar toda sorte de imoralidades na tela, quando fora da tela punham-se a romper as bexigas de garotas virginais, e coisas piores. O espírito patriarcal que deixara todos os americanos sem álcool estava agora novamente à solta no país, e Blaise envergonhava-se de fazer parte dele. Mas não tinha escolha: cada jornal acompanhava os outros até que um caso finalmente se esgotasse. Esse não parecia estar perto de seu término. À parte Arbuckle e seu julgamento, havia cada vez mais histórias de artistas viciados em drogas, e todos concordavam que era preciso fazer alguma coisa.

Harding repetia o clamor popular, sem muito entusiasmo.

O pessoal do cinema quer que o governo intervenha e os policie. Mas como podemos fazer isso? Não é a nossa função. Policiem-se vocês mesmos, foi o que eu disse ao Sr. Zukor.

O senador Curtis comentou que o diretor-geral dos Correios tinha sido convidado para tornar-se supervisor do cinema e pro­teger a moralidade de todos. Curtis deu uma risadinha.

Vocês podem imaginar Will Hays com todas aquelas star-lets sentadas no colo dele? comentou.

O Presidente, acendendo sub-repticiamente sèu primeiro charuto enquanto a Duquesa estava de costas, declarou:

Tenho certeza de que Will é muito controlado e não fará alguma coisa imprópria, se aceitar o trabalho.

Isso era novidade.

Ofereceram o emprego a ele? Blaise perguntou.

Harding assentiu.

Mas não contem a ninguém por enquanto. Ele ainda não decidiu. E naturalmente não quero que ele saia do Gabinefe, prin­cipalmente agora.

Blaise sabia que Fali também queria demitir-se, e duas demissões ao mesmo tempo não seria... próprio, para empregar uma das palavras favoritas do Presidente.

Daugherty perguntou se algum filme já encorajara alguém a levar uma vida de crime ou vício. De maneira geral, os homens concordaram que isso era improvável, a não ser que o pecador já tivesse tal predisposição. Mas Curtis ofereceu unia variação interessante:

Não há dúvida, para mim, que filmes, peças e livros dão idéias às pessoas, inclusive idéias criminosas. Incriminação falsa, por exemplo.

Todos os políticos reunidos junto à árvore de Natal estremece­ram como se fossem um só. Harding assentiu gravemente, e disse:

Não há dúvida de que um daqueles homens do petróleo que o senador Gore pão quis ajudar inspirou-se naquela peça, Púrpura não-sei-de-quê.

Púrpura intenso — completou Daugherty.

Que foi que aconteceu, afinal? — perguntou Blaise, que tinha apenas uma vaga lembrança do julgamento do senador cego.

Há alguns anos, havia essa peça, muito popular — ex­plicou Curtis. — Todo mundo foi assistir. Um bando de gângsteres incriminou um homem inocente, usando uma mulher. Bem, um dia uma mulher procura o senador Gore para pedir uma vaga em West Point para seu filho, e pede que ele vá ao hotel dela, pois é aleijada. Ele vai, acompanhado do secretário; encontraram-se todos no saguão do hotel. Naturalmente, Gore é cego e não con­segue enxergá-la ou perceber o que ela estava planejando quando chamou-o para o mezanino do hotel. Em vez de levá-lo para lá, ela o leva para o quarto, rasga o próprio vestido e começa a gritar "Socorro! Estou sendo estuprada!", e um par de bandidos contra­tados pelo pessoal do petróleo entra correndo e diz: "Nós o pegamos!"

Podia acontecer com qualquer senador — comentou Harding em tom melancólico.

Certamente podia acontecer com qualquer senador cego — precisou Weeks.

Daugherty foi ainda mais preciso:

-— Principalmente se os sujeitos que querem pegá-lo assistiram Púrpura intenso.

Quando Gore recusou-se a ser chantageado, foi acusado de tentativa de estupro. Ele então insistira em submeter-se a julga­mento na cidade de Oklahoma. O caso todo fora profundamente melodramático, Blaise lembrava-se agora, até que surgiu uma viúva de Boston que observara tudo da janela de seu hotel. Gore foi absolvido.

Provando que problemas com mulheres nunca tiraram votos de um homem — afirmou Harding.

A não ser que a bexiga dela estoure — fez Curtis.

A Duquesa e Evalyn juntaram-se aos cavalheiros. Evalyn disse:

Conversei com o Serviço Secreto, e eles acham que o lugar mais seguro da casa é a saleta junto ao meu quarto. Ned já está lá em cima, com o baralho.

Tome cuidado, Warren! — implorou a Duquesa, assustada.

Ora, querida, sempre tomo cuidado.

Blaise ficou com as senhoras para assistir O pequeno Lorde Fauntleroy. Millicent, condessa de Inverness, adormeceu, e pôs-se a roncar. A Duquesa mostrava-se inquieta, e Evalyn de vez em quando segurava-lhe a mão. Blaise devaneava. Apenas Frederika prestava atenção nas aventuras de uma robusta matrona de trinta anos que fazia de maneira muito sinistra o papel de um rapaz púbere.

A princípio Blaise achou que uma bomba explodira no segundo andar. Todos se puseram de pé num salto, exceto a Sra. Harding, que escorregou da cadeira e ficou estirada no soalho como uma estranha criatura marinha.

-— Florence! — chamava Evalyn, puxando a Sra. Harding para que esta ficasse de pê.

Eu sei. Sei o que aconteceu. Estava escrito nas estrelas. Levem-me a ele. Agora. Aconteceu. Tudinho. Exatamente como ela disse. Ai, meu Deus!

A Sra.. Harding estava agora no corredor, onde um homem do Serviço Secreto tranqüilizou-a, sorrindo:

O vento bateu uma porta. Só isso.

Lá do alto, ouviram a voz melíflua de Harding:

Não se preocupe, Duquesa. Não me acertaram.

A Sra. Harding, com ar feroz, voltou para a sala.

Não vejo a graça.

Pouco digno — disse Blaise, deliciando-se com a outra palavra favorita do Presidente. Depois voltou-se para Frederika: — Acho que ele está a salvo.

Deram boa-noite à Duquesa, que agora estava a todo vapor. Como tantas mulheres fortes de certa idade, sua mente consciente fora gradualmente substituída pela inconsciente; ela agora tinha o costume de dizer tudo que pensava, mesmo quando, na verdade, não estava pensando coisa alguma.

Sei o que está acontecendo, entende? — disse, olhando para Blaise com os olhos vazios. — Sempre sei. Isso não quer dizer que eu possa fazer alguma coisa. Mas tento. Deus sabe como eu tento. O pior é que estão todos nisso. Até mesmo Laddie Boy, que fica sentado na frente da porta.

Evalyn levou a Sra. Harding de volta para a árvore de Natal.

Que história foi essa? — perguntou Frederika, intrigada.

Histeria — disse Blaise. — Coitado do Harding! Acho que ela é maluca.

Coitada da Duquesa, tão maltratada!

Como assim?

Ele tem amantes — anunciou Frederika, puxando a co­berta sobre os joelhos enquanto o enorme carro deslizava em direção a Georgetown.

Por que será que ela se importa? Afinal, ele está com ela.

Era pouco característico de Frederika preocupar-se tanto com

um problema que não- era seu.

Acho que ele não gosta dela, e ela não sabe o que fazer sobre isso.

A não ser fazer cenas.

Chagrin d'amour. Acho que ter só um não ajuda muito.

Um quê?

Rim — fez Frederika, com uma alegria impossível de ser analisada.

 

A Srta. Kingsley sempre deixava Caroline de bom humor. Para começar, era fã genuína de Emma Traxler. Além disso, era enci­clopédica: nada havia que ela não soubesse, quando se tratava de quem estava fazendo qual filme e por quê. Caroline sempre lhe servia chá, e a Srta. Kingsley sempre tornava uma forma de arte o ato de tirar as luvas enquanto discutia as sutilezas do chá in­diano em contraposição ao chinês.

A Traxler Productions atravessava uma boa fase. O lançamento de dois faroestes já tinha recuperado o dinheiro perdido com A rainha Mary.

— Mas quando é que você pretende voltar à frente das câmeras?

Os olhos bondosos da Srta. Kingsley estavam fixos na orelha esquerda de Caroline, onde o bisturi do cirurgião cortara; a pele então fora puxada e costurada, seguindo a linha natural onde a orelha ligava-se à cabeça. Com os cabelos puxados para trás e em plena luz, a cicatriz ainda era, aos olhos de Caroline, uma ferida horrível, lívida e brilhante. Mas o cirurgião parisiense assegurara- lhe que a cicatriz logo desbotaria e ninguém iria notá-la.

Depois de muito nervosismo, Caroline entrara numa clínica nos arredores de Paris, e a coisa fora feita no início do inverno. Agora ela achava seguro exibir seu rosto restaurado — senão exatamente novo. Tivera sorte. À parte as histórias de horror sobre operações que não tinham dado certo, muitas delas tinham dado tão certo que a pessoa que procurara a beleza eterna ficava atônita ao cons­tatar que ela — ou ele — tinha realmente ficado bela, ganhando inesperadamente o rosto de outra pessoa. Caroline parecia-se com Emma em seus melhores dias, que era exatamente igual, embora não fosse igual, à Caroline original, havia muito apagada pelo tempo e pela glória de Emma — e agora pela cirurgia.

Não "tenho planos — disse ela, que tinha muitos planos.

Foi tão agradável estar de novo em casa na...

Alsácia-Lorena. Eu sei.

A Srta. Kingsley era muito hábil em decorar todas as men­tiras que os artistas lhe contavam. Quando certa vez Mabel Normand comentara qualquer coisa a respeito de sua infância em Staten Island, a Srta. Kingsley lembrara-lhe delicadamente que ela tinha nascido e crescido em Beacon Hill, Boston. Mabel prometeu não cometer tal engano de novo.

Ah, a saudosa Alsácia-Lorena! — suspirou Caroline. — Sim. Fiz um tratamento de águas, lá, e perdi muito peso.

Percebo. Você parece espantosamente magra e descansada.

Essa era a expressão em código da Srta. Kingsley para "cirurgia plástica". — Pronta para aparecer diante das câmeras novamente.

Em código: a estrela agora está pronta para enfrentar uma nova carreira com um rosto novo em folha, tendo perdido o an­tigo para a malvada entidade do Tempo.

Talvez. Estou conversando com William Desmond Taylor a respeito de um novo projeto. Na verdade, a vida de George Sand.

Vai usar calças? — A Srta. Kingsley franziu o cenho para o seu bloco de anotações.

Acho que é preciso, às vezes. Mas ela usava vestidos com mais freqüência.

Francamente, detesto mulheres em roupas de homem. O Sr. Hearst tem uma paixão bastante doentia por essa... perversão; infelizmente não há outro nome para isso. — A Srta. Kingsley ficou cor-de-rosa. — Já conversei com a coitada da Marion, que diz, naquele seu jeito engraçadinho, que é o que "Pops quer".

Ela não tem um traseiro apropriado para usar calças — fez Caroline, sensatamente cínica.

Espero que você use uma sobrecasaca comprida...

Tipo príncipe Albert, sim. E vou apenas fingir que fumo charuto...

O que vocês, artistas, têm que fazer pela arte! — A Srta. Kingsley sacudiu a cabeça, mais de pena do que de horror. — Ainda planeja comprar ou construir seu próprio estúdio?

Caroline assentiu. Tim reacendera sua ambição. Embora gostasse de representar a papel de estrela de cinema na vida real, não gostava muito de tornar-se uma mulher velha na tela. A reaproximação com Tim, súbita e inesperada, mudara sua rota. Com o auxílio dele, o que Hearst fizera com os jornais ela faria com os filmes. Outros tiveram o mesmo desejo, mas tinham ficado per­didos diante da idéia da arte. Griffith tentara contar a Guerra Civil na tela em "relâmpagos", como o Presidente Wilson poeticamente definira, mas ele se perdera na política daquele grande aconteci­mento. Mais tarde, quando fez Intolerância, sucumbira ao espeta­cular em detrimento do intelecto. No entanto, Caroline sabia o que ele estava fazendo ou tentando fazer. Como Griffith, Tim acre­ditava que a imaginação do público podia ser sitiada e conquis­tada. Mas ele preferia, perversamente, apelar ao senso de justiça das pessoas, ao passo que Griffith as aborrecia com grandiosas visões de diversos pecados mortais. Caroline sabia que a resposta estava em algum lugar entre essas duas coisas — naquilo que pareceria ser algo não mais ambicioso do que a simples celebra­ção dos fatos comuns da vida americana; e então — graças ao luxo de poder editar os filmes — os sonhos poderiam ser plan­tados sorrateiramente na cabeça do espectador. Instintivamente, Chaplin fizera isso desde o princípio, e Caroline tinha certeza de que ele perderia sua arte se chegasse a saber o que estava fa­zendo. A consciência era o pior inimigo dessa estranha forma de narração. Gradualmente, ela e Tim tinham dominado isso de uma forma que nenhum dos dois teria conseguido sozinho. Agora am­bos estavam trabalhando arduamente em uma dezena de filmes, cada um deles calculado para agradar o maior número possível de pessoas, no entanto possuindo um certo desígnio intrínseco que, se funcionasse, modificaria sutilmente o modo como as pessoas enca­ravam o mundo. Onde antes os boches e os comunistas eram ata­cados, as virtudes humanas seriam endeusadas. O fato de poderem tão facilmente fracassar tornava a tentativa ainda mais excitante.

Pensamos em comprar Inceville, em Santa Mônica. Ou talvez alguma coisa no Vale — disse ela. — Mas só se você aprovar — apressou-se em acrescentar.

Meu coração nunca irá até o Vale, mas se você estiver lá eu irei visitá-la. Prometo solenemente.

Vou sentir saudade da Paramount.

A Famous Players-Lasky era agora cada vez mais conhecida como Paramount Pictures, presumivelmente por ordem de Adolph Zukor, que também pintara o estúdio de verde, sua cor favorita, segundo Charles Eyton. No entanto, Zukor nunca era visto no es­túdio; reinava sobre seu império de longe, em Nova York, e deixa­va o trabalho de fazer filmes para seus empregados um erro que Caroline não cometeria quando começasse sua nova carreira. Essen­cialmente, os magnatas do cinema não estavam preocupados com o que passava na tela, contanto que fosse lucrativo. Aqueles que se preocupavam, como Griffith, inclinavam-se à auto-indulgência e à falta de lucro. Mas os magnatas tinham que ser propiciados. Eles — ou, especificamente, Zukor possuíam as salas de exibição, e Caroline fizera o possível para encantar o grande homem que mo­rava no condado de Rockland, em Nova York, cercado de parentes. Todos os magnatas do cinema eram patriarcas em escala grandiosa, tribal. Casavam os filhos com o mesmo cuidado com que as famílias reais o faziam, e freqüentemente com os mesmos resultados tristes. Não era de se estranhar que todos quisessem fazer Mayerling. No momento, Samuel Goldfish agora Goldwin —, cunhado de Lasky mas inimigo mortal de Zukor queria que Caroline representasse a imperatriz Elizabeth, cujo infeliz filho Rudolph Barthelmess acei­tara o papel cometeria suicídio na cabana de caça de Mayerling. Hearst agora estava ameaçando fazer seu Mayerling com Marion Davies como a trágica Maria Vetsera.

Naturalmente você tem seus dois diretores favoritos disse Grace Kingsley, os olhos brilhando. O Sr. Farrell está lá no Vale, disseram-me, fazendo um faroeste. Devo visitá-lo amanhã.

Dê-lhe lembranças minhas disse Caroline.

Até então, sua reaproximação como namorados e sócios era secreta. Tim tinha compromissos pessoais, além de cinematográficos, a serem cumpridos, ao passo que Caroline tinha William Desmond Taylor para... o quê? Ela achara significativo que Tim tivesse assoviado quando ela apareceu no estúdio e ele viu seu novo rosto. "Ficou bom?", ela perguntara. E ele assentira, ao passo que o outro diretor "favorito" dela não tinha percebido sua obra-prima cirúr­gica. Ocorria que Taylor estava atarefado, tanto na vida pessoal quanto na profissional.

Neste exato momento Taylor está na Sala de Projeção C informou a Srta. Kingsley. Está editando A tentação verde, que parece que vai ser um sucesso.

Realmente espero que sim disse Caroline, sorrindo.

Sorria com muito cuidado. Ainda sentia uma certa tensão ao redor da boca, coisa que lhe tinham assegurado que desapareceria quando o rosto novo se acomodasse.

Ele me disse que mal pode esperar para começar seu novo filme da Traxler. Mas não quis dizer o que seria.

Temos esperanças de fazer Mayerling.

Caroline mentira ousadamente. Afinal, todo mundo, numa oca­sião qualquer, tinha anunciado que iria fazer essa história, ou então realmente fizera uma versão dela. A visita agora tinha valido a pena, e a Srta. Kingsley tinha seu "furo". Ela escrevia animadamen­te, enquanto Caroline citava um elenco ideal e impossível. Não, eles não usariam Knoblock para o roteiro. Ele voltara para a Ingla­terra.

Bernard Shaw seria o ideal. Caroline agora deixava-se levar pela fantasia. Havia uma espécie de prazer perfeito em mentir sem propósito específico. É claro que ele teria que se adaptar à nossa arte, tão diferente do teatro. Mas tenho certeza de que con­seguiria. Caso contrário, há sempre Maurice Maeterlinck.

Na tão anunciada visita de Maeterlinck a Hollywood, ele ofere­cera um roteiro cujo protagonista era uma abelha. Depois voltara para a Bélgica.

Qualidade: eis a essência de um filme da Traxler entoou a Srta. Kingsley.

A gente tenta sussurrou Caroline. A gente tenta repetiu, gostando do som da própria voz.

Então, embora ambas fossem damas e a Srta. Kingsley fosse virginal, foram obrigadas a discutir o relato do jornal daquela manhã a respeito do caso Arbuckle. A ruptura acidental da bexiga de Virgínia Rapper acontecera no dia 7 de setembro de 1921. Esta­vam agora em de fevereiro de 1922 e a imprensa ainda continuava, todos os dias, a inventar novas revelações ou remexer as antigas. Se­cretamente, quase todo mundo em Hollywood ficara do lado de Arbuckle, mas o resto do país, incitado pela imprensa de Hearst, queria' um auto-de-fé com o gorducho comediante como figura cen­tral uma tocha flamejante em honra da moralidade.

Mais que nunca Caroline estava convencida de que ela e Tim estavam no caminho certo. Enquanto a tática de Hearst era anima­lizar o público, eles iriam civilizá-lo, ela pensava grandiosamente, embora um tanto preocupada. Decerto teria que refrear o entusiasmo político de Tim. Eles tinham concordado que, na cidade americana imaginária que iriam inventar, a voz da razão venceria e o povo perceberia afinal até que ponto tinha sido manipulado. A cidade tinha que parecer muito real, e em seu centro haveria uma família que o país inteiro iria amar. Acima de tudo, não haveria sermões; se conseguissem fazer seu trabalho da maneira certa, seus fins seriam atingidos subliminarmente. Ambos concordavam que a nobre Emma. Traxler, uma perfeita criatura de romance, nunca poria os pés em sua cidade.

Acabo de receber informações de Washington revelou a Srta. Kingsley, colocando as luvas. O diretor-geral dos Correios não virá para Hollywood.

Imagino que ele ainda pensa que um dia será Presidente, e que Hollywood...

... é, ou será, eu lhe garanto, um cenário altamente apropriado para qualquer empreendimento importante disse a Srta. Kingsley, uma fervorosa admiradora de sua tão atacada terra dos sonhos.

Imagino que sim, um dia. Naturalmente ele teria muito poder aqui. Eu me pergunto se ele compreende isso.

Caroline perguntava-se também por que ela própria não tinha pensado com mais vagar nesse assunto. Haveria uma ridícula cen­sura, naturalmente, mas haveria também estímulo para o tipo de coisa que os dois virtuosos conspiradores tinham em mente.. Hays ou outro alto funcionário federal poderia atuar como uma ponte entre a política e o cinema. Se Caroline e Tim conseguissem de alguma forma capturar essa ponte, os impulsos que agora vinham de Washington para Hollywood seriam revertidos, e o Sr. Hays, ou fosse quem fosse, seria o mensageiro deles dois do Oeste para o Leste, dos governados para os governantes. Caroline e a Srta. Kings­ley despediram-se à porta da cantina. Então Caroline entrou no re­feitório, consciente de que ainda era uma fonte de interesse. Ouviu seu nome em meio ao ruído dos pratos e de várias centenas de con­versas. O aposento recendia a ensopado de carne e a naftalina das roupas dos atores dos filmes de faroeste.

William acenou para que ela se juntasse a ele. Estava sentado com sua roteirista, Julia Crawford Ivers, e sua editora, Edy Lawrence. No passadp, Caroline observara com certo espanto que todos os amigos íntimos de William eram mulheres e no entanto, pelo que ela sabia, ele não se interessava sexualmente por elas. Gradualmente ela chegara à mesma conclusãô que Tim. No entanto ele tivera uma esposa no passado, e agora tinha uma filha, que ele enviara para uma escola muito dispendiosa em Nova York. Teria sofrido uma mudança na meia-idade e passado das ninfas para os faunos? Ou era simplesmente outra vítima da Maldição da Califórnia? Mais pre­cisamente, a vítima seria ela, na época de sua paixão, agora intei­ramente extinta, graças ao gamão e à volta de Tim.

Caroline contou-lhes que Hays não viria para Hollywood.

Então teremos Herbert Hoover — afirmou Julia Ivers. — Dizem que tem que ser um membro do Gabinete.

Ou do Supremo Tribunal — disse Edy Lawrence, que, como todos em Hollywood, não estava entusiasmada com a idéia de um supervisor vindo de Washington.

A pior coisa, é claro, será a censura — declarou Taylor.

Seu rosto bonito estava mais pálido do que de costume. Ele fumava um cigarro negro após outro, tirados de uma cigarreira de ouro que Caroline julgava ter sido roubada em julho, quando o empregado, Eddie Sands, fugira com a maior parte do conteúdo do bangalô, assim como o carro de Taylor. Knoblock estava no estúdio quando Eddie desaparecera, depois de dizer a Knoblock que preten­dia casar em Catalina. Mas Eddie fora para outro local, pois che­ques com a assinatura de Taylor falsificada começaram a pipocar em diferentes partes do estado. Taylor notificou a polícia, contratou um empregado negro, Henry Peavey, comprou outro carro e contra­tou um novo motorista. O episódio todo causara-lhe muitos pro­blemas.

Onde encontrou isso? — perguntou Caroline, tocando na cigarreira.

Taylor franziu o cenho.

Numa loja de penhores. Onde mais? A polícia me avisou. Parece que ele prefere penhorar do que vender para um receptador.

Gosto de Hoover — disse Julia Ivers, uma mulher do tipo caseiro, que podia comer a quantidade que quisesse de macarrão com queijo, ao passo que Caroline mordiscava uma posta de peixe.

Ele é honesto — disse Taylor sem muita convicção.

E quanto à censura? — perguntou Caroline, cujo interesse nos problemas domésticos de Taylor tinha sido satisfeito havia muito tempo.

Não é inevitável? Os Produtores e Distribuidores de Filmes querem alguém para limpar o campo do cinema, seja lá o que for que isso quer dizer, e fazer o mundo esquecer o coitado do Fatty Arbuckle;

Ganhando 150 mil dólares por ano informou a Sra. Ivers em tom pesaroso.

Então passaram a discutir o assunto costumeiro filmes; quem estava fazendo o quê e onde, e por quanto. No final do almoço, Tay­lor voltou-se para Caroline:

Acho que tenho um projeto para nós. Charles Eyton e eu tivemos uma conversa pouco antes do almoço.

Não Os rochedos de Valpré. Estou velha demais.

A Sra. Ivers sacudiu a cabeça.

De qualquer maneira, a história é monótona demais. Não tem ação suficiente.

Mas há um papel maravilhoso para Mary. Taylor suspirou. De qualquer maneira, fui derrotado na votação. Não, trata-se de outra coisa. Posso levá-la em casa? Às cinco? Conversa­remos no caminho.

Caroline voltou para o seu escritório para encontrar Tim, vestido de vaqueiro, falando em dois telefones, enquanto a secretária sorria um sorriso vago e feliz. Caroline, distraidamente, deu uns ta- pinhas na cabeça dele; depois foi para a sua sala, onde havia rotei­ros empilhados sob ícones de Emma Traxler, sofrendo e envelhecen­do de uma estação para outra na estrada da vida. Bem, breve pode­ria haver um renascimento. Ela parecia jovem novamente; mas ainda se parecia com Emma? Essa era a pergunta cuja resposta, se nega­tiva, viria tarde demais, já no filme. Felizmente os dias de Emma estavam agora contados. Haveria mais um último filme deslum­brante, e então Emma retiraria para sempre seus espetaculares brin­cos de argolas e passaria para a história.

Tim entrou na sala.

Terminei cedo. Os faroestes não ficam mais fáceis. Ainda não surgiu um modo novo de se filmar um cavalo, e jamais surgirá.

Por que não experimentamos pessoas em faroestes? Como Vamos fazer na nossa cidade.

Esse tipo de filme é estilizado demais. Usamos apenas personagens, e eles já estão praticamente gastos. Ouvi dizer que Taylor arranjou algo para você.

As novidades se espalham. Ele vai me contar depois das cinco. Acha que estou parecida com a... você sabe, com a Emma?

Tim chegou bem perto dela e estudou-lhe o rosto. Naquele mo­mento, ela era apenas um objeto a ser fotografado, e ele o diretor estudando os contornos da cabeça redonda e pétrea para ver o que precisava de luz, o que precisava de sombra.

Está parecida, sim. Vai dar uma boa impressão dela.

Só isso?

Sempre há alguma mudança. Não se preocupe. Sabe, Taylor está tendo problemas para conseguir um filme para Mary Minter.

Problemas? Aqui? Impossível. Ela é a estrela da Paramount.

Querem mandá-la embora. Pagar para que ela saia.

Por quê? Ela não é pior que as outras.

Caroline sempre tivera dificuldade em distinguir entre as lindas anãzinhas louras. Elas vinham em bando, seguindo a moda, e desa­pareciam com a mesma rapidez quando o estilo mudava. Só Mabel Normand era diferente do resto; e naturalmente estava ficando im­possível de ser empregada. Aparentemente a cocaína prejudicava o desempenho. Aos 29 anos Wallace Reid estava no final de sua car­reira, e provavelmente de sua vida, graças à morfina. Devido ao es­cândalo Arbuckle, a imprensa estava excitada, insinuando nomes; breve as insinuações tornar-se-iam acusações, e muitas carreiras ter­minariam. Caroline estava agora convencida de que era necessário um supervisor do cinema. No passado, sempre que aqueles no poder resolviam assumir a direção de ferrovias ou de minas de carvão, a imprensa cessava obedientemente suas invenções escandalosas e seus alarmes falsos. Obviamente Hollywood precisava de uma trégua; e Caroline e Tim, de um aliado.

Nesse ínterim, Mary Miles Minter e sua mãe davam mais trabalho que lucro. Além disso, à fria luz do comércio, a idéia de subs­tituir Mary Pickford não tinha sido boa. Havia apenas uma Mary Pickford, e não eram necessárias substitutas. Embora Mary Minter, agora com 19 ou vinte anos, pudesse servir por mais uma ou duas décadas como estrela adolescente, o público perdera o interesse em garotinhas de cachos dourados e modos engraçadinhos.

Imagino que qualquer dia desses vão mandá-la embora.

Coitado do William foi tudo que ocorreu a Caroline.

Ela disse a todo mundo que vai casar com ele Tim informou.

Olhava atentamente para Caroline, para ver qual seria a reação dela, mas Caroline tomou cuidado para não reagir. Embora não sentisse mais coisa alguma por Taylor, ainda era sua amiga e lhe queria bem.

Acho que ele não deseja uma segunda filha — disse, olhando para um cartaz de Emma Traxler bebendo um coquetel com um sorriso ardente e apaixonado. O retoque apagara todas as feições, exceto as salientes.

Principalmente uma filha equipada com aquela mãe.

Mas Mary Miles vai casar com ele para livrar-se da mãe.

Acho isso impossível. A Sra. Shelby fica com um terço de tudo que sua adorável filha ganha, enquanto a filha viver; ou, pelo menos, até que os cachos despenquem.

Coitado do William — fez Tim, levantando-se. — Tenho que ir ver Ince a respeito da compra de Santa Mônica.

Onde construiremos nossa verdadeira cidade imaginária per­manente. Que filme faremos primeiro?

Tim sorriu.

Que tal "Quem matou o Presidente McKinley?" — propôs.

Quem foi?

Theodore Roosevelt e a Standard Oil. Sabe, contrataram um anarquista maluco e lhe deram uma arma, mas ninguém sabe que fizeram isso, a não ser a velha mãe dele, uma senhora bondosa que mora na nossa cidade.

Você vai acabar na cadeia — disse Caroline.

O carro e o motorista de Taylor estavam estacionados diante da porta principal do estúdio, na Rua Vine, onde os fãs mantinham constante vigilância. O fato de todos terem reconhecido a nova Emma era muitíssimo animador, e Caroline assinou autógrafos en­quanto abria caminho para o carro resolutamente, Taylor ao seu lado.

Importa-se se eu fizer algumas coisinhas no caminho?

Caroline não se importava.

Para a Loja de Departamentos Robinson's, Fellows — ordenou Taylor. Depois voltou-se para Caroline. — Tenho que com­prar um presente para Mabel. Ela está muito deprimida.

Pensei que ela estivesse trabalhando para Sennett.

Por isso está deprimida. Está com problemas.

Drogas?

Ela fez um esforço imenso. Eu a ajudei o máximo que se pode ajudar alguém... a se ajudar.

Caroline permaneceu no carro enquanto Taylor entrava na Robinson's.

Pode me dar seu autógrafo, Srta. Traxler? — pediu o motorista.

Era um rapaz jovem e de rosto saudável. O sorriso estonteante de Emma não mais inquietava Caroline. Escreveu o nome de Emma num, bloco da Wool worth. Havia mais uma dezena de autógrafos no bloco, mas ela não ousou folheá-lo, e devolveu o bloco e a caneta.

É uma grande honra conduzir a senhorita, e todos os grandes artistas — o rapaz agradeceu.

Caroline deu um sorriso breve e perguntou:

Alguma notícia de Eddie... Eddie Sands?

O rapaz franziu a testa.

Bom, ele andou assinando o nome do Sr. Taylor nos cheques em Fresno e Sacramento. Além disso, empenhou algumas coisas numa grande loja de penhores, usando um nome que o Sr. Taylor reconheceu. Mas só isso.

Taylor tornou a entrar no carro.

Nada que eu quero. Vamos passar no banco — disse a Fellows. — Meu Deus, esse negócio de imposto de renda é um abor­recimento — comentou com Caroline, o pensamento ocupado com o dinheiro.

E dispendioso.

Gostaria que você convencesse seus amigos em Washington a nos deixar em paz. — Estavam seguindo uma estrada empoeirada, ladeada de eucaliptos, que no final cortaria o Bulevar Sunset. O dia estava brilhante, azul e frio. — Eu lhe contei que Eddie andou falsi­ficando minha assinatura em cheques...

Outro aborrecimento.

Taylor soltou uma gargalhada repentina.

O verdadeiro aborrecimento é que ele é um falsificador tão bom que nem eu consigo distinguir a assinatura dele da minha. Marjorie Berger vai lá em casa hoje à noite com todos os cheques pagos pelo banco.

De qualquer maneira, você tem sorte por ele ter ido embora.

Taylor lançou-lhe um olhar rápido e curioso. Então disse, num tom ambíguo:

Tenho mesmo?

Depois do banco e de uma parada na Livraria Fowler's, foram para a Rua Alvarado, onde Caroline foi levada à familiar sala de estar pelo novo empregado negro, um homem simpático, algo nervo­so, obviamente devotado a Taylor.

A Srta. Berger ligou para dizer que estará aqui às 6:30h, senhor. Depois ligou outra senhora, mas não deixou o nome.

Obrigado, Henry. Taylor foi até a escrivaninha e pegou um roteiro. — Monte Carlo explicou. Há um papel maravi­lhoso para você. O papel principal acrescentou depressa. Você é uma grã-duquesa da Rússia branca, trabalhando como criada de uma mulher americana rica e muito vulgar. Você vai para Monte Carlo com ela, e lá está o seu noivo de São Petérsburgo, que supos­tamente morrera na Revolução.

Conheço a história disse ela em tom que esperava fosse doce. Que roupas uso?

Ele contou-lhe; ela ficou entusiasmada.

Acho que desta vez vou realmente conseguir Rodolfo Valentino.

Aceito disse Caroline.

Ela relanceou o olhar pelo aposento onde jogara tantas partidas de gamão. Agora não sentia coisa alguma, nada. Taylor sugeriu que ela fosse para casa no carro dele, e ele iria a pé até a sua aula de dança na Rua Orange.

Estou aprendendo a dançar tango anunciou, dando-lhe um beijo na bochecha.

Caroline despertou com o telefone, cujo toque misturou-se, de um modo bastante desagradável, com um sonho a respeito de um trem que partia sem ela; enquanto corria ao lado do trem que saía da estação, o condutor, Eddie Sands, sorriu para ela, tocou um sino e disse, numa língua que parecia alemão alsaciano? "Todos a bordo". No entanto a bagagem dela estava dentro do trem, inclu­sive uma pintura de Poussin e uma boneca de sua infância, com um só braço.

Tenho que pegar o trem disse ela ao atender.

Que foi? fez uma voz de homem, uma voz conhecida.

Caroline despertou. Consultou o painel luminoso do relógio de cabeceira: 9:30h. Dormira demais.

Sinto muito. Quem é? perguntou.

Charles Eyton. A voz soava tensa, diferente do tom calmo de sempre. A polícia telefonou para você?

A respeito de quê? perguntou Caroline, sentando-se na cama, agora inteiramente alerta.

Taylor foi assassinado. Acho melhor você vir para cá, para o meu escritório. Vão querer interrogá-la. A polícia. A imprensa, também. Mas não fale com eles. Todos que estiveram com Bill ontem foram interrogados. Felizmente consegui todas as cartas...

Que cartas? ela perguntou estupidamente.

As suas para ele. Não se preocupe. Estão todas comigo. Já estive na Rua Alvarado. De qualquer maneira, temos que redigir uma declaração para você fazer...

Por que ele foi assassinado? Quero dizer, como ele fdi assas­sinado? Caroline estava sentindo muita dificuldade em assimilar um fato tão grotesco.

-— Um tiro pelas costas, mais ou menos duas horas depois que você o deixou.

Isso seria depois da aula de tango no curso de danças da Rua Orange. Em seu estado de choque, Caroline mostrava-se sagaz e precisa.

Claro. Claro. Eyton desligou.

Caroline avisou Héloise para não falar com pessoa alguma durante a sua ausência.

Houve um acidente explicou. O coitado do Sr. Taylor está morto.

Eu sabia! exclamou Héloise, que, quando se tratava de desastres, nunca era apanhada de surpresa.

Claro que sabia concordou Caroline.

Saiu do prédio e entrou em seu carro. O jardineiro japonês cumprimentou-a afavelmente. O dia estava frio e perfeito. O Bulevar Sunset estava quase deserto. Muitas vezes ela dirigira assim pelas ruas desertas, indo para estúdios próximos e distantes, bem como para locações tão distantes que com freqüência era' necessário sair dé casa antes de o sol raiar. Se alguma vez rememorasse aquele extraordinário período da sua vida, lembrar-se-ia primeiramente do sol erguendo-se por cima da fazenda do estúdio no Vale San Fer­nando, e depois o brilho torturante das luzes klieg em seus olhos. "Engrenar!" O resto era confusão.

Charles Eyton estava sentado atrás de sua mesa, falando ao telefone. Acenou para que Caroline se sentasse.

Foi assassinato, sim. A princípio falaram em causas naturais, mas depois o legista rolou o corpo e viu que ele tinha levado um tiro nas costas. Quando? Por volta das 7:00, 7:30h de ontem. É, as coisas vão virar um inferno. Desligou. Desculpe inco­modar você, mas nós temos que coordenar nossas histórias.

Nós, sim. O estúdio. O cinema. Isto pode ficar pior do que o caso de Fatty Arbuckle.

Ah — foi tudo que Caroline conseguiu dizer.

Então pensou na alegria de Blaise quando soubesse que a sua carreira cinematográfica, o que ainda restava dela, terminaria num Götterdämmerung tão escandaloso. O escândalo afetaria também o que ela chamava de "uma verdadeira cidade americana imaginária"?

O homem de cor encontrou-o às 7:00h da manhã de hoje, caído no chão. Na sala. Ele chamou a polícia. E ligou para mim também, graças a Deus. Mandei nosso pessoal lá para pegar qual­quer coisa que prejudicasse o estúdio: uísque ilegal, cartas de amor, objetos femininos.

Imagino que não haveria muito disso.

Eyton lançou-lhe um olhar severo, mas não fez qualquer comen­tário.

Tiramos as garrafas. Eu pessoalmente fiquei com as cartas. Enquanto a polícia estava ocupada interrogando os vizinhos, subi ao segundo andar. — Ele indicou três pilhas de cartas sobre sua mesa. —- Cartas suas, de Mabel Normand, de Claire Windsor e de Mary Miles Minter...

Nada de incriminador, pelo menos nas minhas.

Não. Mas isso não vai impedir que a imprensa publique fotos de página inteira de você como a tentação estrangeira capaz de qualquer coisa por paixão...

Não, isso não vai acontecer — disse Caroline em tom desolado. — Afinal, também sou jornalista.

De repente Eyton mostrava total ingenuidade.

Você pode nos ajudar. Muito. Em primeiro lugar...

Em primeiro lugar, que foi que aconteceu?

Quem é que sabe? Taylor foi para casa com você. Saiu de novo, a pé, para a aula de tango, imagino. Vão verificar. Depois' voltou para casa, onde sua contadora, Marjorie Berger, estava espe­rando por ele. Isso foi às 6:15h. Uma hora depois, Mabel Normand chegou. O motorista dela ficou esperando na Rua Alvarado, bem visível para qualquer pessoa. Então o homem de cor, que abrira a porta para ela, foi para casa. Por volta das 7:30h, Taylor acom­panhou Mabel até o carro. Ela tinha na mão um saquinho de amen­doins. — Eyton fez uma pausa para ver se Caroline percebera o significado dos amendoins, mas Caroline preferiu não se manifestar. Eyton continuou. Então Mabel foi embora no carro, e Taylor vol­tou para dentro do bangalô, e poucos minutos depois os vizinhos ou­viram o que parecia um tiro, e que era mesmo um tiro, o tiro que o matou, mas como podia ter sido a descarga de um automóvel, nin­guém pensou em fazer alguma coisa.

A polícia sabe de Mabel?

Eyton assentiu.

Isto não vai exatamente ajudar a carreira dela.

Se nós todos agirmos em conjunto, poderemos ficar de fora deste negócio. Como você sabe, o estúdio pode ter bastante controle sobre a imprensa, se todos concordarmos a respeito do que queremos revelar.

Você pode controlar a polícia?

Houve uma pausa. Então Eyton deu de ombros.

Sempre controlamos. Custa caro. É preciso pagar todo mun­do, o que significa o promotor também, e ele é caro.

Caroline estava começando a entender a natureza do problema.

E o que é que temos que dizer?

Você tem alguma idéia de quem matou William?

O tom era tão casual que Caroline encontrou-se sorrindo polida­mente.

Não fui eu, é claro.

É claro.

Eyton agora sorria para Caroline, como se uma pré-estréia no Bakersfield tivesse sido inesperadamente boa. Atrás da cadeira dele, um retrato de Adolph Zukor lançava-lhes olhares zangados. Acima do retrato, como um emblema heráldico, havia dois tacos de pólo cruzados presente de Cecil B. DeMille.

Mabel também não foi. Então, se foi uma estrela, sobra apenas Mary Miles Minter, não é? aventou Caroline.

Seu senso jornalístico tinha sido despertado'. Consumida por uma paixão grande demais para sua estrutura minúscula e mais uma vez frustrada em sua luxúria, a anãzinha de cachos dourados jogou no chão o tabuleiro de gamão e disparou sua pistola em William Deámond Taylor, o velho José de sua núbil Madame Potifar.

Mas por que acha que tem que ter sido um artista? Mais que uma pergunta, era uma afirmação.

Porque a imprensa vai insistir que foi um de nós, e por isso você me chamou aqui, não foi?

Eyton suspirou.

Acho que posso lidar com qualquer artista existente, mas lidar com uma que é também jornalista...

No verão passado, William recebeu uma carta que eu li acidentalmente. Alguém escreveu que ele... ou ela, pois não vi a assinatura, ia atirar nele. Encontrou essa carta?

Eyton sacudiu a cabeça.

Não. Mas encontrei uma de Eddié Sands. Carta recente. De chantagem. Ora, acho que ontem à noite Eddie fez uma visita a William; talvez tenha pedido mais dinheiro, houve uma briga e Eddie então. — Eyton de repente apontou o dedo indicador para Caroline, que se encolheu. Naturalmente é cedo demais para a polícia fazer qualquer afirmação, mas tenho o pressentimento de que estão convencidos de que foi ele. Assim como o promotor, o Sr. Woolwine. Isso quer dizer que estamos fora do fogo, e que haverá uma caçada nacional a Eddie.

Vão encontrá-lo?

Não sei. Eyton tocou nas pilhas de cartas. Espero que não. Seria melhor se ele tivesse um acidente primeiro. Quero dizer, antes de ser preso.

Caroline e Eyton entreolharam-se. Ela jamais suspeitara que aquele homem tão comum e amável podia ser tão rápido em suas reações, e tão implacável.

O que é que Eddie sabe? Caroline perguntou finalmente.

Eyton ergueu uma das cartas.

Não tenho meios de saber o que ele sabe, mas sei que ele fez ameaças. Se Taylor não retirasse as acusações, ele ia denunciá- lo, diz aqui.

Homens?

Garotos. Eyton sorriu inesperadamente, Se a imprensa descobre isso, Hollywood está acabada. Graças a Arbuckle, esta­mos sendo boicotados em todo o Cinturão da Bíblia. Mais um escân­dalo e...

Boicote... — Naquele contexto, Caroline achava um humor negro nessa palavra. Digamos que nós, isto é, que você possa controlar a imprensa; como vai controlar a investigação policial?

Pagando-lhes. para pegarem Eddie,

Imagine que o encontrem, e ele conta... a sua história?

Teremos que pagar-lhes para não o encontrarem... vivo, pelo menos.

— Um acidente?

Eyton assentiu.

Enquanto isso, vamos transformar Bill num grande conquis­tador, um verdadeiro Don Juan. Daqui a alguns dias confessarei ter retirado algumas cartas de amiguinhas dele, alegando que não queria que pessoas inocentes fossem envolvidas nessa história tão triste e trágica. De modo que vou entregar todas as cartas à polícia, exceto as que. vou guardar.

As outras são tão maçantes quanto as minhas?

As de Mary Miles Minter não são nem um pouquinho ma­çantes. Aliás, são muito melhores que qualquer dos filmes que ela tem feito ultimamente. Ela escreve que espera que Bill case com ela, para que ela possa livrar-se da mãe que a trancafia quando suspeita que ela está querendo sair, mas as coisas estão chegando a uma definição, porque na última vez que a Sra. Shelby a trancafiou, Mary pegou um revólver e tentou matar-se.

Caroline reviu a carta na mesa de William, a caligrafia grande e esparramada, a palavra "revólver".

Isto significa que ela tem uma arma. Isto significa que sabemos quem o matou, não sabemos?

Sabemos? — repetiu Eyton, em tom tranqüilo. — Bem, imagino que sim, para falar a verdade. Foi Eddie, que estava chan­tageando seu antigo patrão por causa das... amiguinhas dele, como vamos chamá-las. Na verdade, não retiramos as peças femininas que encontramos na casa. Até mesmo deixamos um roupão cor-de-rosa com três emes bordados. De modo que ele vai ser pintado como outro Casanova, o que está bom para o estúdio, e embora várias mulheres famosas venham a ser mencionadas como vítimas possí­veis ou em potencial da paixão dele, apenas Mary e Mabel poderão sair disso um pouquinho difamadas, e a coitada da Mabel não esta­ria envolvida se não tivesse resolvido ir lá pouco antes de Eddie atirar nele.

Drogas?

Não encontramos coisa alguma. A polícia também não. — Se Eyton estava mentindo, era muito convincente. — Hollywood é novamente pura e inocente... pelo menos nesse departamento. — Eyton sorriu. — Mas aquele saquinho de amendoins... — acres­centou, sacudindo a cabeça.

Caroline ergueu-se.

Quando a polícia me interrogar...

Diga á verdade. Que mais? Mas pode, se quiser, mencio­nar Eddie como o possível assassino. Seria de grande ajuda se fizesse isso. Eyton também se pusera de pé, sempre educado. Sabe, o homem de cor, Henry Peavey, vai a julgamento hoje, e Bill iria testemunhar o bom caráter dele.

Julgamento por quê?

Por molestar garotos no Parque Westlake.

Ele gostava?

Era para o patrão, é o que diz. A polícia encontrou um molho de chaves que não são da Rua Alvarado. Aparentemente, existe um outro apartamento em algum outro lugar...

Uma garçonttière.

Infelizmente não falo francês. Eyton levou Caroline à porta. Só um pouquinho de espanhol de Tijuana.

 

Em meados de março Emma Traxler estava novamente frente às câmeras, dirigida por seu megafonista favorito, Timothy X. Farrell, como escreveu Grace Kingsley num longo artigo no Los Angeles Times. Aparentemente, Emma Traxler pensara em trocar o brilho das luzes de Hollywood por sua nativa Alsácia-Lorena, onde o nobre castelo da família estava à sua disposição; mas as cartas de fãs de todo o mundo a tinham convencido a voltar para a tela, num filme dirigido por William Desmond Taylor. Caroline estremecia todas as vezes que via esse nome, o que acontecia várias vezes por dia.

Como Eyton previra, o escândalo fora imenso, mas delicadamente orquestrado. Emma era simplesmente uma das várias estre­las que ele cortejara. Além de um único depoimento para o Depar­tamento de Polícia de Los Angeles, Caroline não fora incomodada. Mas o que a polícia informava ao público e o que Eyton fabricava eram, com freqüência, contraditórios. O roupão cor-de-rosa com os três. emes foi discutido çm todos os jornais; no entanto, a polícia fingia não ter conhecimento dele. Teria Eyton inventado aquilo para envolver Mary Miles Minter mais profundamente na trama? Eyton estava entregando ao Examiner as cartas de amor de Mary Minter. Felizmente a própria Mary tinha um álibi perfeito para a noite fatal: ficara em casa, lendo em voz alta para a mãe e a irmã. No entanto, misteriosamente, na manhã seguinte ao assassinato ela fora à casa da Rua Alvarado antes que Os jornais tivessem veiculado a notícia da morte de Taylor. Por outro lado, os telefones de Hollywood não tinham parado de tocar durante toda a manhã, e todas as pessoas de alguma forma envolvidas sabiam do assassinato. Enquanto a imprensa continuava a publicar histórias picantes sobre as conquis­tas de Taylor, a polícia só falava do ladrão, Eddie, que. desaparecera.

Caroline estava em seu camarim, contíguo ao local das filmagens, onde o cassino de Monte Carlo tinha sido recriado. Ela man­tivera o roteiro de Taylor para a Traxler Productions. Tendo sido grã-duquesa, era agora criada de quarto, vestida com o esplendor de sua patroa para uma noite' anônima num baile de máscaras.

Caroline recostava-se numa tábua inclinada, para manter os cabelos e o vestido impecáveis. Mais que nunca, sentia-se uma bone­ca sendo manipulada, de um modo não de todo desagradável, por Tim. Havia comédia, além de tragédia traxleriana, em seu papel, e embora o rosto novo não fosse inteiramente seu, fotografava bem. Decerto ela parecia dez anos mais jovem que a pobre rainha Mary da Escócia, que tinhk sido forçada a passar pela única solução da Renascença para o envelhecimento: ter a cabeça cortada pelo machado.

De repente abriu-se a porta do camarim.

Tim? fez Caroline.

Ele era a única pessoa que entraria sem bater. Mas não era Tim; era Mabel Normand.

Em, posso falar com você? Por uma razão qualquer, Mabel sempre a chamava de Em. Mas era melhor ser simplesmente Em do que o sinistro exagero de três emes.

É claro. Caroline voltou-se para a camareira. Quer esperar lá fora, por favor?

A camareira retirou-se, e Mabel abriu ambas as torneiras da pia.

É impossível, gravar com a água caindo explicou.

Quem iria gravar o quê?

Qualquer pessoa. A polícia. Mabel cruzou o aposento, pés virados para dentro, mãos viradas para fora; o efeito, como sempre, era encantador e lembrava curiosamente um rapazola. Teria sido essa a atração que Mabel provocava em William Desmond Tay­lor? — Faz-me um favor, Em? O lábio superior alongado pare­cia-se de repente com o de Huck Finn quando triste.

Se eu puder... — disse Caroline, cautelosa. Sentia-se uma idiota, deitada sobre uma tábua inclinada, incapaz de mover-se, por medo de perder algumas lantejoulas do vestido ou desmanchar o fantástico penteado, uma enorme colméia guarnecida de jóias e tran­ças postiças.

Você vai jantar em Pickfair hoje à noite, não vai?

Você também vai?

Eu? Eles nunca me convidam. Graças a Deus. Mas esta noite é para todos os figurões da Distribuidores e Produtores de Fil­mes. Agora escute, Em. Existe na cidade uma lista negra. Não é oficial... ainda. Mas todos sabem disso. Por causa desse negócio da Agência Central de Elencos.

O novo comitê tinha anunciado que, para manter os altos padrões morais dentro do cinema, todos os artistas seriam obrigados a entrar para uma associação que de um modo qualquer determina­ria se eles eram moralmente dignos de ser transformados em som­bras numa tela.

Achei que era para manter de fora as... as... — fez Caroline.

As prostitutas. Certo. Mas também tem a ver com drogas, com política e com qualquer outra coisa que eles inventarem. Bem, eu estou nessa lista negra.

Como é que sabe disso?

Mack. Mack Sennett. Ele me disse. Ele não está preocupado, mas este é o único trabalho que posso conseguir. Ninguém mais vai me contratar sem uma palavra de quem quer que Washington mande para cá. Então, você conversa com essa. pessoa? A meu respeito?

Converso, sim — prometeu Caroline, sentindo-se virtuosa; ao mesmo tempo, revoltava-se com esse novo exemplo da hipocrisia da América em sua força total. — Acha que é por causa de drogas? — perguntou diretamente.

Não. E por causa de William Desmond Taylor. Sabe, sou uma espécie de suspeita. Quero dizer, para a imprensa.

Mabel sentou-sê à penteadeira de Caroline e instintivamente pôs-se a arrumar-se, como se para uma filmagem. Caroline ficou fascinada por sua velocidade de profissional experiente. Mabel sabia mais sobre cinema do que qualquer outra mulher do ramo.

Mas não suspeitam realmente de você, não é? Quero dizer, a polícia...

Está brincando? — Mabel soltou uma risadinha. — Já está tudo acertado. O promotor foi subornado; vai continuar procuran­do Eddie Sands até que a coisa toda esfrie e morra. Aliás, Eddie está morto.

Espantada, Caroline moveu a cabeça, e uma parte da cabelei­ra soltou-se. Mabel pôs-se de pé num salto, recolheu a trança do chão e recolocou-a eficientemente na colméia cintilante.

Foi encontrado no Rio Connecticut. Com uma bala na cabe­ça. Disseram que foi suicídio.

Quem disse?

A polícia de Darien, em Connecticut.

Por que não avisaram a polícia de Los Angeles?

Avisaram, sim. Foi assim que soubemos. Só que Woolwine, o promotor, diz que não está convencido de que aquele seja real­mente o Eddie, de modo que a caçada continua. A imprensa vai acabar se cansando. Mas eu gostaria de voltar ao trabalho antes disso.

É claro que vau conversar com os... figurões esta noite.

Eles todos têm medo de você — disse Mabel, direta e precisa. — Todos os políticos têm medo dos donos de jornal. Nós tam­bém. Eu, pelo menos. Sinto saudade de Bill...

Eu não sei se sinto — retrucou Caroline.

Ela não tinha certeza do que pensava exatamente sobre tudo aquilo. De certo modo, ainda estava literalmente chocada pelo que acontecera. Decerto parecia estranho que nunca mais fosse vê-lo no almoço na cantina ou do outro lado do tabuleiro de gamão na Rua Alvarado. De repente teve a inspiração de perguntar:

Quem foi que o matou?

Você não sabe? — O rosto de garoto adquiriu uma expressão travessa, e os olhos brilharam.

Como é que posso saber?

Achei que você tinha chegado a uma conclusão. Eu cheguei, mesmo antes de Mary me contar.

É claro que ela não o matou.

Bem... — Mabel estava se divertindo. — Digamos que ela seja a suspeita lógica. A polícia encontrou três fios de cabelos louros e compridos no paletó de Bill. Nem você, nem eu, temos, pelo menos no momento, cabelos louros e compridos.

Ela não estava em casa lendo para a mãe e a irmã? — Caroline conhecia em detalhes a versão oficial daquela noite.

Não. Ela estava na casa dele, no andar de cima, quando fui lá.

Caroline, sem poder virar a cabeça, fixou o olhar de soslaio em Mabel, que estava experimentando um par de cílios postiços de Emma Traxler.

Como é que você sabe disso?

Ela me contou.

Por quê? Você seria a última pessoa a quem eu contaria, nessa situação.

Mabel suspirou.

Não ficam bem em mim, não é? — comentou, piscando os olhos para seu reflexo no espelho.

Não — concordou Caroline. — São para uma grã-duquesa idosa no cassino de Monte Carlo, não para a "nossa Mabel".

No dia seguinte, Mary me telefonou querendo encontrar-se comigo. Eu não a suporto, ela não me suporta e ninguém suporta aquela mãe dela, a bela da Louisiana.

Por que Mary queria ver você?

Mabel retirou os cílios postiços e voltou-se para encarar Caroline.

Queria saber se Bill tinha dito alguma coisa sobre o fato de ela estar na casa dele quando ele me fez sair às pressas de lá, me levou até o carro e me deu um livro de Freud, dizendo que era melhor do que o que eu costumo ler, o Police Gazette. Respondi a Mary que ele tinha me contado, sim. — O sorriso era travesso. — É claro que ele não tinha me contado. Mas ela caiu direitinho. E me contou o que aconteceu. Depois que fui embora, Charlotte entrou na casa. Antes, estava escondida do lado de fora do bangalô, espionando a filhinha. Você pode imaginar como ela ficou surpresa ao me encontrar nas vizinhanças. Então, quando eu já não estava nas vizinhanças, Charlotte entrou na casa e atirou em Bill, como vinha ameaçando fazer se ele casasse com a sua galinha dos ovos de ouro, que foi o que Mary lhe disse que ele planejava fazer e que ele, coi­tado, não tinha a menor intenção de fazer. De qualquer maneira, ela atirou nele na frente da filha, o que faz de Mary, tecnicamente, cúmplice.

A polícia sabe disso?

Mabel assentiu.

Os três fios louros foram a prova definitiva, e é por isso que, com todas as histórias correndo a nosso respeito, a única prova real nunca foi dada a imprensa, e nunca será. Charlotte está pagan­do pessoalmente o promotor. Mary diz que Woolwine insiste em receber em dinheiro vivo.

Como deve ser horrível ter a mãe... a mãe viva... assas­sina. — A mãe da própria Caroline arquitetara a morte da primeira Sra. Sanford, e Caroline nunca conseguira livrar-se da sensação de ter herdado um pecado.

Bem, isso lhes dá bastante assunto, imagino.

Bateram à porta.

Venha filmar, por favor, Srta. Traxler.

O maquilador e a figurinista entraram no camarim, transformando Caroline, primeiro em Emma, depois na giã-duquesa Olga disfarçada.

Você está mesmo linda — disse Mabel, parecendo sincera. — Gostaria de poder me vestir assim — acrescentou, fechando as torneiras da pia.

E eu gostaria de saber representar como você — rebateu Caroline, com absoluta sinceridade.

Representar? Eu nunca representei na minha vida, que eu saiba. Ajude-me, Em.

Mabel jogou um beijo para Caroline e partiu. Caroline então saiu para o local de filmagem e recebeu uma salva de palmas, puxa­das por Tim. A orquestra de cordas tocava Offenbach.

Dê-me uma máscara qualquer — pediu a grã-duquesa à camareira. — Esta noite sou outra pessoa. Gostaria de saber quem...

Às 6:00h daquela tarde, Caroline sabia exatamente quem era: a Sra. Sanford, do Washington Tribune. Ela telefonou para o jornal e falou com o Sr. Trimble, que trabalhava até mais tarde, ao con­trário de Blaise, que saía cedo.

Sra. Sanford... Caroline! — A voz agora era a de um velho. — Ou devo chamá-la de Emma...

Emma Traxler vai se aposentar no.ano que vem, e a Sra. Sanford vai se transformar numa produtora de filmes em tempo integral...

Volte para o jornal...

Isto aqui é melhor do que um jornal, depois que eu parar de sair nos jornais...

Estamos colocando panos quentes, o máximo que podemos. Este lugar aí parece ser uma bagunça...

Exatamente — concordou Caroline em tom brusco. É por isso que quero que você escreva um editorial, uma de suas fero­zes criações tipo Cotton Mathers,[3] insistindo que Will Hays se torne nosso supervisor para o bem do país, do mundo. Ele já recusou uma vez, mas acho que pode ser convencido se lhe dissermos que a pessoa que limpar Hollywood poderia muito bem ser eleita Pre­sidente por uma nação agradecida. Você sabe como é.

O Sr. Trimble gastou algum tempo, tossindo no outro lado da linha. Então disse:

Conheço Hays muito bem. Se ele achar que nós, isto é, que você, Blaise e o Trib, iriam apoiá-lo para Presidente, provavelmente aceitaria...

Diga-lhe que apoiaremos. Diga-lhe que Hearst também. Que eu garanto o apoio de Hearst...

Pode fazer isso?

Quem sabe? Mas posso conseguir que Hearst escreva úm editorial como o nosso, pedindo a Hays para aceitar.

Imagino que você saiba que aqui estão começando a sur­gir problemas para o governo, de modo que é uma boa ocasião para sair do Gabinete. Diga-me, como é essa tal de Mary Miles Minter?

É uma anã de sessenta anos.

Mexericaram por alguns minutos; depois Caroline instruiu:

Depois que o editorial sair, por que você não vai procurar o Sr. Hays e lhe conta como isso é importante para nós, e assim por diante?

O Sr. Trimble sabia o que era esperado, dele; os dois se despe­diram.

Tim entrou no quarto, já vestido para o jantar. Pickfair recebia cedo, porém formalmente.

Acho que vamos conseguir o Sr. Hays — contou-lhe Caroline.

Como é ele?

Um anão de sessenta anos. Não, desculpe. Como ele é? Parece um ratinho e é muito ambicioso. Se nós o ajudarmos politica­mente, ele vai nos ajudar a... povoar nossa cidade imaginária. Acho que vai ser fácil.

Tim assentiu, e sorriu. Caroline voltara à vida, como Caroline. Ainda não era hora de parar.

 

Lenta e dolorosamente Jess sentou-se em sua poltrona costumeira, no saguão do Wardman Park Hotel. A cinta que pressionava o corte ainda não cicatrizado em sua barriga estava apertada, e re­cendia desagradavelmente a hamamélis. Nos últimos dias ele levava uma hora para vestir-se. Quando perguntara queixosamente ao cirur­gião se a cicatriz do apêndice algum dia fecharia, o médico dissera que para um diabético o processo de cicatrização era sempre lento. A única notícia boa no que tinha sido um ano impiedosamente ruim fora o surgimento da insulina, um novo remédio que estava salvan­do a vida dos diabéticos em toda parte. Pela primeira vez em muitos anos Jess podia comer e beber normalmente.

Jess tinha um exemplar do Washington Tribune na mão. No caso pouco provável de avistar alguém com quem não queria falar, o jornal lhe cobriria o rosto, enquanto ele estudava cuidadosamente o mercado de ações. Caso contrário, ele simplesmente observava as pessoas que entravam e saíam. Membros do Congresso e altes fun­cionários do governo moravam no hotel, e era possível fazer um bom número de negócios inesperados no saguão sombrio com seu tapete espesso e antiquadas poltronas pesadas, e cuspidores colocados confortavelmente por perto.

Um congressista de Ohio parou para cumprimentá-lo.

Foi por um fio, Jess, por um fio.

-— Sente-se.

Jess estava ansioso por notícias da eleição, na qual o Partido Republicano perdera 88 cadeiras na Câmara de Representantes e sete no Senado. O Partido ainda controlava ambas as casas do Con­gresso, mas todos concordavam que o povo estava insatisfeito e que a reeleição de Harding em 1924 não estava de modo algum asse­gurada.

Perdemos Frank Mondell, o melhor líder que já tivemos. E Lodge entrou apertado. O congressista sacudiu a cabeça tris­temente. São os radicais, Jess. E os progressistas, os loucos como La Follette e Norris. Estão se esforçando para incitar o povo à revo­lução, exatamente como a Rússia.

Jess concordou que se a eleição tinha demonstrado alguma coisa, era que o elemento radical estava crescendo e que o conser­vadorismo moderado e sensato de Harding estava sendo rejeitado. Mas o revés teve um efeito energizante na Casa Branca. W. G. pron­tamente convocara o Congresso para uma sessão extraordinária 15 dias antes de 4 de dezembro, quando se iniciavam os trabalhos normais. W. G. finalmente estava prestes a estalar o chicote.

Só espero que possamos conter aqueles selvagens. -— O congressista passou os dedos pela cabeleira invejavelmente dotada de cabelos grisalhos. Tem visto Charles Eorbes ultimamente?

O coração de Jess pôs-se a bater um pouco mais depressa, como sempre acontecia quando o assunto eram negócios.

De vez em quando. Ele anda trabalhando muito, este ano. Charlie Cramer está cuidando do escritório para ele. É, eu o encon­tro de vez em quando. Bom sujeito. Já sabe?

O congressista assentiu:

Dizem que Charlie Forbes vai pegar o lugar de Fali no Interior quando Fali sair.

Certo fez Jess, e nada mais disse, porque não sabia coisa alguma do assunto, e alguém em sua situação, braço direito do braço direito do Presidente, deveria saber de tudo.

Então Forbes vai para o Interior?

Bem... — fez Jess, esforçando-se para parecer dissimulado. É, Fali vai voltar para casa. Está em má forma física e os dois filhos morreram, sabia?

Bem, acho que Charlie Forbes seria uma pessoa muito dinâmica nesse posto. Sim, senhor. O congressista deu uma risa­dinha. Um amigo meu vendeu à Seção de Vetferanos setenta mil galões de uma cera de assoalho que custava quatro centavos o galão, e eles pagaram quase um dólar por galão.

Setenta mil galões é muita cera comentou Jess, enfian­do a mão dentro do colete e puxando o lado direito da cinta, que estava começando a enrolar-se.

Cera suficiente para cem anos naqueles hospitais.

Jess fez ruídos amáveis, e o congressista seguiu seu caminho.

Jess conseguira fazer alguns negócios com Forbes, mas não mui­tos, porque Daugherty detestava profundamente o outro. Sempre ha- via uma certa quantidade de dinheiro solto num departamento como a Seção de Veteranos, e Forbes estava adquirindo a reputação de ser descuidado quando se tratava de contratar fornecimentos para os novos hospitais. Daugherty assegurava que Forbes era um viga­rista completo, ao passo que o Presidente acreditava que ele era, na pior das hipóteses, apressado demais e ansioso demais em criar fama na burocracia para poder subir os degraus até o próprio Gabinete. Jess fazia questão de nunca fornecer voluntariamente qualquer informação a Daugherty a respeito de dinheiro. De modo geral o procurador não era pessoa de fuçar os negócios alheios. Já tinha coisas demais com que. se preocupar. Apesar das queixas que W. G. fazia da Presidência, ele estava ansioso para ser novamente indicado e, eleito, e cabia a Daugherty garantir que nada sairia errado. Nesse ínterim, Lucie Daugherty estava no John Hopkins Hospital e o filho alcoólatra, Draper, estava prestes a ser internado, ao passo que o próprio Daugherty via-se obrigado a refutar 14 pedidos de impedi­mento, obra de um congressista fanático que julgava o procurador-geral brando demais, lento demais em levar os trustes à justiça. Como todos sabiam que o trabalhismo organizado estava por trás das tentativas de impedimento, o Congresso resolveu ignorar todo o assunto. Mas Daugherty estava fisicamente exausto, e Jess não ia aumentar sua carga, se pudesse evitar; muito pelo contrário.

Durante a hora seguinte, Jess fez inúmeros negócios do tipo que ele arquivava na mente como "conselhos": a quem procurar sobre qual assunto. Então ergueu-se com muito cuidado, por causa da cicatriz aberta sob a cinta, que podia, com sorte, estar fechando. O porteiro do Wardman Park ajudou-o a entrar num táxi, como se ele fosse feito de vidro.

Para a Casa Branca — Jess ordenou ao motorista: uma ordem que nunca se cansava de dar.

A Duquesa encontrava-se em sua cadeira de rodas; a seu lado estava o minúsculo Doe Sawyer, em seu uniforme de médico do exér­cito. Ambos pareciam um tanto desamparados na ampla sala de estar oval com o fogo luzindo na lareira.

Bem, Jess, quando a gente fica doente, você some. — A voz alta e anasalada éra vigorosa como sempre. — Não pense que não sei.

Ora, Duquesa, a senhora sabe que vim todos os dias em agosto, não foi, doutor?

Bem, eu estava em coma, de modo que não me adiantou muito, não é? Evalyn acabou de sair. Trouxe isto para mim. — A Duquesa ergueu uma touca de dormir de renda, cortada no formato de uma coroa. — O doutor diz que vou estar de pé no Natal, mas não vejo como. Estou tão fraca, pareço um farrapo, e além disso estou ficando cheia de edemas. — Com mórbida alegria a Duquesa en­toou sua lista de sintomas. Mas, como dizia Daugherty, ela tinha adquirido o direito de enfadar a todos com suas doenças, porque em agosto quase morrera quando seu rim restante», se infeccionara. Embora o Dr. Sawyer fosse apenas um clínico homeopata, tinha conseguido, de algum modo, salvar a vida dela novamente. Ou era um médico melhor do que as pessoas imaginavam, ou Florence Kling Harding era dura na queda.

Uma vez terminada a troca de doenças — a Duquesa interessa­va-se morbidamente pelo corte aberto de Jess —, ela lhe deu meia dúzia de páginas de um bloco de anotações da Casa Branca, cober­tas com sua melhor caligrafia.

Presentes de Natal. Você é a única pessoa que sabe com­prar coisas baratas que não parecem baratas. Temos que economizar, você sabe. O mercado de ações... — suspirou ela. Jess sabia exa­tamente quanto W. G. tinha perdido. — Talvez tenhamos que ven­der o Star.

Será que ele faria isto? — Jess perguntou.

Harding sem o Marion Star simplesmente não era Harding. Mas se pretendia ser Presidente por mais seis anos, acabaria velho demais para dirigir um jornal.

Tivemos uma boa oferta. De qualquer maneira, veja o que pode fazer sobre esses presentes.

Brooks, o criado do Presidente, apareceu à porta.

Certo, estou pronta — disse a Duquesa. — Estou exausta. Jess, recebi um telefonema de Madame Mareia. Adivinhe o que ela disse.

Não faço idéia — disse Jess, sacudindo a cabeça.

Bem, ela sabia da gripe, mas podia ter lido nos jornais, não podia? De qualquer maneira, o que queria falar comigo era sobre a oposição da Lua ao Sol, e a Saturno, que é muito séria. Porque significa que Warren não pode depender dos amigos. Ela disse que ele deve suspeitar daqueles em quem deveria confiar, e confiar na­queles de quem geralmente suspeita.

Isto é vago, Duquesa.

Hã — fez ela, enquanto Brooks começava a empurrar a cadeira de rodas.

Quer que eu vá também? — perguntou o médico.

A Duquesa sacudiu a cabeça, enquanto Brooks empurrava a cadeira para o corredor.

—7 Posso me arranjar — ela declarou, colocando a coroa de renda.

Jess chegou para a ponta da cadeira, preparando-se para partir. De repente o médico sentou-se diante dele.

Quero falar com você, Jess — disse. A voz do homenzinho era fria, e seu olhar deixava Jess nervoso.

Claro. Quequiá? — Jess perguntou automaticamente.

Charles Forbes é um vigarista. Que é que você sabe disso?

Alguma coisa estava mesmo muito errada se duas vezes no mes­mo dia duas pessoas tão diferentes quanto um congressista de Ohio e o Dr. Sawyer acusavam o Bobo da Corte, como a imprensa chama­va Charlie.

Bem, doutor, não estou sabendo disso. Houve aquela confusão no mês passado a respeito de Perryville, em Maryland, mas isso já terminou. Não é?

Não. — O médico encarou Jess fixamente. — Sou médico militar; trabalho para todo o exército, inclusive os veteranos. Charlie anda vendendo tudo que não está pregado no chão; compra do go­verno por centavos, e vende por muitos dólares.

Jess agora sentia-se definitivamente mal. O corte em seu lado direito queimava; de repente ele visualizou um "bezerro sendo mar­cado.

Pensei que o Presidente tinha impedido as vendas e que Charlie tinha explicado tudo e agora estaria tudo bem, e que a única coisa que andassem vendendo seria entulho velho.

Você tem negócios com Charlie?

Essa era a questão. O rosto de Jess ficou quente; a boca, seca. Ele ansiou por um copo d'água, um litro de água gelada.

Doutor, sabe que Daugherty não se dá bem com Charlie, e eu também não. Ah, ele vai à Rua K jogar pôquer e beber uísque, assim como o senhor faz, mas só isso.

Vou lá para jogar e beber uísque. É verdade. Mas alguns dos outros não, certo?

Não sei de que está falando. — O medo de Jess estava virando raiva.

Talvez não. Mais cedo ou mais tarde vou ter que denun­ciar Charlie Forbes.

Faça isso. Jess sabia que o médico não faria coisa alguma sem a aprovação do Presidente.

Apenas quero ter certeza de que só Forbes está envolvido.

O médico tornou a fixar os olhos em Jess, que desviou os seus. Nesse momento só conseguia pensar em beber água.

Se Charlie realmente está tramando alguma coisa, não pode estar agindo sozinho. Pode?

Bem, eu estava excluindo os amigos dele, como Charlie Cra­mer disse o médico. Só espero que ninguém mais da casa da Rua K esteja envolvido, como Mannington.

Não estão. Jess tinha certeza quase absoluta de que o que afirmava era verdadeiro.

Ótimo.

O senhor sabe: se realmente vai fazer a denúncia, procure o general.

Daugherty?

Jess assentiu.

Ele vai ficar feliz em colocar Charlie Forbes na cadeia. Acontece que o Presidente -não vai gostar, principalmente agora que vai concorrer à reeleição.

Ele não vai concorrer afirmou o médico em tom desolado.

Vai concorrer, sim.

Ele pensa que vai. Mas dentro de dois anos não estará mais

aqui.

Quando a cinta dobrou-se ao meio de repente, Jess sentiu uma faca quente apunhalando-o.

Não estou entendendo declarou.

O coração dele está piorando rapidamente.

Como é que sabe? Não é o médico dele...

É por isso que posso revelar. Ele está perdendo impulso, como um relógio velho. Vejo isso no rosto dele, nos olhos, na difi­culdade de respirar quando ele se deita, a não ser que Brooks colo­que vários travesseiros dehaixo dele.

Não pode fazer alguma coisa?

O Dr. Sawyer sacudiu a cabeça.

Há certas coisas sobre as quais nada se pode fazer a não ser ficar por perto, observar e rezar.

 

James Burden Day descansou os pés na grade de bronze e ficou a contemplar os carvões em brasa na lareira. Fevereiro era um mês no mínimo melancólico, que um senador só conseguia suportar porque sabia que o Congresso entraria em recesso dentro de poucas semanas, e as reuniões das comissões terminariam — podia ser, naturalmente, que não terminassem. No momento, quem não adoecera de gripe, adoecera simplesmente de tanto inverno e tanta política, ao passo que o próprio "país nunca estivera tão perturbado. Por enquanto a crise econômica tinha terminado, mas a normalidade de Harding ainda era um sonho. Em toda parte os trabalhadores estavam em greve ou ameaçando entrar em greve, e na sala de descanso do Senado havia longas conversas ociosas a respeito das vantagens e desvantagens da revolução, da ditadura, do caos. Enquanto isso, o Presidente conva­lescia da gripe, e Burden tinha sido chamado.

Na poltrona a seu lado, Cabot Lodge perguntou:

— Qual é o assunto desse seu encontro? Não quero ser indiscreto, é claro.

Ultimamente o fantasmagórico ancião dera para visitar Burden. Estava simplesmente solitário no prédio frio e ventoso do Senado. Embora fosse líder da maioria no Senado, Lodge inclinava-se agora a delegar poderes a outros. Com a morte da esposa adorada e do filho Bay, provavelmente mais adorado ainda, Lodge não tinha a quem amar; e, o que era ainda pior para alguém do seu temperamento, não tinha a quem odiar. O Presidente não apenas era um companheiro republicano, mas também absolutamente impossível de se odiar. Por uma razão qualquer, Lodge sempre tivera simpatia por Burden, mes­mo sendo Burden agora, senão no título, pelo menos na prática, o líder da minoria democrata. Caroline era uma ligação, naturalmente;

e havia sempre a corte de Henry Adams, agora tão dispersa quanto a do rei Arthur.

— O assunto será você — disse Burden, sorrindo para Lodge, que permitiu que sua barba branca estremecesse em resposta.

O Tribunal Internacional?

Burden assentiu.

Harding quer que entremos...

— É Hughes quem quer, e Harding faz o que ele manda. Hughes é advogado. Odeio advogados. Nenhum advogado consegue resistir a um tribunal, seja qual for. Já observou?

Depende do foro.

— Exatamente. Bem, isso está amarrado à Liga das Nações, de modo que nós nunca...

Nunca! Nunca!

— Nunca — sussurrou Lodge com certa satisfação — poderemos entrar!

O rosto pálido e marmóreo enrubesceu ligeiramente. Qualquer coisa ligada à Liga das Nações deixava-o de bom humor. — A Comissão de Relações Exteriores está dividida: oito contra oito. Como presidente da comissão, naturalmente vou querer mais tempo para estudar o assunto. De qualquer maneira, logo entraremos em recesso, e não há pressa. Dizem que Hughes está de cama com a gripe.

A Srta. Harcourt entrou com as anotações de Burden sobre o Tribunal Internacional.

— A Sra. Sanford telefonou — informou. — Disse que não era importante. Mas se o senhor tiver um tempinho...

Ela está na casa dos Loureiros?

Desculpe-me, senador, eu devia ter explicado melhor. Trata-se da Sra. John Apgar Sanford. Ela está de volta a Georgetown.

Fossem quais fossem as suspeitas da Srta. Harcourt, ela jamais as demonstrava.

Caroline voltou para casa — disse Lodge, sorrindo diante dessa perspectiva.

É o que parece. Preciso pedir a Kitty que ligue para ela.

— Que coisa curiosa para uma pessoa se tornar: estrela de cinema! — Lodge sacudiu a cabeça, perplexo. — Ela nunca pareceu ser do tipo que gosta de... se fantasiar. Mas ela foi educada na Fran­ça, e isso explica muita coisa. — Lodge estava melancólico. O bri­lhante filho perdido, Bay Lodge, morava no exterior, na França. — Sinto falta de Henry para viajar comigo, por mais horrível que ele pudesse ser, e era muito mesmo.

— Nós somos tão... tão... — Burden não tinha certeza da palavra que combinaria com seu próprio mau humor. Fez uma esco­lha: — Medíocres, hoje em dia! A não ser você, é claro.

E você, Burden. Vai ser Presidente um dia desses, se bem que isso não seja grande coisa.

Burden assentiu:

Não é mesmo. Neste mundo moderno, parece que nós não temos importância.

Burden percebeu que estava falando como um homem muito ve­lho — muito velho e realmente no fim; mas Burden não era velho, não estava no fim. Nunca duvidara que um dia seria Presidente. Mas esse dia tornara-se gelado e remoto, cada vez menos familiar, e seu lugar dentro dele perdera a importância.

— Os políticos só têm importância quando há uma guerra. Essa observação não é original, mas não deixa de ser verdadeira. A guerra criou Lincoln, Roosevelt, Wilson. — Lodge franziu a testa à lem­brança de seu antigo inimigo, que agora vivia como um rei exilado, ferido, na Rua S. Mudou de assunto. — Harding acha que vocês, de­mocratas, vão lhe dar o Tribunal Internacional.

Imagino que sim. — Burden foi cauteloso. Eram agora adversários políticos. — Você vai entregar-lhe o relatório da sua co­missão muito em breve, não é?

Por que tanta pressa?

— Porque o 67º Congresso encerra-se no domingo, 13 de março.

— Mas quando Hughes responder será a outro Congresso, em outra época. Diga a Harding que estamos com ele, é claro. Queremos um tribunal. Acontece que não queremos esse tribunal em particular, com todas essas ligações com a Liga.

Burden assentiu. Seria novamente a batalha da Liga das Nações. Para surpresa de todos, Harding estava ameaçando entregar a questão para o país decidir. Imperceptivelmente, o senador amável e pacífico transformara-se num Presidente inflexível, ciumentíssimo de seus poderes.

Juntos, Burden e Lodge atravessaram o saguão de teto alto do prédio do Senado. Sendo fevereiro um mês de dias escuros, luzes so­turnas estavam acesas, enfatizando a penumbra. Estacaram diante do escritório de Lodge.

Tem alguma notícia de Fali? — perguntou o ancião.

Nenhuma. Ele voltou para o Novo México, não foi?

Andou arrendando as reservas petrolíferas da Marinha para todo mundo, praticamente.

Era o trabalho dele.

Sim. É claro. Lodge entrou em sua sala.

Ainda enfraquecido pela gripe, o Presidente não estava na ala oeste da Casa Branca. Burden foi informado de que poderia encon­trá-lo na sala de estar do andar superior. Um funcionário ofereceu-se para acompanhá-lo, mas Burden afirmou que conhecia muito bem o caminho. En route, reconheceu vários funcionários do Serviço Secre­to e foi cumprimentado pelo secretário do Presidente, George Christian, que vinha da parte residencial.

O Presidente está lá em cima informou.

Quando entrou no saguão principal da Casa Branca, Burden espantou-se com o vazio. Aquilo lembrou-lhe o último ano de Wilson. O fato era que os turistas raramente apareciam nos dias frios de fe­vereiro, ao passo que os negócios do governo eram levados a cabo na ala oeste.

Enquanto se dirigia ao elevador, Burden ouviu uma voz alta e furiosa, vinda do Salão Vermelho. Simultaneamente, duas senhoras estavam sendo recebidas pelo chefe da portaria na entrada principal. Burden ficou preocupado: elas não deveriam ouvir o que quer que estivesse acontecendo.

Dirigiu-se. rapidamente para o Salão Vermelho, onde encontrou o Presidente dos Estados Unidos sacudindo o diretor da Seção de Veteranos pelo pescoço.

Seu traidor maldito, filho da puta! vociferava.

Com um último empurrão, Harding, de rosto escarlate, jogou Forbes de encontro à parede forrada de damasco vermelho. Os óculos de Forbes caíram no chão. Os cabelos ruivos estavam despenteados.

Sr. Presidente... — fez Burden.

Harding olhou para ele às cegas, por um instante, completamen­te desorientado. Então recuperou-se, voltando à sua postura digna, presidencial.

Senador Day! exclamou. Ah, sim. Temos um compromisso. Vamos para a outra sala.

Nenhum dos dois tomou conhecimento do pálido Charlie Forbes.

No Salão Azul, Harding sentou-se de costas para a janela. Respirava com grande dificuldade.

Suponho que o senhor queira saber como será a votação do projeto do Tribunal fez Burden com formalidade.

— É, sim. — Harding respirou fundo, entrecortadamente. — Si­tuação estranha, quando um Presidente republicano tem que confiar nos democratas para que seu programa seja aprovado pelo Senado. — Tentou sorrir, não conseguiu. — Neste trabalho, não é com os ini­migos que temos que nos preocupar; é com os amigos. — A referência a Forbes era clara.

Enquanto Burden analisava formalmente o estado de espírito do Senado, perguntava-se o que teria saído errado. Todos sabiam que o Bobo da Corte gastava dinheiro a rodo. Todos imaginavam que ele sem dúvida recebia "presentes" de empreiteiros e fornecedores, um costume venerável por parte dos funcionários do governo que distri­buíam contratos. Mas a idéia de que poderia haver corrupção séria não ocorrera a Burden, embora dois de seus colegas senadores, Wadsworth e Reed, tivessem certeza de que algo estava errado. Burden atribuíra suas suspeitas a um simples zelo partidário.

Vou fazer uma viagem pelo norte em maio ou junho, termi­nando no Alasca. Sei que vai parecer que estou em campanha pela reeleição, mas na verdade não estou. Só quero deixar bem claro meus problemas com o Senado.

Burden lembrou-se de Wilson. Como esses presidentes eram ex­traordinários a seus próprios olhos! Até mesmo o modesto Harding sucumbira ao brilho hipnótico da coroa, e passara a. acreditar que, simplesmente exibindo-se para o povo, seus inimigos seriam des­truídos.

Bem, é sempre bom afastar-se de Washington.

Também acho. — Harding ofereceu um charuto a Burden, que recusou. Harding então tentou acender um, mas suas mãos tre­miam e ele não conseguiu. Burden acendeu-o para ele. — A gripe nun­ca passa realmente, não é? — Soltou uma nuvem de fumaça, como se quisesse desaparecer dentro dela.

Passa, sim. Mas demora. No meu caso, levei um ano para me sentir bem outra vez.

— É. — A fumaça se dissipou. A pele morena de Harding tinha agora um tom amarelado. Pressão alta, concluiu Burden; causada por excesso de peso. Como se estivesse lendo os pensamentos dele, Harding continuou: — Este ano vou começar uma dieta rigorosa. Nada de uísque, poucos charutos, mais exercícios, embora não tenha mais o pique que costumava ter.

Isso vai voltar — assegurou Burden.

Era estranho pensar que ele, James Burden Day, era bem capaz de ser indicado como candidato democrata à Presidência em 1924, concorrendo com esse homem simpático. Se os tempos estivessem prósperos, Harding ganharia. Se não, Burden estaria instalado nesse lugar demasiado familiar.

Vou chamar essa viagem de "viagem de entendimento" — começou Harding; depois interrompeu-se. Em seguida continuou: — Gostaria que você não comentasse o que aconteceu aqui.

Se me pedir, não comentarei. Mas acho que o senhor deveria contar-me tudo, porque, se se trata de negócios públicos, vou ficar sabendo de qualquer maneira.

Harding descansou a face na mão direita. Fechou os olhos.

É o caso de Berryville, em Maryland. Charlie me disse que estava tudo certo e eu acreditei. Mas o procurador-geral não acredi­tou. Acabou de encerrar uma investigação. Charlie vai pedir demissão.

Isso significa que o Senado vai investigar,

Imagino que vou ter que fazer isso. Quero dizer — a tentativa de sorriso de Harding foi triste —, vocês vão ter que fazer isso. De vez em quando acho que ainda estou lá no monte do Capitó­lio e não aqui, no fundo desse maldito, poço. Que época para isso acontecer! — Harding sacudiu a cabeça. — Daujgherty está prestes a ter um colapso nervoso com todos os seus problemas, e eu mesmo estou um pouco deprimido...

— Bem, há uma coisa boa: daqui a poucas semanas o Congresso entra em recesso. Não vai poder haver grandes investigações antes de outubro, novembro.

Pensei que conhecesse Charlie Forbes tão bem quanto conheço qualquer pessoa, e aí...

Mas Harding não pretendia contar a Burden o que Forbes tinha feito, nem Burden perguntaria. O Executivo e o Legislativo, para não falar em republicanos e democratas, precisavam manter distância numa época como essa. Burden duvidava de que Forbes pudesse ter conseguido roubar muito num emprego tão visado. Os subornos eram cotidianos no governo, e havia limites traçados para o que uma auto­ridade podia exigir. Durante a guerra, Burden recebera numerosas ofertas de suborno por parte de empreiteiros navais e recusara todas, com o argumento de que não apenas era uma coisa errada mas tam­bém, se descoberta, sua carreira terminaria. Por outro lado, não cen­surava os outros. O que os outros escolhiam fazer era problema deles, não seu. De modo geral, os grandes jogadores políticos mantinham-se razoavelmente limpos. Harding era honesto, pelo que Burden sabia, e Burden sabia muita coisa: o Senado era um clube relativamente pe­queno, e quem ganhava dinheiro de quem era algo conhecido geral­mente, senão precisamente. Antes de 1917, pensou-se que Borah, o incorruptível, tinha exigido dinheiro de um certo George Sylvester Viereck, encarregado dos pagamentos em nome do kaiser. Culto e simpático, Viereck tentara encantar Burden, que se esquivara.

Mas as fronteiras eram vagas, e quando se tratava de contribui­ções para campanhas havia um caos moral. Em 1904, Theodore Roosevelt saíra mendigando a todos os magnatas do país. "Nós o com­pramos, mas ele não permaneceu comprado", dizia-se que Frick co­mentara mais tarde. Na verdade, Roosevelt fora suficientemente hon­rado para compensar o dinheiro gasto. Essa era a regra do jogo, e desobedecer era arriscar-se. Os políticos de Ohio inclinavam-se às ni­nharias, como Jess Smith, ajudando contrabandistas de bebidas, ou, como Mark Hanna, eram enormes operadores nacionais, vendendo seus presidentes como se fossem petróleo. De todos, Harding era, talvez, o mais honesto, ao passo que o muito difamado Daugherty pa­recia estar acima da tentação, exceto quando se tratava de levantar dinheiro para Harding; então ele se igualava a Hanna.

Bem, ainda temos Charlie Cramer na Seção. — Harding esmagou o charuto no cinzeiro. — Ele vai acertar tudo depois que Forbes sair. Burden, eu ficaria muito grato se você não dissesse coisa alguma sobre a demissão de Forbes até que ele realmente faça isso, na próxima semana ou na outra.

— Não direi.

Ótimo. — Harding sorriu; seu rosto voltara à cor normal. — Dizem que talvez eu concorra contra você em 1924.

Burden riu.

Ouço isto a cada quatro anos, mas sempre arranjam outra pessoa.

Pessoalmente, egoisticamente, espero que façam isso de novo. Ia ser difícil derrotar você.

Burden entregou ao Presidente uma pasta contendo suas opiniões sobre o Tribunal Internacional, e partiu.

Burden entrou pela porta lateral da casa dos Sanford na Avenida Massachusetts, agora à venda. Sempre que Blaise ou Frederika dese­javam passar a noite na cidade, usavam a parte superior da casa; o resto estava vazio, escuro, frio.

Frederika usava um negligê.

Entre. Feche a porta. A casa está gelada.

Ela tremia, embora a sala estivesse quente como uma estufa, com um grande fogo aceso na lareira e flores por toda parte: ela gostava que soubessem que levava sua jardinagem a sério. Na realidade, não sabia distinguir uma flor de outra, e preferia florzinhas singelas a crisântemos. As estufas da casa dos Loureiros eram bem cuidadas por jardineiros profissionais, e Frederika munca chegava perto delas.

Burden sentou-se junto ao fogo enquanto Frederika fazia um coquetel contendo gim. Desde a Proibição, as pessoas se sentiam obrigadas a beber ainda mais que antes. Felizmente nenhum dos era era viciado, ao contrário de metade do Senado e suas esposas.

Harding parou de beber.

Coitado.

Ele deve isso à Constituição...

À dele?

À nossa. Ambas, acredito.

Esteve com Caroline?

Burden sacudiu a cabeça. A nova amante gostava bastante da antiga amante, que não criava o menor problema. Então, de repente, a porta da sala abriu-se de supetão e ali estava Caroline em pessoa," com Blaise logo atrás.

O susto inicial de Burden transformou-se inesperadamente em humor. Ali estavam os quatro, como uma complicada equação que, com o tempo, ficava enviando novas respostas ou, mais precisamente, novos dados, já que não havia respostas na vida.

Finalmente você nos pegou observou Frederika em tom tranqüilo.

Beijou Caroline e deu um tapinha no rosto de Blaise. Burden sempre imaginara que Blaise sabia de tudo; agora perguntava-se se podia ser que Blaise não soubesse, porque triste pensamento! ele não se importava.

Bastante aconchegante comentou ele em tom neutro, sen­tando-se perto da lareira. Não tinha idéia de que você estava dan­do uma festa disse a Frederika.

E eu não estava mesmo. Até vocês dois virem fazer uma. Burden estava me contando tudo sobre o Sr. Forbes e a Seção dos Veteranos...

Estou em casa disse Caroline, sorrindo carinhosamente para Burden. Onde eu moro, você estaria falando sobre quanto

Robin Hood realmente lucrou na semana passada no Capitol... o da Broadway, não o nosso.

Como é realmente Douglas Fairbanks? perguntou Frederika.

Muito atlético.

Dá para ver isso na tela. Mas... em pessoa?

Não existe pessoa em pessoa retrucou Caroline.

Ela parecia alguém que Burden nunca conhecera realmente a não ser na tela. Conseguira simplificar seu rosto até torná-lo apenas um conjunto de feições perfeitas, em estreita harmonia umas com as ou­tras. Kitty tinha certeza de que ela recorrera à cirurgia, mas Burden achava que não. A câmera queimara todas as imperfeições, e a fama fizera o resto.

Quanto tempo vai ficar? Q tom de Burden era casual.

O que for necessário. Preciso esperar que o escândalo passe.

Como eu a invejo! Frederika estava sendo inteiramente sincera. Gostaria de ver meu retrato nos tablóides. Frederika Sanford...

O nosso nome de cinema é Traxler interpôs Blaise, olhan­do pensativamente para Burden, que enrubesceu.

Está certo. Frederika Traxler, femme fatale, a pérola da Transilvânia...

Alsácia-Lorena, minha cara. O sorriso de Caroline era deslumbrante.

Seja o que for. Você foi mesmo a última pessoa a ver aquele diretor?

A antepenúltima. Pelo menos. O sorriso de Caroline começou a desvanecer-se, exatamente como nos filmes.

Quem foi que o matou? perguntou Burden, voltando-se para ela.

Dizem que foi Eddie Sands. O empregado. De qualquer ma­neira, não é o tipo de caso que queiram solucionar. Nós o atribuímos à Maldição da Califórnia.

O roupão cor-de-rosa de Mary Intiles Minter no armário dele! Frederika estremeceu de prazer. Mabel Normand no meio da noite...

Pouco antes das oito da noite corrigiu Caroline.

— Achei-o encantador, aquela noite no Coconut Grove. Mas não tinha idéia de que ele fosse tão... sibarita?

E era mesmo? quis saber Blaise.

— Não vi sinal disso. — Caroline parou de sorrir e, não sorrindo, começou a parecer uma versão mais jovem de si mesma. — Ele era mais... paternal com as damas do cinema. Era sempre o melhor dos amigos. De qualquer maneira, meu novo amigo Will Hays está lim­pando Hollywood, e eu vou ajudá-lo.

Burden perguntou-se como poderia explicar, primeiro, sua par­tida imediata do" seio da família Sanford, e, segundo, sua presença no quarto de Frederika.

— Estamos tendo mais escândalos aqui do que em Hollywood... — começou.

Mas b nosso elenco é tão feio... — disse Frederika.

Frederika pôs-se a pentear os cabelos. Caroline observava-a com olho profissional. Blaise tocou a campainha chamando a criada de Frederika, a única empregada na casa.

O Sr. Harding é muito bonito — retrucou Caroline.

Ela contemplou-se ao espelho de Frederika e viu Burden. Ele ergueu uma sobrancelha — um cumprimento?

— Acho que ele não está envolvido, coitado. — Blaise voltou-se para Burden. — Que é que você acha?

— Harding é honesto. Mas conseguiu cercar-se de todos aque­les vigaristazinhos jogadores de pôquer. Como Charlie Forbes.

Depois do encontro de Forbes com o Presidente, ele fugira para a Europa, de onde pedira demissão, no dia 15 de fevereiro. Como Burden previra, pouco antes do recesso o Senado instaurou uma in­vestigação sobre a Seção de Veteranos. Então o Congresso foi para casa, e os Harding e os McLean foram juntos para a Flórida.

— Forbes não é um vigaristazinho. Ouviu a notícia sobre Cramer, não ouviu?

No momento, a Seção de Veteranos estava sendo administrada pelo conselheiro-geral, Charles F. Cramer.

— Ele também está envolvido? — Burden perguntou.

Blaise assentiu:

E muito, eu diria. Ou estava. Ontem à noite ele deu um tiro na cabeça, na antiga casa de Harding.

Cramer está morto? — Burden ficou atônito. Em sua experiência, a política jamais enveredara pelo crime escancarado, pela morte dissimulada.

Está, sim. Dizem que deixou duas cartas, mas elas desapareceram.

— Ela era encantadora — disse Frederika. — A Sra. Cramer. Como era o nome dela?

Ninguém respondeu. Então Burden disse o que todos estavam pensando.

— Supunha-se que Cramer não estava envolvido nas vigarices de Forbes.

— Ele devia estar sabendo — disse Blaise, enfático. — E, se soubesse, deveria ter denunciado publicamente. Afinal, ele é advoga­do. Ou era. De qualquer maneira, segundo o meu repórter, que esteve ria casa, havia sobre a mesa dele um recorte sobre a investigação do Senado.

— Ele ia ter que testemunhar... — começou Burden.

Ele se intárrompeu, subitamente cônscio da possibilidade de um escândalo tão grande que derrubaria o governo. Caroline completou o pensamento dele.

— Mas se alguém não quisesse que ele testemunhasse, poderia matá-lo e fazer parecer suicídio.

Ou um filme — disse Frederika. — Acho que o nome dela é Nonie.

— Eu tenho vivido num assassinato de cinema — declarou Ca­roline em tom veemente. — E podem ficar sabendo que não é agra­dável.

— Onde está Daugherty? — Burden perguntou a Blaise.

Em algum lugar da Flórida. Está doente.

A empregada entrou com uísque para o dono da casa. Burden usou a chegada dela como pretexto para a sua partida, e despediu-se carinhosamente de seus três amantes.

 

Geralmente maio era a época favorita de Jess em Deer Creek, mas nada lhe agradava agora, pois nada que ele fizesse agradaria Daugherty outra vez. Na maior parte do tempo os dois ficavam sen­tados em suas cadeiras de balanço, olhos postos nos bosques em ple­na folhagem. Em silêncio tinham comido as almôndegas que Jess co­zinhara. Agora Daugherty bocejava, pronto para seu cochilo da tarde. Ele levara três meses para recuperar-se da gripe. Depois da Flórida, fora sozinho para a Carolina do Norte; depois voltara para Washington

Court House e para o barracão em Deer Creek que os dois tinham usado durante anos para se esconderem do mundo. Mas era impos­sível esconder-se do mundo quando se era procurador-geral.

Talvez fosse melhor você continuar aqui disse Daugherty de repente.

Aqui? No barracão?

Não. Em Washington Court House. A outra Washington agora só vai trazer problemas para você. Para mim também.

Daugherty pôs-se a balançar-se mais depressa na cadeira. Jess esperou que o outro lhe contasse qual o tipo de problema, mas Dau­gherty ficou em silêncio.

Bem, houve aquela história do Charlie Forbes e o Cramer, mas isso já acabou. Que mais está acontecendo? perguntou Jess.

Daugherty grunhiu e pôs-se a balançar-se mais devagar.

Fali disse.

Durante um ano os conservacionistas vinham atacando Fali por sua indiferença em relação à natureza, um traço bastante simpático aos olhos de Jess. Então La Follette entrara em cena e pedira ao Se­nado uma investigação de todas as concessões de petróleo dadas pelo Departamento do Interior. O senador Walsh de Montana recebeu a tarefa de descobrir por que as terras da Marinha tinham sido entre­gues ao Interior, e em qual princípio Fali se baseara para arrendar as terras a exploradores particulares. Nada de interessante viera à luz. O secretário da Marinha não queria preoc,upar-se com as grandes reservas petrolíferas que tinham sido estabelecidas na iminência, embora longínqua, de uma guerra com o Japão. O secretário do In­terior tinha pedido então para encarregar-se delas, e o Presidente con­cordara. Tudo isso fora feito às claras. Edward Doheny ficara com a concessão da Reserva Naval Número Um e Elk Hills, na Califórnia, e Harry Sinalair com a Reserva Naval Número Três em Teapot Dome, no Wyoming. Tudo isso tinha sido executado corretamente, ao que parecia. No entanto, a investigação do Senado a rèspei-to de Fali de veria prosseguir quando o Congresso voltasse a reunir-se em outubro, simultaneamente à investigação da Seção de Veteranos.

Que foi que Fali fez?

Quem sabe? O que nos importa é o que Walsh pensa que ele fez.

Como, por exemplo, aceitar uma... uma comissão de Doheny?

— Um suborno. Claro. E de Sinclair também. Agora mesmo aquele maldito idiota está viajando com Sinclair. Pedi para ele não fazer isso, mas ele acha que é Deus na terra, de modo que ele e Harry Sinclair estão juntos procurando petróleo na Rússia.

— Sócios?

— E há quanto tempo os senhores são sócios? — A voz de Daugherty assumiu um tom alto e inquisidor. — Ah, vai ser um in­ferno. Para o Presidente. Graças a Deus ele vai sair da cidade. Pre­cisa de um descanso. Eu também. — Daugherty pôs-se de pé e boce­jou. — Vou tirar meu cochilo.

Certo, general. Eu tomarei conta do forte.

Daugherty entrou, e Jess ficou a balançar-se, sentindo o movimento acalmá-lo. A cinta incomodava-o menos agora que à cicatriz começava a fechar-se, mas ultimamente ele vinha tendo estranhas tonturas e momentos de confusão quando estava acordado, e sonhos horríveis quando não estava. O médico não ajudara, ao assegurar-lhe que isso era perfeitamente normal num diabético e que ele nada ti­nha a temer, contanto que se lembrasse de tomar suas injeções de insulina.

Apesar de três meses de convalescença, Daugherty ainda não estava inteiramente bem. Estava irritável com Jess, algo que nunca fora antes. Para Jess, Daugherty sempre tinha sido o irmão mais velho ideal, sábio, divertido e generoso. Em vinte anos, nunca tinham trocado palavras ásperas. Jess teria cometido assassinato por Dau­gherty; teria entrado no armário de vassouras sem uma lanterna, se Daugherty lhe pedisse. Como a lembrança daquele armário fazia seu pulso disparar, ele obrigou-se a pensar em algo agradável, como a via­gem ao Alasca. A maior parte do Gabinete estaria no trem com o Presidente, e eles fariam paradas demoradas em todo o país, de modo que W. G. pudesse deitar falação e recuperar as forças, renovado pelas multidões que o amavam mesmo se o Senado não o amasse. Jess estaria com o Presidente nos jogos de bridge.

Jess!

Jess abriu os olhos, assustado. Adormecera na cadeira de balanço. Parado diante dele estava um membro da turma do tribunal de Columbus. Antigo partidário de Harding, ele só aparecia quando queria alguma coisa.

Quequiá? — fez Jess.

— Há que eu tenho que falar com o general. Ele está aqui, não está?

Jess assentiu.

— Mas está tirando um cochilo depois do almoço. Volte mais tarde.

O homem sacudiu a cabeça.

— Não posso. Tenho negócios em Marion. Só quero dar duas palavrinhas com ele.

Finalmente, com relutância, Jess concordou. Entrou no barracão e subiu os degraus carcomidos até o quarto de Daugherty. Ficou um instante escutando os roncos, depois chamou:

— General, um amigo seu veio visitá-lo.

Daugherty levantou-se com um palavrão.

— Merda! — repetiu, enquanto saía do quarto e descia a escada. Assustado, Jess ficou em seu próprio quarto até o encontro ter­minar, uns cinco minutos depois, quando ouviu o som de um carro afastando-se, seguido pelos passos pesados de Daugherty nos degraus, e então um monólogo do tipo que Jess nunca ouvira antes por parte de Daugherty ou, aliás, de qualquer pessoa.

O assunto parecia ser a sacrossanta qualidade do cochilo da tarde, mas muitas outras coisas foram ditas até que Jess concluiu que provavelmente ainda estava dormindo na cadeira de balanço e aquilo era um típico pesadelo de diabético. Mais tarde ele acordaria. Mas não acordou. Daugherty agora estava vestido e de malas arrumadas, tinha mandado buscar o motorista para levá-lo a Washington Court House.

— Você pode voltar para a cidade por sua conta — disse, ba­tendo a porta da rua atrás de si.

Jess foi ao telefone e ligou para Roxy. Mas ela não estava. Deu mais dois telefonemas: ninguém atendeu. Então Daugherty abriu a porta da frente e disse:

Venha, vou levá-lo para a cidade.

A maior parte da curta viagem foi feita em silêncio. Daugherty olhava por uma janela, e Jess pela outra. O motorista estava isolado pelo vidro entre os dois bancos, para dar privacidade.

Quando chegaram à rua principal, Daugherty disse ao motorista para parar perto da loja de Jess. Daugherty evitou os olhos de Jess ao dizer:

Eu estava falando a sério sobre você ficar aqui, ficar longe de Washington. Está ficando quente demais.

— Eu não fiz coisa alguma. — Jess estava quase que ferido demais para defender-se. Não tinha feito coisa alguma, a não ser o tipo de besteirinhas que praticamente todo mundo em sua situação fazia. — Nunca tive nada a ver com Charlie ou com Fali.

— Há a Rua K, há Mannington. Daugherty continuava sem olhar para ele. — O Presidente quer você fora de Washington.

— W.G? — fez Jess, atônito.

Também tenho que lhe dizer que você não vai para o Alasca. Ele me mandou tirar seu nome da lista.

Outras coisas foram ditas. Mas Jess estava confuso. Odiava armas de fogo. Daugherty parecia louco. O carro parou.

Jess saiu do carro às cegas. Vários amigos o cumprimentaram. Apertou meia dúzia de mãos. Então, enquanto o carro se afastava com o procurador-geral, Jess entrou na loja de Carpenter e comprou uma pistola e munição. O proprietário espantou-se.

Ora, Jess, nunca vi você tocar numa arma antes.

É para o procurador-geral. Hoje em dia a gente tem que se proteger.

Jess não se importou com o toque frio e rígido da pistola tanto quanto pensou que se importaria. Que mais Daugherty lhe dissera? Ou ele sonhara tudo aquilo? O que pensava que Daugherty tinha dito no carro, ele não podia ter dito. Era só um pesadelo.

Roxy queria ir a um jantar dançante no Scioto Country Club, e Jess fez-lhe a vontade. Agora que tudo estava-decidido", ele se sentia em paz com o mundo, senão com seu próprio corpo, que. não estava reagindo à insulina tão bem quanto deveria. Ele estava, cada vez mais sujeito a ataques que o deixavam trêmulo e desorientado. Mas tudo logo estaria bem. Daugherty lhe telefonara naquela tarde para a loja. Eles voltariam juntos para Washington e Daugherty então mudar-se-ia para a Casa Branca, ao passo que Jess voltaria para o Wardman Park para encerrar seus negócios. Era como nos velhos tempos, quase.

A orquestra era boa, e o mais recente sucesso, Tea for two, tentou Jess a dançar, mas Roxy objetou:

— Não. É muito esforço para você. Além disso, odeio sentir essa sua cinta encostando em mim.

Não vai ser por muito tempo — Jess disse.

Por toda parte havia sinais de prosperidade. Alguma coisa estava acontecendo no país. Os negócios iam bem. Havia um forte cheiro de rosbife e charutos de Havana no amplo restaurante com a orques­tra e a pista de danças no extremo oposto. Jess conhecia todo mundo no salão, e todos o conheciam e gostavam dele. Mas como essa noite ele queria ficar com Roxy, manteve os "quequiá" no mínimo.

— Você está bem, não está? — Roxy perguntou.

Ela ficara preocupada na véspera, quando ele estava sofrendo de uma espécie de sonho em vigília no qual as palavras de Daugherty em Deer Creek misturavam-se com visões de pesadelo, de caran­guejos, galochas e pistolas, e a escuridão. Ele sabia que tinha dito coisas sem sentido a Roxy. Mas agora estava inteiramente controlado. Os fatos aconteceriam segundo o seu plano, e nenhum outro.

Que quis dizer com "Eles passaram para mim"?

— Eu estava tendo um daqueles ataques que tenho de vez em quando. — Jess serviu-se um gim-martíni de um bule de café. — Vai sentir saudade de mim quando eu partir?

— Sempre sinto. Pelo menos por algum tempo. Ando muito ocupada.

— Vou dar meu sedã Cole para você.

A orquestra tocou Yes, não temos bananas, um título que irritava Jess extremamente. Por que "yes", se não havia bananas?

A viagem de trem de volta a Washington foi como nos velhos tempos, quase. Daugherty estava simpático, como costumava ser. Combinou-se que Jess destruiria todos os seus arquivos, caso as di­versas investigações se espalhassem para fora da Seção de Veteranos e as reservas petrolíferas navais. Daugherty achava que o Senado não encontraria coisa alguma além do fato conhecido de que Forbes era um ladrão, agindo por conta própria, ao passo que Fali, um favorito do Senado, não era mais que um bom amigo dos magnatas do petróleo.

— Andamos censurando os telefones do senador Walsh. — Daugherty fixou em Jess seu bem-humorado olho azul; através da janela, a paisagem plana de Ohio dava lugar à montanhosa Virgínia. — Ele não vai a parte alguma, eu diria. Fali é um bicho muito esperto. — O olho azul piscou de repente, sem motivo. — Mas Charlie Forbes vai passar trinta anos na cadeia, se eu puder fazer alguma coisa.

— E Charlie Cramer? — perguntou Jess.

Ele não acreditava na história do suicídio. A pessoa só se matava se estava realmente doente de alguma coisa, como diabetes antes da época da insulina.

Que é que tem ele?

Ele estava por dentro, com Forbes?

Por que outro motivo ele se mataria? — O olho castanho juntou-se ao azul encarando Jess.

Bem, alguém podia ter dado um tiro nele para silenciá-lo, não podia?

Burns saberia.

Daugherty tinha muito mais fé em seu diretor do FBI do que Jess ou qualquer outra pessoa. William J. Burns era um velho amigo de Daugherty do tempo de Columbus, onde ele tinha a Agência Na­cional de Detetives Burns. Era tão íntimo de Daugherty que final­mente mudara-se para Wardman Park, ficando com um apartamento diretamente abaixo daquele que Daugherty compartilhava com Jess. Como resultado, Jess sempre tivera ciúmes da intimidade entre os dois, e suspeitava que havia segredos que Daugherty compartilhava com Burns e não com ele.

Jess nunca fora um bom jogador de golfe; hoje estava em sua pior forma. Mas os outros eram tolerantes, na partida que dispu­tavam em Amizade, sob um céu escuro. Embora os McLean esti­vessem na Virgínia, em sua propriedade de LeesbUrg, os amigos eram encorajados a usar o campo de golfe quando quisessem.

Entre os jogadores achava-se Warren F. Martin, o assistente es­pecial de Daugherty no Departamento de Justiça — um homem que Jess nunca chegara a conhecer muito bem — e o médiga pessoal do Presidente, o capitão-de-corveta Boone, um sujeito simpático que finalmente, vendo que Jess estava suando demais mesmo para um dia úmido e abafado, sugeriu:

— Vamos entrar. Jess está tendo uma reação menopáusica.

Mas Jess recusou-se: jogaria até o nono buraco. Depois todos voltaram para a sede do clube. Jess ficou lá algum tempo, mas recusou uma bebida.

— Está ansioso pela viagem no mês que vem? — perguntou Boone, um homem simpático e, pelo que diziam, um bom médico.

— Eu não vou.

Jess olhou para Martin, que desviou os olhos com ar de culpa. Martin sabia da sua queda. Daugherty lhe contara. Quantos outros saberiam?

Que pena. Parece que vai ser divertido. O general vai?

Não — respondeu Martin. — Ele vai ficar quieto. Andou afastado do escritório por quase três meses.

Assim Martin respondeu a pergunta endereçada a Jess Smith, pára-choque de Daugherty e seu melhor amigo. A cortina estava caindo depressa. Jess dirigiu seu sedã Cole de Amizade ao Departa­mento de Justiça, onde foi recebido como se nada tivesse acontecidos Pelo menos Daugherty não tinha dito aos guardas. Jess esvaziou os arquivos em seu escritório no sexto andar; depois foi de carro à Casa Branca, onde, novamente como se nada tivesse acontecido, os guardas acenaram para que ele atravessasse o portão para os escri­tórios executivos. No saguão de recepção, ele disse ao funcionário de plantão que tinha um compromisso com o Presidente, o que não era exatamente verdadeiro. Mas não teve que esperar muito tempo. Enquanto descia o corredor, passou pelo armário de casacos e estre­meceu, como sempre fazia quando pensava em qualquer armário, tão parecido com um caixão, exceto que naquele armário em parti­cular W.G. e Nan tinham feito amor de pé? Ou havia espaço suficiente para os dois se deitarem no chão?

O Presidente estava parado de pá atrás da escrivaninha, olhan­do pela janela para o gramado sul, de um verde radiante à luz do final da tarde. Então voltou-se, e Jess ficou chocado ao constatar como o rosto do Presidente estava acinzentado, como ele tinha engor­dado. Mas o sorriso era encantador como sempre, e o aperto de mão era firme.

Bem, Sr. Presidente, estou fazendo o que me mandaram. Vou sair da cidade.

Sente-se, Jess. Harding permaneceu de pé, um charuto apagado na mão direita. Lamento muito que tenha que terminar assim. Você tem sido um bom amigo meu e da Duquesa, mas teremos muitos problemas em outubro, quando o Congresso reabrir. Fui con­fiante demais, diz a Duquesa. Eu não acho. Acredito que as pessoas que estão se saindo bem fazendo as coisas certas não serão idiotas a ponto de arranjarem problemas para si mesmas fazendo coisas erradas.

Sim, senhor. Jess sentia-se como se fosse um par de olhos sem corpo descansando lá em cima no lustre, observando os dois a distância. Acho que nenhum de nós na casa da Rua K...

Jess, Jess... — O Presidente fez um gesto para que ele se calasse; depois sentou-se à escrivaninha e apoiou a cabeça na mão. Sei tudo sobre a Rua K. Ou pelo menos tudo que quero saber, e gostaria de não saber o que sei. Não culpo você. Acho que a culpa é minha, de ter pensado que você saberia a diferença entre

Washington e Washington Court House, o que se pode e o que não se pode fazer aqui.

Bem, fiz o melhor que pude. Para todo mundo. Ou tentei. Jess esperava que não fosse começar a chorar.

Eu sei. Eu sei. Se não fosse aquela. . . confusão da Seção de Veteranos... O Presidente não continuou; ele também não conseguia pronunciar o nome de Charlie Forbes.

Que é que devo fazer com.os relatórios de Undergleider?

O Presidente deu de ombros.

Os meus você pode publicar no Post, se quiser. Eles só mostram que fui tão azarado no mercado de ações quanto em tudo mais. Estou vendendo o Star.

Lamento", W.G.

De certo modo, a lembrança do Marion Star transportou, embora fugazmente, as duas figuras no extremo do escritório oval de volta a um tempo mais feliz, qyando W.G. era um jornalista e Jess era dono de uma loja na cidade vizinha. Tinham percorrido um longo caminho até aquela casa maléfica e aquele final incomum.

Tive que fazer isso. Precisávamos do dinheiro.

O Presidente levantou-se. Jess voltou para seu corpo doente junto à escrivaninha e apertou a mão de Harding pela última vez.

Era noite quando Jess estacionou seu sedã Cole na garage do Wardman Park. Então pegou o elevador para o seu andar. Quando destrancava a porta para a sala da suíte, percebeu que alguma coisa não estava certa. Então viu Martin, em mangas de camisa, sentado atrás da escrivaninha, falando ao telefone:

Só vou saber quando ele chegar aqui. Então Martin deve ter ouvido o som forte da respiração de Jess, pois falou: Eu lhe telefono depois. Martin sorriu para Jess; ele sempre sorria. Era mais de dez anos mais jovem que Jess. O general estava preo­cupado com você. De modo que me pediu para dormir aqui, sabendo que você não gosta de ficar sozinho à noite.

Ótimo disse Jess.

Havia dois quartos de dormir na suíte, com a sala de permeio. A maleta de Martin estava na cama de Daugherty.

Jess entrou em seu quarto e fechou a porta. Depois abriu sua pasta e retirou todos os extratos bancários, os recibos, as cartas. Tinha recolhido também tudo que se relacionava ao Presidente e a Daugherty. Ao lado de sua escrivaninha havia uma cesta de papéis de metal. Metodicamente, um por um, ele colocou os papéis na cesta e ateou fogo. Uma brisa fresca soprava a fumaça para fora da janela aberta. Um trovão soou a distância. Por que logo Martin, entre tantas pessoas?

De repente Jess teve uma inspiração. Telefonou para os McLean em Leesburg. Evalyn atendeu.

É Jess — ele anunciou.

De volta do Ohio?

— Por algum tempo. Escute. Será que posso ir até aí passar uns dois, três dias?

Claro que pode. Há bastante lugar. Você está bem?

— Estou um pouco chateado. Acho que você sabe: negócios, coisas assim.

Eu sei — fez Evalyn, que provavelmente sabia muita coisa.

Vou partir assim que puder.

Jess desligou. Um trovão soou ainda mais alto, e a chuva come­çou a cair torrencialmente.

Jess cochilou. O último dos papéis tinha virado cinza. Ele acor­dou com a chuva em seu rosto. Consultou o relógio: mais de 10:00h. Fechou a janela. Depois tornou a ligar para Evalyn e disse a ela que estava chovendo demais para dirigir. Ela sugeriu que ele fosse de manhã..Ele garantiu que estaria lá às 7:00h. Em ponto. Já estaria claro. Ele não gostava de dirigir no escuro — na realidade, de fazer qualquer coisa sem uma luz acesa em algum lugar.

Jess tornou a cochilar. Sonhou com monstros, armários, horrores que ele podia sentir mas não conseguia ver. Sonhou que ouviu uma chave girando numa fechadura e uma porta sendo aberta. Então um trovão explodiu, um relâmpago, a escuridão.

 

Warren T. Martin e o capitão-de-corveta Joel T. Boone puseram-se de pé de um salto quando Brooks anunciou:

Senhores, o Presidente.

Harding entrou na sala de estar oval. Usava pijama e roupão, e apenas metade do rosto barbeado. Com uma toalha retirava a es­puma do lado não barbeado.

Que foi que aconteceu?

Acenou para que se sentassem.

— Bem, senhor — começou Martin, puxando nervosamente os dedos da mão direita com a esquerda. — Mais ou menos às 6:30h da manhã ouvi o que parecia ser uma porta batendo, ou talvez um trovão, porque houve uma tempestade horrível durante a noite in­teira. Tentei voltar a dormir mas não consegui. Então levantei-me para ver como Jess estava. A porta do quarto dele estava aberta, olhei para dentro e lá estava ele, caído no chão, a cabeça na cesta de lixo cheia de cinzas, com a pistola na mão. Tinha dado um tiro na cabeça, no lado esquerdo.

Harding segurou o lado direito da própria cabeça, como se para protegê-la de uma segunda bala.

Deixou uma carta, qualquer coisa?

Não, senhor. Ele queimou um monte de papéis na cesta, antes de... — Martin tinha a boca seca. Engoliu com força. — Então telefonei para o Sr.- Burns, que mora no andar de baixo, e ele ligou para o senhor, e o senhor mandou o capitão Boone, como mé­dico, e ele examinou o corpo.

Harding olhou para Boone..

— Você tem que fazer uma declaração à imprensa. Diga a eles que... ele se matou porque... — Harding esfregou os olhos.

— Porque, senhor, ele estava em crise de depressão diabética, e vinha sofrendo dessa depressão desde o ano passado, quando operou o apêndice e o corte custou a cicatrizar. Como não havia motivo para autópsia, entreguei o corpo para o Sr. Burns do FBI.

— Ele vai mandar os restos para serem enterrados em Washing­ton Court House — informou Martin.

Harding ergueu-se.

— Capitão, desça ao escritório da imprensa e faça a sua declaração. Obrigado a ambos.

Harding apertou a mão de cada um e levou-os até a porta. Depois sentou-se junto à janela e contemplou o Monumento a Wash­ington, como uma agulha branca ao brilhante sol matinal. Ouviu uma porta bater no corredor, depois ouviu a voz de Daugherty:

— O que há de errado com o telefone do meu quarto? Não consigo falar com o Sr. Smith pela minha extensão.

O Presidente não conseguiu escutar a resposta do funcionário. Mas pela expressão de Daugherty era óbvio que ele tinha acabado de receber a notícia: ficou parado no meio da sala oval, incapaz de dizer qualquer coisa.

Jess se suicidou — disse Harding. — Primeiro queimou muitos papéis. Não sobrou coisa alguma no quarto dele. Nenhuma carta, nada.

Ele se matou com a arma que comprou na semana passada em Washington Court House.

Com uma pistola, disseram. Martin o encontrou. Telefonou para mim. Mandei o Dr. Boone até lá. Depois Burns se encarregou. O corpo está a caminho de casa.

Onde foi que ele atirou?

Harding colocou a mão esquerda no lado esquerdo do rosto:

Aqui.

Mas Jess não era canhoto — interveio a Duquesa. Ela estava parada à porta, usando um enfeitado roupão de seda.

— Talvez eu tenha entendido errado — respondeu o Presidente. Ele sacudiu a cabeça. — Primeiro Cramer. Agora Jess. Há uma maldição sobre nós, eu juro que há.

— E logo esta noite os Sanford vêm jantar. Vou cancelar.

Não, não. Não seria apropriado,

Ou sábio. — Daugherty soltou um longo gemido, sem parar para respirar.

Blaise e Frederika tinham ficado surpresos ao receberem o con­vite para um jantar familiar na Casa Branca, e ainda mais surpresos porque o jantar não foi cancelado depois da notícia de primeira página do suicídio de Jesse Smith.

O Presidente comportou-se com grave cortesia, mas nada mais. Parecia distraído. O procurador-geral mal falou. A primeira dama fez o possível para manter uma conversa leve. Como um jornalista lem­brava-lhe outro jornalista, ela passou algum tempo discutindo Ned McLean.

— Acho que ele se saiu muito bem no Post. Sei que as pessoas acham que ele não é sério. Mas a quantidade de anúncios, foi três por cento maior do que no último trimestre — disse ela.

Blaise lembrou-se que a Sra. Harding dirigira um jornal durante anos. Falaram sobre taxas de publicidade, enquanto Frederika ten­tava divertir o Presidente.

Algum Presidente já esteve no Alasca antes?

Harding encarou-a com os olhos vagos; depois pareceu repetir a pergunta dela em pensamentos.

— Não. Serei o primeiro. Estou ansioso para sair daqui, eu lhe juro.

— Acabei de ver o seu itinerário, Sr. Presidente. O senhor é muito ambicioso. Todas aquelas paradas no caminho, com esse calor...

A isso, a Sra. Harding ergueu os olhos.

O Dr. Sawyer não quer que você vá. Diz que é demais. E eu concordo.

— É o meu trabalho.

Blaise observou a cor pardacenta do rosto do Presidente, e tam­bém a papada que começava a derramar-se sobre o colarinho rígido quando ele baixava a cabeça. Blaise perguntou-se se haveria algo verdadeiro na história do sangue negro de Harding; perguntou-se também se Jess Smith teria mesmo se suicidado. O repórter do Tribune achara muito suspeito o fato de ninguém ter visto o cadáver a não ser um médico da Casa Branca e o diretor do FBI. Além disso, era muito conveniente que Jess se matasse na suíte do hotel de Daugherty com um agente do Departamento de Justiça no quarto con­tíguo e o Sr. Burns do FBI no andar de baixo. Então, em vez de um exame pelo legista da polícia, como mandava a lei, um médico naval da Casa Branca tinha sido chamado. Mas por que, Blaise se perguntava, Daugherty quereria seu melhor amigo morto? Por que, perguntara o repórter, havia tantos papéis queimados, e a única pes­soa que sabia o que continham estava morta?

A Sra. Harding propôs que assistissem um filme no segundo andar, e todos se sentiram aliviados por não haver mais necessidade de conversar.

Enquanto Frederika e Blaise seguiam o Presidente e a Sra. Har­ding para o local onde cinco poltronas tinham sido arrumadas, Frederika cochichou a Blaise:

É como uma noite com os Macbeth.

Cale a boca — respondeu Blaise.

O filme era Monte Carlo, estrelado por Emma Traxler.

Espero que ainda não tenham visto este — disse a Sra. Harding.

Não — respondeu Frederika. Caroline pediu-nos para não ver.

Enquanto Emma Traxler entrava, de vestido de baile, no Palácio de Inverno, a Sra. Harding observou:

Acho que esta sua irmã é a jornalista mais bonita de Washington.

Pela primeira vez na noite todos riram, exceto Daugherty, que soltou um longo gemido.

 

Burden e seu vizinho cego, o ex-senador Thomas Gore, contemplavam os bosques enluarados onde Gore estava construindo uma casa. Derrotado em 1920 depois de três mandatos no Senado, Gore estava advogando em Washington, e ganhando dinheiro pela pri­meira vez na vida.

— A casa vai ficar escondida, uns duzentos metros a nordeste daquela colina.

O homem cego apontou corretamente coin sua bengala. Burden sempre se admirara do modo como Gore segurava um manuscrito na mão enquanto discursava e de vez em quando fingia consultá-lo, como se estivesse confirmando um dado estatístico ou as palavras exatas de uma citação latina. Embora dois acidentes o tivessem dei­xado cego aos dez anos de idade, dizia-se que ele fora eleito o pri­meiro senador de Oklahoma por meio de fingir não ser cego. Daí fingir ler, enxergar.

Durante o jantar as esposas conversaram, e agora continuavam conversando na sala enquanto os homens aproveitavam a cálida noite de agosto. Vagalumes piscavam no bosque escuro. A lua estaya escondida atrás das nuvens. Burden fechou os olhos para ver como era ser cego: intolerável, concluiu. Conversavam sobre a investigação a respeito de Fali.

— É um velho amigo meu — disse Gore. — Não vou especular sobre o que ele fez ou deixou de fazer, mas Sinclair e Doheny não desistem quando têm alguém em sua mira.

— Bem, o senhor os denunciou.

Alguns anos antes, Gore criara sensação no Senado ao revelar que uma companhia petrolífera lhe oferecera suborno. Ninguém fi­zera isso antes, e a excentricidade de Gore foi deplorada na sala de descanso. "Eu morreria de fome, se não fossem os amigos!", ex­clamara um estadista sulino.

Agora eu me pergunto se teria feito o que fiz se estivesse tão quebrado quanto Fali está. Ninguém pode dizer o que faria se estivesse no lugar de outra pessoa.

Acho que nem eu, nem o senhor aceitaria um suborno — declarou Burden com convicção.

— Mas e as contribuições? — Gore suspirou. — É onde as coisas ficam confusas. Sabe, em 1907, na minha primeira campanha, eu não tinha dinheiro algum. Literalmente. Aliás, estava devendo, porque em vez de advogar eu estava fazendo política para conseguir que Oklahoma entrasse para a União. De qualquer maneira, depois que fui indicado, estava parado na frente de uma barbearia em Lawton, pensando na má situação em que me encontrava, quando um desconhecido me abordou dizendo: "Tome isto aqui", e me deu um envelope. Depois foi embora. Bem, dentro daquele envelope havia mil dólares. — Gore riu. — Adoro contar essa história porque nunca encontrei alguém que acreditasse nela. Mas foi assim que aconteceu.

Pretende voltar, não é?

Gore virou-se para ele. Seu único olho, de vidro, brilhava ao luar, enquanto o olho cego era opaco, não refletia a luz.

— Quando fui derrotado, na vitória de Harding, achei que era o fim do mundo. Depois pensei melhor, e disse a mim mesmo: "Bem, você está com cinqüenta anos de idade, é senador desde os 37 e nunca teve oportunidade de ganhar um centavo. De modo que tire umas férias. Construa uma casa no Parque Rock Creek. Depois volte. Escrevi um bilhete e o escondi no plenário do Senado, dizendo que um dia estaria de volta. E engraçado — ele ergueu a bengala à sua frente como se fosse uma vareta de adivinhação —, logo depois que escondi aquele pedaço de papel saí para a sala de descanso para juntar minhas coisas, pois era o último dia de sessão, e de repente senti dois braços me rodearem num forte abraço. Perguntei quem era, e uma voz respondeu: "É só um malandro velho, a caminho da forca", e era Harding.

Burden lembrou-se da alegria de Harding em seu último dia como senador, brincando com os senadores que tinham tomado a si todo o crédito pela eleição dele. Agora estava doente num quarto de hotel em San Francisco. Oficialmente tivera uma intoxicação por ptomaína; mas esse tipo de intoxicação passava logo, e o Presidente estava doente havia cinco dias. O resto da viagem tinha sido cance­lado. Falava-se em problemas de coração.

Ele teve tanta sorte, durante tanto tempo, e agora o povo está prestes a voltar-se contra ele disse Burden.

Mais cedo ou mais tarde o povo se volta contra todo mundo suspirou Gore. Eu lhe juro, se houvesse outra raça que não fosse a humana, eu entraria para ela.

Burden esquecera-se do quanto sentira falta do humor negro de Gore. Quando foi forçado a tomar posição no caso da Proibição, algo muito perigoso para um político do Cinturão da Bíblia, Gore declarara achar a 18ª Emenda uma coisa ótima porque "agora os abstêmios têm a sua lei, os que bebem têm o seu uísque, e todo mundo está feliz".

Kitty saiu para a varanda.

A Casa Branca está no telefone; é o escritório do Sr. Christian.

Tão tarde assim? Burden foi até o saguão e pegou o aparelho. Senador Day falando,

Uma voz não-identificada disse:

Lamento incomodá-lo tão tarde, mas oSr. Christian acha que o senhor deveria saber que o Presidente está morto.

Morto? Que foi? Burden sentou-se sobre a mesa comprida, algo proibido pelas leis de Kitty.

Apoplexia, dizem. O Sr. Christian queria que o senhor soubesse antes que os jornais publiquem.

Burden agradeceu ao desconhecido. Depois telefonou para Lodge. Lodge ouvira as notícias? Não. Quando Burden lhe contou, Lodge exclamou:

Meu Deus, isto é terrível! Impensável!

Ele parecia realmente perturbado.

Ora, é, mesmo, terrível, tão novo ainda. Mas eu não sabia que vocês dois eram tão amigos.

Não éramos. A voz de Lodge recuperara seu frio equilíbrio de costume. Estou perturbado porque Calvin Coolidge vai ser o Presidente agora. Calvin Coolidge! Que humilhação para o país, aquela criaturazinha horrorosa naquela casinha horrorosa, dividida em duas!

Na sala de estar, Kitty e os Gore reagiram com mais solidariedade. Kitty não se surpreendeu.

— Dava para perceber que no ano passado ele estava cada vez mais doente. Tinha sempre uma cor horrível, e parecia tão inchado... Tenho certeza de que foi enfarte.

Gore achou que Harding provavelmente estaria melhor assim, Era um homem bom demais para a Presidência.

Burden sentou-se no sofá e bebeu uma Coca-Cola.

Sabe, ele não ia ter Coolidge em sua chapa outra vez — revelou.

Quem é que ele queria? — perguntou a Sra. Gore.

Charlie Dawes. Pelo menos foi o que o próprio Dawes me contou. Ele não suportava Coolidge. Ninguém suporta. No Gabinete, ele fica mudo o tempo todo.

— Agora ele é o chefe — disse Gore. — Você vai concorrer contra ele, eu imagino.

— Se for indicado...

Burden sentiu a costumeira onda de ambição erguer-se dentro de si. Quem mais havia? Cox não seria aceitável depois de sua de­sastrosa derrota em 1920. Franklin Roosevelt era um aleijado, por causa da paralisia, e nunca mais poderia andar — muito menos con­correr à Presidência. O governador de Nova York, Al Smith, era católico. Hearst estava politicamente morto para todo mundo, exceto ele próprio. McAdoo não tinha apoio. James Burden Day contra Calvin Coolidge parecia agora inevitável, com o resultado inevitável. Burden estremeceu de contentamento e medo; e pensou em seu pai.

 

Caroline postou-se no terraço da Casa dos Loureiros e baixou os olhos para o rio.

— É véspera de Finados — observou para si mesma.

Blaise e Frederika tinham decidido dar uma festa para todo mundo de Washington e por um motivo qualquer escolheram a noite de 1º de novembro, quando as almas dos mortos estavam vagando, ou talvez dormissem em algum lugar, esperando ser apaziguadas — ela não conseguia lembrar-se exatamente. Mlle. Souvestre afastara toda religião da sua alma, inclusive as interessantes religiões pagãs.

A noite estava ominosamente abafada, e uma última tempestade de verão aproximava-se da casa. Tempo do equinócio, pensou ela; tempo de mudança. Mas o que era mesmo o equinócio? O professor de ciências não tinha conseguido preencher os nichos em sua mente que Mademoiselle tão implacavelmente esvaziara de seus ídolos.

Tim saiu para o terraço. Usava roupa de noite e parecia mais velho do que era.

A única coisa que fazem aqui é falar de política?

Os fidalgos falam sobre cavalos e linhagens. As deles e as dos cavalos. Papai falava de música acrescentou ela, perguntando-se como aquela excêntrica figura tinha de repente surgido em sua lembrança. Finados disse, numa explicação para si mesma. A alma de papai está vagando esta noite. Mas eu preferia ver a de mamãe.

Sua xará.

Em parte. Emma de Traxler Schuyler d'Agrigente Sanford. É comprido demais para uma marquise de cinema.

E para uma vida?

Acho que ela não pensava assim. Mas não sei. Não me lem­bro dela.

Do terraço inferior um casal emergiu da escuridão. Obviamente vinham do pavilhão da piscina.

Jovens apaixonados... — fez Caroline, levantando o pincenê que era ao mesmo tempo um enfeite e uma necessidade.

Não tão jovens disse Tim, cuja acuidade visual complementava a miopia dela.

Caroline! exclamou Alice Longworth com um sorriso ra­diante. Que festa ótima! Que lugar lindo! Que linda estrela de cinema você é! Represente para nós.

Já estou representando para vocês. Estou sorrindo com tolerância e recordando as febres da minha juventude longínqua. Fi­nalmente sou Marshallin.

O senador Borah não achou graça naquilo tudo. Apertou solenemente a mão de Caroline e de Tim.

Estamos conhecendo a casa disse. Não sabia que era tão grande.

O pavilhão da piscina é um grande sucesso respondeu Caroline. É véspera de Finados ajuntou, voltando-se para Alice, muito bonita em azul e tão feliz quanto podia ser aquela inquieta criatura.

É mesmo. Acho que a essa altura já conheço todos os mortos. Afinal, todas as pessoas interessantes estão mortas. Nós de­víamos ir para junto delas. No inferno, imagino.

— Você faça isso. Eu vou entrar. — O Leão de Idaho abriu a porta-janela e entrou na sala apinhada,

Acha que a maternidade é gratificante? — Alice perguntou.

— Minha filha está aqui hoje — foi a não-resposta de Caroline.

— Lembro-me de quando você a teve, há muitos anos. Perdi

alguma coisa?

Muitos problemas.

Tenho quase quarenta anos. — À meia-luz que vinha da sala, Alice parecia pálida, como um fantasma, uma alma sem descanso.

Bom, faz maravilhas para a pele. Mas você já tem uma pele perfeita. De modo que não precisa... reproduzir-se.

Que palavra horrível.

Com isso, Alice entrou na casa.

Ela está preocupada — observou Caroline.

Com medo de ficar grávida? Do senador Walsh?

Borah. Não. Petróleo. Os irmãos dela, Ted e Archie, estão envolvidos com o Sr. Sinclair. Se ele se envolver nas audiências sobre a reserva de Teapot Dome... Por que é que falo dessas coisas, se estou fora delas?

O rosto de Tim estava metade na sombra, de modo que ele sorriu a meias para ela. Através das portas-janelas eles viam os con­vidados movimentando-se no que parecia ser uma dança hierática.

Acho que você está mais dentro de tudo isso agora do que jamais esteve. Isto é, se conseguirmos.

Caroline não fizera a ligação, mas naturalmente ele tinha razão.

Porque de agora em diante estaremos agindo, em vez de reagindo, como a imprensa geralmente tem que fazer. Aí vem o nosso transmissor.

Will Hays saiu para o terraço. A luz às suas costas emprestava um brilho cor-de-rosa às enormes orelhas bastante destacadas da ca­beça de roedor.

Meus dois produtores favoritos — disse, com uma demonstração de carinho de proprietário.

— E nosso favorito candidato à Presidência — respondeu Caroline com sua antiga habilidade, mais Sanford do que Traxler.

Hays ergueu a pata de roedor.

Ora, ora, isso ainda está muito longe, se é que está em algum lugar. — As orelhas brilhavam como rubis. — Sabe, gosto muito do primeiro filme de vocês, pelo menos na leitura, embora não entenda, muito dessas coisas. Mas tem muita emoção, parece coisa de Booth Tarkington,[4] de que eu realmente gosto muito, sabem, cidade pequena, vida em família, crianças crescendo, a coisa toda é muito verdadeira...

Porém... — fez Caroline, que conseguia detectar uma ressalva mesmo no elogio mais entusiasmado.

—Porém... bem, eu estava pensando naquilo que você disse sobre as coisas que acontecem nessa sua cidade serem como o que acontece no país, só que vocês vão de certa maneira mostrar talvez o que é errado e o que não é inteiramente correto. De modo que eu andei pensando sobre esse problema realmente sério que temos hoje em dia com as drogas, e que vocês poderiam mostrar que as drogas podem matar os jovens...

Sr. Hays — Tim acudiu em auxílio —, a principal intenção desse tipo de filme é não melodramatizar as coisas. As drogas são um problema sério nas vizinhanças do Bulevar Hollywood, mas ninguém saberia onde encontrá-las na nossa cidade, e acho que não devemos estar dando idéias aos espectadores.

Hays ficou calado por um instante; depois assentiu:

É, acho que você tem razão...

Além disso — continuou Caroline —, a experiência do garoto com cigarros, quando ele fica enjoado, é exatamente a mesma coisa que tomar drogas, só que é mais típico.

Hays abandonou o assunto.

— Gostei também do velho editor do jornal. Ora, a minha vida inteira conheci esse tipo de pessoa: alguém que está sempre tentando fazer o bem. Mas é sempre um trabalho árduo.

Caroline e Tim riram. O velho editor do jornal, que sempre conseguia estar orgulhosamente errado em todos os assuntos, era baseado em um ano de cuidadosa observação, por parte de Caroline, de Will Hays em ação. Através da janela mais próxima Caroline avistou sua filha Emma fazendo um sermão para um senador de aparência aterrorizada.

— Quando é que vocês vão lançar o primeiro filme, esse que eu li?

Em janeiro de 1924 — disse Tim. — O primeiro filme do Sanford-Ferrell Studio estreará no Strand de Nova York no Dia de Ano-Novo. Vamos chamá-lo Cidade natal.

Acabou-se a Traxler Productions? — Hays, como McAdoo antes dele, enfronhara-se bastante na parte comercial da indústria do cinema.

Emma Traxler morreu no meio do ano — disse Caroline, com serena alegria. — Em Monte Carlo. Bebeu champanhe demais e dançou valsas demais. Simplesmente adormeceu e soltou seu último suspiro, de olhos fechados.

— Vamos sentir saudades dela — disse Hays com sinceridade, como se ela fosse alguém de verdade.

Emma Traxler era realmente alguém de verdade para muita gente, inclusive para Caroline em certos dias de loucura.

— Vocês estão construindo um belo estúdio em Santa Mônica — continuou Hays.

Frederika surgiu à porta:

Todos querem conversar com o senhor, Sr. Hays, a respeito de Fatty Arbuckle. O senhor precisa vir contar tudo.

— Espero que queiram ouvir algo mais agradável que isso — respondeu ele.

Hays entrou, e Frederika sorriu para a cunhada.

É verdade que vocês dois vão se casar?

Não — respondeu Caroline. — Daria prazer demais à minha filha e ao Sr. Hays,

— Ótimo. Assim nunca vão precisar se divorciar.

Frederika voltou para a sua festa, e Caroline estremeceu.

— Os mortos sentem frio em sua noite de perambulação. Agora vou arranjar dinheiro para o nosso estúdio.

Antes que Tim perguntasse como, Caroline tinha entrado.

Millicent Inverness, agora Sra. Daniel Truscott Carhart, cumpri­mentou Caroline carinhosamente.

Parei de beber — anunciou. — Faz parte da minha nova vida.

— Você parece muitos anos mais jovem — Caroline mentiu com desembaraço.

Sempre escrupulosa, Millicent esperara o conde estar morto para casar-se novamente. O Sr. Carhart era uma obscura figura da Nova Inglaterra, ligado de uma forma qualquer ao Instituto Smithsonian, que por sua vez era um dos mistérios de Washington que Caroline não desvendara — e, na realidade, nem tentara desvendar.

— Vi sua filha, há poucos minutos. Parece que ela se divorciou daquele rapaz bonzinho. Tenho alguma dificuldade em compreender o que ela diz. Ela fala tão depressa!

Emma realmente divorciara-se. Agora estava trabalhando com o FBI, denunciando os comunistas que conseguiram infiltrar-se no go­verno. Mãe e filha encontravam-se o mínimo possível. Emma recusa­va-se a falar com Tim, por motivos morais e políticos. Emma tam­bém encontrara Deus e ia regularmente à missa, onde Héloise a en­contrava e recebia as notícias que porventura houvesse.

Ela está tentando fazer uma reparação por sua mãe leviana

afirmou Caroline. Ela é séria, eu sou frívola.

Ah, não é, não, doçura contestou Millicent Carhart, acomodada em seu novo americanismo e parecendo mesmo a sobrinha de um Presidente bastante simplório mas qual?

Blaise achava-se sentado no escritório de paredes forradas de ma­deira, onde estava pendurado o retrato de Aaron Burr, ancestral de Caroline mas não de Blaise; no entanto, ele era um personagem importante para ambos. Blaise conversava com o envelhecido Trimble, que agora raramente saía de casa.

Aqui estamos os três comentou Caroline. O Tribune em carne e osso.

Eu vou me livrar dos meus logo, logo — queixou-se Trimble. Não imaginava que a velhice fosse tão ruim.

Caroline sentou-se com seus colegas de jornal.

Estou interrompendo alguma coisa? perguntou.

Blaise sacudiu a cabeça. O belo corpo de pônei tinha desaparecido debaixo de carne nova: ele estava definitivamente gorducho, e o rosto antes pálido mostrava-se avermelhado. Parecia um burguês. Ela pensou com curiosidade na vida particular do irmão. Devia haver alguém; caso contrário, ele não teria aceitado tão facilmente o caso de Frederika com Burden.

Parece disse Blaise que no verão passado, quando nosso finado Presidente estava em Kansas City, a Sra. Fali visitou-o secretamente no Muehlbach Hotel. Ninguém sabe o que ela lhe disse, mas ele nunca mais foi o mesmo. Então, quando estava no Alasca, recebeu uma mensagem em código da Casa Branca, e isso deixou-o muito agitado, segundo Herbert Hoover, que estava lá. De modo que devia estar sabendo isso que nós agora estamos descobrindo.

Só sabendo? perguntou Caroline. Ou participando também?

O problema agora é como passar isso tudo para o público.

Apesar da idade, Trimble nunca deixava de ser um editor sagaz.

Harding morreu sendo um dos presidentes mais populares da história.

As audiências do Senado modificarão isso — disse Blaise.

Forbes vai para a cadeia. Fali também. Talvez Daugherty, se metade do que dizem dele for verdade.

— Ele assassinou Jess Smith? — Para Caroline, o caso Smith era o mais intrigante de todos.

— Daugherty estava dormindo na Casa Branca quando Smith foi morto — disse Trimble. — É claro, o amigo dele estava no apartamento. Então o Sr. Burns do FBI subiu, pegou a arma que o matou e a perdeu, diz ele.

Frederika surgiu à porta, esplêndida em branco e dourado.

— Venham, vocês três. Já conspiram demais lá no jornal. O Presidente chegou.

No saguão, a pequena orquestra estava tocando Viva o Chefe.

— Ah, meu Deus! — fez Blaise. Os três se levantaram. — Eu prefiro passar uma hora no dentista do que cinco minutos ten­tando conversar com esse homem.

Quando, em certa ocasião, Millicent Carhart sentara-se ao lado do novo Presidente, à mesa de jantar, ela dissera: "Acabei de fazer uma aposta de dez dólares de que consigo fazer o senhor dizer mais de três palavras." O Presidente então virara sua cabeça de maçã murcha em direção a ela e, com seu sotaque ianque tão fácil de imitar, dissera: "Você perdeu."

A porta da biblioteca, Caroline reteve Blaise. Trimble seguiu para o saguão onde um grupo reunira-se em volta dos Coolidge.

— Ainda quer comprar minha parte do Tribune?

Blaise dirigiu-lhe um olhar longo e cheio de curiosidade; então assentiu.

— Ótimo. Vou mandar meu advogado conversar com o seu. Vai ser como nos velhos tempos.

Por quê?

Por que não? Cheguei ao fim desse negócio. Só isso. Além disso, preciso de dinheiro para o Sanford-Farrell Studio.

Vai realmente se estabelecer por lá?

Caroline assentiu.

— Afinal, é o único mundo que existe agora: aquele que a gente inventa.

— Inventa, ou reflete?

— O que nós inventamos os outros refletem, se formos suficientemente bons, é claro. Hearst nos mostrou como inventar notícias, coisa que fazemos, algumas vezes, por boas razões. Mas nada que fazemos penetra muito profundamente. Não penetramos nos sonhos das pessoas, do modo como Os filmes fazem.. . ou podem fazer.

Do modo como você e Tim pretendem fazer. Bem, deve ser agradável ser tão... criativa.

Está com inveja?

Estou.

Fico contente.

Blaise então dirigiu-se ao saguão para cumprimentar o Presidente, que, como um paladino justiceiro pelo menos para a im­prensa estava purificando a vida política da nação, exatamente como Will Hays estava fazendo em Hollywood, só que Coolidge não tinha conselheiros secretos e Hays, sem que ele soubesse, tinha.

Confortavelmente, Caroline, agora inteiramente ela própria, fi­nalmente uma só pessoa, fixou os olhos no fogo da lareira e pensou em todas as almas que tinha conhecido. Se elas realmente estivessem vagando essa noite, seriam fogo e ar, luz e sombra, tão fixadas em sua memória que ela poderia, se quisesse, transferi-las para uma fita de celulóide que o mundo inteiro poderia então imaginar para sempre, até o fim do rolo.

 

[1] Wobbly (pl. Wobblies) — membro da organização industrial Workers of the World. O nome deriva da maneira como os chineses pronunciam as iniciais IWW: "I Wobble Wobble". (N. da T.)

[2] Mardi Gras — O Carnaval em alguns países da Europa. (N. da T.)

[3] Cotton Mathers: teólogo e escritor americano (1663-1728). (N. da T.)

[4] Newton (Booth) Tarkington — Romancista americano (1869-1946). (N. da T.)

 

                                                                                Gore Vidal  

 

 

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