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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


HOSPITAL / Robin Cook
HOSPITAL / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Os Americanos mantêm-se fiéis aos seus mitos. Em nenhum lado é isto tão evidente como no reino carregado de emoções que é a Medicina e os seus serviços. As pessoas acreditam naquilo que querem, no que sempre acreditaram, e ignoram ou desprezam como falso tudo aquilo que possa ameaçar a reconfortante confiança nos seus próprios médicos ou no tipo de tratamento que possam vir a receber.

Foi apenas recentemente, e com relutância, que a maioria das pessoas perdeu a presunçosa ideia de que a Medicina nos Estados Unidos e o seu pessoal eram os melhores do mundo; e mesmo esta desagradável realidade foi conseguida mais por motivos económicos que pela razão em si, mais devido aos elevados custos dos cuidados médicos, do que à qualidade destes. Mesmo reconhecendo que algo está errado, Mrs. Brown mantém-se firme nas suas convicções de que o seu querido médico, que mora na sua rua, é o melhor da cidade:

- É um homem encantador! E todos os internos, abençoados sejam, são tão delicados e atenciosos!

As bases desta admiração pelo mundo médico é algo que reside no espírito do Americano moderno. A sua ligação com a Medicina é-nos demonstrada dia a dia através das horas que passa paralisado em frente ao televisor, observando os diagnósticos e triunfos terapêuticos dos seus médicos omniscientes. Esse romantismo, com a sua credibilidade directa, resulta no entanto, na sua limitada tolerância, o que torna extremamente difícil a apresentação de ideias contraditórias. Não obstante, é essa a intenção do presente livro - destruir a mitologia contemporânea e a mística do ano do internato, e demonstrar o que é uma dura realidade. Os efeitos psicológicos de um internato sobre o médico são muito profundos. (E sendo assim, imagine-se os efeitos numa multidão de pacientes!)

Peço fervorosamente ao leitor que avance na leitura sem preconceitos, pondo de lado o impulso quase irresistível de glorificar a Medicina e os que nela estão envolvidos, e que tente compreender os efeitos de um internato na pessoa de um médico. As pessoas que servem a Medicina são humanas, assediadas por uma multidão de armadilhas - fúria, ansiedade, hostilidade e egocentrísmo. Quando colocadas num ambiente hostil, reagem como seres humanos, não como curandeiros e super-homens. E, apesar das séries de televisão, o internato, tal como é nos nossos dias, é um ambiente hostil. (Bastam as noites em branco para explicar uma série de padrões de comportamento aberrantes; estudos recentes demonstraram-nos como é possível para um indivíduo tornar-se rapidamente esquizofrénico se for privado de repouso suficiente.)

Os acontecimentos descritos neste livro são todos reais. São um exemplo típico - e não esporádico - da vida de um interno. O próprio Dr. Peters é composto de um pouco da minha experiência pessoal e da de outros colegas internos, tornando-se assim uma amálgama de personalidades reais, Embora não apresente as aberrações de uma personalidade psico-social, é no entanto o representante em geral do interno. De tal modo que emerge muitas vezes como sendo um indivíduo lamuriento que falha socialmente enquanto evolui profissionalmente, o que não nos deve surpreender. É verdade que durante o seu internato o Dr. Peters adquire grande conhecimento e experiência médica; mas desenvolve também uma atitude mais objectiva perante a morte. Contudo, há ao mesmo tempo uma intensidade concomitante na sua revolta e hostilidade reprimidas que o leva a um maior isolamento e comportamento autista, a fortes sentimentos de autocompaixão, e a uma incapacidade para estabelecer relações significativas com os outros.

Outros aspectos da prática da Medicina aqui apresentados pode também destruir algumas crenças. Mais uma vez é pedido ao leitor que leia sem preconceitos, para lembrar que a maior parte da impessoalidade e anonimato atribuídos aos pacientes são simplesmente o resultado inevitável da familiaridade com as doenças humanas.

Essa impessoalidade pode, evidentemente, ser levada a extremos quando o paciente deixa de ser um indivíduo e se torna simplesmente um objecto a ser tratado. Isto é definitivamente patológico. Existe num interno o potencial de chegar a este estado patológico. De facto, é muitas vezes obrigado a lidar com ele - e geralmente sem orientação - como lhe dita a sua natureza.

Uma palavra para poder antecipar um tipo específico de crítica: uma vez que o Dr. Peters fez o internato num hospital escolar, em vez de num Centro Médico da Universidade, poderão alguns dizer que ilações tiradas se aplicam apenas a esse ambiente. Talvez um comentário tenha um certo mérito, mas não creio que reduza validade do argumento central. Pelo contrário, a experiência do Dr. Peters poderia ser ainda mais intensa se se encontrasse no centro Universitário. Existe aí uma enorme competição entre internos, o eterno desejo de ficar à frente do próximo, e, nesse contexto, o trabalho árduo e as buscas na literatura médica têm possibilidades de merecer maior preocupação nesse sistema, do que os próprios pacientes. Penso que as experiências do Dr. Peters se aplicam essencialmente tanto à universidade como aos programas de ensino da comunidade. O que lhe aconteceu é justificado por uma convincente similaridade de incidentes contados por vários médicos de cada tipo de internato.

Não se retrata aqui o tipo de hospital de poucas condições, onde não há ensino. É possível que a crítica se possa aplicar nesses casos.

O manuscrito deste livro foi lido por oito médicos, três anos depois do seu internato. Apenas um discordou do conceito de que o conteúdo do livro era uma realidade autêntica e brutal, e que personificava a situação deles. O dissidente objectou que os médicos do hospital onde ele estivera interno eram muito mais interessados que os retratados no livro. Este médico estivera como interno num centro médico da universidade em West Coast. Talvez se possa daí tirar a conclusão de que todos os novos internos aí deveriam fazer o internato.

Repito que este livro é real. Pode não representar todos os tipos de internato de um hospital, mas mostra-nos a sua maior parte. Reflecte honestamente uma condição subtil, no mínimo desencorajadora, e no máximo perigosa. Esta é uma razão suficiente.

 

 

Décimo quinto Dia, CIRURGIA GERAL

Já estava a dormir quando o telefone tocou mais uma vez, meia hora depois. Atendi-o no final do primeiro toque, esticando o braço instintivamente, quase em pânico, derrubando o livro de cirurgia que me fizera adormecer. A enfermeira estava desesperada.

- Dr. Peters, o paciente que esteve a ver há pouco deixou de respirar e não lhe sinto o pulso.

- Vou já para aí.

Desliguei desajeitadamente o telefone e comecei a minha rotina: calças, camisa, sapatos, uma corrida pelo corredor para apanhar elevador enquanto apertava as calças. Carreguei no botão e ouvi o gemido agudo do motor eléctrico. Enquanto esperava com impaciência compreendi subitamente que não sabia a que paciente a enfermeira se referira. Tinha tantos. Imagens daqueles que havia visto nessa noite percorreram-me a mente. Mrs. Takura, Roso, Sperry, e o mais recente, um homem idoso com um cancro no estômago. Devia ser ele. Era um doente particular e a primeira vez que o vira tinha sido quando fora chamado para lidar com os pacientes novos, e ele tinha tido subitamente uma forte dor abdominal. Era tão débil e fraco que não se podia mover, e quase não conseguiu responder às perguntas...

Tinha apenas escassas informações sobre ele. A enfermeira também não sabia muito. Não havia qualquer ficha específica, a não ser uma nota breve que dizia que tinha 71 anos e sofria de cancro gástrico há cerca de três anos; haviam-lhe retirado o estômago cirurgicamente três meses antes. Segundo o gráfico, havia dado entrada no hospital, desta vez devido a tonturas dor e mal-estar geral.

Triturando até ao fim as suas deliberações mecânicas, o elevador parou e a porta castanha-avermelhada deslizou para dentro da parede. Entrei, carreguei no botão, e esperei impacientemente que a besta desastrada me levasse ao rés-do-chão.

O exame que fiz ao homem não me revelou nada que não esperasse. Estava obviamente a sofrer bastante, e tinha uma boa razão. O cancro havia-se espalhado também pelo abdómen, sem dúvida. Após ter tentado em vão contactar o seu médico particular pelo telefone, tinha começado simplesmente por lhe aplicar soro e Demerol para o ajudar a dormir. Foi tudo o que me ocorreu.

O elevador deixou-me, finalmente, no rés-do-chão. Atravessei rapidamente o pátio, entrei no edifício principal do hospital e subi pelas escadas traseiras para o andar onde estava o paciente. Assim que entrei no quarto, deparei com a enfermeira petrificada, sem saber o que fazer, à luz do candeeiro da cama. O homem estava tão magro que as suas costelas sobressaíam no peito; o abdómen fazia uma cova, abaixo da caixa torácica. Estava completamente imóvel e tinha os olhos fechados. Observei o seu peito de perto. Estava tão acostumado a ver os movimentos provocados por uma respiração pesada, que os meus olhos me levaram a pensar que este se movia um pouco, mas não; procurei o pulso. Nada. Mas existem pessoas que têm o pulso fraco. Verifiquei se estava a medir a pulsação no sítio certo do pulso, o lado do polegar, e tentei depois o outro pulso. Nada.

- Não houve paragem cardíaca, Doutor. A enfermeira de turno disse-me que não deveria ser uma paragem cardíaca. - A enfermeira parecia estar na defensiva.

"Cala-te", pensei, irritado e aliviado ao mesmo tempo. Não estava preocupado em declarar ser uma paragem cardíaca. Só queria ter a certeza absoluta, porque esta era a primeira vez que me via confrontado com a responsabilidade de declarar a morte. Claro que tinha havido casos de mortes na escola médica, uma série deles, mas isso fora antes - cerca de um ano, de facto não havia muito tempo -, e nessa altura o pessoal médico da casa tinha lá estado para ajudar, interno ou residente; não era, em suma, uma tarefa de estudante. Agora eu pertencia ao pessoal médico e tinha de tomar a decisão - o dever de fazer um julgamento -, pensei nervosamente, como no basebol, seguro ou fora, e sem dó do árbitro. Estava morto. Ou... não estaria? Demerol, um homem velho e fraco, anestesia profunda - a combinação poderia provocar animação suspensa.

Tirei lentamente o meu estetoscópio, adiando a decisão, e pus finalmente os auscultadores nos ouvidos enquanto colocava o diafragma no lugar do coração. Uma série de ruídos estaladiços ecoou aos eus ouvidos enquanto os seus pêlos do peito se moviam por baixo do estetoscópio como resposta aos meus tremores. Não conseguia ouvir o coração - no entanto, poderia? Abafado, e fraco?... A minha imaginação sobreaquecida continuava a dar-me o batimento vital, próprio da vida. Compreendi então que o que ecoava aos meus ouvidos era o meu próprio coração. Tentei mais uma vez encontrar a pulsação, nos pulsos, nas virilhas e no pescoço. Estavam silenciosos, mas, no entanto, algo me dizia que ele estava vivo, que iria acordar, e eu seria considerado um incompetente. Como poderia ele estar morto se havíamos conversado apenas algumas horas antes? Detestei estar naquela situação. Quem era eu para decidir se o homem morrera ou não? Quem era eu?

A enfermeira e eu entreolhámo-nos sob a luz do candeeiro. Estivera de tal modo absorvido nos meus pensamentos que quase me surpreendi por a ver ainda ali. Ao levantar as pálpebras do homem, deparei com um par de olhos castanhos, que pareciam normais se não fosse pelo facto de as pupilas não dilatarem quando passei com a lanterna pela parte córnea envelhecida. Tive a certeza de que estava morto; esperava que sim, uma vez que ia pronunciá-lo.

- Acho que está morto - disse, olhando outra vez para a enfermeira, mas ela afastou o olhar. Provavelmente pensava que eu era estúpido.

- É a primeira vez que um paciente sob os meus cuidados morre - disse ela, voltando-se para mim subitamente. As suas mãos caíam flácidas, impotentes. Finalmente compreendi que ela me implorava que dissesse alguma coisa sobre o Demerol, que não havia sido o Demerol que ela lhe havia dado. Mas como havia eu de saber o que o matara? Veio-me à ideia uma cena de um antigo filme de terror que o corpo se começa a erguer lentamente de uma gaveta da morgue. Começava a estar aborrecido comigo mesmo, mas tinha de tentar ouvir o coração mais uma vez. Pus o estetoscópio. Naquela noite calma, minha própria respiração ecoava na minha mente. Está morto; a morte, fria e silenciosa, murmuravam os centros racionais do meu cérebro. Deveria dizer algo simpático à enfermeira. Talvez "deve ter sido muito suave e sem dor; morreu com dignidade. Tenho a certeza que lhe está agradecido pelo Demerol." Agradecido? Que estranha palavra para dizer. Aqui estava eu a lutar contra as minhas próprias incertezas, mal conseguindo derrotá-las, e ainda a tentar acalmar outra pessoa. Lutando com o desejo de lhe tomar mais uma vez o pulso, levantei o lençol que o cobria.

- Talvez seja melhor mandar chamar o médico particular - disse, ao sairmos do quarto.

O médico particular atendeu tão rapidamente o telefone que a sua voz foi como um banho de água fria no meu rosto. Disse-lhe quem e por que lhe estava a ligar.

- Certo, certo. Avise a família e prepare a autópsia. Quero verificar o que se passou com a conecção que fiz entre a bolsa do estômago e intestino delgado. Foi uma anastomose feita apenas com camada de suturas. Acho que esse é realmente o melhor sistema; é muito mais rápido. De qualquer modo, o homem foi um caso curioso, especialmente porque sobreviveu muito mais tempo do que esperávamos. Por isso trate-me da autópsia, certo, Dr. Peters?

- Ok, vou tentar. - Depois desta jovial conversa da parte dele, voltei a estar ligado ao silêncio da minha mente, tentando organizar os pensamentos. O médico particular queria uma autópsia. Óptimo. Óptimo mesmo. Onde estava o número da família? Um braço de mulher veio em meu auxílio, apontando para uma linha do livro:

- Parente mais próximo: filho. - Era realmente uma situação péssima. Um estúpido interno desconhecido a telefonar a meio da noite, Tentei imaginar uma palavra neutra, que servisse para o propósito sem aquele significado. "Morto... desaparecido... não, falecido." O ruído do telefone foi interrompido por um "Estou?" alegre.

- Aqui fala o Dr. Peters, e... lamento informá-la de que o seu pai faleceu. - Houve um longo silêncio do outro lado; talvez não me tivesse entendido. Alguém falou.

- Já estávamos à espera.

- Há mais uma coisa. - A palavra "autópsia" estava-me na ponta da língua.

- Sim?

- Bem... não importa agora. Falaremos disso mais tarde, mas queria pedir-lhe que viesse esta noite ao hospital. - Era o que a enfermeira me havia estado a dizer com uma pantomima agitada.

- Ok, estaremos aí. Obrigado.

- Os meus pêsames e muito obrigado.

Uma enfermeira mais velha materializou-se saindo da escuridão do corredor e enfiou uma série de papéis oficiais debaixo do meu nariz, indicando-me onde deveria assinar e apontar a hora da ocorrência.

Perguntei-me quando teria ele morrido: realmente não sabia.

- A que horas faleceu ele? - perguntei à recém-chegada, que se colocara ao meu lado direito.

- Faleceu no momento em que o declarou morto, Doutor. - Esta enfermeira, supervisora do turno da noite, era conhecida pela sua retórica mordaz e pela desconfiança que nutria pelos internos. Mas nem mesmo o seutom ácido e a sua troça óbvia pela minha ingenuidade podiam apagar a imagem do cadáver a erguer-se da gaveta.

- Chamem-me assim que a família chegar - disse.

- Com certeza, e obrigada.

- Bem, obrigado - respondi. Toda a gente agradecia. No meu cansaço, todas estas pequenas coisas se tornavam enormes e absurdas. O desejo de ir verificar mais uma vez o pulso ainda estava presente mas, com algum esforço, saí rapidamente do quarto do homem; as enfermeiras podiam estar a olhar. Por que me continuava a preocupar com a ideia de ele acordar? E quanto ao homem como pessoa, isso não interessava? Claro que sim, mas não o conhecia. Parei no princípio das escadas. É verdade, não o conhecia, mas ele era uma pessoa. Um homem idoso, de 71 anos, claro, mas ainda assim um homem, um pai, uma pessoa. Continuei a descer as escadas. Não podia enganar-me. Se ele se levantasse agora seria motivo de gozo no hospital. A confiança que tinha em ser um médico crescia gradualmente; isso acabaria com ela.

De volta ao elevador, tentei lembrar-me de quando começara a mudar, mas apenas conseguia recordar cenas, possíveis pontos de viragem, tais como a da minha visita à enfermaria durante o tempo de aulas e da rapariguinha de 11 anos deitada na cama que nos olhava esperançosa. Sofria de fibrose cística, que é geralmente mortal. E quanto ouvia o pessoal médico discutir o caso, sentia-me enfraquecer sem conseguir olhá-la de frente.

- Talvez haja uma hipótese de a manter viva mais alguns anos - disse o médico de apoio quando nos retirámos. Nesse instante, quase me senti um canalizador.

A porta do elevador abriu-se. De alguma forma, desta vez, minhas responsabilidades haviam mudado. Estava agora a preocupar-me que alguém se pudesse levantar da morgue e arruinar minha imagem, fazendo-me passar pelo ridículo. Está certo havia mudado, notoriamente para pior, mas que podia eu fazer acerca disso?

Já no meu quarto, a cama gemeu sob o peso do meu corpo. Na semiobscuridade, os olhos da minha mente percorreram cada detalhe daquele corpo magro. Isto aconteceria aos outros internos? Não sabia ao certo, mas também não podia imaginar o que lhes passaria pela cabeça. Pareciam tão seguros, tão certos mesmo quando não tinham esse direito. Antes de aqui estar, imaginava as crises de um interno duma forma talvez diferente, um pouco mais nobre. Eram sempre à volta de um doente que tentáramos salvar com grande luta, angústia de uma vida perdida. Mas aqui estou a remoer-me com a ideia de que um paciente de outro médico recomeçasse a respirar, aborrecia-me não conseguir relacioná-lo com a pessoa em si. Faltava um quarto para as dez. Apressei-me, agarrei no telefone e liguei para a ala das enfermeiras. Precisava naquele momento de estar com alguém, para provar que a vida continua.

- Mrs. Stevens, por favor. Jan, podes aqui vir? Não, não se passa nada. Claro, traz as mangas. É isso mesmo, estou de serviço.

Podia ver algumas estrelas através dos cortinados. Estava como interno havia duas semanas e tinham sido as mais longas duas semanas dos meus 25 anos, o ponto mais alto de tudo, do liceu, da faculdade, da escola médica. Como havia sonhado com aquilo! Agora, quase toda a gente que conhecia estava no estado de graça do internato, e, quando não era uma desgraça, era uma confusão. - Bem, Peters, agora é que foi. Só lhe quero lembrar que é muito fácil sair da liga, mas muito difícil entrar outra vez. - Esta é uma citação directa do meu professor de cirurgia quando soube que eu decidira fazer o internato num centro que não pertencia à universidade, longe da torre de marfim do circuito médico, e ir trabalhar nas zonas desfavorecidas. E para o sistema médico não há sítio melhor que o Havai.

Nos termos do sistema de trabalho ditado pelo computador, eu estaria destinado a um internato de uma qualquer Ivy League. Nesse aspecto, era claramente evidente que havia saltado fora. Mas já não podia evitá-lo. Assim que acabei a escola médica, comecei a ver que ser médico era entregar-me ao sistema, como um tronco a uma máquina de cortar. No fim do tratamento, já deveria estar alisado, cheio de conhecimentos e pronto a arranjar compradores, provavelmente. Mas assim como as aparas saltam, também as partes "não produtivas" da personalidade devem ir, tais como a empatia, a humanidade e o instinto de se preocupar. Tinha de evitar isso, se conseguisse, se não fosse já tarde de mais. Saltei por isso no último minuto.

- Bem, Peters, agora é que a fez bonita.

O facto de o homem magro ter morrido deixara-me um pouco nervoso, e levantei-me da cama mesmo antes de a Jan ter batido. Graças a Deus não era o telefone. Estava com um certo receio do telefone.

- É óptimo ver-te, com as mangas e tudo. Mangas, exactamente do que eu estava a precisar. Claro que podes acender a luz. Estava só aqui a pensar. Está bem, deixa isso. Pratos e talheres? Queres comer as mangas agora? - Eu não queria mangas, mas isso não era razão, e de qualquer modo ela estava deliciosa com a luz suave a reflectir-se no cabelo, e cheirava tão bem como se tivesse acabado de sair do chuveiro. Um perfume mais doce que qualquer perfume. Mas a coisa que mais atraía em Jan era a sua voz. Talvez ela cantasse um pouco para mim.

Fui buscar o prato e duas facas, sentámo-nos no chão e começámos a comer as mangas. Não falámos, a princípio, e essa era uma das razões porque gostava dela, pela sua reserva. Tinha também um aspecto agradável de se olhar, e parecia tão jovem, pensava eu. Já havíamos estado juntos duas vezes anteriormente, antes desta noite, mas não éramos, no entanto, muito íntimos. Não tinha importância. Bem, não tinha importância porque me apetecia conhecê-la melhor, especialmente nessa altura. Havia algo de poético no seu cabelo louro e feições delicadas; só nessa ocasião senti necessidade de a conhecer melhor.

A manga era pegajosa. Tirei-lhe a pele toda e dirigi-me ao lava-louças para lavar as mãos. Quando voltei de novo para junto dela olhava para outro lado, e a luminosidade vinda da janela dava aos seus cabelos um tom de prata esplendoroso. Estava encostada a um braço, com as pernas dobradas para o outro lado. Quase lhe pedi para cantar Tenta lembrar-te, mas não o fiz, provavelmente porque ela o faria - ela cantava quase tudo o que lhe pedia para cantar. Se tivesse começado a cantar nesse momento, toda a gente das outras alas a iria ouvir. De facto, podiam até provavelmente ouvir-nos a comer as mangas. Ao sentar-me ao lado dela, voltou o rosto e pude ver os seus olhos.

- Aconteceu algo esta noite - comecei.

- Eu sei - disse ela.

Aquilo quase me fez parar por ali. Eu sei. Sabia, sabia. E não só eu sabia que ela não sabia, como também que não seria capaz de lhe explicar. Continuei.

- Pronunciei a morte do velhote magro como sendo devida a um cancro no estômago, e agora estou com receio de que o telefone toque e que seja a enfermeira a dizer-me que afinal ele está vivo.

Ela virou a cabeça para o outro lado, afastando o olhar. Foi então que disse a palavra certa. Disse que era divertido! Divertido?

- Achas que é absurdo? Bem, era de facto absurdo, mas era também divertido.

- Sabes que uma pessoa morreu esta noite, e só consigo pensar é que ela pode estar viva, e isso seria uma boa partida. Uma partida para mim.

Ela concordou. E a sua análise do assunto terminou ali. Continuei:

- Não achas estranho eu ter essa opinião estúpida sobre o final da vida de alguém?

Isso foi de mais para ela, penso, porque a sua resposta foi perguntar-me se gostava de mangas. Gosto de mangas, só que naquele momento não me apetecia comer. Ainda lhe ofereci a minha. Apesar de tudo, sentia-me um pouco melhor, como se a transmissão dos meus pensamentos tivesse retirado o velhote magro da minha mente. Perguntei a mim mesmo se Jan cantaria Aquaríus. Ela tornava-me feliz de uma forma simples.

Enlacei-a com o braço e ela pôs-me um pouco de manga na boca, derrubando uma barreira sem dar por isso. "Está bem, não falaremos do velhote magro", pensei. Beijei-a e, quando me apercebi de que ela também me beijava, pensei como seria bom fazer amor com ela. Beijámo-nos mais uma vez, e ela abraçou-me, de modo que pude sentir o seu calor e suavidade. Tinha as mãos pegajosas da manga, mas passei-as ao longo das suas costas, perguntando a mim mesmo se ela faria amor comigo. Essa ideia afastou todas as outras da minha mente. Sentia-me ridículo ali no chão, e estava já a imaginar como haveríamos de ir para a cama, quando me apercebi de que ela nada trazia por baixo do vestido leve; tinha estado demasiado ocupado a acariciar-lhe as costas. Ela sentiu o meu desejo de sair dali e levantou-se ao mesmo tempo. Tentei tirar-lhe o vestido, mas ela agarrou-me no braço e começou a desapertá-lo atrás, e saiu de dentro dele, maravilhosa sob a luz suave. Pode não ter compreendido o meu problema, mas realmente conseguira fazer-me esquecê-lo. A poesia em que eu a envolvera alargava-se agora aos seus seios. Tirei a camisa, o estetoscópio, e aproximei-me rapidamente, com medo que ela pudesse desaparecer.

O telefone tocou. Aquele momento tinha-se desvanecido, e na minha cabeça estava novamente o velhote magro. Jan deitou-se na cama, enquanto eu olhava para o telefone. Dez segundos antes, a minha cabeça estava clara e bem dirigida; agora era novamente uma selva. E com a confusão ocorreu-me algo terrível: ele está a respirar. Deixei o telefone tocar mais três vezes, esperando que ficasse por ali. Era a enfermeira.

- Dr. Peters, a família chegou.

- Obrigado. Vou já para aí.

Senti-me inundado por uma sensação de alívio; era apenas a família. O homem continuava morto.

Pus a minha mão no fundo das costas de Jan; a sua pele quente e macia exigia atenção, e a curvagraciosa das suas costas não me ajudava a pensar em como pedir à família para fazer a autópsia. Foi fácil encontrar a minha camisa, mas o estetoscópio conseguiu enganar-me até que o pisei enquanto vestia a camisa.

- Jan, tenho de ir ao hospital. Espero vir depressa. - Saí do calor do quarto a pestanejar diante da luz fluorescente do corredor, a caminho da tortura do elevador.

Existe algo de sinistro no silêncio e na escuridão de um hospital adormecido. Eram já dez e meia e só estavam de serviço os turnos da noite, uma espécie de vida feita de luzes suaves e vozes baixas. Atravessei o corredor em direcção à ala das enfermeiras, passando por quartos assinalados apenas por luzes fracas. Podia ver do outro lado duas enfermeiras a conversar, embora não conseguisse ouvi-las. O corredor parecia-me excepcionalmente longo, desta vez, como se fosse um túnel, e a luz ao fundo lembrava-me uma pintura de Rembrandt, de áreas claramente iluminadas emolduradas em terracota. Sabia que a calma podia ser desfeita a qualquer momento, levando-me a uma nova crise, mas por enquanto esse mundo conservava-se intacto.

Uma autópsia. Tinha de lhes pedir para fazer a autópsia. Lembrei-me da primeira que vira, no segundo ano da escola médica, no início do nosso curso de patologia, quando eu ainda pensava que a Medicina podia curar toda a gente.

- Venham para aqui, homens, e ponham-se à volta da mesa. Parecíamos todos idênticos, nas nossas batas brancas, a marcharmos como crianças bem comportadas, que até penso que éramos. E foi então que a vi. Não a que tínhamos ido observar, mas sim outra, numa outra gaveta, e que seria a próxima a ser autopsiada. Tinha a pele de um amarelo frio e acinzentado, com uma erupção de herpes zoster, de lesões incrustadas que iam do braço até à cintura, passando pelo peito. A Herpes Zoster é uma doença séria da pele caracterizada por grandes feridas incrustadas. O seu efeito visual tinha sido sem dúvida assustador. A mulher estava deitada na placa de cimento manchada. Caía água à sua volta e por baixo dela, fazendo uma caleira na base, originando um ruído quase obsceno de sucção. Alguns traços a lápis haviam sido feitos na etiqueta colocada no braço direito. O seu cabelo parecia fraco e quebradiço. Mas o que mais me impressionara fora a cor desagradável da sua pele. Devia ter cerca de 30 anos, não era muito mais velha que eu, pensei. Esta visão não me havia feito sentir fisicamente doente, como a alguns colegas, mas sim de algum modo impotente.

Estava inegavelmente morta, mas, no entanto, pareceria estar viva se não fosse pela cor da pele. Morta, viva, morta.. estas palavras, completamente opostas, pareciam fundir-se na minha mente. O cadáver que havia dissecado no primeiro ano de anatomia não se parecia com este. Estava morto e nada sugeria ter estado vivo. É o ambiente que dá esta ideia, disse para mim mesmo, aquela sala cinzenta-escura e a luz indirecta, já de si parecendo manchada e decadente ao tentar entrar pelas janelas deprimentes. Que diabo queres, Peters? Um carro fúnebre com cobertura de veludo, velas, e rosas?

Mas não era aquela mulher o cadáver que vínhamos ver. Comprimi-me contra as batas brancas agrupadas à volta de outra mesa, e pude observar órgãos e ouvi os ruídos gorgolejantes que o professor de patologia fazia ao abrir o corpo, demonstrando a sua técnica. Não consegui ver o suficiente para apreciar a lição, e, de qualquer modo, o que me havia interessado tinha sido o que estava atrás de mim. Os outros seguiam atentamente a aula; eu não conseguia deixar de olhar para o outro cadáver. Não queria tocar-lhe, mas fi-lo, e ter descoberto que não estava assim tão frio ainda piorou as coisas.

Já não me sentia chocado, apenas um pouco assustado com o facto de ela me ter demonstrado elementarmente que a diferença entre a vida e a morte era uma questão de tempo e de sorte. Isso nada significava para ela agora. Devia também ter tido medo, porque era uma mulher jovem, talvez até desejável e cheia de possibilidades, e estava agora morta e amarelada, deitada no cimento manchado, numa suja sala subterrânea. Era uma coisa lidar com sexo quando o indivíduo estava vivo, quente e vigoroso. Mas não conseguia lidar com isto. O meu cérebro agitado registara mil pensamentos; o sexo havia inegavelmente estado entre eles, as minhas recordações do amor.

Havia sido há muito tempo, e a seis mil milhas de distância. Neste momento tinha de tratar da autópsia do homem magro.

- A família está ali, no sofá, Doutor - disse uma das enfermeiras quando cheguei à recepção. Duas pesssoas pareceram materializar-se de repente vindas do nada. Enquanto me aproximava, a palavra "autópsia" lembrava-me a cada instante aquele cabelo baço e a herpes zoster. Talvez devesse chamar-lhe "post-mortem", soava melhor.

- Os meus pêsâmes.

- Obrigado. Já estávamos à espera.

- Gostaríamos de fazer uma autópsia. - Afinal, a palavra saiu-me muito naturalmente.

- Claro, é o mínimo que podemos fazer.

"O mínimo que podemos fazer?" Surpreendia-me que sentissem que tinham de fazer alguma coisa. Já me sentia suficientemente constrangido por ter sido eu quem lhes telefonara a meio da noite a dizer que o pai deles havia morrido, e sentia-me agora ainda mais ao pedir-lhes autorização para realizar a autópsia. Mas aparentemente também pareciam sentir-se culpados. Uma vez que ninguém era culpado da morte, todos partilhavam a culpa. O mínimo que podemos fazer? Estava a subestimar um simples comentário. Que reacção esperara eu deles? Acusações? Lamúrias? Como iria aprender mais tarde, a maior parte das pessoas fica simplesmente paralisada perante a morte, e condicionada pelo seu comportamento reflexivo normal e civil.

- Nós tratamos do resto dos papéis, Doutor - ofereceu-se uma das enfermeiras.

- Obrigado.

- Queríamos agradecer-lhe pelo que fez - disse o filho, assim que saímos da ala.

- De nada. - Eram boas pessoas, pensei, ao afastar-me, felizmente não leram o meu pensamento, Senti nesse momento uma necessidade de ir verificar o pulso do homem. Qual seria a reacção deles se soubessem do meu medo? Ficariam aborrecidos, ou chocados. Provavelmente ficariam primeiro chocados e depois aborrecidos. E que pensariam se o pai acordasse na morgue? Sorri para dentro, porque é muito raro levar-se agora alguém para a morgue. A maior parte vai para uma capela funerária. Demasiados programas de TV e filmes de má qualidade. Estava a ser parvo. Costumo devanear quando estou cansado, e neste momento, sentia-me exausto.

- Doutor, tem aqui uma chamada. - A voz apanhou-me quando ia quase no fim do corredor escuro. "Deve ser a Jan", pensei, e lembrei-me subitamente da imagem dela nua no meu quarto. A imagem fundiu-se com a cena na escola médica, do cadáver amarelado e da herpes zoster no seu peito. Mas afinal a chamada não era de Jan; vinha da enfermaria A, era outra enfermeira agitada. Algo sobre a tensão venosa de alguém que havia descido. O filho do homem magro ainda ali estava. Olhei-o mais uma vez, por um instante, e senti-me subitamente orgulhoso por ali estar, e depois estúpido, pelo meu orgulho. Olhando para o outro lado do corredor, pensei que a minha situação podia ser tudo menos gloriosa.

Tensão venosa? O meu conhecimento consistia numa definição memorizada um pouco duvidosa: "A pressão venosa é a pressão medida em repouso nas grandes veias do corpo." Para além disso, praticamente nada mais sabia. Sem ligar a isso, apressei-me, como se soubesse tudo. Era esse o meu dever.

A pouca coragem que ainda tinha desapareceu quando vi as enfermeiras à volta do quarto de Marsha Potts. Marsha Potts era a tragédia do hospital. Nas rondas do primeiro dia do meu internato, duas semanas antes, estivéramos no seu quarto a ouvir desenrolar a história. O que a tinha levado para a clínica havia sido sintomas de úlcera, e ali estavam eles, grandes como tudo, nos raios-X. Era sempre bom poder ver uma úlcera. O radiologista estava satisfeito porque tinha uma boa radiografia e os cirurgiões estavam extáticos, cumprimentando-se um ao outro pelo seu diagnóstico perspicaz e afiando os bisturis. Era óptimo. Geralmente era óptimo também para o paciente, mas não para Marsha.

Os cirurgiões haviam efectuado uma gastrectomia, retirando a maior parte do estômago e selando o final do intestino delgado que normalmente sai do estômago. Haviam então seleccionado um ponto a alguns centímetros abaixo do intestino e, depois de lhe fazerem um orifício, coseram-lhe uma pequena bolsa feita dos restos do estômago, dando assim a Marsha um novo estômago, se bem que mais pequeno. Esta operação, conhecida como Billroth II, envolve uma enorme quantidade de cortes e pontos, e é por isso muito popular entre os cirurgiões.

Marsh a tinha atravessado tudo aquilo muito brandamente - pelo menos, era essa a opinião geral - até ao terceiro dia, altura em que a ligação entre o intestino e a bolsa do estômago se rompeu. Isso deu origem a que os sucos pancreático e gástrico se derramassem no interior do abdómen e ela começou a digerir-se a si própria. As enzimas digestivas comeram-na literalmente até à incisão, e o seu abdómen tornou-se num ferimento aberto de cerca de trinta centímetros de diâmetro. As enfermeiras mantínham-no coberto com alimentos para lactentes, numa tentativa de absorver uma parte do suco pancreático e neutralizaras enzimas. O odor putrefacto e penetrante deixava toda a gente mal-disposta, havia semanas. Mas para mim o pior neste caso era saber que o não podia resolver. De maneira alguma.

Ao entrar no pequeno quarto onde ela se encontrava isolada, verifiquei que a situação não podia ser pior. A sua pele apresentava uma cor amarela-acinzentada e os seus braços caíam para os lados, agitando-se debilmente. A enfermeira sentiu-se aliviada com a minha visita, mas em vez de me sentir confiante só conseguia pensar "Oh, minha tonta se conseguisses ver o que me vai pela cabeça não verias nada, apenas, um imenso vazio".

Marsha Potts tinha aparentemente sofrido uma insuficiência geral. Ao folhear a pilha de gráficos e resultados de análises, tentei descortinar o que se passara e ganhar um pouco de tempo para me orientar. Uma enorme barata negra subia a parede por cima do leito mas não lhe prestei muita importância; mais tarde trataria dela. Era duro imaginar que qualquer forma de vida podia depender de mim.

Comecei, contudo, a verificar que a minha mente ainda funcionava. Claro, o pulso. Procurei-o, e batia fortemente, cerca de 72 pulsações por minuto, quase normal. Óptimo. Ora, se a pressão venosa tinha descido a zero enquanto o bater do coração parecia estar a funcionar bem, isso deveria significar que não havia sangue suficiente nas veias. Pelo menos estava a pensar. A última coisa que queria fazer era retirar o penso espesso e ensopado do seu abdómen. Gotas de suor escorreram-me pela face.

Estava imenso calor ali. A tensão? A enfermeira dissera que era de 110/90. Como diabo é que a tensão e o pulso estavam tão bem sem a pressão venosa? Sem a pressão venosa, o coração não bombeava, e se não o fazia não podia sair nada, daí não haver tensão ou pulso. Era assim que deveria funcionar, mas obviamente não era o que se passava neste caso. Malditos professores de fisiologia. No laboratório de fisiologia da escola médica havia um cão com tubos inseridos no coração nas artérias e nas veias. As coisas aí funcionavam perfeitamente, como era costume no laboratório. Quando os médicos reduziram a tensão do cão, ao baixarem a pressão venosa, a tensão do animal baixou rapidamente. Seria automático e reproduzível, como se o cão fosse uma máquina.

Mas Marsha Potts não era uma máquina. Mesmo assim, por que não reagia ela como os animais do laboratório, em vez de me presentear com uma esmagadora e insolúvel dificuldade? Mal sabia por onde começar a examiná-la. Não apresentava inchaços na pele devido à retenção de fluidos, excepto nas costas; o local normal para aparecer esse tipo de edema, como resultado de estar deitada durante muito tempo. Marsha estava de cama havia cerca de três meses. Inclinei-lhe a mão esquerda para trás e ela reagiu, voltando-a reflexivamente para a frente. Fantástico. Tinha um adejo hepático. Quando há uma falha no fígado, o paciente desenvolve um reflexo curioso: se se dobrar a mão em direcção ao pulso, ela volta para trás num movimento reflexo, como uma criança a dizer adeus. Experimentando a alegria de uma descoberta positiva, olhei mais uma vez para o gráfico. O adejo hepático não estava ali descrito. Não sabia muito sobre a pressão venosa, não podia escrever inúmeras páginas sobre o adejo hepático, que havia encontrado antes apenas uma vez. Testei a sua outra mão, e o reflexo actuou mais uma vez. Isso significava que ela estava muito mal. De facto, enquanto devaneava pelas apreciações académicas do meu diagnóstico, a mulher estava a morrer.

Na verdade, ela estava já praticamente morta; contudo, tecnicamente, estava ainda viva. Tinha amigos e familiares que pensavam nela como uma pessoa viva. Mas não podia falar, e cada órgão do seu organismo estava a falhar. Conseguiria ainda pensar? Provavelmente não. De facto, por apenas um momento, pensei que ela estaria melhor se estivesse morta, mas afastei esse pensamento severamente. Como é que se pode saber se alguém está melhor morto? Não se pode, é pura suposição. O caso da Marsha Potts estava também a ficar fisicamente confuso. A mulher que sofria de herpes zoster no peito parecia mais viva, mas estava de facto morta. A que se encontrava à minha frente no pequeno quarto estava viva... mas e se tentasse uma intravenosa?

- Que quantidade de fluido lhe foi administrado durante as últimas vinte e quatro horas? - perguntei à enfermeira.

- Está tudo aqui, na folha de aplicações. Foram cerca de 4000 cc.

"Quatro mil!" Tentei não aparentar surpresa, embora achasse demasiado. De que tipo?

- Bem, na sua maior parte salino, mas também algum Isolyte M - respondeu.

Que raio seria Isolyte M? Nunca tinha ouvido falar de tal. Voltando o frasco, pude ler "Isolyte M" de um lado, e do outro: "Sódio, cloreto, potássio, magnésio... " Não precisava de ler mais; era uma solução de subsistência. A folha de entradas e saídas era uma confusão de números que pareciam escritos ao acaso. Desde o início da estada na escola médica me sentira fascinado pelo equilíbrio de fluidos e electrólitos, de tal modo que algumas vezes me preocupava com o sódio e quase me esquecia do paciente. As entradas e as saídas pareciam ajustar-se, com excepção do que havia ensopado o enorme penso que cobria a ferida. Havia sido aplicada uma sucção de fossa para sugar o fluido da ferida no abdómen, mas não parecia estar a dar muito resultado. O alimento infantil que recebia não deveria ter provavelmente um efeito muito nutritivo. Era transportado para o estômago por um tubo que lhe entrava nas narinas; uma vez que os seus sucos digestivos haviam formado uma fístula, ou passagem, entre o estômago e o cólon o alimento passava directamente do estômago para o intestino grosso e para o recto sem praticamente sofrer alteração. Apesar de não aparentar estar desidratada, a sua urina mostrava sinais evidentes de infecção, na forma de sangue, bílis e pequenos residuos de matéria orgânica que flutuavam no saco do catéter. Com tanta matéria, a única maneira de saber se a urina estava muito concentrada era testar a sua gravidade específica.

- Suponho que não há nenhum hidrómetro neste andar, ou há? - A enfermeira desapareceu, satisfeita por poder fazer alguma coisa, sem ligar ao tipo de tarefa. Ainda não encontrara explicação para a tensão venosa de Marsha. Continuei a examiná-la, procurando sinais de uma falha cardíaca para a explicar, mas não encontrei nada.

Aparentemente o inevitável tinha de ser feito; teria de verificar a lesão.

- Era isto que queria, Doutor? - A enfermeira entregou-me um frasco de testes para verificar o nível de açúcar na urina.

- Não, um hidrómetro, um pequeno instrumento que se põe a flutuar na urina. É parecido com um termómetro. - Desapareceu novamente enquanto eu verificava a etiqueta do frasco que ela me havia dado. Talvez fizesse um teste ao açúcar na urina, de qualquer modo; não havia razão para o não fazer.

- É isto, Doutor?

- É isso mesmo. - Desprendi o saco do catéter. Prendendo a respiração para evitar o odor, enchi o pequeno frasco com o que calculei ser urina suficiente para fazer o hidrómetro flutuar. Coloquei-o cuidadosamente na urina, mas não consegui fazer interpretação alguma. O raio do aparelho mantinha-se num só lado do frasco em vez de flutuar, como devia. Segurei o frasco na minha mão esquerda e bati-lhe com o nó do dedo indicador, tentando libertá-lo. Apenas consegui derramar urina no braço. Depois de ter adicionado mais urina ao frasco, consegui finalmente pôr o hidrómetro a funcionar. A gravidade específica estava normal dentro dos seus limites - estava absolutamente normal, de facto - portanto, Marsha não estava desidratada. Por alguma razão, o pessoal médico evitava sempre a palavra "normal" sem lhe acrescentar qualificativos; utiliza-se sempre "dentro dos limites normais" ou "essencialmente normal".

Marsha gemeu novamente. Ao inspirar o ar, fui confrontado com uma sinfonia de odores no quarto. Desde que me lembro, nunca fui capaz de aguentar maus cheiros. Na instrução primária, quando um dos meus colegas vomitou, eu quase o imitei, comum reflexo simpático, assim que o odor me alcançou. Na escola médica, apesar das três máscaras e de toda a espécie de truques mentais, era conhecido por ter vómitos no meio do laboratório de patologia.

Ainda estava a tentar encontrar uma explicação para o estado de Marsha Potts quando me ocorreu que ela poderia ter bactérias Gram-negativas no seu sistema sanguíneo; por exemplo, uma infecção bacteriana como pseudomonas; estas levavam por vezes a um estado apelidado de septicemia Gram-negativa, que é uma das visões mais terríveis da medicina. O paciente tanto pode estar bem num minuto, como no seguinte ter um arrepio e ir tudo para o diabo. Talvez fosse essa a explicação para a quebra da tensão venosa. Mas não via sinal algum da septicemia.

Marsha gemia agora regularmente, e cada gemido era como uma acusação para mim. Por que não conseguia eu descobrir o que se passava? Ao dar a volta para o outro lado da cama, chamei a atenção da enfermeira para o insecto que se havia movido alguns centímetros, à altura de um ombro. A enfermeira deu um salto e desapareceu, voltando em seguida com um monte de papel higiénico, que fez abarata desaparecer. Aquele tipo de bicho não me incomodava, pelo menos não tanto como os ratos do hospital de Nova Iorque. A administração do hospital afirmou saber da sua existência e estava a tratar do assunto, mas o facto é que eles continuavam lá.

Havia talvez algo errado com a válvula reguladora de três entradas na conduta intravenosa. Quando abri a válvula na posição de medir a tensão venosa, não se moveu do zero. Fechei-a novamente com rapidez, enchi a coluna com a solução de IV e liguei-a então à paciente.

O nível manteve-se elevado por alguns segundos antes de começar a baixar rapidamente, depois mais lentamente, como a enfermeira disse que sucederia. Primeiro para 10 cm, e finalmente para zero. Era intrigante, especialmente com as válvulas de três saídas. Nunca consegui regulá-las como deve ser, por nunca saber qual delas abrir ou fechar para uma ligação.

Pedi à enfermeira uma seringa cheia de solução salina e desengatei o sistema todo de tubagem que ia do catéter até à veia femoral, mesmo abaixo das virilhas. Marsha havia sido durante tanto tempo sustentada Por via intravenosa que as veias dos braços já não serviam para a IV, e os médicos haviam começado a utilizar as veias das pernas. Para meu espanto, não voltou sangue algum da veia para o tubo do catéter, mesmo sem a pressão da solução de manutenção. Ao introduzir cerca de 10 cc da solução salina no catéter com a seringa, senti uma resistência clara; depois, subitamente, a solução entrou mais facilmente. Quando retirei o êmbolo da seringa, apareceu um fio de sangue no catéter.

Havia obviamente um tampão no terminal do catéter dentro da veia de Marsha, provavelmente um coágulo de sangue, que havia actuado como um retentor, permitindo a entrada da solução, mas impedindo a saída do sangue. A leitura da tensão venosa dependia do facto de o sangue poder subir pelo catéter. Transmiti isso à enfermeira, mas não lhe disse que o coágulo já deveria estar provavelmente nos pulmões de Marsha. Se assim fosse, deveria ser pequeno, graças a Deus.

Ao engatar mais uma vez a coluna, enchi-a e liguei-a à paciente. Depois de ter a certeza de que mostrava uma tensão normal, e que ia manter assim, recomecei com a IV.

- Desculpe, Doutor, não sabia - disse a enfermeira.

- Não é preciso pedir desculpa, não há problema. - Sentia-me satisfeito por ter resolvido um problema, ainda que pequeno. Tendo em consideração que começara sem ter a mais pequena ideia sobre o que fazer, os resultados pareciam-me notáveis, embora a paciente estivesse na mesma. Marsha gemeu mais uma vez, contorcendo os lábios. Era apenas uma sombra do que fora, realmente, e ao dar-me conta disso desapareceu o meu sentimento de ter conseguido alguma coisa. Tudo que queria fazer nesse momento era poder sair dali, mas ainda não era possível.

- Doutor, já que está aqui, importava-se de dar uma olhada a Mr. Roso? Os seus soluços não deixam os outros doentes dormir.

Ao afastar-me com a enfermeira pelo corredor em direcção ao quarto de Mr. Roso, não pude deixar de pensar que aquele hospital era de facto um edifício insólito, algo inteiramente novo na minha experiência. Os seus corredores comunicavam directamente com o exterior, pelo menos na velha parte inferior, e a relva crescia mesmo até no fundo do corredor. Uma enorme sapucaieira dominava o átrio, sussurrando e inclinando-se com o vento. Enormes árvores tropicais adornavam o solo meticulosamente tratado. Era muito diferente dos outros hospitais onde havia trabalhado. Havia uma árvore nos jardins da escola médica em Nova Iorque, mas foi deitada abaixo antes de me ir embora. O resto era tudo em cimento e tijolos, tudo amarelo. Mas o pior de todos havia sido Bellevue, onde fizera o meu quarto ano de trabalho clínico (trabalhando essencialmente como interno, embora fosse oficialmente estudante). Os corredores aí haviam sido pintados com uma deprimente cor castanha, cuja tinta caía já como uma pele, e de tal modo asquerosa que andávamos pelos corredores sempre no centro para evitar tocar-lhes. O meu quarto tinha uma janela partida e uma canalização caprichosa. Situava-se no outro extremo das alas médicas do hospital e só podia ser alcançado atravessando o centro respiratório, onde estavam todos os doentes com tuberculose. Ao atravessá-lo continha muitas vezes a respiração inconscientemente, e chegava por isso sem fôlego ao meu destino. Se Dante pudesse ter tido oportunidade de ver Bellevue, ter-lhe-ia dado um lugar proeminente no seu Inferno.

Como detestei aqueles dois meses. Vi uma vez um filme que me fez lembrar de Bellevue; foi O Julgamento, de Kafka, e nele os personagens erravam para sempre em corredores infinitos. Assim era Bellevue, com corredores infinitos, especialmente para quem prende a respiração. Qualquer janela suficientemente limpa revelava-nos outros edifícios sujos com mais corredores. Até mesmo um inocente acto da natureza poderia ser perigoso. Uma vez que me dirigi para os lavabos dos homens com alguma pressa, escorreguei ao passar pela porta e caí literalmente em cima de um grupo de pacientes ocupados a injectarem-se com heroína com as seringas do hospital. Foi a primeira vez que doentes me ameaçaram de morte, mas não a última.

O Havai não se parecia nada com Bellevue. Não havia sido ameaçado aqui, pelo menos por enquanto, e as paredes eram limpas e cuidadosamente pintadas, mesmo na cave. Sempre imaginei que todas as caves fossem iguais, mas aquela estava limpa, até mesmo brilhante.

Não sei por que os doentes com tuberculose me preocupavam tanto; talvez fosse aquela parte irracional que existe em todos nós, suponho, quando se determina que há algumas coisas que nos são prejudiciais e outras que não nos afectam. Após ter estudado a hipertensão maligna, pensava agora, cada vez que tinha uma dor de cabeça, que estava afectado por ela. Talvez a tuberculose me incomodasse tanto porque o meu primeiro doente a quem fiz um diagnóstico físico a tinha.

Quando ainda era estudante, havíamo-nos auscultado todos uns aos outros, do que haviam resultado muitos risos e pouca aprendizagem. Tínhamos sido então enviados para um hospital para podermos fazê-lo com pacientes pela primeira vez. O hospital chamava-se o Memorial de Goldwater, e fazia Bellevue parecer o Waldorf. Após ter tirado um cartão com o nome de alguém escrito, aproximei-me da cama de um homem sentindo-me tão transparentemente novato que poderia muito bem ter levado estampado na cabeça um letreiro a dizer segundo ano da escola médica, primeira tentativa". Ia tudo muito bem até escutar a sua região do ângulo costofrénico esquerdo do lado direito da cama. Ao inclinar-me para o seu peito, disse-lhe para tossir, o que ele fez, directamente no meu ouvido. Senti as gotas caírem na parte entre o pescoço e o cabelo, todas aquelas gotas de flegma amarela cheia de organismos tuberculosos resistentes aos antibióticos. Nem mesmo o champô dos lavabos dos homens, ou seja, o sabonete líquido da farmácia, me fizeram sentir bem. Assim que cheguei ao apartamento lavei a cabeça várias vezes, como Lady Macbeth.

Até aqui, não tivera de lidar com pacientes de tuberculose neste hospital. Talvez não os houvesse no Havai.

A minha divagação terminara. Olhei para a enfermeira que me pedira para ir ver Roso. Era mais um dos encantos do Havai, muito bonita, com uma mistura de sangue chinês e havaiano, creio eu, com uma figura elegante, olhos de amêndoa e dentes perfeitos.

- Gosta de surf? - perguntei-lhe, ao chegarmos à porta da enfermaria dos homens.

- Não sei - disse ela suavemente.

- Vive perto do hospital?

- Não, vivo no vale de Manoa, com os meus pais. - Era uma pena. Queria continuar a ouvi-la, mas estávamos a chegar ao quarto de Roso.

- O Roso tem vomitado?

- Não, nem por isso, tem é estado com soluços. Nunca pensei que os soluços pudessem ser tão desagradáveis. Sente-se muito infeliz.

Ao dar uma olhada ao meu relógio, antes de entrar na enfermaria, reparei que era quase meia-noite. Mesmo assim, não me importei ir vê-lo. Ele era, por várias razões, o meu doente favorito. As luzes fracas ao nível do chão davam uma luminiscência que banhava o corredor, e pareciam misturar-se com os sons calmos da respiração e do ressonar. Um soluço agudo quebrou esta tranquilidade, e o ressonar mudou o seu ritmo. Seria capaz de encontrar Roso no meio da maior escuridão por causa dos soluços. Tínhamo-lo operado na segunda manhã do meu internato. Na verdade, "tínhamo-lo" não era a palavra certa; o residente-chefe e um residente do segundo ano haviam efectuado a operação, enquanto eu segurei nos retractores durante três horas. Era o primeiro a admitir a minha inépcia na sala de operações; do modo porque as coisas caminhavam, a minha ignorância era uma segurança. Ao contrário da maior parte dos estudantes de Medicina, que estavam em regra ansiosos por uma cirurgia, eu tinha pouca experiência nesse campo, devida em parte ao facto de não querer tido tê-la, mas também por estar um pouco mais interessado nos electrólitos e nos problemas de fluidos após as operações. Isso tinha dado jeito a todos. Os outros estudantes não se interessavam pela química, enquanto eu me dava ao trabalho de ficar seis horas na sala de observações, observando os outros a cortarem e a coserem. Especialmente depois de uma cena que ocorrera da segunda vez que preparei para uma operação, em Nova Iorque.

Tratava-se de uma operação a um cancro, uma remoção completa dos seios, ou uma mastectomia radical, como é chamada pelo Grande Sorriso, o mais famoso cirurgião do mundo. Sendo na altura apenas um estudante do segundo ano, sentia uma grande apreensão, e o facto de estarem todos um pouco tensos, mesmo os médicos residentes, agravou ainda mais a minha ansiedade. O Grande Sorriso entrou subitamente na sala de Operações sumptuosamente magnífico e atrasado como era habitual. Verificou alguns instrumentos no grande tabuleiro esterilizado, pegou neles e atirou-os para o chão, gritando que estavam riscados e dobrados, e que não eram aceitáveis. O ruído assustou de tal modo o anestesista que este deu um salto e arrancou a máscara à doente. Desapareci, esperando que não dessem pela minha falta, o que de facto sucedeu.

Comecei a ficar para ver as operaçÕes do princípio ao fim, mas até hoje não consegui ainda entender os cirurgiões. Um deles era geralmente, um indivíduo calmo e agradável, menos quando se encontrava na sala de operações, onde tive ocasião de o ver uma vez atirar uma pinça ao anestesista residente apenas porque o paciente se movera. Numa outra ocasião, o mesmo indivíduo dispensara um dos cirurgiões residentes da sala de operações, alegando que o seu hálito era demasiado forte. Em nenhum caso havia sentido incentivo para passar mais tempo na sala de operações. Estava ainda muito verde em cirurgia no início do meu internato.

Apesar da minha inexperiência, conhecia a rotina do trabalho, como lavar as mãos, como as pôr, como as secar, e como vestir a bata e as luvas; sabia mesmo dar alguns nós cirúrgicos. Tínha-os aprendido à custa de erros e experiência. A minha primeira esterilização, no terceiro ano da escola médica, havia sido para efectuar um trabalho de sutura na sala de operações das urgências. Passei dez minutos a lavar as mãos e os antebraços e limpei cuidadosamente as unhas com um palito de laranjeira antes de pôr desajeitadamente a bata. Tinha vestidas as calças largas, a touca, a máscara e tudo o resto, e a enfermeira tinha-me finalmente ajudado a pôr as luvas de borracha. Após vinte e cinco minutos de esforço e de concentração, estava finalmente pronto para ir; tinha as mãos tão esterilizadas como uma pedra lunar. Depois, peguei casualmente num banco e dirigi-me ao paciente, contaminando assim as mãos, a bata, tudo. A enfermeira e médico residente desataram a rir-se histericamente; até mesmo o paciente atordoado se juntou a eles quando tive de recomeçar tudo.

No caso de Roso, para além da minha limitada vantagem de estar a tratar dos retractores, tinha percebido que a operação não estava a correr bem. O residente chefe não parava de amaldiçoar o fraco protoplasma e tinha realmente que concordar que o tecido de Roso sangrava facilmente. Uma hemorragia séria brotou perto do pâncreas no final do tubo, mas os dois conseguiram terminar o Billroth I, que consiste em ligar o estômago e os intestinos da forma que estavam antes, mas sem a úlcera. Depois era necessário que eu atasse as suturas de Roso; seria óptimo para qualquer pessoa menos para mim. Pensei em pedir a um dos residentes para pôr o dedo na primeira laçada do nó, como se estivesse a atar um presente de natal. Por um segundo, achei a ideia divertida.

Na verdade, para uma prática tão simples, atar aquele nó havia sido uma tarefa exasperante. As suturas são por vezes muito estreitas e difíceis de sentir através das luvas de borracha, especialmente nas pontas dos dedos, onde a borracha é mais espessa e onde necessitamos de mais sensibilidade. Sabia que tinha de atar o nó de modo a que as extremidades da incisão ficassem unidas, apenas beijando-se, sem tensão e sem permitir que a pele se enrugue. Senti nessa altura que todos me observavam e julgavam. Embora me apercebesse disso, nada mais importava a não ser o nó, porque era literalmente a chave para que a operação desse resultado.

A extremidade do fio de seda negro que segurava na minha mão direita desapareceu sob a pele num dos lados da incisão e emergiu do outro lado. Juntei-o à outra extremidade, na mão esquerda, e dei o primeiro laço, apertando-o até que as extremidades se tocaram ligeiramente. E agora o próximo laço. Mas assim que foi aliviada, a incisão abriu-se. Juntei-a de novo, e dei mais uma laçada o mais depressa que pude, com esperança de vencer a deiscência - a fenda. O que aconteceu foi que as extremidades ficaram perigosamente separadas. A seguir, para meu horror, aproximou-se uma mão com uma tesoura que cortou o nó, enquanto se ouviam risos abafados lá atrás.

Uma outra mão recomeçou a suturar, enfiando a agulha curva na pele para atravessar a incisão e sair do outro lado. Olhei para o céu suplicante: que fazia eu ali se nem conseguia dar um nó?

Tive mais uma oportunidade na segunda fila de pontos de Roso, que partiam da primeira parte da sutura que ia na direcção oposta.

Na altura em que dera a segunda laçada, a sutura ficara tão apertada que a pele se juntara em pequenas rugas e as extremidades ficaram enroladas com a tensão. Mais uma vez alguém pegou na tesoura, uma amabilidade de um estudante residente do segundo ano que havia cortado o meu primeiro nó, e a incisão separou-se. Parecia tão fácil e rítmico quando eram os outros que faziam. Apesar disso havia detectado alguns truques aqui e ali, uma volta a seguir ao primeiro laço, por exemplo. Em vez de deixar a sutura plana no primeiro laço, puxá-la para nós, com ambos as linhas. Mas isso foi apenas metade. Tentei mais uma vez, com melhores resultados embora estivesse ainda um pouco apertado. Pelo menos tínhamos resolvido o problema de Roso, por enquanto.

O primeiro indício de problemas foram os soluços, que haviam começado cerca de três dias depois da operação. Vinham regularmente a cada oito segundos, e eram divertidos ao princípio. De facto, Roso havia-se tornado numa curiosidade do hospital, com os seus soluços cronometrados. Tinha apenas 55 anos, mas os anos passados nos campos de ananases faziam-no parecer mais velho, todo enrugado e magro. As suas calças teimavam em cair enquanto deambulava pela enfermaria levando consigo a IV. As veias dos braços também já se haviam esgotado para a IV e, tal como Marsha, tinha um catéter ligado à virilha direita. Isto tornava tudo ainda mais complicado. Se Roso apertasse suficientemente o cinto para manter as calças no lugar, a IV pararia. Por isso tinha de andar com uma mão no varão da IV e a outra nas calças.

Roso era filipino e o seu vocabulário em inglês resumia-se a cinquenta ou sessenta palavras simples, que utilizava para transmitir conceitos emocionais. "Corpo não força", como ele diria, e era o suficiente, como a poesia haiku. Compreendia-o e apreciava-o muito. Havia nele algo de tremendamente nobre e corajoso. Para além disso, ele gostava de mim, o que, como compreendi mais tarde, tinha um peso importante na minha vontade de o manter vivo. Ao ver-me de manhã na ronda, Roso sorria sempre abertamente apesar dos soluços que faziam todo o seu corpo estremecer. Qualquer pessoa podia ver que estava exausto. Tentara todos os tratamentos que pudera encontrar nos livros cirúrgicos, médicos e de farmácia, mesmo da medicina popular; respirar para dentro de um saco de papel não o ajudara. Numa veia mais científica, fi-lo inalar um frasco de 5 por cento de dióxido de carbono, sem obter efeito, nitreto de Amyl e pequenas doses de Thorazina que também não deram resultado, assim como cálcio, que experimentei numa suposição de que os seus soluços pudessem derivar do seu estado de hipernervosismo; os seus reflexos eram tão bruscos que, quando lhe bati abaixo do joelho com o martelo de borracha, atirou com a chinela. O meu grande erro havia sido não ter considerado os soluços como sintoma de algo mais profundo. Continuava a vê-los como um problema isolado, quando na realidade eram apenas um efeito secundário da catástrofe reprimida no seu interior. Um outro sintoma ocorreu quando o médico residente mandou retirar o tubo do estômago de Roso e os fluidos lhe saíram pela boca. Uma hora depois o seu estômago inchara duas vezes mais que o tamanho normal e começou a vomitar. Nada o poderia ter feito sentir tão infeliz como os soluços, os vómitos e a falta de sono; qualquer destas coisas seria de enlouquecer uma pessoa, mas o valente Roso lá estava, com um grande sorriso sempre que me via. "Corpo não força", dizia ele, sempre as mesmas palavras, mas carregadas com um sentimento diferente de cada vez, dependendo da maneira que se sentia. "Corpo mais forte já." Comecei a utilizar o seu vocabulário nessa maneira curiosa cada vez que falava com alguém que não entendia muito bem inglês. Convencemo-nos de que dando alguns erros também, eles compreenderão melhor. Quando estava na escola médica, com alguns pacientes que falavam espanhol, dei comigo a dizer a um deles: "Operação precisa dentro barriga." Claro que isto não fazia muito sentido, mas se o paciente não compreendeu as palavras percebeu com certeza o seu significado. Estávamos principalmente a tentar aproximar-nos deles.

O pobre Roso estava entubado com o fluido intravenoso acompanhado de sucção gástrica constante através do tubo que lhe entrava pelas narinas em direcção ao estômago. Torturado pelos soluços, vomitava cada vez que o tubo saía, quer este o alimentasse ou não. Apenas alguns dias atrás, o tubo ficara completamente bloqueado, de modo que Roso estivera às portas da morte por causa de um pedaço de alimento. Ao irrigarmos o tubo do nariz para aliviar o bloqueio, lá saiu um material que parecia borras de café. Era sangue velho. Foi uma sorte eu gostar de verificar as variações nos fluidos e electrólitos quando ia várias vezes por dia verificar a quantidade de sódio e cloreto que existia nos fluidos que dele provinham. Substituía-os, para além de lhes dar manutenção. Cheguei mesmo a dar-lhe magnésio, na esperança de que o pudesse ajudar, depois de uma busca exaustiva que fiz na biblioteca do hospital.

Mas o maior problema de Roso era interior, mais para além do meu saber. Assim como Marsha Potts, estava a gotejar da anastomose, a ligação entre o intestino delgado e a bolsa do estômago, e a única diferença era que, no caso de Roso, a incisão não se tinha desfeito. Estava apenas a gotejar fortemente dentro dele, bloqueando o estômago e causando os soluços, mantendo-o nos fluidos IV, fazendo o seu peso descer de dia para dia, de tal modo que pesava agora apenas quarenta quilos. Na luta contra a perda de peso, que significava também a perda das forças, encontrei uns artigos sobre soluções proteicas e de grande percentagem de glucose, e tentei tudo o que neles se encontrava; continuou mesmo assim a perder peso, indo da aparência normal de magro, até uma aparência esquelética de fome. E, apesar disto tudo, ele continuava a sorrir e a falar haiku. Gostava dele. Para além disso, era meu doente e iria vê-lo sempre que de mim necessitasse.

- Então, Roso, como se sente? - perguntei-lhe, olhando para ele. Que pobre figura era ali deitado, no escuro, só com as calças do pijama vestidas, com o tubo do IV enfiado na virilha direita e o tubo que lhe saía do nariz. O seu corpo estremecia com soluços de oito em oito segundos.

- Doutor, não mais força, fraco muito já. - Conseguiu dizer isso entre soluços. Tínhamos que fazer alguma coisa. Tinha andado atrás do médico de serviço, o residente-chefe, de toda a gente, mas sem resultado. Espera, foi o que me disseram. Eu sabia que não podíamos esperar. Roso ainda confiava em mim, mas a sua vontade estava a esmorecer. - Doutor, não quer viver mais, hic, não mais. - Nunca me haviam dito aquilo, e ouvi-lo gelou-me o sangue. Embora pudesse compreender como se sentia, não queria admitir que ele havia chegado àquele ponto, porque eu sabia o que acontecia aos doentes que desistiam de lutar. Deixavam-se simplesmente levar, morriam. Algo no espírito humano podia aguentar tudo, mesmo em presença de um colapso de origem completamente fisiológica, até que o espírito desistia e levava o corpo com ele. Por vezes o desespero era tão grande que não esperávamos dos pacientes reacções positivas, mas Roso havia-o dito: e isso tornava o caso diferente. Disse a mim próprio que Roso queria apenas avisar-me de que estava quase a desistir, mas ainda o não fizera.

Roso precisava desesperadamente de dormir. Embora pudesse satisfazê-lo, era no entanto uma faca de dois gumes. A Sparina, que é um tranquilizante potente, iria anestesiá-lo, até mesmo com os soluços. Mas com o tubo enfiado na garganta, estava em perigo constante de apanhar uma pneumonia, especialmente se ficasse inconsciente. Sem o tubo, poderia vomitar, e se vomitasse e estivesse inconsciente poderia sufocar.

O Demerol e o velhote magro lá em cima também me incomodavam. Os familiares haviam sido maravilhosos, nunca sentindo a dúvida em mim, aceitando as minhas palavras, não negando a autópsia. E se eu lhes dissesse quepensava que o pai estava morto? Como haveriam eles de saber que a diferença entre a vida e a morte não era muitas vezes a preto e branco, mas cinzenta e indistinta? Vejamos Marsha Potts, por exemplo: estava morta ou viva, ou em algum outro espaço entre ambos os casos? Acho que poderia ainda considerá-la viva, porque se melhorasse talvez ficasse boa; por outro lado, ela não iria provavelmente melhorar, e pelo menos uma parte do seu cérebro estaria já morta.

Parte do seu fígado estaria também destruída, como se via pela icterícia e pelos adejos hepáticos; e os seus rins também. Não era, mais uma vez, a preto e branco. Não mais que a minha decisão acerca de Roso e da Sparina.

Mas Roso necessitava de descanso e eu sentia uma grande necessidade de fazer algo por ele. É uma forte propensão humana, essa de poder fazer algo; se alguém desmaiar numa multidão, haverá sempre alguém que vá buscar um copo com água, e alguém que improvise uma almofada. Ambas as acções são ridículas em termos médicos, mas as pessoas sentem-se melhor se puderem fazer alguma coisa, mesmo numa situação que exija um tipo de acção para que não estão preparadas.

Havia tido essa sensação várias vezes. Uma vez, durante um jogo de futebol no liceu, encontrei-me perante uma delas, na confusão, quando houve um tipo que partiu uma perna com um som bem audível, ficando dobrada abaixo do joelho. Entrámos todos em pânico, embora ele não aparentasse ter muitas dores, e fiel ao protótipo corri para lhe trazer um copo com água. Creio que foi naquele momento que me decidi inconscientemente a ser médico. A ideia de saber o que fazer, de satisfazer uma necessidade de agir, era esplêndida.

Muito bem, Peters, agora já és um médico - faz alguma coisa por Roso. Ok, seria a Sparina, e no segundo em que tomei aquela decisão inundou-me a alegria da acção directa e positiva.

- Roso, fazer dormir, fazer mais forte. - Ao sentar-me na ala das enfermeiras, a enfermeira de olhos amendoados entregou-me o relatório de Roso. Parecia ainda mais bonita que antes.

- É chinesa? - perguntei-lhe, sem olhar para ela.

- Chinesa e havaiana. O meu avô da parte da minha mãe era havaiano.

Pensei que seria interessante conhecê-la.

- Então, vive em casa com a família, não é? - Não me respondeu. Bem, esqueçamos isso. Abri a ficha para nela anotar a administração de Sparina. É pena, no entanto. Parecia-se mesmo como as raparigas havaianas que imaginara ver debaixo de uma cascata, e a minha vida sexual, se assim lhe podemos chamar, abrangia apenas Jan. Estaria Jan ainda lá, mesmo sendo já meia-noite?

"É melhor sair já daqui", pensei, enquanto escrevia "Sparina 100 mg. IM stat", pus uma marca na ficha para indicar a nova ordem e coloquei-a no suporte. Roso iria dormir. Da última vez que lhe administrara 100 mg, dormira durante dezoito horas.

- Doutor, já que está aqui não se importava de ver o doente que pôs o gesso e o quadriplégico? - A pergunta fiel e familiar. Conhecia o quadriplégico mas o outro não.

- Que se passa com ele? - perguntei, hesitante, receando um pedido, para pôr uma nova camada de gesso àquela hora.

- Queixa-se de que sente algo a cortá-lo nas costas quando se move.

- E o quadriplégico?

- Recusa-se a tomar o antibiótico. Na realidade, preferia não ter sabido as respostas. As pessoas paralisadas causam-me quase tanta impressão como as tuberculosas. Recordei-me de um dos edifícios mais agradáveis e do serviço médico mais deprimente na escola médica, neurologia e neurocirurgia. Lembrava-me de um paciente que tivera de observar e que respondia às minhas perguntas à medida que lhe ia espetando uma agulha. Parecia tão normal que até me interrogara a mim próprio porque estava ele ali. Mas nessa precisa altura, ao introduzir-lhe a agulha mais uma vez, os seus olhos desapareceram subitamente e a parte esquerda do seu corpo ficou paralisada, atirando-o para o lado esquerdo, quase caindo. Só conseguia ver o branco dos seus olhos e ficara quase tão paralisado como ele, sem saber que diabo fazer. Nem tivera a satisfação de poder ir buscar um copo com água. Havia apenas tido uma convulsão, mas eu não sabia disso nessa altura. Poderia ter estado a morrer, que eu ficaria ali com a boca aberta. Ninguém fora do mundo médico pode imaginar o que significa um tipo de crise dessas para um estudante de Medicina. Tornamo-nos de tal modo tímidos que tentamos não dar nas vistas quando algo corre mal.

Os estudantes de neurologia eram incentivados a apreciar o elegante diagnóstico do Professor Doutor com as mãos nos bolsos. "Algumas vias da espinal medula cruzam para o outro lado antes de chegar ao cérebro. Outras não. Se se tiver uma lesão que efectivamente tenha cortado um lado da espinal medula, as vias que cruzam continuarão a funcionar. Por exemplo, vejam como este paciente consegue sentir a mudança de temperatura, mas não tem um proprioceptivo, uma vez que posso mover-lhe um dedo do pé em qualquer direcção sem ele se dar conta disso." E assim por diante.

Tínhamo-nos todos divertido muito ao conversarmos sobre essas confusas fibras da temperatura que atravessam as comissuras ventrais brancas e sobem o sistema lateral espinotalâmico para o núcleo ventral do tálamo. Houve uma grande discussão sobre se as fibras tinham ou não mielina. Nenhum campo da Medicina se pode equiparar à neurologia no que diz respeito à linguagem profissional. Entretanto, ninguém se lembrou mais do doente. Bem, quase não havia tempo para isso, tentando memorizar todas as tractos e núcleos, e, além disso, não podíamos fazer coisa alguma.

Talvez fosse esta sensação de impossibilidade que se tornava tão difícil de aguentar emocionalmente. Lembro-me especialmente de um caso particular passado na escola médica, embora não fosse invulgar, de facto, tratava-se de um caso típico. O paciente estava deitado à nossa frente num respirador, movendo constantemente os músculos faciais. Nada mais nele se movia, não conseguia controlar mais parte nenhuma do seu corpo porque este se encontrava completamente imobilizado, sem sensações nos tecidos ou nos ossos, completamente indefeso e totalmente dependente do respirador para sobreviver. O Professor Doutor continuou: "Irão achar este caso extremamente interessante, meus senhores; trata-se de uma fractura do processo odontoídeo, que provocou um encurtamento da espinal medula mesmo no ponto em que sai do cérebro."

O professor estava a adorar aquilo. O seu diagnóstico triunfal tinha sido realizado, dissera-nos orgulhosamente, depois de uma verificação da boca com raios-X. Ficara inchado como um pombo, fora de si, virtualmente arrulhando, numa longa dissertação acerca da maneira que o atlas havia sido deslocado do seu eixo.

Não conseguia tirar os olhos do doente, que olhava fixamente para o espelho acima da sua cabeça. Mais ou menos da minha idade e talvez um caso irrecuperável. Saber que o seu corpo e o meu eram essencialmente iguais, com a diferença provocada apenas por uma pequena desconexão no pescoço, e que esta diferença fraccional era total, tornou-me consciente do meu corpo naquele momento como nunca antes, e senti vergonha dele. Senti fome nesse preciso momento, e senti também as pontas dos dedos, uma dor nas costas; sensações que ele nunca mais teria. Invadiu-me uma raiva impotente e uma espécie de tristeza. O movimento é uma parte tão importante na vida, quase a própria vida, que com esse hábito quotidiano as pessoas negam esse tipo de morte. Contudo, estava perante uma morte em vida, e a minha mente gritava-me que o meu próprio corpo estava condicionado pela mesma corda frágil que ali jazia no respirador. Desde essa altura, nos maus momentos, pensei muitas vezes que a morbidez da Medicina a tornava um mau caminho para mim, mas apesar disso continuei. Terão os outros médicos dúvidas como esta?

Mas agora tratava-se do homem com o gesso. Veria depois o quadriplégico. Tirei uma serra do armário e desci o corredor com a enfermeira. Ao entrar no quarto, deparou-se-nos um homem completamente ligado do umbigo aos dedos dos pés da perna direita. Tinha a perna esquerda nua. Havia fracturado o fémur em duas partes nessa manhã, entre a virilha e o joelho, e o gesso havia sido posto no lado direito. Era o seu primeiro dia com o gesso e sentia-se imensamente desconfortável, como é costume. Encontrei a ponta que o incomodava, e cortei-lhe algumas partes. Teria sido mais rápido com a serra eléctrica da sala de emergências, mas não era a altura certa para a usar, à meia-noite, devido ao ruído que fazia. Além disso, a vibração assustava sempre o doente, apesar das nossas tentativas de lhes assegurar que a lâmina se limitaria apenas às áreas duras e não cortaria tecidos como a pele. Pareciam entender até a serra entrar em acção, abrindo facilmente caminho através do gesso. Acabei de cortar e o caso do fémur fracturado suspirou de alívio, movendo-se, agradecido.

- Sinto-me melhor, Doutor. Muito obrigado.

São coisas simples como esta que nos deixam bem-dispostos. Claro que qualquer pessoa poderia ter cortado o gesso, mas isso não importava. Saber que o homem agora poderia descansar facilmente justificou ali a minha presença e fez-me sentir de algum modo útil. Estava a aprender que não era permitido muitas vezes a um interno tornar os pacientes mais confortáveis. O que um interno faz na maior parte das vezes é magoá-los, introduzir-lhes agulhas, pôr-lhes tubos no nariz, exigindo uma tosse depois de uma operação para os forçar a expandir os pulmões. Essa tosse é geralmente dolorosa e dura para os casos de doenças pulmonares. Nesse tipo de cirurgia à caixa torácica, é prática comum o cirurgião dividir o esterno, e ligá-lo outra vez no final da operação. Quatro ou cinco horas mais tarde, era minha tarefa forçar um pequeno tubo pela traqueia, irritando a membrana, para fazer o doente tossir. Este método dava óptimos resultados. Como qualquer pesssoa com algo na sua traqueia, o paciente tossia invariavelmente, sentindo que essa convulsão o iria sufocar, tentando parar mas sem o conseguir, e finalmente conformando-se, ensopado em suor e exausto, até que lhe retirava o tubo. Com essa tortura, havia evitado que o doente se habilitasse a uma pneumonia ou algo pior, mas nesse momento havia-o feito sofrer muito. Por isso, ter ajudado o homem com o gesso não era uma tarefa para desprezar.

Contudo, a minha euforia não durou muito tempo porque teria agora de ir ver o quadriplégico. Estava completamente paralisado do pescoço para baixo, deitado numa estrutura, sobre o estômago. Emanava dele uma angústia profana. O tubo que saía de debaixo do seu corpo estava ligado a um saco de plástico meio cheio de urina. A urina era sempre um problema nestes casos. Uma vez que um paciente paralisado perde o controlo da sua bexiga, necessita de um catéter: com o catéter vem a infecção. A maior parte dos casos de septicemia Gram-negativa deriva de infecções do sistema urinário. Mas os abortos criminosos também não eram excepção. Já no fim do meu serviço de ginecologia no terceiro ano da escola médica, tivemos tantos abortos criminosos sépticos, que mais parecia haver uma epidemia em Nova Iorque. Eram, na maior parte, raparigas que esperavam que a infecção aumentasse antes de nos procurarem, sem nos darem qualquer informação de diagnóstico. Nunca. Algumas morreram negando até ao fim terem feito um aborto. Com a legalização do aborto, suponho que as coisas tenham mudado, mas naquela altura vi muitas vezes o sintoma, com a irreversível combinação de pressão a zero, falha dos rins e um fígado moribundo. Essas bactérias Gram-positivas gostam da urina, especialmente depois de o paciente ter tomado os antibióticos habituais.

Pensava nisso tudo ao observar o indivíduo ali deitado a chorar e a blasfemar. Tinha, figurativamente, as mãos nos bolsos, sem saber o que fazer ou o que dizer. Que mais desejaria eu, se tivesse 20 anos e estivesse ali deitado ligado à máquina, com toda a gente a dizer para ter calma, vais ficar bom, e sabendo que era tudo uma mentira? Pensei que preferiria uma pessoa que encarasse a verdade, que fosse forte e a aceitasse. Por isso, num esforço para ser firme, disse-lhe que tinha de tomar o antibiótico, que sabíamos que era duro, mas que mesmo assim teria de o tomar. Tinha que tomar a responsabilidade de ser humano.

As vezes surpreendemo-nos a nós próprios, ao falar de lugares desconhecidos dentro de nós. Não tinha bem a certeza de acreditar no que estava a dizer, mas saiu assim mesmo. Enquanto ali permaneci, o rapaz deixou de chorar o tempo suficiente para a enfermeira lhe poder dar a injecção. Tornou-se subitamente importante para mim saber se o rapaz estava aliviado ou furioso, mas não conseguia ver o seu rosto, e ele não disse nada. Também não falei mais. A enfermeira quebrou o silêncio, dizendo-lhe que tentasse dormir. Uma vez que nada me ocorria para lhe dizer, pus suavemente a mão no seu ombro, perguntando a mim mesmo se ele a sentiria e perceberia como lamentava.

Sabia que tinha de sair da enfermaria naquele momento ou desfaleceria. Em qualquer hospital, em qualquer altura, há centenas de pequenas tarefas quotidianas para fazer, como verificar as fezes de alguém, observar uma incisão, tratar de uma queixa de torcicolo, mudar uma intravenosa. Na verdade, as enfermeiras aqui no Havai eram muito destras na aplicação da IV. Já na escola médica, era uma tarefa de primeira posição para um estudante. Nem a chuva, nem a neve nos poupavam se tivéssemos uma chamada às três e meia da manhã para ir mudar uma IV, atravessando metade da cidade deserta de Nova Iorque. Lutei contra o mau tempo numa noite de inverno, certa vez, para ser derrotado por um homem sem veias. Apalpei-o e blasfemei, e finalmente usei uma veia tão fina como a de um crânio de um bebé, na parte de trás da mão. Voltei depois para casa, no meio da chuva, deitei-me eventualmente na cama, antes de ter que recomeçar o serviço, cerca de uma hora depois, quando o telefone tocou novamente. Era mais uma vez a mesma enfermeira, meio apologética, e meio agressiva na sua defesa. Tinha cortado o tubo acidentalmente quando ia pôr mais adesivo no IV para o reforçar.

De qualquer modo, havia sempre muito a fazer numa enfermaria. Embora as enfermeiras conseguissem na maior parte das vezes resolver os problemas, se há algum médico por perto é mais que certo manterem-no ocupado, e eu estava a ficar arrasado. Queria apenas fazer mais uma coisa antes de voltar para o meu quarto: ir ver Mrs. Takura, que estava nos cuidados intensivos. Esperava que Jan se tivesse metido dentro da cama antes de adormecer. Já passava muito da meia-noite.

Nunca chamávamos aos cuidados intensivos pelo seu nome completo, só por C.I. De todos esses nomes, iniciais, abreviaturas, e a linguagem profissional que um interno ouve, não há outra que nos faça logo saltar como C.I., porque é aqui que se encontra a acção, uma unidade em crise perpétua. As hipóteses de se ser chamado à noite para lá ir são bastantes, pelo menos duas por noite, e as hipóteses de se saber o que fazer são muito menores. O facto de as enfermeiras serem eficientes e perceberem do assunto ainda piorava as coisas. Começávamos a perguntar-nos afinal que é que tínhamos aprendido durante aqueles dispendiosos quatro anos na escola médica. A reacção de Schwartzman, era o que tínhamos aprendido. Duas aulas sobre esse assunto e já ninguém tinha a certeza sequer da sua existência. Há sempre algo estranho quando um médico sabe tudo sobre uma doença que pode não existir, mas é ainda pior com uma enfermeira numa situação de cuidados intensivos. Claro que se o paciente tivesse de facto uma reacção de Schwartzman, seria um sucesso na altura: podia discursar lentamente sobre o aspecto que o tábulo distal convoluto do rim teria, observado num microscópio iluminado, entre outras coisas. Em relação às medidas práticas, não tínhamos, contudo, tido tempo, nem o patologista se tinha preocupado com isso, um facto que me intrigava. As enfermeiras praticamente só se tinham treinado para fazer os pensos durante os três anos de treino. Sei que isto não é justo, mas contudo o seu treino era trivial comparado com os montes de mecanismos, enzimas e reacções de Schwartzman que nós tínhamos que decorar. No entanto, nos cuidados intensivos bem poderia ser eu a mudar os pensos. Senti muitas vezes que seria melhor desaparecer dali antes que acontecesse algo que necessitasse de uma reacção inteligente.

Presume-se que um interno vá aprendendo os aspectos práticos à medida que evolui, mas se tivéssemos tido mais aulas práticas na escola médica estaríamos melhor, e os pacientes também. Num hospital ninguém se importa se conhecemos ou não a reacção de Schwartzman. O cirurgião observa os meus nós: "Fracos, muito fracos", diz ele. A enfermeira quer saber que quantidade de Isuprel deve pôr em 500 cc de dextrose e água.

- Vejamos, que quantidade tem estado a dar ao paciente?

- Cerca de 0,5 mg.

- Hum, isso deve chegar.

Nunca temos a coragem de perguntar se Isuprel é o mesmo que isoproterenol. Será que ela gostaria de saber tudo sobre as radiações talâmicas do núcleo ventral do cerebelo? Com certeza que não, uma vez que isso não ajudaria ninguém nos C.I. Que maneira esta de viver.

Era no que ia a pensar enquanto me dirigia pelo guarda-vento dos C.I., hesitando como de costume em entrar naquela estranha mistura de ficção científica e de dura realidade. Objectos estranhos estavam pendurados nas paredes e no tecto, adornados com as suas centenas de botões e interruptores, e ecrãs móveis. Os sons dos bips que pareciam de sonar misturavam-se sinfonicamente com o clíque-claque ritmado dos respiradores e os soluços abafados de uma mãe ajoelhada junto a uma cama a uma esquina. Estas máquinas, que se moviam e piscavam enquanto guardavam uma vida, pareciam mais vivas que os pacientes, que jaziam imóveis, cobertos com adesivos e ligaduras, como múmias, e ligados com tubos de plástico a variados frascos que pendiam dos suportes. Essa mistura dava ao local, ao soar, um aspecto misterioso e extraterrestre.

As pessoas normais reagem fortemente aos C.I. É a reencarnação física do seu medo da morte e do hospital como lugar da morte. O cancro, por exemplo, é certamente a doença mais temida do nosso tempo, mas excepto para as vítimas, os familiares ou amigos, o cancro quase não existe fora dos hospitais. Nos C. I, o cancro existe como uma névoa tóxica e primitiva. Quem trabalhe muito lá, pode também esquecer-se que o hospital é também um sítio onde a vida começa. Mas não há partos nesta sala, e a maior parte das pessoas associa-lhe, com razão, o desconhecido, a ameaça, o mau presságio e o fim, onde a morte vem nas pontas dos pés.

Embora o ser humano normal não aprecie visitas ao hospital, uma vez nos C.I., fica preso pela fascinação magnética, apesar de mórbida, ou talvez por isso mesmo. Os seus olhos circulam em volta absorvendo a fantasia, erguendo imaginários monumentos ao poder abstracto da Medicina. A Medicina deve ser realmente poderosa, com todas aquelas máquinas. Senão, por que as teriam ali? Contudo, um observador pressente sempre a corrente de medo que se mistura com o seu respeitoso receio, sentindo-se dividido entre o desejo de ficar e o desejo de partir.

Sentia a mesma ambivalência, mas por uma razão diferente. Sabia que a maior parte do equipamento não tinha a mínima utilidade. Alguns dos aparelhos mais pequenos, embora não causassem grande efeito, eram os que mais resultavam. Por exemplo, os respiradores verdes pequenos, fazendo clique-claque ao respirarem pelas pessoas que deles precisavam, valiam mais que todos os outros juntos. Os mais complicados, com os monitores e os bips electrónicos, nada faziam a não ser quando as pessoas estavam a ser observadas. A escola médica havia-me ensinado a ler esses osciloscópios. Sabia que quando a curva descrita subia no monitor, isso significava que milhões de iões de sódio bombardeavam as células musculares do coração. Depois aparecia uma espécie de ponto no monitor, quando as células se contraíam e as organelas citoplásmicas trabalhavam como loucas para mandar novamente os iões para o fluido extracelular. Parecia fantástico; mas esta magia científica era apenas metade da tarefa. Baseando-se nas curvas e na projecção, o médico tinha ainda que pronunciar o diagnóstico, e passar depois a receita. Era isso que me dividia, o querer lá estar para aprender mais em menos tempo, mas sentia-me apavorado, com medo de não saber o que fazer quando fosse necessário assumir uma responsabilidade e eu fosse o único médico por perto.

De facto, o meu receio já se havia justificado várias vezes; por exemplo, na minha primeira noite de serviço como interno, quando me mandaram verificar uma hemorragia nos C.I. Enquanto subia apressadamente pelas escadas, tentei acalmar-me lembrando-me do facto de a pressão localizada parar qualquer hemorragia. Parei assim que entrei no quarto e vi o paciente. O sangue saía-lhe em golfadas dos dois lados da boca, afogando-o num rio vermelho. Não era um vómito; era sangue puro. Fiquei ali imóvel, aterrorizado, estupidificado, enquanto os seus olhos imploravam ajuda. Mais tarde soube que não havia mais nada a fazer. O cancro havia destruído a veia pulmonar. Mas o que me preocupava era que eu me perdera, completamente vazio e imobilizado. Revi a cena durante muitas das noites seguintes, e agora sofro desta obsessão de me sentir capaz de fazer alguma coisa, mesmo que não ajude o paciente.

Mrs. Takura estava amparada numa cama de canto. Tinha quase 80 anos e o seu bonito cabelo branco estava finamente entrançado. Saía-lhe um tubo de Sengstaken da narina esquerda, firmemente apoiado por uma esponja de borracha que lhe enrugava e distorcia o nariz. Tinha algumas gotas de sangue seco num dos cantos da boca. O tubo de Sengstaken tinha cerca de quatro milímetros de diâmetro e era dos fortes. Dentro deste tubo existiam três tubos mais pequenos, chamados lúmenes. Dois dos lúmenes têm uns balões presos, um dentro do tubo mais pequeno e outro no maior. Para que o tubo de Sengstaken possa funcionar, o paciente tem de engolir este aparelho, o que nunca é fácil, e é particularmente difícil quando o paciente vomita sangue, como acontecia geralmente. Uma vez colocado o tubo, o balão do fundo, dentro do estômago, é insuflado até atingir mais ou menos o tamanho de uma laranja grande; e assim prende tudo aos lugares certos. Um pouco mais acima está localizado o segundo balão: quando insuflado, adquire a forma de um cachorro quente aconchegando-se na parte inferior do esófago. O terceiro lúmen, fino mas longo, apenas faz uma limpeza dos líquidos indesejados, como o sangue. A finalidade disto tudo é parar a hemorragia do esófago com a pressão aplicada às paredes do esófago pelo balão em forma de salsicha.

Só tratei uma vez um doente que necessitou do tubo de Sengstaken, na escola médica. O seu problema era o alcoolismo, que lhe havia causado uma cirrose grave e, eventualmente, uma falha do fígado. Claro que Mrs. Takura não era alcoólica; o seu problema viera de uma crise de hepatite, anos atrás, mas esses casos têm um aspecto comum. Um fígado danificado impede a passagem do sangue, de tal modo que a pressão aumenta gradualmente nos vasos sanguíneos que se dirijam a ele, voltando depois para baixo, causando uma dilatação do esófago, e mesmo, em casos extremos, uma rotura. Nesta altura o paciente vomita sangue copiosamente. Muito embora tivesse tratado o alcoólico durante apenas um dia ou dois, lembro-me nitidamente de o ter ajudado a engolir os balões. Não tendo sido possível, haviam-no levado para a cirurgia, e já não chegou a voltar para a enfermaria.

Uma hipertensão da veia porta com varizes esofageais era uma coisa séria, mas até agora tínhamos conseguido estabilizá-la em Mrs. Takura introduzindo-lhe o tubo. E ela tinha operação marcada para dentro de oito horas.

Não parecia oriental, apesar do seu nome e da sua resignação e calma interior, traços que eu começava a notar em todos os orientais. Estava sempre lúcida e alerta, cada vez que falávamos, sabendo o que se passava e falando calmamente. Acho que ela seria capaz de falar calmamemte dos seus gerânios no meio de um furacão. Quando me perguntou como estava, como sempre fazia, a resposta parecia ser importante para ela. Dávamo-nos bem. Além disso, pensava que ela não iria recuperar. às vezes tinha essa intuição irracional em relação a alguns pacientes. Por vezes acertava.

Certa vez, algumas horas antes da sua admissão, os médicos haviam tentado remover o tubo de Sengstaken, mas o resultado foi mais uma hemorragia que a levou ao estado de choque antes de o tubo ser reposto. Uma vez que havia estado de folga nessa noite, não assisti ao drama e ao sangue; mas assustei-me com ela na manhã seguinte, quando a sua tensão baixou para 80/50 e o seu pulso acelerou para 130 por minuto. De algum modo, recompus-me suficientemente para lhe administrar mais sangue, compreendendo por fim que a hemorragia afectara a sua tensão. Quando a tensão estabilizou novamente, o meu espírito acompanhou-a. Causa, efeito, cura. Isto deveria ter-me dado um pouco mais de confiança, mas, curiosamente, acreditar que uma decisão certa se esconde por detrás de cada situação, apenas me fez ficar mais nervoso. Dar-lhe sangue havia sido a decisão certa, mas era também algo simples; para a próxima talvez fosse diferente.

Mrs. Takura encontrava-se nessa noite agradável e calma, como de costume. Verifiquei-lhe a tensão e a pressão dos balões, fiz uma observação geral, tentando justificar a minha presença, apesar de querer apenas conversar com ela.

- Então, está preparada para uma pequena operação?

- Claro, Doutor, se o senhor estiver, eu estou.

Aquilo chocou-me. Tive a certeza de que quando se referia "ao senhor", se referia, no sentido colectivo, a todo o serviço cirúrgico. Não podia referir-se a mim. Eu não estava nem perto de estar preparado, apesar de saber alguma coisa sobre a operação, pelo menos a parte teórica. Podia falar durante vinte minutos dos declives dos gradientes da pressão da veia porta, das vantagens e maleficios da cirurgia realizada, fazendo uma anastomose da veia porta para a veia cava inferior, de lado a lado, ou do lado ao extremo. Ainda me lembrava dos diagramas da união esplenorenal - essa era do fim para o lado. A ideia geral era aliviar a pressão do sangue no esófago, passando o sistema venoso do fígado, onde a pressão havia aumentado e causado a hemorragia, para uma veia onde a pressão era mais regular, como o interior da veia cava, ou a veia renal esquerda. Tinha também na memória os números comparativos destes procedimentos, mas não queria pensar neles. Como é que se pode olhar para um paciente e pensar que tem vinte por cento de hipóteses?

- Estamos preparados, Mrs. Takura.

Insisti no estamos, quando deveria de facto ter dito "eles", pois nunca observara sequer uma dessas operações, chamadas desvio da veia cava/veia porta. Era fantástica, teoricamente. Nada entusiasmava mais os professores que falar dessas diferenças de pressão, tratando-as com este método.

Quando começavam, gostavam particularmente de discutir certos artigos obscuros escritos por Harry Byplane da Universidade de Acolá (Harry era sempre um bom amigo, é claro), que demonstravam que um artigo de George Littlechump na de Além se havia enganado ao pressupor que o declive da pressão venosa hepática interlobular juntamente com o plexo portal interlobular não tinha importância - aquilo não tinha importância lá, é o que se ouve muitas vezes nas rondas da escola médica. Para se sair vencedor, teria de se citar um dos mais obscuros artigos sobre o declive da pressão (eles gostavam especialmente dos gradientes de pressão ou pH), afirmando que Bobble Jones tinha provado de forma conclusiva (qualquer dúvida seria desastrosa) que, numa série de setenta e sete pacientes (era necessário um número exacto, mesmo que fictício), todos eles morriam se fossem para o hospital. No final, não tinha muita importância o que se havia dito, desde que tivesse bastantes números e declives e referências pessoais ao autor; era-se então aclamado, e o primeiro da classe. Era assim nas grandes ligas.

- Bem, Peters, agora é que a arranjou a bonita.

- Mas, e Mrs. Takura?

- Esquece o paciente, estamos a falar de iões de hidrogénio no sangue, e isso é o pH, com um p pequeno e um H grande.

Lembrei-me de uma noite em que estávamos todos reunidos à volta de uma cama, durante uma das aulas na escola médica. Qualquer pessoa podia ver que os estudantes eram aqueles de bata branca curta. As batas e as calças brancas definiam os internos e os residentes. E havia depois, no auge da hierarquia, as longas batas brancas engomadas; uma maravilha, tão brancas que faziam os lençóis das camas parecer cinzentos. Preciso de explicar quem as usava?

Alguém mencionou o nome da doença do paciente e lá recomeçámos nós numa intrincada questão sobre o pH, os iões de sódio, as sondagens sobre a glucose, citando artigos de Houston, na Califórnia, e alguns suecos. Os nomes eram atirados de um lado para o outro, numa espécie de pingue-pongue académico. Quem acabaria o jogo, dizendo o último nome, a última novidade? Estávamos quase sem fôlego, cheios de ansiedade, quando alguém notou que estávamos reunidos à volta da cama errada. O paciente ali deitado não sofria da doença que estivéramos a debater. Isso finalizou o jogo sem haver um vencedor, e afastámo-nos silenciosamente em direcção à outra cama. Não consegui perceber que raio de diferença fazia, uma vez que nem sequer tivéramos tempo de observar o paciente. Talvez se sentissem envergonhados de discutir uma doença em frente de outro paciente.

- Tente dormir, Mrs. Takura. Vai correr tudo bem.

Dei uma olhada por cima do ombro para verificar se a costa estava livre. As enfermeiras não me haviam prestado muita atenção, em parte porque estavam ocupadas com um homem no sítio oposto. O homem estava ligado a um monitor de um ECG que mostrava um batimento muito irregular do coração. A mulher chorava ainda silenciosamente na cama do seu filho adolescente, coberto de ligaduras. Tinha um ferimento na cabeça, resultante de um acidente de automóvel; nunca chegou a ficar consciente.

Dirigi-me para a porta, abri-a e saí. O dia mudou para a noite. As luzes brilhantes, o som das máquinas, a azáfama das enfermeiras, tudo isso se desligou assim que a porta se fechou.

Estava de volta àquele corredor escuro e apressado do hospital. à minha esquerda, encontrava-se uma enfermeira no seu posto, com a silhueta evidenciada pela luz brilhante por detrás dela. Tudo o resto se confundia na obscuridade. Entrei no corredor completamente às escuras. Tudo o que tinha a fazer era voltar para o lado da luz, descer as escadas e atravessar o átrio em direcção aos meus aposentos. Ainda tinha tempo de dormir. Subitamente, uma luz acendeu-se por detrás de mim e uma voz gritou.

- Houve uma paragem, Doutor. Uma paragem. Venha depressa! - Ao voltar-me, a luz desaparecera, deixando apenas pontos luminosos no meu campo visual. O bloqueio de Berlim, uma crise de mísseis cubanos, o Golfo de Tonkin. Crises, sem dúvida, mas não tão próximas, nem tão perto de casa. Para mim, isto significava um alerta máximo, o tipo de catástrofe que eu mais receava. A minha primeira ideia foi que não seria o único médico a aparecer, mas devido à hora seria talvez o único. Se tivesse tido oportunidade de escolher, teria partido na direcção oposta, sem me preocupar se era cobarde ou realista. Mas ali estava, a dirigir-me para o paciente, quase a imagem do jovem interno a correr pelo corredor com o estetoscópio agarrado nos dedos tensos.

Já o devem ter observado na televisão e nos filmes, e é de facto emocionante, não é? Assim como o som do clarim e o ataque da cavalaria no último momento. Mas no que pensa este interno? Depende para onde ele está a correr. Se estiver às escuras, está a tentar lá chegar inteiro. Para além disso, depende do tempo que esteve como interno. Se não for há muito tempo, há apenas umas semanas, então corre assustado; aterrorizado, para ser mais exacto. Não quer ser a primeira pessoa a chegar.

Já lá está agora, sem fôlego, mas intacto fisicamente. Mas a sua mente devaneava em outro lado. A pouca informação que tinha sobre a situação havia sido subitamente varrida do seu cérebro pelo choque da responsabilidade. Não se preocupem em aprender os nomes de drogas ou de dosagens, insistiam os professores de farmacologia, aprendam apenas os conceitos. Como se diz a uma enfermeira para preparar 10 cc de conceitos para um doente que está a morrer?

O estranho mundo voltou a envolver-me assim que abri as portas dos C.I., e é claro que era o único médico, acompanhado pelas duas enfermeiras que estavam à cabeceira do homem com o ECG irregular. Enquanto a minha boca formava uma obscenidade inaudível, os meus dedos apertaram involuntariamente a armação da cama, como para se apoiarem. Já não era o interno da televisão, mas sim um médico verdadeiro, cheio de inexperiência e terror. Quem me apoiaria se esse homem morresse? As enfermeiras? Os professores da escola médica? Os médicos de serviço? O hospital? O que era mais importante é que ainda não aprendera a perdoar os meus próprios erros.

Olhei de novo para a porta, desejando que algum residente aparecesse, embora fosse improvável; veio-me à ideia a razão por que tantos estudantes brilhantes e dedicados passam pela escola médica e depois, ao lidar com o internato, mudam para a pesquisa ou outro tipo de campo paramédico. Qualquer coisa deve ser melhor que o internato. Há algo errado aqui. Por que é que um interno não sabe aplicar nada útil quando é chamado aos C.I. nas primeiras semanas de internato? E por que é que os assistentes não lhe dão apoio? Mesmo os mais atenciosos não conseguem ser mais que calmamente agressivos. Parecem dizer:

- Nós já estamos fartos desta merda. Agora, que diabo, é a vossa vez.

Bem, estava a fazê-lo, aqui e agora nos C.I, sem hipótese de aparecer ajuda, mas desta vez tive sorte. O monitor do osciloscópio mostrava o ECG com um impulso eléctrico errático, como os gatafunhos de uma criança irritada. Quando o som do bip começou a soar cada vez mais alto, até atingir um staccato extremamente rápido, compreendi que o paciente tinha entrado em fibrilação muscular; o seu coração era apenas uma massa incoordenada e trepidante. Agora, sabia o que fazer. Ia dar-lhe um "choque".

Na realidade, a decisão foi tanto minha quanto das enfermeiras. Sempre um passo à frente, tinham já o desfibrilador carregado e uma delas entregava-me placas oleadas.

- Qual é a carga? - perguntei, sem realmente me importar, mas a necessitar do controlo que a pergunta me dava.

- Carga total - respondeu a enfermeira das placas. Apliquei uma delas ao peito do homem, mesmo por cima do esterno, e a outra ao longo do lado esquerdo do tórax. O que era estranho era ele não ter deixado completamente de respirar. Nem estava inconsciente.

O único sinal de sofrimento que apresentava, para além da respiração entrecortada, era uma espécie de olhar surpreendido, como se lhe tivessem roubado a respiração. Carreguei no botão da placa. O seu corpo inteiriçou-se violentamente e os braços agitaram-se em várias direcções. O blip do ECG desapareceu subitamente do ecrã, com a tremenda descarga elétrica, mas apareceu logo a seguir, parecendo normal. Fiquei mais descansado quando o bip reapareceu também, sugerindo uma média de pulso normal, e o homem respirou fundo. As coisas aparentaram ir bem apenas durante dez segundos, quando ele deixou de respirar e a pulsação desceu a zero, enquanto o ECG continuava com o blip, numa média normal. Era muito estranho. Os blips do ECG com um paciente sem pulso era coisa que não vinha nos compêndios. A minha mente jogou um enorme match de ténis interior, com conceitos a voarem de um lado para o outro; havia actividade eléctrica, mas não havia batimento, nem pulsação.

- Tragam-me um laringoscópio e um tubo endotraqueal.

Uma das enfermeiras já os tinha. Ele tinha que receber oxigénio. O Oxigénio e o dióxido decarbono, tinham de o fazer mover, e para isso tínhamos que introduzir o tubo endotraqueal e respirar por ele.

Este tubo é colocado através de um aparelho longo, fino e brilhante chamado um larigoscópio. Este aparelho tem uma lâmina no extremo, de cerca de quinze centímetros mais ou menos, que é utilizada para levantar a base da língua e abrir a entrada para a traqueia, por onde o tubo deve entrar. Assim que a lâmina entra na garganta, tentamos localizar o opérculo que cobre a traqueia durante a deglutição - a epiglote. Estamos sentados atrás do paciente, nesta fase, puxando a sua cabeça para trás, lutando contra matérias estranhas como o sangue, o muco, ou vómito. Uma vez que se veja a epiglote, faz-se deslizar o instrumento lá para dentro, desce-se um pouco e comprime-se. Com alguma sorte, estaremos a ver então, para além da traqueia, as cordas vocais, que são de um branco-creme, em contraste com a mucosa vermelha da faringe.

Esta é a situação ideal. Na prática, tem-se muitas vezes que tactear na garganta com a mão livre, à procura da traqueia, e muitas vezes não a encontramos. E mesmo quando isso acontece, os problemas não acabam mais, porque introduzir o tubo pode ser uma coisa muito complicada. O orifício precioso entre as cordas vocais será tapado pelo tubo de borracha no último momento. Não há mais nada a fazer senão empurrá-lo às cegas. às vezes também pode acontecer estarmos a introduzir o tubo no esófago, de modo que quando se tenta dar ventilação ao paciente - forçar a entrada do ar - é o estômago que se enche em vez dos pulmões. E há geralmente sempre alguém a fazer massagem cardíaca no peito do paciente, e o laringoscópio bate contra os dentes ou sai da boca, e essa área pode estar a encher-se rapidamente com líquidos de qualquer fonte. Para mim, introduzir o tubo endotraqueal era um pesadelo.

Mas não havia outra pessoa para o fazer, por isso empurrei a cama para trás e pus-me atrás dele com o laringoscópio.

- Qual é basicamente o problema? - perguntei rapidamente, puxando a sua cabeça para trás.

- Nem sempre segue o ritmo do pacemaker - respondeu uma das enfermeiras. Subitamente, tudo fazia mais sentido.

- Que é que lhe estão a dar? Que contém aquele frasco? perguntei, apontando para o frasco da IV.

- Isuprel - respondeu uma delas, e mandei-as acelerarem-no. Sabia que o Isuprel ajudava as contracções do coração, e era particularmente útil em casos em que o coração se contraía sozinho.

- A que velocidade? A que velocidade? - Não fazia a mínima ideia.

- Deixe correr. - Não me ocorria nada melhor para dizer. Tinha, agora a cabeça para trás, o laringoscópio introduzido nagarganta, mas não conseguia ver as cordas vocais. - Traga-me uma ampola de bicarbonato. - Assim que uma das enfermeiras saiu do meu campo de visão periférico, compreendi que tinha pensado em alguma coisa que elas não tinham previsto. Consegui então ver as cordas vocais. Os seus contornos brancos contrastavam com o vermelho, como os portões de uma câmara subterrânea. Pela primeira vez consegui introduzir o tubo na traqueia sem muito esforço.

Mas assim que havia acabado de o introduzir, o paciente agarrou-o e tirou-o para fora. Senti-me indignado, por um segundo, até que me apercebi de que ele estava novamente a respirar. Tinha agora uma pulsação forte. A enfermeira apareceu com o bicarbonato. Estupidamente, queria dar-lho agora, porque era uma coisa em que tinha pensado, e elas não, e especialmente porque sabia muito sobre electrólitos, pH e iões. Mas ocorreu-me o efeito que aquilo poderia provocar no nível de cálcio. O cálcio e o potássio combinavam-se com o pH de uma forma traiçoeira. Corria o risco de pensar demasiado e estragar tudo, por isso decidi guardar o bicarbonato; não valia a pena continuar.

Ouviu-se subitamente abrir a porta e entrou outro interno, seguido por dois residentes. Estavam todos estremunhados. Um deles não trazia meias e mostrava vincos no rosto provocados pelas rugas da almofada. A multidão continuou a chegar. Teria sido nesta altura que eu gostaria de ter chegado, quando já se encontrava tudo sob controlo e as decisões seriam gerais. Na realidade, comecei a acalmar-me, embora tivesse ainda a pulsação acelerada. O pessoal recém-chegado instalou-se nas cadeiras e no balcão. Um deles folheou a ficha do doente, enquanto outro chamava o médico privado. Mantive-me ao lado do paciente, que começara a falar. Chamava-se Smith.

- Obrigado, Doutor. Acho que estou melhor agora.

- Sim, tem todos os sinais disso. Ainda bem que pudemos ajudá-lo. - Os nossos olhos cruzaram-se, os dele mostrando mais confiança do que a que achava que merecia, e os meus tentando não denunciar a minha insegurança interior. O Isuprel continuava a correr como louco, e não sabia se havia de o abrandar ou não. Deixemos os outros continuarem por um pouco. Mr. Smith queria falar.

- É a terceira vez que isto me acontece, quer dizer, a terceira em que o meu coração decide não seguir o pacemaker. Quando isso acontece, nem tenho tempo para pensar, mas depois, como agora, tudo se torna uma rotina. Primeiro, sinto a garganta apertar-se, e depois, subitamente, não consigo respirar, mesmo nada, e depois tudo se torna cinzento e com sombras. - Ouvia-o com atenção, mas só compreendi metade. Era incrível estar a falar com um homem que ainda há alguns minutos atrás não estava ali.

- Uma sombra, é essa a melhor palavra que consigo achar, uma sombra que não desaparece. Torna-se mais profunda e negra, até que não existe mais luz, nenhuma luz no mundo. - Parou abruptamente.

- Mas sabe qual é a parte pior, Doutor? - Abanei a cabeça negativamente, sem o querer interromper. - A parte pior é sair dali, por isso acontece muito lentamente, não como se estivesse a descer, que é rápido. Primeiro, tenho sonhos caóticos e selvagens. Não lhes encontro nenhum sentido, até que, finalmente... e parece demorar tanto... quarto e as pessoas aparecem. O que não consigo explicar é que a última coisa a vir é o tomar consciência de mim, quem sou, onde estou, e a dor. Sinto o peito dorido, como se sofresse de falta de ar, especialmente se tenho um tubo na garganta.

- Deve ter sido por isso que tirou o tubo. Já fez muitas operações?

- As suficientes para encher um livro. Ao apêndice, à vesícula biliar...

Interrompi-o.

- Lembra-se de como era quando foi anestesiado? Já alguma vez o foi com éter? - Essa era uma experiência de que me recordava bem, embora tivesse ocorrido há muito tempo, quando tinha 4 ou 5 anos. Nessa altura, toda a gente fazia operação às amígdalas, e lembrei-me do terror que sentira quando a máscara com éter foi posta no meu rosto e a sala começou a desvanecer-se, e escutara um ruído insuportável nos meus ouvidos. Depois apareceram círculos concêntricos que se moviam cada vez mais depressa, até se encontrarem num centro vermelho e brilhante; depois, nada, até que acordei a vomitar.

- A minha apendicectomia foi em 1944 - disse Mr. Smith, recordando-se -, quando estava na marinha, e creio que foi com éter.

- Também foi assim que se sentiu quando o coração parou? E quando recuperou a consciência?

-Não, não foi nada assim. A anestesia é algo agradável, nada como lutar com o meu coração; parece literalmente uma luta para consegui evitar que salte do meu peito, mantê-lo sob controlo. Não me consigo lembrar como acordei das operações, mas quando o coração começa bater novamente é como se tivesse milhares de pesadelos.

Ergueu-se e tocou na minha mão, que estava na armação da cama.

- Meu Deus, espero que não aconteça mais. Está a ver, é que não posso ter a certeza de que esteja aqui alguém para me ajudar. Sabe, Doutor, houve mais uma coisa estranha, desta vez, parecia que estava a ver o meu próprio corpo de fora dele, como se estivesse aos pés da cama.

- Já tinha tido essa sensação antes? - perguntei, agora com curiosidade. - Sentir-se fora de si próprio é um sintoma de esquizofrenia.

- Nunca. Foi uma sensação única. Uma sensação única. - Este homem falava-me de morrer, mas a maneira com que o fazia tornava a morte num processo vivo, algo que se poderia estudar num livro. Sem o desfibrilador podia evidentemente estar morto, e com ele aqueles pensamentos. Esta noite, a linha entre a vida e a morte quase não existira para três pessoas, para este homem, Marsha Potts e o velho com cancro. Estava com dificuldades em pensar na vida e na morte ao mesmo tempo, mas estava satisfeito por este homem não estar morto, porque era simpático. Mas que ideia estúpida. De qualquer modo, não o podia imaginar morto. Independentemente do que tinha acontecido, ele não teria morrido, porque estava vivo neste momento.

Isto faz algum sentido? Para mim fazia. Quem era eu para pensar que podia mudar o destino? Estar vivo, falar e pensar é tão diferente de estar morto e imóvel que essa transição parece agora impossível. Havia sido tão simples, apenas uma faísca no desfibrilador, como se batesse nas costas de alguém para parar uma tosse, ou ir a correr buscar um copo de água. Talvez ele não estivesse em fibrilação, talvez se tivesse safado sozinho. Já tinha acontecido. Nunca saberemos.

Os médicos residentes e os internos ainda ali estavam, a conversar e a ajustar os tubos de plástico, coçando a cabeça e verificando o traçado do EGG. Tinham um ar satisfeito e interessado. Dei uma olhada a Mrs. Takura ao sair, que me sorriu e acenou com o braço livre.

o estranho mundo interior dos C. I. desapareceu assim que virei para o corredor e desci as escadas. A vida parecia adormecida. Pensei nas noites no continente, quando estava na escola médica e tinha de lutar do apartamento até ao hospital, com tudo o que o Inverno tinha para oferecer. Ironicamente, as noites calmas e cheias como estas pareciam ainda mais difíceis, tão solitárias que apetecia praguejar. Todas as noites no Havai eram como esta, clara, incrustrada de milhares de estrelas e refrescadas por um vento suave.

Só a ideia de Jan no meu quarto me fazia continuar. Em alturas como esta, em que as tensÕes médicas se começavam a evaporar, tudo o que conseguia pensar era em fugir àquela solidão, estar perto de alguém vivo e com saúde, falando com ela e amando-a. Na escola médica, acontecera algumas vezes ter uma rapariga à minha espera no quarto, depois de ser chamado para fazer algo. Era sempre agradável voltar por isso. Mas acontecera também diversas vezes ela resmungar e voltar a dormir assim que me metia na cama.

Aquele algo que os meus colegas na escola médica e eu nos encontrávamos a fazer a altas horas da noite era quase sempre a mesma rotina de laboratório. A necessidade de análises de sangue, de proteínas de Bence-Jones parecia ocorrer principalmente antes da meia noite, para os residentes. Por isso, havíamos acabado centenas de vezes por usar o nosso restinho de tempo no que se pode chamar as entranhas do navio médico, contando pequenas células sanguíneas, que se tornam ainda mais pequenas com o passar do tempo. Entretanto, o residente da ponte dirigia o paciente, reclamando várias vezes da lentidão dos seus contadores prisioneiros. A verdade sobre as contagens sanguíneas é que, fazendo uma, fazem-se praticamente todas. O ponto de diminuição do rendimento na curva de aprendizagem 4, atingido rapidamente, particularmente às três da manhã, quando o cérebro tem tendência a querer voltar para o quarto, e talvez para a jovem que aguardava.

Havia feito vinte sete contagens de sangue, um record pessoal, embora longe do record do hospital. As últimas, nessas alturas, eram, naturalmente, não mais que palpites meio calculados. Assim sucedia nas grandes ligas, onde recebíamos treino pelo preço de 4000 dólares por ano, para técnicos de laboratório. Todos nós imaginávamos uma situação fantástica onde atirávamos a urina à cara dos residentes e lhes dizíamos que enfiassem a garrafa no cu, ou íamos para o café fazer greve. Nada disto acontecia fora das nossas mentes, porque, para dizer a verdade, estávamos bastante intimidados. Como os professores não se cansavam nunca de apontar, havia outros à espera para usar as nossas batas brancas. o que de facto acontecia era que, mais para a noite, quando nos sentíamos chateados e explorados, cortava-se aqui e ali um bocado, e inventava-se um resultado plausível. Mas isso poucas vezes acontecia, e só à noite.

Mas o pior de tudo era depois, quando não tínhamos quem nos escutasse. Tudo parecia adormecido e indiferente às convicçÕes de que a preparação médica era fraca e irrelevante. Por isso, apressávamo-nos a ir para o quarto, para a rapariga adormecida, gratos finalmente pelo seu corpo quente.

Alguns estudantes casaram-se no princípio da escola médica. Suponho que não se sentiam tão sós, tendo o tal corpo quente omnipresente. E os primeiros dois anos foram óptimos - cursos durante o dia e estudar os livros durante a noite. Devem ter-se divertido imenso.

Mas era diferente, quando as contagens do sangue apareceram nos últimos dois anos, e todas as outras coisas chatas a meio da noite. Penso que alguns desistiram de tentar comunicar a sua frustração. o corpo quente não era o suficiente. De qualquer modo, muitos deles já se haviam separado quando recebemos o pedaço de papel a dizer que éramos Doutores em Medicina. Éramos, na realidade, campeÕes em contagens de sangue, doutores em Conceitos e no trivial do Laboratório. Nenhum de nós sabia que dose de Isuprel poderia salvar uma vida.

Quando abri a porta, não sabia se havia de fazer barulho ou andar silenciosamente. Ganharam os instintos mais bondosos, e assim que a luz do corredor penetrou no quarto, fechei rapidamente a porta e descalcei os sapatos. o quarto estava mergulhado num silêncio profundo, e tão escuro que não me poderia ter movido se não conhecesse a localização da mobília. E que mobília!

Claro que o leito de hospital onde eu dormia tinha umas características interessantes. Podia subir de modo a ter uma posição tão confortável para ler os livros que nunca conseguia ler mais que dois parágrafos sem adormecer.

o resto da mobília incluía um cadeirão mais duro que uma pedra e uma secretária feita para uma criança. Se lhe pusesse os cotovelos em cima, não tinha espaço para o livro, especialmente se fosse daqueles calhamaços enormes que são tão populares hoje em dia entre as editoras de livros de Medicina. Ao mover-me no escuro, o único obstáculo potencial seria a prancha de surf que havia pendurado no tecto. Consegui ver gradualmente o contorno dajanela e a cama, e pus a mão dentro dos lençóis, correndo-os de um lado para o outro, cadavez mais rápido, até ter a certeza de que ela se fora mesmo embora. Sentei-me na beira da cama, racionalizando que estava exausto de qualquer modo, ela não teria provavelmente querido conversar. Já passava das duas e estava exausto; realmente estava.

 

o telefone tocou mais três vezes nessa madrugada. As duas primeiras não eram suficientemente importantes para ir, eram apenas enfermeiras com perguntas sobre ordens e sobre um paciente que precisava de um laxante. Fiz um pequeno estudo independente no que diz respeito aos laxantes. Os estudos provam conclusivamente que cinco entre seis enfermeiras pedem dez vezes mais os laxantes entre a meia-noite e as seis da manhã do que em outra qualquer altura do dia. Em relação às razÕes, estas são difíceis de imaginar, indo desde a interpretação Freudiana das ressacas anais profissionais de enfermagem. De qualquer modo, sentia que era quase um acto criminoso acordarem-me por causa de um laxante.

Cada vez que o telefone tocava, dava um salto na cama, enquanto a adrenalina me penetrava nas veias. Na altura em que pegava no auscultador, o meu coração batia fortemente. Mesmo que não fosse coisa importante, levava cerca de meia hora para acalmar depois de cada telefonema, de modo a poder dormir. Numa dessas noites, ao atender o telefone meio a dormir, só conseguia ouvir murmúrios distantes. Gritei para falarem mais alto, fechando os olhos e concentrando-me, mal conseguindo ouvir as palavras longínquas. Estavam a dizer-me que estava a falar para o lado errado do auscultador.

A terceira chamada era o oposto do espectro do meu medo de não saber o que fazer. Claro que podia resolver; até uma criança de 4 anos poderia. Mrs. Fulana tinha caído da cama. Os pacientes normalmente não se magoam quando caem da cama - não estão presos, e para além disso as enfermeiras sabem o que devem fazer. Nada disso interessava à administração do hospital. Desde que tivessem caído da cama, o interno tinha de lhes ir dizer olá, fosse qual fosse a hora.

Levantei-me, e senti-me... - como explicar? - não era bem nauseado, embora estivesse mal do estômago, e não tivesse febre alta, mas sentia a testa tão quente que nela poderia fritar um ovo. A melhor nomenclatura seria uma descrição. Sentimo-nos como seria de esperar ao sermos acordados às quatro da manhã depois de termos apenas dormido duas horas, durante as quais havíamos sido acordados assim que adormecíamos. Tinha-me deitado finalmente após ter trabalhado cerca de vinte horas, exausto física e emocionalmente, para ter de me levantar para ajudar alguém que havia "caído" da cama sem se magoar. Na realidade, a maior parte deles apenas caíam no chão a caminho da casa de banho. Mas, fosse qual fosse a forma como haviam caído, as enfermeiras davam-lhe sempre o nome de queda, mesmo que estivessem longe da cama, e lá íamos nós, na observância de uma legalidade absurda.

Este formalismo era ainda mais absurdo quando compreendíamos que o hospital depende destas mesmas enfermeiras para determinar o estado físico de um paciente e chamar o médico, se necessário for. Mas, por alguma razão inexplicável, não se pode contar com elas para verificarem se o paciente se magoou ou não ao dar uma queda. Há no entanto mais, muito mais que algo inútil e arbitrário que se tem que fazer. Cerca de metade do tempo, desde o terceiro ano da escola médica, foi despendido na procura do inútil e do arbitrário, e é justificado pela explicação diáfana de que tudo isso é necessário para se ser um estudante de Medicina ou interno, e para nos tornarmos médicos. Tretas. Este tipo de coisa é apenas para nos atormentar e uma imposição de tarefas desnecessárias, uma espécie de rito de iniciação para a entrada na Associação Médica Americana. o sistema funciona; meu Deus, como funciona! Eis a profissão médica, moldada em perfeição, cérebros lavados, estreitamente programada, de direita nas suas tendências políticas e completamente dedicada à aquisição de dinheiro.

Remoía caoticamente estes pensamentos enquanto me dirigia para o elevador e carregava no botão com força, com certa esperança de partir aquela engenhoca. Ao voltar para o hospital, tentei não acordar completamente ao passar por aqueles corredores sonolentos em direcção aos pontos de luz longínquos.

Contei certa vez a um amigo, que não estava em Medicina, as variadas razÕes por que era o meu sono interrompido às quatro e meia da manhã. Não acreditou. Era demasiado inquietante para ele. Destroçava a sua imagem colorida do interno subitamente acordado, ansioso, vestido de branco, a correr pelos corredores, a subir as escadas de três em três degraus, para salvar uma vida. E aqui estava eu, sentindo-me sujo e a cambalear pelo corredor praguejando baixo, a caminho de dizer, "Como está, paciente?... óptimo, Doutor... ainda bem... Descanse agora, e por favor não volte a cair da cama."

Faltava já um quarto para as seis, já era dia, quando o telefone tocou mais uma vez. Pus os pés no chão, levantei-me lateralmente, usando os braços para me erguer. Senti novamente aquele mal-estar, e uma tontura momentânea até que o chão frio me despertou. Apoiei as mãos no lavatório e encostei-me a ele por um segundo. No espelho, os meus olhos eram como vistas aéreas de lavaquente a correr para um lago de lama. A única razão por que as olheiras não chegavam aos cantos da minha boca era porque não conseguia sorrir. Ah, mas um Pouco de água fria resolveria a situação. Segurando-me com apenas uma mão, molhei ligeiramente o rosto.

Esta manhã nada havia de particularmente novo ou diferente. Era apenas uma manhã como as outras. Havia trabalhado em duas semanas de tal modo, sem quase dormir, que mesmo tendo dormido seis horas seguidas me sentia da mesma forma. A lâmina de barbear, mais viva que eu, deixou diversos pontinhos de sangue na minha garganta. Ao misturar com a água, parecia ser muito sangue, e, em combinação com os meus olhos e as olheiras, faziam-me parecer um tipo da Mafia.

Cerca de trinta segundos depois, senti-me suficientemente recomposto para me vestir. o estetoscópio, a lanterna, uma série de canetas de cores diferentes, bloco de notas, pente, relógio, carteira, cinto, sapatos, seguindo a minha lista mental. Verificar se as meias eram iguais. Não posso dar mau aspecto ao sítio. Dei uma última olhada em volta do quarto para me certificar de que nada faltava, algum papel, ou algum livro. Deixei o quarto, satisfeito, usei o elevador e saí para o ar da manhã.

Fazia sempre questão de dar uma volta em frente do hospital antes de me dirigir para a cafetaria. Conseguia pôr-me mais bem-disposto, de algum modo. O céu estava nessa manhã de um azul-pálido e longínquo, ponteado por pequenas nuvens, em parte banhadas a leste por tons vermelhos-dourados; para oeste, as cores esmoreciam mais para rosa e violeta. A relva brilhava e havia pássaros por todo o lado, com grande algazarra. Predominavam dois tipos de pássaros, os mainás, que se pavoneavam por ali com estranhos comportamentos, e a guincharem de forma desafinada e rabugenta, e os mais discretos pombos, movendo-se mais lentamente, quase delicadamente, parecendo alguns deles bambolearem-se ao abrir as penas das caudas, arrulhando melodiosamente. Gostava daquele pequeno passeio matinal. Eram só alguns metros, mas fazia-me feliz.

Seis da manhã não é para mim a altura ideal para se ter um grande pequeno-almoço, especialmente depois de uma noite em branco. Forcei-me contudo a comer, enchendo a boca com a comida e pondo toda a minha confiança na água para a engolir. Sabia por experiência que voltaria a ter fome dali a uma hora ou duas, quando me seria impossível voltar a comer. Além disso, por causa do sistema de horários, perdia muitas vezes a hora de almoço. Podia não ter oportunidade de comer durante mais oito ou dez horas.

Depois do pequeno-almoço, tinha cerca de meia hora para ver os meus doentes antes de os turnos começarem, a um quarto para as sete. Era importante ter tudo em ordem antes, para conhecer as últimas alteraçÕes. Os dos C. I. eram os primeiros. Nunca me importava de ir lá de manhã, ou em qualquer altura durante o dia. Havia sempre outros médicos que colmatavam aquela sensação de se estar sozinho num fio de alta tensão. Mrs. Takura dormia calmamente depois da medicação pré-operativa; ainda tinha o tubo enfiado na narina, e o nariz enrugado com a tensão. Pulso, resultados da urina, tensão arterial, respiração, temperatura, electrólitos, BUN, tempo de protrombinas, proteínas, bilirrubina... todos os testes recentes ali estavam registados, Fiz uma pausa para anotar o seu estado na folha seguinte, desejando que ela estivesse pronta.

No outro canto, as máquinas de Mr. Smith continuavam o seu bip, mostrando um ECG que parecia ser normal, embora eu não fosse um especialista em analisá-los, especialmente no osciloscópio. Estava a dormir. Dirigi-me às enfermarias.

Numa delas, havia mais variedades e quantidade que crises propriamente ditas. Tinha vários pacientes, representantes de diversos tipos de pessoas e de problemas. Na sua maior parte, estavam a recuperar de uma cirurgia e progrediam de vários estados do pós-operatório, desde o tirar dos pontos à exaustão. o comprimento dos seus drenos era geralmente uma boa indicação dos dias passados após a operação. Os drenos eram um pouco embaraçosos, mas eram uma parte importante na prática da cirurgia. Eram introduzidos profundamente na incisão no final da operação, e serviam como escoadouro de qualquer líquido, e para baixar a infecção. A ideia era extrair o dreno para fora, centímetro a centímetro, começando no segundo dia após a operação, e deixando assim a ferida curar-se de dentro para fora.

Os doentes não conseguem entender os drenos. Para eles, os pedaços oscilantes de borracha pálida eram uma fonte de reclamaçÕes e desconforto, principalmente psicológico. Mr. Sperry estava a dois dias de ter realizado a operação a uma úlcera gástrica, e estava na altura de tirar o seu dreno. Prendi-o com um gancho e dei-lhe um bom puxão. Mas só saiu um bocado, de tal modo que parecia um macarrão chinês. Mr. Sperry olhava fascinado, da sua posição, sentado entre duas almofadas, com os olhos muito abertos, e com as mãos a agarrarem fortemente o lençol. Ao puxar o tubo mais uma vez, perguntei a mim próprio se não teria sido cosido à carne, quando ele gradualmente se soltou e avançou alguns centímetros. Um pouco de fluido sero-sanguíneo saiu com o tubo e foi rapidamente absorvido com gaze.

- Doutor, tinha mesmo que fazer isso?

- Bem, não quer sair daqui com o tubo pendurado, ou quer?

- Não.

Pus um grampo de segurança no dreno, mesmo acima da pele, para evitar que o tubo recuasse para dentro da incisão, e depois, com uma tesoura esterilizada, cortei o excedente do tubo. Era importante fazer tudo na ordem certa, neste tratamento. Uma vez, antes de saber fazê-lo, cortei o tubo antes de prendê-lo. o paciente tinha estado a conter a respiração durante esse tempo e quando inalou, por fim, o dreno desapareceu dentro do abdômen. Apareceram-me logo visÕes de uma nova operação, mas felizmente um residente conseguiu retirá-lo após ter tirado três suturas e ter andado a pescar com um forceps.

- Por que é que não me anestesia quando puxa? - perguntou Mr. Sperry, olhando para mim.

- Mr. Sperry, anestesiá-lo não é uma coisa tão simples como pensa. Além disso, há sempre algum risco na anestesia, mas não existe risco algum em puxar o dreno.

- Sim, mas pelo menos não dava por isso.

- Doeu-lhe realmente, quando o retirei?

- Um pouco, e senti-me esquisito por dentro, como se me estivesse a separar.

- Mas não se está a separar, Mr. Sperry. Está a ir muito bem,

- Mas tem de puxar com tanta força? - continuou.

- Olhe, Mr. Sperry, amanhã pÕe o senhor as luvas, dou-lhe a pinça e pode tirá-lo o senhor. Que tal? - Sabia qual ia ser a resposta.

- Não, não, não quis dizer que queria ser eu a fazê-lo. Na realidade, sabia ao que ele se referia. Depois de uma operação que fiz às pernas, achei que o médico havia sido muito bruto ao tirar os pontos. Mas não queria ter sido eu a tirá-los. É bom para um médico ser paciente de vez em quando; torna-o mais receptivo aos medos irracionais dos pacientes. A solução é contar ao paciente tudo o que se está a fazer, mesmo as coisas mais simples, porque, na maior parte das vezes, o que mais assusta o paciente é aquilo que ele imagina.

- Mr. Sperry, pode andar por aí quando quiser; de facto, algum movimento até lhe irá fazer bem. Não vai abrir-se. Isto do dreno é um procedimento normal. Tira-lhe os líquidos prejudiciais enquanto a incisão sara. o grampo está lá apenas para impedir que o tubo entre para o seu abdómen.

Estava tudo bem com Mr. Sperry, embora lhe tivesse dado que falar para o resto do dia: como o médico cruel havia arrancado o seu dreno e aberto as suturas, fazendo-o sangrar.

Era esta a rotina da enfermaria: verificar os drenos, mudar pensos, responder a perguntas, verificando os gráficos de temperatura. Embora Marsha Potts não fosse minha paciente, parei em frente à sua porta quase instintivamente. Parecia ter pior aspecto, com a luz do dia que expunha a sua cor amarelada, e a pele enrugada do seu rosto tão magro que parecia ter um sorriso perpétuo. Estava muito mal; estávamos a fazer tudo o que podíamos por ela, mas não era o suficiente. Lá fora onde a relva fazia a sua entrada no edifício, os pássaros guinchavam e debicavam pedaços de pão atirados pelos pacientes que passeavam.

Eram já sete horas e a enfermaria fervilhava de vida, subitamente inundada pelos tabuleiros do pequeno-almoço e pelo ruído dos varÕes, das IV, quando os pacientes iam à casa de banho. As enfermeiras andavam apressadas, trazendo arrastadeiras, agulhas, pomadas e medicamentos. Já não me sentia cansado, inserido neste mundo, pelo menos enquanto estivesse de pé. Era uma rotina jovial; parecia dizer "Aqui ninguém morre, está tudo sob controlo". No meio de toda essa eficiência, Roso estava sem reacção por causa da Sparina. Tive de abaná-lo diversas vezes para conseguir alguma reacção. Mas, já meio acordado, concordou que se sentia mais forte, antes de adormecer novamente.

Uma técnica do laboratório havia-me pedido para tirar o sangue de um paciente com veias más. Havia tentado três vezes sem sucesso. Claro que iria tentar, e com boa vontade, porque era para mim um grande conforto ter comigo estes técnicos para tirarem sangue de manhã. Pode parecer irrelevante para os leigos, mas os estudantes de medicina passavam todas as manhãs antes dos turnos a tentar tirar sangue dos pacientes; quando começavam os turnos, não tinham tido tempo de ver todos os seus pacientes e não sabiam, portanto, da sua evolução. Quando começavam as perguntas - "Qual é o hematócrito do paciente, Peters?" - tínhamos que adivinhar, porque não havia sequer hipótese de verificar a ficha. Mas não devia parecer um palpite. Havia que responder sem hesitaçÕes. "Trinta e sete!", como se se apostasse nisso a própria vida. Não era uma questão de honestidade. Era melhor tentar jogar o jogo do que provocar uma catástrofe, dizendo que não se sabia, fosse qual fosse a razão. Ninguém se interessa verdadeiramente se se fez ou não essas trinta e sete contagens, a não ser que não tenham sido feitas. Por isso, era melhor dizer rapidamente trinta e sete, de modo que na maior parte das vezes o professor nem tinha tempo para pensar. Mas se tiver, aí já há problemas, a não ser que se consiga distraí-lo referindo o artigo mais recente sobre a doença. Claro que, se ele verificar a ficha, vai verificar que não é verdade, a não ser que, numa hipótese remota, o hematócrito seja realmente trinta e sete; de outro modo, o melhor é dizer humildemente que se estava a pensar em outro paciente. Isto iria dar a última pausa fatal, enquanto o professor ia folheando a ficha, procurando outra questão.

- E em relação à bilirrubina, Peters?

Agora estava realmente entre a espada e a parede, confrontando uma jogada de tudo ou nada. Se o palpite da bilirrubina também estivesse errado, o professor começaria a pensar que estava a ser desleixado com o paciente, e isso espalhar-se-ia como um vírus no hospital. Mas se a resposta estivesse certa, era-se devolvido ao estado de graça e o professor dirigia-se a outro aluno. A bilirrubina é diferente do hematócrito no sentido em que este último varia bastante, em qualquer pessoa, enquanto que o valor da bilirrubina é praticamente Sempre o mesmo em qualquer pessoa, excepto em problemas de sangue ou fígado. Por isso, joga-se, dizendo: "Estava, em cerca de um, Doutor", A maior parte dos alunos aprendeu a jogar o jogo, na escola médica; se se jogasse bem, ganhava-se mais vezes do que se perdia.

No Havai, tínhamos os técnicos para nos aliviarem desse encargo, e não me importava de os ajudar ocasionalmente. Além disso, era bastante bom a fazê-lo. Tinha de ser mesmo, depois de ter tirado centenas de litros de sangue na escola médica. Começámos por tirar sangue uns aos outros, o que era rápido, embora alguns o fizessem parecer muito difícil. Nem mesmo este exercício havia escapado a alguns momentos trágicos. Umavez, após ter apalpado vigorosamente a veia do braço de um estudante mais adiantado, deixei-a saliente como um cigarro barato. o torniquete tinha estado atado durante cerca de quatro minutos, enquanto eu ganhava coragem, e, quando finalmente introduzi a agulha, o meu colega desaparecera. Fora tudo muito rápido. Fui directamente da concentração na agulha a entrar na pele para ficar a olhar para ela sem braço. o meu "paciente" estava desmaiado no chão. Todos temíamos essas sessÕes de prática, mas era mais fácil que tirarmos sangue a nós próprios.

Nunca hei-de esquecer a primeira vez que tirei sangue a um paciente. Passou-se no terceiro ano, quando começáramos com a Medicina de enfermaria. Por infelicidade, o meu primeiro dia coincidiu com a mudança de turno dos internos e residentes. Para os novos residentes, era uma oportunidade irresistível. Decidiram verificar todos os diagnósticos dos pacientes, e para isso necessitavam de provas - factos claros, provas incontroversas de laboratório. Como resultado, todos nós estudantes tivemos que tirar um quarto de litro de sangue a cada paciente que nos estava destinado. o meu primeiro, coitado, era um alcoólico crónico que sofria de uma cirrose do fígado bastante adiantada. As suas veias à superfície haviam desaparecido há anos, e tive de o picar doze vezes, tacteando com a agulha pelo seu braço, sentindo a ponta de cada agulha entrar através de estruturas interiores com um som de libertação quase audível. Tive finalmente o bom senso de desistir e receber a instrução do interno em como introduzir a agulha na grande veia femoral nas virilhas, um sistema conhecido como junção femoral.

A técnica de laboratório estava neste momento a ter mais ou menos o mesmo problema com um certo Mr. Schmidt, a quem apalpei as veias normais dos braços, enquanto ela me dava a seringa. Era óbvia a razão por que ela não conseguia extrair uma gota sequer; não se conseguia sentir uma única veia decente no braço. Fiz, por isso, uma junção femoral, e foi rápido.

Um pouco mais à frente, encontrava-se Mr. Polski, que era para mim um problema porque falhara em conseguir manter-me em contacto com ele. Sofria de diabetes, circulação periférica pobre e uma infecção profunda no pé direito. Havia feito, uma semana antes, uma simpatectomia lombar, tendo-lhe sido cortados os nervos que eram responsáveis pela contracção dos vasos sanguíneos na parte inferior das pernas. Mas não apresentava melhoras significativas. Insistia em pôr a perna fora da cama, por causa das dores, e isso apenas inibia a já fraca circulação. Experimentei, ao princípio, aproximar-me amavelmente, tentando explicar-lhe cuidadosamente o que aconteceria se deixasse assim a perna. Mesmo assim, quando o ia ver todas as manhãs, lá estava ela, caída para fora da cama. Mudando de táctica, fingi-me zangado, gritando um pouco, mas nada disto alterou a situação, a não ser que ele passou a gostar menos de mim. O pé, agora negro e gangrenoso, já havia sido marcado para a amputação.

Acenei com a cabeça a Mrs. Tang, uma idosa senhora chinesa que tinha um cancro a crescer-lhe na boca. Não podia falar, por isso cumprimentávamo-nos assim. o cancro era de tal modo enorme que lhe havia dissolvido os dentes e parte do maxilar do lado esquerdo, acabando por se tornar finalmente uma massa incontrolável, fungiforme, que lhe aparecia ocasionalmente na garganta. Ela era como muitos dos chineses idosos que imaginavam o hospital apenas como um local para morrer, e só cá vinham quando estavam mesmo no fim. Não podíamos fazer muito por ela, mas tentámos a terapia de raios-X. o cancro crescia de dia para dia e Mrs. Tang parecia cada vez menos real, talvez pelo facto de não poder falar, ou talvez porque estivesse resignada.

Mas havia mais: uma biópsia a um nódulo de linfa, uma biópsia da mama e duas reparaçÕes de hérnias. Cumprimentei-os a todos, indo de cama em cama, chamando-os pelos nomes; agora já os conhecia a todos. Conhecia mesmo as famílias de muitos dos pacientes que haviam estado connosco por algum tempo. Chegou outro interno, e uma série de residentes, incluindo o residente-chefe, e começaram as rondas da manhã. Era uma coisa rápida; devíamos provavelmente parecer um bando de mainás, movendo-nos pouco à-vontade e rapidamente, tropeçando quase sempre uns nos outros com a pressa, enquanto percorríamos cama a cama. Esta pressa era necessária uma vez que só tínhamos meia hora antes da primeira operação marcada. Não houve discussão de artigos, não fizemos muito mais que contar cabeças para termos a certeza de que ainda estavam todos lá. Gastrectomia, cinco dias de pós-operatório, indo devagar. Hérnia, três dias de pós-operatório, descarga provável. Veias varicosas, três dias de pós-operatório, descarga provável também. úlcera gástrica, tratamento completo raios-X, cirurgia marcada. Tínhamos a radiografia da úlcera? Sim. óptimo.

Na outra enfermaria, deixámo-nos ficar no meio, rodando em volta sobre os calcanhares. Lesão maciça, medíastino, aortograma pendente. Fiz uma descrição em staccato tipo cápsula de cada um dos meus pacientes. o outro interno fez o mesmo. Havia quatro enfermarias como aquela, e acabámos o último caso na quarta, dezassete minutos exactos depois de termos começado.

- Peters, faça outra venostomia a Mrs. Potts enquanto nos dirigimos aos C.I. e à zona de pediatria.

o pequeno grupo desapareceu na esquina do corredor e eu dirigi-me ao quarto de Mrs. Potts, irritado e confuso, protestando em silêncio. Ela nem sequer era minha doente. Sabia que havia sido escolhido porque não tinha nenhuma cirurgia marcada antes das oito, embora seja normalmente às sete e meia, mas mesmo assim não me queria envolver com ela outra vez, depois de ter feito figura de parvo com a pressão venosa na noite anterior. E além disso, uma venostomia pode ser complicada. Não tinha feito muitas. Mas era principalmente devido ao ambiente. Mesmo assim, Marsha Potts necessitava de uma venostomia porque precisava de líquido intravenoso e alimento; sem as veias superficiais que eram necessárias para a IV, teríamos de cortar uma veia mais profunda.

Ao entrar no quarto, a alegria da manhã esmoreceu. Mesmo o som dos pássaros se tornou para mim inaudível, embora estivessem lá, evidentemente. Havia no ar um odor quase insuportável, tão cáustico e repugnante que fazia o ar parecer pesado. Era o cheiro quente de tecidos apodrecidos misturado com o cheiro doce e meloso do talco perfumado utilizado para se contrapor ao mau cheiro. o talco ainda me fez sentir pior. Tentando não olhar para o rosto da pobre mulher, pus três máscaras cirúrgicas para fugir ao cheiro, mas estava com dificuldades em respirar assim e o meu diafragma lutava para respirar o ar espesso. Não queria tocar nas coisas. A morte parecia estar em todas elas, como se fosse contagiosa.

Levantei o lençol na parte inferior e destapei-lhe o pé esquerdo. Tinha úlceras abertas na parte de dentro da perna e na parte de trás do tornozelo. Na realidade, tinha úlceras por todo o corpo, onde quer que lhe tocasse. Após ter verificado com a lanterna o aspecto médio do tornozelo, calcei as luvas de borracha e abri o estojo esterilizado da venostomia.

A lâmina deslizou pela pele sem oferecer resistência. Tinha um pequeno edema no pé, de modo que um líquido claro escorreu da ferida, em vez de sangue. Tive sorte em encontrar logo a veia, e ainda mais sorte em não a ter cortado acidentalmente. Depois de ter feito um pequeno furo na veia, introduzi facilmente o catéter, à primeira, enquanto o suor escorria da minha testa, com o calor da luz forte. Atei o catéter com seda no lugar e fechei a pequena ferida, enquanto observava o líquido a correr livremente. Empurrei o estojo com o pé, tirei as luvas e dirigi-me rapidamente para a luz do sol e os pássaros.

Ao lavar as mãos, senti-me enojado comigo próprio, e não sabia exactamente porquê. Ela era um ser humano; eu devia ajudá-la. Mas a situação e a sua condição revoltavam-me de tal modo que tinha dificuldades em aceitar a responsabilidade. Onde estava a minha simpatia? Para onde me dirigia eu?

Tinha a minha primeira lavagem às oito horas, uma colecistectomia, ou remoção da vesícula biliar, com um cirurgião particular. A minha paciente, Mrs. Takura, estava marcada para outra sala de operaçÕes, a seguir a uma remoção de gânglios; a sua operação deveria iniciar-se às nove horas, a não ser que houvesse complicaçÕes com o caso dos gânglios. Estava obviamente atrasado para Mrs. Takura, mas isso era típico. o interno é uma espécie de peão no jogo médico; é o primeiro na linha de defesa, sacrificado sem remorsos, dispensável no fim, mas necessário, ao que parecia, no meio.

Entrei no vestiário dos cirurgiÕes e comecei a vestir a bata verde pálida. Estava tão cheio que nos incomodávamos uns aos outros, na brincadeira. De facto, o sentimento de igualdade e reconhecimento de todos como pessoas fazia que a lavagem fosse um prazer. Na escola médica, os estudantes e o pessoal da casa vestiam-se em áreas diferentes, separadas por portas e uma escadaria separada do sanctum sanetorum das áreas de vestiários dos médicos. Era como se a imagem de um cirurgião fosse abalada se o vissem no seu estado natural. Um dos médicos assistentes da escola era de tal modo temido que os estudantes tremiam ao apresentar os seus casos. Um amigo meu - um médico excelente, embora um pouco inclinado ao pavor do palco - teve certa vez um lapso total de memória perto de um doente quando começara a relatar os factos ao médico assistente. Eu sabia que ele estava preparado, mas não conseguia falar.

- Esta mulher apresenta um... han... um... - Corou, e a sua pulsação acelerou-se, martelando-lhe no pescoço. o médico poderia Ter aliviado esta situação sugerindo que voltaríamos ao caso mais tarde, ou mesmo dando uma palavra-chave da lista para desenrolar a cadeia na memória do aluno. De forma alguma. Enfureceu-se, começando a gritar que era realmente espantoso como uma pessoa tão estúpida havia conseguido entrar na escola médica, e mandando-o desaparecer da vista dele até conhecer suficientemente bem os casos dos pacientes para os poder apresentar. Nem todos os médicos eram assim, mas pelo menos uma parte significativa era. Naturalmente, depois de um episódio destes, a relação entre o paciente e o aluno não era muito boa quando, na manhã seguinte, chegava a hora de tirar sangue. Com o passar do tempo, muitos detalhes do que se passou na escola médica vão-se desvanecendo e integrando na generalidade. o mesmo não acontece, penso eu, com as cenas dos discursos retóricos e com a exaltação de alguns cirurgiÕes insuportáveis. Alguns tinham reacçÕes tão violentas que quase pareciam odiar os estudantes de Medicina; e eram contudo os nossos mentores, os nossos professores e modelos a seguir.

Depois da bata verde, calcei as botas de tela e arrastei-me ao longo do corredor da cirurgia. Algumas das portas da SO estavam fechadas, e ao passar ao longo das suas janelas pude ver os grupos tipo Ku Klux Klan agrupados no centro da sala. Havia outras portas abertas, algumas operaçÕes a decorrer, e outras vazias à espera. Moviam-se aí dezenas de enfermeiras, muito organizadas e ocupadas, muitas delas bastante bonitas - um grande melhoramento para quem usava aqueles fatos sem formas, e o cabelo apanhado debaixo da touca. Havia contudo outras que poderiam muito bem jogar à defesa pelos New York Giants, mesmo sem equipamento e submetendo o oponente só pelo susto. Todas deram os bons dias; era um sítio amigável.

Quando voltei para os lavabos, para me lavar para a operação à bexiga, já lá estavam o cirurgião e o residente. Este último era oriental, pequeno, silencioso e respeitável. Sorri para mim mesmo, ao lembrar-me da descrição do meu amigo Carno, que o descrevera como sendo tão pequeno que tinha de correr debaixo do chuveiro para se conseguir molhar. Ao sorrir, fiquei com comichão debaixo da máscara. Era incrível como me acontecia sempre isso. Era sempre depois de me lavar que me surgia a comichão, geralmente no nariz ou na testa. Claro que não me cocei durante a operação e até me ter lavado de novo. o que me dava algum alívio era ir fazendo trejeitos na face e franzir o sobrolho, mas ela lá continuava, flutuando no meu grau de concentração no que estava a fazer. Era, para mim, a parte mais aborrecida da operação, para além dos retractores.

- o seu nome é Peters, não é? De onde é? Em que escola andou? Ah, é um dos rapazes do leste?

Ali estava, preconceitos do outro lado. Parecia-me agora uma loucura o facto de uma das minhas motivaçÕes mais fortes para ir para a escola médica ter sido a ideia de me tornar um membro de uma fraternidade educada, um grupo cuja dedicação e treino deixava para trás as trivialidades e a mesquinharia da sociedade de todos os dias. Nem preciso de referir que já não creio mais nessa ilusão; já me tinha visto livre dela na escola médica. No entanto, a competição para a entrada nas escolas médicas era tão intensa que, se se conseguisse entrar para uma das grandes escolas, isso significava invariavelmente que se tinha sido brilhante na universidade, geralmente sempre com vinte valores. Daí que os que tinham sido escolhidos para ficar na quinta ou sexta escola médica sentiam-se geralmente vítimas do sistema, cuja performance havia sido avaliada pela realidade difícil e imutável do transcrito. Achavam que os que estavam no topo das torres de marfim os olhavam como cidadãos de segunda classe. Era um disparate. Vinha toda a gente daquela enorme máquina médica e todos pareciam iguais e dotados dos mesmos pensamentos e com a mesma licença para exercer medicina. Era a parecença entre eles que me assustava, não as suas diferenças, que eram superficiais. Comecei mais tarde a suspeitar de que a máquina estava a produzir um produto desequilibrado.

Fazer a lavagem era uma rotina invariável e monótona de dez minutos. Primeiro as unhas, depois uma lavagem geral e por fim a escova. Cada pedaço abaixo dos cotovelos, e depois cada dedo individualmente. Recomeçar. Várias vezes.

Quando acabei, escorreguei para o chão, primeiro com o traseiro; era o símbolo perfeito da posição do interno, com as mãos erguidas em sinal de rendição e submissão. Demasiado teatral. Na realidade, sentia-me agora resignado. Afinal, havia sido minha a decisão de entrar para Medicina; nenhum Romeu havia querido tanto assim a sua Julieta. Era uma pena ela se ter tornado numa cabra. Estes devaneios pseudofilosóficos não levavam a parte alguma, não modificavam coisa alguma, mas ajudavam a passar aquelas horas intermináveis na SO.

Toalha, máscara, depois as luvas, dadas por uma enfermeira bastante negligente cujos olhos não conseguia ver, e estava completa rotina. Enfaixámos o paciente enquanto o cirurgião, que era meio avaiano, e o anestesista, oriental, mantinham uma conversa em inglês simplificado.

- Eu vou a Vegas próxima semana. o senhor vem ir? - dizia o anestesista, olhando sem ver o outro monitor.

- Quê, o senhor pensa que jogar, eu?

- o Sr. Cirurgião, jogar.

- Vai-te lixar, branco. Pelo menos não sou viajante de voos nocturnos.

- Ah! Sem gás, não há trabalho para ti, kanaka.

Eu estava do lado direito do paciente, entre o cirurgião e o anestesista, de modo que aquele encanto sem preço e aquela linguística exótica tinham de passar por mim. o residente permanecia do outro lado, inescrutável.

Quando tudo estava já pronto, o cirurgião pegou no bisturi e fez uma incisão na pele, abaixo da última costela direita. A cerca de metade da incisão, demo-nos todos conta de que o paciente não estava suficientemente anestesiado. Estava, de facto, a mover-se e torcer-se como se tivesse uma terrível comichão generalizada. Ouviram-se pequenas gargalhadas nervosas, dadas pelo cirurgião e pelo anestesista, as do primeiro um pouco cínicas, porque queria na realidade demonstrar ao anestesista que não sabia que raio estava a fazer. Não sei qual a razão do riso do anestesista, a não ser que fosse para abrir uma brecha no record de sarcasmo do cirurgião. Os cirurgiÕes não são famosos pelo seu tacto nem pelo seu amor aos anestesistas.

- Ei, mano, que é que se passa contigo? Estás a guardar a anestesia para outro doente? Dá-lha, homem, dá-lha.

o anestesista não respondeu, e o cirurgião prosseguiu.

- Parece que vamos ter que tratar deste caso sem a ajuda da anestesia.

Eu era um árbitro inevitável neste pugilismo verbal, literalmente esmagado contra o monitor da anestesia pelo cirurgião. Só quando abriram finalmente a barriga é que me entregaram a pega demasiado conhecida do retractor, a alegria e raison d'être de um interno. Há milhares de tipos de retractores diferentes, mas fazem todos a mesma coisa: conter as paredes da ferida e os outros órgãos de modo que o cirurgião possa trabalhar.

o cirurgião posicionou um dos retractores à sua maneira, deu-mo, e disse-me para levantá-lo mais do que puxá-lo. Bem, mantê-lo-ia assim durante dois ou três minutos e depois baixaria. E onde me encontrava, a minha acção sobre a pega do retractor era negativa. o meu limite era de dois ou três minutos.

- Levante isso, raios. Espere, eu mostro-lhe. o cirurgião retirou o retractor das minhas mãos. - Assim. - Entre outros comentários sobre a minha inépcia, levantou o retractor durante dois segundos antes de mo entregar, e eu levantei-o durante dois ou três minutos e depois recuei. Era inevitável. Se houver alguém que consiga levantar o retractor durante uma colecistectomia de cinco horas, sem baixar o braço, deve ser com certeza uma pessoa extraordinária.

Colecistectomia é o nome médico dado à extracção simples da vesícula biliar. Esta encontra-se situada muito acima dentro do fígado, e o interno tem como tarefa afastar o fígado e a parte superior da carne da incisão, para que o cirurgião, com a ajuda do residente, a possa extrair. A vesícula é um órgão precário, e portanto a sua remoção é uma das mais frequentes intervençÕes cirúrgicas. De todas as ajudas de memória que aprendera na escola médica, a que melhor me lembrava era o tipo de paciente sujeito a esta intervenção: as quatro indicaçÕes - gorda, mulher, 40 anos e presunçosa.

Durante a operação, tinha os meus braços mais ou menos por baixo do braço esquerdo do cirurgião. Havia-se virado de costas para mim, o que me impedia de ver a incisão, a não ser por cima do seu ombro. Quando o anestesista ligou o seu rádio portátil e começou a folhear um jornal, e o cirurgião começou a cantarolar, fora de tom, o ambiente tornou-se cada vez menos parecido com o ambiente tenso da escola médica; excepto quanto às explosÕes de mau humor do cirurgião. Eram todos iguais.

- O.K., Peters, dê uma olhada. - Inclinei-me para observar a incisão, que era agora uma fenda vermelha e húmida com adesivos a segurar os órgãos abdominais. Ali estava a vesícula, o canal cístico, o anal comum, o...

- O.K., já chega. Não queremos mimá-lo. - o cirurgião afastou-se, empurrando-me, enquanto cacarejava com o anestesista. A sala de operaçÕes era um mundo feudal, com uma hierarquia absoluta e um sistema de valores, no qual o cirurgião é um rei todo poderoso e divino, o anestesista o príncipe parasita e o interno o servo, tendo que ser supostamente agradecido por alguma pequena forma de reconhecimento; uma olhadela no final, ou talvez a oportunidade de dar um nó ou dois. Aquela espreitadela na incisão havia sido a minha recompensa por ter estado ali a segurar os retractores e a ver as costas do cirurgião ou os ponteiros do relógio a andarem vagarosamente.

A atmosfera estava suficientemente agradável, até o cirurgião ter pedido a colangiografia operatória, um estudo de raios-X, para se certificar de que o canal comum estava completamente limpo de pedras. Isto podia ser verificado injectando uma tinta opaca nos canais e fazendo depois uma radiografia. As pedras que ainda lá estivessem iriam sobressair.

Mas quando nenhum técnico radiologista apareceu magicamente com o estalar dos seus dedos - estavam todos ocupados com outros casos - praguejou e agitou o bisturi, ameaçando represálias. As enfermeiras estavam imunes a estas demonstraçÕes, assim como o anestesista, cujo rádio continuava a emitir música e notícias. Esta cena familiar acontecia sempre que era necessária uma radiografia.

o técnico veio finalmente e tirou a radiografia, voltando minutos depois com uma mancha indistinta, que o cirurgião considerou como o maior atestado de incapacidade desde Roentgen. Queria que tirasse outra? Não! Havia com certeza muito para aprender sobre o cirurgião. Reflectindo, tinha a certeza de que queria a radiografia porque havia lido alguma coisa sobre isso nalgum periódico, e achava que ficava bem no relatório da operação. o resultado prático da radiografia era neutro, pelo menos da forma como era utilizado.

No dia seguinte, o radiologista ver-se-ia aflito com ela, tentando perceber qual a parte de cima e porque razão o hemostato aparecia no meio do sistema de canais. o seu relatório iria ser feito apenas com palpites. o final infeliz desta história viria mais tarde, quando o cirurgião dissesse algo sarcástico ao radiologista, que sorriria cinicamente e responderia que se os cirurgiÕes se organizassem melhor, o serviço de radiologia poderia ser mais eficaz. Na realidade, os cirurgiÕes estão sempre em pé de guerra com toda a gente, com a radiologia, patologia, anestesia, o horário de operaçÕes, os residentes, as enfermeiras, os internos, sentindo-se completamente rodeados de pessoal ingrato e incapaz. Numa só palavra, muitos deles eram bastante paranóicos.

Depois das desculpas apresentadas, arranjei um pretexto para sair, dando uma explicação breve sobre Mrs. Takura, e fui dispensado do resto da colecistectomia. Quando me afastei em direcção ao corredor, ainda o cirurgião se estava a queixar da radiografia e o anestesista a ler o seu jornal.

A intervenção de Mrs. Takura havia já começado quando iniciei a minha segunda lavagem. Podia ver dali o cirurgião residente chefe e o residente do primeiro ano, Carno, ocupados a introduzir ganchos subcutâneos. Carno havia vindo para o Havai na mesma altura em que eu viera, e pela mesma razão; para se afastar da pressão e divertir-se um bocado. Tínhamo-nos divertido bastante nos primeiros dias, e chegámos mesmo a pensar em partilhar alojamentos. Mas agora tínhamos horários diferentes que tornavam tudo mais difícil.

A amizade entre o pessoal médico é difícil e ilusória, muito mais que na faculdade. Há tão pouco tempo para isso. As pessoas têm tendência para se introverterem cada vez mais, tornando-se quase autistas, mesmo quando estão livres. Nos últimos anos da escola médica, tínhamos horários tão diversificados que nem se podia esperar que as pessoas aparecessem para jantar, ou para uma festa. Muitas vezes, nem comigo próprio podia contar. Acontecia-me fazer planos, e depois sentir-me tão cansado que não tinha forças para os realizar.

Havia também uma competição inevitável. Havia começado no nosso primeiro dia, como as sementes de um fungo, evoluindo a partir de uma premissa de que a Medicina estava no zénite no centro universitário orientado para as pesquisas. Era aí que iam parar todos os "bons". Para se lá chegar, era necessário primeiro ter uma residência no centro da universidade, e para isso era formalidade ter-se estado interno numa série de hospitais principescos. Haviam-nos dito logo de início que os quatro ou cinco melhores alunos seriam convidados a ficar como internos, e isso era o bilhete dourado para se avançar mais um passo gigantesco. A pressão! Éramos cerca de cento e trinta e tínhamos sido todos bons alunos na faculdade, e andávamos todos atarefados numa roda-viva, absorvendo os conhecimentos o mais rapidamente possível, e aceitando os valores do sistema que nos dizia para nos mantermos no topo. Como alternativa, e era demasiado terrível para pensar sequer, era a questão de sermos EXCLUíDOS e acabarmos como médicos de clínica geral numa pequena cidade. Era algo que realmente soava mal, era como sair de uma suite de executivo para a sala do correio.

Não fazia a mínima diferença se nos tínhamos ou não saído bem; todos no grupo o podiam fazer. Afinal de contas, éramos cavalos treinados para correr, e corríamos como o raio. A verdadeira intenção era a de sermos sempre melhores que o próximo. Isso não dava azo a que houvesse um ambiente propício ao florescimento de amizades, especialmente quando não havia sequer tempo, e o pouco que tínhamos Passávamo-lo invariavelmente com uma rapariga.

o sistema conseguiu também afectar isso, especialmente durante os últimos anos. A princípio, o estatuto de estudante de Medicina dava-nos um certo prestígio nas festas de sociedade - toda a gente pensava que iríamos um dia ganhar bastante dinheiro. Mas fomos gradualmente sendo pouco considerados como convidados, uma vez que o nosso esquema de horários era tão lixado que nunca se sabia se Poderíamos ou não comparecer. Todas aquelas raparigas de Smith e Wellesley a que estávamos habituados se afastaram para terrenos mais férteis. Por isso, voltámo-nos para as que estavam connosco, que tinham os mesmos horários malucos que nós. E elas voltaram-se para nós. o hospital estava cheio de raparigas - técnicas, instrutoras, enfermeiras, estudantes de enfermagem - e muitas delas eram simpáticas, e, na sua maior parte, convenientemente disponíveis.

Enquanto o treino nos moldava à forma, retirávamo-nos para o nosso interior e para o mundo artificial da escola médica e do hospital, Era uma mudança imperceptível, quase inconsciente, mas pesada. Já que estávamos na escada rolante que levava à torre de marfim, ficávamos lá intelectualmente. Mesmo tendo vindo para o Havai, não me havia afastado completamente. Nunca o faria. Ainda tinha uma parte de mim no leste; esperava que sim, pelo menos. Não era um rebelde ou revolucionário, estava apenas um pouco preocupado Com a direcção que estava a tomar.

Dirigia-me neste momento para a S. o. de Mrs. Takura, entrando com os braços levantados, pronto a ser vestido. Estavam nesse momento a abrir o abdómen e o residente chefe fez-me sinal para ir para o seu lado esquerdo. Depois de me ter espremido entre ele e o monitor da anestesía, entregou-me os lendários retractores e começámos a cirurgia, que durou desta vez oito horas.

Mrs. Takura estava irreconhecível, sangrando por todo o lado. Não parecia ser a mesma pessoa, sempre agradável e respeitável. Havia feito há alguns anos uma colícistectomia, e era difícil operar no tecido fibroso e aderente. Duas horas depois, ainda durante a operação, fizemos uma pausa para fechar uma punctura nos intestinos e uma hemorragia forte que espirrava para o peito de Carno. Com a queda de pressão do sangue, substituíram-se frascos vazios por cheios. Era um processo longo e duro, mas o residente chefe parecia estar a fazer um bom trabalho. A leviandade que poderia ter existido antes desapareceu ao sermos invadidos pelo cansaço.

Embora não o pudessem imaginar pela televisão, o humor é uma peça importante na sala de operaçÕes. Para ser mais exacto, é muitas vezes pavoroso, e muitas vezes à custa de um paciente inofensivo e inocente. A maior parte dos cirurgiÕes pode entreter uma equipa de operação com histórias e piadas bizarras e coloridas do seu passado. Embora tivesse uma experiência limitada, e, portanto, um repertório limitado, estava geralmente calado nessas ocasiÕes, mas mesmo na altura em que se ia voltar a Mrs. Takura, quando todos ainda se sentiam bem, aventurei uma história que era uma das minhas favoritas na escola médica.

Constava que uma enorme senhora muito obesa aparecera no hospital na altura em que só estavam nas S. o. dois internos e um residente. Queixava-se de uma dor abdominal agonizante. Metidos até aos cotovelos nos tecidos adiposos, examinaram-na os três, conferiram, reexaminaram-na, sem conseguir chegar a um acordo em relação ao diagnóstico. Venceram por fim aqueles que achavam que era uma apendicite aguda, e lá foi ela para a S. o., onde ocupou literalmente a mesa. Tendo ouvido falar do assunto, juntaram-se-lhes mais uns seis ou sete, na altura em que o residente começou a cortar através das camadas de gordura até à cavidade peritoneal. Depois de ter reposto por várias vezes os retractores, à medida que ele entrava cada vez mais, o residente parou subitamente e ajustou a lâmpada. Pediu em seguida um par de tenases, enquanto todos observavam na expectativa, e retirou um pedaço de pano branco. Um silêncio atónito caiu repentinamente, até compreendermos que o residente havia cortado de tal modo que cortara também a mesa operatória. o abdómen da paciente era de tal modo enorme que caíra para o lado esquerdo, e o residente não havia conseguido chegar à cavidade abdominal.

Mas a graça dessa história há muito que se desvanecera. Agora trabalhávamos no interior de Mrs. Takura, e eu tinha os músculos dos braços adormecidos por ter estado a manter a tensão nos retractores na posição desconfortável em que me encontrava havia cerca de uma hora. o meu estômago rugiu de protesto, quando a hora do almoço chegou e desapareceu, como contrapartida à comichão que sentia no nariz. Tinha a minha bexiga tão cheia que nem me atrevia a encostar-me à mesa de operaçÕes. o tempo continuava a rastejar. Raras vezes tinha oportunidade de olhar para a incisão, embora soubesse o que estava a acontecer, uma vez que ouvia os comentários do cirurgião. Os vasos foram cosidos fastidiosamente - era uma anastamose lado a lado - e a sutura final foi colocada e atada com dedos fatigados. Quando finalmente deixou de ser necessário utilizar os retractores, não conseguia abrir o punho; os dedos mantiveram-se fechados até os ter dobrado um a um, e passado por água morna.

Ainda não tínhamos terminado, apesar de serem quase quatro horas. Tínhamos ainda que a fechar. Sentia-me cansado, com fome, e desconfortável em todos os sentidos, assim como os outros. Sutura atrás de sutura, agulha, seda, agulha, trabalhando lentamente ao longo da incisão, começando do princípio e dando pontos rápidos, enquanto a porção separada se juntava, lenta mas progressivamente, até à última sutura facial. Já estava. Agora a pele. Já passava das cinco quando tirámos as luvas - começava agora a minha gloriosa noite de folga.

Urinei, apontei todas as ordens pós-operatórias, mudei de roupa, e jantei, por essa ordem. Ao atravessar a sala de jantar, sentia-me como se tivesse sido atropelado por uma manada de elefantes selvagens com cio. Estava exausto, e, o que era pior, profundamente frustrado. Tinha estado a ajudar à operação durante nove horas seguidas. Oito dessas horas haviam sido as mais importantes na vida de Mrs. Takura; e não me sentia contudo realizado. Eu tinha apenas lá estado, e era provavelmente a única pessoa verdadeiramente dispensável. Precisavam de alguém com os retractores, claro, mas até um esquizofrénico catatónico poderia segurá-los. Os internos anseiam por trabalhar muito, até mesmo com sacrifícios - poder ser, acima de tudo, úteis, e utilizarem o seu talento - para aprenderem. Não sentia qualquer dessas satisfaçÕes, apenas uma amargura vazia e exaustão.

Depois do jantar, tinha ainda o trabalho habitual na enfermaria, embora não estivesse de serviço. Por isso, dei superficialmente uma olhada por uma série de ligaduras, drenos e suturas. Reescrevi novas ordens de IV, observei relatórios do laboratório e fiz uma ficha clínica como preparação pré-operatória de um paciente novo, que tinha uma hérnia. Os soluços de Roso recomeçaram assim que despertou da sua hibernação de Sparina. Consegui evitar tudo o que não queria, apoiando-me no meu cansaço, racionalizando. Evitei mesmo olhar para a porta do quarto de Marsha Potts.

Não conseguiria dormir, embora tivesse estado a pé durante vinte e quatro horas. Além disso, queria ir para qualquer sítio longe do hospital, conversar com alguém. Sentia-me demasiado revoltado e confuso para estar sozinho, precisava de alguém. Não consegui encontrar Carno em lado algum; estava provavelmente com a sua namorada japonesa. Mas Jan estava, graças a Deus. Quis ir dar uma volta, talvez um mergulho. Sentia vontade de fazer tudo o que me apetecia.

Dirigimo-nos para leste, em direcção à prata violeta do entardecer. A estrada levava-nos a Pali, em direcção à parte ventosa da ilha, e subia gradualmente, mostrando-nos as cores do sol que se punha no extenso panorama do oceano. Mantivemo-nos em silêncio, sentindo a poesia do lugar, até termos atravessado o túnel e voltado à sombra novamente, em Kailua. Encontrámos aí uma praia onde pudemos ficar a sós. Sentia a mente libertar-se dos pensamentos hostis, e a prisão do dia; o relógio deprimente e os seus ponteiros parecia estar longínquo, enquanto mergulhava na água morna, deixando as ondas cansadas embalarem-me na ondulação. Mais tarde, deitámo-nos nas toalhas e observámos as estrelas.

Como queria ouvir Jan a falar, fiz-lhe perguntas sobre si própria, sobre a família, os seus gostos e aversÕes, e os seus livros favoritos. De repente, apetecia-me saber tudo sobre ela, e ouvi-la contar com a sua voz suave e baixa. Ela cansou-se disso, ao fim de algum tempo, e perguntou-me que tal havia sido o meu dia.

- Passei-o todo na cirurgia.

- Passaste?

- Nove horas.

- Uau, isso é óptimo. E que fizeste?

- Nada.

- Nada?

- Bem, praticamente nada. Quero dizer, segurava os retractores, para impedir a extremidade da incisão e do fígado de saírem do lugar, para que os verdadeiros médicos pudessem operar.

- Estás a ser parvo - disse ela. - Isso é importante, e sabes disso.

- Sim, é importante. o problema é que qualquer pessoa o poderia ter feito.

- Não acredito.

- Sim, sei que não acreditas. Nem os outros. Ninguém acha que o lugar de um interno possa ser preenchido por alguém a não ser ele. Deixa-me no entanto dizer-te uma coisa; na sala de operaçÕes, ninguém a não ser outra enfermeira, poderia ter feito o trabalho dela, assim como em relação ao anestesista e ao cirurgião. Mas o meu? Qualquer pessoa poderia! Um tipo qualquer da rua. Qualquer pessoa, mesmo.

- Mas tens que aprender.

- Aí é que está o problema. o interno está ali parado, apenas a segurar os retractores. Chamam-lhe aprendizagem... é essa a racionalização... mas é um logro. Num só dia, aprende-se o suficiente sobre a retracção. Não se precisa de um ano. Há tanto para aprender, mas a este passo lento? Sentimo-nos tão explorados! Deviam contratar pessoal para segurar nos retractores e pôr o interno a dar os nós e a observar o trabalho do cirurgião.

- Já consegues dar nós como deve ser? - perguntou. Aquilo fez-me parar. Lembrava-me de lhe ter contado que não era muito bom a dar nós, mas mesmo assim o comentário pareceu-me muito despropositado. Indicava que não estava a conseguir aproximar-me dela, e que não havia mais sentido em tentar. Senti-me melhor, apesar disso, quase como se os meus próprios pensamentos se tivessem organizado. Disse-lhe que não, não conseguia ainda dar nós como deve ser, mas que aprenderia provavelmente, se me dessem essa tarefa.

Jan estava mais uma vez a aproximar-se e a excitar-me. Acabámos a correr na água morna. Estava tão bela, tão cheia de vida, que me apetecia gritar de tanta felicidade. Beijámo-nos e abraçámo-nos, enrolados no cobertor. Estava louco por ela, e sabia que íamos fazer amor, e que ela o queria tanto como eu. Mas sentiu-se na obrigação de falar mais um pouco primeiro, e falar-me de assuntos pessoais sobre ela própria. Por exemplo, que havia apenas feito amor com um rapaz, mas que ele a tinha enganado e que não tinha nunca gostado dela. Continuou durante cerca de cinco minutos, acalmando-me, e decidi finalmente que fazer amor não seria uma boa ideia, afinal. Ela não conseguiu acreditar no que ouvia, e quis saber porquê. A verdadeira razão era a minha frustração interior, e isso não a iria satisfazer. Por isso, disse-lhe que adorava o brilho do seu cabelo, e a sua maneira de ser, mas não sabia ainda se a amava.

Isso deixou-a tão satisfeita que quase me fez mudar de ideias novamente. Ao dirigir-me mais tarde para o hospital, consegui que ela cantasse Para onde foram todas as flores? várias vezes, e senti-me descansado.

- Pensas que não fizeste nada hoje, mas fizeste - disse Jan subitamente, voltando-se para mim.

- o quê? - perguntei.

- Bem, salvaste a vida a Mrs. Takura. Quero dizer, ajudaste, mesmo que penses que deverias ter feito qualquer outra coisa.

Tive de admitir que tinha razão, e que não me lembrara disso, Era capaz de ficar a segurar num retractor durante semanas, se fosse preciso, por Mrs. Takura.

Já de volta ao hospital, voltei a envergar os trajes brancos, e apressei-me até à U. C. I. para ver como ela estava. A cama estava vazia. Olhei para a enfermeira, intrigado, e afastando a ideia.

- Morreu. Morreu há cerca de uma hora.

- o quê? Mrs. Takura?

- Morreu. Morreu há cerca de uma hora. - Ao voltar para o quarto, senti-me desfeito, chorei, não pensando em outra coisa que não fosse aquele dia horrível, que nem mesmo o amor poderia redimir. Deitei-me e adormeci perturbado.

 

Centésimo septogésimo segundo Dia

AS URGêNCIAS

Tinha os ouvidos treinados para aquele toque. Podia ouvir a qualquer distância o inconfundível som agudo, com as suas ondulaçÕes a crescerem e a repetirem-se, tornando-se progressivamente mais altas com a aproximação. o relógio marcava 9 e 15 da manhã. Encontrava-me sentado por detrás do contador da sala de emergências, à espera.

o som da sirene tornava-se inaudível para algumas pessoas, mais próximas da ambulância, devido aos sons de fundo. Outros, conscientes da sua saúde, ou ignorando-a, sentir-se-iam satisfeitos com o diminuir do som, misturando-se no subconsciente com os sons dos carros, rádios e vozes. Era para eles algo distante. Pertencia a outros.

Para mim, tornava-se cada vez mais agudo, porque era o interno de assistência às Urgências, o banco, para aqueles que o conheciam e o adoravam. o meu dever nas Urgências podia ser classificado como sendo o de hospedeiro oficial do hospital, que dá as boas-vindas a todos os que apareciam. E que realmente apareciam - novos e velhos, com insônias, deprimidos, nervosos, e mesmo ocasionalmente os feridos e os doentes. Trabalhava aí, muitas vezes, fervorosamente; comia muitas vezes, e sentava-me ocasionalmente. Mas quase nunca dormia, à espera de ouvir a temida ambulância.

A sirene significava problemas, e eu não estava preparado para esses problemas, e creio que nunca virei a estar. Embora tivesse sido destacado para as Urgências havia mais de um mês, e já fosse interno havia cerca de seis meses, o meu estado emocional normal era o de medo. Medo que me fosse apresentado um caso que não conseguisse resolver, e piorasse tudo. Tinha sido colocado neste ambiente, ironicamente, que exigia de mim escolhas médicas radicalmente diferentes, mesmo na altura em que tinha começado a desenvolver um certo grau de confiança nas enfermarias e na sala de operaçÕes. Estava completamente sozinho, sem contar com um grupo de enfermeiras altamente capacitadas, e era o responsável pelo que acontecia. Não era mau durante o dia, quando lá se encontravam outros médicos - o pessoal nunca estava longe -, mas à noite podiam passar cinco ou mesmo dez minutos antes de alguém aparecer. As coisas podiam por isso ser cruciais. Por vezes era obrigado a mostrar o jogo.

Até mesmo o horário no banco era diferente. Estava de serviço durante vinte e quatro horas, assim como de folga. Não parece muito cansativo, até se trabalhar assim durante uma semana consecutiva. Se se entra ao serviço às oito horas de domingo, às oito da manhã de quarta feira já se trabalhou durante quarenta e oito horas seguidas, e faltam mais quarenta e oito. Como resultado, ao fim de duas semanas, o sistema encontra-se completamente alterado; temos dores de cabeça, deixamos cair frascos e surge um ligeiro tremor. o corpo humano está preparado para trabalhar durante um certo limite de tempo, e depois necessita de descanso, não para trabalhar durante vinte e quatro horas seguidas. A maior parte dos órgãos necessita de descanso, especialmente as glândulas, porque as suas funçÕes são alteradas cada vinte e quatro horas, quer o corpo durma quer não. Por isso, ao fim de dezasseis horas de trabalho, as glândulas adormecem, de certo modo, mas é ainda necessário que as decisÕes tenham de ser tomadas, com as mesmas consequências. A vida não deixa de ser modorrenta às quatro da manhã, ou ao meio-dia. De facto, há alguns estudos que sugerem que é mais débil nessa altura. o paciente quase não existe, tudo se torna difícil, o mais pequeno estorvo pode tornar-se numa grande irritação...

A sirene aproximava-se cada vez mais. Escutei esperançado no final do som e no efeito Dopler que se experimentava geralmente quando a ambulância se afastava para um dos hospitais mais pequenos que havia perto. Mas desta vez não. Não a podia ver, mas sabia que havia entrado no hospital. Levei apenas alguns segundos para me aproximar, e lá estava eu para lhe dar as boas-vindas.

Podia ver a equipa através das pequenas janelas da ambulância, fazendo um esforço de ressuscitação caótica. Um dos assistentes estava a dar uma massagem cardíaca comprimindo o esterno do paciente; outro tentava em vão manter-lhe posta a máscara de oxigénio. Assim que a ambulância se aproximou, aproximei-me e abri a porta. Alguns transeuntes pararam e olharam. Para eles, era só aquilo. A ambulância tinha chegado e o médico estava à espera com um conjunto de instrumentos estranhos e miraculosos, estava tudo resolvido. Mas para mim era apenas o início. Ainda bem que não podiam ler na minha mente, enquanto me preparava para o que estava para vir.

- Tragam-no para a sala A - gritei para a equipa, assim que pararam com os esforços de ressuscitação. Ajudei-os a levantar a maca e levámo-la rapidamente pelo pequeno corredor, perguntando-lhes quando havia sido a última vez que tinham verificado respiração ou algum sinal de vida.

- Não tem, e só o encontrámos há cerca de dez minutos.

Era um homem de cerca de 50 anos, de barba, e tão grande que havia sido necessário que todos o levantássemos para o colocar na mesa de observaçÕes. Chegara o momento de tomar uma decisão, e os segundos pareceram-me anos; era o tipo de decisão que não é muito discutida fora dos hospitais. Devia declarar ser uma paragem cardíaca, ou um simples caso de morto à chegada? Era seguramente injusto exigir-me uma tal decisão apenas com base naquilo de que podia lembrar-me dos livros de estudo! Mas tinha de ser tomada, fosse como fosse, e depressa.

o que aconteceria se declarasse ser uma paragem cardíaca? Há seis semanas, conseguimos reanimar um homem apenas oito minutos depois da morte clínica. Encontrava-se agora na unidade de cuidados intensivos, vegetativo, vivo num sentido legal, mas morto em qualquer dos outros. Ao vê-lo todos os dias, comecei a sentir que, tendo-lhe dado aquela meia-vida tecnológica, o havíamos de algum modo privado da sua dignidade. o corpo havia funcionado durante cerca de seis semanas - o coração batia, os pulmÕes respiravam mecanicamente, e tinha os olhos dilatados e vazios; e os seus parentes haviam chegado ao limite das reservas emocionais e financeiras. Mas qual era a mão que se atreveria a desligar a máquina que respirava por ele, quem se atreveria a cortar a sua IV, qual seria a mente que se esqueceria de manter a concentração iónica certa, necessária para que o coração batesse para sempre sem o cérebro? Ninguém quer destruir aquele grãozinho de esperança que subsiste mesmo na mente mais objectiva.

Mas aí entra o problema da cama. Precisamos dela para outros - pessoas que estão talvez mais vivas, mas que podem morrer se privadas dos recursos dos C. I. Vem tudo dar a uma decisão baseada numa gradação subtil e indefinida da morte contra a vida. Não é uma questão apreto e branco, mas de tons cinzentos. Que significa realmente estar vivo? É uma questão complexa, cuja resposta a minha mente entorpecida pela fadiga tentava resolver.

Onde é que o interno exausto pode ir buscar auxílio num momento como este? A faculdade, com os seus conceitos estéreis para a verdade, a religião, a filosofia, que levavam invariavelmente a uma aceitação automática da vida como o oposto da morte? Não há aí ajuda alguma. A escola médica? Talvez, mas a torre de marfim das complexidades da reacção de Schwartzman e a sequência dos ciclos dos amino-ácidos afastaram as questÕes fundamentais. Nem sequer se pode esperar ajuda de um médico assistente. Mantém-se sempre silencioso, talvez perplexo, mas endurecido pela repetição. E o amigo ou parente? Que diria ele se soubesse que talvez haja um ponto intermédio entre a vida e a morte? Infelizmente, não pode ir mais longe que pensar na pobre alma do que é, ou era, o tio Charlie. Sem assistência, o interno fecha-se em si mesmo e toma decisÕes arbitrárias, que são influenciadas pelo seu cansaço, seja de dia ou de noite, quer esteja apaixonado ou solitário. Tenta então esquecer-se, o que é fácil, estando cansado; e, uma vez que está sempre exausto, esquece-se sempre - mas sabendo que mais tarde as recordaçÕes podem vir à superficie do inconsciente, Inseguro e irritado, foi mais uma vez posto à prova e descobriu que não estava preparado...

Paradoxalmente, encontrava-me sozinho, mesmo com as seis pessoas que me rodeavam, perto da massa corpulenta do homem barbudo. As extremidades estavam frias, mas tinha o peito quente; não tinha pulso, não respirava, nem tinha as pupilas fixas e dilatadas. Um dos assistentes da ambulância não parava de falar, dizendo-me o que havia sabido pelo vizinho que tinha vindo com ele. o homem havia chamado o seu médico após um ataque de asma que havia tido naquela manhã, mas tinha piorado - de tal modo, que tinha saído com o vizinho em direcção às urgências. A meio da viagem, teve um ataque agudo de dispeneia, uma incapacidade de respirar. Parou o automóvel, saiu, avançou alguns passos e desfaleceu. o vizinho pedira auxilio e chamaram a ambulância.

- Morto à chegada- disse eu firmemente, tentando não aparentar dúvidas. De facto, a minha mente era um caos de pensamentos relacionados que percorriam um círculo à volta de um exemplo. As manhãs nas Urgências são, estranhamente, a altura mais vulnerável de um interno. Apesar do descanso aparente da noite anterior, a sua capacidade de tomar decisÕes é cortada pela exaustão profunda de um serviço de vinte e quatro horas. A sua experiência é insuficiente para que possa tomar decisÕes críticas com a certeza de ter não uma ideia racional, mas puro reflexo. Toma-se como certo o velho aforismo de que a familiaridade necessita de aceitação cega. E é mesmo assim. No início de carreira, acontece muitas vezes o interno ser posto perante uma situação em que tem a mente limpa para pensar, mas não consegue, no entanto, encontrar respostas. Como o esquizofrénico que não consegue aguentar uma demasiada abertura sensorial, a informação permanece díssociada na sua mente. o interno absorve por isso essas experiências que sobre ele se precipitam; permanecem na sua mente como um aglomerado solto até estar suficientemente cansado para relegá-las para o seu inconsciente, e chega eventualmente a um ponto em que a experiência lhe trás algum conhecimento familiar, e este traz-lhe a aceitação sem o pensamento. Mas, nessa altura, uma grande parte da sua humanidade é desprezada...

Esta actividade mental aconteceu em milésimos de segundos. Não fiquei ali a interrogar-me e na dúvida, com o homem barbudo ali deitado. Tinham-se passado apenas alguns segundos desde que havia aberto a porta da ambulância e dissera Morto à Chegada. Mas parecia ter sido havia muito mais tempo, e isso afectou-me durante horas. o meu treino havia avançado bastante, de modo que não precisava de lhe ver o pulso.

A questão central e incisiva mantinha-se: por que razão tinha sido permitido que eu tomasse tal decisão? Senti-me, de algum modo, um cúmplice do demónio, um agente na morte do homem. Era verdade que se eu não o fizesse, outra pessoa o teria declarado morto; eu não era imprescindível ao drama. Isso é fácil de dizer, se se não estiver envolvido, mas não podia resolver o assunto assim tão depressa. Tomara uma decisão sem a qual o homem de barba não estaria morto neste momento. Tê-lo-íamos e teríamos estado a estimular-lhe o coração, respirando por ele, mantendo-o legalmente vivo. Senti, por isso, porque havia cortado essa possibilidade, que era o único responsável pela sua morte.

Teria sido demasiado apressado em declará-lo Morto à Chegada, seguindo o caminho mais fácil? Assim que o pronunciei, todos os recursos médicos se esgotaram. Se tivesse tido outra decisão, a favor de uma tentativa de ressuscitação, o meu primeiro passo teria sido o de inserir um tubo endotraqueal que respirasse por ele. Sempre achei isso uma tarefa muito difícil. Talvez eu o tivesse pronunciado Morto, em parte para me livrar da tarefa. Ou talvez fosse porque sabia que as camas nas U.C.I. estavam ocupadas e tivesse chegado à conclusão de que, mesmo que o tivéssemos conseguido reanimar, se tornaria em mais um ser vegetativo, de qualquer modo. Penso agora que estas são questÕes sem resposta, mas naquela altura deixaram-me louco. Naquele estado, dirigi-me para o corredor para enfrentar a mulher e a filha. Era uma mulher alta e magra, quase macilenta, que tinha uns olhos negros e penetrantes. Usava um vestido longo e antiquado e sandálias. Enrolada na ampla saia, estava uma rapariguinha de cerca de 7 anos.

A situação parecia-se realmente com os principais programas de televisão: o Interno ou Os Jovens Médicos - ingredientes para uma confrontação dramática ou terrivelmente sentimental. A realidade não era nada do que Ben Casey teria encontrado. Enfrentar a mulher e a criança, preocupadas e assustadas, não era dramático ou sentimental, era apenas mais um obstáculo a saltar. Talvez uma terceira pessoa omnisciente pudesse ver o assunto de outro modo. Não era o meu caso. Sabia o que havia acontecido na sala atrás das cortinas, mas não fazia a mínima ideia do que elas pensavam, e do que necessitavam ouvir. o pior de tudo era que estava afundado sem esperança nos meus próprios pensamentos sobre a morte e responsabilidade, no que poderia ter sido. Queria implorar-lhes que ouvissem as minhas preleçÕes sobre o ciclo de Krebs ou qualquer outra elegância médica. A escola médica preparou-me realmente mal para isto. "Fixe apenas os conceitos, Peters. o resto logo vem." o resto - a morte - aprende-se com julgamentos e erros, e acabamos por cair nas frases da televisão.

- Lamento muito. Fizemos tudo o que nos foi possível, mas o seu marido faleceu - disse, suavemente. As palavras banais saíram-me, e pareceram-me adequadas, de facto bastante satisfatórias, nas circunstâncias. Talvez tivesse futuro na televisão. A única coisa que me incomodava era aquela parte do "fizemos tudo o que nos foi possível"; não tínhamos feito nada. Contudo, o que havia dito era apenas uma hipocrisia estúpida e conveniente para mim. Passava. A mulher e a criança ficaram simplesmente ali, paralisadas, quando voltei as costas e me afastei.

Graças a Deus, não havia mais pacientes para observar. Assinei a folha de papel para tornar oficial a minha culpa na morte do homem e dirigi-me rapidamente para a sala dos médicos, atirando com a porta. Fiz cair da parede um pequeno quadro que uma firma de medicamentos nos havia dado, que representava um grupo de incas a abrir o crânio de um pobre coitado; mas o calendário da Playboy que se encontrava do outro lado só estremeceu um pouco em sinal de protesto, e Miss Dezembro não se modificou. Afundei-me num enorme cadeirão de cabedal. Era uma sala grande, que tinha as paredes vazias, com excepção do quadro inca e de Miss Dezembro. Num dos cantos, havia uma estante baixa repleta de livros, e no outro uma cama pequena o um candeeiro. o cadeirão onde me sentei estava mesmo em frente à parede verde-pálida onde se encontrava Miss Dezembro. Desejei que a minha mente se tornasse tão vazia e plácida como a sala.

Miss Dezembro ajudou-me; de facto, havia-me hipnotizado. Que é que a Playboy tem contra os pêlos? A não ser pela abundância de cabelos na cabeça, Miss Dezembro era tão lisa como uma peça de mármore - não tinha pêlos no peito, debaixo dos braços, nem nas pernas, e não tinha nenhum entre as pernas, aparentemente, embora fosse difícil de ver por causa da meia enorme de Natal. Talvez a Playboy estivesse a substimar grande parte do seu mercado. Não achava os pêlos púbicos assim tão horríveis. Na realidade, ao lembrar-me da noite anterior, descobri que os pêlos púbicos de Joyce Kanishiro eram uma das suas mais atraentes características. Sem ofensa - é que ela tem realmente uns pêlos púbicos bonitos e fartos. Quando estava nua viam-se, fosse qual fosse a posição em que se encontrava. Pensei que seria difícil pôr Joyce num calendário da Playboy.

Nem Miss Dezembro, nem Joyce, e nem as estéticas dos pêlos do corpo conseguiram tirar o homem barbudo completamente da minha mente. Não era certamente a primeira vez que a morte me havia confrontado nas Urgências. De facto, no meu primeiro dia ali, quando tremia só de ver um doente com um ligeiro ataque de asma, havia aparecido uma ambulância com a sirene ligada, e dela retiraram um rapaz de cerca de 20 anos a quem os assistentes haviam estado a fazer respiração artificial e compressão cardíaca. Tinha ficado na entrada, apertando literalmente as mãos e na esperança de que alguém chamasse um médico. Era ridículo. Era eu a pessoa que esperavam encontrar quando avançavam com as luzes vermelhas acesas, arriscando a vida e os membros.

Olhei para o corpo e verifiquei que tinha o olho esquerdo arrancado. A sua pupila distorcida olhava para um lado incerto. Que podia eu fazer àquele olho? Não tive, na realidade, muito mais tempo para pensar nisso. o rapaz já não respirava e o coração havia parado. A equipa informou-me rapidamente de que o paciente não se havia movido mais desde que o tinham ido buscar, quando um vizinho os chamara. Ao colocarem-no na mesa de observaçÕes, vislumbrei uma ferida na parte de trás da cabeça. Tentei observá-la melhor, mas fiquei bloqueado ao ver pequenos pedaços de cérebro que escorriam de um pequeno orificio de cerca de dois centímetros e meio de diâmetro, e compreendi então que havia levado um tiro e que a bala havia atravessado o olho esquerdo e saído pela parte de trás do crânio. A equipa e as enfermeiras ficaram lá, ofegantes depois dos esforços, enquanto eu prosseguia com a minha rotina. Seria um disparate puro tentar verificar com o estetoscópio - já nada poderia ser feito - mas, à falta de outra estratégia, escutei o seu peito. Apenas ouvi os meus pensamentos, interrogando-me sobre o que deveria fazer a seguir. Espera-se sempre que o interno faça várias coisas, contudo o corpo estava de tal modo morto que se encontrava praticamente frio.

- Está morto - disse finalmente, depois de ter verificado o pulso.

- Quer dizer, Morto à Chegada, Doutor? Sem paragem cardíaca, é assim?

Era isso mesmo, morto à chegada. o rapaz com o orifício na cabeça era muito diferente do homem de barba. Claro que o orifício me havia assustado, e sentira-me aliviado por me ver livre da responsabilidade de descobrir o que fazer com o olho. Mas o ponto principal era, contudo, que ele trouxera um orifício na cabeça que tivera a sua acção antes de mim; sentia por isso menos responsabilidade. Por outro lado, agora sem o lençol que o cobria, o homem de barba parecia normal, como se estivesse a dormir. É o problema da morte causada pela asma. Não se encontram muitos sinais, mesmo depois de uma autópsia, a não ser que a vítima tenha tido um ataque cardíaco muito grave.

Enquanto me encontrava sentado no quarto, tentei imaginar Joyce Kanishiro nas páginas centrais da Playboy. Isso é que era alguma coisa. Ela tinha mesmo alguns pêlos negros à volta dos mamilos. Teriam de retocar um pouco a foto.

Joyce era uma técnica de laboratório com um horário tão estranho como o meu. Isso não era problema, mas tinha no entanto um grande inconveniente: a sua colega de quarto estava sempre lá. Sempre que levava Joyce ao apartamento, das primeiras vezes que saímos, lá estava ela a ver televisão e a comer maçãs. Havia o quarto, mas nunca parecia haver oportunidade de irmos para lá. De qualquer modo, a colega, uma pessoa noctívaga, haveria ainda de estar na sala olhando para o protótipo do teste quando nós saíssemos, às cinco da manhã. Depois de umas noites passadas a ver comédias seguidas das notícias e o filme da última sessão, compreendi que tínhamos que mudar de local.

O meu devaneio com Joyce foi interrompido por outra recordação, um episódio que acontecera cerca de duas semanas antes, numa das noites em que havia começado com o turno das Urgências. A mesma rotina de sempre: a sirene, luzes vermelhas a piscarem e um tipo que parecia estar normal, também. Assim que os assistentes o tiraram da ambulância e o levaram para dentro, disseram-me que havia caído de um décimo quinto andar, em cima de um carro estacionado. Havia-se movido? Não. Respirava? Não. Parecia no entanto estar normal, bastante descontraído, um pouco como o homem de barba, mas mais jovem. Há quanto tempo o encontraram? Há cerca de quinze minutos., Exageravam sempre para menos, para evitar críticas. Observei os olhos dele, com um oftalmoscópio, focando até ver os vasos sanguíneos. Ao concentrar-me melhor nas veias, pude verificar que havia uma espécie de torrÕes que só podiam ser coágulos de sangue.

Morto à Chegada - disse. - Não houve paragem cardíaca. Tinha ficado bastante aborrecido também com este caso, embora uma queda de quinze andares seja geralmente conclusiva.

Começaram a aparecer elementos da família, repentinamente. primeiro chegaram os primos e os tios, e alguns vizinhos. Depois é que apareceram os parentes mais chegados. Parece que o homem - chamava-se Romero - se havia desequilibrado enquanto pintava o exterior de um edificio. Depois, as enfermeiras telefonaram para a mulher a dizer que o marido se encontrava em estado grave e o boato do acidente espalhou-se rapidamente. Na altura em que Mrs. Romero chegou haviajá imensa gente a querer saber como ele estava e à espera para o poder ver. Quando a informei da morte do marido, usando o meu melhor tom calmo e confidencial, Mrs. Romero ergueu os braços para o céu e começou a lamentar-se. Ouvindo-a, o resto do grupo começou também a chorar. Fui testemunha durante cerca de uma hora da incrível e assustadora representação dos Romero e dos amigos, que continuavam a aparecere a encher as Urgências. Batiam nas paredes, arrancavam os cabelos, gritavam, lutavam uns com os outros, e começaram por fim a partir a mobília da sala de espera. Não tinha tempo para tecer consideraçÕes acerca das implicaçÕes metafisicas deste caso, estava demasiado ocupado a proteger-me e ao resto do pessoal médico. Já mataram alguns internos nas Urgências. Isto é verdade.

Vi mais tarde, no relatório da autópsia do patologista, que a aorta de Romero se havia rompido. Isso fez-me sentir um pouco melhor. Mas sabia que o patologista nada iria encontrar na autópsia do homem de barba.

Estava meio adormecido no velho cadeirão de cabedal, e brincava com esses pensamentos e recordaçÕes, enquanto os seios gigantescos e quase ridículos de Miss Dezembro pareciam tornar-se cada vez maiores. Os seios de Joyce não eram assim. Mudámo-nos para o meu quarto para fugirmos à viciada em TV, e lembrava-me vagamente de ter acordado às quatro e meia quando ela saía pela porta de trás, quando ainda não havia gente a pé naquela ala. A ideiahavia sido dela; a mim tanto se me dava. E foi assim que nos vimos livres da Miss Maçãs e da TV. Era realmente um horário óptimo. Nas minhas vinte e quatro horas de folga, fazia surf à tarde, lia à noite, e cerca das onze horas, depois do seu turno, Joyce chegava e íamos para a cama. Era uma rapariga atlética, musculada. Era muito resistente, realmente insaciável. Quando estava com ela, não pensava em outra coisa.

Mas a cama de hospital do meu quarto fazia imenso barulho e era muito pequena. Quando Joyce se levantava às quatro e meia, era óptimo poder expandir-me nela, gozando o seu espaço. Durantealgum tempo, levantava-me com ela e despedia-me acenando - parecía-me ser isso que deveria fazer - mas agora acenava-lhe só da cama, enquanto a observava a vestir-se. Joyce parecia não se importar. Nessa manhã voltara, toda vestida de branco resplandecente, e beijara-me suavemente. Disse-lhe que nos veríamos mais tarde. Era uma colega fixe.

Três horas mais tarde, fui acordado pelo telefone. Havia-se passado tão pouco tempo que fiquei quase à espera de que estivesse ainda ali. Devo ter adormecido antes de ela ter saído.

7 e 30 da manhã de sábado, o dia mais movimentado nas urgências. Apesar de ter dormido oito horas, sentia-me fisicamente cansado e desfasado. Era a treta das quarenta e oito horas de trabalho. Segui a minha rotina normal, que começou na altura em que me inclinei sobre o lavatório e observei os meus olhos vermelhos e acabou com a minha chegada às urgências um minuto depois das oito, como sempre. Era estranho, apesar da minha tendência geral de chegar um pouco tarde, conseguia sempre chegar a horas às urgências para substituir o meu colega, que quase se atirava aos meus pés, cheio de gratidão, com a roupa manchada de sangue e olhos cansados.

Havia sido uma manhã de sábado relativamente calma, sem grandes problemas, apenas a procissão habitual de pessoas que deixaram cair o ferro de passar sobre os pés ou que caíram em cima de um vidro, e tudo se havia resolvido rapidamente, até à chegada do homem de barba.

Já se havia passado meia hora desde o caso do homem de barba e nada mais havia acontecido fora da sala dos médicos, se não ter-me-iam chamado. o meu relógio indicava que eram dez da manhã. Sabia que era apenas uma questão de tempo.

Uma enfermeira bateu negligentemente à porta e entrou para me avisar que tinha pacientes à espera. Sentindo-me quase aliviado por ser arrancado do meu devaneio, mergulhei de novo na luz do dia e peguei nos "esquemas" que a enfermeira havia preparado. Tenho de tirar o chapéu àquelas enfermeiras. Acompanhavam cada paciente mecanicamente para a sala de exames, tratavam de todos os pormenores administrativos, a tensão, e mesmo a temperatura, quando achavam necessário. Por outras palavras, tratavam bem dos pacientes. Faziam uma triagem de alguns pacientes, mas não eram elas que decidiam, porque tinha de os ver a todos, mas tentavam estabelecer prioridades, se estivesse muita gente, ou para me darem um pouco de paz, se não estivesse. Penso que sempre que chegava um interno novo, elas sentiam-se tentadas a dirigir tudo sozinhas, porque a maior parte dos casos que apareciam não eram considerados emergências.

Mas era eu o interno responsável, e ali estava, com a bata e as calças, e os sapatos brancos, estetoscópio ao pescoço e enfiado no bolso direito de uma forma particular, equipado com canetas de várias cores, uma lanterna, um martelo de reflexos, um oftalmo-otoscópio e quatro anos da escola médica. Aparentemente preparado em vão. Na realidade, só havia lidado e só tratara com doenças. Tendo em consideração que a variedade de doenças é quase infinita, não se podia dizer que estivesse bem preparado. A minha incompetência era como uma sombra que desaparecia apenas quando havia muitos bebés a chorar e suturas a fazer.

Cerca de dez horas depois, sentia-me geralmente tão cansado que não conseguia pensar mesmo que não houvesse pacientes. As manhãs eram a parte mais dura, até à chegada da tarde; o resto parecia correr por si.

o primeiro dos dois pacientes novos era um surfista que tinha levado uma pancada com a prancha, originando um corte de cerca de cinco centímetros acima do olho esquerdo. Estava consciente e desperto, e tinha uma visão normal. Estava óptimo, de facto, com excepção do corte. Liguei para o médico particular, que, como esperava, concordou que o cosesse. Era assim que as coisas funcionavam. Os pacientes vinham, observava-os e depois contactava o médico particular. Se não tivessem um, seleccionávamos um, se tivessem meios de lhe pagar, evidentemente. De outra forma, ficavam considerados pacientes do pessoal médico do hospital, e eu ou um dos residentes ficaríamos responsáveis por eles. A resposta que ouvia invariavelmente dos médicos particulares nestes casos era para os coser. Ainda fiquei a pensar, nos primeiros dias, se os médicos particulares cobravam a sutura aos pacientes, embora não fôssemos incentivados a investigar o caso.

Na realidade, agora já era bastante bom a dar os nós e a coser, tepois de ter tido que participar em várias operaçÕes, incluindo três hérnias, algumas hemorróidas, uma apendicectomia e uma excisão ubcutânea de uma veia. Na maior parte delas, havia segurado apenas os malditos retractores e cortado ocasionalmente algumas verrugas.

Cortar verrugas é a recompensa do interno por se portar bem: é mais ou menos como a remoção das hemorróidas, embora estas sejam mais importantes. Extraímos dezenas delas na escola médica, na parte de dermatologia, uma vez que era um procedimento essencialmente sem riscos e que estava muito abaixo da dignidade de um cirurgião. A minha primeira verruga havaiana havia sido tirada com o Supercaro, a alcunha de um cirurgião assim chamado pela sua incompetência sem igual. Fizemos a esterilização juntos num caso de uma biópsia da mama, que é geralmente um trabalho que leva cerca de trinta minutos, a não ser que se encontre uma malignidade. Mas não com o Supercaro. Manteve-se à volta do trabalho cerca de uma hora, antes de enviar o pedaço do tecido para a patologia. A minha esperança era que o tecido fosse benigno - e era, felizmente - e o Supercaro fechou então a incisão. Ser um assistente numa biópsia da mama não é um processo assustador, sejam quais forem as circunstâncias; este caso tornara-se frustrante porque não havia feito coisa alguma, nem sequer segurar nos retractores. Assim que o Supercaro acabou de atar o último nó, afastou-se, tirou as luvas e declarou magnanimemente que eu poderia agora retirar a verruga do pulso, o que fiz diligentemente, acompanhado por uma série de maus conselhos do Supercaro, que não compreendia porque não me mostrava eu mais agradecido.

Tinha no entanto estado mais envolvido na operação seguinte; de facto, de tal modo que quase estraguei tudo. Tratava-se da excisão subcutânea de uma veia, e o cirurgião era um médico particular com quem nunca antes me havia esterilizado. Disse-me, enquanto lavávamos as mãos, que esperava que eu fizesse um trabalho meticuloso. Pestanejei um pouco, ao perceber que me estava a confundir com um dos residentes, mas deixei-o pensar assim. Quando lhe respondi que tentaria fazer um bom trabalho, disse-me que tentar não era o suficiente, e ou o fazia como deve ser, ou não valia a pena fazê-lo. Não tive coragem de lhe dizer que nunca tinha feito uma excisão subcutânea. Já tinha vísto algumas antes, mas só do ponto de vista dos retractores; além disso, queria experimentar.

Esperei que ele saísse, e só depois me apressei, porque precisava que ele começasse. A paciente era uma mulher de cerca de 45 anos, que sofria de veias varicosas. Tendo sido destacado para o caso há alguns minutos, não a havia visto antes, e só podia por isso tentar imaginar como seriam as veias quando estava de pé. Embora soubesse a teoria, não estava muito a par da prática. Era como ler tudo sobre natação, saber os nomes das posiçÕes e dos movimentos, ter observado pessoas a nadar, e ser depois atirado em águas profundas. Tinha como função fazer uma incisão nas virilhas, encontrara a veia superficial denominada veia safena e cortar todos os pequenos vasos tributários. Depois, dirigir-me aos tornozelos e fazer outra incisão, isolar a mesma veia safena nesse local e prepará-la para a excisão. o instrumento usado era um simples pedaço de arame, que eu iria enfiar na veia até à virilha; assim que atasse o final do instrumento à veia, puxava ambos através da incisão da virilha. Era o que deveria fazer, e sabia-o de cor; tinha estudado, tinha observado e tinha pensado nisso.

Quase sem pressão, o bisturi bem afiado ia cortando suavemente através da pele na virilha. Iniciei a dissecação com as tesouras, mas não as conseguia controlar muito bem. Resolvi mudar de instrumento, e utilizei uma pinça hemostátíca, não para unir um vaso, mas para separar abruptamente os tecidos, abrindo a pinça antes de puxar a gordura. Era um método que causava menos hemorragias, e começou a avançar, entrando profundamente nas camadas espessas de gordura. Nada vi que conseguisse reconhecer lá dentro, na virilha; era como estar às escuras - até que encontrei casualmente uma veia, Não fazia a mínima ideia de que veia se tratava, mas, ao limpá-la cuidadosamente, pude segui-la em direcção a uma maior, que esperava que fosse a veia femural. Se assim fosse, então a primeira veia seria a veia safena Lão ansiada, mas não tinha a certeza. Não conseguia controlar os dedos e deixei cair os instrumentos uma ou duas vezes, de tão nervoso que estava com a minha participação. Afinal, que diria o cirurgião se eu lhe dissesse que nunca havia operado antes, a não ser as incisÕes para a IV e para retirar verrugas?

Ainda pensei em perguntar-lhe se era aquela a veia certa, mas uma confissão de uma ignorância dessas só iria fazer que me afastassem de qualquer outra futura participação.

Decidi-me, arriscando tudo, e esperando encontrar a veia safena e não um nervo. A tarefa tornava-se progressivamente mais difícil. Estava uma confusão, para dizer a verdade. Empurrei e puxei a veia, tentando extraí-la, abrindo bruscamente o hemostato, ensopando o sangue com uma esponja de gaze para manter a zona limpa. A veia partiu-se por várias vezes e o sangue escorreu, mas consegui estancá-la de algum modo com o hemostato ao fim de alguns cortes no escuro. Havia no entanto alguma consolação na hemorragia, porque provava que a estrutura que havia isolado era de facto um vaso sanguíneo.

A parte mais difícil era talvez tentar atá-la à volta do hemostato que havia colocado dentro da incisão para estancar a hemorragia. Pôr o fio de seda em volta da ponta do emostato era uma tarefa fácil, mas tentar manter a tensão na primeira laçada parecia-me impossível.

Quando retirei o hemostato, o laço que havia feito simplesmente saía e a hemorragia recomeçava novamente. Em conclusão, do ponto de vista técnico, poderia muito bem estar a retalhar um porco. Olhava conscienciosamente para o cirurgião de vez em quando, mas este parecia alheio aos meus problemas e absorto no seu trabalho, onde tudo estava sob controlo.

Mas que forma de aprender, pensei para mim mesmo. Mas era a única maneira. Se ele imaginasse que eu era completamente inexperiente em excisÕes de veias, não me teria deixado fazê-lo. Era tão simples como isso. Por isso, puxei, libertando finalmente todos os vasos tributários da veia safena. Mesmo com os tributários isolados, sentia-me um pouco tenso ao cortar a veia em duas, porque era um acto irrevogável. Fiz então uma incisão no tornozelo, localizando facilmente a veia safena apenas porque era a mesma que costumava cortar para as IV. Introduzi o instrumento de excisão por dentro da veia e puxei-a para fora através da incisão inguinal. Após ter atado a veia ao instrumento no tornozelo, e com alguma força, puxei-o através da perna, rasgando aveia. Houve um esguicho de sangue, um ruído agudo de rasgo, e a veia saiu completamente encarquilhada no fim do instrumento. o cirurgião havia muito que tinha terminado a sua parte e fora tomar um café, deixando o trabalho das suturas para mim. Nunca tive más notícias acerca dos operados do dia, por isso pensei que a senhora não devia ter ficado mal, depois da minha iniciação.

Apesar de ter feito centenas de suturas nas emergências, as primeiras laceraçÕes tinham-me dado bastante trabalho. Por uma simples razão: nas emergências, quase todos os pacientes estão conscientes e são observadores atentos. No meu primeiro dia nas emergências, quando a enfermeira me perguntou que tipo de sutura queria, bem me podia ter perguntado, com o mesmo resultado, qual era a população de Madagáscar. Nas emergências, o cirurgião estipula o tipo de material que quer para a pele antes da sutura; normalmente aceitamos o que a enfermeira nos dá, mesmo que o cirurgião já tenha saído. Mas havia nas emergências uma grande variedade de escolha - nylon, seda, Mersilene, tripas - e tudo com espessuras diferentes. A enfermeira não estava a tentar deixar-me ficar mal; só queria que lhe dissessem quais.

- Quais são as suturas que vai utilizar, Doutor?

Não fazia a mínima ideia.

- As normais.

- As normais, Doutor? - Não havia normais, pelos vistos.

- Hum... nylon - disse eu.

- Qual o tamanho?

- Quatro - respondi, sem ter a certeza exactamente do que estava a pedir.

Não será preciso dizer que rapidamente aprendi tudo sobre suturas, e como as fazer, mas sempre por tentativas e erros. No primeiro caso, dei pontos a mais, e no segundo cheguei ao fim com pele de mais em cima. Aprendi lentamente alguns truques, como excisar os bordos chanfrados, e mesmo alguma coisa mais sofisticada, como os plasties para modificar o eixo da laceração de modo a reduzir as cicatrizes. Comecei a apreciar aquele trabalho, porque era na realidade um problema que tinha uma solução clara e indicada que aprendi depressa a resolver. Fazia-me sentir útil, e essa era uma sensação rara e apreciada.

Essa experiência podia ser-me útil agora. o surfista estava à minha espera, com um lençol a tapar-lhe a cabeça. Comecei a limpar e a anestesiar a área com xilocaína, através do orificio do lençol. Depois de ter aparado bem os lados, mantive a agulha com a sutura de nylon ao centro da laceração, e a apenas alguns milímetros de um dos lados. Guiada pelo movimento do meu pulso, a agulha perfurou a pele, atravessou a laceração e emergiu do lado oposto. Retirei-a com o porta-agulha. Depois, quase não tocando nos lados da incisão com a agulha, puxei novamente a sutura para o lado original e atei-a, não muito apertada, deixando-a um pouco solta para que o inchaço da ferida juntasse os lados. Precisei apenas de mais quatro suturas para finalizar.

O outro paciente era uma rapariga um tanto misteriosa de cerca de 20 anos, que parecia ser uma doente crónica. Admitiu ter sido diagnosticada e recebido tratamento para lupus critematoso sistémico. o próprio nome da doença era um tanto misterioso, e o lupus é, na realidade, uma doença grave. Era uma das doenças que havia discutido na escola médica, uma vez que, sendo de tal modo rara e mal compreendida, se tornava adequada para a especulação académica. Não me sentia por isso completamente desamparado, a não ser em relação à dor abdominal de que ela se queixava, e que não era um sintoma habitual na doença. Tentando relacionar as duas coisas, apalpei-lhe o abdômen e fiz-lhe perguntas acerca do seu estado, enquanto a mãe ou ela respondiam. Depois, necessitei de pensar, dirigi-me para a secretária no centro das emergências, arrasei o cérebro à procura de uma relação entre a dor e a doença. Enquanto tentava encontrar um teste exótico para obter algum dado, resolveram ir-se embora, alegando que a dor havia desaparecido, agradeceram-me, e saíram. Lá se ia o meu diagnóstico misterioso e um dos casos de emergência que os quatro anos na escola médica me haviam preparado para lidar.

Nessa altura, o Quase apareceu precipitadamente e praticamente desfaleceu à minha frente, pondo a cabeça na secretária. Chamava-se Fogarty, na realidade, mas nós chamávamos-lhe Quase porque só aparecia invariavelmente no último momento nas emergências para ser tratado da asma. Era como esperar que a gasolina acabasse para só nesse momento parar no posto. As enfermeiras levaram-no, azul e ofegante, para um dos quartos, enquanto eu preparava um pouco de aminofilina. Já havia tratado dele diversas vezes, a começar pelo meu segundo dia das urgências. Havia aprendido muito na escola médica sobre a asma em termos de gradientes de pressão pulmónica, as alteraçÕes do pH, as funçÕes dos músculos e o fenômeno alérgico. Sabia ainda os medicamentos que poderiam ser úteis, como a epinefrina, a aminofilina, o bicarbonato, a teofilina e os esteróides. Mas não sabia quais as doses. Por isso, da primeira vez, enquanto o Quase se encontrava ofegante em outro quarto, ligado à máquina respiratória de pressão positiva, corri para os aposentos do pessoal médico e procurei nos livros quais as doses a dar. Tudo, menos perguntar às enfermeiras. Na realidade, nos casos dos pacientes internados, sabia as doses a dar a um paciente convalescente. Mas este tipo estava ali, não era convalescente, e havia uma grande diferença. Não se podem aplicar as mesmas doses. Teria sido desmoralizador perguntar às enfermeiras. De qualquer modo, o velho Quase e eu dávamo-nos bem, e uma IV de aminofilina dava geralmente resultado.

As emergências estão por vezes tão cheias de gente que os pacientes têm de se sentar no chão, ou encostar-se às paredes; o normal era ter uma grande quantidade de gente, cerca de cento e vinte ou mais nos dias de semana, e duas vezes mais aos sábados. Eram agora 10 e 30 da manhã. As pessoas tinham começado a aparecer, e lá estava eu, andando rapidamente de quarto em quarto, telefonando aos médicos particulares, não pensando demasiado, quase sem dar pelo medo omnipresente do próximo caso complicado.

Um dos relatórios dizia : "Queixa maior: depressão". Era uma senhora de 37 anos. Acendeu um cigarro, assim que entrei na sala, tapando o cigarro com a mão, como se houvesse vento. Atirou a cabeça para trás, com o cigarro precariamente preso a um canto da boca, e olhou-me com uma expressão vazia.

- Desculpe, minha senhora, mas não pode fumar aqui. Aquelas garrafas verdes estão cheias de oxigénio.

- Está bem, está bem. - Apagou o cigarro vagarosamente num pequeno prato de metal inoxidável que havia sido acidentalmente esquecido na mesa de observaçÕes, obviamente irritada. Ficou calada. Assim que o cigarro ficou completamente destruído, olhou para mim agressivamente, pronta a explodir, pensei.

- Chama-se Carol Narkin, não é assim?

- É isso mesmo. o senhor é o único médico daqui? - Estava a provocar-me.

- Sim, sou o único aqui, no momento. Mas podemos telefonar ao seu médico, se quiser. Chama-se Laine, segundo diz o relatório.

- É isso mesmo, e é um médico óptimo - respondeu, na defensiva. Tem tido consultas, ultimamente? - Tentava acalmá-la com perguntas de rotina, esforçando-me por perceber por que razão se havia dirigido às Urgências.

- Não se arme em esperto comigo, Doutor.

- Desculpe, Miss Narkin, mas tenho de lhe fazer algumas perguntas.

- Bem, mas eu não vou responder. Chame o meu médico. - Olhou para outro lado, zangada.

- E que devo dizer ao seu médico, Miss Narkin? - Não se moveu.

- Miss Narkin?

Não podia obviamente ajudá-la, e por isso saí, pensando em ir ver o próximo paciente. Afinal por que tinha ela vindo aqui? Não fazia sentido telefonar ao seu médico sem ter relatório nenhum a dar-lhe. Quando regressei para a ver alguns minutos depois, havia-se ido embora. Era típico do trabalho das emergências, encontros breves e inconclusivos e uma quantidade de tempo perdido.

A seguir, a enfermeira entregou-me cinco fichas e apontou um pouco acanhada para os próximos pacientes no quarto seguinte, onde fui confrontado com uma família inteira: a mãe, o pai, e três miúdos, que estavam à espera de tratamento.

Foi a mãe que falou:

- Sr. Doutor, viemos porque o Johnny está cheio de febre e tem tosse.

Olhei para a ficha.

- Temperatura, 37,5 graus.

- E já que aqui estamos, pensei que não se importasse de dar uma olhada nestas manchas que a Naney tem na língua. Mostra a língua ao Dutor, Nancy. E o Bill deu uma queda na escola a semana passada. Está a ver o joelho, a arranhadela? Por causa disso não têm ido à escola, e precisa de ir. E o George, o meu marido, precisa que um médico lhe assine uma declaração para a Segurança Social por causa das costas, uma vez que não trabalha e que nós acabámos de chegar da Califórnia. E eu tenho tido problemas com os meus intestinos há cerca de três ou quatro semanas.

Olhei para eles. o marido não olhou para mim, e os miúdos estavam muito ocupados a tentar subir para a mesa de observaçÕes, mas a mãe estava a adorar, e olhava para mim, excitada. Afastei o meu primeiro impulso de os pôr dali para fora. Deviam ter ido à parte de clínica geral e não às urgências. Não estávamos preparados para a rotina desses pacientes. Mas sabia que se o fizesse a mãe apresentaria queixa ao administrador do hospital, dizendo que eu não os atendera quando necessitavam. o administrador iria participar o caso aos médicos do serviço de ensino e eu acabaria por me lixar. Era esse o apoio com que podia contar.

Além disso, ainda era de manhã; o sol cintilante brilhava lá fora e sentia-me bem. Para quê estragar tudo? Por isso, em vez de me irritar, observei cuidadosamente as manchas e o arranhão, e dei-lhes alguns comprimidos. Mas recusei assinar o papel da Segurança Social. Não podia analisar as costas com os recursos que havia nas urgências; e na maior parte das vezes tratava estes tipos e via-os no dia seguinte a andarem por ali de moto.

o paciente seguinte era um alcoólico de nome Morris, que também era uma visita frequente das urgências. A sua ficha dizia: "Embriagado, com escoriaçÕes várias"; a descrição condizia. o homem tinha aparentemente caído de um lance de escadas, como de costume. Assim que entrei no quarto, levantou-se com dificuldade, com as pálpebras a cobrirem-lhe parte dos olhos, e berrou:

- Não quero um interno, quero um médico! - É incrível como comentários desse tipo me afectam na parte mais sensível do cérebro causando tal devastação. Aquele bêbado estúpido ofendeu-me realmente. Fez-me tomar novamente consciência de que tinha que recorrer aos livros muitas vezes para verificar uma dosagem, que estava assustado muitas vezes, que tinha passado quatro anos a decorar um milhão de factos e não parecia saber nada. Não consegui conter-me com ele.

- Cale-se, seu bêbado! - gritei.

- Não sou bêbado!

- Mais um comentário desses e ponho-o daqui para fora.

- Não estou bêbado. Há anos que não bebo.

- Está de tal modo bêbado que nem consegue manter os olhos abertos.

- Não estou nada. - Quase caiu da mesa de observaçÕes só para me apontar o dedo.

- Está, sim. - o nosso nível de comunicação não era muito elevado. Continuámos esta conversa infantil enquanto o examinava sumariamente e lhe batia com o martelo de borracha nos tendÕes de Aquiles, provando assim que ainda havia sentido do tacto nas suas extremidades inferiores. Acabei por o mandar para os raios-X, mais para me ver livre dele do que para observar os ossos, por debaixo das escoriaçÕes.

àquela hora da manhã já avançada, o número de pacientes que chegavam começou a ultrapassar os que saíam. Apareceu um grupo de bebés a chorar, ao mesmo tempo, como por conspiração, e foram distribuídos por diversos quartos. Não gostava muito de tratar bebés. Era um pouco como o meu conceito de medicina veterinária - não havia comunicação com o paciente. Era obrigado a ignorar a criança, na maior parte das vezes, e tentar compreender o que a mãe dizia. Além disso, era praticamente impossível ouvir alguma coisa com o estetoscópio no peito de uma criança de 2 anos a berrar. Os problemas habituais restringiam-se a constipaçÕes, diarreia e vómitos, não era nada de grave. Os miúdos pareciam esperar a minha chegada para urinar ou defecar enquanto os examinava.

Aquela manhã de sábado não era excepção. Havia crianças por todo o lado, a brincarem como de costume. o primeiro bebé tinha um corrimento no ouvido direito havia vários dias, e a mãe pensara que fosse da alimentação em boiÕes, mas tinha ficado desconfiada quando a descarga havia continuado depois de lhe ter mudado a dieta. Pela higiene geral de ambos, pensei realmente que fosse esse o problema, mas verificou-se tratar-se de pus. o bebé tinha uma grande infecção em ambos os ouvidos médios, por detrás dos tímpanos. Havia uma rotura no tímpano direito, o que havia causado a descarga. o tímpano esquerdo estava ainda intacto, inchado pela pressão. Teria sido aconselhável fazer um pequeno orifício no tímpano esquerdo para a saída do pus, mas não sabia como o fazer, e, ao falar com o médico particular, ele apenas me disse para o tratar com medicamentos, penicilina, como de costume, e gantrisina, um medicamento com sulfanamida. Quando salientei que a rotura do tímpano era algo sério, ele afastou-me do caso, dizendo que veria a criança no domingo de manhã. Embora na dúvida, receitei penicilina e gantrisina.

O bebé seguinte não tinha comido bem durante toda a semana. Era realmente uma emergência. o outro havia tido diarreia, mas apenas uma vez. Parecia-me incrível que uma mãe se dirigisse ao hospital depois de um pouco de diarréia, mas depressa aprendi que nas urgências nada é incrível. As outras crianças sofriam de constipaçÕes, nariz entupido e temperaturas um pouco elevadas.

Para fazer o exame completo, tinha de verificar cada ouvido, cada garganta. Era uma tarefa mais parecida com luta livre que com Medicina. As crianças, mesmo as mais pequenas, são surpreendentemente fortes, e embora pedisse às mães que lhes segurassem os braços durante o exame, largavam-nos invariavelmente e os miúdos agarravam no otoscópio, puxando-o e trazendo-o com umas gotas de sangue do canal auditivo. Isso tornava toda a gente alegre e confiante, naturalmente, mas tinha de fazer uma nova tentativa, enfiando-o no pequeno orifício do ouvido da criança, que se contorcia e gritava. Se algum deles tinha realmente uma temperatura alta, como seja 38 graus ou mais, aconselhava as mães a darem-lhe banhos de água tépida com uma esponja. Haviam aparecido nessa manhã dois casos dessa natureza. As urgências tornavam-se muitas vezes uma clínica pediátrica, no conjunto. Havia, naturalmente, casos de urgência normais, mas não tantos como o público imagina. A maior parte dos casos eram triviais, problemas que poderiam facilmente ser resolvidos na clínica.

Foi então que aconteceu algo estranho e horrível, e o pessoal ficou sombrio e silencioso por diversas horas. Uma manhã, uma senhora morena e pequena entrou silenciosamente, transportando um bebé num cobertor cor-de-rosa. Na altura, não lhe prestei muita atenção, uma vez que estava ocupado com outro paciente. A enfermeira pegou numa ficha em branco e desapareceu com ela. Reapareceu alguns segundos depois a dizer que tinha de ver a criança imediatamente. Assim que entrei na sala, a criança estava ainda embrulhada no cobertor cor-de-rosa. Ao abri-lo, vi uma criança de um negro azulado, com o abdómen inchado e duro como uma pedra. Não tinha a certeza da altura em que havia morrido, mas imaginava que a morte teria ocorrido cerca de vinte e quatro horas antes. A mãe havia-se sentado a um canto, sem se mover. Não falámos; nada havia a dizer. Olhei para a criança, fiz uma observação na ficha e saí.

Cerca de uma vez por semana, aparecem pais histéricos com uma criança com convulsÕes. A criança é geralmente bastante nova, e da primeira vez que vi uma nesse estado quase desmaiei de ansiedade. Era uma miúda de cerca de 2 anos, Estava toda enrolada, com os braços fechados de encontro ao peito; escorria-lhe saliva e sangue da boca e o corpo estremecia todo com convulsÕes rítmicas e sincronizadas. Como era costume nestes casos, deixara de ter controlo sobre a urina e as fezes. Sentindo-se ainda assustados, mas também um pouco aliviados pelo facto de o médico ali estar, colocaram a rapariguinha na mesa de observaçÕes. Uma vez que estavam demasiado histéricos para poderem ajudar, mandei-os esperar lá fora. Também queria evitar que julgassem as minhas acçÕes - ou inacçÕes - porque, na realidade, não sabia que fazer. Foi então que uma das enfermeiras me salvou, entregando-me uma seringa e oferecendo-se para segurar na criança enquanto tentava encontrar uma veia. Lembrei-me subitamente: IV de amobarbital. o problema agora era conseguir injectar a solução. Era difícil encontrar uma veia, mesmo numa criança sossegada. Numa que está com convulsÕes, é praticamente impossível. A quantidade a injectar era outro dilema, mas pensei em dar apenas um pouco e testar a reacção. Consegui encontrar finalmente uma veia, depois de várias tentativas frustradas, e injectei-a, e as convulsÕes começaram a abrandar e depois desapareceram; continuou a respirar, graças a Deus. o meu terror em relação a crianças convulsivas decresceu um pouco depois desta experiência, especialmente depois de ter aprendido a usar Valium, ou paraldeína e fenobarbital em IV. Mas da primeira vez podia não ter resultado.

Aconteceu-me também apanhar um susto ainda maior com crianças num caso semelhante. Serviu apenas para aumentar a minha insegurança, uma vez que foi uma situação que se deteriorou nas minhas mãos e me deixou completamente sem saber o que fazer. Era um miúdo de cerca de 6 anos, engraçado, que havia sido trazido para as urgências assustadoras pelos pais solícitos. Não estava a sentir-se muito bem, o que era visível, pois já havia vomitado três vezes e tinha outros sintomas da gripe. Tanto para descanso da criança como dos pais, tratei-o com um medicamento antiemético chamado Compazine, que era algo queliavia utilizado centenas de vezes com sucesso depois e uma operação. Tive, contudo, uma dessas reacçÕes adversas que se podem ler na posologia - o tipo de episódio de que os vendedores dos medícamentos não gostam muito de falar, e que os médicos vêem raramente. A criança entrou num estado convulsivo cerca de dois minutos depois de levar a injecção, os olhos reviraram-se, não conseguia estar sentado e desenvolvera um tremor rítmico óbvio. Os pais estavam horrorizados, especialmente depois de eu lhes ter explicado antes que o rapaz não estava seriamente doente. Resolvi aplicar um pouco de fenobarbital para acalmar a criança, e já que estava a fazê-lo, deveria dar também um pouco aos pais e a mim próprio. Tive de acabar por internar a criança no hospital. Não será necessário explicar que nem os pais nem eu próprio ficámos muito satisfeitos com esta actuação.

E assim passou a manhã de sábado, uma combinação de uma clínica pediátrica glorificada e uma fábrica de suturas, e uma crise real, ocasionalmente. As tarefas de sutura haviam sido rápidas e de rotina. o único que me havia perturbado havia sido o homem de barba, mas o tempo e o tédio afastaram-no suficientemente, de modo que o dia se tornou um dia típico de monotonia generalizada, apenas quebrada por alguns momentos de terror e incerteza.

Na realidade, começava a apreciar a rotina rápida e diferente das urgências. Os pacientes que requeriam mais atenção da minha parte eram aqueles com quem me havia envolvido emocionalmente de algum modo. Lembrava-me ainda de como tudo era diferente, seis meses atrás, no início do meu internato. Por exemplo, havia ficado bastante tocado em relação a Mrs. Takura. Tínhamo-nos tornado amigos; a sua longa operação, durante a qual segurara os retractores, impedido de ver a sua incisão, havia sido um trauma físico e emocional. Quando finalmente terminara, havia ido com Jan para a praia, com a convicção de que ela se iria conseguir safar. Quando regressei e soube que havia falecido, foi como se me tivessem dado um último golpe no desapontamento do meu trabalho como interno. Tinha-me fartado do sistema - dos trabalhos insignificantes e aborrecidos de todos os dias, dos retractores, da falta de ensino e do medo constante e torturante do fracasso. Levei bastante tempo a ultrapassar a morte de Mrs. Takura, e no final não aceitei o seu destino, mas tentei pôr tudo isso de lado, jurando não me envolver emocionalmente outra vez. Assim, tornou-se mais fácil, sem me envolver com os pacientes. Comecei a pensar neles em termos duros e cínicos, em relação a hernorróidas, apêndices ou úlceras gástricas.

Roso também me tinha feito sofrer. Ao contrário de Mrs. Takura, a minha relação com ele desenvolvera-se durante vários meses. Cheguei mesmo a cortar-lhe o cabelo, pois ele estava já há tanto tempo connosco que o cabelo lhe caía desordenado pelas costas. Ele não tinha dinheiro, por isso ofereci-me para lho cortar se quisesse. Ficou encantado; parecia estar orgulhoso por estar vivo, empoleirado na cadeira da alcova na enfermaria. Todos acharam que o seu cabelo estava horrível.

Roso sorria sempre, mesmo quando se sentia muito mal, o que acontecia na maior parte das vezes. Na realidade, sofria de quase todas as complicaçÕes imagínáveis, e mesmo de algumas que não estavam incluídas na literatura médica. Continuou com vómitos e soluços até que se tornou imperativo realizar outra operação. Encontrei-me novamente na minha posição familiar, agarrado às peças de metal, e a olhar para as costas do residente chefe durante cerca de seis horas e meia, enquanto o Bilroth I de Roso era transformado num Bilroth II; a bolsa do estômago estava agora ligada ao intestino delgado cerca de vinte e cinco centímetros mais abaixo do que era normal. Esperava-se que a operação acabasse deste modo com os problemas de Roso, porque , o que causava a obstrução do seu sistema digestivo era exactamente a primeira ligação feita entre o estômago e o intestino. Mas mesmo depois desta segunda operação, o seu relatório era crítico; o seu percurso fazia lembrar uma onda sinoidal. Os seus soluços, vómitos, a perda de peso e vários episódios horrendos de hemorragias gastro-intestinais mantiveram-me bastante ocupado - em especial as hemorragias. Uma semana depois da operação do Bilroth II, Roso vomitou sangue puro e entrou rapidamente em choque. Permaneci com ele várias noites a fio, irrigando continuamente o seu estômago com salina gelada e tirando o tubo naso-gástrico quando este ficava entupido e pondo-o de volta. Conseguiu aguentar-se, de algum modo, mesmo com os nossos erros e cálculos errados, durante a sua inexorável e agitada rota.

A seguir às hemorragias, nada lhe permanecia no estômago, até que tive a sorte de lhe conseguir introduzir o tubo naso-gástrico pela anastomose direito ao intestino delgado. Recomeçando por aí, alimentava-o directamente no intestino com uma alimentação especial. Consegui mantê-lo assim alguns dias, mas acabou por ficar com diarreia. Até que um dia espirrou e o tubo naso-gástrico saiu. Tive de começar a alimentá-lo por intravenosa, durante cerca de quatro meses, equilibrando o sódio e o potássio, e os iÕes de magnésio. Começou a desenvolver uma infecção na ferida, uma inflamação nas veias das pernas, um princípio de pneumonia e uma infecção urinária. Foi então que nos apercebemos do abcesso no diafragma, que era a causa dos soluços; tivemos de voltar a fazer uma nova intervenção cirúrgica. Roso conseguiu sobreviver a tudo isto, de algum modo, e mesmo melhorar. Levou-me cerca de quatro horas para completar o seu relatório; pesava cerca de dois quilos; dois quilos da minha própria escrita, frequentemente manchada com sangue, muco e vómito. Quando saiu finalmente do hospital, senti-me contente de o ver vivo e imensamente aliviado por se ter ido embora. o seu caso e a minha ligação a ele havia sido demasiado para aguentar, por cima de tudo o resto. Houve alturas, durante as hemorragias, quando lhe administrava as soluçÕes salinas, e ao verificar o tubo, em que me interrogava se havia aceitado tudo isto apenas como um desafio, porque toda a gente dizia que não iria consegui-lo. Talvez não me interessasse por ele, talvez o estivesse a usar para poder provar a mim mesmo que podia tratar de um caso difícil. Porém, acabei por deixar de examinar as minhas motivaçÕes e comecei a pensar nos pacientes apenas no respeitante aos seus problemas, como sejam hérnias, ou fosse o que fosse que tivessem; era muito menos cansativo desse modo. As urgências tornavam-se mais fáceis deste modo. Estava-se sempre demasiado ocupado, cansado ou assustado para poder pensar...

Eram já onze e quarenta e cinco da manhã. Ia almoçar, quando uma mulher bastante pálida, de cerca de 20 anos, entrou com mais duas amigas. Depois de uma consulta breve com a enfermeira, a rapariga pálida seguiu-a para uma das salas de exames. As outras duas sentaram-se bastante enervadas e acenderam cigarros. Podia ouvir o som da pronúncia nova-iorquina na sala de exames, enquanto escrevia a última frase na ficha de um bebé e o punha no cesto de "Terminado". Desejoso de ir almoçar, entrei na sala onde a enfermeira e a rapariga se haviam dirigido. A ficha mencionava uma hemorragia vaginal que durava havia dois dias, e um coágulo, naquela manhã. A rapariga tirou um cigarro do maço.

- Não fume aqui, por favor.

- Desculpe. - Voltou a guardar cuidadosamente o cigarro, olhou para mim e depois para outro lado. Era de estatura média e usava uma blusa de manga curta e uma minissaia. Com alguma cor no rosto, poderia ser bonita. A sua conversação indicava que não passara além do liceu.

- Há quantos dias dura a hemorragia?

- Há três - respondeu. - Desde que fiz a D e C. - Estávamos ambos nervosos. Tentei mostrar-me calmo e seguro.

- Por que fez a D e C?

- Não sei. o médico disse que eu teria de a fazer, e eu iriz, está bem?

Parecia irritada.

- Onde é que a fez, aqui ou em Nova Iorque?

- Em Nova Iorque.

- E depois veio logo para aqui?

- Sim - respondeu. Tinha realmente pronúncia de Nova Iorque. O facto de ter vindo logo a seguir para o Havai era um pouco estranho. Uma viagem de cerca de seis mil milhas depois de ter feito uma D e C não era um procedimento médico muito comum.

- Foi feita por um profissional? - perguntei.

- Claro que sim. Que quer dizer com um profissional? Quem mais faria?

Que fazer? Se tivesse abortado - e tinha praticamente a certeza de que o havia feito - sabia que iria ter algumas dificuldades em encontrar um médico particular. E lembrava-me demasiado bem da quantidade de raparigas, na escola médica, que haviam sofrido um choque endotóxico de infecçÕes causadas por más D e C. Pode acontecer tudo tão rapidamente: os rins param e a pressão do sangue vai a zero. Mas a pressão desta rapariga estava normal, nesta altura. Estava a funcionar perfeitamente, noutros aspectos, a não ser pelos nervos e a face pálida. Perguntei-me se estaria a tentar imaginar o que eu estava a pensar. Não precisava de se preocupar. Não me interessava como havia ficado naquele estado, o que me interessava era tratá-la. As hipótese de descobrir a causa exacta da hemorragia eram mínimas. Teria provavelmente que efectuar outro D e C. Nesse caso, tentaria localizar um ginecologista particular, mas a maior parte deles tinha medo de se ver envolvida num caso destes; tratar dos restos de outros, por assim dizer. De qualquer modo, teria de fazer mais cedo ou mais tarde um exame pélvico, e era a última coisa que desejaria fazer antes do almoço.

Recordei o meu primeiro exame pélvico. Fizera-o durante o segundo ano da escola médica, nos diagnósticos físicos. Não tinha quaisquer preconceitos, o que era óptimo, porque a paciente era uma senhora bastante pesada. Era uma paciente da clínica que viera para fazer um check-up regular. A princípio, pensei que o meu braço não fosse suficientemente longo para alcançar o útero, e o tipo que me sucedeu afirmou ter perdido o relógio - embora o tivesse encontrado mais tarde no sítio onde pusera as luvas. Naquela altura, ainda não havíamos tido qualquer experiência no campo da obstetrícia ou da ginecologia, e aquela experiência era estranhamente desgastante. Mas depois de ter feito mais de uma centena, tornou-se um exame de rotina como qualquer outro. o único problema era encontrar o colo do útero - o que pode parecer absurdo, porque está sempre lá. Mas o caso pode ser difícil, se houver muito sangue e coágulos, especialmente se a paciente não cooperar. Além disso, tentamos não magoar a paciente. Por isso compensa demorar um pouco mais de tempo e fazer um bom trabalho. Mas não antes do almoço.

- Estava grávida de quantos meses?-perguntei-lhe subitamente.

- o quê? - Gaguejara de novo, surpreendida. Uma vez que era necessário sabê-lo, não lhe respondi.

- Seis semanas - respondeu finalmente.

- Foi a um médico, ou a outra pessoa?

- Um médico de Nova Iorque - respondeu, resignadamente.

- Bem, vamos ver o que podemos fazer por si - respondi, e ela acenou com a cabeça com algum alívio.

Ao sair da sala, preveni a enfermeira para estar pronta para um exame pélvico. Alguns minutos depois, a enfermeira reapareceu a dizer que estava tudo pronto, e quando entrei de novo na sala a paciente estava deitada com os pés nos estribos, bastante nervosa e com a saia enrolada à volta da cintura. Ao preparar-me para inserir o espéculo, não consegui evitar recordar-me de uma noite, havia cerca de seis semanas, quando fora acordado por uma enfermeira que afirmava não conseguir pôr um catéter numa paciente idosa que tinha a bexiga cheia, porque não conseguia encontrar o orifício certo. Levantei-me e ia já a meio do caminho para o hospital quando me dei conta do ridículo da situação. Se ela não o conseguia encontrar, como é que eu poderia? Mas consegui, ao fim de algum tempo; era apenas uma questão de persistência.

Era o que acontecia com o colo do útero. o que era preciso era persistência. Consegui finalmente encontrá-lo, rodeado de sangue e coágulos, que limpei o melhor que pude. o orifício estava fechado, e não foi derramado sangue novo quando lhe toquei levemente com a esponja. Fiz pressão no abdômen, com grande desconforto da rapariga, e nada. Foi então que reparei num pequeno rasgão, a sangrar muito lentamente, no lado posterior do colo. Era esse o problema, quase de certeza. Cauterizei-o com nitrato de prata, chamei um ginecologista, expliquei-lhe o caso e fui almoçar com um sentimento único de realização. Ainda tinha fome, milagrosamente.

Foi um almoço rápido, em que engoli rapidamente duas sandes e um copo de leite, sem me preocupar com surf, cirurgia e sexo. Não era nada sério; apenas não tinha tempo para isso. Fiz mais uma tentativa de planear fazer surf com o Hastings mais tarde, às quatro e meia. Carno estava a almoçar numa mesa longínqua, e, excepto quando nos encontrávamos por acaso no hospital, raramente estávamos agora juntos. Consegui também falar com Jan Stevens durante alguns minutos. Não a via muito, ultimamente, embora durante os meses de Julho e Agosto, no início do meu internato, tivéssemos tido uma boa patuscada que terminara com um fim-de-semana diferente, numa viagem a Kauai.

O primeiro dia, sábado, tinha sido óptimo. Enchemos o carro com cerveja, carnes frias e queijo, e dirigimo-nos para o grande desfiladeiro de Kauai. Pelo caminho, a estrada elevava-se por entre as nuvens, movimentando-nos por entre as canas-de-açúcar que nos molhavam enquanto as atravessávamos. o desfiladeiro era ainda maior e mais espectacular do que imagináramos. Encontrei um sítio, e Jan transformou as carnes frias e o resto em sandes. Pedi-lhe que não falasse - uma precaução necessária, porque assim como a nossa relação crescia, também crescia o seu desejo de comunicar. A vista era maravilhosa, com quedas de água, e arco-íris brilhantes aos lados dos vales das estepes que se ramificavam do desfiladeiro central. Sentia-me completamente descansado.

Já no fim da tarde, dirigimo-nos para o final da estrada na encosta situada a norte, mesmo no início da costa de Napali. Armei a pequena tenda emprestada num arvoredo isolado de árvores verdes, enquanto o sol se preparava para se pôr entre as pequenas nuvens macias do horizonte, e mergulhámos nus nas águas tranquilas protegidas pelo recife. Havia um acampamento no outro lado da praia, mas isso não importava, embora me interrogasse porque estavam tão próximos da água, muito mais do que nós, num grupo maior de árvores.

Corremos para o carro, um pouco envergonhados. Vesti um par de jeans brancos e Jan refugiou-se num blusão de nylon. Nem mesmo outra refeição de carnes frias e cerveja podia destruir o ambiente. A noite caiu rapidamente, com o som das ondas a baterem no recife, que se confundia também com o da suave brisa a passar pelo arvoredo. As criaturas nocturnas iniciaram a sua tímida sinfonia, que ia aumentando de intensidade até quase abafar o som do mar no recife. A leste, o céu era apenas um borrão vermelho. Jan estava maravilhosa na meia luz, e a ideia de que nada trazia vestido debaixo do blusão de nylon era fantasticamente sexy. Na realidade, estava delirante com a sensualidade do momento.

Voltámos para a praia, mais uma vez nus. A lua cheia havaiana flutuava na água no meio do arvoredo reflectido, quando entrámos na água; era uma cena de tal modo perfeita que não parecia real. Não aguentei nem mais um segundo. De mãos dadas, corremos novamente para a tenda e caímos nos cobertores. Queria devorá-la, manter aquele momento sempre presente na minha mente.

Comecei a dar-me conta do zumbido dos mosquitos lenta e relutantemente. No nosso desejo de fazermos amor, tentámos de início ignorá-los, mas começaram a picar-nos, para além do zumbido que faziam. Nenhuma paixão poderia resistir a tal carnificina. Nesses horríveis sgundos, toda a atmosfera sensual havia desaparecido, terminando com a fuga de Jan para outro abrigo, no nosso Volkswagen. Tremendo de desejo, resolvi ficar na tenda em vez de dormirmos apertados num carro que fora feito para anÕes. Enrolei-me num dos cobertores de tal modo que fiquei apenas com o nariz e a boca de fora. Mesmo assim, fui picado pelos mosquitos de tal modo que a minha face principiou a inchar, até que me rendi, por fim, voltando para o carro acompanhado por uma série de mosquitos que pareciam sentir-se tão insatisfeitos como eu.

Bati na janela e Jan levantou-se, de olhos abertos, abrindo-me a porta com alívio assim que me reconheceu. Entrei, cansado, e disse-lhe para voltar a dormir. Depois de ter morto os mosquitos que entraram comigo, consegui adormecer nem sei como, debaixo do volante, enrolado numa bola. Acordei cerca de duas horas depois a suar. A temperatura e a humidade eram de tal modo que me parecia estar num banho turco; era uma humidade espessa que se havia condensado nas janelas. Ao abrir uma delas, senti uma corrente de ar fresco e entraram cerca de cinquenta mosquitos no carro. Era de mais. Pus o motor a trabalhar, disse a Jan que acalmasse e dirigimo-nos para a estrada principal para Lihue, até encontrar uma zona mais alta e fresca, onde consegui dormitar um pouco até o sol nascer. o meu pequeno-almoço constou de pão com queijo, formigas e areia, acompanhado de cerveja morna, tudo isto comido debaixo da capota do carro. Acordei Jan e voltámos para a cidade.

Jan e eu afastámo-nos um pouco desde essa altura. Não que eu a culpasse pelo fim-de-semana. Isso aconteceu porque começou a queixar-se um pouco, especialmente depois de termos dormido juntos, a querer saber se eu a amava, e porque não, e em que pensava eu. Amava-a algumas vezes, numa forma um pouco difícil de explicar; em relação ao que eu pensava, na maior parte das vezes em que estávamos junto, devaneava. De qualquer modo, não podia aguentar as suas perguntas. Tinha-se simplesmente tornado mais conveniente deixar que a nossa relação se tornasse apenas numa amizade casual. Mas gostei de a ver no bar. Ela era realmente bonita.

As urgências haviam-se modificado por completo naqueles quinze minutos em que fora almoçar. Havia um novo grupo de pessoas à espera de serem atendidas e oito novas fichas no cesto. Não eram obviamente urgências, na realidade, ou as enfermeiras ter-me-iam chamado antes. Eram apenas tratamentos de rotina. Um dos pacientes era um velho conhecido das urgências, que vinha para receber a sua injecção de xilocaína para tratamento de um alegado problema nas costas. As suas apariçÕes eram de tal modo frequentes e previsíveis que as enfermeiras tinham já a seringa pronta e à minha espera no tabuleiro ao lado do paciente. Chamávamos-lhe KidXilocaína, e havia desenvolvido um certo conhecimento acerca do seu estado, enquanto me dava indicaçÕes sobre o sítio onde inserir a agulha, como o fazer e a quantidade. Embora sentindo-me um pouco irritado com o ritual, fazia, contudo, como ele dizia; suspirava de alívio e ia-se embora.

Ao dirigir-me para a sala B, fui cumprim entado mais uma vez pelo meu amigo bêbado Morris, que voltara finalmente dos raios-X. Deitado na mesa de observaçÕes e preso por um cinto na cintura, segurava um sobrescrito cor de manilha onde se encontravam os raios-X. Saudou-me.

-Tenho sempre que ser visto por um raio de um interno. Nem sei por que continuo a vir aqui. - o almoço havia-me deixado bem humorado e consegui ignorar de algum modo a sua conversa fiada enquanto verificava as radiografias, uma de cada vez, erguendo-as em frente àjanela. Não esperava encontrar uma situação grave, a não ser, talvez, no braço esquerdo, mas a radiografia não estava muito visível. Lembrei-me de que Morris me havia bombardeado com uma série de obscenidades na altura em que lhe apalpei o braço e o fiz rodar. Talvez houvesse alguma coisa, de facto. Verifiquei novamente as radiografias; o joelho esquerdo, o direito, pélvis, o pulso direito, cotovelos, por aí fora, sem nada encontrar no braço ou ombro esquerdo. Não havia outra coisa a fazer a não ser chamar a enfermeira para enviar Morris de novo aos raios-X.

- Eles vão adorá-lo, Doutor, ele aterrorizou o departamento inteiro durante toda a manhã e fê-los usar duas caixas de filme - disse a enfermeira.

- Isso não me surpreende - respondi, pegando num grupo de fichas novas e dirigindo-me para a sala C.

Os bebés da parte da tarde eram muito parecidos com os da manhã; sofriam quase todos de constipaçÕes e diarreia. Um deles tivera de ser anhado com esponja, pois tinha uma febre alta, e outro, de cerca de anos, precisava de uma sutura no queixo. Suturar uma criança é uma operação realmente difícil. o terror de terem de vir para o hospital, por vezes a sangrar e com dores, é muitas vezes agravado pelo facto de terem de ser presos numa armação semelhante aos sacos em que as índias transportam os filhos às costas, para os conseguirmos imobilizar. Mas nem mesmo esse método conseguiu imobilizar esta criança; era como tentar atingir um alvo móvel. A parte pior para ele era o facto de estar debaixo do lençol com o orifício. Depois da injecção de xilocaína, não sentiu dores, apenas uma certa pressão e o repuxar da agulha. Mas isso não impediu que continuasse a gritar e a detestar o que estava a passar-se. Também eu.

Na outra sala, encontrei um homem de 32 anos que trazia um catálogo de queixas, que começavam com uma garganta irritada e continuavam pelo resto do corpo. o seu verdadeiro objectivo era ser internado no hospital, e quando se apercebeu de que uma garganta irritada não me havia impressionado muito, passou a queixar-se de uma dor no lado direito do peito. Disse-lhe, finalmente, que o hospital estava superlotado, só para testar a sua reacção. Ficou furioso, queixando-se de que sempre que se precisava do hospital este estava cheio.

A tarde passou de uma forma despreocupada e ocupada. Nesta altura, já havia examinado sessenta pacientes, o número normal, sem ter tido muitas preocupaçÕes. Mas a noite aproximava-se, e as noites de sábado significavam sempre problemas. Entraram dois homens idosos que sofriam de asma e as enfermeiras puseram-nos em quartos separados ligados às máquinas de pressão positiva para respirarem. o homem da sala C respirava com dificuldade, o esterno estava quase a rebentar com a inspiração, tinha as costas direitas e as mãos nos joelhos. Perguntei-lhe se fumava. Não, respondeu, há anos que deixara de fumar. Aproximei-me e tirei-lhe um maço de Camel do bolso da camisa, enquanto os seus olhos seguiam os meus movimentos. Quando olhou para mim, depois de ver os cigarros, não consegui evitar um sorriso ao ver a sua expressão, tão cómica e contudo tão humana. Era como se tivesse apanhado um miúdo a fazer uma asneira. Parte do encanto das urgências era constituído pela demonstração de humanidade generosa e pródiga nas suas variedades.

Os velhos conhecidos continuavam a aparecer. Outro bêbado, já bastante conhecido, entrou cambaleante, a queixar-se de uma queda de uma cadeira de baloiço que o deixara com uma úlcera crónica na perna! Havia visto aquela úlcera antes, na altura em que estivera como paciente na enfermaria; e tinha sido uma época difícil de esquecer, essa, para todos nós. Apesar das medidas rigorosas de segurança, conseguira manter-se bêbado durante dias a fio, e a sua alta fora apressada quando o residente chefe o encontrou atrás do banco de sangue com duas garrafas de Old Crow e uma paciente feminina. Tratei-o da ferida e disse-lhe para voltar para a clínica na Segunda-feira.

Uma ambulância apareceu subitamente sem ser anunciada por entre o choro dos bebés constipados e dos bêbados, sem sirene nem luzes vermelhas. Isso significava que não se tratava de uma urgência grave. Assim que retiraram a maca, foi-me revelada uma senhora magra, de cerca de 50 anos, com a roupa suja e velha. Segui uma das enfermeiras, que dizia que não havia sido possível conseguir reacção alguma da senhora. Também não consegui. Ficara apenas a olhar para o tecto, com a respiração pesada.

Tinha uma pequena laceração na testa, mas que não dava nem para fazer uma sutura. Parecia estar plenamente consciente, mas mantinha-se, contudo, completamente imóvel. Iniciei a tarefa de a examinar fazendo um exame neurológico, testando primeiro as pupilas e os reflexos em seguida. Nada havia de errado. Mas assim que tentei fazer o teste de Babinski, que se resume a uma raspagem leve na planta do pé com uma espátula, ela praticamente saltou, gritando que nada havia de errado no pé, que era na cabeça que se tinha ferido, e por que razão estava eu a brincar com o seu pé? Saltou da mesa de observaçÕes e desapareceu, com uma enfermeira a correr atrás dela. Por fim, contactámos a administração do hospital e a polícia, que a levou, enquanto ela gritava que estava bem.

Na sala F encontrava-se um homem idoso a quem se tinham acabado os comprimidos diuréticos, ou eliminadores de líquidos, e cujas pernas estavam inchadas com fluido excessivo. Descobri que era uma dessas pessoas que têm o fantástico dom de falar ininterruptamente sem aparentemente dizerem nada. Fui inundado por uma torrente de palavras enquanto o examinava. Falou da sua percepção extra-sensorial, de quantas vezes a havia utilizado, especialmente para comunicar com a mulher, que havia morrido alguns anos antes. Fiz uma pausa para o ouvir, contrariado, enquanto ele descrevia como podia destilar uma garrafa de água para o seu modelo de universo. Na realidade, ele imaginava que a Terra era apenas uma pequena porção de uma molécula gigantesca de outro universo em outra dimensão. Dei-lhe um frasco de comprimidos, ainda um pouco fascinado, e disse-lhe que os tomasse durante uma semana, para se aguentar sem eles durante um tempo e depois peguei na ficha seguinte.

Era importante ouvir esses pacientes, apesar da sua loucura e trivialidade. De vez em quando, as divagaçÕes eram significativas. Apareceu certa vez na escola médica um homem nas urgências a queixar-se de ter ingerido vários copos sem o acompanhamento habitual de pão. o interno e o residente começaram a encaminhá-lo para a porta, sugerindo-lhe que voltasse de manhã, quando o serviço de psiquiatria se iniciasse. Ao ver a sua descrença, o homem enfiou a mão no bolso do interno, tirando um tubo de ensaio e uma espátula de madeira para ver a garganta, mastigou-os e engoliu-os, perante o ar incrédulo do pessoal médico. Trouxeram-no de novo para dentro e deitaram-no na sala de exames, sugerindo-lhe delicadamente que ficasse lá essa noite. Visto aos raios-X, o seu estômago parecia um saco com berlindes partidos.

- Maldito hospital. Nunca mais cá volto. Para a próxima vou para St. Mary - disse o ubíquo Morris, enquanto o levavam na mesa de exame. Era evidente que me iria perseguir durante o resto do dia, embora me sentisse um pouco aliviado por ver que trazia consigo as radiografias do braço. Afinal, talvez me conseguisse ver livre dele.

- Há uma chamada para si no 84, Doutor - disse uma das enfermeiras.

Estava a tentar ligar para um certo Dr. Wilson, médico particular de um dos pacientes que dera entrada e que sofria de uma infecção do tracto urinário, e já ia na minha terceira tentativa vã. Marquei o 84, um pouco frustrado.

- Dr. Peters ao telefone.

- Sr. Doutor, o meu filho está com uma dor de cabeça terrível, e não encontro o meu médico. Não sei que hei-de fazer. - Continuei a ouvi-la, e aos bebés que choravam em fundo. Não tínhamos necessidade de mais um paciente de aspirina, mas não lhe podia dizer que não. Respondi-lhe, um pouco relutantemente:

- Se está realmente convencida de que o seu filho se encontra doente, então traga-o para as urgências.

- Doutor, tem outra chamada na 83. - Pedi à enfermeira que não desligasse, enquanto tentava mais uma vez ligar para o Dr. Wilson, à espera do sinal de ocupado. Por acaso, o telefone tocou e o Dr. Wilson atendeu.

- Dr. Wilson, tenho aqui uma paciente sua, uma Mrs. Kimora.

- Mrs. Kimora? Não me recordo dela. Tem a certeza de que é minha doente?

- Bem, pelo menos ela diz que é. - Acontecia frequentemente os médicos não se lembrarem dos nomes dos seus pacientes. Talvez uma descrição do problema lhe avivasse a memória. - Sofre de uma infecção do tracto urinário, com sensaçÕes fortes de ardor ao urinar, e em relação à temperatura...

- Dê-lhe um pouco de Gantrisina e mande-a ao meu consultório na segunda-feira - disse, interrompendo-me.

Fiz uma pausa, lutando com o impulso de desligar. Por que não queria ele ouvir falar do caso - da febre, da análise de urina e da de sangue?

- E que me diz de uma cultura? - perguntei.

- Claro, faça isso.

o.K. Marquei o 83 para receber a outra chamada.

- Doutor, acabei de evacuar e havia sangue nas fezes.

- Era vermelho-vivo no papel higiénico?

- Sim. - Chegámos à conclusão de que as suas hemorróidas veriam ser a causa do sangue, e que não necessitava de vir às urgências, podia consultar o médico na segunda-feira. Desligou, com um suspiro de alívio e agradecendo-me profusamente. A enfermeira tinha outra chamada à espera na 84, mas como esse gênero de coisas tem tendência a não mais acabar, ignorei-a. Dirigi-me então a Mrs. Kimora e expliquei-lhe cuidadosamente como deveria tomar a Gantrisina, que tinha de tomar dois comprimidos quatro vezes por dia. Uma enfermeira levou a urina para fazer a cultura.

E agora, Morris. Estava deitado imóvel na mesa, e parecia menos bêbado que antes, Dirigiu-me a saudação habitual.

- Quero ir-me embora daqui. - Pelo menos, nisso estávamos ambos de acordo. Peguei nas radiografias, pu-las contra a luz e verifiquei imediatamente, com grande desapontamento, que tinha uma fractura nítida entre o cotovelo e o ombro, como se tivesse levado um golpe de karate. Iria ficar connosco durante mais algum tempo.

- Mr. Morris, o senhor tem o braço partido. - Olhei severamente para ele.

- Não tenho nada - contrariou. - o senhor não sabe o que está a fazer.

Querendo evitar cenas de teimosia, fiz a minha retirada e escrevi rapidamente uma ordem, dirigindo-o aos cuidados do ortopedista residente. A enfermeira ligou para o PBX e mandou chamar o residente.

Estávamos já a meio da tarde e eu não tinha mãos a medir. Cerca das quatro horas fomos inundados por um grupo de surfistas, com cabeças laceradas, dedos cortados e cortes profundos feitos pelo coral. o surf é que estava a dar! Havia bebés a chorar em cada canto, com febre, diarreia e vómitos. Eu não parava de fazer suturas, de mandar pessoas para os raios-X e de tentar desesperadamente observar o interior dos ouvidos de crianças que não cooperavam. Apareceu uma mãe muito agitada porque o seu filho tinha caído de um terceiro andar para dentro da conduta do lixo. Senti-me tentado a perguntar-lhe como é que aquilo acontecera, mas, em vez de fazer perguntas, resolvi observar a criança, retirando-lhe pedaços de cebola de dentro de um ouvido e algumas borras de café do cabelo. Surpreendentemente, a criança estava bem. Contudo, mandei fazer-lhe uma radiografia, Porque tinha um braço um pouco mole, e confirmei as minhas suspeitas; havia fracturado o braço pelo húmero direito, como seria de esperar, após uma queda de três andares para dentro de um depósito de lixo.

Entretanto, iam-se acumulando radiografias de todas as espécies, desde crânios a pés. Eu era o primeiro a admitir não ser muito bom a interpretá-las. Mas o sistema era assim mesmo. o interno interpretava-as à noite e nos fins-de-semana. Não interessava minimamente se tínhamos sido ou não treinados para isso; tínhamos de fazer o melhor que podíamos. Tendo consciência da minha inexperiência, tinha sempre receio de não reparar em algum pormenor importante, especialmente depois da experiência humilhante do dedo do pé. o incidente ocorrera num sábado à noite, quando aparecera uma rapariga a coxear, agarrada ao namorado. Havia partido um dedo do pé. Mandei fazer-lhe uma radiografia e o namorado foi com ela. Cerca de uma hora depois, no meio do pandemónio, observei a radiografia, especialmente os metatarsos, e disse-lhes que a radiografia apresentava resultados negativos... e, nessa altura, o namorado interrompeu-me para dizer tranquilamente que, quando a observara, lhe parecera nitidamente haver uma fractura. Fiz uma pausa, engoli em seco e disse:

- Ali sim ? - Ele apontou para uma linha na falange média do terceiro dedo, queera suspeita, e que poderia ser... e era, narealidade... uma fractura. Era para isto que servia o nosso treino!

Morris estava agora bem guardado na sala de ortopedia, fora do meu alcance sonoro. o ortopedista residente havia aceitado o caso, examinado Morris e as suas resmas de radiografias, e desaparecera, depois de ter tentado, sem sucesso, contactar com o pessoal de ortopedia de serviço. Morris teria de ficar na sala de ortopedia até o pessoal ser contactado. Era, por isso, mais um problema, mas, pelo menos, já não era meu. Depressa me esqueci dele.

Cerca das cinco e meia começaram a aparecer os casos de hiperflexão do pescoço, o traumatismo de chicotada. Era matemático, mal o trânsito começava a aumentar havia mais acidentes nas auto-estradas. As pessoas que se queixavam de ter tido um acidente de automóvel necessitavam de uma verificação cuidadosa do pescoço, um exame neurológico completo e uma radiografia da medula cervical, antes de se poder chamar o médico particular. E todas essas radiografias me pareciam iguais, e quando retirei uma delas e a coloquei no expositor gigante no centro da sala de urgências senti-me tão transparentemente vulnerável como o próprio negativo. Além disso, havia sempre muitos pacientes por ali, a espreitar ansiosamente por cima do meu ombro, enquanto as observava. Só esperava que ficassem impressionados com as minhas artes mágicas de conseguir deduzir tanta coisa daquelas radiografias manchadas de negro, branco e cinzento, que representavam ossos e tecidos. Na maior parte das vezes, por consideração para com os pacientes, demorava um certo tempo, fingindo observá-las por completo, levando um pouco mais de tempo que o necessário em determinada parte do negativo. Na realidade, nada do que poderia diagnosticar estava longe da verdade, ou claramente fracturado, e isso demorava cerca de dez segundos a descobrir. o resto era um palpite à sorte. Mas não queria desapontá-los e, por isso, observava atentamente os negativos, murmurando para mim mesmo e tomando notas, enquanto o doente se encolhia, à espera do pior.

às seis horas, o movimento caiu muito, podendo então dar-me ao luxo de um breve descanso. Comecei mesmo a adiantar serviço, e, depois de ter extraído um anzol a um homem de meia-idade, deixou de haver gente à espera. As urgências tornaram-se subitamente calmas; lá fora, o sol dourado da tarde deixara uma sombra violeta no parque de estacionamento. Havia sempre uma acalmia antes da tempestade, um armistício temporário entre batalhas. Sentindo-me só e cansado - surpreendentemente só, no meio de tanta gente - resolvi ir jantar. Encontrei pelo caminho algumas pessoas que esperavam uma boleia para casa. Os que haviam saído das urgências acenaram-me e sorriram-me; sorri-lhes também, satisfeito por ter um novo contacto com eles e esperando ter trabalhado bem. Conversar com os doentes fora do hospital fazia que todos nos sentíssemos mais reais e afastava o medo que nos envolvia, quando esperávamos qualquer coisa mais grave a toda a hora.

Era uma experiência agradável, poder finalmente sentar-me. Estiquei os pés até à outra cadeira por baixo da mesa. Joyce apareceu e veio sentar-se ao meu lado, e isso era agradável, embora pouco tivéssemos a dizer um ao outro. Ela começou a relatar-me os falatórios do laboratório, a falar das contagens de sangue, e tudo isso era uma ameaça de indigestão; também não queria falar sobre as urgências. Jantei rapidamente, consciente de que cada dentada podia ser a última dessa noite. Pelo menos essa parte da visão da Medicina que a televisão mostra está certa. Acabámos a conversar sobre surf com outro interno, Joe Burnett, de Idaho.

Cada interno necessitava de um escape, de uma válvula de segurança; a minha era o surf. Dava-me uma sensação de fuga e escape perfeitos.

O ambiente era completamente diferente em relação ao som, à visão e aos sentidos. Quando me encontrava na crista de uma onda, a lutar, a concentrar-me em chegar a terra, não conseguia pensar noutra coisa. à medida que os meses se foram passando, foi aumentando o meu vício pelo surf, e comecei a compreender por que motivo a maior parte das pessoas que o pratica segue o sol em busca da onda perfeita. É muito mais saudável que as drogas e o álcool, mas vicia tanto como eles, e um mau passo pode matar-nos. o Havai não faz muita publicidade a esse facto.

Mas mudemos de assunto. Mesmo que as ondas não fossem perfeitas, haveria sempre a beleza que nos rodeia. E quem sabe? Pode aparecer uma, a qualquer momento, a desafiar-nos. o surf é um desporto muito especial, único mesmo, ao contrário de muitos desportos, embora se pareça superficialmente com o esqui. A única diferença é que, quando se faz esqui, a montanha permanece imóvel; numa onda, tudo se move - nós, a montanha, a prancha, o ar que nos rodeia - e quando se cai da prancha, numa onda grande, não se sabe onde se pode ir parar. Joe e eu falámos de surf, descrevendo entusiasticamente pequenos episódios, com os pés e os braços sempre em movimento, falando de ondas, de quando tínhamos sido enrolados ou atirados, de tudo, enfim. E esqueci-me das urgências.

O surf não é um desporto muito sociável, curiosamente, excepto quando se sai da água e se fala sobre ele. Na prancha, quase não falamos. Faz-se parte de um grupo de pessoas unidas apenas pelo mar, mas esquecemo-nos dos outros, a não ser para amaldiçoarmos quem cai na nossa onda. Cada onda que conseguimos apanhar é nossa, mesmo que não se vá sozinho. Vai-se sempre com alguém, mas não se conversa.

Chamaram-me ao telefone e tive de terminar a conversa com Joe; começava a haver mais movimento nas urgências. Quando cheguei, já não era um lugar calmo. Durante o meu retiro de trinta minutos tinham chegado mais bebés, a chorar e com as suas queixas habituais. Uma rapariga adolescente queixava-se de cãibras. Perguntei-lhe se se tinha sentido melhor depois de tomar aspirina. Ainda não tinha experimentado tomar coisa alguma. Mais uma cura milagrosa, digna dos quatro anos passados na escola médica. E as constipaçÕes. Havia várias pessoas com as velhas variedades de constipação: rinites, gargantas irritadas, tosse, o costume. A razão por que se dirigiam às urgências ultrapassava a minha compreensão. Apesar de me ter distraído bastante depois do jantar, havia-me passado despercebido qualquer aspecto humorístico da situação. Tinha gente à espera para ser suturada e tinha que observar aqueles constipados.

Um dos trabalhos de sutura foi um pouco invulgar. Tratava-se de uma senhora que havia cortado uma parte do dedo indicador com um canivete. Tinha sido suficientemente inteligente para guardar o pedaço e, depois de o ter ensopado por alguns minutos, cosi-o com uma linha de seda muito fina. Fizera tudo isso enquanto o médico particular me dava instruçÕes explícitas pelo telefone. Quase estava à espera de que ele aparecesse e fizesse o trabalho.

Numa das salas encontrava-se um homem que se queixava de dores nas costas e incapacidade de reter a urina. o último sintoma era bastante óbvio, a avaliar pelo cheiro da sala, que se tornou quase insuportável à medida que eu o ia examinando por partes, indo, de vez em quando, até ao corredor, para poder respirar um pouco de ar fresco. Continuava a não aguentar os maus cheiros. Pensei que talvez fosse boa ideia interná-lo no hospital, uma vez que tinha uma infecção no tracto urinário, e não podia, obviamente, cuidar de si próprio. Contudo, o médico que chamei já o conhecia e não o queria como paciente. Disse-me que procurasse outro médico. Ao que parece, o velhote era um péssimo doente, famoso pelas suas desapariçÕes do hospital sem ter tido alta e aparecendo sempre nos fins-de-semana ou a meio da noite. Falei com outro médico que também o recusou, e que sugeriu um outro. Finalmente, depois de ter contactado cinco médicos, houve um que concordou em tratar dele, mas, já depois de as enfermeiras o terem preparado para ser admitido, descobriu-se que era um veterano. Todos os meus esforços haviam sido em vão; agora teríamos de o mandar para um hospital militar.

Quando ia entrar de novo no hospital paraver outro paciente, quase choquei com uma jovem de cerca de 20 anos, que agarrava um caniche, enquanto um homem não muito mais velho que ela a puxava. Gritava que não queria falar com médico algum. Não via nisso qualquer obstáculo; continuei a dirigir-me para a sala do paciente, mas teria de acabar por aver, de qualquer modo, e, quando a observei, praticamente não falou. Teria sido mais fácil estabelecer comunicação com o cão, que ela ainda trazia ao colo. Decidi deixá-la, o que foi um erro, porque minutos depois saiu e desapareceu. Estava demasiado ocupado para dar por isso até que o psiquiatra da família apareceu com os pais dela. Parece que do hospital tinham chamado a polícia, porque a rapariga andava lá fora a arrancar flores. Fiquei um pouco surpreendido ao ver o psiquiatra - tinha sempre imensa dificuldade em conseguir que viessem ao hospital nos sábados à tarde e a partir das quatro horas. Podia sempre contar com dois ou três pacientes do foro psiquiátrico ao sábado à noite, na pior altura para eles. Uma vez que raramente conseguia apanhar um psiquiatra, fazia o que podia por os pôr mais à vontade; mas um calmante leve e palavras amáveis não lhes resolviam os problemas.

- Doutor, tem uma chamada no 84 - disse uma enfermeira. Atendi-a no telefone da Sala B, marcando o 84.

- Peters, daqui fala Sterling. Consegui finalmente falar com o Dr. Andrews, que trata este mês da ortopedia, e ele acha que um aparelho de suspensão deve servir para Morris. - Sterling era o ortopedísta residente.

Houve uma pausa. Comecei a desenhar círculos interligados no bloco que estava ao lado do telefone. o raio do Sterling não tinha a mínima intenção de vir cá abaixo aplicar o tal aparelho de suspensão, ou lá o que era.

- Por que não tenta pô-lo, Peters? E se tiver algum problema avise-me, está bem?

- Tenho ainda oito doentes para ver.

- Bom, se ele tiver que esperar muito, chame-me.

- Sterling, pelo amor de Deus, ele está aqui desde as dez da manhã. Não acha que já é muito? Há nove horas?

- Ah, está bem. Dá-lhe uma hipótese de ficar sóbrio.

Discutir com Sterling exigia mais esforço mental do que eu desejava, e, além disso, ia contra a minha nova determinação de não me aborrecer, de manter uma certa distância.

- Está bem. Vou tratar disso logo que puder. - Desliguei o telefone, analisando mentalmente a próxima meia hora.

- Enfermeira, mande aquecer um pouco de água e arranje-me gesso, e tenha tudo pronto na ortopedia.

- Que tipo de gesso, Doutor?

- De duas e três polegadas, quatro rolos de cada.

Pus o meu ar mais descontraído e fui dar uma volta pela sala dos médicos, procurando nas estantes um livro sobre ortopedia. Encontrei um, graças a Deus, e folheei-o, à procura do índice. Lá estava: gesso, suspensão, ver p. 138, o que fiz. Tratava precisamente de fracturas do húmero, mesmo o que eu queria. Apesar da minha apreensão por ter que tratar de um caso estranho para mim, fiquei impressionado com a simplicidade do trabalho, que fazia, de facto, uma espécie de tracção. Em vez de se pôr o gesso em volta do braço e do ombro do paciente, aplicava-se apenas na área um pouco acima do cotovelo, e o peso puxaria o osso fracturado para baixo, facilitando o alinhamento. o braço era então preso ao corpo por uma atadura enrolada em volta do peito; mantinha, deste modo, o braço imóvel, mas deixava o ombro livre para efectuar movimentos. Era extraordinário.

Apareceu uma enfermeira.

- Doutor, há nove pacientes à espera. - Sabia que seria avisado pelas enfermeiras se houvesse uma verdadeira emergência; era a altura propícia para me livrar de Morris de uma vez por todas. Depois de colocar o livro no lugar, dirigi-me para a sala de ortopedia, sentindo-me mais preparado para aplicar o gesso. Assim que entrei na sala, tornou-se óbvia a razão por que nos esquecêramos dele. Estava deitado na marquesa, adormecido, ressonando ligeiramente, e mantinha-se sobre ela graças a uma correia de couro que o prendia. Nem sequer acordou, quando o sentei, segurando-lhe na cabeça. Maldito Sterling; estava a fazer o trabalho dele. Enquanto falávamos ao telefone, podia ouvir o som da sua televisão. Depois de ter cortado a manga esquerda, arranjei um pouco de estoquinete para a parte de dentro do gesso e apliquei-a no braço, tentando não deslocar a fractura.

- Doutor, tem uma chamada no 83. - Não respondi, esperando que o caso se resolvesse por si.

- Ohhhh... - Morris acordou, assim que lhe posicionei o braço para a aplicação do gesso. - Que é que está a fazer?

- Mr. Morris, o senhor partiu o braço quando caiu da escada, e eu estou a pôr-lhe gesso.

- Mas eu não...

- Ai isso é que partiu! E agora, cale-se. - Espero que Sterling me peça um favor, um dia. Depois de ensopar os rolos de gesso na água até as bolhas de ar pararem, enrolei-o à volta do braço de Morris, fazendo camadas. Fi-lo bastante espesso, com cerca de cinco centímetros. Uma vez que a terapia se deveria ao peso, aquela iria ser óptima.

- Fique quieto agora, Mr. Morris. Não se mexa. Deixe-o secar. Dirigindo-me à zona principal das urgências, atendi o 83, mas já haviam desligado. Era uma boa estratégia. Ainda eram sete e meia e já tinha onze pacientes em atraso, e sabia que as coisas iriam piorar. Peguei numa mão cheia de fichas e comecei pela primeira, cuja queixa era "Erupção cutânea".

Os problemas cutâneos causam-me um vazio na mente, por mais que leia e releia as descriçÕes das erupçÕes vesiculares pruríticas papulo-escamosas e eritematosas. As palavras perdiam todo o sentido e retorciam-se na minha memória, de modo que, quando via um paciente com algo para além de acne ou hera venenosa, estava perdido. E ali estava, diante de mim, um homem com uma violenta erupção eritematosa eczematosa e prurítica. Eu sabia que era isso porque um dermatologista tinha usado essas palavras para descrever a minha queimadura solar depois de uma semana de Páscoa passada em Miami, quando andava na escola médica. Isso queria dizer que fazia comichão, estava húmida e vermelha, mas os cientistas preferiam um complicado calão científico. De facto, a dermatologia é o único ramo da Medicina que ainda usa o latim em grande extensão - apropriado, de certo modo, visto que não me parecia que a ciência tivesse avançado muito desde os tempos da alquimia. Embora a terminologia e o diagnóstico das doenças de pele fossem difíceis, o tratamento era a própria simplicidade. Se a lesão estivesse húmida, usava-se um agente secante; se a lesão estivesse seca, era preciso conservá-la húmida. Se o paciente melhorasse, continuava-se com o mesmo tratamento; caso contrário, tentava-se outra coisa, ad infinitum.

o paciente que se encontrava diante de mim era um homem magro, de rosto terroso, com cabelos escuros, fartos e despenteados. Ao olhar para as suas mãos e para os seus braços, a única coisa que via era que percebia muito pouco de dermatologia. Ele não tinha um médico particular, o que queria dizer que eu teria de chamar um, e perguntava a mim mesmo o que iria dizer-lhe, sem parecer um idiota chapado.

Reparei que a erupção atingia também as palmas das mãos e alguns sinos distantes começaram a soar na minha mente. Apenas algumas desordens dermatológicas aparecem nas palmas das mãos. A sífilis é uma delas. Hummm. Estava tão envolvido nos meus pensamentos que mal ouvi o paciente dizer que sofria de neurodermatite e precisava de mais tranquilizantes. Estava ainda a tentar recordar-me da lista exacta das doenças que aparecem nas palmas das mãos, quando as palavras penetraram subitamente no meu consciente. Neurodermatite. Com a prática, tinha desenvolvido uma certa habilidade para não mostrar surpresa ou gratidão quando me eram feitas estas súbitas dádivas de diagnóstico, e continuei a observar-lhe os braços, com o ar de quem percebe do assunto, até ter passado tempo suficiente. Tive a sensação de que os meus conhecimentos de dermatologia se igualavam aos dele quando adivinhei, correctamente, que ele estava a tomar Librium. Ficou-me grato por lhe receitar mais.

à medida que a tarde se ia estendendo para a noite, os meus passos foram-se tornando mais difíceis e mais lentos, e os meus receios aumentaram, fazendo surgir, na minha imaginação, uma série de casos complicados que me esperavam. Não houve uma pausa na torrente contínua de pacientes, deixando-me sempre com cinco ou seis pessoas em atraso. As minhas suturas tornaram-se mais rápidas, por uma questão de necessidade e de redução do meu interesse. Sempre que eu estava a fazer suturas, as pessoas que esperavam iam-se amontoando, de modo que eu tinha que ser rápido, desistindo de aparar os rebordos e outras coisas mais complicadas. Não trabalhava ao acaso, era apenas menos cuidadoso e talvez mais facilmente satisfeito com os resultados. Como sucedeu, por exemplo, com o homem que tinha uma laceração no braço com separação de um rebordo. Durante o dia, eu teria provavelmente extraído o rebordo e fechado a ferida como um corte linear. Mas naquela altura limitei-me a cosê-lo, com o rebordo e tudo, esperando que tudo corresse pelo melhor.

Na sala de otorrinologia encontrava-se um rapazinho de 4 anos sentado na marquesa, com um ar triste. Perto encontrava-se o avô. Quando entrei, a criança começou a choramingar, estendendo os braços para o avô que lhe pegou enquanto eu lia a ficha. Dizia "Corpo estranho, ouvido direito". Depois de conversar calmamente com o rapazinho durante alguns minutos, convenci-o a deixar-me observar o ouvido. Ao fundo do canal, vi qualquer coisa preta; parecia-me uma uva ou uma pedrinha.

Dado que o avô não conhecia otorrinolaringologista algum, escolhi um da lista de médicos, um Dr. Cushing, e telefonei-lhe.

- Dr. Cushing, fala o Dr. Peters das Urgências. Tenho aqui um rapazinho de 4 anos com um corpo estranho no ouvido.

- Qual é o apelido dele, Peters?

- Williams. o pai chama-se Harold Williams.

- Eles têm seguro de saúde?

- Não faço a mínima ideia.

- Então pergunte-lhes, meu rapaz.

Que cena, pensei eu, dirigindo-me à sala de otorrinologia. Com uma dúzia de pessoas à espera, tinha de ir saber de um seguro de saúde. Não, disse o avô, não tinham seguro.

- Não, não têm seguro, Dr. Cushing.

- Então veja se algum dos adultos está empregado.

Tive de voltar à sala de otorrinologia para interrogar o avô. Na verdade sabia que era mais fácil obter estas informaçÕes do que telefonar a uma dúzia de médicos até encontrar um que não estivesse tão preocupado com a ideia de não lhe pagarem; mas aquilo parecia-me grosseiro e desumano, de qualquer forma.

- Ambos os pais estão empregados, Dr. Cushing.

- óptimo. E agora, qual é o problema?

- O pequeno David Williams tem um corpo estranho no ouvido, uma coisa preta.

- Pode extraí-la, Peters?

- Penso que sim. Posso tentar.

- óptimo. Mande-os ao meu consultório na segunda-feira e telefone-me outra vez se tiver algum problema.

- Oh, Dr. Cushing.

- Diga.

- Tive aqui esta manhã uma menina com infecçÕes em ambos os ouvidos médios. - A criança da manhã tinha-me voltado à mente, de súbito. - Um dos tímpanos estava perfurado e o outro inchado. Deveria tê-la purgado?

- Sim, provavelmente.

- Como é que isso se faz?

- Usa-se um instrumento especial chamado faca de miringotomia. Faz-se uma minúscula incisão na parte inferior posterior do tímpano. É muito simples e o paciente fica logo aliviado.

- Obrigado, Dr. Cushing.

- De nada, Peters.

De nada, digo eu, Dr. Cushing. Depois de todas aquelas idas e vindas, tinha de tentar retirar eu próprio o objecto preto. Quanto à incisão no tímpano, decidi considerar-me instruído sobre o processo.

De regresso à sala de otorrinologia, imobilizei a criança e tentei retirar o objecto preto. Partiu-se quando puxei o forceps e, quando observei o que saíra, nem queria acreditar no que os meus olhos viam. Era a pata traseira de uma barata. O rapazinho soluçava enquanto eu ia retirando a barata, pedaço a pedaço, cheio de pena da criança e ansioso por acabar com aquilo, quase a vomitar de repugnância. Os últimos pedaços saíram com uma boa irrigação. O choro da criança foi diminuindo gradualmente e pincelei o ouvido com desinfectante. Parecia estar tudo bem, mas eu sentia-me um pouco agoniado.

Durante a parte final deste processo, uma enfermeira tinha estado atrás de mim a fazer-me sinais. Informou-me então, num tom um pouco gélido, que Morris continuava à espera...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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