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HUMILHADOS E OFENDIDOS / Fiodor Dostoievski
HUMILHADOS E OFENDIDOS / Fiodor Dostoievski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

HUMILHADOS E OFENDIDOS

Primeira Parte

 

O ano passado, em 22 de Março, ao fim da tarde, sucedeu-me uma estranha aventura. Todo o dia percorrera a cidade à procura de alojamento. O anterior era muito húmido e, por essa altura, eu tinha já começado a tossir fortemente. No Outono quisera mudar-me, mas adiei a mudança até à Primavera. Durante todo esse dia não consegui arranjar nada que me servisse. Em primeiro lugar, desejava um quarto independente, só para mim, e que além disso fosse bem grande e ao mesmo tempo o mais barato possível. É que numa casa pequena até as ideias se tornam pequenas. Eu, quando medito nos meus futuros romances, gosto de passear para trás e para diante no meu quarto. É verdade, sempre gostei mais de ruminar as minhas obras e as minhas fantasias à medida que me ocorriam do que escrevê-las — e não é por preguiça. Mas porque será então?

Já desde a manhã me sentia indisposto e, ao pôr do Sol, senti-me mesmo muito mal; começava a apoderar-se de mim uma espécie de febre. Para mais não parara de andar durante todo o dia e estava esgotado. Ao entardecer, antes do crepúsculo, fui até ao Prospekt Vosnesenski (’). Adoro o sol de Março em Petersburgo, sobretudo quando se põe por uma tarde radiosa e fria. A rua toda fica de súbito a faiscar, inundada de uma luz claríssima. Todas as casas parecem imediatamente cintilar. As suas cores cinzentas, amarelas, Ou de um verde sujo, perdem num instante toda a fealdade. É como se a nossa alma se iluminasse, como se estremecêssemos ou alguém nos despertasse dando-nos uma cotovelada. Vemos logo tudo com outros olhos, outros pensamentos. E»

(’) Avenida da Ascensão, uma das avenidas principais de Petersburgo
extraordinário o poder de um raio de sol sobre a alma de um

homem!

Mas o raio de sol desapareceu; o frio aumentou e começou a picar-me o nariz; as sombras adensaram-se; refulgiu o gás das lojas e dos armazéns... Ao passar em frente da pastelaria de Muller parei, como se esperasse um acontecimento, algo que pressentia de extraordinário, e de facto, nesse mesmo momento, vi no passeio fronteiro um velho com um cão. Recordo-me de como o meu coração estremeceu sob o peso de uma sensação desagradável e sem que eu possa explicar de que natureza era esta sensação. Eu não sou um místico; não acredito em impulsos do coração nem em pressentimentos, e, no entanto, têm-me acontecido coisas muito difíceis de explicar pelos fenómenos conhecidos e naturais. Por exemplo: por que motivo a aparição daquele velho se me afigurou o anúncio de algo fora do comum? Aliás, eu estava doente, e as impressões doentias são quase sempre enganadoras.

Caminhando com passo lento, inseguro, apoiando-se nas pernas como em dois troços de madeira inarticulados, curvado, fincando o bordão entre as pedras da rua, o velho aproximava-se da pastelaria.

Nunca vira uma figura tão estranha, e já anteriormente, sempre que o encontrava em casa do Muller, ele me causava uma dolorosa impressão. A sua elevada estatura, os ombros curvados; a cara de octogenário, de aspecto cadavérico; o casaco rafado, o chapéu redondo, todo amolgado e roto, que devia contar bem mais de vinte anos de serviço sobre aquela cabeça sem cabelo, que conservava somente um pequeno tufo de cabelos sobre a nuca, não brancos, mas amarelados; os seus movimentos de autómato, tudo nele chocava quem o visse pela primeira vez. Fazia uma impressão esquisita olhar aquele velho sobrevivente, por assim dizer, sem tutela nem vigilância, que parecia um louco fugido do manicómio. Era de uma magreza extrema, incorpórea, uma armação só de pele e ossos. Os olhos, grandes e meigos, rodeados de olheiras fundas, olhavam constantemente para o vácuo, sem que

parecessem dar conta do que os rodeava, e tive oportunidade de verificar que, se me pusesse na sua frente, ele continuava a caminhar como se nada obstruísse o seu caminho, como se o espaço estivesse vazio. Havia pouco tempo que ele aparecera na casa do Muller; ninguém sabia de onde vinha, viam-no sempre acompanhado do cão. Os frequentadores habituais da pastelaria nunca se haviam decidido a dirigir-lhe a palavra, e ele tão-pouco jamais havia interpelado alguém. «No entanto, porque irá a casa do Muller e que terá ele a fazer ali?», pensava eu, parado do outro lado da rua e seguindo-o irresistivelmente com o olhar. Uma certa irritação, consequência da doença e do cansaço, começava a apoderar-se de mim. «Em que pensará ele?», continuava eu a falar para mim mesmo. «Que se passará naquela cabeça? E pensará sequer em alguma coisa? Tem uma cara sem vida a tal ponto que, evidentemente, já nada exprime. Além disto, onde teria ido buscar também aquele cão sarnoso que não o larga — como se formassem os dois um todo inseparável — e que se parece tanto com ele?»

Aquele desgraçado cão parecia ter igualmente oitenta anos; sim, devia ser assim. Em primeiro lugar, denotava uma velhice imprópria de um cão e, além disso, por que me teria surgido imediatamente, desde que o vi pela primeira vez, a ideia de que aquele cão não era como os outros cães, mas era... um cão extraordinário, que fatalmente devia ter algo de fantástico, de mágico, que talvez fosse uma espécie de Mefistóteles sob a aparência de cão, e que o seu destino estava ligado ao do seu dono por laços misteriosos e ignorados. Bastava olhá-lo para que alguém adivinhasse imediatamente que de certeza teriam decorrido já uns vinte anos desde que o cão comera pela última vez. Era magro como um esqueleto (ou pior), tal como o dono. O pêlo caíra-lhe quase todo e o rabo, todo torcido, trazia-o metido entre as pernas, hirto como um pau. A cabeça fraca, de longas orelhas, pendia lamentavelmente para o chão. Nunca na minha vida vira um cão tão repugnante. Quando iam os dois pela rua — o dono adiante e o espantalho atrás, este roçava o focinho pelas abas do casaco do outro, como se lhes fosse colado, e a sua maneira de andar, todo o seu aspecto, pareciam dizer a cada passo:

«Que velhos somos, senhor, que velhos somos!»

Lembro-me de que um dia me veio à ideia que o velho e o cão se teriam escapado de alguma estranha narrativa de Hoffmann, ilustrada por Gavarny, e que andavam pelo mundo na qualidade de reclamo ambulante de um editor...

Finalmente atravessei a rua e, atrás do velho, dirigi-me até à pastelaria.

O velho comportava-se de uma maneira estranha, e Múller, nos últimos tempos, costumava já fazer uma careta de aborrecimento quando, de pé, atrás do balcão, via entrar o inoportuno visitante. Em primeiro lugar, o estranho hóspede nunca pedia nada. Ia sempre direito ao canto do fogão de aquecimento e aí se sentava. Se esse lugar se encontrava já ocupado, depois de permanecer algum tempo a contemplar, numa irresolução perplexa aquele que se apoderara do seu posto, o velho, como que inibido, encaminhava-se para outro canto junto da janela. Escolhia uma cadeira, sentava-se lentamente, tirava o chapéu, colocava-o no chão, ao seu lado, punha o bordão perto do chapéu, recostando-se na cadeira, quedava-se imóvel durante umas três ou quatro horas. Nunca pegava num jornal, proferia uma palavra ou fazia qualquer rumor; limitava-se a sentar-se e assim se deixava ficar, olhando para o vazio com os olhos muito abertos; porém, com tal fixidez e tanta ausência de vida que poderia apostar-se como ele nada via nem tão-pouco ouvia de tudo quanto o rodeava. O cão, depois de dar duas ou três voltas sem sair do mesmo sítio, acabava por deitar-se tristemente a seus pés; afundava o focinho entre as patas, respirava profundamente e, estendendo-se a todo o comprimento sobre o chão, ficava assim imóvel toda a noite, como se estivesse morto. Poderíamos até supor que aqueles dois seres jaziam mortos durante o dia inteiro e somente ao pôr do Sol ressuscitavam com o único objectivo de se dirigirem à pastelaria do Miiller e cumprirem ali algum dever misterioso e ignoto.

Depois de estar assim sentado três ou quatro horas, o velho finalmente levantava-se, apanhava o chapéu e regressava a casa. O cão levantava-se também e, voltando a encolher a cauda e a baixar a cabeça, com o mesmo vagaroso caminhar de antes, começava maquinalmente a seguir o dono. Os fregueses da pastelaria, nos últimos tempos, tinham acabado por fazer o vazio à roda do velho, evitando roçarem-se por ele, como se lhes inspirasse desprezo. Porém, ele nunca chegou a dar por isso.

Esses clientes eram, na maioria, alemães. Iam ali, vindos de todo o Prospekt Vosnesenski; eram todos proprietários de vários estabelecimentos: serralharias, padarias, tinturarias, chapelarias, casas de arreios, todos eles gente patriarcal, na acepção germânica da palavra. Em casa de Miiller observava-se o patriarcalismo. O dono costumava formar tertúlia com os clientes conhecidos, sentando-se com eles à mesa, na qual consumiam grande quantidade de ponche. Os cães e os filhitos do pasteleiro aproximavam-se também frequentemente dos fregueses; estes afagavam os cães e as crianças. Todos se conheciam uns aos outros e todos se respeitavam mutuamente. E enquanto os clientes se afundavam na leitura dos jornais alemães, por detrás da porta do fundo, nos aposentos do dono ouviam-se as notas da valsa Agustin, que no derreado piano tocava a sua filha mais velha, uma alemãzita loura, de cabelo eriçado, muito parecida com um ratinho branco. A valsa era acolhida com satisfação. Eu ia a casa de Múller nos primeiros dias de cada mês para ler os diários russos que ali se recebiam.

Quando entrei na pastelaria reparei que o velho estava já sentado junto da janela, e a seus pés o cão estendido como sempre. Em silêncio, sentei-me num canto e a mim próprio fiz mentalmente esta pergunta: «Porque viria eu aqui, quando decididamente nada tenho a fazer neste lugar e, além disso, assim doente? Devia era ir depressa para casa, tomar uma chávena de café e meter-me na cama. Dar-se-á o caso que eu venha unicamente para ver este velho?» Apoderou-se de mim um grande descontentamento. «Que me importa a mim esse velhote? — pensei recordando a estranha, mórbida impressão que me provocara o seu encontro na rua. — E, além do mais, que me importam também estes aborrecidos alemães? Porquê esta fantástica disposição de espírito? Porquê este invencível desejo de solidão que noto em mim de algum tempo para cá e me impede de viver e de olhar a vida com olhos claros, como notou já um crítico profundo ao censurar com aspereza o meu último romance?» Entretanto, cavilando e resmungando, continuava no meu lugar, sem que o mal-estar deixasse de me afligir cada vez mais e mais, até que por fim se me tornava custoso abandonar aquele sítio tão quentinho. Peguei na Gazeta de Francfort, li duas linhas e quedei-me amodorrado. Os alemães não me incomodavam. Liam, fumavam, e só de quando em quando, aí uma vez em cada meia hora, comunicavam laconicamente e em voz baixa uns aos outros alguma notícia de Francfort ou algum dito do seu célebre escritor humorista Safir; depois do que, com o seu orgulho nacional duplicado, voltavam a enfronhar-se na leitura.

Teria estado assim adormentado uma meia hora até que despertei com um grande calafrio. Decididamente, tinha de ir para casa. Porém, naquele mesmo instante, uma cena alemã, que se desenrolava na pastelaria, obrigou-me uma vez mais a ficar. Disse já que o velho, assim que se sentava na sua cadeira, fixava imediatamente o olhar num ponto e daí não o desviava durante toda a noite. Uma vez por outra me ocorreu que fosse cego o branco daquele olhar que se fixava algures, absurdamente teimoso e, quando isso acontecia, apressava-me a mudar de lugar. Dessa vez a vítima do velho era um alemão pequenino, rechonchudo e extraordinariamente limpo, com um colarinho teso, muito engomado, uma carantonha vermelhusca, freguês de passagem que tinha um negócio em Riga e se chamava, segundo soube depois, Adam Ivanitch Schultz, amigo íntimo de Múller, mas que ainda não conhecia o velho nem a maioria dos fregueses. Lia com deleite o Dorfbarbier () e saboreava o seu ponche,

 

(’) «O barbeiro da aldeia» (N. do T )

 

quando de repente, ao levantar a cabeça, encontrou o olhar parado do ancião fixo em si. Isso aborreceu-o. Adam Ivanitch era um homem muito rabujento e susceptível, como o são em geral todos os alemães «importantes». Pareceu-lhe estranho e ofensivo que se pusessem a examiná-lo com tanta insistência e à-vontade. Dominando a indignação, afastou a vista do indelicado freguês, resmungou qualquer coisa por entre dentes e, em silêncio, voltou à leitura do seu jornal. Entretanto, não pôde conter-se e, passados dois minutos, deitou ao velho uma olhadela furtiva por cima do jornal: encontrou o mesmo olhar obstinado, o mesmo exame imbecil. Ainda por aquela vez Adam Ivanitch se calou. Porém, ao repetir-se aquilo pela terceira vez, explodiu e julgou de seu dever sair em defesa da sua honra e não deixar mal vista diante de um público notável, a nobre cidade de Riga, da qual, pelos vistos, se julgava representante. com um gesto de enfado poisou o jornal sobre a mesa, deu sobre ela uma pancada enérgica com a vareta a que ele estava seguro e, arrebatado por um sentimento de dignidade pessoal, todo vermelho pelo efeito do ponche e da indignação, fixou por sua vez os seus olhinhos injectados de sangue sobre o velho maçador. Dir-se-ia que ambos, o alemão e o seu adversário, se esforçavam por se dominarem um ao outro com o poder magnético dos seus olhares e que aguardavam a ver qual dos dois se rendia primeiro baixando a vista. A pancada com a vareta e a extravagante atitude de Adam Ivanitch atraíram sobre ele a atenção de todos os presentes, que abandonaram imediatamente as suas ocupações e, com grave e tranquila curiosidade, puseram-se a contemplar os dois contendores. A cena era realmente muito cómica. No entanto, o magnetismo das olhadelas provocantes do rubicundo Adam Ivanitch não dava resultado. O velho, sem se preocupar com coisa alguma, imperturbável, continuava a olhar o furioso senhor Schultz e, evidentemente, não reparava que estava a ser objecto da curiosidade geral, tal como se tivesse a cabeça na lua e não cá na terra. Por fim-, a paciência de Adam Ivanitch acabou e ele explodiu.

— Porque me olha o senhor com tal fixidez? — gritou em alemão com voz cortante e estentórea e aspecto ameaçador. Mas o adversário persistiu no silêncio, como se não tivesse percebido nem ouvido a pergunta. Adam Ivanitch interpelou-o então em russo:

— Pergunto-lhe, a si, por que me olha com tanta «insistência» — vociferou com redobrada fúria. — Eu sou conhecido na corte e o senhor não! — acrescentou saltando da cadeira.

Porém, o velho, nem por um instante se moveu. Entre os alemães houve um murmúrio de indignação. O próprio Múller, atraído pelo barulho, veio para o meio da sala. Posto ao corrente da questão, pensou que talvez o velho fosse surdo e foi dizer-lhe ao ouvido:

— O «senhor» Schultz pede-lhe que não o olhe tão «fixamente» — gritou-lhe com todas as forças, encarando nos olhos o estranho freguês.

O velho olhou maquinalmente para Múller e logo no seu rosto, até então imóvel, transpareceram indícios de angústia, de uma determinada e inquieta comoção. Inclinou-se, apanhou rapidamente o chapéu e o bordão, levantou-se e, com um sorriso doloroso, o sorriso humilde de um desgraçado que, por engano, ocupou um lugar que lhe não correspondia, dispôs-se a deixar o estabelecimento. Naquela precipitação mansa, submissa, do pobre ancião esfarrapado, havia qualquer coisa que fazia tanto dó, que tanto nos oprimia o coração, que todos os presentes, a começar por Adam Ivanitch, mudaram logo de atitude. Era evidente que o velho não somente era incapaz de ofender alguém, como também, pelos vistos, temia a todos os instantes que pudessem escorraçá-lo como a um mendigo.

Múller era homem bom e compassivo.

— Não, não! — exclamou dando uma palmadita animadora no ombro do velho. — Sente-se! Aber Herr Schultz pede-lhe «encarecidamente» que não o «olhe» com tanta «insistência». É «conhecido» na corte...

 

(*) Mas o senhor (Em alemão, no texto original) (N. do T )

 

Porém, o infeliz nada compreendia. Agitou-se ainda mais que anteriormente, inclinou-se para apanhar o seu velho lenço azul esfarrapado, que lhe caíra do chapéu, e começou a fustigar o cão que continuava estendido sem se mexer, no chão, e parecia bem ferrado no sono, com o focinho entreas patas dianteiras.

Azorka! Azorka! — gritou o velho com voz senil e tremente.

— Azorka!

Azorka permanecia impassível.

Azorka! Azorka! — repetiu ansiosamente o velho, dando com o bastão no cão.

Mas este continuou na mesma posição.

O bordão tombou das mãos do velho. Agachou-se, pôs-se de joelhos e com ambas as mãos levantou o focinho de Azorka. Pobre Azorka! Estava morto. Morrera silenciosamente aos pés do dono, quem sabe se de velhice, se de fome. O velho contemplou-o num instante, transtornado, como se lhe fosse impossível compreender que Azorka pudesse ter morrido; depois, em silêncio, inclinou-se sobre o seu defunto servidor e roçou o rosto pálido pelo focinho frio do cão. Houve um minuto de silêncio. Estávamos todos comovidos... Finalmente o infeliz levantou-se, muito pálido. Tremia como se fosse atacado de febre.

— Pode ser embalsamado — disse o compassivo Múller, desejoso de consolar um pouco o velhote. — Pode ser embalsamado; Fiodor Karlovitch Krieger é «mestre» nessa arte — afirmou Múller apanhando do solo o bastão e entregando-o ao velho.

— Sim; isso faço eu bem — confirmou o próprio Herr (l) Krieger, chegando-se ao primeiro plano.

Era um alemão esguio, seco e afável, com uns cabelos eriçados e revoltos, olhinhos diminutos e nariz recurvo.

— Fiodor Karlovitch Krieger tem muito jeito para «fazer» todo o género de excelentes «trabalhos» de embalsamento — acrescentou Múller, que começava a entusiasmar-se com a sua ideia.

 

(’) Senhor (Em alemão, no original) (N do T.)

 

— É verdade que tenho muito jeito para «fazer» toda a espécie de excelentes «trabalhos» de «embalsamento» — tornou a dizer Herr Krieger — e embalsamarei o seu «contrapeso, de graça» — acrescentou num ímpeto de generoso desinteresse.

— Isso não; pagar-lhe-ei a «si» o seu «trabalho» — exclamou Schultz, pondo-se duplamente vermelho, arrebatado também de generosidade e considerando-se causa inocente daquela desdita.

O velho escutava tudo aquilo com cara de não compreender e continuava com o corpo a tremer.

— Não se vá embora! Beba um copito de conhaque do melhor! — exclamou Míiller ao ver que o enigmático cliente se dispunha a sair.

Trouxeram-lhe o conhaque. O velho, maquinalmente, pegou no copo; mas como a mão lhe tremia, antes que chegasse a levá-lo aos lábios entornou metade no chão e, sem beber uma gota, voltou a pô-lo sobre o balcão. A seguir, esboçando um sorriso estranho, que não tinha qualquer relação com o caso, com passo apressado, desigual, saiu da confeitaria deixando ali Azorka. Estávamos todos atónitos; ouviram-se exclamações.

— Schwerhoth! W as fur eine Geschichte! (l) — diziam os alemães olhando uns para os outros.

Lancei-me em perseguição do velho. A alguns passos da confeitaria, do lado direito da saída, há uma ruela estreita e escura, ladeada de casas enormes. Uma coisa me dizia que o velho devia infalivelmente ter ido por aí. A segunda casa da direita estava em construção e toda cheia de andaimes. A paliçada que a circundava avançava quase até ao meio da rua; junto da paliçada tinham posto um passadiço de tábuas para os transeuntes. Num recanto obscuro, que a paliçada formava com a casa vizinha, encontrei o velho. Estava sentado no extremo do passadiço de tábuas e segurava a cabeça com ambas as mãos, de cotovelos apoiados nos joelhos. Sentei-me ao seu lado.

Oiça — disse-lhe, sem saber bem por onde começar não se aflija por causa de Azorka. Venha, que o levarei a sua casa. Acalme-se. vou buscar um trem. Onde mora?

O velho não me respondeu. Eu já não sabia o que havia de fazer. Por ali não passava ninguém. De repente ele pegou-me na mão.

Sufoco! — exclamou com voz débil, dificilmente

perceptível. — Sufoco!

— Vamos para sua casa! — exclamei eu obrigando-o a levantar-se. — Vai tomar um pouco de chá e deitar-se... Eu volto já com um trem. E chamo o médico. Conheço um...

É provável que lhe tenha dito muito mais coisas. O velho conseguiu levantar-se; porém, mal se pusera em pé, deixou-se cair de novo sobre o chão e começou a resmungar não sei o quê, com aquela sua voz confusa e apagada. Inclinei-me para ele e consegui ouvir:

— Em Vassilievski Ostrov — murmurou —, na sexta rua... sex...ta rua. — E calou-se logo.

— Mora em Vassilievski? Pois não ia por bom caminho, porque fica à esquerda e não à direita. Eu vou levá-lo...

O velhote não se mexia. Peguei-lhe pela mão, mas essa mão desprendeu-se como morta. Olhei-lhe para o rosto, inclinei-me sobre o seu corpo... Estava morto! Tudo aquilo me parecia um sonho.

Esta aventura acarretou-me muitos trabalhos, durante os quais a minha febre acabou por passar. Pus-me logo à procura da morada do velho. No entanto, ele não vivia em Vassilievski, mas a dois passos do próprio sítio em que morreu, na casa Klugen (*), num 5.º andar de uma água-furtada, num apartamento independente, composto de um insignificante vestíbulo e de um quarto grande mas de tecto muito baixo, com três frestas à laia de janelas. Vivia na maior miséria. O mobiliário reduzia-se a uma mesa, duas

 

f1) Que infelicidade’ Mas que história’ (Em alemão, no texto original) (N. do T )

( ) Os prédios eram designados pelo nome de proprietário (N do T )

 

cadeiras e um divã velhíssimo, duro como uma pedra, e do qual, por todos os lados, saía a palha; este -era todo o seu mobiliário. O fogão, pelos vistos há muito que não se acendia; também ali não se viam velas. Estou agora convencido de que o velho ia a casa do Miiller só com o fim de encontrar ali luz e calor. Em cima da mesa havia uma bilha de barro vazia e uma velha côdea de pão duro. No que respeita a dinheiro, nem um copeque. Nem sequer se encontrou a roupa branca necessária para lhe fazer a mortalha; foi uma pessoa que ofereceu uma camisa. Era evidente que não podia viver assim, sozinho, daquela maneira, e era provável que, ainda que de longe em longe, alguém viesse visitá-lo. Na gaveta da mesa estava guardado o seu passaporte. O defunto era estrangeiro, mas súbdito russo; chamava-se Jeremias Smith, era mecânico e tinha setenta e oito anos. Em cima da mesa estavam dois livros: um compêndio de geografia e o Novo Testamento, na versão russ’a, com as margens riscadas a lápis e marcadas com as unhas. Adquiri esses livros para mim. Fiz perguntas aos vizinhos, ao senhorio; pouco ou nada sabiam acerca dele. Havia muitos inquilinos naquele prédio, quase todos operários alemães, que ocupavam dependências mobiladas e com pensão. O administrador do prédio, que era pessoa de condição, também não soube dizer-me grande coisa do seu falecido inquilino, a não ser que alugava aquele quarto por seis rublos mensais, que o morto vivera ali quatro meses, mas que nos dois últimos não tinha pago nem um só copeque. e por isso chegara até a ver-se obrigado a despedi-lo. Perguntei-lhe se não costumava vir ninguém visitá-lo. Porém, a essa pergunta ninguém soube dar uma resposta satisfatória. O prédio era grande e entrava muita gente naquela espécie de arca de Noé. Seria impossível lembrarem-se de todos. O porteiro, que vivia ali havia já cinco anos, e certamente teria podido dar-me algumas informações, fora para a terra havia umas duas semanas, com os pais, deixando a substituí-lo um sobrinho, um rapaz novo que ainda não conhecia nem sequer a metade dos moradores. Não sabia muito bem como ia terminar tudo aquilo; o certo

é que acabaram por sepultar o morto. Naqueles três dias, entre várias coisas que tive de fazer, fui a Vassilievski Ostrov, na sexta rua, e mal aí cheguei logo tive de me rir de mim próprio. Que podia eu encontrar na sexta rua senão uma enfiada de casas vulgares? No entanto — dizia para comigo —, por que motivo o velho, ao morrer, mencionara a sexta rua e Vassilievski Ostrov? Não estaria a delirar?

Voltei a ver o quarto desalugado de Smith e agradou-me. Aluguei-o para mim. O essencial era tratar-se de um quarto grande, ainda que de tecto muito baixo, tanto que, de princípio, tinha sempre a impressão de que ia bater nele com a cabeça. Entretanto, não tardou que me acostumasse. Por seis rublos mensais não era possível encontrar nada melhor. Seduziu-me a sua independência; não me restava senão regular a questão do serviço, porque sem ter alguém que nos faça um serviço é impossível viver. O porteiro, a princípio, ofereceu-se para subir ao meu andar pelo menos uma vez por dia e atender-me no mais necessário. «E quem sabe — pensava eu — se não virá alguém procurar o velho.» Entretanto, tinham passado já cinco dias depois da sua morte e ninguém ainda aparecera.

 

Por esse tempo, quer dizer, há um ano, ainda eu colaborava em jornais, redigindo artigos, e ainda acreditava firmemente que havia de chegar a escrever algo de extraordinário, de muito bom. Trabalhava então num romance extenso, mas a coisa parou quando caí doente num hospital, e, pelos vistos, estou condenado a uma morte rápida. E se tenho de morrer em breve para que hei-de escrever?

Sem querer, estou constantemente a recordar esse doloroso ano passado da minha vida. Quero agora descrevê-lo todo, pois, se a mim próprio não proporcionasse esta ocupação, morreria de tristeza. Todas essas passadas impressões me põem, num verdadeiro transe de paixão e de tortura. Mas, passadas a palavras escritas, hão-de tomar um aspecto mais tranquilizador, mais sereno; tornar-se-ão menos semelhantes a um delírio, a um pesadelo. Isto é o que eu penso. O próprio mecanismo da caneta só por si já é benéfico: acalma, refreia, desperta em mim os antigos hábitos de escritor, transforma as minhas evocações e sonhos dolorosos num trabalho, numa ocupação... Sim, é uma boa ideia. Além disso deixo como legado o meu manuscrito ao enfermeiro, ainda que as minhas memórias lhe venham a servir unicamente para tapar as janelas quando chegar a ocasião de lhes pôr as vidraças de Inverno.

No entanto, depois disto tudo, não sei porque razão comecei a minha narrativa pelo meio. Mas, como vou contar tudo, é preciso começar pelo princípio. Para mais, a minha autobiografia não há-de ser muito extensa.

Não nasci aqui, mas bem longe, no distrito de... Quero acreditar que os meus pais eram boas pessoas, no entanto deixaram-me órfão muito cedo e fui assim criado em casa de Nikolai Serguieitch Ikmeniev, um modesto proprietário, que me acolheu por dó. Tinha apenas uma filha, Natacha, mais nova que eu três anos. Criámo-nos juntos, como irmão e irmã. Oh! Minha doce infância! Como te deploro e lamento agora que tenho vinte e cinco anos, e ao morrer somente a ti recordarei com entusiasmo e gratidão! Então, o céu era tão límpido, com um sol tão pouco petersburguês, os nossos pequenos corações latiam com tal alegria e alvoroço! Então, à volta tínhamos campos e bosques e não um montão de pedras inertes, como agora. Que maravilhosos o jardim e o parque de Vassiiievskoie, de que Nikolai Serguieitch era administrador! Nesse jardim, Natacha e eu costumávamos brincar; por detrás havia um cerrado e triste bosque, no qual um dia nos perdemos os dois... tempos lindos, dourados! A vida começava a. aparecer-nos misteriosa e atraente, e era um prazer familiarizarmo-nos com ela. Então, afigurava-se-nos que atrás de cada arbusto e de cada árvore vivia um ser misterioso e desconhecido; o mundo das aparências confundia-se com o da realidade; e quando nos fundos vales se adensava a bruma da tarde e em faixas cinzentas e sinuosas se ia enroscando entre a vegetação bravia que trepava pela vertente pedregosa da nossa grande encosta, Natacha e eu, mesmo no extremo do cume, de mãos dadas, olhávamos para o precipício e ficávamos à espera que alguém viesse lá de baixo ter connosco ou surgisse de entre a névoa. Os contos da nossa ama eram então a pura, a indubitável verdade. Em certa ocasião, já muito tempo depois, tive oportunidade de fazer recordar a Natacha como nessa época nos presentearam uma vez com um livro de leituras infantis, e como imediatamente fomos para o jardim, para junto do tanque, onde, à sombra de um velho e frondoso castanheiro, tínhamos o nosso predilecto banco verde, e como ali nos sentámos e nos pusemos a ler um conto de fadas que se chamava Alphonso et Daltnda. Ainda hoje não posso lembrar-me dessa historiazinha sem sentir um estranho tumulto no coração; e quando relembrei a Natacha, há um ano, as duas primeiras linhas — «Afonso, o herói do meu conto nasceu em Portugal; seu pai foi D. Ramiro, etc.» —, por um pouco que não me pus a chorar. É certo que isto foi um disparate e por isso Natacha sorriu tão estranhamente do meu entusiasmo. Para mais ela pensou logo isso, nessa ocasião (lembro-me), e para consolar-me pôs-se ela própria a evocar o passado. Palavra após palavra, também ela se ia comovendo. Inesquecível essa noite, rememorámos tudo, tudo... Quando me enviaram à capital do distrito, para um colégio interno — Senhor! Como chorei então! — e quando nos voltámos a separar, na altura em que deixei para sempre Vassiiievskoie! Por essa altura tinha já terminado os estudos no colégio e mudei-me para Petersburgo para dar entrada na Universidade. Tinha eu dezoito anos e ela quinze. Diz Natacha que eu era tão esganifrado que ninguém podia olhar-me que não sentisse vontade de rir. No momento da despedida chamei-a à parte, com a intenção de lhe dizer algo de terrivelmente sério; porém, a língua paralisou-se-me logo e não consegui dizer nada. Recorda ela que eu estava muito perturbado. E assim se frustrou a nossa conversa. Eu não sabia o que havia de dizer, e ela é possível que também não soubesse; senão talvez me tivesse compreendido. A única coisa que fiz foi pôr-me a chorar tristemente e acabei por me afastar sem ter dito nada. Voltámos a encontrar-nos em Petersburgo, haverá dois anos. Viera então o velho Ikmeniev ali para tratar da sua demanda e eu acabara, havia pouco, de me lançar na literatura.

 

Nikolai Serguieitch Ikmeniev era originário de uma boa família, que, entretanto, de há muito vinha empobrecendo. Mas apesar disso herdara ainda do pai uma boa propriedade de cento e cinquenta almas. Aos vinte anos resolveu ingressar nos hussardos. Tudo caminhava pelo melhor quando no sexto ano de serviço lhe aconteceu perder todos os bens ao jogo, numa noite de azar. Não conseguiu dormir durante essa noite. Na noite seguinte voltou a apresentar-se à banca de jogo e apostou numa carta sobre o cavalo a última coisa que lhe restava. Ganhou essa carta, e depois outra, e mais uma terceira, de tal maneira que passada meia hora de jogo recuperara uma das suas propriedades, a Ikmenievka, que contava cinquenta almas, segundo o último censo. Não continuou a jogar e no dia seguinte pediu a reforma. Mas perdera cem almas irremediavelmente. Passados dois meses deram-lhe a reforma no grau de tenente e foi estabelecer-se na sua granja. Depois, jamais na sua vida falou da sua perda ao jogo e, apesar da sua indiscutível bondade, decerto que jogaria à pancada com quem tivesse o atrevimento de vir recordar-lha. Na aldeia entregou-se conscienciosamente ao cuidado das suas terras, e aos trinta e cinco anos casou com uma rapariga pobre mas de boa linhagem, Ana Andreievna Chumilova, que não trazia dote mas fora educada num conhecido internato da capital, dirigido por uma emigrada, a senhora de Mont-Revêche, do que Ana Andreievna se orgulhou toda a vida, se bem que ninguém pudesse jamais adivinhar em que consistia essa educação. Serguieitch revelou-se um excelente administrador. Todos os proprietários dos arredores aprendiam a economizar com ele. Passaram alguns anos, quando, na quinta próxima, no lugarejo de Vassilievskoie, que contava novecentas almas, se apresentou, vindo de Petersburgo, o seu dono, o príncipe Piotre Alexandrovitch Valkovski. A sua chegada produziu em todos aqueles arredores uma grande impressão. O príncipe era um homem ainda novo, se bem que não fosse já um rapaz; ocupava uma elevada posição, possuía relações distintas, era bem apessoado, dispunha de dinheiro e, finalmente, era viúvo, o que naturalmente era particularmente interessante para as mulheres e raparigas de todo o distrito. Falava-se do brilhante acolhimento que lhe dispensara o governador da capital, do qual era ainda parente em certo grau, e dizia-se que «todas as senhoras da capital tinham ficado encantadas com a sua amabilidade», etc., etc. Numa palavra, era um desses brilhantes representantes da alta sociedade petersburguesa, que raramente aparecem pela província e que, quando tal acontece, produzem um efeito sensacional. O príncipe, entretanto, estava bem longe de ser realmente amável, sobretudo com aqueles de quem não necessitava e aos quais considerava inferiores. com os seus vizinhos de quinta, entendeu por bem não entabular relações, o que lhe granjeou muitos inimigos. E por isso todos ficaram muito admirados quando um dia ele se lembrou de fazer uma visita a Nikolai Serguieitch. É certo que Nikolai Serguieitch era um dos seus mais próximos vizinhos. Em casa dos Ikmenieves produziu o príncipe uma grande impressão. Quem ficou mais entusiasmada foi Ana Andreievna. Passado pouco tempo já ele entrava ali como em sua casa, ia vê-los todos os dias, convidava-os para a sua quinta, procurava ser engraçado, contava anedotas, passava as mãos pelo seu detestável piano, cantava.

Os Ikmenieves não saíam do seu espanto: como seria possível que se pudesse dizer de um homem tão fino e simpático que era orgulhoso, altivo, egoísta, como proclamavam em coro todos os vizinhos? Temos de admitir que, efectivamente, o príncipe logo de princípio simpatizara com Nikolai Serguieitch, homem simples, recto, franco e nobre. Aliás, não tardou que tudo se explicasse. O príncipe viera a Vassilievskoie com a intenção de demitir o seu administrador, um alemão libertino, ambicioso, um agrónomo já de cabelos brancos e de nariz aquilino, mas que apesar de todas estas vantagens roubava com o maior descaramento e, como se isto não bastasse, fizera morrer à pancada alguns campónios. Finalmente, Ivan Karlovitch era um homem esperto e sempre pronto para se aproveitar das ocasiões, dizendo muitas bravatas e falando constantemente da honestidade germânica; apesar de tudo isso foi expulso e até com certa dose de enxovalho. O príncipe precisava de um administrador e pôs os seus olhos em Nikolai Serguieitch, homem muito entendido e honestíssimo, a respeito do qual seria impossível conceber a mínima suspeita. Ao que parece, o príncipe desejara que fosse o próprio Nikolai Serguieitch a oferecer-se para o cargo de administrador, porém tal não aconteceu; uma bela manhã foi o próprio príncipe que lhe fez essa proposta, sob a forma de um amistoso e insistente pedido. A princípio, Ikmeniev recusou, mas a importância do ordenado seduziu Ana Andreievna, e as amabilidades redobradas do interessado acabaram por dissipar as últimas hesitações. O príncipe alcançara o seu objectivo. Temos de concordar que era um grande conhecedor das pessoas. No curto período do seu convívio com Ikmeniev percebeu logo perfeitamente com quem tratava e compreendeu que, a esse, teria de cativá-lo de maneira amistosa e cordial, de atrair a sua amizade, e que sem isso o dinheiro de pouco serviria. Necessitava de um administrador no qual pudesse confiar cegamente e para sempre, a fim de nunca mais ter de aparecer em Vassilievskoie, conforme era sua intenção. A sedução que exerceu em Ikmeniev foi tão forte que este acreditou na sua amizade com plena franqueza. Nikolai Serguieitch era destes indivíduos bons e ingenuamente românticos, tão abundantes por aqui, na Rússia, que nem vale a pena falar deles, e que, se tomam afeição a uma pessoa (e sabe Deus, que às vezes), entregam-lhe toda a sua alma e levam as demonstrações da sua adesão até ao ridículo.

Passaram uns anos. A propriedade do príncipe prosperava As relações entre o proprietário de Vassilievskoie e o seu administrador mantinham-se também sem o menor desentendimento de qualquer das partes, reduzindo-se exclusivamente a assuntos de carácter prático. O príncipe, sem intrometer-se nunca naquilo que Nikolai Serguieitch determinava, dava-lhe às vezes certos conselhos que causavam a admiração de Ikmeniev pela sua índole excepcionalmente prática e oportuna. Era evidente que não só não gostava de fazer gastos supérfluos, mas que também sabia economizar. Cinco anos depois da sua visita a Vassilievskoie, enviou uma procuração a Nikolai Serguieitch para a compra de uma magnífica propriedade de quatrocentas almas, no mesmo distrito. Nikolai Serguieitch estava entusiasmado; os êxitos do príncipe, os boatos sobre a sua prosperidade, tocavam-lhe a alma como se se tratasse de um irmão seu. E o seu entusiasmo atingiu o cúmulo quando o príncipe, em certa ocasião, lhe demonstrou a grande confiança que nele depositava. Mas ao chegar a este ponto é indispensável que eu recorde aqui alguns pormenores particulares da vida deste príncipe Valkovski, o qual, de certo modo, é uma das principais personagens da minha narrativa.

 

Já anteriormente disse que era viúvo. Casara muito novo e casara por interesse. De seus pais, que irreparavelmente se tinham arruinado em Moscovo, quase nada herdou.

Vassilievskoie estava hipotecada e reipotecada; pesavam sobre essa propriedade dívidas enormes. O príncipe, que nesse tempo contava então vinte e dois anos, e se vira obrigado a colocar-se em Moscovo, não sei bem em que repartição, não possuía nem um copeque e entrava nesta vida «como uma pobre vergôntea de um velho tronco». O casamento com a filha já durázia de um lavrador-negociante foi a sua salvação. O sogro sem dúvida que o ludibriou no que respeitava ao dote, mas, apesar de tudo, com o dinheiro da mulher pôde resgatar as terras do pai e levantar cabeça outra vez. A filha do comerciante, a mulher do príncipe, mal sabia escrever e não era capaz de dizer duas palavras seguidas; feia de cara, apenas possuía uma enfatuada dignidade, e era também boa e dócil. O príncipe soube tirar completo partido daquela dignidade; logo no primeiro ano do casamento abandonou a mulher, que entretanto lhe dera um filho, deixando-a em companhia do sogro, em Moscovo, enquanto ele partia para o distrito de..., onde, graças à influência de uma conhecida personagem de Petersburgo, alcançou uma posição muito brilhante. A sua alma estava sedenta de honrarias, de distinções, de uma bela carteira, e compreendendo que com a mulher não poderia viver em Petersburgo nem em Moscovo resolveu, na esperança de conseguir algo de melhor, iniciar a sua carreira pelas províncias. Diz-se que já no primeiro ano da sua vida com a esposa fizera sofrer muito a infeliz com os seus maus tratos. Tais boatos mortificavam sempre Nikolai Serguieitch, que se punha com veemência na defesa do príncipe, afirmando que ele era incapaz de comportar-se de um modo tão vil. Até que ao fim de oito anos a princesa morreu e em seguida o viúvo instalou-se em Petersburgo. Aí causou também uma certa impressão. Novo ainda, de bom parecer, rico, dotado de algumas brilhantes qualidades, de indiscutível habilidade, de bom gosto e de permanente bom humor, apresentou-se não como quem procura protecção e boa sorte, mas com certa independência. Dizem que, de facto, possuía algo de fascinante, de arrebatador e de poderoso. Agradava extraordinariamente às mulheres e as suas relações com uma

beldade da alta sociedade valeram-lhe uma fama escandalosa. Desbaratava o dinheiro, apesar de um sentido inato da economia, que roçava às vezes pela mesquinhez; jogava forte às cartas e nem sequer franzia o sobrolho perante as perdas mais elevadas. Mas não viera para Petersburgo para se divertir; o que ele desejava era estabelecer-se definitivamente na capital e consolidar a sua carreira, o que conseguiu. O conde Nainski, seu ilustre parente, que a princípio, por ele lhe ter aparecido como um solicitante, não lhe prestara atenção, impressionado agora pelos seus triunfos na sociedade julgou possível e até distinto fixar nele a sua particular atenção e dignou-se receber na sua casa, para o educar, o filho dele, que contava então oito anos. Foi nesse tempo que se deu a visita do príncipe a Vassilievskoie e o seu conhecimento com Ikmeniev. Finalmente, depois de obter por intervenção do conde um lugar importante numa das principais embaixadas, partiu para o estrangeiro. De novo voltaram a correr confusos rumores acerca dele; falavam de certa aventura aborrecida que lhe acontecera no estrangeiro; porém, ninguém podia dizer ao certo do que se tratava. Soube-se apenas que tinha conseguido comprar ainda mais quatrocentas almas, segundo se disse. Regressou do estrangeiro muitos anos depois com um cargo importante e ocupou imediatamente em Petersburgo uma posição elevada. Pela propriedade de Ikmeniev espalhou-se o boato de que ia casar-se em segundas núpcias, ligando-se a uma distinta, opulenta e poderosa família. «Vão vê-lo feito num grande senhor!», exclamou Nikolai Serguieitch esfregando as mãos de contente. Eu estava então em Petersburgo, na Universidade, e recordo-me de que Ikmeniev me escreveu de propósito para falar-me disso e perguntar-me se eu sabia algo de positivo sobre aqueles boatos de casamento. Escreveu também ao príncipe pedindo que me protegesse, mas o príncipe não respondeu à sua carta. Eu, a única coisa que sabia era que o filho, que fora educado, primeiro em casa do conde, e depois no liceu, terminara os seus estudos de ciência aos dezanove anos. Foi isto que comuniquei a Ikmeniev, e também lhe disse que o príncipe queria muito ao filho, o tratava muito bem e começava já a preocupar-se com o seu futuro. Tudo isso sabia eu por intermédio de um condiscípulo meu que conhecia o jovem príncipe. Por esse mesmo tempo, numa bela manhã, recebeu Nikolai Serguieitch uma carta do príncipe que lhe provocou o mais extraordinário assombro... O príncipe, que até então, como já disse, nas suas relações com Nikolai Serguieitch se limitava pura e simplesmente a tratar dos assuntos da propriedade, escrevia-lhe agora nos termos mais minuciosos, francos e amistosos, acerca das suas circunstâncias familiares; lamentava-se do filho, dizia-lhe que o desgostava muito pela sua conduta, mas que, naturalmente, não se deviam tomar muito a sério aquelas diabruras de garoto (como se vê, esforçava-se por desculpá-lo); no entanto, estava disposto a castigá-lo, a meter-lhe um certo medo, ou fosse a enviá-lo por uma temporada para a aldeia, colocando-o sob a vigilância de Ikmeniev. Acrescentava o príncipe que confiava totalmente no «seu excelente e nobilíssimo Nikolai Serguieitch, e em especial em Ana Andreievna», pedindo a ambos que acolhessem aquele ciclone na sua família, procurassem assentar-lhe a cabeça no seu lugar, lhe tomassem afecto e, se fosse possível, e era isso o principal, corrigissem o seu estouvado carácter, «inculcando-lhe os princípios de vida salutares e severos, os quais tão necessários são ao homem». Escusado será dizer que o velho Ikmeniev se encarregou do assunto com entusiasmo. O jovem príncipe chegou e ele recebeu-o em sua casa como se fosse seu próprio filho. Não tardou que Nikolai Serguieitch criasse por ele viva afeição e o mesmo se deu com Natacha, e a tal ponto que ainda depois, quando rompera já as relações com o príncipe pai, o velho se recordava com gosto do seu Aliocha, que era o nome por que ele costumava tratar Alexiei Petrovitch. Este era, no fundo, um rapaz extremamente simpático, gentil, fraco de carácter e nervoso como uma mulher, mas ao mesmo tempo jovial e ingénuo, -com uma alma franca e capaz dos mais nobres sentimentos, um coração amoroso, sincero e agradecido... Tornou-se o ídolo dos Ikmenieves. Apesar dos seus dezanove anos era todavia uma autêntica criança. Tornava-se difícil imaginar por que o teria o pai enviado para ali, que, segundo disse já, lhe queria tanto. Murmuravam que o rapaz levava em Petersburgo uma vida ociosa e louca, que não queria entrar para o serviço do Estado e o pai estava muito descontente por essa razão. Nikolai Serguieitch nada quis perguntar a Aliocha, porque seu pai, pelos vistos, passava deliberadamente por alto, na carta, a verdadeira causa do afastamento do filho. Para mais corriam rumores relativos a certa imperdoável loucura de Aliocha a não sei que amores com uma dama e a um duelo; o mesmo quanto a perdas inverosímeis ao jogo; chegavam inclusivamente a falar de uns dinheiros alheios que ele teria gasto em proveito próprio. Diziam também que o príncipe resolvera aquilo de afastar de si o filho, não porque este fosse culpado de alguma coisa, mas por causa de certas considerações de ordem pessoal e egoísta. Nikolai Serguieitch afastava com repugnância tais suposições, tanto mais que Aliocha queria muitíssimo a seu pai, com o qual não convivera durante toda a sua infância e adolescência; falava dele com entusiasmo arrebatado; era evidente que estava debaixo da sua influência. Aliocha costumava falar também de certa condessa, pela qual bebiam os ares, o pai e o filho, que dera preferência a Aliocha, o que muito aborrecera o príncipe. Contava sempre esta história com infantil orgulho, por entre risadas ruidosas e joviais; porém, Nikolai Serguieitch imediatamente se interpunha, cortando-lhe a palavra. Aliocha afirmava também que o pai queria casá-lo.

Havia quase um ano que estava exilado, escrevendo de quando em quando cartas respeitosas ao pai, nos prazos combinados e, por fim, a tal ponto se aclimatara a Vassilievskoie que no fim desse ano, quando o príncipe veio em pessoa à aldeia (do que oportunamente prevenira Ikmeniev), foi ele, o próprio desterrado, que acabou por pedir a seu pai que o deixasse continuar ali o mais tempo possível, garantindo-lhe que a vida rústica... era a sua autêntica vocação.

Todas as resoluções e desmandos de Aliocha provinham do seu temperamento, delicado e nervoso no mais alto grau; do seu fogoso coração, do seu aturdimento, que às vezes tocava as raias da insensatez; da sua extraordinária facilidade para se deixar submeter a qualquer influência e da sua absoluta falta de vontade. Entretanto, o príncipe escutou o pedido do filho com certa apreensão.

Nikolai Serguieitch tinha agora uma certa dificuldade em reconhecer o seu antigo «amigo»: o príncipe Piotre Alexandrovitch sofrera uma modificação considerável, tornara-se subitamente muito desconfiado para com Nikolai Serguieitch; sobretudo na revisão das contas da propriedade mostrava uma avidez repulsiva, uma avareza e meticulosidade incompreensíveis. Tudo isso afligiu profundamente o excelente Ikmeniev que, durante muito tempo, nem queria acreditar nessas coisas.

Dessa vez tudo correu de maneira diferente daquela em que o príncipe fizera a sua primeira visita a Vassilievskoie, catorze anos atrás; agora o príncipe travava conhecimento com todos os seus vizinhos, sobretudo com os de categoria importante. Em compensação não visitou nem só uma vez Nikolai Serguieitch e comportou-se com ele como se fora seu subordinado. Até que de repente se deu um acontecimento extraordinário: sem motivo aparente, produziu-se uma ruptura violenta entre o príncipe e Nikolai Serguieitch. Soaram frases duras, ofensivas, proferidas por ambas as partes. Indignado, Ikmeniev afastou-se de Vassilievskoie; porém, as coisas não ficaram por aí. Por todos aqueles arredores começaram a difundir-se boatos repugnantes. Afirmavam que Nikolai Serguieitch, adivinhando o carácter do príncipe mais novo, soubera aproveitar-se de todos os seus defeitos; que a sua filha Natacha (que nessa ocasião fizera já dezoito anos) resolvera dar volta ao juízo do jovem, que contava vinte; que os pais protegiam aqueles amores, ainda que fingissem não dar por eles; que a astuta e «imoral» Natacha acabara por enfeitiçar o rapaz; que durante todo aquele ano, graças aos seus ardis, não vira uma só das raparigas autênticas nobres, como tantas poderia ter conhecido nas respeitáveis casas dos proprietários vizinhos. Asseguravam, finalmente, que os noivos haviam combinado entre si irem casar-se a quinze ventas de Vassilievskoie, na aldeia de Grigoriev, segundo as aparências às escondidas dos pais de Natacha, os quais, entretanto, estavam a par de tudo, até nos mais pequenos pormenores, e assediavam a filha com os seus abomináveis conselhos. Em resumo: um livro inteiro seria pequeno para recolher tudo quanto as comadres da freguesia vieram a dizer sobre aquela história. E o mais espantoso era que o príncipe acreditava piamente em tudo isso e chegou até a vir a Vassilievskoie exclusivamente por essa razão, em consequência de certa delação anónima que da província lhe enviaram para Petersburgo. Sem dúvida que alguém que conhecesse Nikolai Serguieitch não acreditava nem uma só palavra de tudo aquilo de que o inculpavam; o certo era que, como de costume, todos se alvoroçaram, falavam, comentavam, viravam a cabeça e... pronunciavam uma sentença irrevogável. Ikmeniev era suficientemente orgulhoso para se pôr a justificar a filha perante aquelas linguareiras e, com toda a severidade, proibiu à mulher que entrasse em quaisquer explicações com os vizinhos sobre o assunto. Quanto a Natacha, que durante um ano inteiro fora o alvo daquelas calúnias, nada sabia de semelhantes murmúrios; em casa ocultavam-lhe tudo com o maior cuidado, e por isso vivia tão alegre e inocente como uma mocinha de doze anos.

Entretanto, o desentendimento entre o príncipe e Ikmeniev tornava-se cada vez mais fundo. E os boateiros também não adormeciam. Apareceram delatores e testemunhas, e o príncipe pôde comprovar, por fim, a que a administração durante tantos anos desempenhada por Nikolai Serguieitch estava bem longe de se distinguir por uma honestidade exemplar. Mais: havia três anos, com o pretexto da venda de uma mata, Nikolai Serguieitch guardara para si mil rublos de prata. Do que podia apresentar provas claras perante os juizes, baseadas na lei. Tanto mais que na venda dessa mata procedera sem procuração legal do príncipe e por seu-livre alvedrio, e só depois o prevenira persuadindo-o de que essa venda fora imprescindível, e remetendo-lhe uma quantia muitíssimo inferior à que realmente recebera. Claro que tudo isto eram puras calúnias, como depois se demonstrou; mas o príncipe assim o afirmava e, apoiado por testemunhas, arrastou Nikolai Serguieitch perante os tribunais. Ikmeniev não pôde suportar mais e respondeu com insultos igualmente fortes; deu-se uma cena terrível. O processo judicial começou imediatamente. Nikolai Serguieitch, por falta de alguns documentos, e, sobretudo, de influências, e também por falta de experiência em tais assuntos, começou desde o princípio a perder terreno. Embargaram-lhe as terras. Irritado, o velho deixou tudo e resolveu finalmente mudar-se para Petersburgo, a fim de conduzir pessoalmente a sua parte na questão, deixando como administrador das suas terras um homem experimentado. Segundo parece, não tardou o príncipe a reconhecer de si para si que ofendera injustamente Ikmeniev. Porém, as ofensas de parte a parte foram tão graves que seria despropositado falar de reconciliação. O príncipe, enfurecido, pôs então em jogo todas as forças para conseguir que a questão se decidisse a seu favor, ou, o que vinha a dar no mesmo, para arrebatar ao seu ex-administrador o último pedaço de pão.

 

Vieram pois os Ikmenieves viver para Petersburgo. Não quero descrever o meu encontro com Natacha, de quem estive separado durante aqueles quatro anos e a quem não pudera esquecer nem um instante. Não sabia explicar o sentimento que ela me inspirava, mas ao vê-la agora de novo o meu primeiro pensamento foi que ela era a mulher que o destino me prometia. Pareceu-me logo que estava pouco desenvolvida e que continuava a ser a mesma rapariguinha de antes da nossa separação. Mas de dia para dia ia descobrindo nela um novo e ignorado encanto, que parecia ter ocultado até então... Que entusiasmo me provocavam essas descobertas! Durante os primeiros tempos da sua estada em Petersburgo, Ikmeniev mostrava-se irritável, bilioso; a sua causa não caminhava bem e ele’encolerizava-se e indignava-se, entregando-se por completo à sua papelada, sem querer saber dos outros para nada. Ana Andreievna, sua mulher, estava como que transtornada; Petersburgo fazia-lhe medo; suspirava e chorava recordando-se da terra onde vivera até então. Queixava-se de que Natacha estava em idade de casar e que não lhe apareciam pretendentes, do que se lamentava com uma grande franqueza comigo, certamente por não ter outra pessoa de mais confiança a quem fazer as suas confidências. Eu terminara então o meu primeiro romance; começava a minha carreira literária e, como principiante, não sabia para onde me voltar. Não dissera nada disto aos Ikmenieves, com medo de uma reprimenda, pois censuravam-me continuamente por viver na ociosidade, sem ofício nem benefício, e por não tentar arranjar uma colocação.

Meu pai adoptivo fizera-me amargas censuras, mas como essas censuras nasciam de um afecto paternal, não tive coragem de dizer-lhe aquilo em que me ocupava. Menti-lhe, disse-lhe que não conseguia encontrar emprego, se bem que fizesse tudo para consegui-lo. Um dia, Natacha, de lágrimas nos olhos, chamou-me de parte e disse-me que pensara no meu futuro; fez-me perguntas, quis saber como empregava o meu tempo e, como evitei dizer-lhe a verdade, obrigou-me a jurar-lhe que não consentiria nunca que a preguiça e a ociosidade provocassem a minha desdita. Não lhe disse o género de trabalho em que me ocupava, se bem que uma só palavra sua de encorajamento me trouxesse mais contentamento que os juízos mais favoráveis de todos os críticos juntos.

Até que o meu romance apareceu; já antes de sair à luz, produzira grande celeuma no mundo literário. B... (*) ficou

 

(’) Inicial de Bielmsky, o famoso crítico russo.

 

contente como uma criança, ao ler os meus escritos. Nunca senti tanta felicidade como nos primeiros momentos do meu triunfo; eu não comunicara nem lera a minha obra a ninguém; trabalhava a altas horas da noite, cheio de sonhos e de esperanças; trabalhava com paixão; vivia com as pessoas que eu próprio criava, como se fossem meus filhos, como seres que verdadeiramente existissem; amava-os; tomava parte nos seus sofrimentos e alegrias e chorava lágrimas sobre o infortúnio do meu herói.

Nem sei descrever quanto os alegrou, a Ikmeniev e a sua mulher, o rumor do meu êxito, se bem que a sua primeira impressão fosse de surpresa. Ana Andreievna não queria acreditar que aquele jovem escritor, a quem toda a gente elogiava fosse... eu próprio, aquele mesmo Vânia que... e punha-se a abanar a cabeça. O velho foi mais demorado em render-se à minha admiração, e quando os primeiros rumores lhe chegaram aos ouvidos veio falar comigo, muito assustado, a dizer-me que podia dar por perdida toda a esperança de entrar para o serviço do Estado e a falar-me da vida desordenada que, em geral, levavam os escritores.

Mas as apreciações favoráveis que de mim faziam os jornais, e algumas palavras de elogio que ouviu a pessoas nas quais tinha uma confiança que tocava a adoração, fizeram-no mudar de ideias. Os seus últimos escrúpulos desfizeram-se quando viu que o meu trabalho me trazia dinheiro e o que se podia ganhar com a literatura. Passou assim da dúvida à confiança plena; feliz como uma criança, com o meu êxito, entregou-se às maiores ilusões, aos sonhos mais brilhantes sobre o meu futuro. Todos os dias idealizava para mim novos triunfos e forjava um novo projecto. E que projectos! Começou até a demonstrar por mim uma certa consideração que antes não tinha. Entretanto, lembro-me de que no meio do seu entusiasmo voltavam a assaltá-lo as dúvidas antigas, e assim costumava dizer, às vezes: «Ser escritor, poeta, que coisa esquisita! Os poetas... alguma vez abriram caminho ou alcançaram honras? Nada havia a esperar desses escrevinhadores, desses enlambuzadores de papel!» Reparei que estas perplexidades lhe chegavam sempre há hora do crepúsculo (tenho bem gravado na memória tudo quanto respeita a esse tempo). Sobretudo a essas horas punha-se nervoso, impressionável e desconfiado. Natacha e eu sabíamo-lo e ríamo-nos de antemão. Eu fazia todo o possível por inculcar-lhe ideias mais optimistas, contando-lhe algumas anedotas de Sumarok (’), que fora nomeado general (2), ou de Derjavine (3), ao qual uma vez presentearam com uma tabaqueira cheia de moedazinhas de ouro; dizia-lhe que a imperatriz Catarina fizera uma visita a Lemonossov (4); falava-lhe de Puchkin, de Gogol...

Bem sei, meu filho, já sei isso tudo — respondia o velho, que talvez ouvisse essas histórias pela primeira vez na sua vida.’ — Quanto a ti, o que me consola um pouco, rapaz, é que não te dá para a versalhada. Os versos são absurdos e não me agradam. Acredita num velho que só deseja o teu bem é tempo perdido; que os colegiais façam versos, vá lá, agora num jovem da tua idade, seria caminhar direito para o manicómio. Puchkin pode ser um grande homem, ninguém diz menos disso, mas ao fim e ao cabo, na verdade, eu não o li muito. Versos e nada mais, e isto é bem efémero. A prosa é coisa diferente; com a prosa pode instruir-se o povo, falar do amor da pátria, da virtude... Não sei explicar-me bem, mas tu compreendes-me. É a amizade que me faz falar assim. Mas vamos lá a ver, lê — disse ele como remate, em tom protector, no dia em que por fim lhe levei o meu livro, quando nos encontrávamos todos reunidos à volta da mesa-redonda, depois do chá. — Lê-nos alguma

 

(’) Sumarok, poeta e dramaturgo do reinado de Isabel, filha de Pedro, o Grande

(2) Na Rússia existia também a categoria de general nos empregos civis, e correspondia à de conselheiro privado.

(3) Derjavine foi, de certa maneira, o poeta oficial da corte de Catarina II. Foi também ministro da Justiça. Nasceu em 1743 e morreu em 1816.

(4) Uma das personalidades mais notáveis da Rússia do séc. XVIII, depois do reinado de Pedro, o Grande: filho de um pescador, foi ao mesmo tempo poeta, historiador, gramático e físico. É sobretudo conhecido pelas suas odes à imperatriz Catarina.

 

coisa do que escrevinhaste. Deste muito que falar. Vamos, vamos a ver do que se trata.

Abri o livro e dispus-me a ler. O meu romance fora posto à venda nesse mesmo dia e quando consegui um exemplar corri com ele a casa dos Ikmenieves. Quanto me custara não lhe ter lido anteriormente algum trecho, mas o manuscrito estava nas mãos do editor! Natacha chorou de despeito e queixou-se de que os estranhos viessem a ler o meu livro antes dela... Por fim, todos se prepararam, à espera que a leitura começasse; o velho tomou um ar extraordinariamente solene, de crítico. Queria julgar severamente (fazer uma opinião por si mesmo). A velha Ana tinha também um aspecto mais solene que de costume; pouco faltou para que não pusesse uma touca nova para ouvir a leitura.

Havia já um certo tempo que ela percebia que eu olhava para a sua querida Natacha com um infinito amor, que o meu espírito estava suspenso do dela, que se me enevoava a vista quando lhe falava, e que Natacha, por sua vez, me olhava com uns olhos mais brilhantes que antigamente; surgira o tempo em que iam talvez realizar-se os meus sonhos dourados, chegar para mim a felicidade.

A velhota reparara já há algum tempo que o marido me elogiava de um modo excessivo e que nos olhava, à filha e a mim, de uma certa maneira... e alarmou-se. Eu não era nenhum conde, mesmo príncipe ou duque reinante! Nem sequer um conselheiro da instrução pública, com projectos, jovem, belo e com muitas condecorações! «Não sei porque o hão-de elogiar tanto... — pensava ela. — Escritor, poeta... Afinal, ao fim e ao cabo, que vem a ser um escritor?»

 

Li-lhes o meu romance todo de uma vez. Começámos imediatamente depois do chá e ficámos sentados até às duas da madrugada. A princípio o velho franziu o sobrolho. Esperava qualquer coisa de uma sublimidade que lhe fosse incompreensível, pelo menos algo de muito elevado, e em vez disso encontrou-se perante coisas que sucediam diariamente e que toda a gente sabia; as mesmas que aconteciam constantemente à nossa volta. Ainda se ao menos o meu herói fosse um homem de interesse excepcional! Alguma personagem histórica como Roslaviev ou luri Miloslavski... (!) Mas não. Punham na sua frente um pobre diabo, um modesto funcionário de labita coçada e sem botões, e isto contado na linguagem em que toda a gente fala... Era verdadeiramente extraordinário! Ana Andreievna olhava para o marido com ar interrogativo e um tanto enfadada, como se estivesse para dizer:

— Vale a pena imprimir um livro destes e, sobretudo, dar dinheiro por ele?

Natacha era toda atenção, escutava com grande interesse; não deixava um instante de olhar os meus lábios e a cada palavra que eu pronunciava movia os seus, tão bonitos. Que mais podia eu desejar? Já todos os meus ouvintes tinham os olhos rasos de lágrimas. Ana Andreievna chorava de verdade, compadecida do meu herói, de todo o coração e, segundo deduzia dos seus gestos, desejaria poder ajudá-lo nas suas desditas. O velho renunciara aos seus sonhos de grandeza e de elevação. «Logo desde o princípio se vê que não vais muito além disso. Mas está contado com simplicidade e chega-nos ao coração — disse. — Compreende-se e fixa-se na memória aquilo que acontece à nossa volta. Por esta história se vê que até o homem mais decaído e humilde continua a ser um homem e merece o nome de irmão.»

Natacha escutava, chorava e, às escondidas, por debaixo da mesa, apertava-me a mão com força. Acabou a leitura. Natacha levantou-se, com as faces vermelhas e os olhos rasos de pranto; de repente pegou-me na mão, beijou-me e saiu precipitadamente da sala. Os velhos trocaram um olhar.

 

(’) Roslaviev, luri Miloslavski: grandes romances históricos de Zagoskin, escritor do princípio do século XIX, que tiveram grande êxito.

 

— Hum! Que entusiasmo! — disse o pai admirado da ingenuidade da filha. — Não há nisto maldade nenhuma, é uma boa rapariga — acrescentou, olhando para a mulher, com o intento de desculpar a filha e também, de certo modo, a si próprio.

Ana Andréievna, porém, apesar da comoção que experimentara durante a leitura, mostrava agora uma cara de menos entusiasmo e parecia preparar-se para dizer:

«Alexandre da Macedónia pode ser um herói, mas isso não é razão para se ficar de cabeça à roda.»

Natacha não tardou em voltar, feliz e contente e, ao passar perto de mim, beliscou-me levemente. Ikmeniev queria apreciar «a sério» a minha obra; mas a alegria fê-lo esquecer o seu propósito.

— Muito bem, caro Vânia, muito bem — disse-me alvoroçado. — Isso saiu-te bem, melhor do que eu esperava, se bem que não seja nada de grande nem de sublime. Olha, eu tenho A Libertação de Moscovo, que li lá mesmo em Moscovo, e logo desde as primeiras linhas nos sentimos elevados pelos ares, como uma águia, meu rapaz... Este teu livro é mais simples e mais fácil de compreender. É justamente por isso que ele me agrada, por ser tão compreensível e tão real. Até me parece que tudo isso me aconteceu a mim próprio. E afinal, para que falar de coisas tão sublimes que ninguém entende? Ainda que, ao fim e ao cabo, não te ficaria mal se modificasses um pouco o teu estilo; só tenho a elogiar-te, mas creio que te falta, diz lá o que quiseres, um pouco de elevação... bom, agora já é tarde, já está impresso. Mas na segunda edição, pois terás de fazer uma segunda edição... E é que te dará mais dinheiro...

— É verdade, Ivan Petrovitch, que isto te deu muito dinheiro? — perguntou Ana Andreievna. — Oh! Meu Deus, quanto mais olho para ti, mais me custa a acreditar!

— O dinheiro que hás-de ganhar! Olha, Vânia — continuou Ikmeniev alegrando-se por instantes —, que isso não vale o que vale o serviço do Estado, mas, no fim de contas, sempre é uma carreira. Hão-de ler-te as pessoas mais importantes. Não dizes que Gogol recebe uma pensão e que o enviaram ao estrangeiro? Quem sabe se tu... hem? É capaz de ser ainda cedo de mais! Sim, deve ser ainda demasiado cedo, é preciso que escrevas outra coisa. Nesse caso, escreve, rapaz, e apressa-te, não te ponhas a dormir sobre os louros alcançados.

Dizia isto tão convencido, com tal bondade, que não tive coragem para cortar-lhe a palavra e refrear o seu entusiasmo.

— E se te dessem uma cigarreira para te animar! Quem sabe! Talvez te convidem para a corte — acrescentou com certa malícia, piscando o olho a Natacha. — Ou será ainda muito cedo para isso?

— bom, temo-lo já na corte! — disse a mãe ressentida.

— Um pouco mais e fazem-me general — disse eu a rir. O velho ria também com vontade; estava contentíssimo.

— Meu general, não deseja comer qualquer coisa? — disse Natacha, que entretanto preparara a ceia. E, soltando uma gargalhada, lançou-se nos braços do pai.

— Paizinho, que bom, paizinho! — gritava louca de entusiasmo.

— Bem, bem — dizia Ikmeniev também muito comovido. — Bem, bem, já chega... General ou não, vamos comer. Que coração tão sensível! — dizia, dando leves pancadinhas nas faces coradas de Natacha. — Afinal de contas, Vânia, é a minha amizade que me faz falar assim; mas suponhamos que não eras general (e mesmo isso ainda está longe), de qualquer maneira já não serias um desconhecido, eras um autor!

— Agora diz-se escritor, paizinho.

— Ah, não é autor? Não sabia disso. bom, chamemo-lo escritor. Quero dizer que se o não fizerem gentil-homem da câmara pelo facto de ter escrito um romance, não tem importância; entretanto, podem fazê-lo qualquer outra coisa: agregado de uma embaixada estrangeira; também podem enviá-lo a Itália para se aperfeiçoar na arte, ou estipularem-lhe uma pensão em dinheiro. Certamente que há-de ser pelos teus méritos que receberás distinções ou recompensas. Pelo teu trabalho e não como uma protecção humilhante.

— Apre! Não te conformas com pouco, Ivan Petrovitch! — acrescentou Ana Andreievna.

— Não, papá — disse Natacha a rir. — Que lhe dêem antes uma condecoração; agregado de embaixada! Que miséria! — e deu-me outro beliscão no braço.

— Repara como ela ri — dizia o velho orgulhoso da sua Natacha, que tinha as faces coradas e os olhos radiantes. — Talvez eu vá um pouco longe de mais, meus filhos, mas sempre fui assim; e no entanto, quando te olho, não vejo em ti nada de extraordinário, Vânia...

— Meu Deus, mas que querias tu ver, paizinho?

— Não era isso o que eu queria dizer: é que não acho nada de poético na -sua. figura... Dizem que os poetas têm uns cabelos assim, enormes, e uns olhos... Como o Goethe e companhia. Li isso num almanaque. Mas... que é? Disse alguma tolice? Porque se riem de mim? Eu tenho as ideias mas não sei explicar-me; «a tua figura não me parece má, até pelo contrário, agrada-me...» Não era isso o que eu queria dizer... Ser um homem honrado, um homem de coração, isso é que importa. Leva sempre uma vida honrada e não te preocupes com mais coisa nenhuma. Tens à tua frente um vasto caminho. Realiza honestamente a tua obra. Era isso o que eu queria dizer, era isso!

Que tempos tão felizes! Passava todas as tardes em casa dos Ikmenieves, todas as minhas horas livres; contava aos velhos todas as notícias do mundo literário; os escritores começaram logo a interessá-los; liam os artigos de B..., o crítico que eu tanto elogiara e, ainda que não o compreendessem, admiravam-no e censuravam asperamente os seus inimigos, que escreviam na Abelha do Norte. E eu acabara finalmente por ouvir Natacha dizer-me «sim» em voz mansa, de cabeça baixa e lábios quase cerrados.

A mãe vigiava-nos. Mas Natacha e eu ludibriávamos a sua vigilância. Os nossos corações palpitavam em uníssono. Os pais andavam alerta, conjecturando e reflectindo.

Alcançaste um grande êxito — dizia-me Ana Andreievna abanando muito a cabeça —, mas se para a próxima vez fraquejas ou sai por aí qualquer coisa de outro autor, que hás-de tu fazer? Se ao menos tivesses um emprego1

— Quanto a mim, ouve o que te digo — acrescentava o velho, depois de reflectir um instante —, já reparei que tu e Natacha... Hem? Não vejo mal algum nisso. No entanto, são ainda muito novos e a minha Ana Andreievna tem razão. Aguardemos. Tu possuis talento, muito talento até. Muito bem. Não serás um génio, como disseram a princípio, mas tens realmente talento. Hoje voltei a ler aquela crítica que te dedicaram na Abelha. Tratam-te com severidade excessiva. No entanto, temos de reparar que se trata de um jornaleco. Mas vê: o talento, apesar de tudo, não significa dinheiro no bolso e vocês dois são pobres. Esperem um meio anito ou um ano. Se tudo te correr bem, se então caminhares em terreno sólido, Natacha será tua. Senão, pensa tu próprio...

E ficámos nisto. E agora vejam em que situação nos encontrávamos um ano depois!

Sim, foi precisamente um ano depois. Num esplêndido dia de Setembro, ao anoitecer, doente e com o desespero na alma, cheguei a casa dos meus velhotes e deixei-me cair numa cadeira meio desfalecido, de tal maneira que todos se assustaram quando me viram. A cabeça andava-me à roda, o meu coração estava cheio de angústia. Por dez vezes me aproximara da porta e outras tantas retrocedera. Não porque não tivesse ainda alcançado glória e dinheiro; não por ser ainda adido de embaixada nem ver jeitos de ir à Itália como bolseiro, mas porque... Num só ano podem viver-se dez e neste ano que acabava de passar a minha Natacha também os vivera. Um abismo se abrira entre nós os dois e recordo-me de estar, naquela tarde, sentado em frente do velho, silencioso, torturando com mãos nervosas a já muito ameigada copa do meu chapéu. Estava sentado e esperava não sabia quê, quando Natacha entrou. Eu vestia um fato coçado, que me ficava muito mal. Emagrecera de rosto e de corpo, estava muito pálido, e sem dúvida que nem de longe me parecia com um poeta; nos meus olhos nada transluzia daquela grandeza de que um dia falara Nikolai Serguieitch.

A velha mirava-me com uma compaixão mal dissimulada; mostrava-se muito solícita para comigo e parecia pensar: «Olhem a quem eu ia entregar a minha Natacha! Deus me livre!»

— Toma uma chávena de chá, Ivan Petrovitch. (O samovar fervia sobre a mesa). Como te sentes, rapaz? Estás doente? — perguntou-me num tom lamuriento, que ressoa ainda nos meus ouvidos.

Enquanto falava comigo parecia pensar noutras coisas; o marido estava também absorto nas suas meditações.

Eu sabia que eles sentiam agora grande inquietação sobre o resultado do seu processo com o príncipe Valkovski e tinham tido ainda outra contrariedade que quase pusera doente Nikolai Serguieitch. O jovem príncipe achara maneira de vir visitá-los uns cinco meses antes. O velho Ikmeniev, que lhe queria como a um filho e diariamente se recordava muito dele, recebeu-o cheio de alegria.

À mulher, isso levava-a a recordar-se de Vassilievskoie e dava-lhe vontade de chorar. As visitas do jovem tornaram-se cada vez mais frequentes. Ikmeniev, homem recto e franco, recusou com indignação toda a espécie de subterfúgios. Por espírito de nobre orgulho, nem sequer se demorava a pensar o que poderia dizer o príncipe e desprezava todas as absurdas suposições que ele viesse a fazer quando soubesse que o filho frequentava de novo a casa dos Ikmenieves. Mas o velho não sabia se ainda lhe restariam forças para suportar novos agravos. O jovem príncipe deu em ir ali quase diariamente. Entendia-se muito bem com os velhos e ali se deixava ficar quase até ao cair da noite. Como era natural, não tardou que o príncipe viesse a saber tudo. Pronunciou então as mais abomináveis palavras. Insultou Nikolai Serguieitch numa carta horrível e proibiu terminantemente ao filho que visitasse os Ikmenieves. Isto dera-se precisamente quinze dias antes da minha visita.

O velho caíra numa profunda aflição. Como podia acontecer que voltassem a caluniar daquela maneira a sua Natacha, uma criatura tão pura, tão inocente? O nome de sua filha manchado pelo mesmo que tão horrorosamente havia ultrajado o seu...

Iria suportar tudo isto sem exigir uma reparação? Nos primeiros dias o desgosto obrigou-o a ficar de cama. Eu estava ao facto de tudo isto. Acabara por chegar aos meus ouvidos, se bem que, doente e abatido pelo sofrimento, não fosse a casa dos Ikmenieves havia já três semanas. E sabia também... quero dizer, não, não fazia mais que pressenti-lo; sabia, porém não ousava acreditá-lo, que outra coisa lhe importava agora, a ela, mais que o resto, e procurava lê-lo nos seus olhos...

Sim, aquilo era um suplício. Tinha medo de adivinhar, tinha medo de acreditar; mas desejava o momento fatal. E, no entanto, fora ali unicamente por causa disso. Sentia que alguma coisa me atraía para ela nessa noite!

— Olá, Vânia! — disse imediatamente Ikmeniev, como se despertasse. — Tens estado doente? Há quanto tempo não te vejo! Sinto-me culpado, devia ter ido ver-te. Mas, acontece que... — e voltou a afundar-se nos seus pensamentos.

— Tenho estado um pouco adoentado — respondi-lhe.

— Hum! Adoentado! — replicou depois de uns momentos. — Adoentado! Bem te avisei, mas não me quiseste escutar. Hum! Meu caro Vânia, a musa viveu sempre na trapeira, morta de fome, e assim há-de viver eternamente...

Não estava de bom humor, o velho. Era preciso que tivesse o coração muito magoado para falar-me assim. Pus-me a observá-lo: estava amarelo e os olhos exprimiam uma certa inquietação; algum problema que não conseguia resolver. Estava mais violento e bilioso que de costume. A mulher olhava-o com ansiedade e aproveitou um momento em que ele voltou a cabeça para fazer-me um rápido sinal.

— Como está Natacha Nikolaievna? Está em casa? —perguntei timidamente a Ana Andreievna.

— Está sim — respondeu a mãe, como se a minha pergunta a contrariasse. —Já vem. Mas que coisa tão engraçada! Três semanas sem nos visitares! Ela também está um pouco... não sei como dizer; não sei o que ela tem, se está bem ou mal! Deus a proteja! — e lançou ao marido um olhar assustado.

— Qual quê! — respondeu Nikolai Serguieitch de mau humor. — Está boa. Está a tornar-se mulher e nada mais. Quem pode compreender esses desgostos, esses caprichos de rapariguinha!

— Não fales de caprichos! — respondeu Ana Andreievna em tom ressentido.

O velho calou-se e pôs-se a bater com os dedos sobre a mesa.

«Meu Deus, terá havido já algum desgosto entre eles!», pensava eu inquieto.

— E tu, que nos contas de novo? — disse um instante depois. — B... continua com as suas críticas?

— Sim, continua — respondi-lhe.

— Ah, Vânia! Vânia! — acrescentou deixando cair os braços. — Para que serve a crítica!

A porta abriu-se e Natacha entrou.

 

Trazia o chapéu na mão e, assim que entrou, pousou-o sobre o piano; depois dirigiu-se para mim e, em silêncio, estendeu-me a mão. Os seus lábios agitaram-se levemente, como se desejasse dizer-me alguma frase de cortesia, mas não chegou a dizer nada.

Havia três semanas que não nos víamos; eu olhava-a com assombro e espanto. Que transformação se dera nela! O meu coração perturbou-se ao ver as suas faces pálidas e descarnadas, os lábios que tremiam como se sentisse arrepios de febre, e os olhos que, debaixo da sombra das pestanas escuras, irradiavam uma chama ardente e uma apaixonada energia.

Mas, meu Deus, como estava bonita! Nunca, nem antes nem depois, a vi tão bela como nesse dia fatal. Era esta a mesma Natacha que havia um ano, no máximo, não tirava os olhos de mim, cujos lábios se moviam ao mesmo tempo que os meus durante a leitura do meu livro, e que com tanta alegria e despreocupação ria e gracejava com o pai e comigo à sobremesa do jantar? Era esta a mesma Natacha que, no quarto próximo, com as faces vermelhas e os olhos baixos, me dissera sim?

Ouviu-se a voz sonora e grave de um sino que tocava as vésperas. Natacha estremeceu e a velha benzeu-se.

— Estão a tocar as vésperas, Natacha; tu queres ir... — disse. — Pois sim, vai, Natacha, vai rezar; a igreja é perto. Porque hás-de estar sempre aqui fechada? Estás tão pálida! Até parece que alguém te rogou uma praga!

— Parece-me que hoje... não vou — disse Natacha lentamente, baixando a voz, quase num murmúrio, empalidecendo cada vez mais.

— Era melhor ires, Natacha; há pouco querias ir e até já estavas com o chapéu na mão; vai, vai rezar, Natacha; vai pedir a Deus que te dê saúde — disse Ana Andreievna olhando para a filha com receio.

— Sim, vai; ao mesmo tempo apanhas um pouco de ar — reforçou o velho olhando com inquietação o rosto da filha. — A tua mãe tem razão. Olha, Vânia acompanha-te.

Pareceu-me que um amargo sorriso assomava aos lábios de Natacha. Dirigiu-se para o piano, pegou no chapéu e pô-lo; as mãos tremiam-lhe. Todos os seus movimentos pareciam inconscientes, não dava conta do que fazia. Os pais olhavam-na com estranheza.

— Adeus — disse ela com uma voz que mal se ouvia.

— Porque nos dizes adeus, minha querida? Vais asssim para tão longe? Faz-te bem apanhares ar, estás tão pálida. Ah! Meu Deus, já me esquecia! Esqueço-me de tudo. Acabei a tua bolsinha e cosi-lhe por dentro uma oração, minha querida! Foi uma freira de Kiev (!) que ma ensinou o ano passado, é muito eficaz. Põe-a, Natacha! Vamos, Natacha! Pode ser que Deus Nosso Senhor te restitua a saúde. És a nossa única filha...

Tirou da sua caixa de costura uma cruzinha de ouro, que Natacha trazia sempre ao pescoço; a bolsinha que acabara pendia da mesma fita.

— Deus te dê saúde! — disse, pondo-lhe a cruz e benzendo-a. — Há algum tempo benzia-te todas as noites antes de adormeceres e dizia uma oração que tu ias repetindo, mas agora já não és a mesma. Deus Nosso Senhor não quer dar-te a paz de espírito. Ah, Natacha, Natacha! As minhas orações de mãe já não te servem de nada — e a velha desatou a chorar.

Natacha beijou em silêncio a mão da mãe e deu um passo para a porta; mas de súbito retrocedeu e aproximou-se do pai, muito agitada.

— Paizinho, abençoe também a sua filha — disse com uma voz abafada e caindo de joelhos diante dele.

Estávamos todos perturbados ao vermos a sua atitude tão inesperada e solene. O pai olhou para ela um momento, completamente atónito.

— Natacha! Minha pequenina! Minha filhinha! Minha adorada! Que tens tu? — gritou por fim e dos seus olhos caíram lágrimas. — Que desgosto te consome? Porque choras dia e noite? Porque eu vejo tudo; levanto-me a todos os momentos e vou escutar à porta do teu quarto. Diz-me tudo, Natacha; confia os teus desgostos a teu velho pai e nós...

Não acabou e amparou-a entre os braços. Ela apertou-se convulsivamente contra o seu peito e escondeu a cabeça no seu ombro.

— Não é nada! Não é nada! É que estou um bocadinho nervosa — dizia ela, sufocada pelas lágrimas que procurava reprimir.

 

(’) A maior cidade da Ucrânia, que faz parte da U. R. S. S. Foi uma antiga capital da Rússia.

 

— Que Deus te abençoe como eu te abençoo, minha querida, minha adorada filha — disse o pai. — Que Ele te envie a paz de espírito e te defenda sempre de todo o mal. Pede a Deus, minha querida, para que chegue até Ele a súplica deste pecador.

— E que a minha bênção te acompanhe — acrescentou a mãe desfeita em lágrimas.

— Adeus — murmurou Natacha com voz fraca. Chegou à porta e parou. Olhou para eles outra vez,

como se quisesse dizer qualquer coisa; mas faltaram-lhe as forças e saiu de casa a correr. Eu precipitei-me atrás dela com o pressentimento de que alguma coisa de mau ia acontecer.

Capítulo oitavo

Natacha caminhava em silêncio, de cabeça baixa e sem me olhar; mas, quando voltou a cabeça, no cais do Neva, parou de repente e pegou-me na mão.

— Sufoco! — murmurou. — Tenho o coração opresso! Sufoco!

— Voltemos, Natacha! — exclamei, assustado.

— Mas não compreendes, Vânia, que saí para não voltar? — disse ela, olhando-me com tristeza inexprimível.

O meu coração deixou de pulsar. Tinha este pressentimento; quando ia para ali já o pressentia, como através de um nevoeiro, já há muito tempo; no entanto as suas palavras caíram sobre mim como um raio.

Caminhávamos tristemente pelo cais. Eu não podia falar; fazia esforços para raciocinar, mas estava completamente transtornado; a cabeça andava-me às voltas. Aquilo parecia-me tão monstruoso, tão impossível!

— Tu deves achar-me culpada, Vânia — exclamou finalmente.

— Não... Não... acredito, isso não pode ser! — respondi, sem saber o que dizia.

— E no entanto é assim, Vânia! Deixei-os; não sei o que vai ser deles. Nem sequer o que será de mim!

— Vais a casa dele, Natacha? Vais?

— vou — respondeu-me.

Mas isso é impossível! — gritei com exaltação. — Tu sabes que é impossível! Minha pobre Natacha! Isso é absurdo. Matá-los a eles e tu corres para a perdição. Não compreendes, Natacha?

— Sim, eu sei, mas não posso deixar de o fazer, eu já não tenho vontade — disse, e as suas palavras mostravam um acento de desespero, como se caminhasse para um suplício.

— Volta, volta, que ainda estás a tempo! — suplicava-lhe eu com tão grande insistência, com tanto mais ardor quanto eu mesmo reconhecia a inutilidade das minhas exortações e a sua ineficácia em tal momento. — Pensaste no teu pai? Bem sabes que o pai dele é inimigo do teu, que o insultou e acusou de ladrão! Não percebes? Tu sabes que o processo... Tu não sabes isto, Natacha? Sim, meu Deus! Sim, tu bem o sabes: disseram que os teus pais te quiseram ligar a Aliocha quando ele estava em vossa casa, no campo. Lembra-te do que o teu pai sofreu com essas calúnias durante estes anos! Até os cabelos lhe embranqueceram! Pensa bem! Mas o principal já tu sabes, Natacha. Meu Deus! Imagina o que lhe custará perder-te agora para sempre, a ti, o seu tesouro, a única coisa que lhe resta na velhice. Tu bem sabes, o teu pai julga-te inocente e caluniada por essa gente soberba. A antiga animosidade recrudesceu ao receber Aliocha em vossa casa. O pai dele voltou a insultar o teu; a cólera ferve na alma do pobre velho por causa desta nova injúria, mas assim todas essas acusações ficarão justificadas. Hão-de todos dizer que o príncipe tem razão em acusar-vos, a ti e ao teu pai. Que vai acontecer? Morrerá de vergonha! E de quem é a culpa? De ti, da sua filha, da sua única e adorada menina! E a tua mãe? Pensas que sobreviverá ao velho? Natacha, Natacha, que vais fazer? Cai em ti, regressemos.

Ela continuava calada; finalmente olhou-me com um ar de censura, e eu li uma dor tão intensa, um sofrimento tão grande nos seus olhos, que compreendi como o coração ferido lhe sangrava. Compreendi como lhe custara tomar aquela resolução e como eu acabava por torturá-la e dilacerá-la com as minhas inúteis e tardias reflexões; mas apesar de tudo não pude conter-me e continuei:

— Há um instante dizias a Ana Andreievna que talvez não saísses, que não virias à igreja. Tinhas o desejo de ficar. Talvez a tua decisão não seja irrevogável, não é verdade?

Um sorriso amargo foi a sua única resposta. Porque lhe perguntei aquilo? Eu bem via que a sua decisão era irrevogável.

— Gostas assim tanto dele? — gritei com desgosto, olhando-a e sem me aperceber da minha pergunta.

— Que queres que te diga, Vânia? Tu bem vês, ele disse-me que fosse e eu vou esperá-lo — disse ela com o mesmo sorriso dolorido.

— Mas escuta, ao menos — disse-lhe eu agarrado ainda a uma última esperança. — Tudo se pode arranjar ainda, tudo se pode ainda arranjar, Natacha; eu própio preparei os vossos encontros... tudo. Ninguém te obrigará a deixares a tua casa; não te vás, eu passarei as vossas cartas. Que não faria eu? Eu saberei arranjar tudo; hás-de ficar contente, vais ver... Pelo menos não te perderás, Natacha. Tudo há-de correr bem; hão-de namorar quando quiserem e quando os vossos pais deixarem de guerrear-se e injuriar-se (o que há-de acontecer, mais tarde ou mais cedo), então...

— Basta, Vânia, cala-te — e apertava-me a mão, sorrindo por entre as lágrimas. — Meu bom amigo, meu querido Vânia, como tu és bom e honesto! Não dizes nem uma palavra de ti! Ofendi-te e perdoas-me, não pensas senão na minha felicidade. Queres encarregar-te de levar e trazer as nossas cartas — e rompeu em pranto. — Eu sei como tu gostaste de mim, como ainda gostas, que não me fazes nenhuma censura e nunca me disseste uma palavra dura. E eu, eu... Meu Deus, como sou má para ti! Lembras-te, Vânia, lembras-te do tempo que passámos juntos? Ah! Mais valia que não o tivesse conhecido, que nunca o tivesse encontrado... Teria sido tão feliz contigo, Vânia, contigo meu amigo querido! Já vês como eu sou... Pois não me ponho agora a recordar a nossa felicidade passada, como se não tivesse já bastantes desgostos... Estiveste três semanas sem vir; pois olha, nem um momento sequer pensei que pudesses maldizer-me e odiar-me. Eu sabia porque é que tu não vinhas: para não nos incomodares, para não seres uma censura viva para mim. E também devia ser-te tão doloroso ver-nos! Eu, Vânia, também sentia pena de ti. Ouve, Vânia, eu amo Aliocha com um amor louco, mas parece-me que a ti te quero ainda como amigo e que não saberei viver sem ti; és-me preciso; faz-me falta o teu coração de ouro... Ah, Vânia, que tempo tão doloroso e cheio de amargura se aproxima!

E desfazia-se em lágrimas.

— Que vontade eu tinha de te ver! — dizia-me depois, reprimindo as suas lágrimas. — Estás magro, pálido. Estiveste doente, Vânia? Só te falo de mim; e tu... como vais com os teus jornais? Vai adiantado o teu novo romance?

— Que me interessam os meus romances, Natacha? Nada. Mas diz-me: ele exigiu-te que fizesses isto?

— Não, sou eu que... ou melhor... eu... Escuta! Ele tem razão quando diz que sou eu. Olha, querido Vânia, vou contar-te tudo; querem casá-lo com uma rapariga de uma família distinta e rica. O fito dele, já tu o conheces, é um intrigante e quer à viva força que ele case com ela, fará tudo o que for necessário para o conseguir, porque uma ocasião assim nem em dez anos torna a aparecer. Grandes relações, uma enorme fortuna, muito bonita, bem-educada e um anjo de bondade. Aliocha está enamorado dela, e como o pai tende a desembaraçar-se do filho o mais cedo possível para poder casar-se também, quer a todo custo desfazer a nossa união. Receia a influência que eu tenho sobre Aliocha.

— Mas o príncipe — interrompi-a, assustado — conhece as vossas relações? Até aqui apenas suspeitava...

— Sabe, sabe tudo. Aliocha, ultimamente, contou-lhe tudo. Ele próprio me confessou que dissera tudo ao pai.

— Meu Deus! Então ele contou tudo ao pai... e em que

altura!

— Não o culpes, Vânia — interrompeu-me Natacha —, não te rias dele. Seria injusto julgá-lo como tu o julgas. É uma pessoa que teve uma educação diferente da nossa. Achas que ele tem consciência do que faz? A primeira influência é suficiente para fazê-lo esquecer o juramento que acaba de fazer, de guardar um segredo. Ele não tem personalidade: está de prevenção contra uma pessoa, e no mesmo dia, com a mesma boa fé, confia-se a outra qualquer. No primeiro encontro vai contar tudo. Comete uma má acção e nós não sabemos se havemos de culpá-lo ou defendê-lo. E capaz de chegar ao sacrifício, mas isso não lhe dura senão até à próxima impressão, e de novo esquece tudo. «Também se esquecerá de mim se eu não estiver constantemente ao seu lado; é assim, ele.»

— Ah, Natacha! Pode ser que isso não seja verdade, que seja apenas um boato. Como queres que ele se case, se ainda é um garoto?

— O pai tem os seus cálculos, acredita!

— Como sabes tu que a noiva é assim tão bonita e que lhe agrada?

— Foi ele mesmo que mo’disse.

— O quê? Disse-te que pode amar outra e ao mesmo tempo exige de ti este sacrifício?

— Não, Vânia, não! Conhece-lo mal, quase não o viste, precisavas de conhecê-lo melhor para o julgar. Não há coração mais honesto e puro que o seu. Seria melhor que ele mentisse? Que possam seduzi-lo, não é estranho. Se estivesse oito dias sem me ver, esquecer-me-ia para amar outra, ao passo que se me vir constantemente cairá outra vez aos meus pés. Não! Ele fez bem em não me esconder isso, senão morreria de ciúmes. Sim, Vânia! A minha decisão é irrevogável. «Se eu não estiver constantemente ao seu lado, imediatamente deixará de amar-me, esquecer-me-á e abandonar-me-á.

- Pode outra seduzi-lo, e eu que faria depois? Morreria, mas que importa? A morte seria uma felicidade para mim Mas viver sem ele é mil vezes mais horrível que a morte, que todos os tormentos! Oh! Vânia, Vânia... Podes compreender até que ponto eu o amo para deixar os meus pais por causa dele! Não me ralhes, porque eu estou decidida. Preciso que ele esteja ao meu lado a todas as horas, a todos os instantes! Não posso voltar atrás. Sei que me perco e perco a outros... Ah, Vânia! — exclamou estremecendo toda. — Se ele já não me amasse! Se fosse verdade o que disseste! — eu não teria dito tal coisa. — Ele não faz outra coisa senão enganar-me! E se ele não fosse bom e sincero de verdade e no fundo fosse apenas mau e vaidoso? Vê tu se eu estou para aqui a defendê-lo contra ti, enquanto ele estava com outra, quando eu, vil criatura, abandonei tudo por ele e vou à sua procura pelas ruas! Ai, Vânia!

E deixou escapar uns gemidos tão dolorosos que a alma me doeu. Compreendi imediatamente que Natacha já não era dona da sua vontade. Apenas os ciúmes podiam cegá-la até ao ponto de tomar uma resolução tão louca e insensata. Mas também eu me consumia de ciúmes e tinha o coração dilacerado. Não fui capaz de continuar a dominar-me e deixei-me possuir por um sentimento mesquinho.

— Não compreendo como possas amá-lo depois do que me disseste dele. Tu não o estimas, tu não acreditas no seu amor e, no entanto, corres para ele e sacrificas-lhe as vidas dos seres mais queridos. Que vais fazer? Preparam um para o outro uma vida cheia de amarguras. Ama-lo demasiado, Natacha, demasiado! Não compreendo um amor assim!

— Sim, amo-o loucamente — respondeu-me, empalidecendo, como se tivesse adoecido. — De ti nunca gostei assim, Vânia. Compreendo que perdi a razão, que não devia amá-lo desta maneira... Não é bom este amor. Sinto-o. Ouve, Vânia: até nos momentos mais felizes tive sempre o pressentimento de que ele não me daria senão desgostos e tormentos. Mas que hei-de fazer se as dores que dele me vierem serão uma felicidade para mim? Não sei eu de antemão o que me espera, o que hei-de padecer? Jurou amar-me, fez-me toda a espécie de promessas, mas não tenho fé nenhuma nelas, não acredito nele, nunca acreditei; agora mesmo não sei se me mente, não sei se é capaz de mentir-me. Disse-lho sinceramente. Não quero obrigá-lo a nada. Ninguém gosta de obrigações e eu sou a primeira que as odeio. Sinto-me feliz em ser sua escrava voluntária e em sofrer por ele, contando que esteja junto de mim, que possa vê-lo, olhá-lo. Creio que o deixaria amar outra, contando que eu estivesse ao seu lado... Que baixeza! Não é verdade, Vânia? — gritou, fixando em mim os olhos chamejantes. — Sei que isto é uma baixeza e, no entanto, se ele me abandonasse iria procurá-lo pelo mundo inteiro, embora me repudiasse e expulsasse. Tu exortas-me a renunciar à minha decisão, a voltar atrás. De que serviria isso? Amanhã partiria de novo, se ele mo dissesse, se ele mo mandasse. Não precisa de mais senão de chamar-me, de assobiar-me como a um cão, para que eu corra logo atrás dele... Tormentos... Não acredito nos tormentos, se vierem dele... Ao menos saberei que é por ele, por ele que sofro! Oh! Não vás contar nada do que eu te digo, Vânia!

«E os seus pais?», pensava eu para comigo. Ela parecia já tê-los esquecido.

— Mas ele não quer casar contigo, Natacha?

— Prometeu-mo, prometeu tudo. Disse-me que iríamos já amanhã, discretamente, casar-nos fora da povoação; mas ele não sabe o que diz. Talvez nem saiba o que é preciso fazer para se casar. Que marido singular! Dá vontade de rir, na verdade! E se nos casarmos e não for feliz no casamento, depois há-de censurar-me... Não quero que tenha nunca uma censura a fazer-me. Eu dou-lhe tudo sem exigir-lhe nada. Se ele não há-de ser feliz com o casamento, para que torná-lo desgraçado?

— Tudo isso não passa de uma fantasia, Natacha! — disse. — E és tu mesma que o vais agora procurar?

— Não, prometeu vir buscar-me aqui. Marcámos o encontro — e olhou com impaciência, ao longe; mas não via ninguém.

— E ainda não chegou! És tu a primeira a chegar — gritei-lhe indignado. Natacha estremeceu, como se lhe tivessem dado uma pancada. A sua cara mostrou uma dor enorme.

— E muito possível -que não venha — disse com um amargo sorriso. — Escreveu-me a dizer que se eu não lhe prometia vir, se veria obrigado a adiar a sua decisão... A nossa fuga e o nosso casamento’. Que o pai queria levá-lo a casa da noiva. Disse-me isso com tanta simplicidade e naturalidade como se isso não tivesse importância. E se ele tivesse de facto ido vê-la, a ela, Vânia?

Não respondi. Natacha pegou-me na mão com força; os seus olhos cintilavam.

— Está com ela — repetiu tão baixo que mal a ouvi. — Esperava que eu não viesse para ir para casa da noiva e dizer depois que fora eu que não viera. Já está cansado de mim e abandona-me! Oh, meu Deus! Louca que sou! Da última vez disse-me que eu o aborrecia... Portanto, porque o espero ainda?

— Olha, lá vem ele! — gritei de repente, quando o vi ao longe.

Natacha estremeceu, deu um grito e, largando a minha mão, correu ao seu encontro. Ele acelerou também o passo e um momento depois já estavam nos braços um do outro. Na rua, além de nós, não havia quase ninguém. Eles beijavam-se e riam. Natacha ria e chorava ao mesmo tempo, como se se vissem depois de uma longa separação. As suas faces pálidas tingiram-se de vermelho; parecia pregada ao chão.

Aliocha viu-me e dirigiu-se para mim.

 

Eu olhava para ele avidamente, embora já o tivesse visto muitas vezes’; procurava o seu olhar como se ele viesse dissipar todas as minhas dúvidas e explicar-me tudo. Como pudera aquele rapazelho enfeitiçar Natacha, inspirando-lhe um amor tão arrebatado, um amor que a fazia esquecer os seus primeiros deveres e sacrificar loucamente tudo o que até então julgara mais sagrado?

O príncipe pegou-me nas duas mãos, apertou-mas vigorosamente, e o seu olhar, doce e sereno, chegou-me ao coração.

Pensei que podia ter-me enganado no conceito que fizera acerca dele, levado apenas pelo facto de ser meu rival. Eu não lhe tinha afeição e não poderia nunca vir a tê-la; podia ser que fosse eu a única pessoa que não o via com bons olhos. Havia nele muitas coisas que não me agradavam, a começar pela sua figura sedutora, e precisamente por sê-lo demasiado. Mais tarde reconheci que o apreciei levianamente.

Era alto, esbelto, delgado; de rosto ovalado, sempre pálido, o cabelo louro, grandes olhos azuis, doces e pensativos, que brilhavam às vezes com uma alegria ingénua, infantil. Os lábios, vermelhos e carnudos, de um desenho admirável, mostravam quase sempre um rictos sério, o que tornava ainda mais encantador o seu inesperado e jovial sorriso, tão ingénuo, que fosse qual fosse a disposição em que estivéssemos, sentíamos necessidade de corresponder-lhe. Vestia sem excessivo apuro, mas sempre com elegância, e esta elegância, que ostentava em tudo, via-se bem que não lhe custava nenhum esforço, que lhe era inata. Tinha, na verdade, algumas qualidades feias; era estouvado, presunçoso e um pouco impertinente, e sofria de alguns maus costumes de menino elegante. Mas era muito franco e simples e era o primeiro a reconhecer os seus defeitos, a censurá-los e metê-los a ridículo.

Eu julgava que este rapazote não seria nunca capaz de mentir, nem sequer por brincadeira, e que, se mentia, o fazia sem dar por isso. Até o seu egoísmo se tornava simpático, precisamente porque não procurava escondê-lo de maneira nenhuma. Não havia nele uma ponta de dissimulação. Fraco, confiado, tímido e sem força de vontade. Ofendê-lo ou enganá-lo seria um pecado tão grande como enganar ou ofender uma criancinha. De uma ingenuidade inacreditável para a sua idade, não sabia quase nada da vida e parecia que aos quarenta anos nada chegaria também a saber dela. Há pessoas assim, que parecem condenadas a esperar eternamente a maioridade. A mim parecia-me que não podia haver uma pessoa que não gostasse dele; sabia lisonjear-nos com as suas carícias de criança. Natacha dissera a verdade: debaixo de qualquer forte influência, era capaz de cometer uma acção má, mas creio que morreria de repente se viesse a compreender as suas consequências. Natacha sentia instintivamente que havia de ser a sua soberana, a sua dominadora, e que acabaria por torná-lo sua vítima. Sentia prazer amando-o até à loucura e atormentando-se até à dor, tal era a maneira como gostava dele; talvez por isto se tivesse apressado a ser a primeira a sacrificar-se. Mas nos olhos dele cintilava o amor e contemplava-a numa espécie de êxtase. Ela olhou para mim, distraída. Nesse instante esquecera tudo... era feliz.

— Vânia! — gritou de repente. — Fui injusta para com ele, não o mereço. Pensava que não virias, Aliocha. Esquece o meu mau pensamento — acrescentou, olhando-o como um amor infinito. Ele sorriu, beijou-lhe a mão e, sem largá-la, disse, dirigindo-se a mim:

— Não me culpe, já há algum tempo que queria abraçá-lo como a um irmão. Ela falou-me tanto de si! Nós temo-nos visto pouco, quase não trocamos uma palavra. Sejamos amigos e... perdoe-me — disse corando um pouco e com um sorriso tão sedutor que eu não pude deixar de corresponder ao seu acolhimento.

— Sim, sim — respondeu Natacha —, para nós é como um irmão; já nos perdoou e, sem ele, não poderíamos ser felizes. Ah, como nós somos maus, Aliocha! Mas agora viveremos os três juntos. Vânia, vai ter com eles, pois conhecem o teu coração bondoso e quando virem que me perdoaste pode ser que abrandem um pouco contra mim. Diz-lhes tudo, tudo, com as palavras que o coração te ditar. Defende-me, salva-me, expõe-lhes todas as minhas razões. Sabes, Vânia, talvez eu não me decidisse a isto se tu não tivesses ido lá a casa? Tu és a minha salvação. Construi imediatamente a esperança de que tu saberias falar-lhes de maneira a adoçar-lhes o horror da primeira impressão. Oh, meu Deus, meu Deus! Diz-lhes, da minha parte, Vânia, que já sei que, para mim, não há perdão; que eles me perdoariam, mas Deus não poderá perdoar-me; mas ainda que eles me amaldiçoem eu abençou-os e rezarei por eles toda a minha vida. O meu coração está com eles. Ah! Porque não poderemos ser todos felizes? Porquê, porquê... meu Deus? Que fiz eu? — gritou de repente, como se voltasse a si, tapando o rosto com as mãos. Aliocha apertou-a entre os braços. Ficámos todos calados por uns momentos.

— E teve a coragem de exigir-lhe semelhante sacrifício? — gritei lançando a Aliocha um olhar de censura.

— Não me condene! — repetiu ele. — Por muito dolorosos que sejam todos estes desgostos, não hão-de durar mais que um instante, posso afiançar-lhe. Basta que tenhamos apenas um pouco de firmeza para suportarmos este momento. Foi a própria Natacha que mo disse. O senhor bem sabe, a causa de tudo isto é esse orgulho de ”amília, mas essas questões hão-de terminar um dia, e esse processo... Mas... Eu reflecti muito sobre isto, afirmo-lhe. Tudo isto há-de ter um fim. Havemos de nos reunir todos de novo e seremos tão felizes que os nossos pais, quando nos virem, hão-de reconciliar-se... Quem sabe se o nosso casamento não será o princípio da reconciliação! Penso que não poderá ser de outra maneira. Que lhe parece?

— Fala de casamento; mas quando se casam? — perguntei, olhando para Natacha.

— Amanhã ou depois de amanhã; no máximo depois de amanhã... Não tenho a certeza, vejam bem, nem eu mesmo

o sei; e, na verdade, ainda não preparei nada. Pensei que Natacha talvez não viesse hoje. Aliás, o meu pai quer levar-me esta noite a casa da minha noiva. Porque me arranjaram uma noiva, Natacha não lho disse? Mas eu não a quero. Por isso não posso decidir nada de maneira firme. Seja como for, casaremos depois de amanhã. Pelo menos é isto o que eu penso, porque não pode ser de outra maneira. Amanhã pôr-nos-emos a caminho de Pskov. Tenho um camarada do liceu, que vive perto daí, um óptimo rapaz. Pode ser que eu lho apresente. Aí devemos encontrar um pope, embora eu não saiba ao certo se lá haverá algum. Devia ter-me informado com antecedência, mas não tive tempo... Embora, no fim de contas, isso seja um pormenor sem importância. O que é preciso é atender ao principal. Podemos mandar vir um de uma aldeia próxima, não é verdade? E uma pena não ter tido tempo de escrever ao meu amigo umas linhas a preveni-lo... Devia tê-lo feito... E se ele agora não estivesse em casa?... Ora, não tem importância! Contanto que se queira, tudo o mais se arranjará por si. Não é verdade? Enquanto esperamos até amanhã ou depois de amanhã, Natacha ficará em minha casa. Aluguei um andarzinho, no qual nos instalaremos no nosso regresso. Como deve compreender, não quero voltar para casa do meu pai, não é verdade? O senhor há-de ir visitar-nos; arranjei uma casinha muito boa. Os meus antigos companheiros de estudo irão também visitar-nos, organizaremos tertúlias...

Eu olhava-o com assombro e angústia. Natacha parecia implorar-me com os olhos que não o julgasse com severidade e fosse mais indulgente; ela seguia as suas palavras com um sorriso triste e ao mesmo tempo admirava-o como se admira um menino lindo e traquina, ao escutar-mos a sua tagarelice absurda mas encantadora. Eu olhava Natacha com olhos de censura, sentia um desgosto enorme.

— E o seu pai? — perguntei-lhe. — Tem a certeza de que lhe perdoará?

— com certeza, que remédio! Claro que a princípio há-de amaldiçoar-me, bem sei. É tão severo para comigo! Pode ser que se dirija à Justiça e, numa palavra, queira fazer valer a sua autoridade paterna... Mas não deve ser coisa séria. Gosta muito de mim, a princípio ficará zangado mas acabará por perdoar-me. Depois todos se reconciliarão e seremos todos felizes. Até o pai dela.

— E se não perdoar? Já pensou nisso?

-— De certeza que perdoará, embora não tão depressa como seria para desejar; mas se não fosse assim, provar-lhe -ia que tenho carácter. Ele não faz outra coisa senão censurar a minha falta de energia, a minha leviandade; pois agora é que ele há-de ver se eu sou um cabeça no ar ou não. O homem que funda um lar não é nenhum palhaço; eu já não sou..- nenhuma criança... Hei-de dizer-lhe que quero ser como os outros, como os homens casados. Viverei do meu trabalho. Natacha disse que mais vale isso do que viver à custa dos outros, como eu vivo. Se soubessem como ela me dá bons conselhos! Eu nunca me teria lembrado, não fui criado dessa maneira, não me educaram nessas ideias. Na verdade, eu próprio reconheço que sou um estouvado e quase um inútil; mas olhe, há três dias tive uma ideia espantosa. Embora o momento não seja muito oportuno, vou contar-lho porque é preciso que Natacha a conheça e o senhor me aconselhe. Trata-se disto: quero escrever crónicas para os jornais, como o senhor. Vai pôr-me em contacto com jornalistas, não é verdade? Conto consigo. Esta noite estive a pensar num romance, sabe? Podia ser que saísse bem. O argumento foi tirado de uma comédia de Scribe... Mas outro dia lhe contarei. O principal é que isto me renda dinheiro... A si, pagam-lhe os seus escritos, não é verdade?

Não pude conter um sorriso.

— Não se ria — disse ele sorrindo também. — Não, desculpe — acrescentou com uma ingenuidade inconcebível. — Não me julgue pelas aparências, asseguro-lhe que tenho o dom da observação, o senhor há-de ver. Porque não experimentar? Pode ser que consiga qualquer coisa, embora talvez o senhor tenha razão: não sei nada da vida real; é isso o que me dizem, Natacha e toda a gente. Sobre que poderia eu escrever? Ria-se, mas corrija-me, faça-o por amor dela, pois sei que a ama. Reconheço-o e lamento-o; não sei como pude inspirar-lhe um amor tão grande. Creio que seria capaz de dar a minha vida por ela! Até este momento nada receei, mas agora já começo a ter medo. Que vai ser de nós? Meu Deus! É possível que, a um homem que sabe e quer cumprir o seu dever, chegue um momento na vida em que lhe faltem as forças para fazê-lo? Venha o senhor em nosso auxílio. O senhor é o único amigo que nos resta. Isto é a única coisa que sei. Desculpe contar tanto consigo; sei que tem um grande coração, que vale muito mais do que eu. Mas hei-de emendar-me, afirmo-lhe, hei-de tornar-me digno de ambos. E no seu olhar brilhava um sentimento bom e generoso. com que confiança me apertava a mão e como estava certo da minha amizade!

— Natacha há-de ajudar a corrigir-me — prosseguiu. — Não faça má opinião de nós. Tenho muitas esperanças e, no ponto de vista material, podemos estar completamente tranquilos; se, por exemplo, o meu romance não me saísse bem (eu, na verdade, penso que é um disparate, e se lhe falei dele foi para ouvir a sua opinião), daria lições de música. Não sabia que eu entendo qualquer coisa de música? Não tenho vergonha de viver do meu trabalho. A respeito disso as minhas ideias são modernas. Além disso possuo uma quantidade de bibelots preciosos e de objectos de toilette que não servem para nada; vendê-los-ei e teremos com que viver por muito tempo. Enfim, supondo que as coisas corram mal, em último caso posso entrar para a Administração. O meu pai já quis obrigar-me a fazê-lo, mas eu aleguei que estava mal de saúde. Em último lugar, trabalharei em qualquer coisa. Assim ele verá como o meu casamento me foi útil, me tornou mais sério e que, de facto, sirvo para alguma coisa; ficará contente e perdoar-me-á.

— Mas, Alexei Petrovitch, já pensou no que pode acontecer entre o seu pai e o de Natacha? Que pensa que se passará esta noite em casa deles?

E apontei para Natacha, que, de súbito, ao ouvir as minhas palavras, se fez pálida como uma morta. Eu era inexorável.

— Sim, sim. Diz bem, tem razão, é terrível! — respondeu ele. — Estou consternado... Mas que se há-de fazer? Se ao menos os pais dela nos perdoassem! E se soubessem como eu gosto deles! Trataram-me sempre como a um filho e veja como eu lhes pago! Estas querelas, este processo! Não pode imaginar até que ponto tudo isto me é odioso! E porque hão-de zangar-se? Nós, que gostamos tanto uns dos outros, zangarmo-nos! Se pudessem reconciliar-se! Era o que deviam fazer, já tudo se acabaria. As suas palavras fizeram amedrontar-me. Natacha, é horrível o nosso procedimento para com eles. Já to tinha dito... És tu quem insistes... Mas há-de ver, Ivan Petrovitch, como tudo se arranjará o melhor possível. Não lhe parece? Acabarão por fazer as pazes. Nós reconciliá-los-emos. Isso é certo, não poderão resistir ao nosso amor. Ainda que nos amaldiçoem, nós continuaremos a amá-los. O senhor não sabe como o meu pai às vezes tem bom coração; simplesmente, de quando em quando perde a cabeça. Se visse com que ternura ele me falava esta manhã, esforçando-se por me convencer! E entretanto eu procedo agora contra a sua vontade. Não imagina quanto me custa! E tudo isto por causa de estúpidos preconceitos. Que loucura! Bastava que reparasse bem nela e estivesse meia hora ao seu lado para que o meu pai desse logo o seu consentimento para tudo — e ao dizer isto Aliocha dirigiu a Natacha um olhar terno e apaixonado. —Já tenho pensado mil vezes com delícia como ele há-de gostar dela quando a conhecer bem e como todos ficarão assombrados quando virem quanto ela vale. Nunca deve ter visto uma rapariga semelhante! O meu pai está convencido de que ela é simplesmente uma intrigante. O meu dever é reabilitá-la na sua honra e saberei fazê-lo. Ah, Natacha, toda a gente vai gostar de ti! — gritou triunfante. — Toda a gente! Quem não há-de gostar de ti? — acrescentou com entusiasmo. — Tenho a certeza absoluta de que este dia nos há-de trazer todas as venturas, paz e reconciliação. Abençoado seja este dia! Não é verdade, Natacha? Mas que tens tu? Meu Deus! Que te aconteceu?

Natacha estava pálida como uma morta. Durante todo o tempo que Aliocha falou manteve o olhar fixo sobre ele, mas os seus olhos estavam imóveis e o rosto cada vez mais pálido. Parecia-me até que, por fim, já não o escutava e que estava prestes a desfalecer. De repente, as exclamações de Aliocha despertaram-na. Estremeceu, olhou à volta e, de súbito, encarou comigo. Tirou uma carta da algibeira e deu-ma rapidamente, às escondidas de Aliocha.

Era uma carta para os pais, que escrevera na véspera; entregou-ma com um olhar de desespero, que ainda recordo, e que me encheu de espanto; compreendi que agora via claramente todo o horror da sua conduta; quis dizer-me qualquer coisa e começou a falar, mas desmaiou e não tive tempo senão para ampará-la.

Aliocha, então, empalideceu de terror; friccionava-lhe as fontes, beijava-lhe as mãos e a boca; passados alguns momentos Natacha recuperou os sentidos. Perto, estava o coche de aluguer em que Aliocha viera. Este mandou-o aproximar-se. Quando já estava sentada, embora ainda aturdida, Natacha, como louca, apertou-me a mão e salpicou-ma de lágrimas ardentes. O coche partiu e eu fiquei durante muito tempo cravado no mesmo lugar, a segui-lo com os olhos. Toda a minha felicidade se desfizera, toda a minha vida estava estragada.

Compreendia isso perfeitamente. A seguir voltei a casa dos velhos, pelo mesmo caminho porque viéramos. Não sabia como havia de entrar, o que dizer; as minhas ideias estavam entorpecidas, as pernas dobravam-se-me...

Esta é toda a história da minha felicidade; assim terminou e se desfez o meu amor! Agora continuarei a minha narrativa interrompida.

 

Cinco semanas depois da morte de Smith, instalei-me no seu apartamento. Para mim, foi esse um dia de tristeza insuportável. Fazia frio e caía continuamente uma chuva misturada de neve. Ao entardecer, o Sol apareceu por um momento e um raio perdido entrou no meu quarto, sem dúvida por curiosidade. Comecei a arrepender-me de me ter instalado ali. No entanto, o quarto era grande, mas de tecto baixo, e muito escuro, de ar viciado devido à má ventilação e desagradavelmente vazio, apesar dos móveis. Então pensei que ia perder nesse cubículo a pouca saúde que me restava.

Passei toda a manhã a arrumar os meus papéis, revendo-os e pondo-os em ordem. Como não havia pasta guardei-os numa fronha de almofada. Depois sentei-me a escrever. Trabalhava no meu romance, mas a pena escorregava-me da mão, o meu pensamento estava noutra coisa...

Larguei a pena e sentei-me à janela. Começava a escurecer e a minha tristeza cada vez aumentava mais; assaltavam-me ideias lúgubres. Tinha o pressentimento de que acabaria por sucumbir em Petersburgo. «A Primavera aproxima-se — pensava. — Voltarei à vida, sairei deste tugúrio para a luz do dia e respirarei o cheiro fresco dos campos e dos bosques, pois já há muito tempo não os gozo.» Lembro-me de que pensei também: «Que felicidade, se, por obra de magia ou por um milagre, pudesse esquecer completamente todo o passado, tudo o que sofri nos últimos anos, esquecer tudo, refrescar a cabeça e começar a viver com ideias novas!» Pus-me a sonhar com isso e a esperar uma ressurreição. «E se eu fosse para um manicómio — decidi finalmente — para dar uma volta ao cérebro e mudar de modo de ser e começar a viver de novo?» Tenho sede de viver e de acreditar na vida... Mas lembro-me de que nesse mesmo instante soltei uma gargalhada. Que havia eu de fazer quando saísse da casa dos loucos? Continuar a escrever romances?

Assim eu sonhava e me afligia, enquanto ia escurecendo completamente. Nessa noite tinha uma entrevista com Natacha, que me escrevera na véspera. Levantei-me e dispus-me a sair. De qualquer modo sentia a necessidade de deixar aquele quarto triste e ir a qualquer parte, embora estivesse a chover e a nevar.

À medida que a escuridão aumentava, o meu quarto parecia-me mais amplo, como se se fosse dilatando cada vez mais. Imaginava que todas as noites e em todos os cantos iria ver Smith, que ele estaria ali, sentado, olhando-me fixamente, como olhava na pastelaria de Adam Ivanitch, e com Azorka deitado a seus pés.

E exactamente nesse momento aconteceu-me qualquer coisa que me causou profunda impressão. Além disso, ou fosse porque tinha os nervos cansados, ou pelas novas impressões que em mim produzia o meu novo alojamento, ou, enfim, pela melancolia que nos últimos tempos me assaltara, o certo foi que acabei por me encontrar nessa disposição de espírito em que costumo cair frequentemente à noite, desde que estou doente, e a que chamo pavor místico. Consiste num temor profundo, inquietante, qualquer coisa que eu próprio não consigo definir, algo de fantástico ou de irreal relativamente às outras coisas, mas que parece postar-se diante de mim e avolumar-se num instante, como se quisesse troçar de todos os raciocínios com a irrefutabilidade de um facto terminante, horrível, informe, implacável. Este pânico vai crescendo em mim gradualmente, a despeito de todas as invocações que faço à serenidade e ao raciocínio, de maneira que embora acabe por conseguir um pouco de lucidez nem por isso deixo de me sentir incapaz de afuguentar a inquietação. O meu espírito, então, não presta ouvidos à razão: é ineficaz, e esse vislumbre de discernimento apenas serve para aumentar ainda mais a sobressaltada inquietação da expectativa. Em parte, esse medo parecia-me o medo das pessoas que temem as almas do outro mundo. Mas na minha angústia, o aspecto vago dessa inquietação agravava ainda mais o meu suplício.

Lembro-me que estava de pé, diante da mesa, de costas para a porta, e que ia já pegar no chapéu, quando, de repente, nesse mesmo instante, me assaltou a ideia de que, infalivelmente, quando me voltasse, iria ver Smith: começaria por abrir a porta sem ruído e ficaria parado entre os umbrais, a examinar o meu quarto; depois, silenciosamente, de cabeça baixa, viria postar-se na minha frente, fixaria em mim o seu olhar e de repente pôr-se-ia a rir com um longo riso desdentado, que convulsionaria o seu corpo durante muito tempo. Esta visão apresentou-se-me com clareza e precisão extraordinárias, e ao mesmo tempo apoderou-se de mim a certeza plena, irrefutável, de que tudo isso havia infalivelmente, inevitavelmente de acontecer, que já acontecera e que, se eu ainda não o via, era unicamente porque estava de costas para a porta, a qual talvez tivesse acabado de abrir-se nesse mesmo instante. Voltei-me repentinamente e... de facto, a porta abriu-se suavemente por si só, sem ruído, exactamente como eu imaginara um minuto antes. Dei um grito.

Durante um momento não apareceu ninguém, como se a porta se tivesse aberto sozinha; mas, de súbito, entre os umbrais, surgiu uma figura estranha: dois olhos, conforme pude distinguir na obscuridade, olhavam-me fixos e insistentes.

Senti que todos os membros me gelavam. com espanto enorme reconheci que se tratava de uma pequenita; e se fosse o próprio Smith em pessoa, talvez não me assustasse tanto como com essa aparição estranha, inesperada, de uma menina desconhecida no meu quarto, àquela hora e naquele momento.

Já disse que a porta se abrira devagarinho e cautelosamente, como se ela tivesse medo de entrar. Depois de se entremostrar, parou à entrada e olhou-me com um espanto que raiava pela hipnose; finalmente adiantou dois passos, devagarinho, suavemente, e parou diante de mim sem ter pronunciado uma palavra. Examinei-a mais de perto: era uma menina de doze ou treze anos, baixinha, magra e pálida, como se acabasse de sofrer uma doença grave.

E por isso mesmo os seus olhos grandes e negros brilhavam extraordinariamente. com a mão esquerda segurava um grande lenço velho, esburacado, com o qual cobria o peito, que lhe tremia ainda do frio da noite. O vestido era um autêntico farrapo; os cabelos, pretos e bastos, estavam numa desordem.

Permanecemos assim um ou dois minutos fitando-nos mutuamente.

— Onde está o meu avô? — perguntou-me ela, finalmente, com uma voz rouca e fraca, como se tivesse o peito ou a garganta doentes.

Todo o meu pavor místico desapareceu perante esta pergunta. Perguntava por Smith; a sua pista aparecia, de repente, de uma maneira inesperada.

— O teu avô? Morreu! — disse-lhe eu bruscamente, sem pensar na minha resposta, mas em seguida arrependi-me.

A menina permaneceu um instante imóvel, e de repente pôs-se a tremer tão fortemente que eu pensei que ela ia sofrer um ataque de nervos. Tive de ampará-la para que ela não caísse. Passados poucos minutos já se sentia melhor e vi claramente que fazia esforços sobre-humanos para disfarçar a sua comoção.

— Perdoa-me, pequenita, perdoa-me! — supliquei-lhe. — Disse-te isso, assim, tão de repente... e talvez não seja assim, minha pobrezinha! Quem procuravas tu? O velho que vivia aqui?

— Sim — respondeu desanimadamente e olhando-me, inquieta.

— Chamava-se Smith?

— Chamava.

— Então é ele... Sim, morreu... Mas não chores, minha pomba. Porque não apareceste há mais tempo? E agora... donde vens tu? Foi enterrado... ontem. Morreu de repente. És neta dele?

A menina não respondeu às minhas perguntas rápidas e desordenadas. Deu meia volta em silêncio e saiu do quarto devagarinho. Eu estava tão desorientado que nada fiz para retê-la nem para continuar a interrogá-la. Ela parou outra vez à porta e, voltando-se para mim, perguntou-me:

— Azorka também morreu?

— Sim, Azorka também morreu — respondi, achando a pergunta estranha; parecia estar convencida de que Azorka havia de morrer ao mesmo tempo que o velho.

Quando ouviu a minha resposta, a pequena saiu do quarto e fechou com cuidado a porta atrás de si. Um minuto depois corri em sua busca, muito contrariado por tê-la deixado partir. Saíra tão discretamente que nem sequer ouvi abrir a porta do patamar. «Não deve ter tido tempo de abrir a outra porta», pensei, e pus-me à escuta, à entrada. Mas estava tudo em silêncio e não se ouvia o menor ruído de passos; apenas se ouviu uma porta num andar inferior, depois tudo voltou a ficar no maior silêncio. Apressei-me a descer a escada; desde o meu quarto até ao 5.º andar era de caracol, mas a partir do 4.º andar era direita. Era uma escada suja, negra e sempre escura; uma dessas escadas que costumam encontrar-se frequentemente nos prédios grandes, divididos em apartamentos modestos. Nesse momento estava já na maior escuridão.

Tacteando, desci até ao 4.º andar e parei; e de repente pareceu-me sentir que ali, no patamar, havia alguém que se colava à parede e procurava fugir de mim. Pus-me a tactear com as mãos: a pequenita, estava ali, no canto, a cara contra a parede, chorando baixinho.

— Porque tens medo? — disse-lhe. — Assustei-te, fui desajeitado; o teu avô, quando morreu, falou de ti, foi a sua última palavra... Deixou-me ali uns livros que ficam para ti, claro... Como te chamas? Onde moras? Ele disse que era na sexta rua.

Mas não acabei. Ela deu um grito de susto, parecia que de eu saber onde morava, repeliu-me com a sua mão fraca e ossuda e desceu a escada rapidamente. Corri atrás dela. Ainda se ouvia o barulho dos seus passos. De repente, esses passos interromperam-se. Quando cheguei à rua, tinha desaparecido. Corri até à Avenida Vosnessenski e as minhas pesquisas foram inúteis. «Naturalmente escondeu-se em qualquer parte», pensei, quando estava ainda na escada.

 

Mas mal pusera pé no sujo e escorregadio passeio da avenida quando choquei de repente com um transeunte que, pelos vistos, mergulhado em profundas reflexões, caminhava ligeiro e cabisbaixo. Grande foi o meu espanto quando reconheci o velho Ikmeniev.

Essa era para mim uma noite de encontros inesperados. Eu sabia que o velho Ikmeniev estivera três dias muito doente e eis que de repente o encontrava na rua, com aquela humidade! Aliás, ele já não saía à noite, e, desde a fuga de Natacha, isto é, havia quase meio ano, mal punha os pés na rua. Pareceu ficar contente por me ver, como um homem que encontra finalmente um amigo com o qual pode trocar umas impressões; estendeu-me a mão efusivamente e, sem perguntar-me onde é que eu ia, arrastou-me com ele. Mostrava um certo alarme e inquietação. «Onde poderá ir?», pensava eu. Era inútil perguntar-lho. Tornara-se terrivelmente desconfiado e, às vezes, na pergunta ou na observação mais ingénua, via uma alusão humilhante ou uma ofensa. Examinei-o às furtadelas: tinha cara de doente, estava muito mais magro e com barba de uma semana. Os cabelos, já completamente brancos, escapavam-se, revoltos, do chapéu amolgado e caíam-lhe em grandes madeixas sobre a gola do sobretudo velho e roto. Já disse antes que, às vezes, tinha momentos da mais completa distracção, esquecia-se, por exemplo, de que não estava só e punha-se a falar consigo mesmo, gesticulando e mexendo-se. Fazia pena vê-lo.

— Onde vais, Vânia? — perguntou-me ele. — Eu vim tratar dos meus assuntos. Tens passado bem de saúde?

— E o senhor? — respondi-lhe. — Ainda está convalescente e já sai...

O velho não me respondeu, como se não tivesse ouvido.

— Como está Ana Andreievna?

— Está bem... está bem, embora com os seus achaques. Anda um pouco triste. Fala muitas vezes de ti... Porque não nos vais ver? Ias agora a nossa casa, Vânia? Não estarei a aborrecer-te, a desviar-te do teu caminho? — perguntou, olhando-me desconfiadamente, pois o melindroso velho era tão sensível que, se eu lhe dissesse que não ia naquele momento a sua casa, ter-se-ia ofendido e despedido de mim. Apressei-me a dizer-lhe que ia precisamente visitar Ana Andreievna, embora soubesse muito bem que já era tarde e talvez não pudesse ir a casa de Natacha.

— Muito bem — disse, completamente tranquilizado com a minha resposta. — Está muito bem — e de repente calou-se e ficou pensativo, como se não soubesse o que havia de dizer mais. — Sim, está muito bem — repetiu maquinalmente passados alguns momentos, como se despertasse de um sonho profundo. — Hum! Olha, Vânia, tu foste sempre para nós como uma pessoa de família; Deus não nos quis dar um filho, mas enviou-nos a ti; sempre pensei isto e a minha velha também... Que Deus te abençoe por isso, Vânia. Sempre te mostraste respeitador e obediente como um filho bom e grato para connosco e nós os dois abençoamos-te e amamos-te...

A sua voz tremia; calou-se por um minuto antes de continuar.

— Mas bem, que te aconteceu? Estiveste doente? Porque estiveste tanto tempo sem nos vires ver?

Contei-lhe a história de Smith e desculpei-me também dizendo-lhe que estivera um pouco adoentado e que se me tornara difícil ir a Vassilievskoie, porque era muito longe; continuavam a viver em Vassilievskoie. Estive quase a confessar que, apesar de tudo isso, tivera oportunidade de visitar Natacha; felizmente contive-me a tempo.

A história de Smith interessou-o vivamente. Tornou-se mais atento. Quando soube que o meu alojamento era lúgubre e quase pior que o outro, e custava seis rublos por mês, indignou-se.

De uma maneira geral era muito impaciente e colérico. Apenas Ana Andreievna sabia acalmá-lo quando se punha assim, e nem sempre.

— Hum! Toma, aí tens, aí tens a literatura, Vânia! — gritou irritado. — Levou-te a uma trapeira e há-de levar-te ao cemitério! Eu já to disse, eu já to disse... e B..., ainda faz críticas?

— Morreu tísico... parece-me que já lho disse.

— Morreu! Hum! Morto! Tinha de ser! E deixou alguma coisa à mulher e aos filhos? Tu disseste-me que tinha mulher. Para que se casará essa gente?

— Não, não deixou nada — respondi com tristeza.

— Ora aí está! — gritou tão indignado como se se tratasse de um parente próximo, do seu próprio irmão. — Vês, Vânia? Eu já tinha imaginado que ele havia de acabar assim! Não deixou nada! Muito bonito! A glória imortal mas... com isso não se come. Quanto a ti, meu amigo, também já o pressentia; gabava-te, mas o coração já me adivinhava tudo. com que então B... morreu! Como é que ele não havia de morrer? A vida é bela... e este lugar também... Olha!

E com um movimento de mão repentino, impaciente, mostrou-me a perspectiva lúgubre da rua, fracamente iluminada pelos revérberos escondidos entre a névoa, as casas sujas, as lajes do chão reluzentes de humidade, os transeuntes tristes, tristes e aborrecidos por causa da chuva; todo aquele quadro, coroado pela cúpula negra, como que salpicada de tinta-da-china do céu de Petersburgo. Chegámos à praça; diante de nós erguia-se a estátua de Nicolau I no meio das trevas, um pouco iluminada em baixo pelas lanternas do gás, e mais adiante erguia-se a imensa mole sombria da Catedral de Santo Isaac, que sobressaía vagamente sobre a cor obscura do céu.

— Dizias tu, Vânia, que B... era um bom homem, generoso, simpático e simples, um homem de coração. São todos assim, simpáticos e bons. Mas a única coisa que sabem é multiplicar o número de órfãos... Hum! Sim, calculo que devem sentir-se felizes por morrer! Eh! Mais valia que fossem para longe, para qualquer parte, ainda que fosse para a Sibéria! Que queres tu, menina? — perguntou de repente ao ver no passeio uma pequenita que pedia esmola.

Era uma petizita, pequena e débil, de sete ou oito anos, o máximo, coberta de sujos andrajos; trazia os pezinhos sem meias, calçados nuns sapatos rotos. Esforçava-se por tapar o corpinho, que tremia de frio, com uma espécie de vestido sem feitio e que já lhe ficava apertado. Voltava para nós a sua carinha triste, pálida e doentia; olhava-nos com timidez e resignação e, como se receasse um mau acolhimento, estendia-nos a mãozinha trémula. O velho estremeceu também quando a viu e encarou-a tão vivamente que a assustou. Ela sobressaltou-se e afastou-se dele.

— Que queres tu, menina? -— disse-lhe ele. — Andas a pedir esmola? Então, toma...

Tremendo de comoção, rebuscou nas algibeiras e tirou duas ou três moeditas de prata; mas pareceu-lhe pouco, procurou novamente e tirou um rublo do porta-moedas, tudo quanto levava, e pô-lo na mão da mendiga.

— Deus te proteja... minha filha! Que o anjo da guarda te acompanhe!

E com a sua mão tremente fez várias vezes o sinal da Cruz sobre a infeliz; mas, de repente, ao ver que eu o observava, franziu as sobrancelhas e continuou a andar com grandes passadas.

— Olha, Vânia, não posso ver — disse, depois de um silêncio cheio de tristeza, que durou muito tempo —, não posso ver essas inocentes criaturas tiritando de frio no meio da rua por culpa dos seus malditos pais. Embora, pensando bem, que mãe seria capaz de enviar uma menina para este horror, se ela própria não fosse uma desgraçada? Provavelmente, além, no seu tugúrio, terá outros irmãozinhos e esta deve ser a mais velha; talvez a pobre mulher esteja doente ou já seja velha, e... hum!, estes não são filhos de príncipes. Há muitos neste mundo, Vânia, que não são filhos de príncipes. Hum!

Calou-se por uns momentos, pensativo.

— Ouve, Vânia, eu prometi a Ana Andreievna, prometi-lhe... isto é, concordámos os dois em adoptar uma orfazinha... a primeira que encontrássemos, naturalmente, pobre e pequenita, compreendes? Nós os dois, já velhos, aborrecemo-nos sozinhos. Hum! Simplesmente a minha mulher põe algumas objecções; por isso, fala-lhe tu, peço-te, não em meu nome, mas como coisa tua; expõe razões... Compreendes? Já há muito tempo que queria pedir-to... para que consigas o seu consentimento... mas era-me difícil. Perfilhar uma menina? Bem sei que não há necessidade disso. Era só para ouvir uma voz infantil... Bem, para quê falar de tolices? E afinal é pela minha velha que o faço, para que se distraia mais que comigo. Mas tudo isto são tolices! Olha, Vânia, desta maneira nunca mais chegamos! Tomemos um fiacre; ainda estamos longe e Ana Andreievna deve já esperar-nos com impaciência.

Eram sete e meia quando chegámos a casa de Ana Andreievna.

 

Os velhos amavam-se muito. O amor e a longa convivência tinham-nos unido com um laço indestrutível. No entanto, nem agora nem nos tempos mais felizes, nunca Nikolai Serguieitch fora muito expansivo com Ana Andreievna, e muitas vezes chegava até a ser rude, sobretudo diante dos estranhos. Algumas pessoas ternas e sensíveis experimentam uma certa timidez, um certo pudor e aversão de mostrarem o seu coração, mesmo à pessoa amada, não somente em público como também na intimidade, e apenas de longe em longe lhes escapa uma demonstração de amor, tanto mais efusiva quanto mais tempo esteve reprimida. Assim fora sempre o velho Ikmeniev para com a sua Ana Andreievna. Estimava-a e amava-a muitíssimo, embora ela não fosse mais do que uma mulher bondosa e que não sabia outra coisa senão amá-lo; e ele também não permitia muitas vezes que ela se mostrasse muito expansiva com ele. Mas desde a fuga

de Natacha, a ternura dos velhos aumentara. Sentiam doentiamente que tinham ficado sozinhos no mundo. E ainda que Nikolai Serguieitch tivesse momentos em que se punha muito sombrio, nem por isso era menos verdade que não podiam estar separados umas horas sem sentirem uma verdadeira tristeza. Parecia terem feito um acordo tácito para não falarem nunca de Natacha, como se ela não existisse. Ana Andreievna, embora isso lhe fosse muito doloroso, não ousava fazer alusão à fugitiva na presença do marido. Havia muito tempo que, no seu coração, perdoara a Natacha. Combináramos entre os dois, entre mim e ela, que eu lhe levaria notícias da sua amada filha, em quem pensava constantemente.

A velha ficava doente quando se passava um certo tempo sem receber notícias de Natacha; quando eu ia vê-la perguntava-me e tornava a perguntar-me com uma curiosidade insaciável, e as minhas palavras confortavam-na. Uma vez ia morrendo de desgosto ao saber que Natacha estava doente e até quis vê-la. Mas isto foi um caso extremo. A princípio não ousava exprimir o desejo de ver a filha, e quase sempre, depois dos nossos diálogos, quando já me tinha perguntado tudo, achava que não podia passar sem se queixar diante de mim, e afirmava que embora se interessasse pela sorte de sua filha Natacha cometera uma falta tão grande que era impossível perdoar-lhe. Mas tudo isto era fingido; havia ocasiões em que Ana Andreievna quase desmaiava, chorava, chamava por Natacha com os nomes mais doces, queixava-se amargamente do marido; depois, na presença deste, começava a fazer alusões, embora prudentes, falava de orgulho e de dureza de coração, e chegava a dizer que Deus não perdoa aos que não querem perdoar; mas não ousava tocar mais directamente na questão. Nesses momentos o velho punha-se carrancudo e sério; franzia as sobrancelhas sem dizer nada, mudava de conversa ou, finalmente, retirava-se para o seu quarto e deixava-nos sozinhos, de maneira que a mulher podia desabafar a sua tristeza com lágrimas e lamentações. Parecia que, quando eu chegava, depois de me cumprimentar, se metia no quarto de propósito para me dar tempo a comunicar a Ana Andreievna as últimas notícias de Natacha.

Foi o mesmo que fez naquele momento: «Venho todo molhado — disse quando entrou em casa. — vou lá dentro num instante. E tu, Vânia, senta-te. Conta o que te aconteceu no teu novo alojamento. Eu volto já.» E saiu dali precipitadamente, fazendo o possível por não olhar para nós, como se se envergonhasse de ser ele próprio a proporcionar a nossa conversa. Em momentos destes, quando regressava, mostrava-se severo e sério, tanto para comigo como para Ana Andreievna, e até pesaroso para consigo próprio pela sua falta de firmeza e excessiva condescendência.

— Procede sempre assim — disse-me a pobre velha, que nos últimos tempos me comunicava até os seus pensamentos mais íntimos —, procede sempre assim comigo e o mesmo faz para com a filha. Para que será todo este fingimento para comigo? Então eu sou uma estranha para ele? Podia perdoar à minha Natacha e talvez o deseje, só Deus é que sabe. À noite, chora, que eu ouço-o. Mas quando não está só faz-se forte, o orgulho enlouquece-o. Diga-me, Ivan Petrovitch, onde ia ele?

— Nikolai Serguieitch! Não sei, vinha precisamente perguntar-lho.

—- Assustei-me quando o vi sair com este tempo, de noite. «E preciso que tenha qualquer coisa de muito importante a tratar», disse para comigo. Mas que poderá ele fazer de mais importante que aquilo que já sabes? Pensei isso, mas não tive coragem para perguntar-lhe; eu agora vejo-o sempre numa aflição e por isso não me atrevo a dizer-lhe nada. Meu Deus, cheguei a pensar que ele ia vê-la, mas não tive coragem de perguntar-lho! Ele sabe tudo a respeito dela, até as coisas mais insignificantes. Eu, de facto, penso que ele está a par de tudo, mas não sei como. Ontem e anteontem passou o dia numa grande inquietação. Mas porque estás calado? Diz-me, meu amigo, aconteceu qualquer coisa? Esperava-te como a um messias. Bem, diz-me, esse malvado abandonou Natacha?

Contei a Ana Andreievna, com toda a franqueza, o que sabia. Eu era sempre muito franco para com ela. Disse-lhe que Natacha e Aliocha estavam à beira de um rompimento; que havia entre eles sérias desavenças, que Natacha me escrevera a suplicar-me que fosse vê-la nessa mesma noite, às dez, e que teria ido se não tivesse encontrado Ikmeniev. Expliquei-lhe que a situação era crítica; que o pai de Aliocha, que havia uma semana regressara da sua viagem, não queria aceitar nada, fazia grande pressão sobre o filho, e o mais grave era que o rapazote parecia agora sentir já menos repulsa pela noiva que lhe destinavam e achava-a até muito a seu gosto.

Acrescentei que Natacha me escrevera num momento de grande excitação; dizia que esta noite devia decidir-se tudo; o quê, não sabia. Também era estranho que me escrevesse com data do dia anterior, mas pedindo-me que fosse hoje, a uma hora determinada, às dez. E que, por isso, desejava ir lá o mais cedo possível.

— Vai, vai já, meu amigo, vai sem falta! — exclamou a velha. — Assim que ele voltar tomas uma chavenazinha de chá... Ah! Não trouxeram o samovar. Matriona! És uma valdevinas e não uma rapariga decente! O samovar? Já sabes, tomas uma chávena de chá e em seguida procuras um pretexto e vais. E amanhã virás sem falta contar-me tudo. Vai já! Ai, meu Deus, se aconteceu alguma nova desgraça! Apesar de tudo, que poderia ser pior que o presente! Não é verdade, Vânia? O meu marido está ao facto de tudo quanto se passa, tenho a certeza. Eu sei muitas coisas por Matriona, que se informa por intermédio de Agacha, e Agacha pelo marido de Maria Vassilievna, que servem em casa do príncipe... O meu Nikolai está de péssimo humor, zanga-se e grita, e depois custa-lhe muito falar; estamos com falta de dinheiro. Como se fosse por causa do dinheiro que ele grita assim! Tu já conheces a nossa situação. Depois do jantar meteu-se no quarto com o pretexto de se deitar um pouco, mas eu olhei por uma fresta da porta, que ele não conhece, e vi-o ajoelhado diante do oratório, a rezar.

Quando vi aquilo, as minhas pernas fraquejaram. Ele não tomou chá nem dormiu a sesta; pegou no chapéu e saiu às cinco. Não me atrevia a perguntar-lhe onde ia, pois acabaria por gritar. Grita por tudo e por nada com Matriona e algumas vezes comigo também. E quando ele começa a guinchar assim, as pernas tremem-me e parece-me que me arrancam o coração. Claro que tudo isso é forçado, bem sei que é forçado, mas, seja como for, é horrível. Quando ele partiu estive durante uma hora a pedir a Deus que lhe desse bons pensamentos... Mas onde está essa carta? Mostra-ma.

Mostrei-lha; sabia que Ana Andreievna alimentava a doce ilusão de que Aliocha, a quem ela algumas vezes chamava malvado, desalmado, outras garoto estúpido e insensível, acabaria por casar-se com Natacha, e que o pai, o príncipe Piotre Alexandrovitch, daria para isso o seu consentimento. Assim o dizia muitas vezes diante de mim, embora noutras se arrependesse e desdissesse as suas palavras. Mas por nada deste mundo se teria atrevido a exprimir as suas esperanças na presença de Nikolai Serguieitch, embora soubesse que o velho o supunha e já em mais de uma ocasião lhe dirigira censuras. Penso que amaldiçoaria definitivamente Natacha e que a expulsaria para sempre do seu coração, se acreditasse na possibilidade desse casamento.

Era esta então a opinião de todos. Ele esperava a filha com todas as ânsias do seu coração, mas esperava-a a ela sozinha, arrependida e depois de ter arrancado do coração até a recordação de Aliocha. Era esta a condição necessária para o perdão e, embora ele não o dissesse, era o que todos deduzíamos, ao vê-lo.

— É um rapaz sem carácter e de mau coração, sempre o disse — continuava Ana Andreievna. — Não souberam educá-lo, saiu um estouvado. Vai abandoná-la. Que será da pobre Natacha! Meu Deus, com o amor que ela lhe tem! Mas que achará ele de particular na outra? E estranho!

— Tenho ouvido dizer que essa rapariga é encantadora e Natacha Nikolaievna diz a mesma coisa, Ana Andreievna -— interrompi-a eu.

Tu não falas verdade! Para vocês, garatujadores de napel, assim que vêem umas saias, todas são encantadoras. Se Natacha a gaba é por generosidade. Não sabe dominá-lo, aguenta tudo e sofre. Quantas vezes a terá enganado esse malvado, esse desalmado! Mas eu, Ivan Petrovitch, fico espantado. O orgulho cega-os a todos. Se ao menos o meu marido apaziguasse o seu ressentimento, perdoasse à minha pombinha e a trouxesse para aqui... Como eu a trataria bem! Está mais magra?

— Está, sim, Ana Andreievna.

— Querido Ivan Petrovitch, como sou desgraçada! Choro dia e noite... Hei-de contar-te... Quantas vezes tenho estado quase para pedir-lhe indirectamente que lhe perdoe; mas falta-me a coragem. O coração adivinha-me, tenho medo que se zangue e nos amaldiçoe a todos. Até agora ainda não lhe ouvi maldições... mas receio muito que nos amaldiçoe. Seria uma desgraça. Quando o pai amaldiçoa, Deus também castiga. Por isso, passo a minha vida a tremer... Mas tu, Ivan Petrovitch, devias ter vergonha, tu que não recebeste de nós senão palavras de amizade, como podes achá-la encantadora? Quem esperaria uma coisa destas? Encantadora! Não é isso o que diz Maria Vassilievna, que vive em casa do príncipe, não procedi bem, mas um dia convidei-a a tomar café, quando o meu marido estava ausente, e ela contou-me todos os pormenores. O pai de Aliocha mantém relações ilícitas com uma condessa, a qual já há muito tempo o censura por não se casar com ela; mas ele faz-se desentendido. Esta condessa tornou-se notável, ainda em vida do marido, pela sua conduta escandalosa. Quando ficou viúva, partiu para o estrangeiro e aí... ora, italianos ou franceses, tanto fazia, todos lhe serviam. Foi lá que ela pescou o príncipe Piotre Alexandrovitch, pai de Aliocha. Mas a enteada, que era muito bonita, foi crescendo. Ficou-lhe do seu primeiro casamento. A condessa dava cabo da sua fortuna; a pequena ia crescendo e os dois milhões que o pai, negociante de aguardente, lhe deixara, iam também crescendo. Dizem que tem agora três milhões; o príncipe, que não é tolo, pensou: «bom partido para Aliocha!» Não é tão tolo que deixe escapar uma oportunidade destas. Há um conde seu parente, homem de elevada posição, que o apoia. Três milhões não são para desprezar. «Está bem — disse —, fala à condessa.» O príncipe foi e comunicou-lhe o seu plano; ela não o quis ouvir; é uma mulher sem princípios, dizem, uma insolente; aqui já não a recebem em parte nenhuma; isto não é como no estrangeiro. «Não — disse-lhe —, casa tu comigo, e não o teu Aliocha com a minha enteada.» Dizem que a rapariga gosta da madrasta e que lhe obedece em tudo. Segundo dizem, tem uma alma de anjo. O príncipe respondeu-lhe: «Olha, condessa, não te apoquentes. Perdeste a tua fortuna e estás crivada de dívidas. Mas se a tua enteada casar com Aliocha, farão um óptimo par; ela é uma santinha e o meu filho um palerma; nós os dois manejá-los-emos à nossa vontade, mantê-los-emos debaixo da nossa tutela e tu terás dinheiro. E em compensação — diz-me —, de que servia eu casar-me contigo?» Que espertalhão! É mesmo um pedreiro-livre! Há seis meses que isso se passou e a condessa ainda não decidiu nada; mas agora dizem que fizeram uma viagem a Varsóvia e que já se puseram de acordo. Isto foi o que me contou Maria Vassilievna, e é verdade, pois ouviu-o da boca de um homem de confiança. Portanto, aí tens: dinheiro, milhões, e além disso encantadora.

A história de Ana Andreievna ímpressionou-me profundamente, pois concordava com o que havia pouco me dissera Aliocha, jurando-me que jamais faria um casamento por dinheiro. Mas Catarina Fiodorovna ia-o conquistando e seduzindo. Além disso, Aliocha dissera-me ainda que o pai talvez se casasse também, embora repudiasse esses boatos, para não inquietar prematuramente a condessa. Já disse que Aliocha gostava muito do pai; gostava dele, elogiava-o e acreditava nele como num oráculo.

— A tal menina encantadora não é fidalga, sabes? Não é condessa — insistiu Ana Andreievna, magoada com o meu elogio da futura noiva do jovem príncipe. — Natacha seria melhor partido para ele, é nobre, uma autêntica senhora. A outra é filha de um comerciante, ao passo que Natacha... Ainda ontem, esqueci-me de to dizer, o meu velho abriu o cofre onde guarda os seus papéis e passou toda a noite a rever e a arrumar os nossos velhos pergaminhos. Estava sentado, muito sério. Eu fazia meia, sem olhar para ele, quando percebeu que eu não dizia nada, aborreceu-se, e depois, apesar disso, chamou-me e esteve a explicar-me a nossa genealogia. Os Ikmenieves, já no reinado de Ivan, o Terrível, eram nobres (*), e os meus, os Chumilov, já eram conhecidos nos tempos de Alexiei Mikailovitch (2); possuímos todos os documentos, e Karamazin (3) menciona-os na sua história. Por isso, meu amigo, já vês que neste campo não temos nada a invejar a ninguém. Assim que o velho começou a explicar-mo, compreendi imediatamente a sua intenção. Não havia dúvida que estava ferido pelo desprezo que mostram por Natacha. A outra, a mais do que nós só tem a riqueza. Mas o que é certo é que Piotre Alexandrovitch, esse bandido, vai atrás da fortuna. Isso já se sabe. Não tem coração, é um avarento. Dizem que professou secretamente nos jesuítas de Varsóvia. É verdade?

— Esse boato é absurdo — exclamei, interessando-me involuntariamente por aquele boato; e também me impressionou a notícia de que Nikolai Serguieitch se tivesse posto a rever a sua ascendência.

— São todos uns malvados sem coração — continuou Ana Andreievna. — Então ela, a minha querida, sofre e chora? Ah, já é tempo de ires ter com ela! Matriona, Matriona! Que estúpida é esta criada! Uma criminosa e não uma criada! Não a ofenderam? Diz-me tudo, Vânia.

Que havia eu de responder-lhe? A velhota chorava. Perguntei-lhe que desgraça lhe acontecera e à qual aludira havia pouco.

 

(’) Século XVI.

(2) Um dos primeiros Romanov, reinou de 1645 a 1676.

(3) Escreveu uma História do Império Russo em onze volumes. Nasceu em 1766 morreu em 1826.

 

— Ai, meu amigo, uma desgraça só não chegava; pelos vistos, o cálice ainda não estava esgotado! Olha, não te lembras que eu tinha um medalhão de ouro com o retrato da minha Natacha quando era pequena? De quando tinha apenas oito anos, o meu anjo! Encomendámo-lo a um pintor que passou por aqui; mas tu, segundo parece, já não te lembras desse retrato. Representava-a de «cupido», com os seus cabelos louros, como ela os tinha então, todos encaracolados, e uma camisinha de musselina branca, através da qual se via o corpinho... Estava tão bonita que uma pessoa não se cansava de a contemplar. Pedi ao pintor que lhe pusesse duas asas, mas ele não quis. Pois olha, eu, depois de tantos desgostos como os que temos sofrido, tirei o medalhão da caixinha onde o tinha guardado e pendurei-o ao pescoço, num fiozinho onde trago a cruz. Mas com muito medo que o meu marido o visse. Já sabes que ele mandou tirar ou queimar tudo o que havia dela nesta casa, para que nada a recordasse. Mas assim, ao menos, já podia olhar para ela, e às vezes chorava ao contemplá-la, o que me aliviava; dizia-lhe palavras ternas, e à noite, quando estava só, beijava-a como se a beijasse a ela mesma, outras vezes falava-lhe baixinho; quando estava só fazia-lhe perguntas, parecia-me que ela me respondia e então continuava a fazer mais perguntas, e antes de me deitar persignava-a... Ai, querido Vânia, como me custa dizê-lo! Estava muito contente porque ele não sabia nada nem tinha reparado no medalhão. Mas uma manhã não o encontrei. Procurei, revolvi tudo... mas em vão. Eu sabia muito bem onde o tinha posto! Julguei que morria. Continuei a procurar, a procurar... Nada! Onde poderia ter ido parar? «Talvez — disse para comigo — tenha caído na cama.» Revistei tudo, e nada! Alguém o devia ter encontrado. Mas quem poderia ter sido senão ele ou Matriona? Ela gosta muito de mim... Matriona, então o samovar? «Bem — disse para mim mesma — se foi ele que o encontrou, que irá acontecer?» Sentei-me. Invadiu-me uma grande tristeza e comecei a chorar, sem poder conter as lágrimas. Mas Nikolai Serguieitch mostra por mim maior ternura que nunca; quando repara no meu estado aflige-se, como se soubesse porque choro e tivesse dó de mim. E eu penso: como pode ele saber? Naturalmente encontrou o medalhão e destruiu-o Era capaz disso, na sua ira. Destruiu-o e agora está arrependido. Fui procurá-lo debaixo da janela, junto da fonte, com Matriona... Nada. Poderia ter caído na água. Passei a noite toda a chorar. Era essa a primeira noite em que não fazia o sinal da Cruz sobre o retrato. Ah, ah, isto é um mau agoiro, Ivan Petrovitch! Não anuncia nada de bom. No outro dia, ainda de olhos molhados, recomeço a chorar. Esperava-te a ti, meu amigo, como a um anjo de Deus, embora sentisse a alma em ferida.

E a velha rompeu num pranto desolador.

— Ah, esquecia-me de dizer-te uma coisa! — exclamou de repente, satisfeita por se ter lembrado. — Ouviste-o falar a respeito de uma órfã?

— Ouvi, Ana Andreievna. Disse-me que pensavam os dois e tinham combinado adoptar uma rapariguinha pobre, uma órfã. É verdade?

— Eu não pensei nisso. Não quero nenhuma órfã. Recordava-me a nossa infelicidade, o nosso desgosto. Eu só posso gostar da minha Natacha. Era e será a minha única filha. Mas porque teria ele essa ideia, meu amigo? Que pensas tu, Ivan Petrovitch? Talvez pense que eu possa consolar-me assim. Como me vê tão chorosa! Também pode ser que queira esquecer a filha adoptando outra. Que te disse ele de mim durante o caminho? Como o achaste, carrancudo, Cangado? Depois falaremos nisso. Não te esqueças de vir amanhã, por amor de Deus!

 

O velho entrou; olhou curioso, como se estivesse envergonhado, e sentou-se à mesa.

— E o samovar? — perguntou. — Porque não o trouxeram?

— Vem já, paizinho (), vem já — apressou-se a dizer Ana Andreievna.

Assim que viu Nikolai Serguieitch, Matriona apareceu com a chaleira, como se estivesse à espera que ele chegasse para a trazer.

Era uma velha criada, hábil e delicada, mas muito rabujenta, caprichosa e teimosa. Temia-se de Nikolai Serguieitch e diante dele sabia moderar a língua. Do que se desforrava sobejamente no seu trato com Ana Andreievna. Andava sempre a resmungar e via-se bem que tinha a pretensão de dominar a patroa, embora ao mesmo tempo a estimasse cordial e sinceramente, tanto a ela como a Natacha.

A esta Matriona já eu conhecia há muito tempo.

— Hum! Não é muito agradável chegar a casa molhado e não quererem prepararem-me rapidamente uma chávena de chá — resmungou o velho a meia voz.

Ana Andreievna olhou para mim. Ele não gostava de gestos disfarçados e naquele momento esforçava-se por não olhar para nós, mas conhecia-se-lhe na cara que reparara.

— Fui tratar de um assunto, Vânia — disse de repente. — É uma vileza. Já te contei? Condenaram-me em tudo. Claro, não tenho provas! Fazem-me falta documentos que não possuo e o inquérito é injusto. Falava no seu litígio com o príncipe, o processo arrastava-se e tomara um aspecto desfavorável para Nikolai Serguieitch. Eu calava-me, sem saber que responder-lhe. Ele olhava-me com receio.

— Então? — gritou de repente, excitado pelo nossso silêncio. — Quanto antes, melhor! Fará bem em condenar-me; não ficarei desonrado, ainda que me obriguem a pagar. A minha consciência está tranquila; condenem-me até onde quiserem. Quando me tiverem arruinado, ao menos deixar-me-ão em paz. Abandonarei tudo e irei para a Sibéria.

 

(’) Antigo tratamento, de respeito carinhoso.

 

— Meu Deus! Para onde queres tu ir? Para quê para tão longe? — exclamou Ana Andreievna.

— Que fazemos nós aqui? — perguntou-lhe ele com rudeza, como se tivesse ficado contente com a sua contrariedade.

— Mas... e as outras pessoas? — disse Ana Andreievna? olhando-me com ansiedade.

— Quais pessoas? — gritou ele passeando o olhar irritado de mim para ela e vice-versa. — Quais pessoas? Os traidores? Os ladrões? Os caluniadores? Esses existem de sobra em todos os lados. Descansa que também os encontraremos na Sibéria. E, além disso, se não quiseres vir comigo, ficas, eu não te obrigo.

— Nikolai Serguieitch... meu amigo! Que faria eu aqui sem ti? — exclamou a pobre Ana Andreievna. — Sem seres tu, já não tenho mais ninguém no mundo...

Ficou perturbada. Calou-se e olhou para mim cheia de espanto, como se implorasse protecção e ajuda. O velho estava desesperado. Tudo o irritava, era impossível contradizê-lo.

— Acalme-se, Ana Andreievna! Na Sibéria já não se vive hoje tão mal como antes. Se lhes acontecer alguma infelicidade, se se virem forçados a venderem a vossa Ikmenievka, nesse caso, o projecto de Nikolai Serguieitch é excelente. Na Sibéria pode encontrar-se facilmente uma boa propriedade e... então...

— Aí está! Ao menos tu, Ivan, compreendes-me. Foi precisamente isso o que eu pensei. Deixo tudo e vou-me.

— Não esperava isso — gritou Ana Andreievna juntando as mãos. — Também tu, Vânia! Não esperava isso de ti, Vânia... Só tens recebido mimos de nós, e agora...

— Ah! Ah! Ah! Pois que esperavas tu? Como julgas que vamos viver aqui? Pensa um pouco! O dinheiro voou; estamos a gastar os últimos copeques e com certeza não me aconselhas a ir pedir perdão ao príncipe Piotre Alexandrovitch, não é verdade?

Quando ouviu falar do príncipe, a pobre velha começou a tremer de medo; a colher de chá escapou-se-lhe das mãos e foi cair ruidosamente na tigela.

— Não, com certeza — exclamou Ikmeniev, troçando, com um sorriso maldoso e desabrido. — Que te parece, Vânia? Achas que faria bem em ir? Para que hei-de eu emigrar para a Sibéria? Amanhã cedinho, visto-me, penteio-me e calço-me. Ana Andreievna, prepara-me uma camisa nova, com pessoas desta categoria é necessário. Compro umas luvas elegantes e apresento-me diante de sua excelência: «Paizinho, Excelência, meu benfeitor, meu pai... perdoe-me e tenha dó de mim! Dê-me pão, tenho mulher e filhinhos!» Achas isto bem, Ana Andreievna? É isto o que tu queres?

— Paizinho, eu não quero nada, falei sem saber o que dizia; desculpa-me se te ofendi em alguma coisa, mas não grites — disse ela tremendo cada vez mais.

Estou persuadido de que ele sentia a alma dorida ao ver as lágrimas e o terror da sua pobre mulher; estou convencido de que sofria mais do que ela, mas não podia conter-se. E o que costuma acontecer às pessoas melhores, mas nervosas, e que apesar da sua bondade se deixam dominar pela excitação e pelo desgosto, às vezes com prazer, e chegam até, seja lá pelo que for, a ofender outras pessoas inocentes, e em particular os seres mais próximos.

As mulheres, por exemplo, sentem às vezes necessidade de armar em vítimas e desejam que se apiedem delas, ainda que não existam nem ofensas nem desgraças. Há alguns homens que, nisto, são parecidos com as mulheres, e precisamente aqueles que não têm nada de feminino. O velho Ikmeniev sentia necessidade de ralhar, embora com isso ele sofresse também.

Lembro-me de que uma ideia me veio então ao espírito. Não teria ele feito já algumas diligências do género da que propusera Ana Andreievna? Não lho inspirara o Senhor, e não saíra efectivamente com a intenção de ver Natacha, mas ter-se-ia arrependido no caminho ou se lhe frustrou qualquer coisa e desistiu do seu propósito — como fatalmente tinha de acontecer — e voltara para casa ressentido e humilhado, envergonhado dos seus recentes desejos e sentimentos, procurando alguém sobre quem descarregar a sua raiva, por causa da sua fraqueza, e escolhendo precisamente a pessoa que suspeitava que partilhava esses desejos e sentimentos’ Podia ser que, desejando embora perdoar à filha, imaginasse o entusiasmo e a alegria da pobre Ana Andreievna, e em vista do inêxito, naturalmente, descarregasse de preferência sobre ela. Quando viu a mulher tremer de espanto, conteve-se, Parecia envergonhar-se da sua cólera e, por um momento, reprimiu-se. Estávamos todos calados; eu esforçava-me por não olhar para ele. Mas esse momento durou pouco. Fosse como fosse, era preciso desabafar.

— Olha, Vânia — disse de repente —, a mim, custa-me; eu não queria, mas chegou o momento de falar francamente, sem rodeios, como um homem honesto. Compreendes-me, Vânia? Estou satisfeito porque estejas presente e quero dizer diante de ti, para que também o oiçam os outros, que todos esses suspiros e essas lágrimas me exasperam. Quando arranco alguém do meu coração, ainda que seja com sangue e dor, nunca mais esse alguém volta. E assim. Disse-o e faço-o. Refiro-me ao que aconteceu há meio ano. Compreendes, Vânia?

Levantou-se da cadeira e deu um soco sobre a mesa com tanta força que as chávenas tilintaram.

— E falo disto, francamente e intencionalmente, para que as minhas palavras não possam nunca enganar-te — acrescentou olhando com olhos cintilantes e evitando nitidamente o olhar assustado da mulher. — Repito-o: isto é um absurdo. Não quero... E o que mais me indigna é que, como a um imbecil, como o maior malandro, todos me julguem capaz de ter tão baixos, tão covardes sentimentos... Pensam que a dor me faz perder a cabeça... Que absurdo! Eu afugentei, esqueci-me dos antigos sentimentos.

— Nikolai Serguieitch, tenha piedade de Ana Andreievna — gritei, indignado, sem poder conter-me e olhando-o quase com aborrecimento. — Repare na maneira como está procedendo com ela.

Mas isto não foi senão deitar mais lenha na fogueira.

— Não há piedade! — exclamou ele tremendo e empalidecendo. — Não tenho piedade porque de mim também não a têm... Na minha própria casa há conjuras contra a minha fronte agravada, a favor de uma filha corrompida, digna de maldição e de todos os castigos.

— Paizinho Nikolai Serguieitch, não a amaldições! Tudo o que quiseres, tudo, menos isso! Não amaldições a tua filha! — gritou Ana Andreievna.

— Sim, amaldiçoo-a! — gritou o velho ainda com mais energia que antes —, já que exigem de mim, que fui ofendido, uns com suspiros e outros com alusões, que eu vá ver essa maldita e lhe peça perdão. Sim, sim, é assim mesmo! Por causa disso martirizam-me de dia e de noite, diariamente, na minha casa! Olha, Vânia -— acrescentou, tirando da algibeira uns papéis, com a mão trémula —, olha para os maços do nosso pleito, onde dizem que eu despojei o meu benfeitor, onde me chamam ladrão e esbanjador... Estou desonrado, difamado por causa dela, por sua causa!

E lançou sobre a mesa vários papéis que tirara com precipitação da algibeira, uns atrás dos outros, procurando impacientemente entre eles aquele que queria mostrar-me; mas o documento precioso parecia esconder-se propositadamente. Na sua impaciência tirou da algibeira tudo quanto lhe vinha à mão e de repente... qualquer coisa pesada e sonora caiu sobre a mesa. Ana Andreievna deu um grito. Era o medalhão perdido! Eu não queria acreditar no que via. O sangue afluiu ao rosto do velho e afogueou as suas faces.

Teve um sobressalto. Ana Andreievna levantou-se, estendeu a mão e olhou-o, suplicante. O seu rosto brilhava numa esperança alegre e luminosa. A vermelhidão, a comoção do velho, à nossa vista... Sim, sim, ela não se enganara; compreendia agora como é que o medalhão tinha desaparecido. compreendia que ele o encontrara e ficara satisfeito com o achado, e talvez, trémulo de alegria, o tivesse guardado para escondê-lo de todos os olhares; talvez, sozinho, às escondidas de todos, se comprazesse em contemplar o rosto da filha querida... sem nunca se cansar; talvez ele, tal como a infeliz mãe, se escondesse de todos para falar com a sua adorada Natacha, para imaginar as suas respostas e responder por ela, e à noite, numa tristeza torturante e lançando suspiros, beijaria a imagem querida e, em vez de maldições daria o seu perdão e a sua bênção àquela que não queria ver e amaldiçoava à frente dos outros.

— Então ainda gostas dela, meu querido? — exclamou Ana Andreievna sem poder conter-se, diante daquele pai sombrio que havia um instante amaldiçoara a sua Natacha.

Ao ouvir isto, uma cólera ensandecida brilhou nos olhos do velho. Pegou no medalhão, atirou-o ao chão e espezinhou-o furiosamente.

— Para sempre, amaldiçoou-a para sempre! —- gritou com uma voz tremendamente cortante. — Para sempre, para sempre!

— Meu Deus! — exclamou a velha. — A ela, a ela, à minha Natacha! A carinha da minha Natacha debaixo dos teus pés! Tirano, cruel, orgulhoso, coração de pedra!

Quando ouviu os gemidos da mulher, o velho furioso quedou-se espantado daquilo que fizera.

De repente, pegou no medalhão e ia já para sair, mas ainda mal saíra do quarto caiu de joelhos, agarrando-se com as mãos ao divã, que estava próximo, apoiando a cabeça inerte sobre ele. Soluçava como uma criança, como uma mulher. Os soluços assaltavam-lhe o peito, como se quisessem aniquilá-lo. O severo velho estava nesse instante mais débil que uma criança. Oh, agora já não podia amaldiçoar; agora já não se envergonhava de nós, e no seu irreprimível arrebatamento de amor pôs-se na nossa presença a cobrir de beijos inumeráveis o retrato que um minuto antes espezinhara sobre o chão. Parecia que toda a sua ternura, todo o seu amor pela filha, tanto tempo reprimidos, irrompiam agora com uma força irresistível e ao estalarem com essa força arrastavam atrás de si todo o seu ser.

— Perdoa-lhe! Perdoa-lhe! — gritou Ana Andreievna abraçando-o. — Deixa que ela volte para casa de seus pais, meu querido, que Deus, no seu terrível juízo, há-de levar em conta a tua mansidão e a tua clemência!

— Não, não, nunca! — exclamou ele com voz estridente e ofegante. — Nunca, nunca!

 

Só pelas dez horas consegui aparecer em casa de Natacha. Ela vivia agora no cais de Fontanka, perto da ponte Semionovski, no sujo prédio principal do comerciante Kolotuchkin, no 4.º andar. Nos primeiros tempos, quando da sua fuga da casa paterna, ela e Aliocha moravam num andar, não muito grande mas bonito e cómodo, na Liteinaia (’). Mas em breve se acabaram os recursos do jovem príncipe. Não se tornara professor de música; começou a pedir dinheiro emprestado e contraiu dívidas enormes. Gastava o dinheiro em pagar o andar e em presentes para Natacha, que protestava contra esse esbanjamento, ralhava com ele e às vezes até se punha a chorar. O sensível e terno Aliocha, que era capaz de passar uma semana inteira a pensar com prazer no presente que lhe daria e como é que ela o acolheria, que fazia disso uma verdadeira festa e estava constantemente a falar-me das suas esperanças e ilusões, ficava tão desanimado com aqueles ralhos e lágrimas que sofria dolorosamente e, por causa desses presentes, surgiam entre eles censuras, discussões e desgostos. Além disso, Aliocha gastava muito, às escondidas de Natacha, divertindo-se com antigos camaradas que o impeliam a enganá-la... Ia com Josefinas e Minas (2), apesar de amá-la loucamente. Amava-a até com certa dor. Dizia-me muitas vezes, triste e -pesaroso, que o humilhava valer menos que um dedo da sua Natacha e que se

 

(’) Uma das principais avenidas de Petersburgo. (2) Nomes de tocattes alemãs.

 

sentia incapaz de elevar-se até ela e de fazer-se digno do seu amor.

Em parte, tinha razão. Eram completamente diferentes. Ele sentia-se uma criança diante dela e ela olhava-o sempre como uma criança. Confessava-me, com as lágrimas nos olhos, as suas aventuras com Josefinas e pedia-me que não falasse disso a Natacha; e quando, tímido e irritado, ia vê-la em minha companhia (infalivelmente em minha companhia), afirmava-me que não se atrevia a enfrentar o seu olhar, depois da sua falta, e que só eu podia valer-lhe. A Natacha bastava vê-lo para adivinhar tudo. Ela era muito ciumenta e nem sei como podia perdoar-lhe sempre todas as suas culpas. De uma maneira geral, as coisas passavam-se assim: Aliocha entrava comigo e começava a falar-lhe com humildade, olhando-a timidamente, nos olhos. Ela adivinhava imediatamente que ele tinha culpas, mas não dizia nada, nem começava logo a falar nisso, nem lhe fazia censuras e, pelo contrário, começava a acariciá-lo e punha-se muito contente, e não por uma atitude estudada ou por fingimento, mas sinceramente, pois para esta admirável criatura era um prazer perdoar e amar.

Parecia que, perdoando a Aliocha, experimentava uma satisfação especial. Mas por enquanto tratava-se apenas de Josefinas. Ao vê-la assim tão clemente e mansa, Aliocha já não podia conter-se e punha-se então ele próprio a contar-lhe tudo sem que ninguém o interrogasse, para desabafar e ficar como antes, conforme dizia.

Quando lhe perdoávamos, o seu entusiasmo não tinha limites. As vezes até chorava de júbilo, de prazer. Beijava-a e abraçava-a. Depois ficava muito contente e começava a contar-nos com uma sinceridade infantil todos os pormenores das suas relações com Josefina; ria-se, ria-se às gargalhadas, e o serão terminava bem, alegremente.

Quando se lhes acabou o dinheiro, começou a vender objectos. Para alojamento de Natacha procuraram um quarto pequenino, barato, no Fontanka.

Continuaram a vender coisas; Natacha chegou a vender vestidos e a procurar trabalho de costura; quando o soube, Aliocha ficou desesperado; jurou, gritou que se desprezava a si próprio, mas com isso não se remediava nada.

Actualmente, até esses últimos recursos se lhe tinham acabado. Restava-lhe apenas o trabalho; mas a retribuição era insignificante.

Nos primeiros tempos em que viveram juntos, Aliocha teve grandes altercações com o pai. A insistência do príncipe em querer casar o filho com a enteada da condessa, Catarina Fiodorovna, não passava de um projecto; no entanto, estava bem aferrado a este projecto. Apresentou a Aliocha a sua futura noiva, incitou-o a esforçar-se por se lhe tornar simpático e obrigou-o a isso com muitos conselhos; entretanto o caso dificultava-se por causa da condessa. Depois o pai começou a fechar os olhos sobre as relações do filho com Natacha, confiado no tempo e esperando que, dada a leviandade do rapaz, o tempo esfriaria o seu amor. Quase deixou de importar-lhe a hipótese de o filho casar-se com Natacha.

Os amantes, esses, tinham adiado este projecto até à reconciliação com o pai e até que as circunstâncias mudassem.

Era visível, para mais, que Natacha não queria falar disso. Aliocha dissera-me em segredo que o pai estava muito contente com toda esta história, pois gozava com a humilhação dos Ikmenieves.

Somente por formalidade continuara a mostrar má cara ao filho; reduziu-lhe a sua já bastante exígua pensão (era demasiado avaro com ele) e ameaçou-o de retirar-lha completamente; mas em breve partiu para a Polónia, ao encontro da condessa, que tratava então aí dos seus interesses, sempre com a ideia de conseguir o seu projecto nupcial. A bem dizer, Aliocha era ainda muito novo para se casar; mas a noiva que ele lhe propunha era muito rica e não se podia pensar em perder tal oportunidade. O príncipe conseguiu o seu fim. Até nós chegaram rumores de que finalmente o casamento fora combinado. No tempo a que me refiro acabava o príncipe de regressar a Petersburgo. Acolheu o filho afavelmente, mas a sua teimosia em continuar com Natacha desgostou-o. Começou a duvidar, a recear. Exigiu-lhe enérgica e terminantemente a ruptura; mas depois pensou que seria melhor apelar para outros meios e levou Aliocha a casa da condessa. A enteada, embora fosse ainda quase uma criança, tinha fama de possuir uma grande beleza, uma grande bondade e um espírito sereno e alegre, inteligente e sensato. O príncipe pensava que seria necessário meio ano para conseguir o seu objectivo, que Natacha depois não teria já para seu filho o atractivo da novidade e que ele não olharia para a sua futura noiva da mesma maneira que agora. Em parte, mas apenas em parte, acertou. De facto, Aliocha ficou seduzido. Acrescentarei que o pai, de um momento para o outro, começou a mostrar-se muito amável com o filho (excepto na questão de dinheiro). Aliocha suspeitava que debaixo dessa afabilidade se ocultava um propósito decidido, irrevogável, e sofria... embora não tanto como teria sofrido se não visse todos os dias Catarina Fiodorovna. Eu sabia que havia já cinco dias que Aliocha não ia a casa de Natacha. com a avidez de vê-la, que sempre conservei, corri até lá, de casa dos Ikmenieves, pensando naquilo que ela queria dizer-me. Logo ao longe descobri uma vela acesa na janela. Havia muito tempo que combináramos que ela poria uma vela na janela quando tivesse uma grande e imprescindível necessidade de me ver, para que, se por casualidade me acontecesse passar por ali próximo (o que se dava quase todas as noites), ao ver essa luz desacostumada na janela, eu pudesse compreender que ela me esperava e que eu lhe era necessário. Nos últimos tempos rara era a noite em que faltava a luz...

 

Fui encontrar Natacha sozinha. Passeava pelo quarto de um lado para o outro, com os braços cruzados no peito e como se estivesse afundada num sonho. Há já algum tempo que o samovar me esperava sobre a mesa.

Natacha estendeu-me a mão em silêncio e a sorrir. Tinha a cara pálida, a expressão era de sofrimento. No seu sorriso havia qualquer coisa de resignado, doloroso e terno. Os seus olhos claros pareciam maiores que de costume, e os cabelos mais espessos, naturalmente por efeito da magreza e da doença.

— Julguei que não vinhas — disse, estendendo-me a mão. — Ia mandar Mavra para ver se estavas doente.

— Não, não estive doente, é que me entretiveram. Eu já te conto. Que há de novo?

— Nada — disse ela fingindo surpresa. — Porque me fazes essa pergunta?

— Como me escreveste ontem marcando-me uma hora e dizendo-me que não deixasse de vir pontualmente, nem mais cedo nem mais tarde, e isto não é normal...

— Ah, sim! É que julguei que ele viria hoje...

— Mas ele não vem todos os dias?

— Não; e eu pensava que, se ele não viesse, teria de falar contigo — acrescentou depois de um momento de silêncio.

— E tu esperava-lo esta noite?

— Não, não esperava. Esta noite vai ele até lá.

— E tu pensas, Natacha, que já não virá mais?

— Há-de voltar, com certeza — respondeu, olhando-me com uma seriedade especial.

Não lhe agradava a rapidez das minhas perguntas. Ficámos um momento calados, continuando a passear pelo quarto.

— Estive bastante tempo à tua espera — disse, sorrindo de novo. — Sabes o que eu fazia? Olha, passeava de um lado para o outro recitando uns versos. Lembras-te? O pequeno chocalho, o caminho sob a neve. O samovar que ferve sobre a mesa de carvalho... Nós recitávamo-los juntos (l) :

 

           O Sol já se pôs; o caminho está claro

           E a noite olha com os seus milhões de pupilas turvas...

           E depois:

           De repente o meu ouvido escuta... a voz apaixonada do poeta

 

Vibrando no doce tilintar do chocalho. «Oh, quando, quando chegará o meu amigo. Para descansar no meu regaço!»

Que hora tão doce! Brilhando sobre os vidros, A Lua começa a brincar com o orvalho. O samovar ferve sobre a mesa de carvalho O fogão crepita e jorra luz, num canto. Atrás da cortina colorida está o leito...

«Que bonito! Que versos tão comovedores e que quadro tão fantástico eles descrevem! Há apenas a tela, o desenho está só esboçado... podemos bordar nele o que quisermos. Duas comoções, a primeira e a última. , «Esse samovar, essa cortina de indiana... como isso tudo é familiar! Tal como nas casas abastadas da nossa vila; a mim, parece-me que vejo essa casa; novinha, de madeira, ainda sem tábuas a revesti-la... E também este outro quadro:

 

(’) Versos de um poema de Pblonski, poeta posterior a Puchkin.

 

Depois a mesma voz se torna a ouvir, Ressoando tristemente no tilintar do chocalho. Onde está o meu velho amigo? Tenho medo de que ele não venha mais

Para me encher de beijos e carícias. Oh, que vida a minha! Tão triste, tão mesquinha! Como está triste este quarto! O vento sopra sobre os vidros! Lá fora há apenas uma torre que a névoa já não deixa ver; Pode ser que tenha desaparecido.

Oh, que vida! As cortinas do meu leito já estão descoloridas! Estou doente mas não volto para casa de meus pais. Seria enganar a todos... Para mim não haveria mais perdão... E a velhota começaria logo a resmungar...

«Estou doente. Esse doente, como está bem aplicado. Seria enganar a todos... quanta ternura e languidez nestes versos e quantas saudades dolorosas; mas uma dor dessas que a própria pessoa provoca e ama... Senhor, como isso é tudo tão verdadeiro!

Ficou calada, como se se abandonasse ao começo de uma vertigem mental.

— Meu querido Vânia! — disse, depois de uns minutos de silêncio.

Em seguida calou-se de repente, como se se esquecesse do que queria dizer ou dissesse aquilo só por dizer, levada por um impulso de momento. E ao mesmo tempo continuávamos a passear pelo quarto. Em frente da imagem ardia uma lamparina. Nos últimos tempos Natacha mostrava-se mais devota, mas não gostava que lhe falassem disso.

— O quê? Há festa amanhã? — perguntei-lhe. — acendeste a lâmpada?

— Não, não há festa — respondeu. — Mas senta-te, Vânia, deves estar cansado. Queres chá? Ainda não o tomaste? Donde vens agora?

— De casa deles — era assim que designávamos sempre os pais dela.

Submeteu-me a um verdadeiro interrogatório. Devido à comoção, a cara tornara-se-lhe ainda mais pálida. expliquei-lhe pormenorizadamente o meu encontro com o velho, a minha conversa com a mãe e a cena do medalhão. Contei-lhe tudo minuciosamente, sem omitir nada. Escutava-me avidamente, bebendo cada uma das minhas palavras. Eu nunca lhe escondia nada. Brilhavam lágrimas nos seus olhos; a cena do medalhão provocou-lhe uma comoção violenta.

— Diz-me mais coisas, Vânia, mais coisas! — disse, interrompendo a minha narrativa a todos os momentos. — Dá-me mais pormenores, diz-me tudo, tudo, com o máximo de pormenores que possas. Tu saltas muitas coisas.

Repeti-lhe a minha narrativa pela segunda e terceira vez, respondendo largamente às suas contínuas perguntas.

— Achas que, de facto, ele queria vir aqui? — perguntou depois de um momento de silêncio.

— Não sei, Natacha, não faço a menor ideia. Que ele está triste por tua causa, e gosta de ti, salta à vista... Tenho a certeza de que gosta de ti e sofre por te ter perdido; quanto a ter a intenção de vir ver-te, isso... isso...

— Dizes que beijou o meu retrato? E que dizia quando o beijava?

— Apenas palavras soltas, exclamações. Chamava-te os nomes mais ternos... chamava-te...

— Chamava-me!

— Sim.

— Coitados! — disse. — E ele sabe tudo — acrescentou depois de um silêncio. — Isso não é prudente. A respeito do pai de Aliocha também sabe muitas coisas.

— Natacha — disse-lhe eu timidamente. — vamos vê-los... vem comigo, queres?

— Quando? — disse alarmada e estremecendo no seu lugar.

Pensava que eu queria ir naquele mesmo instante.

— Não! Não falemos mais nisso... é melhor, Vânia — acrescentou cruzando as mãos sobre o peito e sorrindo tristemente. — Não, meu amigo! Insistes sempre sobre a mesma coisa, mas não me fales-mais disso...

— Então... nunca, nunca mais esta terrível história terá fim — gritei desolado. — És tão orgulhosa que não te decides a dar o primeiro passo. Ele só espera isso, tu deves ser a primeira. Talvez não espere senão isso para perdoar-te... Ele é teu pai, tu ofendeste-o. Respeita a sua dignidade, que é lógica, que é natural. É isto o que deves fazer! Vem, que ele perdoar-te-á sem condições.

— Isso é impossível, Vânia, e não me censures inutilmente. Desde que os abandonei tenho pensado nisso dia e noite. Quantas vezes não falei disto contigo! E tu mesmo sabes que não é possível tentar uma coisa dessas. Não, meu amigo, não posso! Se o tentasse ainda se enfurecia mais contra mim. O passado não volta, e sabes porque é impossível que volte? Porque é impossível que voltem aqueles anos felizes da minha infância que passei com eles. Ainda que o pai perdoasse, agora já não me reconheceria. Ele amava ainda em mim a criança, a menina. Amava a minha inocência infantil. Quando me acariciava olhava-me ainda na testa, como quando eu tinha sete anos e, sentada sobre os seus joelhos, lhe cantava as minhas cantiguinhas de roda. Desde a primeira até à última noite em que estive com eles, sempre foi até à minha cama para abençoar-me. Um mês antes da nossa desgraça comprou-me uns brincos sem eu saber. Estava contente como um petiz, pensando como eu ia ficar satisfeita com o presente, e zangou-se muito com todos, e comigo em primeiro lugar, quando lhe disse que havia já algum tempo estava ao facto da compra dos brincos. Três dias antes da minha saída notou que eu estava triste e afligiu-se tanto que até ficou adoentado e... sabes o que ele fez? Para me distrair, empenhou-se em levar-me ao teatro... Oh, meu Deus! Julgava que podia assim curar a minha tristeza. Repito-o, ele via e amava em mim a criança e não queria pensar que algum dia me tornaria mulher. Isto não lhe entrava na cabeça. Se eu voltasse agora para casa não me reconheceria. Ainda que me perdoasse, quem é que ele receberia agora? Eu já não sou a mesma. Já vivi muito. Embora lhe agradasse assim, ele havia de suspirar pela felicidade passada e teria de reconhecer com desgosto que eu já não sou a mesma de antes, de quando ele amava ainda em mim a criança, e o que passou parece sempre melhor. E sempre com dor que o recordamos! Oh, e que belo é o passado, Vânia! — exclamou, interrompendo-se com este grito, que lhe confrangia dolorosamente o coração.

— É verdade o que tu dizes, Natacha — respondi-lhe ell — Mas isso significa que, agora, terá de conhecer-te e querer-te outra vez... Porque o principal é conhecer... Mas que importa? Pensas por acaso que ele não será capaz de compreender-te? Ele, com o coração que tem...

— Vânia, não sejas injusto. Que tem de especial que me compreenda? Eu não estava a falar disso... Mas escuta. O amor paterno também tem os seus ciúmes. Ele está ofendido por eu ter convivido com Aliocha sem ele saber. Ele sabe que nem sequer suspeitava isto, e ainda mais, que as infelizes consequências do nosso amor e a minha fuga lhe custa a minha ingrata dissimulação. Eu não fui ter com ele desde o princípio, não lhe revelei o menor palpitar do meu coração desde o começo do meu amor; pelo contrário, ocultei-lhe tudo, escondi-me dele. E afirmo-te, Vânia, essas dissimulações doem-lhe mais, ofendem-no mais que as próprias consequências do meu amor... Isto é, o meu afastamento deles e a minha entrega total ao meu amante. Suponhamos que ele me recebe agora como um pai carinhoso e afável; ainda assim restar-lhe-ão alguns motivos de hostilidade. Ao segundo, ao terceiro dia surgiriam as reticências, as recordações, as censuras. Embora me perdoasse não o faria incondicionalmente. Suponhamos que eu, no fundo do meu coração, reconheço que ele tem direito a estar ressentido até ao último extremo, que sou culpada. E embora me seja doloroso que ele não queira compreender quanto me custa a mim própria esta felicidade com Aliocha e os sofrimentos que eu própria tive de padecer, que me submeto em tudo à sua vontade e a tudo me resigno... pois, ainda assim, tudo isso há-de parecer-lhe pouco. Exigirá de mim uma submissão impossível; exigirá que renegue o meu passado, que renegue Aliocha e o meu amor por ele. Há-de pretender o impossível: que volte ao passado e apague da nossa vida este meio ano. Mas eu não posso renegar nada disso, eu não posso renunciar... O que aconteceu, tinha de acontecer... Não, Vânia, agora já não é possível! Ainda não chegou o momento.

— Então quando chegará?

— Não sei. Ainda devo sofrer pelo nosso bem futuro... comprá-lo ao preço de novas torturas. O sofrimento purifica tudo!

Fiquei calado e olhei-a, pensativo.

— Porque me olhas assim, Aliocha... isto é, Vânia? — exclamou, enganando-se e rindo do seu erro.

— Vejo-te rir, Natacha. Onde foste buscar esse riso? Há pouco não o tinhas.

— Pois que tem o meu sorriso?

— Mostra que, verdadeiramente, ainda conservas a Candura infantil... Mas quando te ris, parece que se te aperta o coração... Estás mais magra, Natacha, até parece que tens o cabelo mais farto; é esta a recompensa que te dão? Isso também é obra dele?

— Como tu gostas de mim, Vânia! — respondeu, olhando-me com afecto. — E tu, que fazes agora? Trazes qualquer trabalho entre mãos?

— O costume; escrevo romances, mas com muito custo e sem proveito. A inspiração não me acode. Não é possível escrever e concentrar a atenção quando se está triste; a dor destrói as ideias felizes. Além disso, para os jornais é preciso escrever com prazo fixo. Eu, agora, penso deixar o romance e escrever narrativas curtas, qualquer coisa de leve e gracioso e sem ponta de tristeza. Estou decidido. Toda a gente precisa de estar contente e divertir-se!

— Pobre de ti! Trabalhas tanto... E Smith? —- Smith morreu.

— Ele não te apareceu? Digo-te isto a sério, Vânia, porque estás com os nervos escangalhados; tudo isso são desvarios.

Quando me falaste em alugar esse quarto logo te avisei. Deve ser um quarto húmido e insalubre.

— Isso é. Ainda esta noite me aconteceu lá uma coisa... Mas depois te contarei...

Ela estava agora afundada numa meditação profunda.

— Como poderia eu escapar-me deles? Devia ter febre — disse, olhando-me com uns olhos que não esperavam resposta

Se eu lhe tivesse falado naquele momento, não me ouviria.

— Vânia — disse-me com uma voz quase imperceptível pedi-te que viesses para falar-te de uma coisa.

— De quê?

— Rompi com ele. É preciso acabar com esta vida. Chamei-te para desabafar contigo tudo quanto tenho calado até agora.

Era sempre assim que a pobrezinha começava as suas confidências, anunciando-me segredos, mas percebendo logo que eu já os conhecia todos.

— Ai, Natacha! Já te ouvi mil vezes dizer a mesma coisa! Não duvido de que, embora vivam juntos, nada haja de comum entre vocês; a vossa união é um tanto estranha. Mas... terás coragem para separar-te?

— Até hoje havia apenas essa intenção, Vânia, mas agora estou resolvida. Gosto dele até à loucura; no entanto, compreendo que sou o seu primeiro inimigo, que estou a estragar o seu futuro. É preciso que lhe devolva a sua liberdade. Casar-se comigo, não pode, não tem energia para fazer frente ao pai. E eu também ”não posso obrigá-lo. E além disso fico muito satisfeito se ele casar com essa noiva que lhe arranjaram. Assim não lhe custará tanto separar-se de mim. Devo fazê-lo. É a minha obrigação... Se o amo devo sacrificar tudo por ele, devo provar-lhe o meu amor, tenho obrigação disso. Não é verdade?

— E poderás convencê-lo?

— Nem sequer o tentarei. Se entrasse aqui neste momento, seria para ele a mesma de sempre. Mas tenho a obrigação de encontrar um meio para que ele me abandone sem remorsos. É isto o que me aflige, Vânia. Não serias capaz de aconselhar-me qualquer coisa?

— Só há um meio — disse eu —, deixá-lo completamente e amar outro. Simplesmente, é difícil; já conheces o seu carácter. Há cinco dias que não vem. Suponhamos que te abandonou definitivamente; não tinhas mais nada a fazer senão escreveres-lhe uma carta dizendo-lhe que eras tu quem o deixavas e verias como ele vinha logo.

— Porque não gostas dele, Vânia?

— Eu?

— Sim, tu, tu. Tu és o seu inimigo secreto e raivoso. Tenho visto muitas vezes que o teu maior prazer é rebaixá-lo e enegrecê-lo. Sobretudo pintá-lo de cores negras; digo-te isto a sério.

— Já mo disseste mil vezes, Natacha! Basta, Natacha! Falemos de outra coisa.

— Queria mudar-me para outro quarto — disse outra vez. — Mas não te aborreças, Vânia...

— Juro-te que não estou aborrecido! Mas para que te hás-de mudar? Ele dava logo contigo.

— O amor é poderoso e o seu novo amor retê-lo-ia. Se voltasse para mim, não seria senão por um momento... Não achas?

— Não sei, Natacha. Nesse homem tudo é inexplicável. Quer casar-se com outra e amar-te a ti. Ele é capaz de tudo ao mesmo tempo.

— Se eu tivesse a certeza de que ele a amava, então, Vânia, não me escondas nada! Sabes alguma coisa e não me queres dizer?

Olhou-me com olhos inquietos e indagadores.

— Não sei nada, minha amiga, palavra de honra. Sempre fui franco para contigo. Aliás, suponho que não deve estar tão apaixonado pela enteada da condessa como pensamos.

— Achas, Vânia? Meu Deus, se isso fosse verdade! Só queria que ele entrasse neste momento, pois conhecia logo tudo na sua cara. Mas não vem, não vem!

— Espera-lo, Natacha?

— Não. Ele está com ela, bem o sei... mandei indagar... Quanto eu daria para vê-la, a ela! Ouve, Vânia, vou dizer um absurdo, mas não será possível que eu a veja, não poderei chegar um dia a conhecê-la? Que pensas tu?

Aguardava a minha resposta num desassossego.

— Vê-la, ainda seria possível... Mas vê-la, só, é pouco.

— Eu contentar-me-ia em vê-la; isso bastava para eu adivinhar o resto. É que eu endoideço a andar assim, sozinha, com os meus pensamentos, por este quarto, para trás e para diante! Pensamentos como um torvelinho, tão dolorosos! Pensei se tu não poderias conhecê-la. Disseste-me que a condessa elogiou muito o teu romance. Tu vais algumas noites a casa do príncipe R..., onde ela também vai. Procura que ta apresentem. Aliocha mesmo pode apresentar-ta. Depois poderás dizer-me tudo aquilo que me interessa.

— Natacha, minha amiga, falaremos disso depois. Mas diz-me seriamente: achas que terás coragem para uma ruptura? Examina-te agora. Estás serena?

— Havia de ter — disse muito baixo. — Por ele... tudo. A minha vida toda por ele! Mas escuta, Vânia, o que me enlouquece é pensar que agora ele está com ela, esquecido de mim, sentado ao seu lado, conversando e rindo, lembas-te?, como quando se sentava aqui... Olha-a nos olhos... Ele olha sempre assim, e nem sequer se lembra de que eu estou aqui... contigo...

— E és tu, Natacha... aquela que há pouco dizia...

— Unamo-nos e não nos separemos nunca — atalhou-me com olhos cintilantes. — Eu estou-lhe grata por isto. Mas custa muito, Vânia, que seja ele o primeiro a esquecer-me. Ai, Vânia, que suplício! Nem eu mesma me compreendo. Penso uma coisa e depois outra... Que vai ser de mim?

— Basta, basta, Natacha, acalma-te!

— Já lá vão cinco dias que a todas as horas, a todos os momentos... A sonhar, acordada, sempre ele, ele! Vânia, vamos até lá, leva-me.

— Basta, Natacha, não vamos.

— Estava à tua espera, Vânia! Há três dias que penso neste projecto. Por isso te escrevi... É preciso que me leves, não deves negar-te a isso... Esperava-te há três dias...

Parecia fora de si. No vestíbulo ouviu-se um ruído; parecia que Mavra discutia com alguém.

— Escuta, Natacha! Quem será? — perguntei-lhe. Escutou com um sorriso incrédulo e, de repente, fez-se

terrivelmente pálida.

— Meu Deus! Quem será? — disse com voz sumida. Quis reter-me, mas eu precipitei-me para o vestíbulo, ao

encontro de Mavra. Era quem eu supunha! Era Aliocha. Ele perguntava qualquer coisa a Mavra, e esta, a princípio, não queria deixá-lo entrar.

— De onde vens tu? — dizia ela cheia de autoridade.

— Como? Está bem, está bem; mas por onde temos andado? Agora vai-te. A mim não me enganas tu. Vamos, desaparece. Que disseste?

— Não tenho medo de ninguém... vou entrar! — disse Aliocha um pouco desconcertado.

— bom, vai-te. És demasiado estouvado.

— Eu entro... Ah! O senhor está aqui? — exclamou quando me viu. — Muito prazer em vê-lo! Bem, já aqui estou! Que devo fazer?

— Entrar, simplesmente — respondi-lhe. — De que tem medo?

— Eu não tenho medo de nada, afirmo-lhe, porque eu, para com ela, Deus é testemunha, não sou culpado. Pensa talvez que o sou? Pois vai ver como eu me justifico imediatamente. Natacha, posso entrar? — disse com um peculiar sorriso afectuoso, de pé, diante da porta fechada.

Ninguém lhe respondeu.

— Que significa isto? — perguntou com inquietação.

— Nada; ela estava aí há um momento — respondi eu.

— Talvez qualquer coisa...

Aliocha abriu a porta e, cautelosa e timidamente, deitou um olhar para o quarto. Não estava ninguém. Depois, de repente, viu Natacha escondida entre o armário e a janela. Estava aí escondida, mais morta do que viva.

Quando me lembro disto ainda hoje não posso deixar de sorrir. Aliocha aproximou-se dela devagarinho.

— Natacha, que tens? Boa noite, Natacha — disse timidamente, olhando-a com certo receio.

— Quem... eu? Nada! — respondeu ela terrivelmente comovida, como se tivesse cometido qualquer falta. — Queres chá?

— Natacha, escuta — disse Aliocha completamente transtornado —, pensas que sou culpado mas não o sou... De maneira nenhuma! Tu própria hás-de ver... Hei-de contar-te tudo!

— Para quê? — murmurou Natacha. — É inútil. Toma a minha mão de amiga e o resto acabou-se para sempre — e quando saiu do seu esconderijo as cores começavam a subir-lhe às faces. Vinha de olhos baixos, como se não se atrevesse a olhar para Aliocha.

— Oh, meu Deus! — exclamou ele comovidamente. — Se eu tivesse alguma culpa não me atreveria a olhá-la no rosto depois disto. Repare, repare! — gritou encarando comigo. — Considera-me culpado; estão todos contra mim, todas as aparências me condenam. Há cinco dias que não venho. Correm boatos de que estou com a noiva e que faz ela? Despede-me. Diz-me: «Dá-me a mão e acabou-se!» Natacha, minha querida, meu anjo, eu não tenho culpa, tu bem sabes! Eu não tenho culpa de nada! Pelo contrário!

— Mas... tu, lá... Tu, agora, foste convidado para. lá... Como é que estás aqui? Que horas são?

— Dez e meia. Estive lá, é verdade... Mas disse-lhes que me sentia indisposto e vim, e esta é a primeira, a primeira vez que em cinco dias me vejo livre, que consegui deixá-los e vir ver-te, Natacha. Claro que podia ter vindo antes, mas foi intencionalmente que o não fiz. Porquê? Já vais saber, eu já explico. Foi para isso que vim, para explicar-te, e juro-te em nome de Deus que desta vez não tenho nada que censurar-me diante de ti. Nada!

Natacha levantou a cabeça e olhou-o... Como resposta os olhos do rapaz brilharam com tal alegria, com um tão honesto alvoroço, que era impossível não acreditá-lo. EU pensava que eles, como tantas outras vezes, iriam lançar um grito e atirarem-se nos braços um do outro. Esperei um desses momentos de reconciliação que já tinha presenciado. Natacha, como se sufocasse de felicidade, inclinou a cabeça no seu peito e de repente começou a chorar... Aliocha não pôde conter-se. Lançou-se a seus pés. Beijava-lhe as mãos e os pés, parecia delirante. Aproximei uma cadeira e ele sentou-se. As pernas fraquejavam-lhe.

 

Um instante depois ríamos como loucos.

— Mas deixem-me, deixem-me contar-vos — gritou Aliocha impondo a sua voz sonora sobre os nossos risos. — Eles julgam que, agora, é o mesmo de antes... Que me entretenho com ninharias... Mas eu digo-vos que trago entre mãos um assunto interessantíssimo... Então não se calam?

Ardia de impaciência por falar. Pelo seu aspecto podia concluir-se que trazia notícias importantes. Mas a própria gravidade do seu rosto, ingenuamente ufana, fazia rir Natacha. Eu pus-me também a rir, e quanto mais ele se zangava connosco mais nós nos ríamos. A zanga e o desespero infantil de Aliocha acabaram depois por nos pôr nesse estado de espírito em que basta mostrar o dedo mínimo para imediatamente se desatar a rir, como o marinheiro de Gogol. Mavra, que chegava da cozinha, parou à porta e, olhando-nos com sincero desgosto, lamentou que a boa Natacha não tivesse deixado Aliocha na rua, como esperara que acontecesse durante esses cinco dias, e que ainda por cima estivéssemos todos tão contentes. Finalmente, quando viu que os nossos risos ofendiam Aliocha, Natacha deixou de rir.

— Que queres tu contar-nos?

— Então o samovar não se prepara? — perguntou Mavra intrometendo-se, sem a menor consideração por Aliocha.

— Vai-te embora Mavra, vai! — respondeu-lhe este pegando-lhe numa das mãos e empurrando-a precipitadamente. — vou contar-vos tudo, tudo o que se passou, e tudo o que está para se passar, pois já sei tudo. Eu bem vejo, meus amigos, que querem saber onde é que estive estes cinco dias e é isso o que eu quero contar-vos; simplesmente, vocês não me deixam. Em primeiro lugar, deves ficar a saber, Natacha, que te enganei durante todo este tempo; já há muito, muito, que te engano, e isto é o principal.

— Que me enganas!

— Sim, há um mês, ainda antes de o meu pai ter vindo. Agora chegou o momento de falar com franqueza. Há um mês, quando ainda estava fora, o meu pai escreveu-me uma carta muito grande, da qual não vos disse nada. Nessa carta comunicava-me ele simplesmente, e reparem, num tom tão sério que fiquei assustado, que o assunto do meu casamento já estava arrumado, que a minha noiva era um modelo de perfeição, e que embora, naturalmente, eu fosse indigno dela, casaríamos irrevogavelmente, e que por isso devia fazer o possível por esquecer todas as loucuras que me enchiam a cabeça, etc., etc. Bem, o que ele entende por loucuras já sabem o que é. Ora eu ocultei-vos esta carta com o maior mistério.

— Ocultaste-nos! — interrompeu Natacha. — Olhem do que ele se gaba! Contaste-nos logo tudo! Ainda te vejo a procurares desculpar-te, terno e conciliador, como se eu tivesse alguma coisa que perdoar-te; e disseste-nos o conteúdo da carta, parágrafo por parágrafo.

— Isso não é possível. Do principal não vos disse uma palavra. Talvez tenham adivinhado alguma coisa, isso é lá convosco, mas eu não vos contei nada. Ocultei-vos tudo e sofri horrivelmente com isso.

— Lembro-me, Aliocha, que tu me contaste tudo pormenorizadamente, aos pedaços, imediatamente, em frases soltas — interrompi eu olhando para Natacha.

— Contaste-nos tudo! Não te gabes agora do contrário! — insistiu ela. — Mas porventura tu podes calar alguma coisa? Até Mavra o sabia. Não é verdade, Mavra?

— Claro, como não havia de saber? — concordou Mavra apontando-o com a cabeça. — Nos primeiros três dias contou tudo. Não é lá muito esperto!

— Como é aborrecido discutir convosco! Dizes isso tudo, por má, Natacha! E tu, Mavra, também te enganas.

Lembro-me de que, nessa altura, não estava em mim. Lembras-te, Mavra?

— Como não havia de lembrar-me? Se agora também não está bom!

— Não, não, eu não falo disso. Vê se te lembras. Nessa ocasião nós estávamos sem dinheiro e tu foste empenhar a minha cigarreira de prata. Mas vamos ao principal. Desculpa-me, Mavra, se te faço notar que me tratas com muito pouca consideração. Tudo isso foi Natacha quem to ensinou. Mas seja; admitamos que nessa altura vos tenha contado tudo ponto por ponto. (Agora parece-me que já me lembro). Mas do tom, do tom da carta, vocês não sabem nada, e o tom, numa carta, é o principal. Era disso que queria falar-vos.

— bom. Então que tom era esse? — perguntou Natacha.

— Ouve, Natacha; tu perguntas de uma maneira... Não te rias, pois isto não é para rir. Afirmo-te que se trata de alguma coisa muito séria. Nunca o meu pai me tinha falado assim. Seria preferível o terremoto de Lisboa a afrontar as consequências da oposição à sua vontade. Era digno de ver-se esse tom!

— Bem. Conta. Porque te sentiste obrigado a esconder de mim essa carta?

— Ah, meu Deus! Para não te assustar. Pensava que as coisas se arranjariam por si mesmas. Mas com a recepção dessa carta e a chegada imprevista do meu pai começaram os meus tormentos. Propunha-me responder-lhe de uma maneira clara, séria e firme, mas não surgiu a ocasião. Ele não me falou do caso. Que espertalhão! Pelo contrário, parecia pensar que era coisa resolvida e que não podia haver entre nós discussões nem dúvidas. Estás a ouvir? Como se as coisas tivessem fatalmente de ser assim. Que presunção! Estava tão carinhoso comigo, tão terno! Eu estava simplesmente pasmado. Como ele é inteligente, Ivan Petrovitch! Se o conhecesse! Leu tudo, sabe tudo; basta ver uma pessoa uma só vez para conhecer-lhe logo os pensamentos, como se fossem os seus; não há dúvida de que deve ser por isto que lhe chamam jesuíta. Natacha não gosta que eu o elogie. Não te zangues, Natacha. Bem. A princípio ele não queria dar-me dinheiro, mas ontem deu-mo. Natacha, meu anjo, a nossa miséria acabou-se. Olha, olha, tudo quanto descontou na minha pensão para castigar-me durante este meio ano, deu-mo ontem. Olha para este dinheiro todo, ainda nem o contei. Mavra, olha para este dinheiro! Já não precisas de empenhar colheres e botões de punho.

Tirou da algibeira um grosso maço de notas, cerca de mil e quinhentos rublos, e atirou-os sobre a mesa. Mavra olhou para as notas com espanto e felicitou Aliocha. Natacha cortou-lhe a palavra.

— Bem. Que havia eu de fazer? — continuou Aliocha. — Como havia de ir contra a sua vontade? Juro-vos que se ele se tivesse portado mal comigo, eu não teria pensado em nada nem um segundo. Ter-lhe-ia dito redondamente que não, que já sou um homem feito e refeito e que agora já... pronto, acabou-se! E acreditem-me, ter-me-ia mantido firme. Mas agora, que dizer-lhe? Não me culpes. Vejo que estás descontente comigo, Natacha. Porque olham um para o outro dessa maneira? Estão convencidos de que cedi à primeira pressão e que perdi logo a firmeza? Nada disso; sou mais firme do que vocês pensam! A prova é que, apesar da minha situação comprometida, pensei logo a seguir: «É este o meu dever, tenho obrigação de dizer tudo a meu pai; é o meu dever», e então contei-lhe tudo e ele escutou-me até ao fim.

— Que lhe disseste, afinal? — perguntou Natacha inquieta.

— Disse-lhe que não queria outra noiva senão aquela que tenho, ou sejas tu. Verdadeiramente ainda não lhe disse isto, mas já o preparei e dir-lho-ei amanhã; é coisa decidida. De momento disse-lhe que era vergonhoso e indigno isso de uma pessoa casar com outra por causa do dinheiro, e uma estupidez da nossa parte o considerarmo-nos aristocratas. com ele, sou franco como com um irmão. Depois expliquei-lhe que sou tiers état (1), e que o tiers état é o essencial, que sinto orgulho de parecer-me com toda a gente e que não quero distinguir-me de ninguém... Numa palavra: poderei inculcar-lhe todas estas ideias sãs. Falei-lhe com um entusiasmo, com um aprumo de que eu próprio me admirava. Combati os seus pontos de vista. Disse-lhe à queima-roupa: «Que espécie de príncipes somos nós? Só pela linhagem, mas, na realidade, que temos de principesco? Em primeiro lugar, não somos verdadeiramente ricos, e hoje a riqueza é o principal. Nestes tempos, o príncipe dos príncipes é Rothschild. Além disso, há já um longo século que não se ouve falar de nós na alta sociedade; o último que ainda teve alguma fama foi o meu tio Simeão Valkovski, que apenas ficou conhecido em Moscovo porque desbaratou as últimas trezentas almas que restavam à nossa família. E se o seu pai não tivesse feito economias, todos os seus descendentes estariam hoje lavrando a terra como aconteceu a outros príncipes. Por isso, não temos de que nos orgulhar.» Enfim, disse-lhe tudo o que tinha cá dentro... tudo, com entusiasmo e franqueza, e ainda acrescentei mais qualquer coisa. Ele não se aborreceu, apenas me censurou por me ter esquecido do conde Nainski e aconselhou-me a que me tornasse simpático à princesa X..., minha madrinha, que poderia facilitar-me a entrada na alta sociedade; que se a princesa me recebesse bem, também em todos os outros sítios me receberiam bem e poderia então dar a minha carreira por ganha, e assim continuou a pintar o meu futuro. O pior era que eu, por tua causa, deixava tudo, e que isso era devido à tua influência! Mas até agora nunca chegou a mencionar-te directamente e vê-se até claramente que o evita. Procedemos os dois astuciosamente, procuramos ver qual de nós dois engana o outro e estou convencido de que o nosso dia há-de chegar.

— Muito bem; mas em que ficaram? Que decidiu ele? Isso é o principal. E tem tento no que dizes, és um tagarela, Aliocha!

 

(’) Terceiro estado, is»1!» Ô pow, a plebe. (N. A» T.)

 

— O que ele decidiu, só Deus o sabe; eu não falo demasiado, cinjo-me ao assunto; ele não resolveu nada, sorria a todos os meus raciocínios, mas com um certo sorriso, como se tivesse pena de mim. Compreendo que isto é humilhante mas é assim mesmo. Disse-me: «Eu estou perfeitamente de acordo contigo, sou da tua opinião, vamos até casa do conde Nainski, mas tem cuidado, não digas uma palavra de tudo isto. Eu compreendo-te, mas eles não te compreenderiam.» Segundo parece, também aí não o recebem muito bem, e isso aborrece-o. De uma maneira geral, o meu pai, presentemente, não goza de simpatia na alta sociedade. O conde, a princípio, recebeu-me friamente, e do alto da sua grandeza e como se eu me tivesse esquecido que me criei em sua casa começou a recordar-mo. Parecia ofendido pela minha ingratidão, quando, verdadeiramente, não há tal ingratidão da minha parte. É que uma pessoa aborrecia-se tanto naquela casa! Recebeu o meu pai com a máxima frieza; tão frio, que não consigo perceber por que motivo o meu pai lá vai. Tudo isso me custava... Pouco faltava ao meu pobre pai para se curvar diante dele. Compreendo que fazia tudo isso por minha causa, que afinal não preciso disso. Propus-me demonstrar ao meu pai todo o meu sentir, que procurava dominar. E porquê? Das suas convicções não conseguira fazê-lo mudar; não consigo senão aborrecê-lo e desgostos já ele tem que cheguem. «Basta! — disse para comigo —, apelemos para a astúcia; eu sou mais esperto que todos eles; obrigarei o conde a respeitar-me...» E acreditem, atingi imediatamente o meu fim. Um dia foi o suficiente. Agora Nainski, o conde, é para mim a amabilidade personificada. E isto foi exclusivamente obra minha, efeito da minha esperteza pessoal, sem que o meu pai se tivesse metido no caso.

— Ouve, Aliocha, o melhor era falares no assunto — disse Natacha com impaciência. — Pensava que ias falar sobre o nosso caso e tu limitas-te a contar-nos os teus êxitos em casa do conde Nainski. Que me interessa a mim o teu conde?

— Que te importa? Ouve isto, Ivan Petrovitch! Mas aí é que está o assunto principal! Vais ver, tu própria acabarás por ficar admirada. Tudo se há-de esclarecer no fim. Mas é preciso que me deixem falar... Eu, finalmente (porque não dizê-lo com franqueza?), olha, Natacha, e você também, Ivan Petrovitch: eu, às vezes sou... na verdade, sou muito pouco sensato. Digamos, já tem acontecido, até simplesmente estúpido. bom. Mas garanto-vos que nessa altura empreguei a maior astúcia... bom... E até inteligência. E olhem, eu pensava que vocês ficariam contentes por eu não ser sempre... desajeitado...

— Pronto, já chega, Aliocha, chega, meu querido! Natacha não podia suportar que Aliocha fosse tomado por tolo. Quantas vezes se zangou comigo por eu lhe fazer ver, sem rodeios, que Aliocha cometera uma tolice! Não podia consentir que humilhassem o seu amante, tanto mais que ela, no seu foro íntimo, o considerava um medíocre. Mas nunca deixava transparecer a sua opinião, receando ofender o seu amor-próprio. Ele, nestes casos, era particularmente perspicaz e adivinhava os mais secretos pensamentos dela. Natacha percebia, sentia pena dele e punha-se logo a lisonjeá-lo e a acariciá-lo. Eis o motivo porque, agora, as suas palavras a feriam profundamente.

— Basta, Aliocha! És apenas um pouco estouvado, nada mais — acrescentou. — Mas porque hás-de rebaixar-te a ti próprio?

— Muito bem. Mas deixa-me acabar. Depois da visita ao conde o meu pai ficou furioso. Eu disse para comigo: «Espera um pouco.» Fomos depois a casa da princesa. Eu ouvira dizer que ela coxeava e estava surda, e que adorava cãezinhos. Que tinha uma matilha deles e que os adorava. Em sua casa reúne-se muita gente, mas ela não ouve o que dizem. No entanto, tem grande influência social e o próprio conde Nainski, lê superbe (l),faisatt antichambre chez elle (2). Pelo caminho lancei as bases de um plano de actividade

  1. C) O soberbo (N. da T.)
  2. C) Tinha de aguardar o momento de ser recebido. (N. do T.)

 

ulterior, baseado sabem em quê? Na simpatia que, felizmente inspiro a todos os cães. Já percebi isso. Dar-se-á o caso de que exista em mim certa força magnética ou será isso o resultado do grande amor que tenho pelos animais? Sabe-se lá! A propósito de forças magnéticas, ainda não te contei Natacha, que estive uma vez em casa de um médium e que evocámos alguns espíritos. E muito engraçado. Mas fiquei impressionado, Ivan Petrovitch. Evoquei o espírito de Júlio César.

— Ah, meu Deus! Porquê o de Júlio César? — exclamou Natacha, soltando uma gargalhada. — Não te contentavas com menos?

— É que eu... tinha de chamar alguém... Se calhar não tinha o direito de chamar Júlio César? Que havia nisso de especial? bom, ri-te!

— Nada, é claro... Meu querido! Bem, mas’conta-nos... que te disse Júlio César?

— Dizer-me, não me disse nada. Eu tinha um lápife o lápis deslizava sozinho por cima do papel e escrevia. Diziam que era Júlio César que escrevia. Eu não acredito.

— Bem, mas que escreveu ele?

— Escreveu qualquer coisa no estilo de Gogol... Mas não te rias mais!

— Então fala-nos da princesa!

— Bem; chegámos a casa da princesa e eu pus-me a fazer caretas para Mimi. Mimi é uma horrível cadela, velha e desdentada. A princesa é doida por ela, parece que têm ambas a mesma idade. Atafulhei a cadelinha de bombons e num quarto de hora ensinei-a a dar-me a patinha, coisa que não tinham conseguido durante a sua longa existência. A princesa estava entusiasmada; chorava de alegria. «Mimi, Mimi, dá cá a patinha.» Assim que chegava alguém punha-se logo: «Mimi, a patinha. Olhem como ela aprendeu a cumprimentar!» Entrou o conde Nainski. «Mimi, a patinha!» E dirigia-me um olhar comovido, de gratidão. É uma boa velhinha. Até me faz pena! Continuei a lisonjeá-la. Vi numa tabaqueira um retrato de mulher (o seu), feito talvez há sessenta anos, quando ela era nova, e, pegando-lhe entusiasmado, exclamei: «Que lindo retrato! Que beleza maravilhosa!» Esteve quase a derreter-se; falou-me disto e daquilo, gabou-me, perguntou-me onde fizera eu os meus estudos e disse-me que o meu cabelo era muito bonito, etc., etc. E também a fiz rir contando-lhe uma história escandalosa. Isso encantou-a; limitou-se a ameaçar-me com um dedo, embora se risse muito. Quis que me aproximasse dela... Beijou-me, benzeu-me, pediu-me que fosse todos os dias distraí-la. O conde apertou-me a mão; tinha uma expressão untuosa, e o meu pai, que é uma excelente criatura, honesta e nobre, talvez não acreditem, mas quase chorava de alegria quando regressávamos os dois a casa; abraçou-me, falou-me com franqueza, com uma franqueza um pouco misteriosa, acerca da minha carreira, de relações, de dinheiro, de casamento, de uma tal maneira que muitas coisas não as percebi. E também me deu dinheiro. Isto foi ontem. No dia seguinte voltei a casa da princesa. O meu’ pai sempre é uma boa pessoa. Não pensem que, embora ele tente afastar-me de ti, Natacha, o faz porque esteja enganado ou porque ambiciona os milhões de Katinka; tu não os tens, mas ele ambiciona-os para mim, e só por ignorância se torna injusto para comigo. E que pai não deseja a felicidade do filho? Ele não tem culpa de se ter costumado a resumir a felicidade no dinheiro. Acontece o mesmo a todos eles. É preciso ter em conta que é nesse ponto de vista que devemos julgá-lo e não de outro... e por isso não temos outro remédio senão dar-lhe razão. Eu vim de propósito para convencer-te disto, Natacha, porque sei que tu tens uma ideia preconcebida contra ele, embora não tenhas culpa disso. Eu não te acuso...

— De maneira que tudo se resume a que tiveste um grande êxito junto da princesa. É essa a tua grande astúcia? — perguntou Natacha.

— O quê? Que disseste? Isso é apenas o princípio... Se falei da princesa foi porque, compreendes, graças a ela poderei convencer o meu pai e ainda não fiz mais do que principiar a história principal.

— Bem, então conta lá tudo!

— Hoje aconteceu-me outro episódio, e também bastante estranho, de tal maneira que ainda estou impressionado — continuou Aliocha. — Devo avisar-vos de que embora o meu pai tenha combinado casar-me com a condessa, até agora, oficialmente, não havia nada definitivo. De maneira que podíamos romper sem que se produzisse nenhum escândalo; o único que está ao corrente é o conde Nainski, e este considera-se como nosso parente e protector. Embora eu, nestas duas semanas, visitasse muito Kátia, até esta noite ainda não lhe disse uma palavra a respeito do futuro, isto é, do casamento, e... bom, do amor. Estava também combinado, de princípio, conseguir o consentimento da princesa K..., da qual se prometem lá em casa toda a espécie de benefícios e uma chuva de ouro. Quando ela diz uma coisa toda a gente a repete; está muito bem relacionada. Parece empenhada em introduzir-me na alta sociedade. Mas é a condessa, a madrasta de Kátia, quem particularmente inspira todos os planos. O facto é que a princesa, por causa dos seus enredos, não quis recebê-la em sua casa, e quando a princesa não recebe uma pessoa os outros também já não a recebem; por isso, agora, apresenta-se-lhe uma boa ocasião... o meu casamento com Kátia. E por isso a condessa, que dantes se opunha ao casamento, hoje ficou extremamente contente com o meu êxito junto da princesa. Mas isto é secundário, vamos ao principal. Eu conheço Catarina Fiodorovna desde o ano passado. Mas então eu era ainda uma criança, não percebia nada. Nem sequer reparei nela...

— Acontecia mas era que então gostavas mais de mim — interrompeu-o Natacha — e por isso não reparaste nela. Em compensação, agora...

— Não continues, Natacha! — exclamou Aliocha com veemência. — Estás redondamente enganada e ofendes-me! Além disso, eu não te interrompo... Continua a escutar-me que ficarás a perceber tudo... Ah, se tu conhecesses Kátia! Se soubesses que alma tão terna, tão límpida, tão adorável é sua! Mas já vais conhecê-la, escuta até ao fim! Há duas semanas, quando a condessa chegou, fez com que o meu pai rne levasse a visitar Kátia e eu estive todo o tempo a observá-la atentamente. Observei que ela também me olhava. Isto excitou muito a minha curiosidade, para não falar em que a mim próprio me propusera conhecê-la mais a fundo... Propósito que datava já de quando eu recebi aquela carta do meu pai, que tanto me impressionou. Não quero dizer nada nem pôr-me a gabá-la; afirmarei apenas que é uma brilhante excepção dentro do seu meio. É uma criatura tão original, uma alma tão firme e recta, forte, precisamente pela sua pureza e rectidão, de tal maneira que eu, perante ela, não passo de um petiz, de um seu irmãozinho mais novo, embora só tenha dezassete anos. Houve outra coisa que observei também: é muito melancólica, aparenta uma espécie de pesar secreto. Quase não falava; em casa’, está quase sempre calada, como se tivesse medo... Está sempre a meditar... Parece ter medo do meu pai. Não gosta da madrasta, segundo me pareceu... A condessa, não sei com que fim, faz ver a toda a gente que a enteada é louca por ela, mas isso não é verdade. Kátia, o que faz é obedecer-lhe com resignação e como se isso fosse uma coisa combinada.

Havia já quatro dias que eu pensava no meu projecto, que realizei esta noite. Falar claro a Kátia, contar-lhe tudo, interessá-la a nosso favor e acabar com isto de uma vez...

— O quê? Que foste tu dizer-lhe? Confessaste-lhe? — disse Natacha sobressaltada.

— Tudo, absolutamente tudo — respondeu Aliocha — e abençoo o Céu que me inspirou tal ideia. Mas escutem, escutem. Há quatro dias, depois de ter feito todas as observações, decidi separar-me de ti para trabalhar por minha própria conta, sem que tu nem ninguém influísse em mim. Somente colocando-me num estado de espírito em que fosse preciso dizer de minuto a minuto que era necessário resolver este caso, que eu tinha o dever de resolvê-lo, fui capaz de armazenar energias e... resolvi-o! Propus-me voltar a ver-vos e trago uma solução!

— Qual? O quê? Conta já!

— É muito simples! Eu dirigi-me a ela sem rodeios honesta e corajosamente... Mas antes de mais devo contar-vos uma coisa que me sucedeu antes disto e que me impressionou de um modo horrível. Antes de sairmos de casa, o meu pai recebeu uma carta. Nesse momento dispunha-me eu a entrar no seu escritório e parei à porta. Ele não me viu. A carta impressionara-o tanto que se pôs a falar só, a lançar exclamações e a dar voltas pela sala e, de repente, soltou uma gargalhada, com a carta na mão. Não me atrevia a entrar; esperei um pouco e depois entrei. O meu pai, não sei por que razão, estava muito contente, contentíssimo; falou-me de um modo um pouco estranho; depois ordenou-me que me preparasse para sair, embora fosse ainda muito cedo. Em casa delas não havia hoje mais ninguém senão nós, e tu pensavas erroneamente, Natacha, ao supores que tinham convidados para esta noite. Não te informaram bem...

— Bem, não divagues, Aliocha, por favor. Fala, diz como foi que contaste tudo a Kátia.

— Tive a sorte de que, durante duas horas, nos deixassem completamente sós. Expliquei-lhe simplesmente que, embora quisessem casar-nos, o nosso casamento era impossível; que eu, no fundo do meu coração, tinha a maior simpatia por ela e que dela esperava a minha salvação. Foi então que lhe expliquei tudo. Imaginem que ela não sabia nada a nosso respeito, da minha vida contigo, Natacha! Se tu visses a impressão que isso lhe fez! A princípio, até se assustou. Empalideceu. Contei-lhe toda a nossa história: que tu fugiste dos teus pais por minha causa: que vivíamos juntos; que agora sofríamos muito e tínhamos medo de tudo e que lhe acudíamos (eu falava também em teu nome, Natacha) para que se pusesse do nosso lado e dissesse francamente à madrasta que não queria casar-se comigo; que a nossa salvação estava nisto, e que de ninguém mais, senão dela, podíamos esperar alguma coisa. Ela escutou-me com muita curiosidade, com muita simpatia. Que olhos os seus! Parecia que a alma se lhe espelhava toda nos olhos! Tem mesmo uns olhos de pomba... Agradeceu-me a confiança que eu tinha nela e deu-me a sua palavra de que nos ajudaria na medida das suas forças. Depois começou a perguntar-me por ti; disse-me que gostaria muito de conhecer-te; pediu-me que te dissesse que já gosta de ti como de uma irmã, e quando soube que havia já cinco dias que eu não te via foi ela mesma quem me mandou para aqui... Natacha estava comovidíssima.

— E tiveste coragem de me contar em primeiro lugar os teus êxitos com essa princesa surda! Ai, Aliocha, Aliocha! — exclamou com uma censura no olhar. — Bem, e Kátia estava alegre, contente, quando te mandou embora?

— Sim... Estava contente por poder realizar uma nobre acção, mas ao mesmo tempo chorava. Porque repara, Natacha, ela também gosta de mim. Ela mesma me confessou que já tinha começado a gostar de mim, que não vê mais ninguém, e que desde há muito tempo eu lhe agradava; que me distinguira porque à sua volta tudo é astúcia e intriga, ao passo que eu lhe parecia sincero e honesto. Depois levantou-se e disse: «Deus te ajude, Alexiei Petrovitch... mas eu pensava...» Não acabou a frase e retirou-se a chorar. combinámos que amanhã dirá à madrasta que não gosta de mim, e que eu também ainda amanhã contarei tudo ao meu pai, e que nos manteremos ambos firmes no nosso propósito. Censurou-me por eu não lhe ter dito mais cedo: «Um homem honesto não deve ter medo de nada...» Oh, que natureza tão nobre a sua! Não simpatiza com o meu pai; diz que é astuto e que anda atrás do dinheiro. Eu defendi-o mas ela não me acreditou. Combinámos que se não conseguisse que o meu pai me atendesse amanhã (e ela com certeza pensava que eu não o conseguiria), falasse francamente com a princesa K... Porque então já ninguém se atreveria a opor-se. Prometemos ser como irmãos um para o outro. Oh, se conhecesses a sua história! Como é infeliz, com que aversão encara a sua vida em casa da madrasta, onde tudo é comédia! Não mo disse assim directamente, como se eu lhe inspirasse medo; mas adivinhei-o por algumas palavras suas. Minha querida Natacha, que admiração eu sentiria por ti se vocês viessem a conhecer-se! Que coração tão bom ela tem! Que bem se está ao seu lado! Vocês nasceram para serem irmãs. É preciso que gostem uma da outra. É uma coisa que não me sai do pensamento E, na verdade, o que me agrada era ver-vos juntas para vos olhar a toda a hora e amar as duas com loucura. Não penses nada de mau, Natacha, e deixa-me falar dela. É isso exactamente o que eu sinto, desejos de falar dela a ti e de ti a ela. Tu bem sabes que gosto de ti mais do que todas as outras, mais do que dela... Tu és tudo para mim!

Natacha olhava-o em silêncio, doce, mas tristemente. As suas palavras pareciam lisonjeá-la e atormentá-la ao mesmo tempo.

— Há duas semanas que comecei a estimar Kátia, a perceber o que ela vale — prosseguiu Aliocha. — Ia vê-la todas as noites. Quando voltava a casa pensava em ti e comparava as duas.

— E qual das duas te agrada mais? — perguntou-lhe Natacha, sorrindo.

— Umas vezes és tu, outras é ela. Mas eras sempre tu quem acabava por ganhar a palma. Quando falo com ela parece-me que me torno melhor... mais inteligente, de melhor fundo... Enfim, amanhã, amanhã tudo se decidirá.

— E não tens pena dela? Não? Repara que ela gosta de ti, segundo disseste... que tu próprio já reparaste nisso!

— É uma pena, Natacha! Mas nós os três vamos amar-nos todos e... depois...

— Ah, e depois... Adeus! — murmurou Natacha muito baixo, como se falasse consigo mesma. Aliocha olhou para ela, perplexo. Mas nesse momento a conversa foi interrompida da maneira mais inçsperada. Na sala, que servia ao mesmo tempo de cozinha e de vestíbulo, ouvimos um leve ruído, como se alguém tivesse entrado. Passados uns minutos Mavra abriu a porta e pôs-se a fazer sinais para Aliocha, às furtadelas, chamando-o. Voltámo-nos todos para ela.

— Perguntam por ti; chega aqui num instante, se fazes favor — disse num tom misterioso.

Quem será? — perguntou Aliocha olhando-nos com inquietação. — Já lá vou.

Na cozinha estava um criado com a libré que se usava em casa do príncipe seu pai. Pelos vistos era o criado do príncipe, o qual, de regresso a casa, mandara parar a carruagem diante do apartamento de Natacha e o enviara para saber se Aliocha se encontrava ali. Depois de informar-se, o criado saiu.

— É curioso. É a primeira vez que tal acontece — exclamou Aliocha olhando-nos com inquietação. — Que significará isto?

Natacha olhou para ele sobressaltada. De repente, Mavra abriu outra vez a porta do quarto.

— Aqui está o príncipe em pessoa! — balbuciou, desaparecendo em seguida.

Natacha, muito pálida, levantou-se. De repente, os seus olhos cintilaram. Apoiada ao bordo da mesa, olhava com comoção para a porta por onde devia entrar o inesperado visitante.

— Natacha, não tenhas medo; eu estou contigo; não consentirei que te ofendam — murmurou Aliocha dominando a sua perturbação.

A porta abriu-se e apareceu o príncipe Valkovski em pessoa.

 

Envolveu-nos num olhar rápido, atento, pelo qual não era possível adivinhar se vinha como amigo ou como inimigo. Mas vou descrever minuciosamente o seu aspecto. Aquela noite deixou-me uma impressão especial. Eu já o tinha visto anteriormente. Era um homem de uns quarenta e cinco anos, não mais; de feições belas e regulares, que mudavam de expressão conforme as circunstâncias, mas que mudavam brusca e totalmente, com uma rapidez extraordinária, passando do aspecto mais amável ao mais sombrio, como se obedecesse a uma mola. O rosto, ovalado, um pouco moreno; os dentes, magníficos; os lábios, finos; o nariz, direito, um pouco comprido; a fronte, ampla, na qual não se via ainda a mais pequena ruga; os olhos, grandes e cinzentos. Tudo era belo nele, e no entanto não produzia uma impressão agradável. Aquele rosto repelia precisamente porque a sua expressão não parecia sua, mas outra, constantemente estudada, falsa, postiça, que nos prevenia de que jamais se poderia conhecer a sua expressão verdadeira. Olhando-o com atenção, começava-se a suspeitar por debaixo daquela máscara permanente não sei quê de mau, de hipócrita e altamente egoísta. Chamavam particularmente a atenção os seus olhos cinzentos, muito abertos.

Somente eles pareciam não estar completamente sujeitos à sua vontade. Esforçava-se por torná-los doces e acariciadores; mas os raios do seu olhar bifurcavam-se, por assim dizer, e por entre os que eram doces e amáveis viam-se brilhar os outros, duros e desconfiados, perscrutadores e maliciosos... Era bastante alto e bem proporcionado, um pouco seco, e parecia incomparavelmente mais novo do que era. Os cabelos, castanhos e finos, mal começavam a Branquejar. As orelhas, as mãos, os pés, de uma delicadeza surpreendente, de uma delicadeza aristocrática. Vestia com requintada elegância, mas com uma série de pormenores juvenis que não lhe ficavam mal. Parecia o irmão mais velho de Aliocha. Pelo menos ninguém o suporia pai de um filho já tão crescido. Avançou em direcção a Natacha e disse-lhe, olhando-a fixamente:

— A minha presença em sua casa, a esta hora e sem aviso prévio... é estranha e fora do normal; mas espero que há-de reconhecer pelo menos que eu me apercebo da excentricidade da minha conduta. Sei também com quem trato; sei que é compreensiva e generosa. Conceda-me apenas dez minutos e tenho a certeza de que há-de compreender-me e perdoar-me.

Disse tudo isto num tom cortês mas enérgico e com certa fatuidade.

-— Queira sentar-se — disse Natacha, ainda não completamente refeita da primeira comoção e um pouco alvoroçada, pez uma leve reverência e sentou-se.

— Antes de mais dê-me licença que dirija duas palavras a este — começou, apontando para o filho. — Aliocha, depois que saíste de lá sem esperares por mim e sem te despedires de nós vieram dizer à condessa que Catarina Fiodorovna estava mal disposta. A condessa ia a dirigir-se para o seu quarto, quando, de repente, ela apareceu diante de nós muito agitada. Sem mais rodeios, disse-nos que não podia ser tua esposa. Disse também que ia meter-se num convento, que tu tinhas implorado o seu auxílio e lhe confessavas que amavas Natacha Nikolaievna... Tão inesperada declaração da parte de Catarina Fiodorovna, e para mais, em tal momento, era consequência da estranhíssima atitude que tinhas tido para com ela. Estava quase transtornada. Deves compreender que isto me impressionou e assustou. Quando passei por aqui vi luz na sua janela — continuou, dirigindo-se a Natacha. — Então uma ideia que havia já algum tempo me perseguia apoderou-se de mim com tal força que não pude resistir ao primeiro impulso e entrei em sua casa. Porquê? vou dizer-lhe imediatamente, mas antes, quero pedir-lhe que não fique admirada se as minhas palavras lhe parecerem um pouco estranhas. Tudo isto foi tão inesperado...

— Creio que serei capaz de compreendê-lo e apreciar... devidamente aquilo que me disser — exclamou Natacha, com hesitação.

O príncipe olhava-a fixamente, como se procurasse «penetrar-lhe» a alma em um minuto.

— Eu também confio na sua benevolência — continuou e se tomei a liberdade de vir visitá-la a esta hora foi precisamente porque sabia com quem tratava. Há muito tempo que já a conheço, embora algumas vezes tenha podido ser injusto e incorrer em falta para consigo. Bem sabe que entre o seu pai e mim há aborrecimentos já antigos Não quero justificar-me; talvez eu seja mais culpado para com ele do que até agora tenho suposto. Mas se assim for é porque me enganei. Sou desconfiado, confesso-o. Sou mais propenso a pensar mal que bem; é uma má qualidade, própria de corações duros. Mas não tenho o costume de dissimular os meus defeitos. Acreditei em todas as calúnias e quando a senhora deixou os seus pais, tremi por Aliocha. Mas então não a conhecia. As informações que fui colhendo pouco a pouco animaram-me. Observei, estudei e convenci-me de que as minhas suposições não eram fundadas. Soube que se zangara com a sua família e soube também que o seu pai se opunha com todas as suas forças ao seu casamento com o meu filho. O facto de a senhora ter uma tal influência, um tão grande domínio sobre Aliocha, e não o ter aproveitado até agora para obrigá-lo a casar-se, bastava para mostrá-la a meus olhos sob um favorável aspecto. E, no entanto, confesso-o francamente, tomei a resolução de fazer tudo quanto pudesse para evitar toda a eventualidade de a senhora se casar com o meu filho. Sei que me explico com demasiada sinceridade, mas neste momento a sinceridade, pelo meu lado, é mais necessária que tudo. Há-de concordar com isto, quando eu tiver acabado de falar. Na altura em que a senhora deixou a sua casa, saí eu de Petersburgo, mas no momento em que o fiz já não temia por Aliocha. Contava com o seu nobre orgulho. Compreendi que a senhora não desejava o casamento enquanto não ficassem arrumadas as nossas desavenças familiares e não queria perturbar as boas relações que existiam entre o meu filho e eu compreendendo que não lhe perdoaria nunca, e muito menos queria poder ser acusada de ter procurado um noivo príncipe e uma ligação com a nossa casa. Deixou até perceber, pelo contrário, o seu desdém por nós, esperando o momento em que fosse eu próprio a vir pedir-lhe que me desse a honra de conceder a sua mão ao meu filho. Mas apesar de tudo eu persistia na minha hostilidade para consigo. Sem querer justificar a minha conduta, não posso esconder os motivos que me impeliram a proceder assim. Ei-los: a senhora não pertence a uma grande família nem é rica. Nós, embora possuamos algum dinheiro precisamos de muito mais do que aquele que temos. A nossa casa está em decadência. Precisamos de relações e de dinheiro. A enteada da condessa Zinaida Fiodorovna, embora também não possua relações, é rica. E deixar passar algum tempo e logo começarão a aparecer os pretendentes que nos roubarão a noiva; mas não é possível perder uma tal oportunidade, e por isso, embora Aliocha seja ainda muito novo, resolvi oficializar as suas relações com ela. Já vê que não lhe escondo nada; a senhora pode olhar com desprezo para um pai que é o primeiro a reconhecer que induz o filho, por interesse, a cometer uma má acção, pois abandonar uma rapariga desinteressada, que sacrificou tudo por ele, e perante a qual é culpado... constitui uma má acção. Mas não procuro justificar-me. A segunda razão para o projectado casamento do meu filho com a enteada da condessa Zinaida Fiodorovna é a de que esta menina é altamente digna de amor e de respeito. É graciosa, de uma educação esmerada, de excelente carácter e muita ponderação, embora seja ainda uma criança, sob muitos aspectos. Aliocha não tem carácter. É estouvado, um cabeça no ar. com vinte anos é uma autêntica criança, sem outro mérito talvez senão o de um coração nobre, bom... Qualidade que, junta aos seus outros defeitos, se torna até perigosa. Há algum tempo notei que a minha influência sobre ele tinha começado a diminuir; o ardor da juventude dominava-o, fazendo-o esquecer deveres. Eu, é possível que lhe queira demasiado, no entanto estou convencido de que não sou suficiente para o dominar e que ele precisa ao seu lado de uma influência constante e boa. É um temperamento dócil, fraco, carinhoso, mais inclinado a amar e a obedecer que a mandar. E assim e assim há-de ser enquanto for vivo. Já pode imaginar qual não seria a minha alegria ao encontrar em Catarina Fiodorovna a rapariga ideal que eu desejava para esposa do meu filho. Mas a minha alegria chegava tarde; sobre ele imperava já outro ascendente, impossível de desenraizar: o seu.

Quando há um mês regressei de Petersburgo, observei-o perscrutadoramente e, assombrado, verifiquei nele uma notável mudança para melhor. O seu estouvamento, a sua infantilidade continuavam quase os mesmos, mas afirmavam-se nele algumas nobres inclinações; começava a interessar-se por mais qualquer coisa, sem ser apenas por simples brincadeira, por tudo quanto é nobre, elevado e honesto. As suas ideias são estranhas e levianas, às vezes injustas; mas os seus desejos, os seus impulsos, o seu coração, são agora melhores, e isso é a base de tudo, e isto que nele há de melhor... é, indiscutivelmente, obra sua. A senhora transformou-o. Confesso-lhe que me lembrei então de que a senhora, melhor do que ninguém, poderia fazê-lo feliz. Mas repeli este pensamento. Precisava de afastá-lo de si, fosse como fosse; comecei a manobrar e pensava conseguir o meu objectivo. Ainda há uma hora pensava que a vitória era minha. Mas o episódio da casa da condessa fez-me mudar radicalmente de maneira de pensar, e acima de tudo impressionou-me um facto inesperado: a estranha sinceridade de Aliocha, a firme consciência do seu dever para consigo, a vitalidade destas relações. Repito-o, a senhora realizou nele uma mudança definitiva. Fiquei também admirado que essa mudança tenha ido ainda mais longe do que eu supunha. Hoje, de repente, mostrou diante de mim indícios de uma inteligência que eu de maneira nenhuma suspeitava nele, e ao mesmo tempo uma subtileza extraordinária, um grande poder de observação. Descobriu o melhor caminho para sair de uma situação que julgava difícil. Estimulou a mais nobre faculdade do coração humano, a faculdade de perdoar e de pagar o mal com o bem. Entregou-se nas mãos da pessoa que ofendera e correu para ela pedindo-lhe simpatia e assistência. Despertou todo o orgulho de uma mulher, de uma mulher que o ama, confessando-lhe directamente que tem uma rival, e ao mesmo tempo soube suscitar a sua simpatia por essa mesma rival e obteve o seu perdão para ela e a promessa de uma amizade fraterna. Entrar em tais confidências sem ferir os sentimentos nem ofender, é uma coisa que às vezes se torna difícil até para as pessoas mais sensatas e discretas; mas não o é para os que têm um coração nobre, puro e bom, como o dele. Estou convencido de que a senhora, Natacha Nikolaievna, não tomou parte alguma na sua conduta de hoje, nem com uma palavra nem com um conselho. Pode ser que até ao momento de ele lho ter dito não o soubesse. Estou enganado? Não teria sido assim?

— Não, não está enganado — concordou Natacha, cujos olhos e rosto resplandeciam com um estranho fogo, como de inspiração. A dialéctica do príncipe começava a produzir os seus efeitos. — Havia já cinco dias que eu não via Aliocha — respondeu. — Foi ele sozinho quem pensou e fez tudo isso.

— Assim o creio — confirmou o príncipe. — No entanto, este inesperado poder de observação, esta força de vontade, esta consciência do seu dever, esta nobre firmeza, tudo isto, enfim, é o efeito da sua influência sobre ele. Reflecti sobre tudo isto demoradamente, quando voltei para casa, e depois de pesar todas as circunstâncias tomei a resolução de vir. Os nossos projectos matrimoniais com a enteada da condessa caíram por terra e não poderão já erguer-se; mas ainda que o contrário fosse possível também, já não o desejava para ele; estou convencido de que só a senhora poderá fazer o meu filho feliz e ser... o seu verdadeiro guia, pois foi quem lançou os fundamentos da sua felicidade futura. Não lhe ocultei nem lhe ocultarei nada; eu aprecio tudo quanto significa dinheiro, carreiras brilhantes, distinção, linhagem, embora no fundo considere uma grande parte de tudo isto como preconceitos; mas adoro estes preconceitos e não quero de maneira nenhuma desprezá-los. No entanto, há circunstâncias que impõem silêncio a todas as outras considerações e nas quais não é possível avaliar tudo pela mesma medida... Além disso, gosto muito do meu filho. Em resumo, cheguei à conclusão de que Aliocha não deve separar-se da senhora, porque sem si estaria perdido. E... quer que lhe diga? Há um mês pensei isto, mas até agora não tinha pensado que esta era a resolução adequada. Podia ter deixado estas explicações para amanhã, em vez de vir importuná-la quase à meia-noite. Mas a minha urgência actual será suficiente para fazer-lhe ver com que interesse e, sobretudo, com que sinceridade trato deste assunto. Eu não sou nenhuma criança e não poderia na minha idade decidir-me a dar um passo irreflectido. Quando me decidi a vir aqui já trazia tudo resolvido e pensado. No entanto, compreendo que será preciso um certo tempo para convencê-la de toda a minha sinceridade. Mas vamos ao caso! Será necessário repetir-lhe porque é que vim? Vim cumprir o meu dever para consigo, e peço-lhe, com todo o imenso respeito que me inspira, que faça feliz o meu filho e lhe conceda a sua mão. Oh! Não veja em mim um pai severo que acabou de perdoar ao filho e concordou finalmente em contribuir para a sua felicidade. Não, não! Isso seria injurioso para mim. Não pense também que, sabendo como se sacrificou pelo meu filho, eu viesse já seguro do seu consentimento, baseado em que a senhora se sacrificou por ele; mais uma vez lhe digo que não. Eu sou o primeiro a reconhecer que ele, para si, pouco valor tem, e... ele, que é sincero e bom, há-de também vê-lo. Mas deixemos isto. Eu não vim a esta hora por causa disso mas sim — levantou-se respeitosamente e com solenidade —, vim aqui porque quero ser seu amigo. Não ignoro que não tenho direito a isso, pelo contrário. Mas... peço-lhe que me dê a oportunidade de merecê-lo. Consinta que lhe faça esta promessa!

Respeitosamente inclinado diante de Natacha, aguardou a sua resposta. Eu observei-o atentamente durante toda a sua arenga. Ele reparou nisto. Pronunciou o seu discursozinho friamente, mas com certas pretensões dialécticas e afectando às vezes um certo à-vontade. O tom da sua parlenda não correspondia ao impulso que o levara ali, a desoras, pela primeira vez e em tais circunstâncias. Era evidente que trazia algumas das suas frases já preparadas, e em certos momentos do seu longo e por isso mesmo estranho discurso aparentou ser uma boa criatura que se esforçava por dissimular os sentimentos sob a capa do humorismo, da despreocupação e do gracejo. Mas tudo isto pensei-o eu mais tarde. Naquele momento era outra coisa. As últimas palavras pronunciou-as comovidamente, com uma tal expressão de sincero respeito por Natacha que seduziu a todos. Qualquer coisa parecida com uma lágrima brilhava nos seus olhos. O nobre coração de Natacha estava completamente vencido. Levantou-se e, sem proferir uma palavra, bastante emocionada, estendeu-lhe a mão. Ele tomou-a e beijou-lha com ternura. Aliocha estava louco de entusiasmo.

— Eu não te dizia, Natacha? — gritou. — Tu não querias acreditar! Não acreditavas que o meu pai era o mais nobre coração do mundo! Agora já vês, tu própria já vês!

E atirou-se ao pescoço do pai abraçando-o efusivamente. Ele respondeu-lhe da mesma maneira e tratou de dar fim à cena sentimental, como se tivesse vergonha de demonstrar a sua comoção.

— Pronto — disse, pegando no chapéu —, vou-me embora. Pedi-lhe apenas dez minutos e estive aqui uma hora — acrescentou sorrindo.”— Mas levo a maior impaciência de voltar outra vez. Dá-me licença que volte, assim que me for possível?

— Sim, sim, sim! — respondeu Natacha. — O mais cedo que puder! Quero começar já a gostar muito do senhor! — acrescentou, perturbada.

— Que sincera! Que honesta! — disse o príncipe sorrindo das suas palavras. — Nem sequer se esforça por responder com uma fórmula de simples cortesia. Aprecio mais a sua sinceridade que todas essas finezas. Sim! Vejo que ainda precisarei de muito tempo para tornar-me digno da sua amizade.

— Oh, por favor! Já chega de elogios — murmurou Natacha muito comovida.

Como ela estava bonita naquele momento!

— Bem. Está então tudo combinado? — disse o príncipe. — Só mais uma palavra, para que veja como eu sou feliz. Não poderei vir vê-la, amanhã, nem depois de amanhã. Recebi esta noite uma carta tão importante para mim (reclama a minha imediata participação no assunto) que não posso de maneira nenhuma deixar de comparecer. Preciso de sair de Pertersburgo amanhã de manhã. Foi por isso que vim, assim, fora de horas, pois não podia fazê-lo dentro dos próximos dois dias. Naturalmente, a senhora não podia supô-lo. Mas como eu sou desconfiado! Porque me pareceria que a senhora havia de ter essa ideia? Sim, esta desconfiança sempre me prejudicou na minha vida e em todos os meus litígios com a sua família, que, é possível, tivesse origem neste meu carácter ruim... Hoje é terça-feira; quarta, quinta e sexta não estarei em Petersburgo. Espero estar de volta no sábado e nesse mesmo dia virei vê-la. Dá-me licença que venha passar a tarde consigo?

— Claro, claro! — gritou Natacha. — Sábado à tarde, esperá-lo-ei com impaciência.

— Terei o maior prazer. Assim poderei conhecê-la melhor. Bem, preciso de ir, mas não irei sem ter apertado a sua mão — disse, voltando-se então para mim. — Peço-lhe que me desculpe esta conversa toda... Já tenho tido muitas vezes o gosto de encontrá-lo e creio que até já fomos apresentados. Não posso ir-me sem exprimir-lhe quanto me é agradável renovar este conhecimento.

— Já nos encontrámos muitas vezes, é verdade — disse-lhe eu apertando a mão que me estendera —, mas sinto não me lembrar de que nos tenham apresentado.

— Em casa do príncipe de R..., o ano passado.

— Perdão, tinha-me esquecido. Mas asseguro-lhe que desta vez não será assim. Esta noite há-de ficar especialmente gravada na minha memória.

— Tem razão, e na minha também. Sei que o senhor é um verdadeiro e sincero amigo de Natacha Nikolaievna e do meu filho. Tenho a esperança de que me admitam como o quarto entre os três. Não é verdade? — acrescentou dirigindo-se a Natacha.

— Sim, ele é o nosso verdadeiro amigo e vamos viver todos juntos — gritou Natacha com profunda convicção.

Pobrezinha! O seu rosto encheu-se de alegria ao ver que o príncipe não se esquecia de despedir-se de mim. Como gostava de mim!

-— Conheço muitos admiradores do seu talento — continuou o príncipe — e entre estes duas verdadeiras admiradoras suas. Teriam muito gosto em conhecê-lo pessoalmente, a condessa, a minha melhor amiga, e a sua enteada, Catarina Fiodorovna Filimonova. Permita-me esperar que me concederá a satisfação de apresentá-lo a estas senhoras.

— Para mim seria uma honra; actualmente tenho poucas relações...

— Mas dê-me a sua morada. Onde vive? Quero ter o gosto...

— Eu não posso receber em minha casa, príncipe, pelo menos por agora.

— Mas para mim, embora o não mereça, não fará o senhor uma excepção?

— Já que tem assim tanto empenho... eu moro no... no beco de V... casa Klugen.

— Casa Klugen! — exclamou um pouco assombrado. — O quê? Mora aí há muito tempo?

— Não, há muito não — respondi observando-o involuntariamente. — Moro no número quarenta e quatro.

— No quarenta e quatro! Vive... sozinho?

— Completamente só.

— Ah! E que... parece-me que conheço essa casa... óptimo. Passarei sem falta por lá, para cumprimentá-lo; tenho muitas coisas a dizer-lhe e espero muito de si. Quero pedir-lhe um favor. Como vê, começo logo com pedidos. Bem, até à vista. As vossas mãos!

Apertou a minha mão e a do filho, beijou outra vez a de Natacha e partiu sem consentir que Aliocha o acompanhasse. Ficámos os três em silêncio. O que acabava de acontecer era tão inesperado e imprevisto! Sentíamos todos que tudo tinha mudado num momento e que qualquer coisa de novo, de ignorado, ia começar. Aliocha, sentado junto de Natacha, beijava-lhe as mãos em silêncio e fitava-a no rosto, esperando que ela falasse.

— Querido Aliocha, amanhã irás visitar Catarina Fiodorovna — disse-lhe por fim.

— Era isso mesmo o que eu pensava — respondeu. — não deixarei de o fazer.

— Embora talvez lhe seja doloroso ver-te... Que se há-de fazer?

— Não sei, minha amiga, eu também pensava isso mesmo.

Ela sorriu e olhou-o longa e ternamente.

— Que delicadeza a sua! Viu o teu quarto, tão pobre, e nem uma palavra.

— Uma palavra de quê?

— Ora, de... de te mudares para outro... ou qualquer coisa do género — acrescentou, corando.

— Basta, Aliocha! A que propósito vem isso?

— Quero pôr em relevo a sua delicadeza... e como te elogiou! Eu não te dizia! É capaz de compreender e de sentir tudo. A mim tratou-me como uma criança. Como ele gosta de mim! E de facto eu sou uma criança!

— Sim, és uma criança, mas mais inteligente do que nós. Meu bom Aliocha!

— Disse também que a minha bondade me prejudicava. Porquê? Não compreendo. Mas diz-me, Natacha, não achas que eu devo ir já ter com ele? Amanhã de manhã tens-me outra vez aqui.

— Vai, vai, meu querido. É uma boa ideia. Mas amanhã vem o mais cedo possível. Daqui para diante já não poderás andar cinco dias longe de mim — acrescentou com malícia, acariciando-o com o olhar.

Estávamos todos cheios de uma alegria doce, plena.

— Vem comigo, Vânia? -— disse-me Aliocha ao sair do quarto.

— Não, fica; tenho de falar-te, Vânia. Já sabes, amanhã cedinho!

— Assim que amanhecer. Adeus, Mavra!

Mavra estava numa grande agitação. Ouvira tudo o que o príncipe dissera, mas não tinha compreendido bem. Sentia vontade de informar-se, de perguntar. Mas, no entanto, mostrava-se muito séria, muito ufana. Adivinhava também que uma grande transformação se operara.

Ficámos sós. Natacha pegou-me numa mão e ficou algum tempo em silêncio, como se procurasse o que havia de dizer.

— Estou cansada — disse finalmente com uma voz fraca.

— Diz-me, vais amanhã visitar os meus pais? — com certeza.

— À mamenka podes dizer tudo, mas a ele, não.

— Já sabes que nunca falo de ti.

— Ele logo o saberá. Mas tu repara no que ele diz, como é que encara o caso. Meu Deus, Vânia! Achas que me amaldiçoará se eu chegar a casar-me? Mas não, não é possível!

— Quem há-de arranjar tudo é o príncipe; deve reconciliar-se com o teu pai e assim tudo ficará arrumado.

— Ai, meu Deus! Se assim fosse, se assim fosse! — exclamou num tom suplicante.

— Está tranquila, Natacha. Tudo se há-de arranjar. Foi para isso que eu vim.

Ela olhou-me fixamente.

— Vânia, que pensas tu do príncipe?

— Creio que falou com sinceridade e que, se assim é, é um perfeito cavalheiro.

— Que queres dizer? Então ele podia, por acaso, não ser sincero?

— É o que eu penso também — respondi. — «Pode ser que ande a tramar qualquer coisa», pensei para comigo.

— Tu estiveste sempre a olhar para ele tão fixamente... É estranho!

— Sim, parecia-me um pouco estranho.

— A mim também. Tem uma tal maneira de falar... Estou esgotada, meu caro Vânia. Olha, deixa-me agora e vem ver-me amanhã, quando saíres de casa dos meus pais... Ah! Diz-me, não teria ele ficado ofendido por eu lhe dizer que desejava começar imediatamente a gostar dele?

— Não. Porque havia ele de ofender-se

— Mas não foi também uma tolice? com isso eu dava-lhe a entender que ainda não gostava dele.

— Pelo contrário; foi uma lembrança muito simpática ingénua e espontânea. Estavas muito bonita nesse momento! Ele é que será um idiota se, do alto da sua grandeza, não o apreciar assim.

— Parece que o olhas com desconfiança, Vânia. Eu também sou desajeitada, desconfiada, vaidosa. Não te rias; já sabes que nunca escondo nada de ti. Ah, Vânia, tu és o meu melhor amigo Se eu voltasse a ser infeliz, se os desgostos voltassem, serás tu quem estará junto de mim, e talvez sejas tu só. Como poderei agradecer-te? Nunca me abandones, Vânia!

Assim que cheguei a casa despi-me imediatamente e deitei-me. O meu quarto estava húmido, sombrio como uma gruta. Sentia que um grande número de ideias e sentimentos estranhos se agitavam em mim, e fiquei muitas horas sem poder adormecer.

Mas como havia de rir-se, nesses mesmos instantes, de todos nós, um homem que dormia em cómodo leito, supondo que se dignasse rir! Mas não, não se dignaria!

 

No dia seguinte, às dez da manhã, quando saía de minha casa a correr para ir ver os Ikmenieves, e ir depois daí a casa de Natacha, encontrei à minha porta a mesma visitante da véspera, a netita de Smith. Não sei porquê, mas lembro-me de que fiquei contente com esse encontro. Não tivera tempo de olhá-la bem na noite anterior e surpreendeu-me em pleno dia. De facto, seria difícil encontrar uma criatura mais estranha, de aspecto mais original. Pequena, de olhos negros, cintilantes, nada russos; uma cabeleira negra, abundante e desgrenhada; um olhar mudo, fixo e perscrutador. Chamaria a atenção de qualquer transeunte na rua. O que mais me impressionava nela era o seu olhar cintilante, inteligente, e ao mesmo tempo desconfiado. De dia, o seu vestuário, velho e sujo, parecia ainda mais esfarrapado. Parecia-me que devia estar minada por qualquer doença lenta que ia inexoravelmente destruindo o seu organismo. A sua carinha, fraca e pálida, era de um amarelo-escuro, pouco natural, com pintas biliosas. Mas, de uma maneira geral, apesar de todos os sinais da miséria e da doença, não era feia. Tinha as sobrancelhas bem desenhadas, finas e belas; particularmente bonitos eram a sua testa ampla e os lábios magnificamente desenhados, com uma prega que indicava orgulho e ironia, mas muito pálidos, quase incolores.

— Ah! És tu outra vez — disse. — Sempre pensei que havias de voltar. Entra.

Como na véspera, entrou lentamente, olhando à sua volta com desconfiança. Olhava atentamente para o quarto onde vivera o avô, como se quisesse observar as mudanças que ali introduzira o novo inquilino. «Bem. A neta condiz com o avô — pensei eu. — Não estará louca?» Enquanto eu pensava isto, ela continuava calada; eu esperava.

— Os livros — murmurou por fim, baixando os olhos.

— Ah, sim, os livros! Aqui os tens, toma-os; guardava-os precisamente para ti.

Olhou-me com curiosidade e torceu a boca de um modo estranho, como se quisesse esboçar um sorriso incrédulo. Isto durou apenas um minuto e o seu rosto recuperou logo a expressão severa e enigmática.

— O meu avô falou-lhe de mim, por acaso? — perguntou-me, olhando-me dos pés à cabeça com um pouco de ironia.

— Não, ele não me falou de ti, mas...

— E como sabia o senhor que eu viria? Quem lho disse? — perguntou rapidamente, interrompendo-me.

— Porque pensei que o teu avô não podia viver só, abandonado de todos. Estava tão velho e tão fraco que supus que alguém viria visitá-lo. Toma, aqui tens os teus livros Estudas com eles?

— Não.

— Então para que os queres?

— A princípio, quando eu vinha vê-lo, o avozinho dava-me lições com eles.

— Então depois deixaste de vir?

— Deixei de vir... Estive doente — acrescentou, à guisa de desculpa.

— Tens pai, mãe, família?

Franziu imediatamente as sobrancelhas e olhou-me assustada. Depois voltou-se e saiu do quarto devagar, sem dignar-se responder-me, como fizera na véspera. Estupefacto, segui-a com os olhos. Mas ela deteve-se à entrada.

— De que morreu ele? — perguntou-me de súbito, voltando-se um pouco para mim e, com o mesmo gesto e a mesma atitude com que entrara na noite anterior parou também à porta e perguntou-me por Azorka.

Aproximei-me dela e comecei a contar-lhe tudo à pressa. ela escutava-me, calada e curiosa, com a cabeça baixa e de costas para mim. Contei-lhe também como o velho, ao morrer, me falou da sexta rua.

— Eu calculava — acrescentei — que aí devia viver alguém que lhe era querido e esperava que viessem perguntar por ele. Devia gostar muito de ti, porque, no último instante, de quem se lembrou foi de ti.

— Não — murmurou involuntariamente —, não gostava de mim.

Estava muito excitada. Enquanto falava eu olhava-a no rosto. Reparei que fazia esforços espantosos para reprimir a sua comoção diante de mim, como se fosse por orgulho. Estava cada vez mais pálida e franzia o lábio inferior. Mas o que mais me impressionava era o bater do seu coração. Cada vez lhe batia com mais força, de tal maneira que parecia ter um aneurisma. Eu pensava que, de repente, ia pôr-se a chorar como na véspera, mas dominou-se.

— Onde está a paliçada, o sítio em que ele morreu?

Mostro-ta quando sairmos. Mas diz-me, como te chamas?

— Não vale a pena.

— Não vale a pena?

— Não, não é preciso, eu não tenho nome — exclamou num tom cortante e, como se tivesse ficado zangada, fez menção de retirar-se. Eu detive-a.

— Espera, pequena, que estranha tu és! Olha que eu gosto de ti. Custou-me muito aquilo de ontem, quando te puseste a chorar num canto da escada. Não posso lembrar-me disso. Para mais o teu avô morreu nos meus braços, e com certeza que pensava em ti quando me falou na sexta rua, como se te lançasse nos meus braços. Apareceu-me em sonhos. Olha, eu arranjei-te uns livros, e tu és tão arisca que pareces teres medo de mim. Deves ser muito pobre e órfã e viver sob o domínio de estranhos. E assim ou não?

Eu contemplava-a comovidamente e não poderia dizer o que é que me atraía nela. No meu pensamento imiscuía-se qualquer outra coisa que não era a piedade. Talvez o mistério de todo o desamparo, a impressão que Smith me deixara ou a fantasia do seu próprio temperamento... Não sei, mas qualquer coisa de indefinido me atraía para ela. As minhas palavras pareciam tê-la perturbado; olhava-me de um modo estranho, já não tão arredio mas sim suave e demoradamente. Depois voltava a baixar a cabeça, como se reflectisse.

— Helena — murmurou de repente, de um modo inesperado e numa voz sumida.

— com que então chamas-te Helena?

— Sim.

— Queres viver aqui comigo?

— Não pode ser... Não sei... Eu hei-de voltar — murmurou ela com esforço e perturbada.

Nesse momento, em qualquer lado ouviu-se um relógio de parede. Estremeceu e, olhando-me com uma tristeza indefinível, doentia, balbuciou:

— Que horas são?

— Devem ser dez e meia.

Estremeceu de medo.

— Senhor! -— exclamou, e, de repente, deitou a correr Eu fi-la parar outra vez no patamar.

— Não tenhas medo de mim! — disse-lhe. — Porque tens medo? Já é tarde para ti?

— Sim, vim aqui às escondidas. Vou-me embora. «Ela vai bater-me — exclamou, libertando-se das minhas mãos. — Escuta — disse-lhe. — Eu também vou a Vassilievski Ostrov, à linha () treze. Vem comigo que eu levo-te a casa.

— A minha casa? Não pode ser, não pode ser! Gritou, muito admirada. O seu rosto crispou-se de espanto só com o pensamento de que eu pudesse segui-la até onde vivia.

— Já te disse que tenho de ir à linha treze tratar de um assunto, e não a tua casa. Não te acompanharei. Mas, de trem, chegaremos mais depressa. Vamos.

Descemos a escada. Eu mandei parar o primeiro cocheiro que passou com um drojki (2) detestável. Pelos vistos, Helena tinha grande pressa de partir. O mais curioso de tudo era que nem sequer me atrevia a interrogá-la. Agitava os braços e por um pouco não se arremessou do trem quando lhe perguntei porque é que tinha tanto medo da sua própria casa. «Que mistério será este?», pensava eu.

A pequena ficou mal acomodada. A cada movimento do drojki agarrava-se ao meu paletó com a mão esquerda, uma mãozinha pequena, suja e muito gelada. com a outra segurava os livros, que devia estimar muito. Quando se acomodou melhor deixou a descoberto um pé, pelos seus sapatos esburacados vi, com grande assombro, que trazia apenas esses sapatos esburacados, sem meias. Embora tivesse resolvido não perguntar nada, não pude conter-me.

— Então não trazes meias? — perguntei-lhe. — Como podes andar assim, com um tempo tão húmido e frio?

— Não — respondeu com secura.

 

  1. C) Linha ou tua. (N do T )

(2) Trem de praça. (N. do T.)

 

— Mas com certeza que deves viver com alguém! Pede-as a qualquer pessoa quando tiveres de sair.

— Ando assim porque quero.

— Pois olha que podes adoecer e morrer.

— Quem me dera morrer!

Era evidente que não queria responder e as minhas perguntas a irritavam; contive-me.

— Olha, aqui é que ele morreu — disse-lhe eu apontando para o muro diante do qual morrera o velho.

Olhou fixamente para o sítio e depois disse-me, suplicante:

— Por amor de Deus, não venha comigo. Eu virei eu virei! Assim que puder, virei!

— Bem. Eu já te disse que não iria a tua casa. Mas diz-me: de quem é que tu tens medo? Deves ser muito infeliz. Fazes-me pena, quando olho para ti.

— Não tenho medo de ninguém — disse ela desabridamente, num certo tom de aborrecimento.

— Mas porque disseste «ela bate-me»?

— Que me bata! — gritou, e os seus olhos chispavam.

— Que me bata! Que me bata! — repetiu com veemência, e o seu lábio superior arqueava, exprimindo desdém.

Finalmente, chegámos a Vassilievski. Ela mandou parar o trem à entrada da sexta linha e saiu, olhando com inquietação à sua volta.

— Adeus, eu vou sozinha, eu vou sozinha! — repetiu com estranha inquietação, pedindo-me que não a seguisse.

— Vá-se embora já, já.

Continuei o meu caminho, mas depois de ter andado ao acaso durante algum tempo mandei embora o drojki e, voltando para trás, para a sexta linha, atravessei rapidamente para o outro passeio da rua. Ainda a vi. Não tivera tempo de afastar-se muito, embora caminhasse muito depressa e olhando à sua volta; chegou até a parar um momento para certificar-se de que ninguém a seguia. Mas eu escondi-me atrás de um portão e ela não me viu. Seguiu o seu caminho e eu atrás dela, pelo outro passeio da rua.

A minha curiosidade estava altamente excitada. Apesar de ter resolvido não a seguir, queria a todo o custo ficar a conhecer a casa em que ia entrar. Encontrava-me sob o influxo de uma impressão dolorosa e estranha, semelhante àquela que me provocara antes, na pastelaria, o seu avô quando morreu Azorka.

 

Andámos muito, até ao Prospekt Mali (). Ela parecia fugir, mas por fim entrou numa loja. Fiquei parado à sua espera. «Não deve viver na loja», pensei.

De facto, passado um momento saiu, mas já sem os livros; em vez deles trazia na mão uma malga. Depois de andar um pouco entrou pela porta de uma casa sórdida. Era uma casa pequena, de pedra, velha, de dois andares, pintada de amarelo sujo. Numa das janelas do andar inferior, que tinha três ao todo, via-se um pequeno caixão vermelho, insígnia de um modesto construtor de ataúdes. As janelas do andar superior eram muitíssimo pequenas e perfeitamente quadradas, com uns vidros sujos, verdes e estilhaçados, através dos quais se percebiam umas cortinitas de cor, de indiana. Atravessei a rua, aproximei-me da casa e li numa tabuleta de ferro, que havia por cima da porta: «Casa da Burguesa Bubnova».

Mal eu acabara de ler esta inscrição quando no pátio da casa Bubnova se ouviram uns gritos insistentes de mulher, seguidos de pragas. Olhei pela portinhola; no patamar da escada de madeira estava uma mulher gorda, vestida com um traje citadino, em cabelo e com um xaile verde sobre os ombros. O seu rosto tinha uma repugnante cor avermelhada; os olhos pequeninos, enterrados nas órbitas, injectados de

 

(’) A pequena avenida, uma das principais avenidas de Vassihevski Ostrov

 

sangue, cheios de maldade. Percebia-se claramente que, apesar de não serem ainda horas de almoçar, estava já completamente embriagada. Gritava contra a pobre Helena, petrificada diante dela, com a sua malga na mão.

Na escada, por cima do ombro da mulher de cara rubicunda, olhava outra mulher com o vestido e o cabelo em desordem, esborratada de carmim e de branco. Um instante depois abria-se a porta da escada do sótão e nos degraus apareceu, provavelmente atraída pela gritaria, outra mulher de meia idade, pobremente vestida mas de cara agradável e simpática. Pelas portas abertas do andar de baixo espreitavam outros inquilinos: um velho completamente decrépito e uma rapariga. Um mujique robusto e de elevada estatura, que devia ser o porteiro, estava a meio do pátio e, apoiado à vassoura, presenciava a cena com indiferença.

— Ah, maldita! Ah, sanguessuga, percevejo! — gritava a mulher lançando numa catadupa pela boca fora os insultos de que era capaz, sem interrupção e quase se engasgando. — É assim que agradeces os meus cuidados, meu frangalho? Mando-a buscar pepinos e desaparece. Eu já o adivinhava. Eu já sabia o que fazia quando a mandei. Já o adivinhava, olá! Ontem apanhou por causa do mesmo e vejam como hoje tornou a fugir. Por onde andas tu, vagabunda? Onde é que vais? com quem é que vais ter, malvada, piolhosa, com esses olhos espantados, víbora? Onde vais, lama dos charcos? Fala ou mato-te!

E a velha, furiosa, atirou-se sobre a pobre pequenita, mas conteve-se ao ver que a inquilina do andar de baixo a olhava e, voltando-se para ela, continuou com as suas lamentações, guinchando ainda mais do que antes e como se a tomasse por testemunha do monstruoso crime da sua vítima.

— A mãe foi desta para melhor! Já sabem, senhores; esta miserável está só no mundo, absolutamente sem nada, e eu, vendo-a assim tão desamparada e para agradar a S. Nicolau, fui e tomei conta desta órfã. Recolhi-a. E que pensam vocês? Há dois meses que a sustento... e nestes dois meses tem dado cabo de mim, tem-me esfolado e sugado o sangue.

Oh, esta sanguessuga, esta serpente venenosa, diabo raivoso! E ela sem dizer pio; batem-lhe e, como se tivesse a boca pregada, não diz uma! Dá cabo de mim... e não diz uma palavra! Quem julgas tu que és, toleirona, maltrapilha, mostrengo? Se não fosse eu tinhas esticado o pernil no meio da rua. O que devias era beijar a terra que eu piso! Se não fosse eu tinhas morrido de fome!

— Porque está assim tão zangada, Ana Trifonovna? Ela deu-lhe outro aborrecimento? — perguntou a mulher com muito respeito.

— O que é que ela fez, criatura, o que é que ela fez outra vez? Pois contraria-me em tudo. Para salvar um olho dela eu era capaz de arrancar os meus dois... Eu sou assim! E ela, hoje, por um pouco não me manda para o outro mundo. Quando me levantei mandei-a buscar pepinos e aparece-me ao meio-dia. Eu já palpitava isto, quando a mandei; já o adivinhava. Onde foste? Apareceram-te alguns protectores, não? Não te chego eu? À mãe dela perdoei eu catorze rublos que me devia, paguei-lhe o enterro e fiquei-lhe com esta filha endiabrada para a educar; tu bem o sabes, criatura, tu sabe-lo de sobra. E depois disto não terei eu direitos sobre ela? Se ao menos ainda me agradecesse.. Mas não, vai sempre contra mim. Contra mim, que só quero o seu bem! Quis pôr-lhe vestidos de musselina, comprei-lhe botinas, vesti-a como uma boneca. E que imaginam os senhores? Em dois dias esfarrapou tudo e olhem como anda agora. Para castigo deixei-a sem leite durante uma semana. Ponho-a a lavar e ela lava toda a porcaria. Põe-me maluca com o seu silêncio e a sua inflexibilidade; por isso, ontem, bati-lhe até me doerem as mãos. Tirei-lhe os sapatos e as meias para que não pudesse sair... e saiu mesmo assim! Onde estiveste? com quem andaste? Fala! A quem é que foste queixar-te? Fala, vadia, fala!

Raivosamente, lançou-se sobre a pequena, segurou-a pelos cabelos e sacudiu-a.

A malga com os pepinos caiu no chão e fez-se em cacos, o que aumentou ainda mais a fúria da mulher, que se pôs a castigar a vítima na cara e na cabeça, sem que a pequenita deixasse escapar um grito ou uma queixa.

Precipitei-me para o pátio e, de um salto, lancei-me sobre a ébria, que parecia enraivecida.

— Que faz a senhora? Porque maltrata assim uma pobre criança? — gritei, segurando aquela fúria por um braço.

— Mas que é isto? Quem és tu? — perguntou-me num ar fanfarrão e pondo as mãos na cintura. — Que fazes tu aqui, em minha casa?

— Não tem compaixão! Como se atreve a torturar assim esta pobre órfã?

— Senhor! Jesus! — gritou a megera. — Mas quem és tu e quem é que te chamou? Vieste com ela? Pois vais ver como eu vou fazer queixa ao comissário da polícia! Então Andron Timofeich, que tanto me aprecia! É então contigo que ela vai ter? Socorro, socorro! Porque te vens meter numa casa alheia?

Caminhou para mim de mãos no ar... Mas nesse momento ouviu-se um grito penetrante, que não parecia humano...

Voltei-me... Helena, que estava de pé, como insensibilizada, tombou de repente no chão com um alarido terrível, antinatural, tomada de horríveis convulsões. O seu rosto estava transtornado. Costumavam dar-lhe ataques epilépticos. A rapariga do quatro independente e a mulher de baixo acudiram, levantaram-na e apressaram-se a levá-la para cima.

— Se ao menos rebentasse, essa malvada! — grunhiu a mulher correndo atrás dela. — Já é o terceiro ataque num mês... fora daqui, delator! — e de novo fez menção de atirar-se a mim. — Mas que fazes aí pespegado, dvornik? (’) Para que te pago eu?

— Gira! Gira daqui depressa se não queres que te dê uma coça! — disse o porteiro por dever de ofício. — Não te metas onde não és chamado, enfia a viola no saco e põe-te a mexer.

 

  1. C) Porteiro. (N. do T.)

 

Compreendi que era o melhor que tinha a fazer e parti, convencido de que a minha intervenção fora completamente inútil. Mas fervia de indignação. Já na rua, parei no passeio e olhei pela vigia da porta. Mal eu saí, a mulher gorda dirigiu-se lá para cima e o dvornik, acabado o seu trabalho, desapareceu. Um momento depois, a mulher que ajudara a levar Helena atravessou o portal em direcção à sua casa. Quando me viu parou e olhou-me com curiosidade. A doçura e a bondade do seu rosto encorajaram-me. Voltei a aproximar-me da porta e interroguei-a directamente.

— Dê-me licença — perguntei-lhe. — É daqui essa pequenita, a quem acabava de tratar tão mal essa mulher cruel? Pode crer que não se trata apenas de curiosidade. É que eu conheço essa rapariguinha e por uma certa razão interesso-me muito por ela.

— Pois se lhe interessa, leve-a, não deixe que ela se perca aqui — disse-me com receio de que a ouvissem e fez menção de retirar-se.

— Mas explique-me o que devo fazer. Digo-lhe desde já que não sei nada. A Bubnova deve ser a dona desta casa...

— Sim, é.

— E como se encontra esta pequena em seu poder? A mãe dela morreu aqui?

— Parece que sim... Mas não é comigo — e procurou outra vez escapar-se.

— Diga-me, quem é essa pequena? Afirmo-lhe que me interessa muito. E talvez eu possa fazer qualquer coisa. Quem era a mãe dela? Sabe?

— Uma estrangeira recém-chegada; vivia -connosco, aqui em baixo; estava sempre doente, tísica, e morreu.

— Devia ser muito pobre para viver num canto, num saguão!

— Se era! Fazia pena. A nós ficou ela a dever seis rublos em cinco meses que esteve connosco. Fomos nós que lhe pagámos o enterro; o meu marido fez-lhe o caixão.

— Então como é que a Bubnova diz que foi ela quem lhe pagou o enterro?

— Que ia pagar-lho!

— Como se chamava a falecida?

— Eu não sou capaz de dizê-lo, paizinho, era um nome pouco vulgar, devia ser alemão.

— Smith?

— Não, não era assim. Mas Ana Trifonovna ficou com a pequena para educá-la, segundo diz. Mas... a coisa não está muito clara...

— Não teria ficado com ela sem alguma outra intenção?

— Os seus negócios não são muito claros — respondeu a mulher, perplexa e hesitante (deveria falar ou não?). — Mas, no fim de contas, nós não temos nada com isso, nós somos estranhos...

— Não seria melhor acabares com a conversa? — gritou nas nossas costas uma voz de homem.

Era um homem já idoso, que trazia uma bata até um pouco abaixo da cintura e por cima desta um cafetã (*) e de aspecto citadino. Era o marido da minha interlocutora.

— Olhe, paizinho, não temos nada a dizer-lhe, isso não nos diz respeito — murmurou, olhando-me de soslaio. — E tu, vem daí. Adeus, cavalheiro! Nós fazemos caixões. Se , alguma vez precisar dos nossos serviços, temos muito gosto em... De outras coisas não temos nada que falar...

Saí daquela casa perplexo e profundamente perturbado. Não podia fazer nada mas era-me muito doloroso deixar o caso assim. Algumas das palavras da mulher do fabricante de ataúdes tinham-me impressionado particularmente. Havia ali qualquer coisa que não estava bem; era esse o meu pressentimento.

Seguia cabisbaixo e pensativo, quando, de repente, uma voz forte chamou pelo meu nome. Olho.., e vejo à minha frente um homem bêbado, que mal podia manter-se de pé,

 

(’) O cafetã é um paletó comprido, ajustado ao corpo, de pano azul ou preto. (N. do T.)

 

bem vestido, mas com uma pobre capa e um gorro ensebado. A sua cara era-me bem conhecida. Parei a olhar para ele Piscou-me um olho e sorriu ironicamente. — Então, já me reconheceste?

Capítulo quinto

— És tu, Masloboiev — exclamei, reconhecendo de súbito o meu antigo condiscípulo do ginásio (J) oficial. — Que encontro!

— Há quanto tempo! Há seis anos que não nos víamos! Embora talvez já nos tivéssemos encontrado, simplesmente Vossa Excelência não se dignou olhar para mim. Agora és um general, em sentido literário, já se sabe! — e ao dizer isto sorria zombeteiramente.

— Olha, meu caro Masloboiev, não mintas — interrompi-o. — Em primeiro lugar, os generais, mesmo os literários, não têm o meu aspecto, e além disso, permite-me que te diga que, de facto, me lembro de ter-te encontrado umas duas vezes na rua; mas tu parecias fugir de mim e eu abstenho-me quando vejo que me evitam... Sabes o que penso? É que se tu não estivesses agora grosso não me terias cumprimentado. Não será isto verdade? Bem. Pois então, boa tarde! Eu, meu caro, estou muito satisfeito por ter-te encontrado.

— Sério? Não te comprometo com a mi... com este aspecto? Bem, é escusado perguntar-te, isso não tem importância; eu nunca me esqueço de que eras um bom rapaz, Vânia. Lembras-te daquela vez em que foste castigado por minha culpa? Tu calaste-te, não me denunciaste, e eu, em vez de agradecer-te, fiquei a rir-me de ti durante uma semana. Que alma inocente a tua! bom dia, meu amigo, saúde! — e

 

(’) O mesmo que liceu. (N. do T.)

 

beijá-mo-nos. — já há anos que ando sozinho... trabalhando dia e noite... e no entanto Isso não se esquece! E tu, e tu?

—- Eu? Também trabalho, e só...

Ele olhou-me durante um longo momento, com a viva simpatia de um homem amansado pela aguardente. Embora, afinal, não precisasse disso para ser uma excelente pessoa.

— Não. Vânia, não; tu não estás como eu — exclamou finalmente com uma expressão trágica. — Olha, eu tenho lido, tenho lido, Vânia, tenho lido... Mas escuta. Fala-me com a alma. Tens pressa?

— Tenho fome e, confesso-te, estou terrivelmente preocupado com um caso. O melhor era... Onde moras?

— Já te digo. Mas isso não é o melhor. Não seria preferível outra coisa?

— O quê

— Olha para ali. Estás a ver? — e apontava-me uma tabuleta a dez passos do lugar em que nos encontrávamos. — Vês? Pastelaria e restaurante, isto é, trata-se simplesmente de uma casa de pasto, mas é um lugar bom. A clientela é distinta e há boa vodka; não terás nada a dizer. Vim de Kiev a pé. Bebi, bebi bastante, reconheço-o, e aqui não se atrevem a dar-me da má. Sabem quem é Filipe Filipitch. O quê? Torces o nariz? Não. Deixa-me falar. É meio-dia e um quarto, vi agora. Pois bem, à uma menos vinte e cinco em ponto largo-te. Entretanto, poderemos matar o bicho. Vinte minutos para o velho amigo, valeu?

— Se se trata apenas de vinte minutos, seja, porque, meu caro, juro-te que o assunto...

— bom. Sempre vens. Assentemos em que vens. Mas, antes de mais, duas palavras. Estás com mau parecer; acabas de sofrer algum desgosto, não é verdade?

— Sim.

— Já vês como adivinhei. Eu, meu amigo, agora dei em fisionomista, é uma profissão como outra qualquer. Bem, vamos lá, entremos e conversemos. Eu, em vinte minutos terei tempo de sobra para estrangular o almirante Tchainski (’) e embutir outro copito de aguardente, outro de anis outro de Pomerânia, outro de parfait amour (2), e mais qualquer coisa ainda. Eu bebo, meu amigo! Só nos dias de festa antes da missa, é que valho qualquer coisa. Tu, se não quiseres, não bebes. Preciso de ti para uma coisa. Mas entra, e se beberes demonstrarás uma especial grandeza de alma. Entremos. Trocaremos duas palavras, e depois, durante dez anos cada um tornará a andar por onde calhar. Eu sou o teu irmão, Vânia, e não o teu igual!

— Bem. Não fales mais e entra quanto antes. Durante vinte minutos estou ao teu dispor, mas depois tenho de deixar-te.

Para se entrar no restaurante era necessário subir por uma pequena escada de madeira, com um patamar no 2.º andar. Na escada encontrámos dois senhores que deviam ter bebido muito. Quando nos viram, afastaram-se, cambaleando.

Um deles era um rapaz muito novo, ainda imberbe, com um bigodinho incipiente e uma expressão de cara completamente estúpida. Vestia com elegância mas com um certo ridículo, era como se trouxesse roupa alheia; trazia anéis valiosos nos dedos, um alfinete de preço na gravata, e tinha um penteado disparatado, com uma espécie de topete na frente. Não fazia senão rir às gargalhadas. O seu companheiro devia ter já uns cinquenta anos; era um homem gordo, barrigudo, vestido com muito desleixo, mas que trazia também um vistoso alfinete na gravata; calvo, uma cara de bêbado, rubicunda e afogueada, óculos sobre o nariz, do tamanho de um botão; a expressão do rosto era maliciosa e implicativa. Os seus olhinhos chispantes,, maliciosos e perspicazes estavam enterrados em gordura e pareciam olhar por uma fresta. Pelos vistos ambos conheciam Masloboiev; mas o pançudo, quando se encontrou connosco, aparentou, embora apenas por um momento, uma expressão de contrariedade, ao passo

 

(’) Expressão picaresca para designar o chá, que se diz tebai em russo (N.T.)

(2) Em francês, no texto.

 

que o rapaz esboçava um sorriso de troça disfarçada de servil obsequiosidade. Até tirou o gorro. Porque ia de gorro.

Desculpe-me, Filipe Filipitch — murmurou, olhando-o com servilismo.

— Porquê?

— Porque pecámos... por aqui — e apontou o pescoço.

— Mitrochka está lá dentro. A semana passada, em certo sítio, apanhou uma tosa! Hi, hi!

O companheiro, contrariado, deu-lhe uma cotovelada.

— Mas o senhor, Filipe Filipitch, não quer esvaziar uma garrafa connosco?

— Não, paizinho, agora é impossível — respondeu Masloboiev —, agora tenho um assunto...

— Hi, hi! Também eu tenho um assunto para tratar consigo...

O companheiro tornou a dar-lhe com o cotovelo. Via-se que Masloboiev fazia esforços para não os olhar. Mas ainda mal entráramos no primeiro compartimento, ao longo do qual corria um armário, bem fornecido de aperitivos, frascos e garrafas de várias cores, quando Masloboiev me levou para um canto e me disse:

— O rapaz... é o filho de Sizobriukov, o famoso fabricante de farinhas, que herdou do pai meio milhão, e dedica-se agora à boémia. Esteve em Paris e arejou ali as algibeiras de tal modo que gastou quase a herança toda. Depois herdou outra vez de um tio e veio de Paris gastar aqui o que lhe restava. Escusado será dizer que, dentro de um ano, ficará teso. É um doidivanas. É nos melhores restaurantes, nas casas de mariscos e nas tabernas, com actrizes e hussardos, que ele anda sempre... Há pouco apresentou uma demanda. Ô outro, o mais velho é... Arkipov, também comerciante ou qualquer coisa do género, e também é doido pela pinga. É um velhaco, um covarde, esse actual compincha de Sizubriokov; Judas e Falstaff num pé só, duas vezes falido e de uma sensualidade repugnante, com certos caprichos... Conheço-lhe um caso de crime, neste género... É por isso que ele me evita. Por um lado estou satisfeito por tê-lo encontrado aqui; estava à espera dele... E claro que Arkipov vive há custa de Sizobriukov; conhece todos os sítios e é do melhor que há para acompanhar rapazes deste género. Eu, meu caro, aqui há tempos mostrei-lhe os dentes. Mitrochka (’) também lhos mostrou... é esse rapazinho muito bem vestido que está ali, junto da janela, com cara de cigano. É negociante de cavalos e não há aqui um hussardo que não o conheça. Previno-te de que é tão astuto que é capaz de fabricar moeda falsa na tua frente, e tu, que o estás vendo, vais passá-la. Veste de pelúcia, é verdade, e parece um eslavónico (o que, em minha opinião, não lhe fica mal); mas põe-lhe um fraque de bom corte, leva-o ao Clube Inglês (2) e verás como todos dizem: «Caramba! Aquele é o poderoso conde Barabanov!» E durante duas horas tratá-lo-ão como se fosse o tal conde... E ele fará outro papel e falará como um conde de tal maneira que ninguém suspeitará de nada e os enganará a todos. Há-de acabar mal. Pois bem. Esse tal Mitrochka mostrou também os dentes ao barrigudo, porque agora anda a tinir e o pançudo roubou-lhe Sizobriukov, que dantes era seu amigo e agora lhe rouba a pele. Se se encontraram os dois aqui no restaurante é porque, de certeza, tramam qualquer coisa. Poderia até dizer o quê, e calculo que foi Mitrochka e não outro quem me avisou de que Arkipov viria aqui com Sizobriukov, e que trazem entre mãos algum assunto feio. Eu tenciono aproveitar-me do ódio que Mitrochka tem a Arkipov, cá tenho as minhas razões; foi precisamente por isso que vim aqui. Mas fingir-me-ei desentendido com Mitrochka e tu faz também que não reparas nele. Quando sairmos, com certeza que será ele próprio quem há-de aproximar-se e me dirá aquilo que preciso de saber... Agora, Vânia, vamos para aquela salita. Olha...

 

(’) Diminutivo de Demitri. Esta personagem imaginária corresponde a outra personagem real que Dostoievski conheceu no presídio (Vulkov) e que descreve nas Recordações da Casa Morta quase com as mesmas palavras (N. do T.)

(2) O Clube Inglês, fundado no tempo de Catarina II, esteve muito em moda no século XIX Era o lugar de reunião da aristocracia e dos altos funcionários (N. ao T.)

 

Vamos lá a ver, Stepan — prosseguiu, dirigindo-se ao n»o(0 —, sabes o que eu quero?

— Sei.

— E está pronto? -— Está.

— Então traz. Senta-te, Vânia. Mas porque me olhas assim’ Estás admirado? Não te admires. A um homem podem sempre acontecer coisas com as quais nem sequer sonhou, sobretudo quando... bem, sobretudo quando eu lia contigo o Comélio Nepote. Mas olha, Vânia, não te esqueças de uma coisa. Por muito batido que Masloboiev seja, ainda tem coração, e tudo se reduz a que as circunstâncias mudaram. Eu quis estudar Medicina, fazer-me professor de literatura nacional, escrevi um artigo sobre Gogol, trabalhei também como pesquisador de ouro, e, além disso, estive quase para me casar... E «ela» estava pelos ajustes embora eu não tivesse nem para mandar tocar um cego. Fiz os preparativos necessários para o casamento e fui comprar umas botas fortes porque as minhas já estavam em estiras... Mas não cheguei a casar-me. Ela partiu com um professor e eu fiquei num escritório, não num escritório comercial, mas numa casa de penhores. Mas aquilo não me agradava. Os anos passaram e, embora eu não tenha agora nenhum emprego, dinheiro não me falta; deito as minhas contas e faço valer os meus direitos; sou feroz para com os mansos e manso para com os ferozes. Sigo uma regra. Sei, por exemplo, que ninguém pode lutar sozinho, e... arranjo-me... Geralmente, trabalho à sucapa... compreendes?

— Es agente secreto ou qualquer coisa do género?

— Não, não sou agente, mas ocupo-me em assuntos, em parte oficiais e em parte privados. Olha, Vânia, bebo. E como nunca deixei afogar o juízo, sei bem qual há-de ser o meu futuro. O meu tempo já passou, e águas passadas não movem moinhos. Só te digo uma coisa. Se eu, apesar de tudo, não fosse um homem, não me teria aproximado de ti, Vânia. Tu tinhas razão. Encontrei-me contigo, já te tinha visto mais vezes e quis falar-te, mas não me atrevia, faltava-me a coragem. Disseste a verdade, Vânia; se me aproximei de ti foi porque estou bêbado. Mas embora tudo isto tenha o seu interesse, já chega de falar de mim! Falemos agora de ti. Bem, meu amigo, pois eu li, li e reli tudo, e, meu caro, é à tua primeira obra que me refiro, e ao lê-la estive quase a tornar-me um homem disciplinado. Pouco faltou; simplesmente pensei-o, mas não o fiz, achei melhor continuar a ser um homem desordenado. Por isso...

Disse-me ainda muitas outras coisas. Cada vez estava mais bêbado e começou depois a enternecer-se muito e ficou quase a ponto de chorar. Masloboiev fora sempre um bom rapaz, mas não conseguia ter juízo e desenvolver uma ideia. Esperto, brigão, desinquietador e buliçoso, já no colégio; mas na realidade um homem de coração, um homem perdido. Há muitos indivíduos como ele entre os russos. Costumam possuir grandes aptidões mas permanecem improdutivos e, além disso, propendem inconscientemente a actuar contra a sua consciência, por pura fraqueza, em determinados pontos, e não só se perdem, como já de antemão sabem que se hão-de perder. Masloboiev, entre outras coisas, naufragava em aguardente.

— Agora, meu caro, ainda duas palavras — continuou. — Eu dei pelo barulho que fez o teu primeiro livro; li depois várias críticas sobre ti (li-as, de facto, naturalmente pensas que eu já nem leio); encontrei-te depois mal calçado, sujo, sem galochas, com um chapéu todo amolgado e adivinhei qualquer coisa. Não escreves agora nos jornais?

— Escrevo, sim, Masloboiev.

— Quer dizer então que fazes de moço de fretes?

— Qualquer coisa do género.

— Pois, olha, meu amigo, ouve o que eu te digo: embebeda-te melhor. Eu embebedo-me, estendo-me no divã (porque eu tenho um divã, fofo, de molas) e imagino que sou qualquer coisa da categoria do Homero, do Dante, ou do Frederico Barba-Roxa... bom. Tudo o que de melhor se pode imaginar. Mas tu, claro, não podes imaginar que és Dante nem Barba-Roxa; primeiro, porque aspiras a ser tu próprio e, além disso, porque não podes permitir-te caprichos, visto que és um moço de fretes. Para mim, a fantasia, para ti, a realidade. Escuta-me com toda a franqueza e como irmão, se não ficarei ofendido e humilhado para os dez anos mais próximos: precisas de dinheiro? Tal qual. Não faças trejeitos. Pegas no dinheiro, pagas os adiantamentos ao editor, sacodes o jugo, descansas sem preocupações durante um ano, imaginas um assunto e escreves um grande livro. Hem? Que dizes?

— Ouve, Masloboiev. Agradeço a tua fraternal oferta, mas não posso aceitá-la... Porquê? Seria preciso entrar em muitos pormenores. Mas prometo contar-te tudo mais tarde, como de irmão para irmão. Agradeço o teu oferecimento; prometo ir visitar-te e hei-de ir por mais de uma vez. Mas vamos ao assunto. Tu és franco para comigo e por isso resolvi pedir-te um conselho. Tanto mais que, segundo parece, és mestre nestas coisas.

E contei-lhe toda a história de Smith e da sua netita, começando pela pastelaria. Coisa estranha: enquanto eu falava parecia-me adivinhar no seu olhar que ele sabia algo sobre essa história. Perguntei-lho.

— Não, não sei — respondeu. — Mas, de facto, ouvi dizer qualquer coisa a respeito de um tal Smith, de um velho que morreu numa pastelaria. E de madame Bubnova, sei, efectivamente, qualquer coisa. Dessa senhora recebi eu, haverá dois meses, uma quantia de Frends mon bien ou je le trouve (’), e é só nisto que eu sou parecido com Molière]. E, embora lhe tenha apanhado cem rublos, nesse mesmo instante jurei a mim próprio apanhar-lhe, não cem, mas quinhentos. Que mulher tão repugnante! Dedica-se a negócios ilícitos. E isso ainda seria o menos, mas é que às vezes ultrapassa todas as marcas. Entretanto, não me tomes por um dom-quixote, peço-te. O que eu quero é tirar daqui proveito, e quando há um momento nos encontrámos com Sizo briukov,

 

(’) Em francês, no texto: governo-me como posso, deito a mão ao que aparece (N. do T )

 

fiquei muito satisfeito. Sizobriukov visita-a, pelos vistos, e deve, levar o seu barrigudo; ora como eu já sei a que espécie de negócios se dedica o barrigudo, deduzo que... Bem. Eu o arranjarei. Estou muito satisfeito porque me tenhas falado dessa pequenita; agora já tenho outra pista Eu, meu caro, trato de vários assuntos, e se visses as pessoas com quem lido... Há pouco tive de tratar de um caso com certo príncipe. Se quiseres contar-te-ei uma certa história de uma mulher casada. Vem visitar-me, meu caro amigo que eu te darei assuntos para livros, assuntos tais que, se os escreveres, nem hão-de querer acreditar-te...

— Qual é o apelido desse príncipe? — interrompi imaginando qualquer coisa.

— A ti, que te interessa? Bem, é Valkovski.

— Piotre Valkovski?

— Isso mesmo.

— Conhece-lo?

— Conheço-o, mas’não muito bem. Olha Masloboiev, vou perguntar-te algumas minúcias acerca desse cavalheiro — disse, levantando-me. — Despertaste em mim um interesse enorme.

— Meu caro, pergunta o que quiseres. Eu posso contar histórias, mas só até certo ponto... compreendes? Senão, de outra maneira perde-se o crédito e a fama nos negócios e ainda mais.

— Bem. Tudo quanto a dignidade permita. Eu estava muito comovido, no que ele reparou.

— bom. Que me dizes agora a respeito dessa história que acabo de contar-te? Sugeriu-te qualquer coisa ou não?

— A tua história? Um momento. Espera dois minutos que eu vou pagar.

Aproximou-se do balcão, e aí, como por acaso, surgiu de repente o rapazelho do jaquetão de pelúcia, ao qual tão familiarmente tratava por Mitrochka. A mim parecia-me que Masloboiev o conhecia melhor do que aparentava. Pelo menos era evidente que não era aquela a primeira vez que se viam. Mitrochka era um rapaz de aspecto muito original.

O seu colete, que deixava ver uma linda camisa de seda vermelha; as feições enérgicas mas bem desenhadas, muito novo ainda, com uns olhos cintilantes e trocistas, provocavam uma impressão estranha mas não antipática. Os seus jestos tinham qualquer coisa de afectamente obsequioso mas, ao mesmo tempo, esforçava-se visivelmente por dominar-se, adoptando um ar altamente preocupado, grave e sério.

— Olha, Vânia — disse Masloboiev dirigindo-se a mim — vem até minha casa esta noite, às oito, pois talvez possa dizer-te alguma coisa; simplesmente, eu, agora, não sou ninguém; já o fui, mas agora sou apenas um borracho e não me ocupo de negócios. Mas possuo boas relações; posso interrogar alguém, andar na estúrdia com gente fina; com isso é que eu conto verdadeiramente quando estou livre; isto é, como bêbado também faço qualquer coisa, sempre com a ajuda dos amigos... Mas, bom, eu estou bêbado... Basta! Aqui tens a minha direcção; na Chestilavotchnaia í1). Ainda vou beber do dourado, mas em casa. Depois deito-me. Vai! Apresento-te a Alexandra Semionovna e falaremos de poesia.

— E do outro assunto também?

— Bem. Pode ser que também.

— Irei, irei sem falta...

 

Havia muito tempo que Ana Andreievna me esperava. O que eu lhe dissera na noite anterior a respeito da carta de Natacha excitara vivamente a sua curiosidade e por isso ela aguardava-me desde manhã cedo, pelo menos desde as dez. Quando apareci em sua casa, às duas da tarde, a tortura da espera esgotara quase por completo as forças da pobre velha.

 

  1. C) Rua das Seis Lojas. (N. do T.)

 

Além disso, estava ansiosa por comunicar-me as novas esperanças que concebera no dia anterior e por falar-me de Niko lai Serguieitch, o qual desde a véspera andava rabujento e esquivo, embora ao mesmo tempo se mostrasse carinhoso para com ela, de uma maneira muito especial. Quando entrei acolheu-me com uma expressão de frieza e de descontentamento no rosto; mal me cumprimentou, por entre dentes e não manifestou a menor curiosidade. Foi como se desejasse dizer-me «Porque vieste? Que gosto o teu, palmilhar ruas durante todo o dia.» Estava zangada até mais não poder Mas eu apressei-me e, sem mais preâmbulos, contei-lhe toda a cena da véspera em casa de Natacha. Assim que ouviu a referência à visita do velho príncipe e o solene pedido da mão de Natacha que ele fizera, logo a velhota abandonou imediatamente toda a sua fingida indiferença. Não haveria palavras suficientes para descrever a sua alegria e até o seu êxtase, a maneira como se benzeu, chorou e prostrou diante da imagem em genuflexões até ao chão, e como, depois de abraçar-me, quis correr em busca de Nikolai Serguieitch e comunicar-lhe a sua alegria.

— Paizinho, ele está aborrecido com tantas ofensas e humilhações. Mas agora, quando souber que vão dar uma satisfação a Natacha, há-de esquecer tudo num momento.

Só com muito custo a dissuadi. A boa velhota, apesar de estar já casada havia vinte e cinco anos, ainda não conhecia bem o marido. Queria também ir comigo imediatamente a casa de Natacha. Fiz-lhe ver que não só podia muito bem acontecer que Nikolai Serguieitch não aprovasse o seu procedimento, como até poderíamos fazer com que tudo se acabasse ainda por estragar. Só à força consegui convencê-la a desistir, mas, no entanto, reteve-me ainda meia hora e durante todo esse tempo não parou de falar.

— Mas porque hei-de estar eu aqui metida entre estas quatro paredes, com esta alegria tão grande? — dizia.

Finalmente convenci-a a deixar-me sair, fazendo-lhe notar que Natacha devia estar já à minha espera com impaciência. A velhota benzeu-me várias vezes durante o caminho até à porta; encarregou-me de felicitar Natacha em seu nome e por um pouco não me punha a chorar quando eu lhe disse que já não podia voltar naquela noite, a menos que não acontecesse a Natacha qualquer coisa de especial. A Nikolai Serguieitch não cheguei a vê-lo nesse dia; não dormira em toda a noite passada e queixava-se de dor de cabeça, mas nessa altura descansava no escritório.

Também Natacha me esperara durante toda a manhã. Quando entrei, passeava ela pelo quarto, como era seu costume, com os braços cruzados e como quem medita em alguma coisa. Ainda hoje, quando me lembro dela, não posso imaginá-la de outra maneira senão sempre sozinha, no seu mísero quarto, pensativa, abandonada, à espera, de braços cruzados, os olhos dolorosamente fixos no chão e dando voltas sem objectivo, de um lado para o outro.

com uma voz tranquila e sem deixar de caminhar, perguntou-me por que me demorara eu tanto. Expus-lhe com brevidade todas as minhas aventuras, mas ela quase não me ouviu. Era evidente que estava preocupada com qualquer coisa.

— Há alguma coisa de novo? — perguntei-lhe.

— De novo, nada — respondeu-me num tom que me fez adivinhar imediatamente que, de facto, havia qualquer coisa de novo e que ela me esperava para contar-me aquela novidade, mas que, conforme era seu hábito, não ma diria logo mas só quando eu fosse já para sair.

Era assim que fazia sempre. Eu já o sabia e aguardava.

Como era natural, iniciámos a nossa conversa falando do dia anterior. Fiquei muito admirado ao ver que estávamos os dois absolutamente de acordo acerca da impressão que o príncipe deixara; a ela era-lhe decididamente antipático, muito mais antipático que na véspera. Mas quando lhe fiz notar certos aspectos da sua visita, Natacha disse de repente:

— Ouve, Vânia, a mim tem-me acontecido sempre que quando alguém me é antipático na primeira vez isso é um indício quase infalível de que mais tarde virá a ser-me simpático. Pelo menos, é o que me tem acontecido sempre.

— Deus queira, Natacha. Aliás, vou dar-te a minha opinião, que é definitiva. Reparei em tudo e concluí que o príncipe, embora seja um tanto jesuíta, deu consentimento para o vosso casamento com toda a seriedade e de boa fé.

Natacha ficou -parada no meio do quarto e olhou-me com severidade. Todo o seu rosto mudara; até os lábios lhe tremiam levemente.

— Mas como poderia ele, num caso destes, empregar a astúcia e... mentir? — perguntou-me com uma altiva segurança.

— Claro, claro! — apressei-me a responder.

— Certamente que ele não mentiu. Parece-me que nem sequer devemos pensar nisso. Também não é possível ir procurar uma razão que justificasse tal mentira. E, afinal, quem sou eu a seus olhos para que quisesse troçar de mim até esse ponto? Pode existir um homem capaz de infligir tal ofensa.

— Claro, claro! — corroborei eu, enquanto pensava para mim: «Tenho a certeza de que era nisto e apenas nisto que tu pensavas enquanto fazias esses passeios pelo quarto, minha pobrezinha, e pode ser que duvides disso ainda mais do que eu.»

— Ah, como gostaria que ele voltasse depressa! — disse. — Queria ficar junto de mim uma noite inteira e afinal... com certeza que devia ter assuntos muito importantes, uma vez que deixou tudo e partiu. Sabes alguma coisa, Vânia? Não ouviste dizer nada?

— Vá-se lá saber! Anda sempre à caça de dinheiro! Ouvi dizer que está ligado a certa empresa, aqui, em Petersburgo. Eu, Natacha, de negócios não percebo patavina.

— Bem sei. Aliocha, ontem, falou-me não sei de que carta.

— Alguma notícia. A propósito: Aliocha veio?

— Veio.

— Cedo?

— Ao meio-dia. Já sabes que ele é pouco madrugador. Esteve aqui apenas um momento. Eu mandei-o para Catarina Fiodorovna, não é possível outra coisa, Vânia.

- Então não foi por sua livre vontade?

Não, fui eu que o mandei.

Quis acrescentar qualquer coisa mais mas ficou calada. olhei-a e fiquei à espera. O seu rosto exprimia tristeza, de boa vontade a teria interrogado, mas às vezes as perguntas incomodavam-na muito.

—- Que rapaz estranho! — disse, por fim, franzindo levemente a boca e como se se esforçasse por não me olhar.

— O quê? Tiveram alguma zanga.?

— Não, de maneira nenhuma, simplesmente... Além disso ele é tão bom... Apenas...

-— Bem, em breve acabarão todas as suas amarguras e inquietações — disse-lhe eu.

Natacha olhou para mim, atenta e curiosa. Pode ser que se tivesse lembrado de responder-me que Aliocha nunca chegara verdadeiramente a ter grandes inquietações, mas pareceu-lhe que nas minhas palavras se encerrava o mesmo pensamento. Ficou um pouco amuada.

Mas em breve se pôs afectuosa e amável. Dessa vez foi até particularmente amável. Fiquei a fazer-lhe companhia por mais de uma hora. Estava muito desassossegada. O príncipe metia-lhe medo. Eu pude inferir de algumas perguntas suas que desejava saber verdadeiramente a impressão que lhe fizera na noite anterior. Como se tinha conduzido? Não teria demonstrado demasiada alegria com a sua presença? Não se teria mostrado demasiadamente exigente? Ou, pelo contrário, excessivamente condescendente? Que teria ele pensado? Não lhe pareceria ridícula? Não sentiria desprezo por ela? com todas estas cavilações, as faces ardiam-lhe como fogo.

— Para que te comoves tanto perante a ideia do que um mau homem possa pensar? Que pense o que quiser! — disse-lhe eu.

— Mau, porquê? — perguntou-me.

Natacha era receosa, mas de coração puro e carácter íntegro. Os seus receios procediam de uma fonte límpida. Era orgulhosa, nobremente orgulhosa, e não podia suportar que aquilo que julgava superior a tudo fosse objecto de mofa perante os seus próprios olhos. Ao desprezo de. um homem vil responderia com o mesmo desprezo; no entanto, doía-lhe que troçassem daquilo que considerava sacrossanto, fosse quem fosse o trocista. Isso não se devia a uma falta de firmeza, mas sim ao seu pequeno conhecimento do mundo, à sua falta de convívio com as pessoas, a ter passado a vida metida num canto. Passar a vida toda quase sem sair de casa. E finalmente, essa qualidade dos seres ingénuos, que talvez lhe viesse do pai, de apreciar uma pessoa, considerando-a por melhor do que verdadeiramente é e exagerar exaltadamente tudo quanto tem de bom, tinha-se desenvolvido nela num grau violento. A essas criaturas custa-lhes depois muito refazerem-se da sua desilusão e ainda mais quando sentem que são elas mesmas as culpadas. Para quê esperar de uma pessoa mais do que aquilo que ela pode dar? Dizem que, a tais pessoas, uma desilusão as espera a cada momento. O melhor de tudo seria estarem muito quietas nas suas casas e não andarem pelo mundo, e eu já reparei que, efectivamente, têm tal amor ao seu cantinho que acabam por se tornar ariscas. Além disso, Natacha sofrera muitos dissabores, muitas ofensas. Era já uma criatura doente e ninguém podia acusá-la, se é que as minhas palavras encerravam qualquer recriminação.

Mas eu estava com pressa e levantei-me para sair. Ela ficou admirada e por pouco não se pôs a chorar quando viu que me retirava, apesar de que, durante todo o tempo que eu ali estivera se mostrara mais fria que de costume. Beijou-me com ímpeto e ficou a olhar-me por muito tempo.

— Ouve — disse-me. — Aliocha hoje esteve ridículo e até me deixou ficar admirada. Na aparência estava muito carinhoso, muito contente, mas agitava-se e remexia-se muito e não fazia outra coisa senão olhar para o espelho. Não parecia preocupado... e entretanto esteve muito pouco tempo comigo. Calcula que me trouxe doces.

— Doces? É muito bom, é ingénuo! Ah, como vocês me saíram os dois! Agora põem-se a observar um ao outro, a odiarem-se, a investigar os rostos e a ler pensamentos secretos sem conseguirem decifrá-los. E ele nem sequer... Continua tão alegre e colegial como antes. Mas tudo!

E sempre que Natacha mudava de tom e me vinha com queixas de Aliocha ou à procura de que eu lhe resolvesse alguma pequena dúvida, ou a contar-me algum segredo, desejosa de ser compreendida apenas por meias palavras, lembro-me de que nessas ocasiões ficava sempre a olhar-me, entremostrando os dentes, e parecia pedir-me que a todo custo lhe dissesse qualquer coisa, contanto que ficasse mais contente. Mas lembro-me também de que, nesses casos, eu adoptava sempre um tom um pouco severo e cortante, à guisa de reprimenda, o que fazia de um modo completamente inconsciente e «dava sempre resultado». A minha seriedade e gravidade pareciam de facto mais autoritárias, porque às vezes sentimos a necessidade irresistível de que alguém nos ralhe. Pelo menos Natacha ficava algumas vezes perfeitamente reconfortada.

— Não, Vânia — continuou, apoiando uma das suas mãos no meu ombro e apertando a minha com a outra —, parece-me que ele está pouco entusiasmado... Já procede comigo como «mari...» (’), sabes? Como se fosse casado já há dez anos, embora como um marido que ainda gosta da mulher. Não achas muito cedo para isso? Ri-se, anda de um lado para o outro, como se tudo isso me fosse indiferente, como se já estivesse um pouco aborrecido, e não como antes... Está sempre com pressa de ir para junto de Catarina Fiodorovna... Falo-lhe e ele não me ouve ou começa a falar-me de outra coisa. Sabes? É esse desagradável costume da alta sociedade que nós os dois lhe tínhamos tirado. Enfim, conduz-se de um modo... como se tudo lhe fosse indiferente... Mas que digo eu! Como nós somos exigentes, Vânia, que déspotas tão caprichosos! Só agora é que o vejo! Não perdoamos a uma pessoa uma simples mudança de expressão e afinal só Deus sabe por que terá sido. E tu, meu

 

  1. C) Marido.

 

amigo, ainda me vens com censuras! Serei eu a única culpada? Somos nós próprios que provocamos os nossos aborrecimentos e depois ainda por cima nos queixamos... Muito obrigada, Vânia! Conseguiste acalmar-me! Ah, mas se ele viesse! Mas para quê? Até quando? Olha, ainda estou zangada pelo que se passou.

— Mas vocês zaragatearam? — perguntei-lhe, assombrado.

— Não, não é isso! Simplesmente, eu estava um pouco tristonha, e ele, de tão alegre que estava no princípio, pôs-se de repente murcho, e pareceu-me que se despediu de mim friamente. Mas eu vou mandar chamá-lo... Vem tu também, Vânia, esta noite.

— Sim, sem falta, a não ser que um certo assunto

— Que assunto vem a ser esse?

— Um caso que me preocupa. Mas penso que poderei vir.

 

Às sete em ponto estava eu em casa de Masloboiev. Ele vivia na Chestilavotchnaia, num prédio pequeno, do qual ocupava uma ala num andar muito sujo, composto de três quartos, satisfatoriamente mobilados. Notava-se aí até um certo desafogo e ao mesmo tempo uma excessiva falta de ordem doméstica. Veio abrir a porta uma rapariga muito jeitosa, de uns dezanove anos, vestida com simplicidade mas com gosto; muito amável e com uns olhos magníficos. Adivinhei imediatamente que se tratava da própria Alexandra Semionovna, à qual ele se referira já, propondo-se apresentar-ma. Perguntou-me quem era e, quando ouviu o meu apelido, disse-me que Masloboiev me esperava, embora estivesse a dormir no seu quarto, onde me conduziu. Masloboiev dormia num bonito e fofo divã, embrulhado no seu apote seboso e com uma almofada de couro já gasta debaixo da cabeça. Dormia num sono muito leve. Assim que entrei chamou logo pelo meu nome.

. Ah, és tu! Estava à tua espera. A sonhar que chegavas e me acordavas. Já é tempo. Vamos.

— Onde?

-— A casa dessa senhora.

— De que senhora? Para quê?

— A casa de madame Bubnova, para falar com ela... É uma beldade! — exclamou, voltando-se para Alexandra Sennonovna e até beijou as pontas dos dedos com a recordação de madame Bubnova.

bom, mas vê se tens cuidado! — exclamou Alexandra Semionovna, que considerou seu dever mostrar-se um pouquinho aborrecida.

— Ainda não se conhecem? Então vão conhecer-se! Alexandra Semionovna, apresento-te este general literato; só conseguimos vê-los gratuitamente uma vez por ano; o resto do tempo, só pagando.

— Bem, lá se saiu ele com uma das suas! O senhor, por favor, não ligue importância; está sempre a fazer troça de mim. Mas há generais dessa classe?

— São de um género especial. Mas tu, Excelência, não imagines que eu seja idiota; sou muito inteligente, mais do que pareço à primeira vista.

— Não lhe ligue importância. Há-de sempre envergonhar-me diante das pessoas decentes, este descarado! Ainda se ao menos me levasses ao teatro de vez em quando...

— Dedique-se mas é aos trabalhos domésticos, Alexandra Semionovna... Já se esqueceu daquilo de que deve gostar? Esqueceu-se das palavrinhas que lhe ensinei?

— com certeza que não... Isto é alguma tolice?

— Não, nada disso; é qualquer coisa de literário.

— Não quero tornar-me ridícula diante do visitante. Pode ser que signifique qualquer coisa de absurdo. Até a língua se me embrulha ao dizê-lo.

— Se é assim, é porque te esqueceste!

— Pois então não havia de esquecer! Os penates. Amai os vossos penates... foi o que tu me ensinaste. Pode ser que os penates não existam, mas por isso mesmo é que devemos amá-los. Tudo mentira!

— Em compensação, madame Bubnova...

— Vai para o diabo com a tua madame Bubnova!

E Alexandra Semionovna retirou-se muito indignada.

— Já é tempo. Vamos. Adeus, Alexandra Semionovna! Saímos.

— Olha, Vânia, primeiro que tudo tomemos esse trem. Isso mesmo! Ora bem. Há pouco, quando nos despedimos, fiquei a saber uma coisa, e soube-a não por suposições mas com toda a exactidão. Ainda fiquei uma hora em Vassilievski, uma hora. Esse barrigudo... é um grande canalha, um porco repugnante, de gostos baixos e abjectos. A essa Bubnova há já algum tempo que a conheço, por se ter metido em enredo desse género. Ainda há poucos dias tramava a perdição de uma rapariga honesta. Os vestidos de musselina que ela vestia a essa órfã, conforme me disseste há pouco, causam-me inquietação,’porque já ouvi qualquer coisa a esse respeito. Recentemente chegaram até mim certos rumores, por acaso, mas, segundo parece, com fundamento. Quantos anos tem essa rapariguita?

— A avaliar pela aparência, uns treze.

— Mas pelo seu desenvolvimento parece ter menos. Bem, ela procede desta maneira: conforme as necessidades dirá que tem onze ou quinze. E como a pobre rapariga é indefesa, sem amparo nem família...

— Que queres dizer?

— Que julgas tu? Madame Bubnova não é mulher para tomar conta de uma órfã só por compaixão. Se o pançudo vai lá, é assunto arrumado. Esta manhã já se encontrou com ela. A esse melquetrefe de Sizobriukov tinham-lhe prometido para hoje uma beldade, uma mulher casada, esposa de um funcionário. Os filhos de comerciantes que se entregam à borga parecem-se todos. Pedem sempre mulheres de funcionários.

Já a gramática latina o dizia, lembras-te?: «A distinção é preferível à perfeição.»’Mas, no fim de contas, também é possível que eu estivesse bêbado. É fresca, essa Bubnova, não te atrevas a meter-te em tais embrulhadas. Ela entende zombar da Polícia; mente. Mas tem medo de mim, sabe como é boa a minha memória... etc... Compreendes?

Eu estava muito excitado. Todas essas notícias me tinham perturbado. Receava chegar tarde e dava pressa ao cocheiro.

— Não te preocupes, tomámos todas as precauções — disse-me Masloboiev. — Mitrochka deve estar lá, SizobriuIcov dar-lhe-á dinheiro; mas o barrigudo é mau... por natureza. Tudo isso ficou combinado há pouco, mas a Bubnova encontra-se à minha mercê. Por isso não se atreverá...

Chegámos e apeámo-nos em frente do restaurante, mas o indivíduo chamado Mitrochka não se encontrava aí. Depois de dizermos ao cocheiro que esperasse à porta do restaurante, dirigimo-nos a casa de Bubnova. Mitrochka esperava-nos à porta. Pelas janelas filtrava-se a claridade e ouviam-se as risadas avinhadas de Sizobriukov.

— Já lá estão todos há um quarto de hora — disse-nos Mitrochka. — Não há tempo a perder.

— Mas como nos apresentaremos?

— Como visitas — respondeu-me Masloboiev. -— Eu e Mitrochka somos seus conhecidos. com certeza que devem ter a porta fechada, mas para nós, não.

Bateu de manso à porta e abriram imediatamente. Foi o porteiro que a abriu e trocou um olhar significativo com Mitrochka. Entrámos sem barulho. Ninguém deu por nós. O porteiro conduziu-nos pela escada e chamou. Perguntaram-lhe quem era e respondeu que ia só. — É preciso mentir! — Abriram e nós entrámos de roldão. O porteiro eclipsou-se.

— Ah! Quem são os senhores? — exclamou a Bubnova, bêbada e toda a encolher-se no minúsculo vestíbulo, com uma luz na mão. — Que vem a ser isto — exclamou Masloboiev. — Então tu, Ana Trifonovna, não conheces os teus estimados visitantes? Não te lembras de mim? Filipe Filipitch...

— Ah, Filipe Filipitch! É o senhor... meu caro amigo? É que, como o senhor... eu... Mas façam o favor de entrar para aqui...

E atrapalhava-se cada vez mais.

— Para onde? Para aqui? Para esse compartimento? Não. A senhora vai ser mais amável. Queremos beber champanhe, e deve haver aí raparigas jeitosas, não?

A dona da casa animou-se imediatamente.

— Para amigos destes arranjam-se sempre, até iria à China, se fosse preciso.

— Duas palavras, caríssima Ana Trifonovna. Onde está Sizobriukov?

— A...qui.

— É que eu preciso de falar com ele. Como se atreve esse malandro a vir para a pândega sem contar comigo?

— Garanto-te que ele não se esqueceu. Estava à espera de alguém, naturalmente era de si.

Masloboiev bateu uma pancadinha na porta e vimos de repente um quartinho pequeno, com duas janelas enfeitadas de gerânios, umas cadeiras de palha e um piano velhíssimo, tudo adequado àquele lugar. Mas ainda antes que tivéssemos tido tempo de entrar, quando estávamos ainda a conversar no corredor, Mitrochka desapareceu. Soube depois que não chegara a entrar, mas ficara à espera junto da porta. Pois teria de abri-la a alguém. À mulher desgrenhada e pintada que nessa manhã me olhara por cima do ombro de Bubnova e que vinha a ser a sua comadre.

Sizobriukov estava sentado num frágil e pequeno divã, forrado de vermelho, diante de uma mesa circular, coberta com um pano. Em cima da mesa viam-se duas garrafas de champanhe chilro e outra de um rum detestável; havia também bandejas com doces, pães de especiarias e nozes de três espécies. Do outro lado da mesa, em frente de Sizobriukov, sentava-se uma fêmea repelente, quarentona e picada das bexigas, vestia de tafetá preto, com pulseiras e berloques de metal - Era a esposa de um oficial do estado-maior, mas, evidentemente, tratava-se de uma falsificação. Sizobriukov estava embriado e muito contente. O barrigudo, seu compincha, não estava ali.

.— É assim que se procede, não? — vociferou Masloboiev a plenos pulmões. — Dussot, não me convidas também?

— Que prazer, Filipe Filipitch! — resmungou Sizobriukov levantando-se para vir ao nosso encontro com um ar satisfeito.

— Bebes?

— Sim, desculpa.

— Deixa-te de desculpas e convida os amigos! Viemos precisamente para nos embebedarmos em tua companhia. Olha, além disso trago-te outro convidado, um amigo. — E Masloboiev apontou para mim.

— Muito prazer, muito contente... Hi, hi!

— Mas é a isto que chamam champanhe? Parece sopa de couves azedas!

— Isso é ofensa.

— Por isso tu não ousas aparecer em casa de Dussot! E ainda convidas as pessoas!

— Estava a contar-me precisamente há um momento que esteve em Paris — disse a mulher do oficial. — E agora já se vê que é mentira. Não queria mais nada!

— Fedossia Titichna, não sejas ofensiva. Estive. Fui até lá.

— Sim, sim... Um campónio como tu ir a Paris!

— Mas fui. Tal qual. E tornei-me célebre, juntamente com Karp Vassilitch. Não conheces Karp, Vassilitch?

— Porque havia eu de conhecer o teu Karp Vassilitch?

— É que... Trata-se de um assunto de política. Eu estive lá com ele, em Paris, em casa de madame Joubert, onde partimos um tremo.

— Um quê?

— Um espelho. Um espelho assim, enorme, que ocupava toda a parede, até ao tecto. Karp Vassilitch já estava bêbado, de tal maneira que até falava em russo a madarne Joubert. Estava junto do espelho e começou a ameaçá-lo com o punho. A Joubert gritou-lhe à sua maneira: «É um espelho que vale setecentos francos (a meu ver, valia só a quarta parte). Cuidado, não o parta!» Ele pôs-se a rir e olhou para mim; eu estava sentado em frente dele, num canapé e com uma beldade ao meu lado, embora não tão interessante como esta, mas também tinha a sua graça, para dizer a verdade. E ele pôs-se a gritar: «Stepan Terentch, Stepan Terentch, vamos a meias?» E eu respondi-lhe: «Vamos!» Então ele descarregou um murro sobre o espelho... Paf! Ficou feito em estilhas. A Joubert deu um grito e increpou-o: «Que fizeste tu, bandido?» Mas ele foi e respondeu-lhe: «Madame Joubert, aqui tens o dinheiro e não te oponhas aos meus caprichos.» E entregou-lhe seiscentos e cinquenta francos. Ela ainda lhe abateu cinquenta.

Nesse momento um terrível e agudo alarido se ouviu por detrás de uma porta, dois ou três quartos para além daquele em que nos encontrávamos. Eu dei um pulo e deixei escapar também um grito. Tinha reconhecido a voz de Helena. Imediatamente a seguir a esse alarido de horror ouviram-se outros gritos, insultos, vozes, e por fim o barulho de várias bofetadas aplicadas em cheio, ressoantes, fortes. Aquilo, provavelmente, tinha pedido a intervenção de Mitrochka. De repente a porta do quarto abriu-se, e Helena, lívida, de olhos alterados, com um vestido de musselina branca todo cheio de rasgões, com o cabelo arranjado mas revolto como se tivesse andado numa briga, irrompeu pelo quarto. Eu estava de pé, em frente da porta, e ela correu direita para mim, agarrando-me as mãos. Todos saltaram dos seus lugares; todos ficaram comovidos. Quando ela entrou, ouviram-se gemidos e gritos. Atrás dela apareceu Mitrochka, à entrada da porta, arrastando pelos cabelos o odiento barrigudo, com o aspecto mais miserável que imaginar se possa. Largou-o junto da porta, no chão, e entrou no quarto.

— Aqui está ele! Aí o têm! — disse Mitrochka com um ar de quem cumpriu o seu dever.

— Escuta — exclamou Masloboiev aproximando-se tranquilamente e dando-me uma palmadinha no ombro. — Vai para o trem, leva a pequena contigo e volta para tua casa, nada mais tens a fazer aqui. Amanhã trataremos do resto.

Não precisei de ouvir mais. Peguei na mão de Helena e apressei-me a tirá-la daquele antro. Não sei como o caso acabou por lá. Não procuraram deter-nos; a dona da casa estava petrificada de admiração. Tudo aquilo acontecera tão inesperadamente que nem sequer pôde impedi-lo. O cocheiro estava à nossa espera e, vinte minutos depois, chegávamos a casa.

Helena estava meia morta. Desabotoei-lhe os botões do vestido, borrifei-a com água e deitei-a no divã. Começava já com febre e entrava em delírio. Contemplei o seu rostozinho pálido, os lábios descorados, os cabelos negros, todos revoltos para um lado, mas retorcidos em espiral e untados de brilhantina. Aquele penteado, aquelas fitinhas vermelhas que conservava ainda presas ao vestido... e acabei por compreender toda aquela história odiosa. Pobrezinha! Cada vez piorava mais. Não a deixei mais e resolvi não ir ver Natacha nessa noite. De vez em quando Helena erguia as longas pestanas recurvadas e olhava-me, olhava-me longa e atentamente, como se me reconhecesse. Já tarde, à uma da noite, adormeceu. Eu adormeci também junto dela, no chão.

 

Levantei-me muito cedo. Passei toda a noite a acordar de meia em meia hora e a aproximar-me da minha pobre hospedazinha para mirá-la de alto a baixo. Tinha febre e estava um pouco delirante. Mas de manhã acabara por adormecer profundamente. «bom sinal», pensei. Como ainda era cedo, decidi ir o mais depressa possível em busca de médico.

Conhecia um alemão, um velhinho solteiro e bondoso que vivia há muito em Vladimirski, na companhia de um criado. Fui à sua procura. Prometeu-me que viria às dez. Eram oito quando fui chamá-lo. Eu tinha um grande desejo de ir, de passagem, procurar Masloboiev, mas pensei que certamente estaria ainda a dormir, e que, além disso, Helena podia acordar de um momento para o outro e assustar-se quando se visse só no meu quarto. No estado em que estava podia esquecer como, quando e porque fora parar a minha casa.

Acordou no momento preciso em que eu entrava no quarto. Aproximei-me e perguntei-lhe com cuidado como é que se sentia. Não me respondeu, mas ficou a olhar-me durante muito tempo, de alto a baixo, com os seus olhos negros e expressivos. A avaliar pelo seu olhar, parecia-me que compreendia tudo e que de tudo se lembrava perfeitamente. Se não me respondera podia ser talvez por ser esse o seu costume. E nem nessa noite nem no terceiro dia da sua permanência em minha casa respondeu uma palavra às minhas perguntas, limitando-se a olhar-me nos olhos com o seu longo e pertinaz olhar, no qual, à perplexidade e à curiosidade selvagem, se misturava um certo orgulho. Agora notava também nos seus olhos seriedade e uma espécie de desconfiança. Ia para pôr-lhe a mão na testa, para ver se tinha febre, mas ela, suavemente e em silêncio, afastou a minha mão com a sua mãozinha e voltou a cara para a parede. Eu retirei-me para não a incomodar.

Eu tinha uma grande chaleira de cobre. Havia já muito tempo que a empregava, em vez do samovar, e servi-me dela para pôr a água a ferver. Também tinha lenha que o porteiro me trouxera, para cinco dias. Acendi o fogão e fui buscar água, que pus a ferver. Entretanto, coloquei também o serviço de chá sobre a mesa. Helena voltou-se para mim e olhava tudo aquilo com curiosidade. Perguntei-lhe se queria alguma coisa. Mas ela voltou de novo o rosto contra a parede e não me respondeu.

«Porque estará zangada comigo? — pensei. — Que rapariga tão estranha!»

Conforme disse, o meu velho doutor chegou às dez. Examinou a doente com toda a sua minúcia germânica e animou-me muito, dizendo-me que, embora se tratasse de um estado febril, não havia motivo para inquietação. Acrescentou que ela devia ter outra doença real, qualquer coisa como palpitações do coração, «mas que esse ponto requeria uma observação especial, e que, por agora, a doentinha estava fora de perigo». Receitou-lhe uma poção e não sei que pós, mais por hábito que por necessidade, e depois começou a perguntar-me por que motivo se encontrava ela ali, ao mesmo tempo, que, admirado, passava revista ao meu alojamento. Esse velhinho era um terrível falador.

Helena interessou-o. Tinha-lhe dado uma palmada quando ele quis tomar-lhe o pulso e negava-se a mostrar-lhe a língua. A suas perguntas não respondeu nem uma palavra, limitando-se todo o tempo a olhar com muita atenção a sua enorme cruz de S. Estanislau, que lhe pendia do pescoço.

— Deve doer-lhe muito a cabeça — observou o velhinho. — Mas que maneira de olhar! Que olhos!

Julguei desnecessário contar-lhe qualquer coisa a respeito de Helena e desculpei-me alegando que era uma história muito comprida.

— Avise-me, se for preciso — disse-me à saída. — Por agora não há perigo.

Decidi ficar todo aquele dia ao lado de Helena e, se fosse possível, não a deixar enquanto ela não se sentisse bem. Mas como sabia que Natacha e Ana Andreievna estariam ansiosamente à minha espera, resolvi avisar pelo menos Natacha, pelo correio interior, de que nesse dia não podia ir vê-la. A Ana Andreievna não era possível escrever. Ela mesma me pedira terminantemente que nunca lhe escrevesse, a partir daquela vez em que lhe participei por carta a doença de Natacha.

«O velho franziu o sobrolho quando viu a tua carta — disse-me. — Queria saber o que dizia, mas, no entanto, não ousara perguntar-mo. E ficou todo esse dia de mau humor. E a mim também, amigo, me puseste descontrolada com a tua cartinha. Apenas dez folhas! Tinha vontade de perguntar-te mais pormenores, e tu, nada!»

Por isso decidi escrever somente a Natacha, e quando fin à farmácia, com a receita, de caminho deitei a carta.

Entretanto, Helena voltou a adormecer. Durante o sono queixava-se levemente e estremecia. O médico acertara: doía-lhe muito a cabeça. De vez em quando dava um pequeno grito e acordava. Olhava-me com aborrecimento como se lhe fosse particularmente desagradável a minha atenção. Confesso que isto me custava muito.

Aí pela uma chegou Masloboiev. Vinha preocupado e distraído; ficou apenas um momento e parecia estar com muita pressa de ir a-qualquer sítio

— Bem, meu amigo, eu já calculava que não devias viver à grande — observou, depois de examinar todo o quarto. — Mas, francamente, não esperava vir encontrar-te nesta baiuca imunda. Porque isto é uma baiuca e não uma casa. Mas, enfim, não falemos nisto; o principal é que todas estas ocupações secundárias não fazem outra coisa senão distrair-te do teu trabalho. Ia a pensar nisso ontem, quando nos dirigíamos a casa da Bubnova. Mas olha, meu caro, atendendo ao meu temperamento e à minha posição social, sou uma dessas pessoas que não procedem bem, mas pregam sermões de moral aos outros. Agora escuta: pode ser que eu venha ver-te amanhã ou depois de amanhã; mas tu não tens outro remédio senão vir a minha casa no domingo de manhã. Espero que nessa altura já esteja completamente arrumado o caso desta pequena e falar-te-ei seriamente, já que contigo é preciso tomar as coisas a sério. Viver assim não é possível. Ontem limitei-me a fazer alusões, mas agora apresentar-te-ei raciocínios lógicos. E, finalmente, diz-me: mas que te aconteceu? Achas que é desonra pedir-me dinheiro emprestado?

— Não discutamos — interrompi-o. — Conta-me melhor como terminou aquilo, ontem.

— Da maneira mais feliz conseguimos atingir o nosso fim, compreendes? Agora não tenho tempo. Vim apenas por um momento, para avisar-te de que não tenho tempo para estar contigo. Mas diz-me, tencionas pô-la em algum sítio Ou mantê-la em tua casa? Porque é preciso pensar nisso e tomar uma decisão.

De facto, ainda não sei o que hei-de fazer e esperava-te precisamente para que me aconselhasses. Porque, vejamos, em que poderia eu fundamentar-me para a ter comigo?

— Quanto a isso... Na qualidade de criada...

— Peço-te que fales mais baixo. Embora esteja doente, conserva toda a lucidez e pareceu-me que estremeceu. Isso significa que ela se lembra do que aconteceu ontem.

Descrevi-lhe depois o seu carácter e tudo o que tinha observado nela. As minhas palavras interessaram Masloboiev. Acrescentei que talvez pudesse encontrar-lhe amparo numa casa que conhecia e contei-lhe por alto o caso dos meus velhos. Verifiquei com grande espanto que ele conhecia já qualquer coisa da história de Natacha, e às perguntas que lhe fiz para saber como é que se informara respondeu-me:

— Já há muito tempo ouvi qualquer coisa referente a um certo assunto. Já te disse que conheço o príncipe Valkovski. É muito bem pensado isso que disseste de enviá-la para casa desses velhotes. De contrário seria um estorvo para ti. Mas ouve ainda uma coisa. Serão necessários documentos. Mas não te preocupes, isso fica por minha conta... Adeus! Vem visitar-me muitas vezes. Que faz ela, agora? Dorme?

— Parece que sim — respondi-lhe.

Mas assim que ele saiu, Helena chamou-me imediatamente.

— Quem é? — perguntou-me. A sua voz tremia, mas olhava-me de alto a baixo com altivez. Não consigo exprimir-me de outro modo.

Disse-lhe que se chamava Masloboiev e acrescentei que fora graças a ele que conseguira arrancá-la da casa da Bubnova e que a Bubnova tinha muito medo dele. De súbito, as suas faces afoguearam-se, como o céu que reflecte um incêndio, provavelmente devido às reminiscências da noite anterior.

— E ela não poderá vir até aqui? — perguntou-me Helena, olhando-me com curiosidade.

Apressei-me a tranquilizá-la. Ela ficou calada e segurou-me a mão com os seus deditos febris, mas largou-ma imediatamente, como se se tivesse recordado de qualquer coisa. «Não é possível que, no fundo, sinta por mim uma tal aversão — disse eu para comigo. — É que assim... A não ser que... a pobrezinha tenha sofrido tantas amarguras que já não possa ter fé em ninguém neste mundo.»

À hora marcada fui à farmácia buscar o remédio, e ao mesmo tempo a uma casa de pasto conhecida, onde costumava comer e onde me fiavam. Dessa vez, quando saí de casa levei comigo uma tigela e pedi na casa de pasto uma porção de caldo de galinha para Helena. Mas ela não queria comer e tive de deixar o caldo ao lume, no fogão.

Depois de lhe dar o remédio, pus-me a trabalhar. Supunha que estaria adormecida, mas ao dirigir involuntariamente a vista para ela, reparei que se soerguera e olhava com muita atenção para me ver escrever. Fingi que não percebia.

Até que finalmente acabou por adormecer, com grande satisfação da minha parte, sem delírios e sem gemidos. Comecei então a pensar que Natacha, que ignorava tudo aquilo, podia aborrecer-se comigo por não ir vê-la, tanto mais que já tinha motivos de sobra para isso, por eu a ter abandonado precisamente quando talvez precisasse mais de mim. Ela podia também ter algumas preocupações, alguma incumbência para mim, e eu, parecia de propósito, esquecia-a.

Quanto a Ana Andreievna, também não sabia como havia de apresentar-me diante dela no dia seguinte. Pensava e tornava a pensar, e de repente decidi ir aos dois lados. A minha ausência não podia ser superior a duas horas. Helena dormia e não me sentiria sair. Levantei-me, pus o sobretudo, peguei no gorro, e dispunha-me a sair quando, de repente, Helena me chamou. Fiquei espantado. Seria fingido aquele sono?

Devo dizer que, embora parecesse que Helena não queria falar comigo, aqueles chamamentos tão frequentes, aquele afã de dirigir-se a mim para todas as suas dúvidas, vinham demonstrar o contrário, e confesso que me eram muito agradáveis.

— A quem pensa entregar-me? — perguntou, quando me aproximei.

De uma maneira geral fazia as suas perguntas de repente, de uma maneira totalmente inesperada. Também dessa vez não compreendi logo o que ela queria dizer.

— Há pouco, quando falava com o seu amigo, o senhor disse que queria levar-me não sei para que casa. Mas eu não quero ir para lado nenhum.

Debrucei-me sobre ela: estava de novo a arder, repetia-se a crise febril. Procurei distraí-la e afirmei-lhe que se ela preferia continuar comigo, não a confiaria a ninguém. Enquanto falava, tirei o sobretudo e o gorro. Não me decidia a deixá-la só naquele estado.

— Vá! — disse ela percebendo que eu queria ficar. — Quero dormir, não tarda que pegue outra vez no sono...

— Mas tu não podes ficar sozinha? — disse-lhe, perplexo. — Se bem que dentro de duas horas já cá estarei outra vez...

— Está bem, vá. Senão vou ficar o ano todo doente para que não saia mais de casa — e procurou sorrir e olhou-me de um modo estranho, como se lutasse com algum bom sentimento que se insinuava no seu coração. Pobrezinha! O seu bom e terno coraçãozinho mostrava-se agora, apesar do seu ódio pelos homens e desespero aparentes.

A primeira coisa que fiz foi correr a casa de Ana Andreievna, que me esperava com uma impaciência febril e me acolheu com recriminações; estava na maior inquietação; Nikolai Serguieitch saíra logo depois do jantar... Não sabia para onde. Eu calculava que a velha não tinha tido paciência e lhe contara tudo, segundo o seu costume, sob a forma de alusões. Aliás, foi o que ela me confessou, dizendo que não pudera conter-se para não lhe dar aquela grande alegria, mas que Nikolai Serguieitch, segundo as suas próprias palavras, se mostrava mais sombrio que uma nuvem e não dissera nada. «Aferrou-se ao seu silêncio e não respondeu às minhas perguntas» e depois, de repente, saiu após a refeição. Quando me contava isto Ana Andreievna quase tremia de medo. Depois pediu-me que lhe fizesse companhia até que Nikolai Serguieitch estivesse de volta. Eu desculpei-me e disse-lhe, quase abruptamente, que no dia seguinte não poderia ir vê-la e que viera só de fugida para preveni-la. Quase nos zangámos. Ela pôs-se a chorar e dirigiu-me censuras duras e amargas. Mas quando já me encaminhava para a porta, correu para mim, atirou-me os braços ao pescoço e pediu-me que não ficasse zangado com ela, que era «uma órfã», e não ficasse ofendido com as suas palavras.

A Natacha, contrariamente ao que esperava, fui encontrá-la também sozinha e pareceu-me que não estava nesse dia tão contente comigo como no anterior e, em geral, como das outras vezes. Parecia que qualquer coisa a desgostava e coibia. A minha pergunta: «Aliocha veio hoje?», respondeu-me:

— Claro que veio, mas por pouco tempo. Prometeu-me vir também esta noite — acrescentou, como se estivesse duvidosa.

— E ontem veio?

— Não... não. Prenderam-no — acrescentou depressa. — E então, Vânia, como vão as tuas coisas?

Compreendi que, por qualquer motivo, queria mudar de assunto e encaminhar o nosso diálogo noutra direcção. Olhei-a com atenção; estava visivelmente nervosa. Além disso, quando reparou que eu a observava com toda a atenção, dirigiu-me de repente um olhar rápido e mal-humorado, tão violento que parecia querer trespassar-me com ele. «Sofre de novo — pensei. — Simplesmente não mo quer dizer.»

Quando respondi à sua pergunta, a respeito da minha vida, contei-lhe a história de Helena, com todas as minúcias. Mostrou grande interesse e ficou muito admirada com a minha narrativa.

— Meu Deus! E tiveste coragem para deixá-la sozinha, assim doente? — exclamou.

Expliquei-lhe que de boa vontade teria ficado em casa todo o dia, mas receava que ela, Natacha, se zangasse e tivesse necessidade de mim.

Ter necessidade de ti — murmurou para si, reflectindo. — Lá ter necessidade de ti, tenho, Vânia; mas o melhor é deixar tudo para outra ocasião. Estiveste em casa dos meus pais?

E contei-lhe a minha visita.

— Bem. Sabe Deus como o meu pai receberá todas estas notícias. Apesar de que, no fim de contas, que importa...

— Como as receberá? — perguntei-lhe. — Uma mudança destas!

— Tão grande... Onde foi ele agora? Vocês pensavam que ele tinha vindo ver-me. Ouve, Vânia, se puderes vem visitar-me amanhã. Talvez tenha alguma coisa para dizer-te... Só contigo eu tranquilizo a minha consciência. Mas agora volta para casa, vai para junto da tua protegida. Não haverá já duas horas que saíste?

— Sim. Adeus, Natacha. Bem; e como se portou hoje Aliocha contigo?

— Quanto a Aliocha não tenho nada a dizer... Admira-me até a tua curiosidade.

— Até à vista minha amiga.

— Adeus.

Estendeu-me a mão com certa indolência e evitou o meu último olhar de despedida. Saí de sua casa um pouco admirado. Pensava que devia estar preocupada com qualquer coisa. «Alguma coisa de grave. Amanhã contar-me-á tudo», pensei.

Voltei a casa triste e, assim que entrei, senti uma terrível comoção. Já tinha escurecido. Helena estava sentada no divã, com a cabeça caída sobre o peito, como num profundo êxtase. Nem sequer me dirigiu um olhar e parecia completamente ausente.

Aproximei-me. Murmurou qualquer coisa para si mesma. «Estará a delirar?», pensei.

— Helena, minha pequena, que tens tu? — perguntei-lhe sentando-me a seu lado e pegando-lhe numa das mãos.

— Quero ir-me embora... Prefiro ficar com ela murmurou sem levantar a cabeça.

— Para onde? com quem? — perguntei-lhe admirado

— com ela, com a Bubnova. Não faz outra coisa senão dizer-me que eu lhe devo muito dinheiro, que pagou o enterro da minha mãezinha à sua custa... Não quero que ela insulte a minha mãe... Quero trabalhar para ela e pagar-lhe tudo... Só depois disso é que sairei de sua casa. Agora quero voltar outra vez para a sua companhia.

— Acalma-te, Helena; não é possível voltares para lá

disse-lhe eu. —— Essa mulher tortura-te e procura a tua perdição...

— Pois que me perca, que me mate — respondeu Helena com veemência. — Não serei eu a primeira; a outras, melhores do que eu, também ela martiriza. Já mo disse uma mendiga da rua. Sou pobre e pobre quero continuar. Toda a minha vida hei-de ser pobre; foi o que a minha mãe me ordenou, ao morrer. Trabalharei... Não quero andar com este vestido...

— Amanhã compro-te outro. E também hei-de trazer-te livros. Viverás comigo. Não irás para casa de ninguém, desde que não queiras; está sossegada...

— Trabalharei.

— Muito bem, muito bem. Acalma-te, deita-te e dorme.

Mas a pobre pequena rompeu em pranto. Pouco a pouco, as suas lágrimas transformaram-se em soluços. Eu não sabia o que havia de fazer-lhe; dei-lhe água, humedeci-lhe as fontes e a testa. Até que por fim se deixou cair sobre o divã, completamente esgotada e de novo a assaltou a febre. Tapei-a com o que encontrei à mão e ela adormeceu, mas com um sono desassossegado, interrompido de tremuras e de bruscos despertares. Eu, embora tivesse andado pouco nesse dia, estava terrivelmente cansado e decidi deitar-me logo. Pensamentos inquietos e torturantes turbilhonavam na minha cabeça. Tinha o pressentimento de que aquela pequenita ia causar-me muitos sobressaltos. Mas o que mais me preocupava era Natacha e os seus problemas. De uma maneira geral, agora me lembro, raras vezes me vi numa disposição de espírito mais aborrecida do que nessa noite infeliz, quando me deitei.

 

Acordei muito tarde, às dez. A cabeça doía-me e andava-me à roda. Olhei para a cama de Helena; estava vazia.

Nesse mesmo instante, vindos do lado direito do meu quarto, chegaram aos meus ouvidos certos ruídos, como se alguém andasse a varrer o chão. Fui ver. Helena tinha a vassoura na mão e, segurando com a outra o vestido bonito, que ainda não tirara desde o dia anterior, varria a casa. Um monte de lenha, que se destinava ao fogão, estava colocado a um canto; sobre a mesa, o pano de cobri-la e o serviço de chá, limpos; numa palavra, Helena fazia as vezes de dona de casa.

— Olha, Helena — gritei-lhe —, quem te mandou varrer a casa? Eu não quero que faças isso, tu estás doente. Eu não te trouxe para minha casa para trabalhares...

— Mas então quem há-de varrer o chão? — respondeu ela endireitando-se e olhando-me de frente. — Eu já não estou doente.

— Mas eu não te trouxe para aqui a fim de trabalhares, Helena. Naturalmente tens medo que eu vá ralhar-te, como a Bubnova, e deitar-te em rosto que vives à minha custa? onde foste buscar essa horrível vassoura? Aqui não havia nenhuma — acrescentei, olhando-a assombrado.

— É a minha. Fui eu que a trouxe. Eu varria aqui o chão do quarto do avô com ela. E ficou aí esquecida, atrás do fogão, até agora.

Voltei para o meu quarto, pensativo. Podia ser que me enganasse, mas parecia-me que lhe custava aceitar a minha hospitalidade e queria mostrar-me a todo o custo que não era em vão que comia o meu pão. Mas, sendo assim, «que carácter tão melindroso!», pensei. Passados dois minutos ela entrou e sentou-se no seu lugar do dia anterior, no divã’ e ficou a olhar-me com curiosidade. Entretanto, pus o samovar a ferver, deitei o chá, enchi uma chávena para ela e dei-lha com um pedaço de pão branco. Ela aceitou-o em silêncio e sem protestos. Durante aquelas vinte e quatro horas quase não comera nada.

— E foste pôr-te a varrer com o vestido novo! — disse-lhe eu reparando numa grande mancha na orla do seu vestido.

Ela olhou para si própria de alto a baixo e, de repente, com grande espanto meu, deixou a chávena, apanhou a orla da saia de musselina, aparentemente com muita calma, rasgou-a de alto a baixo de uma só vez. Em seguida ergueu para mim, em silêncio, os seus olhos penetrantes e brilhantes. Estava pálida.

— Que fizeste, Helena? — exclamei, convencido de que se tratava de uma louca.

— É um vestido mau — disse ela, quase sufocada de comoção. — Porque disse que era bonito? Eu não o quero pôr — exclamou de repente, saltando do seu lugar. — Hei-de rasgá-lo todo. Eu não lhe pedi que mo vestisse. Foi ela quem me obrigou a pô-lo, à força. Já rompi outro e hei-de romper este também, hei-de rompê-lo, hei-de rompê-lo, hei-de rompê-lo!

E, numa fúria, começou a rasgar o vestido. Num momento deixou-o quase feito em estiras. Quando acabou estava tão pálida que mal podia ter-se de pé. Eu contemplei, atónito, aquele acto de desespero. Ela lançou-me um olhar de desafio, como se eu tivesse procedido mal com ela. Mas eu já sabia o que havia de fazer.

Sem hesitar, decidi comprar-lhe ainda nessa mesma manhã outro vestido. com aquela criatura selvagem, exasperada, era preciso empregar a bondade. Parecia que nunca tinha encontrado pessoas na sua vida. Se já uma vez, sem se lembrar do castigo cruel que a esperava, havia estragado o primeiro vestido, com que desespero não devia olhar agora aquele que lhe recordava um recente e terrível momento!

Em Tolkutchi (1) podia comprar-se barato um vestidinho bonito e bonzinho. O mal era que, naquele momento, eu quase não tinha dinheiro que chegasse. Mas já desde a véspera, quando me deitei, eu resolvera dirigir-me neste dia a um sítio onde esperava encontrá-lo e assim que o tivesse em meu poder dirigir-me a Tolkutchi. Peguei no chapéu. Helena seguiu-me atentamente com os olhos, como se esperasse qualquer coisa.

— Vai tornar a fechar-me? — perguntou, ao ver que eu pegava na chave para fechar o quarto, quando saísse, como tinha feito no dia anterior e no outro.

— Minha amiga — disse-lhe eu aproximando-me dela. — Não te zangues por causa disto. Eu fecho porque podia entrar alguém. Tu estás doente e ficavas assustada. E sabe Deus quem poderia vir, talvez até a Bubnova, para te levar...

Disse-lhe isto intencionalmente. Mas fechava-a porque não tinha confiança nela. Parecia-me que ela ia escapar-se-me de um momento para o outro. Por isso resolvi proceder cautelosamente. Helena ficou calada e eu fechei-a mais uma vez.

Sabia de um editor que havia três anos já publicava uma obra em muitos tomos. Costumava encontrar trabalho em sua casa quando precisava de ganhar rapidamente algum dinheiro. Pagava pontualmente. Fui ter com ele e, consegui vinte e cinco rublos adiantados, com a obrigação de levar-lhe, daí a uma semana, um artigo de compilação. Mas esperava subtrair algum tempo para a minha novela. Era isto o que eu fazia quando me encontrava em apuros.

Depois de receber .o dinheiro, dirigi-me a Tolkutchi. Aí encontrei rapidamente uma velha penhorista, minha conhecida, que vendia toda a espécie de fatos. Descrevi-lhe a

 

(’) O adelo de Petersburgo

 

figura de Helena e ela trouxe-me num instante um vestidinho claro, de algodão, muito apropriado por ser facilmente lavável. Além disso, comprei-lhe também um lencinho para o pescoço. Já depois de ter pago, pensei que Helena precisava também de algum casaco, uma capa, qualquer coisa do género. O tempo estava frio e ela mal tinha com que cobrir-se. Mas adiei essa compra para outra vez. Helena era tão susceptível, tão orgulhosa, tão soberba... Só Deus sabe como acolheu o vestidito, e isso apesar de eu ter escolhido o mais simples e barato, o mais modesto que se podia imaginar. Também lhe comprei dois pares de meias: um de algodão e outro de lã. Ofereci-lhos com o pretexto de que ela estava doente e que no nosso quarto fazia frio. Também precisava de roupa interior. Mas deixei isto para quando a conhecesse melhor. Em vez disso, comprei umas cortinas para a sua cama, velhas... coisa indispensável e com as quais Helena iria ficar muito satisfeita.

com tudo isso só voltei para casa cerca do meio-dia. A minha porta abria-se quase sem fazer ruído, de maneira que Helena, no primeiro momento, não me ouviu chegar. Fui encontrá-la de pé, junto da mesa, folheando os meus livros e papéis. Quando me sentiu deixou imediatamente o livro que lia e retirou-se da mesa, muito vermelha. Olhei para o livro; era o meu primeiro romance, um número solto de uma revista, em cuja capa tinham posto o meu nome.

— Enquanto esteve fora houve alguém que bateu — disse ela com um ar implicador. — Perguntou: «Porque diabo a fechou à chave?»

— Talvez fosse o médico — respondi-lhe. — Não falaste com ele, Helena?

— Não.

Então, desatei o embrulho e tirei o vestido que comprara.

— Vê, Helena — disse, aproximando-me dela —, não podes continuar com esses farrapos. Por isso comprei-te este vestido para uso, muito barato, para que não precises de ter muitos cuidados com ele; custou-me apenas um rublo e vinte copeques. Quero que o uses com muita saúde.

Deixei-lhe o vestido ali próximo. Ela estremeceu e, durante um momento, olhou-me com os olhos muito abertos.

Estava muito admirada e ao mesmo tempo parecia-me perceber nela uma vergonha enorme. Mas qualquer coisa de suave e terno se espalhava pelos seus olhos. Quando vi que não dizia nada, aproximei-me da mesa. Não havia dúvida de que o meu procedimento a surpreendera. Mas fez um esforço para dominar-se e sentou-se, fixando a vista no chão.

Doía-me a cabeça e estava cada vez mais incomodado. O ar fresco não conseguira fazer-me bem. No entanto, era preciso ir a casa de Natacha. A minha inquietação por ela não diminuíra desde o dia anterior, mas, pelo contrário, cada vez aumentava mais. De repente, pareceu-me que Helena me chamava. Voltei-me.

— Quando sair, não me feche — disse ela olhando para outro lado e esticando com o dedo a tela do divã, como se estivesse absorvida nessa ocupação. — Eu não penso fugir.

— Muito bem, Helena, está combinado. Mas se vier alguém estranho? Sabe-se lá quem pode vir!

— Deixe-me a chave que eu fecho-me por dentro e se alguém chamar, respondo: «Não está ninguém» — e olhou-me maliciosamente, como se quisesse dizer-me: «Já vê como é simples.!»

— Quem é que lava a sua roupa? — perguntou-me, de repente, antes de eu ter tido tempo de responder ao que dissera antes.

— Uma mulher que vive neste prédio.

— Eu também sei lavar. E de onde é que trouxe o jantar, ontem?

— Da casa de pasto.

— Eu também sei cozinhar. Eu faço-lhe a comida

— Basta, Helena. Como podes tu saber cozinhar, Helena? Dizes isso por dizer...

Helena calou-se e baixou a cabeça. Era evidente que a minha observação não lhe agradara. Passaram pelo menos dez minutos e nenhum de nós falou mais.

— Sopa — disse de repente, sem levantar a cabeça.

— Sopa, o quê? Que é isso de sopa?... perguntei-lhe assombrado.

— Sei fazer sopa. Era eu que a fazia para a minha mãezinha, quando ela estava doente. E também ia às compras.

— Já podes ver, Helena, já podes ver como és orgulhosa

— disse-lhe aproximando-me dela e sentando-me a seu lado no divã. — Eu procedo contigo com toda a sinceridade. Tu agora estás sozinha, és infeliz. Eu quero ajudar-te. Como tu me ajudarias também se me visses mal. Mas tu não queres conformar-te com isso e custa-te a aceitar de mim o mais pequeno favor. Queres imediatamente pagá-lo, trabalhar para recompensá-lo, como se estivesses com a Bubnova e eu te ralhasse. Se é assim, isso é uma vergonha, Helena.

Não respondeu e os lábios tremeram-lhe. Parecia que queria dizer qualquer coisa. Mas dominou-se e ficou calada. Eu levantei-me para ir ver Natacha. Dessa vez’deixei a chave a Helena e pedi-lhe que, se alguém tocasse, acudisse à porta e perguntasse: «Quem é?» Estava convencido de que algo de muito grave acontecera a Natacha e que havia algum tempo me escondia qualquer coisa, o que nunca fizera antes. Mas, de toda a maneira, decidi ir vê-la, pois, de contrário, podia magoá-la com o meu abandono.

Assim aconteceu. Natacha recebeu-me com um ar zangado e um olhar severo. Eu devia ter-me retirado imediatamente, mas as minhas pernas negavam-se.

— Venho só por um minuto, Natacha — comecei —, para pedir-te um conselho: que devo fazer da minha pupila?

— e apressei-me a contar-lhe tudo quanto se referia a Helena. Natacha escutou-me em silêncio.

— Não sei que aconselhar-te, Vânia — respondeu. — Pelos vistos trata-se de uma criatura muito estranha. Talvez esteja ressentida, assustada. Toma conta dela, pelo menos até se pôr boa. Queres levá-la aos nossos?

— Ela diz que não quer separar-se de mim. E, aliás, sabe Deus como eles a acolheriam. Não sei o que hei-de fazer. Bem, e tu, minha amiga, como estás? Estiveste doente, ontem? — perguntei-lhe timidamente.

— Sim... e hoje também me dói um pouco a cabeça — respondeu-me, distraída.

— Não viste ninguém dos nossos?

— Não. vou lá amanhã. Amanhã é sábado...

— Que queres dizer com isso?

-— Que à noite o príncipe deve vir...

— Está bem. Não me tinha esquecido.

— Não, é que eu...

Pôs-se diante de mim e durante bastante tempo olhou-me nos olhos com insistência. Nos seus notava-se uma certa obstinação, uma certa decisão; algo de febril, de fogoso.

— Sabes uma coisa, Vânia — disse. — Seria bom que não viesses ver-me; metes-te demasiado na minha vida...

Saltei da cadeira e fiquei a olhá-la com um espanto inexprimível.

— Natacha, minha amiga! Que te aconteceu? Que tens tu? — exclamei inquieto.

— Não me aconteceu nada! Amanhã saberás tudo, tudo, mas agora quero estar sozinha. Olha, Vânia, vai-te embora já. Custa-me tanto, tanto, olhar para ti!

— Mas diz-me ao menos...

— Tudo, amanhã saberás tudo! Oh, meu Deus, mas não te irás embora?

Saí. Ia tão transtornado que mal me lembrava de mim mesmo. Mavra alcançou-me no patamar.

— Está zangada? — perguntou-me. — Eu já tenho medo de me aproximar dela.

— Mas que se passa?

— Ora, o que há-de ser? Que o «nosso» há já três dias que não se lhe vê nem a sombra nesta casa.

— Há três dias? — perguntei-lhe eu estupefacto. — Mas se ela própria me disse ontem que ele tinha vindo de manhã e que depois voltaria à noite...

— Qual noite! Nem sequer esteve de manhã! Já te disse que não aparece nesta casa há três dias. Foi ela quem te disse que ele tinha estado ontem de manhã?

— Ela mesma.

— bom — disse Mavra pensativa —, uma vez que ela não quer confessar-te que ele não veio, isso significa que o facto a magoa. Um grande estróina é que ele é!

— A respeito de quem dizes isso? — exclamei.

— A respeito desse, que não sei o que anda a fazer com ela — continuou Mavra abrindo as mãos. — Ontem fez-me ir duas vezes procurá-lo, mas depois mandou-me voltar para trás outras duas vezes. Hoje nem sequer se digna dirigir-me a palavra. Porque não vais tu ter com ele? Eu não me atrevo a deixá-la.

Saí, fora de mim, pelas escadas abaixo.

— Voltas esta noite? — gritou Mavra lá de cima.

— Depois verei — respondi-lhe sem parar. — Pode ser que venha e te pergunte como vão as coisas, se conseguir aguentar-me...

Parecia-me, de facto, que me tinham dado uma pancada em pleno peito.

Capítulo décimo

Encaminhei-me directamente para casa de Aliocha. Vivia com o pai na Malaia Morskaia (*). Apesar de viver só, o príncipe ocupava todo um grande andar. Aliocha ocupava aí dois magníficos quartos. Tinha-o visitado poucas vezes, outra e esta, se bem me lembro. Em compensação ele vinha visitar-me com mais frequência, sobretudo ao princípio, nos começos das suas relações com Natacha.

Não estava em casa. Dirigi-me directamente aos seus aposentos e deixei-lhe este bilhete:

«Aliocha. Segundo parece, perdeu a cabeça. Terça-feira passada, à noite, quando o seu pai foi pedir a Natacha que o

 

(*) Um dos bairros mais bonitos de Petersburgo.

 

fizesse feliz, a si, aceitando ser sua esposa, mostrou-se muito contente com esse pedido, do que fui testemunha; há-de concordar que a’ sua maneira de proceder para com a sua futura esposa é altamente indigna e leviana. Sei muito bem que não tenho direito algum de pregar-lhe moral e prescindo de fazê-lo.

  1. S. — Ela não sabe nada desta carta e também não me disse nada de si.

Selei a carta e deixei-a em cima da mesa. Às minhas perguntas, o criado respondeu-me que Alexiei Petrovitch mal parava em casa e que só devia voltar já de madrugada.

Não sei como cheguei a casa. Parecia que a cabeça me queria voar. As pernas doíam-me e fraquejavam-me. A minha porta estava aberta. Lá dentro, à minha espera, estava Nikolai Serguieitch Ikmeniev. Estava sentado à mesa, calado; contemplava Helena com espanto, a qual o olhava também com grande assombro, embora conservasse um obstinado mutismo. «É claro — disse-me ele —, não há dúvida que há-de parecer-lhe estranha.»

— Olha, meu amigo; há já uma hora que estou à tua espera e confesso que nunca esperei encontrar-te assim — continuou, passando revista ao quarto e apontando-me Helena com um piscar de olhos imperceptível. Parecia estupefacto. Mas observando-o atentamente percebi no seu olhar pesar e melancolia. Tinha o rosto mai,s pálido que de costume.

— Senta-te aqui, senta-te — continuou com um ar preocupado e abstraído. — Vim a correr, à tua procura; há qualquer coisa de grave. Mas diz-me, como estás? Tens mau aspecto.

— Não ando bem de saúde. Desde esta manhã que sinto tonturas.

— Pois é preciso ter cuidado com isso. Estás constipado?

— Não. É um ataque de nervos. E uma coisa que costuma acontecer-me. E o senhor, está bom?

— Qual bom! Até me parece que sinto febre. Mas tenho um assunto para tratar contigo. Senta-te.

Aproximei uma cadeira e sentei-me em frente dele junto da mesa. O velho encostou-se a mim e começou em voz baixa:

— Ouve, não olhes para ela e finge que falamos de coisas sem importância. Que hóspeda é esta que trouxeste para tua casa?

— Depois lhe explicarei tudo, Nikolai Serguieitch. É uma pobre pequenita, órfã de pai e mãe, neta daquele Smith que vivia aqui e morreu de repente na pastelaria.

— Ah, então ele também tinha uma netinha! Mas, na verdade, meu amigo, que estranha ela é! Que maneira de olhar, que maneira de olhar! Digo-te a sério, se demorasses mais cinco minutos já não esperava por ti. Quis por força abrir-me a porta e, até agora, nem uma palavra; é simplesmente um bicho-do-mato, nem parece uma pessoa. Mas como veio ela parar aqui? Ah, já percebo! Naturalmente veio procurar o avô, sem saber que ele tinha morrido.

— Foi, foi. Tem sido muito infeliz. O velho, ao morrer, lembrou-se dela.

— Hum! Tal avô, tal neta. Depois me contarás tudo. Talvez seja possível ajudá-la em qualquer coisa, seja como for, visto que é tão infeliz... Mas, por agora, meu amigo, não se poderia dizer-lhe que se retirasse, pois preciso falar-te de um assunto sério...

— Mas dizer-lhe que se vá embora é impossível, porque ela vive aqui!

E expliquei ao velho em duas palavras o que pude, acrescentando que podíamos falar diante dela, pois era uma criança.

— Sim, isso é verdade, é uma criança. Mas tu, meu amigo, deixas-me apalermado. Então ela vive contigo?

E o velho tornou a olhar para ela, atónito. Helena, compreendendo que falavam dela, continuava silenciosa, de cabeça baixa e beliscando o divã com os dedos. Pusera já o vestido novo, que chegara mesmo no momento oportuno.

penteara-se com mais esmero que de costume, talvez em honra do vestidinho novo. De uma maneira geral, sem contar com a expressão arisca do seu olhar, era uma menina muito engraçada.

— Em resumo, eis aqui do que se trata, meu amigo — principiou outra vez o velho. — Trata-se de qualquer coisa de sério, de importante...

Estava sentado com a cabeça baixa, com um ar grave e pensativo e, apesar da sua precipitação e daquele «em resumo», não soltava uma palavra. «Que será?», pensava eu.

— Olha, Vânia, vim para te fazer um pedido muito importante. Mas antes... segundo eu mesmo compreendo, é preciso explicar-te algumas circunstâncias... Circunstâncias sumamente delicadas...

Tossiu e olhou-me com timidez; olhou-me e pôs-se encarnado; pôs-se encarnado e aborreceu-se consigo próprio pela sua falta de aprumo; zangou-se e decidiu-se:

— bom. E afinal para quê explicar-te? Tu mesmo compreenderás! Olha, desafiei o príncipe para um duelo e peço-te que te encarregues de arranjar as coisas e de seres meu padrinho.

Eu inclinei-me para trás, na cadeira, e olhei-o no cúmulo do assombro.

— Porque olhas? Não julgues que perdi o juízo.

— Mas dê-me licença, Nikolai Serguieitch! com que pretexto, para que fim? E, por último, como é possível isso?

— Pretexto! Fim! — exclamou o velho. — Está bonito!

— Bem, bem, já sei o que quer dizer; mas que lhe adiantará isso? Um duelo! Confesso-lhe que não percebo.

— Eu bem via que tu não me compreenderias. Mas ouve. O nosso processo acabou, isto é, acabará dentro de dias; faltam apenas umas formalidades sem importância, e eu perdi-o. Tenho de pagar-lhe dez mil rublos, assim diz a sentença. A Ikmenievka serve de penhor. De maneira que esse homem vil ficará com o meu dinheiro, enquanto eu, despojado da Ikmenievka, lhe pago e fico reduzido à miséria. Mas então que eu levante a cabeça:

«Pois bem, respeitável príncipe; há já dois anos que o senhor me ofende; escarnece do meu nome, da honra da minha família e eu não tenho tido outro remédio, até aqui senão suportar tudo isso. Então, eu não podia desafiá-lo. O senhor ter-me-ia dito: «És um espertalhão, queres matar-me para não me pagares o dinheiro, pois já te cheira a que serás condenado a pagares-me mais tarde ou mais cedo. Mas não, primeiro é preciso ver como vai acabar o processo e depois já poderás desafiar-me.» Pois agora, respeitabilíssimo príncipe, o processo está perdido, o senhor saiu triunfante, de maneira que não há inconveniente nenhum; por isso faça o favor de sair à liça.» É este o caso. Que te parece? Não terei eu, finalmente, direito de vingar-me de tudo, de tudo?

Os olhos brilhavam-lhe. Eu contemplei-o durante muito tempo em silêncio. Queria penetrar o seu pensamento íntimo.

— Oiça, Nikolai Serguieitch — respondi-lhe, por último, resolvido a dizer-lhe o. principal, sem o que não nos poderíamos entender. — Não poderia falar-me com toda a franqueza?

— Posso — respondeu com voz firme.

— Então fale, francamente. É apenas o sentimento de vingança que o impele a esse desafio ou não terá em vista outra finalidade?

— Vânia — respondeu-me —, tu sabes que eu não consinto a ninguém que me falem a respeito de certas coisas; mas por esta vez abro uma excepção contigo, porque tu, com uma lúcida inteligência, compreendeste imediatamente que é impossível evitar essa explicação. Sim, tenho outro fim: salvar a minha filha, que está a caminho da perdição, tirá-la desse caminho, no qual a espera agora o pior extremo.

— Mas como pode salvá-la com esse duelo? Aí é que está a questão.

— Desfazendo tudo o que eles tramam actualmente. Ouve. Não penses que fala em mim a ternura paterna ou alguma fraqueza do género. Tudo isso são balelas! O fundo do meu coração não o mostro eu a ninguém, e tu bem o sabes. A minha filha abandonou-me, fugiu de casa com um amante, e eu arranquei-a do meu coração, arranquei-a de uma vez para sempre, nessa mesma noite, compreendes? Embora me tivesses visto chorar por causa dela naquele dia do retrato, não vás concluir daí que estou disposto a perdoar-lhe. Também não lhe perdoei nesse dia. Chorava pela felicidade perdida, pelo sonho desvanecido e não por «ela» como é agora. Talvez eu chore muitas vezes, não me envergonho de confessá-lo, como também não me envergonho de reconhecer que amei a minha filha mais que tudo neste mundo. Tudo isto está aparentemente em contradição com a minha decisão actual. Podes objectar-me: «Se é assim, se é indiferente à sorte daquela que já não considera como sua filha, então para que se mete de permeio nos projectos dos outros?» Mas a isso responder-te-ei: «Em primeiro lugar, porque não quero que se ria de mim um velho velhaco e covarde e, além disso, porque me impele um sentimento do mais vulgar humanitarismo. Embora ela já não seja minha filha, é, no entanto, uma criatura fraca, desamparada, da qual abusaram e da qual hão-de abusar ainda mais até perdê-la definitivamente. Interceder directamente no assunto, não posso, mas posso, de uma maneira indirecta, por meio de um desafio. Se me matarem ou derramarem o meu sangue, como irá ela, passando por cima do meu corpo, e talvez do meu cadáver, casar-se com o filho do meu matador, como a filha daquele czar (lembras-te daquele livro que havia em nossa casa e em que aprendeste a ler) que passou por cima do cadáver de seu pai com o carro? Se o nosso príncipe aceitar o duelo, isso significa que já não quer o casamento. Numa palavra, eu não quero esse casamento e empregarei a força para impedi-lo. Compreendes-me, agora?

— Não. Se quer bem a Natacha, como se atreve a impedir o seu casamento, isto é, precisamente aquilo que pode reabilitar o seu bom nome? Lembre-se que ela ainda é muito nova e precisa de ter boa reputação.

— Ela devia mas era cuspir sobre todas as reputações do mundo! Devia compreender que a maior ignomínia, para ela, estará nesse casamento, sobretudo nas suas relações com essa gente vil, com essa sociedade ruim. Um nobre orgulho... devia ser essa a sua resposta a toda essa gentalha! Então... podia ser que eu consentisse em estender-lhe a minha mão, e depois veríamos quem é que se atrevia a insultar a minha filha.

Fiquei surpreendido perante um idealismo tão desesperado. Mas compreendi imediatamente que não estava em seu perfeito juízo e que devia delirar.

— É idealismo demasiado — respondi-lhe —, e, por conseguinte, cruel. Exige dela forças que talvez não lhe tenha transmitido quando a gerou. Dar-se-á o caso de que ela aceite esse casamento por ter a ambição de ser princesa? Lembre-se que ela ama. Trata-se da paixão, do fatum. E, finalmente, exige dela o desprezo da opinião pública, perante a qual o senhor mesmo se inclina. O príncipe ofendeu-o publicamente, infamou-o com a acusação vil de que o senhor quis manhosamente ligar-se à sua casa principesca, e o senhor então diz para si próprio: «Se ela o repelir agora, depois desse pedido de casamento, será essa a mais cabal e visível refutação da calúnia anterior.» De maneira que, assim, o senhor inclina-se perante a opinião desse mesmo príncipe, o senhor aspira a que ele próprio reconheça o seu erro. Pretende vexá-lo, vingar-se dele, e para isso não hesita em sacrificar a felicidade da sua filha. Não será isso egoísmo?

O velho continuava amuado e irritado e durante muito tempo não disse uma palavra.

— Tu és injusto comigo, Vânia — exclamou finalmente, e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. —Juro-te que és injusto. Mas deixemos isto. Não posso abrir-te o meu coração! — continuou, levantando-se e pegando no chapéu. — Só te digo uma coisa. Há um momento, falavas da felicidade da minha filha. Eu, digo-o com toda a convicção, não creio em tal felicidade, e isto para não falar já de que nunca esse casamento se realizará, ainda que não me intrometa no caso.

— Mas porquê? Porque pensa isso? Sabe alguma coisa. - exclamei com curiosidade.

— Não, não sei nada de concreto. Mas esse canalha maldito não era capaz de tomar uma decisão dessas. Tudo isso são absurdos, tretas. Tenho a certeza disso, sou capaz de dar a minha palavra de honra. Além disso, supondo ainda que esse casamento se realizava, o que apenas se daria no caso de que a sua maldade visse nele alguma vantagem especial, misteriosa, ignorada... e que eu não veja, nesse caso, julga por ti mesmo, interroga o teu coração: seria ela feliz com esse casamento? Censuras, humilhações, a vida com um garoto que já está farto do seu amor, e, quando se casasse... imediatamente lhe perderia o respeito e começaria a ofendê-la e a rebaixá-la, e ao mesmo tempo a força da paixão pelo lado dela reforçar-se-á, enquanto do lado dele irá arrefecendo; ciúmes, torturas, dores, a separação e quem sabe se até um crime! Não, Vânia! Se é isto que eles preparam e tu apoias, então aviso-te, terás de dar contas a Deus, Mas depois será tarde! Adeus!

Detive-o.

— Oiça, Nikolai Serguieitch, façamos uma coisa: esperemos. Acredite que não sou o único a apreciar este assunto e que talvez ele se resolva por si mesmo da melhor maneira possível, sem decisões forçadas e artificiais, como, por exemplo, esse duelo. O tempo... é a melhor solução para tudo. E, por fim, deixe-me também dizer-lhe que todo esse projecto é absolutamente impossível. O senhor imagina que o príncipe vai aceitar o seu desafio?

— O quê? Que dizes? Repara bem!

— Juro-lhe que não o aceitará e acredite que há-de encontrar algum pretexto para isso, muito razoável, que conduzirá tudo com uma gravidade pedante e o senhor cobrir-se-á de ridículo...

— Obrigado, meu amigo, obrigado! Tu atiras todos os meus raciocínios por terra! Não aceita o desafio? Não, Vânia; tu és simplesmente um poeta, é isso mesmo, um verdadeiro poeta. Julgas que ele não acharia honroso bater-se comigo?

Pois eu valho tanto como ele. Sou um pai de família velho, ofendido; tu... um literato russo, e por isso és também uma pessoa respeitável; podes muito bem servir de padrinho e... e... verdadeiramente, não consigo compreender o que desejas ainda...

— O senhor espanta-me. Ele há-de apresentar tais pretextos que o senhor será o primeiro a reconhecer que bater-se com ele... é absolutamente impossível.

— Hum! bom, está bem, meu amigo; seja como tu dizes! Mas aguardarei até que expire o prazo marcado, naturalmente. Veremos o que o tempo nos traz. Mas ouve uma coisa, meu amigo; vais dar-me a tua palavra de honra de que nem lá, nem junto de Ana Andreievna, dirás nada a respeito da nossa conversa.

— Está dada.

— E também, Vânia, hás-de fazer-me o favor de nunca mais me recordares este assunto.

— Dou-lhe a minha palavra de honra.

— Outro pedido ainda. Eu sei, meu filho, que tu te aborreces em nossa casa; mas apesar disso vem visitar-nos o maior número de vezes que possas. A minha pobre Ana Andreievna gosta tanto de ti e... e... aborrece-se tanto sem ti... Compreendes, Vânia?

Apertou-me a mão com força. Eu prometi fazer-lhe a vontade, de todo o coração.

— E agora, Vânia, o último ponto delicado: tens dinheiro?

— Dinheiro! — repeti assombrado.

— Sim — e o velho corou e baixou os olhos. — Eu, meu amigo, vejo a maneira como estás instalado... As circunstâncias em que te encontras... E penso que também podes ter outras despesas extraordinárias (podias tê-las agora, precisamente) e... bem, meu amigo, aqui tens estes cento e cinquenta rublos para qualquer eventualidade.

— Cento e cinquenta rublos, e ainda como «para qualquer eventualidade», e isto quando perdeu o processo!

— Vânia, pelo que vejo não me compreendes! Deves calcular que podem aparecer gastos «extraordinários», indispensáveis. Em certos casos o dinheiro proporciona-nos uma posição independente, prepara-nos para procedermos com liberdade. Pode ser que agora não te seja necessário, mas não te fará falta no futuro? Em todo o caso aí ficam. Foi tudo o que pude arranjar. Não te preocupes, depois me pagarás. Mas agora, adeus. Meu Deus, como estás pálido! Estás doente?

Não lhe respondi e aceitei o dinheiro. Percebia perfeitamente porque é que ele mo deixava.

— Mal posso ter-me de pé — respondi-lhe.

— Toma cuidado, Vânia, meu caro, toma cuidado! Não saias hoje. vou dizer a Ana Andreievna como tu estás. Tens médico? Amanhã virei ver-te outra vez; pelo menos farei todo o possível para isso, desde que os pés me deixem... Mas, agora, deita-te... Adeus! Adeus, pequena. Eu voltarei. Ouve, meu amigo, aqui tens estes cinco rublos, são para a pequena. Não lhe digas que fui eu que lhos dei, compra-lhe antes qualquer coisa, uns sapatinhos, roupa interior... O que lhe for mais preciso! Adeus, meu amigo!

Acompanhei-o até à porta. Precisava de dizer ao porteiro que fosse buscar o jantar. Helena ainda não tinha comido nada.

 

Mal chegara lá acima quando a cabeça se me esvaiu e tombei no meio do quarto. Lembro-me apenas do grito de Helena, que estendeu os braços e correu para mim para me amparar. Foi esse o último pormenor que conservei gravado na memória.

Lembro-me é do que se passou a seguir, quando estava já na cama. Helena contou-me depois que ela e o porteiro, que entretanto viera trazer-me o jantar, me tinham levado para o divã. Acordei e adormeci por várias vezes e via sempre inclinada sobre mim a compassiva e preocupada carinha de Helena. Mas lembro-me de tudo isso como em sonhos, como através de uma névoa, e a doce figura da pobre rapariguinha desaparecia na minha frente, por entre coisas esquecidas, como se fosse um panorama ou uma estampa; dava-me de beber, acomodava-me na cama ou sentava-se à minha cabeceira, triste, asustada, a acariciar-me o cabelo com os seus dedinhos. Lembro-me de que uma vez me deu um beijo muito suave sobre o rosto. De outra, quando abri de repente os olhos de noite, vi, à luz da vela acesa que ardia à minha frente, na mesinha próxima do divã, Helena com a cabeça sobre a minha almofada e timidamente adormecida, de lábios brancos e com a palma da mão debaixo da face pálida. Mas na manhã seguinte acordei já restabelecido. A vela estava completamente gasta; um raio de luz da aurora, claro e rosado, brincava na parede. Helena estava sentada numa cadeira, junto da mesa, e reclinava a sua cabecinha cansada sobre a mão esquerda, apoiada na mesa; estava profundamente adormecida e lembro-me de que fiquei a contemplar o seu rostozinho infantil, que mesmo adormecido tinha uma expressão inocente e apresentava uma beleza estranha e doentia; pálida, com os grandes olhos rebrilhantes nas faces vincadas, aureoladas pelos cabelos negros de azeviche, que lhe caíam desalinhados e bastos, em um nó frouxo, para um lado. A sua outra mão descansava na minha almofada. Suavemente beijei aquela mãozinha descarnada, mas a pobre pequenita não acordou e apenas um sorriso pareceu assomar aos seus lábios pálidos. Fiquei a mirá-la e a remirá-la e, sem dar por isso, fui-me tranquilizando e adormeci profundamente. Dessa vez não acordei até ao meio-dia. Quando abri os olhos sentia-me completamente bem. Apenas a debilidade e o peso dos meus membros acusavam a doença recente. Ataques nervosos desse género, já antes costumavam assaltar-me. Conhecia-os muito bem. De uma maneira geral, o mal-estar desaparecia completamente em vinte e quatro horas o que, apesar de tudo, não impedia de me provocar durante esse tempo efeitos intensos e graves.

Era quase meio-dia. A primeira coisa que vi foram as cortinas que comprara no dia anterior suspensas de uma corda. Fora Helena quem as arranjara, colocando-as no cantinho que ocupava no quarto. Estava sentada junto do fogão e preparava o chá. Quando viu que eu tinha acordado, sorriu, contente, e aproximou-se imediatamente de mim.

— Minha amiga — disse-lhe eu pegando-lhe numa mão - passaste a noite toda a velar-me. Não sabia que eras tão bondosa.

— E como é que sabe que eu o velei? Como o sabe, se passou a noite a dormir? — perguntou-me, olhando com uma ingénua e envergonhada malícia, e pondo-se ao mesmo tempo muito corada.

— Acordei e vi-te. Só adormeceste de madrugada.

— Quer chá? — interrompeu ela como se lhe custasse continuar aquela conversa, como costuma acontecer aos temperamentos pudicos e muito severos em pontos de honra, quando os apontamos para elogiá-los.

— Quero, sim — respondi. — Não jantaste, ontem?

— Não jantei, mas ceei. O porteiro trouxe-me a ceia. Mas não fale, deixe-se ficar deitado e sossegado. Ainda não está completamente bom — acrescentou, trazendo-me o chá e sentando-se à minha cabeceira.

— Qual deitado! Estarei até à tarde, mas depois levanto-me, não tenho outro remédio, Lenotchka.

— Ora! Mas porquê? com quem é que tem de encontrar-se? com o visitante de ontem?

— Não, não é com ele.

— Pois ainda bem que não é com ele. Foi ele o culpado de que ficasse assim, ontem. Então é com a filha dele?

— Como sabes que ele tem uma filha?

— Porque ouvi tudo, ontem — respondeu-me, baixando a cabeça.

Estava aborrecida. Arqueava as sobrancelhas.

— É um velho severo — acrescentou depois.

— Mas tu conhece-lo? Pois olha, é muito bondoso.

— Não, não, é mau, eu estive a ouvi-lo — respondeu com veemência.

— Mas que foi que tu ouviste?

— Não quer perdoar à filha...

— Mas gosta dela. Ela portou-se mal para com ele, e no entanto, ele preocupa-se com ela e sofre por sua causa.

— Mas porque não lhe perdoa ele? Agora, ainda que ele lhe perdoasse, a filha já não devia ir a casa dele.

— Não? E porquê?

— Porque não merece que a filha goste dele — respondeu com exaltação. — Mais vale que o deixe para sempre e se ponha a pedir esmola, e que ele veja a filha a pedir esmola e sofra.

Os seus olhos brilhavam, as faces ardiam-lhe. «Não há dúvida de que deve dizer o que sente», pensava eu.

— E era para casa desse homem que o senhor queria que eu fosse viver? — acrescentou depois de uma pausa.

— Sim, Helena.

— Não, preferia ir servir.

— Nada do que dizes está certo, Helena! Que absurdo! Onde pensas tu que poderias colocar-te?

— Em casa de qualquer mujique — respondeu-me com impaciência, cada vez mais meditabunda.

Era muito irascível.

— Mas um mujique não precisa de criados — disse-lhe eu sorrindo.

— Bem, então em casa de algum senhor.

— com o teu temperamento, tu, ires colocar-te em casa de uns senhores?

— com o meu...

Quanto mais se zangava mais cortantes eram as suas respostas.

— Mas se tu não te dominas!

— Hei-de dominar-me! Se ralharem comigo, hei-de calar-me intencionalmente. Se me baterem não abrirei a boca, ainda que me matem, e por nada deste mundo hei-de chorar. Ainda lhes custará mais a suportar uma pessoa que não chora.

Mas que dizes tu, Helena?! És assim tão má? E tão soberba! Deves ter sofrido muito...

Levantei-me e aproximei-me da minha mesa grande. Helena continuou no divã, olhando para o chão, pensativa e beliscando o pano com os deditos. Permanecia em silêncio. «Teria ficado aborrecida por causa das minhas palavras?», pensei.

De pé, junto da mesa, pus-me a folhear maquinalmente os livros do dia anterior, que me tinham levado para a preparação do meu artigo e, pouco a pouco, fui-me absorvendo na leitura. Costuma acontecer-me isso frequentemente; pego num livro apenas por um momento, folhei-o, afundo-me na leitura e esqueço-me de tudo.

— Que está a escrever agora? — perguntou-me Helena com um sorriso tímido, aproximando-se da mesa devagarinho.

— Olha, Lenotchka, isto é uma salsada. Mas é para isto que me pagam.

— Processo?

— Não, não são processos — e expliquei-lhe conforme pude que escrevia diversas histórias de diferentes personagens, com o que compunha livros, aos quais dava o nome de contos e romances. Ela ouvia-me com grande curiosidade.

— É verdade tudo quanto escreve?

— Não, é inventado.

— E porque escreve coisas que não são verdade?

— Faz favor de leres e verás; aqui tens este livrinho; tu já o folheaste uma vez. Porque tu deves saber ler...

— Sei.

— Bem, então já vais ver. Olha, este livrinho escrevi-o eu.

— O senhor? vou lê-lo.

Queria dizer-me ainda mais qualquer coisa, mas pelos vistos isso custava-lhe e estava muito agitada. Algo se escondia nas suas perguntas.

— E pagam-lhe muito por isso! — perguntou-me finalmente.

— Conforme. Umas vezes muito, e outras nada, quando o trabalho não sai bem. E um trabalho difícil, Lenotchka

— Então o senhor não é rico?

— Não, não sou rico.

— Bem. Então eu trabalharei e hei-de ajudá-lo. Deitou-me um olhar rápido, ruborizou-se, baixou os olhos e, dirigindo-se para mim, pegou-me de repente em ambas as mãos e apertou com força, com muita força, o seu rosto contra o meu peito. Eu olhei para ela atónito.

— Eu gosto de si... Eu não sou orgulhosa — disse.

Disse-me há pouco que sou soberba. Não, não... Eu não sou assim... Eu gosto de si. O senhor é a única pessoa que gosta de mim...

E já as lágrimas a sufocavam. Um momento depois brotaram dos seus olhos com o mesmo ímpeto que no dia anterior, no momento do ataque. Caiu aos meus pés de joelhos e pôs-se a beijar-me as mãos, os pés...

— O senhor gosta de mim! — repetia. — É o único, o único!

Abraçou-me os joelhos, convulsivamente. Todo o seu sentimento, tanto tempo reprimido, explodia agora, num impulso indomável, e eu compreendia aquela estranha teimosia do coração que se escondera pudicamente até então, tanto mais teimosamente, com tanta maior severidade, quanto mais violenta era a sua ânsia de expansão, e tudo isso até à explosão inevitável, em que todo o seu ser, de repente, cedeu àquela necessidade de amor, de gratidão, de carícias, de lágrimas, até ao esquecimento de si mesma.

Pouco a pouco foi serenando, mas ainda não levantava os olhos para mim. Por duas vezes, suavemente, eles poisaram no meu rosto, com uma grande doçura e qualquer coisa de semelhante a um sentimento sobressaltado que entrava logo e esconder-se. Finalmente fez-se muito corada e sorriu.

— Estás melhor? — perguntei-lhe. — Como tu és sensível, Lenotchka, e delicada, minha pequena!

Não, Lenotchka, não! — murmurou ela continuando

a esconder o rosto.

Lenotchka, não? Então?

— Nelly.

— Nelly? Mas porque há-de ser Nelly? Bem, está bem, é um nome muito bonito. Se é esse o teu gosto, chamo-te assim.

— Era assim que me chamava a minha mãezinha... E nunca mais ninguém, senão ela, me chamou assim. E eu também só queria que fosse ela a chamar-me assim. Mas o senhor pode chamar-me dessa maneira, eu gostava muito. Eu, de si, hei-de gostar sempre, sempre...

«Coraçãozinho amoroso e orgulhoso — pensei eu. — Quanto tempo não foi preciso para que te rendesses... Nelly!» Mas agora sabia já que o seu coração me pertencia para sempre.

— Olha, Nelly — disse-lhe eu assim que ela serenou. — Tu acabas de dizer que apenas a tua mãezinha e mais ninguém gostou de ti. Mas o teu avôzinho também não gostava muito de ti?

— Não gostava de mim.

— Mas tu choraste por ele, aqui, na escada, lembras-te? Ficou um momento pensativa.

— Não gostava de mim... Era mau!

E que sentimento de dor se reflectiu no seu rosto!

— Mas deves pensar que, a ele, não se lhe podia exigir nada, Nelly. Segundo parece não estava em seu perfeito juízo. Morreu inconsciente. Já te contei como é que ele morreu.

— Sim. Mas ele só se pôs assim no último mês em que viveu. Costumava ficar aqui sentado todo o dia e, se eu não viesse vê-lo, assim ficava dois ou três dias sem comer nem beber. Mas antes estava muito melhor.

— Antes, quando?

— Antes de a minha mãezinha ter morrido.

— Tu trazias-lhe de comer e de beber, Nelly?

— Trazia.

— E onde ias buscá-lo? A casa da Bubnova?

— Não, eu nunca recebia nada de casa da Bubnova respondeu-me com altivez e com uma voz um pouco tremente

— Mas onde ias buscá-lo? Porque tu não tinhas nada. Nelly não respondeu e empalideceu extraordinariamente - depois pousou em mim um longo, longo olhar.

— Andava a pedir esmola pelas ruas... Juntava cinco copeques e comprava-lhe pão e rapé...

— E ele consentia? Nelly! Nelly!

— A princípio saía sozinha e não lhe dizia nada. Mas depois, quando soube, era ele mesmo quem me mandava pedir. Ia para o passeio, pedia aos que passavam, e ele, entretanto, punha-se às voltas por aí, à espera, e quando via que me davam alguma coisa, aproximava-se de mim e tirava-me o dinheiro, como se eu tencionasse escondê-lo, como se eu não estivesse a pedir para ele.

Ao dizer isto sorria de um modo cáustico, amargo.

— Tudo isso foi quando a minha mãezinha morreu. Ele ficou meio tolo.

— Então, pelos vistos, gostava muito da tua mãe. Porque não vivia com ela?

— Não, não gostava... Era mau e nunca chegou a perdoar-lhe... como esse velho mau, de ontem — disse em voz baixa, como num murmúrio, e cada vez se punha mais pálida.

Eu estremeci. O enredo de todo um romance brilhava na minha imaginação. Essa pobre mulher, que morrera num saguão, em casa de um carpinteiro de caixões; a filha, órfã, visitando de quando em quando o avô, que amaldiçoara a mãe; o velho extravagante e aloucado, que morrera numa pastelaria, ao mesmo tempo que o cão...

— Olhe, Azorka, dantes, era da minha mãezinha — disse Nelly de súbito, sorrindo a não sei que evocação. — O avô, dantes, gostava muito da minha mãezinha e, quando ela fugiu de casa, ele ficou com Azorka, que era dela. Por isso gostava tanto de Azorka... Não perdoou à minha mãe; Mas quando o cão morreu, ele também morreu — acrescentou Nelly, gravemente, e o sorriso fugiu do seu rosto.

— Nelly, que era ele «dantes»? — perguntei-lhe depois de esperar um momento.

— Dantes era rico. eu não sei o que ele era... — respondeu-me. — Parece que tinha uma fábrica... Era o que a minha mãezinha me dizia. A princípio ela pensava que eu era ainda muito pequena e contava-me tudo. Não fazia senão beijar-me e dizer-me: «Hás-de saber tudo, lá chegará esse tempo, pobrezinha, minha infeliz.» E chamava-me sempre pobre e infeliz. E de noite, quando pensava que eu estava a dormir, e eu realmente fingia que dormia, não fazia outra coisa senão chorar, inclinada sobre mim, dava-me muitos beijos e dizia: «Pobre criança, pobre criança!»

— E de que morreu a tua mãe?

— Tísica; está agora a fazer seis semanas.

— E tu lembras-te de quando o teu avô ainda era rico?

— Então ainda eu não tinha nascido! A minha mãezinha fugiu de casa antes de eu ter nascido...

— com quem fugiu?

— Não sei — respondeu Nelly com uma voz apagada e como se reflectisse. — Ela foi para o estrangeiro e eu nasci lá.

— No estrangeiro? Onde?

— Na Suíça. Eu estive lá, e na Itália, e também estive em Paris.

Fiquei espantado.

— E lembras-te de tudo isso, Nelly?

— De muitas coisas ainda me lembro.

— E como falas tão bem o russo, Nelly?

— É que a minha mãe, quando ainda estávamos lá, ensinou-me russo. Era russa e a mãe dela também era russa; mas o avô era inglês, embora já fosse como russo. E quando voltámos de lá, com a minha mãe, há ano e meio, acabei de aprender a língua. A minha mãe já estava doente. Passávamos muitas necessidades. A mãezinha não fazia mais nada senão chorar. A princípio procurou o avô, aqui, em Petersburgo, e eu dizia-lhe muitas vezes que ela procedera mal para com ele, e então ela punha-se a chorar... O que ela chorava! O que ela chorava! Mas quando soube que o avô também estava na miséria, as suas lágrimas redobraram Começou a escrever-lhe cartas e mais cartas, mas ele não respondia a nenhuma.

— E porque voltou a tua mãe do estrangeiro? Foi por causa do pai?

— Não sei! Estávamos lá tão bem! — e os olhos de Nelly iluminaram-se. — A minha mãezinha vivia só comigo. Tinha um amigo muito bom, tão bom como o senhor... Conheceu-o aqui. Mas morreu no estrangeiro e então a minha mãe regressou...

— Então foi com ele que a tua mãe fugiu?

— Não, não foi com ele. A mãezinha fugiu de casa do avô com outro, que a deixou logo.

— E com quem fugiu, Nelly?

Nelly olhou-me e não respondeu. Parecia que sabia com quem tinha fugido a mãe e quem era o seu pai, mas que lhe custava dizer-me o nome...

Eu não quis mortificá-la com perguntas. O seu carácter era estranho, nervoso e impetuoso, capaz de arrebatamentos; simpático mas hermético, de tão orgulhoso e desconfiado. Durante todo o tempo que eu a tratei, apesar de amar-me de todo o seu coração, com o amor mais luminoso e transparente, quase igual ao que dedicava à sua falecida mãe, da qual não podia recordar-se sem dor... apesar disso, raras vezes era franca no seu passado; pelo contrário, até parecia ocultar-mo zelosamente. Nesse dia, durante algumas horas, por entre suspiros e soluços convulsos, que interrompiam a sua narrativa, revelou-me tudo o que a fazia sofrer e mais atormentava nas suas recordações, e nunca me esquecerei dessa história estranha. Mas o principal deixá-lo-ei mais para diante.

Era uma história estranha: a história de uma mulher abandonada, que sobreviveu à sua felicidade; doente, cansada e esquecida de toda a gente; repelida pela última criatura em quem podia ainda esperar... seu pai, ao qual ofendera em outro tempo e que por sua vez acabara por perder a razão, devido aos desgostos e humilhações sofridos. A história de uma mulher levada até aos extremos do desespero, que, juntamente com a filha, à qual considerava ainda uma criancinha, andava pelas sujas e frias ruas pertersburguesas a pedir esmola; de uma mulher que esteve longos meses moribunda num saguão lúgubre e à qual o pai negou o perdão até ao último instante da sua vida, e depois, quando se arrependeu e correu a perdoar-lhe, apenas encontrou um cadáver hirto, em vez daquela a quem amava mais que tudo neste mundo. Era uma história singular, de misteriosas e mal comprensíveis relações entre o ancião que perdera o senso e a sua neta, que já compreendia muito de tudo isso, apesar da tenra idade, sem ter conhecimento de mais nada durante anos da sua vida triste e monótona. Era uma história lúgubre, uma dessas tristes e dolorosas histórias que com tanta frequência e sem dar por isso se desenrolam debaixo do sombrio céu petersburguês, nos lôbregos, escondidos tugúrios da enorme cidade, entre vidas loucas e tumultuosas, profundos egoísmos, interesses desenfreados, repugnante perversidade e crimes sangrentos, entre todo esse inferno de uma vida insensata e anormal...

Mas esta história deixá-la-emos para mais tarde.

 

Havia já algum tempo que escurecera e que a noite chegara, quando acordei de um lúgubre pesadelo e voltei a recordar-me da realidade.

— Nelly — disse —, olha, tu, agora, estás doente, fraca, e eu sou obrigado a deixar-te só, nesse estado de comoção e cheia de lágrimas. Minha amiga, perdoa-me, e fica sabendo que existe também uma criatura amável e a quem igualmente não perdoaram, infeliz, ofendida e humilhada. Espera por mim. E eu próprio me sinto tão atraído para ela, agora, depois do que me contaste, que me parece que não seria capaz de passar sem vê-la imediatamente, neste mesmo instante...

Não sei se Nelly compreenderia tudo o que lhe disse. Eu estava fora de mim, tanto pela impressão que me deixara o seu relato como pela minha recente enfermidade; mas dirigi-me a casa de Natacha. Já era tarde, eram nove horas quando lá cheguei.

Já na rua, à porta da casa onde Natacha vivia, vi uma carruagem e pareceu-me que era a do príncipe. Para se chegar ao andar de Natacha passava-se pelo pátio. Assim que comecei a subir a escada ouvi à minha frente, um degrau acima, um indivíduo que subia tacteando, com cuidado, e que, pelos vistos, não conhecia a casa. Pensei que seria o príncipe, mas não tardei a pôr de parte essa ideia. O desconhecido subia resmungando e blasfemando, e com tanto mais vigor e energia quanto mais subia. É certo que a escada era empinada, suja, estreita, escura; mas aquelas pragas, que tinham começado no 3º andar, não poderia eu nunca atribuí-las ao príncipe: o senhor que subia à minha frente praguejava como um cocheiro. Mas no 3.º andar começava já a haver luz; diante da porta de Natacha ardia constantemente uma lanterna. Ali alcancei eu o meu desconhecido e qual não foi a minha surpresa quando reconheci o príncipe. Pareceu-me que lhe era muitíssimo desagradável encontrar-se assim cara a cara comigo. No primeiro momento não me reconheceu, mas não tardou a mudar completamente a expressão do rosto. Ao seu primeiro olhar, hostil e rancoroso, sucedeu de repente outro, afectuoso alegre, e, com um alvoroço um pouco exagerado, estendeu-me as duas mãos.

— Ah, era o senhor! Tenho vontade de ajoelhar-me a seus pés e pedir a Deus a salvação da minha vida. Ouviu como eu praguejava?

E pôs-se a rir de uma maneira bonacheirona. Mas de repente o seu rosto tomou uma expressão séria e preocupada.

— E Aliocha pôde instalar Natacha Nikolaievna em semelhante alojamento? — disse, movendo a cabeça. — Olhe, há pormenores insignificantes e que no entanto servem para caracterizar um homem. Eu receio por ele. É bom, tem um coração nobre, mas repare: ama loucamente e instala aquela a quem ama num tugúrio destes. Eu tenho ouvido dizer que às vezes até passa fome — acrescentou em voz baixa, procurando o botão da campainha. — Parece-me que endoideço quando penso no seu futuro, e sobretudo no de Ana Nikolaievna quando for sua mulher.

Enganou-se no nome, mas não reparou nisso, muito aborrecido por não atinar com a campainha. Mas não havia campainha. Eu puxei pela tranqueta da fechadura; em seguida Mavra veio abrir e recebeu-nos com muita amabilidade. Na cozinha, separada do minúsculo vestíbulo por um tabique de madeira, viam-se pela porta aberta alguns preparativos; tudo estava, como sempre, limpo e arranjado; no fogão ardia o fogo; sobre a mesa via-se uma baixela nova. Percebia-se que estavam à nossa espera. Mavra dispôs-se a tirar-nos os sobretudos.

— Aliocha está cá? — perguntei-lhe.

— Não tem vindo — respondeu-me como em segredo. Fomos ter com Natacha. No seu quarto não se viam quaisquer preparativos especiais. Aliás, ela tinha sempre tudo limpo e atraente, sem que fosse necessário arranjar nada à pressa. Natacha veio receber-nos, de pé, à porta. Eu fiquei impressionado perante o seu rosto, consumido e exrernamente pálido, apesar de, por um momento, uma vermelhidão ter brilhado nas suas faces mortiças. Os seus olhos estavam febris. Em silêncio e perturbada, estendeu a mão ao príncipe, visivelmente alterada e atarantada. A mim, nem sequer me olhou. Eu continuava de pé e esperava em silêncio.

— Cá estou eu! — exclamou amistosa e jovialmente o príncipe. — Há apenas umas horas que voltei. Lembrei-me de si durante todo esse tempo — e beijou com ternura a sua mão — Tenho tanto que dizer-lhe, que contar-lhe! Bem. Já vamos falar de tudo. Em primeiro lugar, vejo que não está cá o meu ciclone...

— Dê-me licença, príncipe — atalhou Natacha corando e sorrindo. — Preciso de dizer duas palavras a Ivan Petrovitch; Vânia, chega aqui... Só duas palavras...

Pegou-me na mão e levou-me para trás do biombo.

— Vânia — disse-me em voz baixa, levando-me para o canto mais escuro —, perdoas-me?

— Claro, Natacha! Porque não?

— Não, não, Vânia; tu acabas sempre por me perdoar, mas toda a paciência tem limites. Tu nunca deixarás de gostar de mim, bem sei; mas poderás chamar-me ingrata, e eu, ontem e anteontem portei-me contigo como uma ingrata, egoísta e cruel...

De repente rompeu em lágrimas e apoiou-se ao meu ombro.

— Basta, Natacha! — tentei convencê-la. — Olha, eu estive muito mal a noite passada e ainda hoje só com muito esforço é que consigo ter-me de pé, e foi por isso que não vim ver-te nem ontem à noite nem hoje em todo o dia, donde tu concluíste que eu estava zangado. E, minha amiga, não saberei eu o que se passa na tua alma?

— Bem, isso quer dizer que, como sempre, me perdoas — disse ela sorrindo por entre lágrimas e apertando-me a mão até me magoar. — O resto fica para logo. Tenho muitas coisas para te dizer, Vânia. Mas agora vamos ter com ele

— Vamos já, Natacha. Deixámo-lo só, assim tão de repente ...

— Tu vais ver, vais ver o que se vai passar — murmurou rapidamente. — Agora já sei tudo, já tinha adivinhado tudo. O culpado de tudo é ele. Esta noite é decisiva. Vamos então!

Eu não a compreendi bem, mas não tive tempo de perguntar-lhe mais nada. Natacha aproximou-se do príncipe com um sorriso alegre. Ele continuava de pé, de chapéu na mão. Ela pediu-lhe desculpa, muito bem disposta, pegou-lhe no chapéu, ofereceu-lhe uma cadeira e sentámo-nos os três à volta da mesa.

— Tinha começado a falar-lhe do meu ciclone — começou o príncipe. — Eu vi-o apenas um momento, quando se preparava para dirigir-se a casa da condessa Zinaida Fiodorovna. Estava cheio de pressa e, calculem, nem sequer se dignou demorar-se um pouco nos meus aposentos, depois de termos estado quatro dias sem nos vermos. E, pelos vistos, eu é que tenho a culpa, Natacha Nikolaievna, de que ele não esteja aqui e de que eu tenha chegado antes dele; eu aproveitei a oportunidade e, como não podia hoje ir ver a condessa, passei-lhe o encargo. Mas não tarda que esteja aqui.

— Deu-lhe a certeza de que viria hoje? — perguntou-lhe Natacha dirigindo ao príncipe o olhar mais ingénuo.

— Ah, meu Deus, não faltava mais nada senão que não viesse! Porque me pergunta isso? — exclamou o príncipe olhando-a assombrado. — Embora, no fim de contas, eu compreenda; está zangada com ele. De facto, não está certo que seja o último a chegar. Mas, repito-lhe, o culpado de tudo sou eu. Não se zangue com ele. É um estouvado, um furacão. Eu não estou a defendê-lo. Mas há certas circunstâncias especiais que exigem não só que ele não abandone -agora a casa da condessa e de outras pessoas nossas conhecidas, mas que pelo contrário as frequente o mais possível, mas como ele, agora, tenho a certeza, não sai de casa e se esquece de tudo o mais, não se aborreça se alguma vez eu lho roubar por umas duas horitas apenas, por causa das incumbências que lhe dou. Tenho a certeza de que ele não esteve nem uma só vez em casa da princesa K..., desde aquela noite, e sinto muito não ter tido tempo, há pouco...

Olhei para Natacha. Ouvia o príncipe com um sorriso levemente irónico. Mas ele falava tão francamente, com tanta naturalidade... Parecia que não havia o menor motivo para suspeitar das suas palavras.

— Mas o senhor não sabe, seriamente, que ele durante todos estes dias nem uma só vez apareceu por aqui? — perguntou-lhe Natacha numa voz mansa e tranquila, como se falasse de uma coisa muito natural para si.

— O quê? Nem uma só vez? Que me diz? — exclamou o príncipe admiradíssimo, pelo menos na aparência.

— O senhor veio ver-me na terça-feira, já tarde, à noite; na manhã seguinte veio ele e esteve comigo uma meia hora, e a partir daí nunca mais o vi.

— Mas isso é inverosímil! — estava cada vez mais assombrado. — E eu a pensar que ele não saía daqui! Desculpe, mas isso é tão estranho... é simplesmente inverosímil.

— No entanto, é verdade, uma triste verdade; eu estava precisamente à sua espera para ver se sabia pelo senhor onde ele pára.

— Ah, meu Deus! Mas não deve tardar que ele esteja aqui! O que acaba de me dizer choca-me a tal ponto que... confesso-lhe, eu não esperava dele... semelhante coisa.

— Mas porque se admira assim? Eu supunha que o senhor não só não devia ficar admirado, como estaria até ao facto do que se passava...

— Ao facto? Eu? Pois afirmo-lhe, Natacha Nikolaievna, que apenas o vi hoje um momento e não perguntei a ninguém por ele, e parece-me muito estranho que a senhora não me acredite — continuou, olhando para nós os dois.

— Deus me livre — respondeu Natacha. — Estou firmemente convencida de que o senhor diz a verdade.

E tornou a sorrir abertamente, na cara do príncipe de uma maneira que ele não pareceu achar muita graça.

— Explique-se — disse, inquieto.

— Mas eu não tenho nada a explicar! Eu falo com toda a simplicidade. O senhor bem sabe como ele é estouvado e esquecido. Pois bem, como agora lhe deram liberdade plena, diverte-se.

— Mas divertir-se até esse ponto é impossível. Aqui há mais qualquer coisa, e assim que conseguir apanhá-lo hei-de obrigá-lo a explicar-me tudo. Mas o que mais me espanta é que a senhora parece culpar-me, a mim, de qualquer coisa quando eu, afinal, nem sequer cá tenho estado. Vejo também que está muito zangada com ele, mas isso é compreensível. Tem todo o direito e, naturalmente, sou eu o primeiro culpado, embora somente por ter sido o primeiro a vir, não é verdade? — continuou, dirigindo-se a mim com uma zombaria irritada.

Natacha excitou-se.

— Dê-me licença, Natacha Nikolaievna —, continuou o príncipe com dignidade. — Concordo que sou culpado, mas apenas por ter partido em viagem no dia seguinte àquele em que nos conhecemos, e por causa disso, em virtude de uma certa desconfiança que noto no seu carácter, já se apressou a mudar de opinião a meu respeito, tanto mais que as circunstâncias a isso se prestaram. Ao passo que, se eu não tivesse partido, a senhora conhecer-me-ia mais a fundo e Aliocha, debaixo da minha vigilância, não se teria transviado. Vai ouvir o que eu lhe vou dizer...

— Assim fará com que ele acabe por me tomar aversão. É impossível que o senhor, com a sua inteligência, pense realmente que pode ser-me útil desse modo.

— Suponho que não quer insinuar que eu procuro intencionalmente ver se ele lhe toma aversão. A senhora ofende-me, Natacha Nikolaievna.

— Eu procuro sempre evitar alusões indirectas quando falo com alguém, seja com quem for — respondeu Natacha. — E, pelo contrário, esforço-me sempre por me expressar com a maior clareza possível e pode ser que ainda hoje mesmo me seja fácil demonstrar-lho. Não tenho a menor ntenção de ofendê-lo, nem de o desejar sequer... Disto tenho a certeza absoluta, porque compreendo muito bem as nossas relações recíprocas. O senhor não disse isso a sério, não é verdade? Mas se de facto o ofendi estou disposta a pedir-lhe perdão para cumprir em tudo, para com o senhor, os deveres da... hospitalidade.

Apesar do tom de despreocupação e de alegria com que Natacha pronunciou essas palavras, com um sorriso nos lábios, nunca eu a vira tão excitada. Até então não me apercebera ainda até que extremo ela devia ter sofrido naqueles três dias. As suas enigmáticas palavras, das quais eu já sabia tudo e tudo adivinhara, deixaram-me numa inquietação; referiam-se directamente ao príncipe. Tinha mudado de opinião a respeito dele e considerava-o como seu inimigo; isso era evidente. Percebia-se que atribuía à sua influência o seu fiasco com Aliocha e talvez tivesse razão. Eu receava que se desse repentinamente uma cena entre eles. O seu tom de gracejo era demasiado transparente, quase diáfano. As últimas palavras dirigidas ao príncipe, dizendo-lhe que ele não podia tomar as suas relações a sério e pedindo-lhe perdão em nome dos deveres da hospitalidade, assim como a sua promessa, em tom de ameaça, de demonstrar-lhe nessa mesma noite que sabia falar com franqueza... Tudo isso era a tal ponto sincero e explícito que não era possível que o príncipe não o compreendesse. Eu via que a sua expressão se transformara, embora ele se dominasse. Tomou imediatamente o ar de não ter reparado naquelas palavras, de não ter compreendido a sua verdadeira intenção e, naturalmente, tomou-as por gracejo.

— Deus me livre de pedir explicações! — encareceu, sorrindo. — Eu não pretendia isso, de maneira nenhuma, e além do mais não faz parte das minhas regras de conduta pedir explicações a uma mulher. No nosso primeiro encontto tive o cuidado de preveni-la sobre o meu carácter e, portanto, com certeza que a senhora não se zangará comigo por causa de uma simples observação, tanto mais que, de uma maneira geral, se refere a todas as mulheres. com certeza que a senhora também deve estar de acordo com essa observação — continuou, dirigindo-se a mim com muita amabilidade. — Dizia eu, concretamente, que o carácter feminino apresenta certos aspectos que fazem com que, se por exemplo uma mulher é culpada de qualquer coisa, procure de preferência compensar a sua falta com mil lisonjas a reconhecer a sua culpa no próprio instante em que a comete, a confessar-se culpada e pedir perdão. De facto, se a senhora supusesse que me tinha ofendido, eu, nesse mesmo instante e intencionalmente, não quereria explicações; estas ser-me-iam mais úteis depois, quando reconhecesse o seu erro e quisesse indemnizar-me por ele... com mil lisonjas. E a senhora é tão boa, tão honesta, tão sincera, que eu calculo como devia estar encantadora no momento do arrependimento. Mas em vez de apresentar-me desculpas, o melhor será dizer-me se eu próprio não poderia demonstrar-lhe que procedo consigo com mais sinceridade e franqueza do que a senhora imagina.

Natacha corou. A mim parecia-me que na resposta do príncipe havia demasiada leviandade, até excessivo à-vontade, qualquer coisa como uma graciosidade intempestiva.

— Queria demonstrar-me que procede comigo de um modo sincero e franco? — perguntou Natacha olhando-o com um olhar de desafio.

— Sim.

— Sendo assim, responda-me a uma pergunta.

— Desde já o prometo.

— Ei-la: não incomode Aliocha com uma palavra nem com uma alusão a meu respeito, nem hoje nem amanhã. Nem uma só censura por se ter esquecido de mim, nem uma só repreensão... Eu própria quero recebê-lo como se entre nós nada se tivesse passado, para que ele não possa notar nada. Dá-me a sua palavra de que fará isso?

— com muito gosto — respondeu o príncipe. — E permita-me acrescentar, de todo o coração, que raramente tenho encontrado quem saiba ver uma questão deste género com tão sensato e claro critério... Mas parece-me que Aliocha já chegou.

Efectivamente, ouviu-se um ruído na sala de entrada. Natacha estremeceu e demonstrou aperceber-se de qualquer coisa. O príncipe continuou sentado, com uma expressão séria e na expectactiva; seguia Natacha atentamente, com os olhos. A porta abriu-se e Aliocha entrou rapidamente.

 

Entrou com um rosto radiante, alegre, jovial. Era evidente que vivera muito contente e feliz durante esses quatro dias. Notava-se que queria comunicar-nos qualquer coisa.

— Ora cá estou eu! — disse, espraiando o olhar por toda a sala. — Cá está aquele que devia ter sido o primeiro de todos a chegar. Mas já vão saber tudo, tudo. Há pouco, foi-me impossível trocar sequer duas palavras contigo, papá, e tinha muitas coisas para te dizer. É só quando ele está bem disposto que eu me permito tratá-lo por tu — interrompeu-se, dirigindo-se a mim. — Valha-me Deus! Tirando esses casos nunca mo consente! E é ver a técnica que emprega: é ele próprio quem começa a tratar-me por você! Mas a partir de hoje quero que ele esteja sempre bem disposto e vou tratá-lo assim. Sofri uma grande mudança durante estes quatro dias, uma mudança radical, radical, eu já vos conto tudo. Mas fica para logo. Agora vamos ao principal: eu estou outra vez com ela! Outra vez! Ela! Natacha, minha querida, boa noite, meu anjo! — disse, sentando-se a seu lado e beijando-lhe a mão com avidez. — Como eu devo ter-te feito sofrer durante estes dias! Mas que queres! Não posso, não posso corrigir-me! Minha querida! Parece que emagreceste um pouco... e como estás pálida!

Cobria-lhe as mãos de beijos, com entusiasmo olhando-a avidamente nos seus lindos olhos, como se não pudesse afastar deles os seus. Eu olhava para Natacha e adivinhava no seu semblante que pensávamos os dois o mesmo isto é, que ele era inocente. Mas, sendo assim, como é que aquele inocente podia tornar-se culpado? De repente, um vivo rubor se espalhou pelas faces de Natacha, como se o sangue concentrado no coração lhe tivesse subido à cabeça. Os seus olhos chispavam fogo e olhava ufana para o príncipe.

— Mas por onde... andaste... tantos dias? — exclamou numa voz débil e entrecortada.

Estava com uma respiração difícil e irregular. Meu Deus, como o amava!

— De facto, de certo modo parece que eu sou culpado para contigo, parece. Que sou culpado, já o sei, e porque o sei é que vim. Kátia disse-me ontem e hoje que não há mulher alguma que perdoe semelhante abandono (ela está ao facto de tudo o que se passou aqui na terça-feira; contei-lho no dia seguinte). Pus-me a discutir com ela; demonstrei-lhe, disse-lhe que essa mulher se chama Natacha e que talvez não haja outra parecida com ela, a não ser Kátia; e vim aqui sabendo, naturalmente, que ganharia a discussão. Então um anjo como tu não poderia perdoar? «Quando não vem, é porque tem que fazer, ou então deixou de me querer...», foi qualquer coisa deste género que deve ter pensado a minha Natacha, Mas poderia eu deixar de amar-te? Seria possível? Sofria por tua causa. Não há dúvida de que sou culpado. Simplesmente, quando souberes tudo serás tu a primeira a desculpar-me. vou já contar-te tudo; preciso de desabafar a minha alma convosco, foi para isso que vim. Se tivesse tido um segundo livre, já hoje teria vindo ver-te num instante para dar-te um abraço; mas não pôde ser, Kátia mandou-me chamar com urgência para um assunto importantíssimo. Foi quando eu já estava no trem, papá, tu bem viste; já era a segunda vez que, acedendo a um pedido de Kátia, me dirigia para sua casa. Pois deves saber que nós, agora, passamos o dia inteiro mandando cartinhas de uma casa para a outra.

Herr Petrovitch, não pude ler a sua carta senão hoje, e tem toda a razão naquilo que me diz. Mas que se há-de fazer? Não tive possibilidade física! De maneira que eu pensava: «Amanhã à tarde apresentarei as minhas desculpas a todos.» Pois esta noite já me teria sido impossível não te vir ver, Natacha.

— A que carta te referes? — perguntou Natacha.

— É que ele esteve em minha casa, não me encontrou, naturalmente, e deixou-me uma carta recriminando-me por não te vir ver, na qual tinha razão de sobejo. Isso foi ontem.

Natacha olhou para mim.

— Mas tinhas tempo para estar em casa de Catarina Fiodorovna, desde manhã até à noite — insinuou o príncipe.

Já sei, já sei o que vais dizer — atalhou Aliocha. — «Se tinhas tempo para estar com Kátia, então tinhas o dobro da razão para vires aqui.» Perfeitamente de acordo e acrescentarei até por minha conta: não tinha o dobro da razão mas um milhão de razões. Mas, em primeiro lugar, acontecem na vida coisas estranhas, inesperadas, que alteram e perturbam tudo. Ora aconteceu-me uma dessas coisas, a mim. Já lhes disse que nestes dias tinha sofrido uma mudança radical, dos pés à cabeça, pois surgiram-me circunstâncias gravíssimas!

— Ai, meu Deus! Mas que te aconteceu? Continua, por favor! — exclamou Natacha sorrindo perante a veemência de Aliocha.

De facto, tornava-se um pouco ridículo. Atrapalhava-se, engasgava-se com as palavras que lhe vinham à boca, atropelando-as, como se falasse pelos cotovelos, sem nexo, enfim, numa grande algaraviada. O seu desejo era falar, falar, contar. Mas, enquanto falava não largava a mão de Natacha e levava-a constantemente aos lábios, como se não se fartasse de beijá-la.

— Enfim, aconteceram-me muitas coisas! — continuou Aliocha. — Ai, meus amigos, o que eu fiz, o que conheci! Em primeiro lugar, Kátia. Que bonita! Eu não a conhecia, não a conhecia, a bem dizer, até agora! E na terça-feira passada, quando te falei dela, Natacha... lembras-te com que entusiasmo? Bem, pois nessa altura ainda mal a conhecia Ela escondeu-se de mim até esse momento. Mas agora conhecemo-nos os dois a fundo. Já nos tratamos por tu. Mas começarei pelo princípio. Em primeiro lugar, Natacha, se tivesses ouvido o que ela me disse sobre ti, quando no dia seguinte, na quarta-feira, eu lhe contei o que houve entre nós... E de facto lembro-me de, como me portei estupidamente contigo, quando vim ver-te na manhã dessa quarta-feira. Tu recebeste-me comovida, ainda perturbada pela nossa nova situação; querias falar comigo de tudo isso, estavas -triste e ao mesmo tempo coqueteavas e brincavas comigo, enquanto eu para aí fiquei, armado em senhor grave! Oh, que idiota, que idiota! Mas juro que o que eu queria dar a entender era que em breve serei um homem, um homem a sério! E com quem fui eu tomar esses ares... Contigo! Ai como devias ter-te rido de mim e como foram merecidos esses risos!

O príncipe permanecia silencioso e contemplava Aliocha com um certo sorriso irónico e triunfante. Parecia que se alegrava por o seu filho se mostrar tão estouvado e até ridículo. Observei-o constantemente nessa noite e percebi que não gostava do filho, apesar de falar a toda a hora no grande amor de pai que lhe tinha.

— Daqui fui ter com Kátia — disse Aliocha, continuando a sua narrativa. — Já disse que foi só a partir desta manhã que nos começámos a conhecer melhor um ao outro e foi bem estranha a maneira como isso aconteceu. Nem sequer me lembro... algumas palavras entusiásticas, algumas comoções e pensamentos francamente declarados e... eis-nos aproximados para sempre. É preciso, é preciso que a conheças, Natacha. A maneira como ela me falava de ti, como te compreende, como ela me explicava o tesouro que tu és para mim! Pouco a pouco ia-me expondo todas as suas ideias e todo o seu modo de pensar acerca da vida! Que rapariga tão séria e exaltada! Falava-me do dever, do nosso destino, de que todos temos de servir a humanidade, e assim ficámos juntos umas cinco... ou seis horas, a falar, até que acabámos por jurar uma amizade eterna e procedermos sempre em conjunto na vida.

— Proceder em quê? — perguntou o príncipe assombrado.

— Eu sofri uma tal transformação, papá, que tudo isto deve sem dúvida causar-lhe estranheza; até já calculo de antemão quais serão as suas objecções — respondeu Aliocha com solenidade. — Todos vocês são gente prática, que atende apenas a regras velhas, sérias, rigorosas, mas que olha com receio, com hostilidade e com sarcasmo tudo quanto é novo, juvenil e fresco. Mas eu já não sou aquele que era ainda há poucos dias. Já sou outro! E tenho a coragem de olhar para toda a gente na cara! Como sei que a minha convicção é justa, sigo-a até às últimas consequências e na medida em que não me afasto do caminho sou um homem honesto. Para mim já é bastante. Portanto, podem dizer o que quiserem, que eu não me importo.

— Bravo! — exclamou o príncipe sorrindo.

Natacha olhou para nós desassossegada. Receava por Aliocha. Quando falava costumava entregar-se a divagações, que lhe eram pouco lisonjeiras, e ela sabia-o. Não queria que Aliocha se tornasse ridículo diante dos outros e, sobretudo, diante de seu pai.

— Mas que dizes tu, Aliocha? Isso já é pura filosofia — disse ela. — Não há dúvida nenhuma de que ela te iniciou. .. Mas o melhor era contares...

— Mas se já estou a contar! — exclamou Aliocha. — Pois bem. Kátia tem dois primos afastados, dois primos, creio, Levinka e Borinka, um é estudante, outro é ainda um tapazito. Dá-se com eles e eles são simplesmente... uns tipos invulgares! À condessa, apenas visitam por uma questão de princípios. Quando eu estava a falar com Kátia a respeito do destino do homem, da vocação e de outras coisas do género, ela mencionou-os e depois entregou-me uma carta de apresentação para eles. E eu tratei imediatamente de conhecê-los. Conseguimos falar ainda nessa mesma noite. Havia lá doze pessoas de várias condições: estudantes, oficiais, artistas um escritor... Todos o conhecem, Ivan Petrovitch, isto é, todos leram as suas obras e esperam muito de si para o futuro Foi assim que eles mesmos me disseram. Eu disse-lhes que era seu amigo e que havia de apresentá-lo. Todos eles me receberam como a um irmão, de braços abertos. Eu, desde o primeiro momento lhes anunciei que não tardaria a casar-me, de maneira que me trataram já como a um homem casado. Vivem no 5.º andar e aí se reúnem frequentemente, em casa de Levinka e de Borinka. São todos rapazes muito espertos, todos animados de um ardente amor pela humanidade; falaram do nosso presente e do nosso futuro, de ciências, de literatura, e se vissem como falavam bem, com franqueza e simplicidade! Também lá vai um do liceu. A maneira como se tratam entre si, como são todos bondosos! Até agora ainda não tinha visto pessoas semelhantes! Onde eu vivi até agora? Em que me ocupava? Só tu, Natacha, foste a única pessoa que me falou desse modo. Ah, Natacha, tu tens de conhecê-los! Kátia já os conhece. Falam dela quase com reverência e Kátia já disse a Levinka e a Borinka que, quando entrar na posse dos seus bens, sacrificará um milhão a favor da utilidade geral.

— E os administradores desse milhão com certeza que serão Levinka e Borinka e demais companhia, não? — perguntou o príncipe.

— Não senhor, não senhor; que vergonha dizer uma coisa dessas, pai! — exclamou Aliocha com veemência. — Já me queria parecer que havias de sair com uma dessas! A respeito desse milhão falámos nós durante muito tempo e exaustivamente. Em que empregá-lo? Finalmente chegámos à conclusão de que devíamos empregá-lo na civilização geral...

— Sim, eu, de facto, até agora não conhecia Catarina Fiodorovna — observou o príncipe, como se falasse consigo mesmo, sem deixar o seu sorriso zombeteiro. — Embora esperasse muitas coisas dela, isso, francamente...

— Mas que tens a dizer a isto? — interrompeu-o Aliocha. — Porque te espantas tanto? Porque sai um pouco das tuas normas? Porque ninguém até agora sacrificou um milhão e ela sacrifica-o? Que tem isso de particular? Alguém tem alguma coisa com o facto de ela não querer viver à custa dos outros? Porque viver desses milhões significa viver à custa dos outros (só agora é que eu o compreendi). Ela quer ser útil à pátria e a todos e contribui com o seu óbulo para a utilidade geral. O óbulo, já se fala nas escrituras, esse óbulo, afinal, pode transformar-se num milhão. Em que se fundamenta toda essa encarecida sensatez na qual tive tanta fé até aqui? Pai, porque me olhas dessa maneira? Dir-se-ia que tens na tua frente um palhaço ou um imbecil. Bem, mas que importa ser imbecil? Natacha, não ouviste o que Kátia disse acerca disto? «O principal não é a inteligência, mas sim aquilo que a rege... A natureza, o coração, as nobres qualidades, a cultura...» Mas neste campo é muito importante a genial expressão de Bezmiguin. Este Bezmiguin é um amigo de Levinka e de Borinka, e, aqui para nós, é uma cabeça, uma cabeça verdadeiramente genial! Ainda ontem o demonstrou durante a discussão! «O idiota que se reconhece idiota já não é idiota!» Isto é que é ver bem! E frases como esta tem-nas ele a cada passo. Diz cada verdade...

— Genial, efectivamente! — observou o príncipe.

— Tu troças de tudo. Mas o certo é que, a ti, nunca ouvi nada de semelhante, nem tão-pouco a ninguém da vossa sociedade. Entre vós, pelo contrário, tudo se achata e se pega ao chão, para que todas as estaturas e todos os narizes se ajustem infalivelmente a determinadas medidas, a determinadas regras... Como se isso fosse possível! Como se isso não fosse mil vezes mais impossível do que aquilo que nós dizemos e pensamos! E ainda nos chamam utópicos! Se tivesses ouvido as coisas que eles me disseram ontem!

— Mas que vem a ser isso que vocês dizem e pensam? Conta, Aliocha, que até agora ainda não compreendi — disse Natacha.

— De uma maneira geral trata-se de tudo quanto se refere ao progresso, ao humanismo, ao amor; tudo o que constitui os problemas do nosso tempo. Falamos da vida pública, das reformas que começam a realizar-se, do amor pela humanidade, dos factores contemporâneos; reunimo-nos e lemos. Mas o mais importante é que damos mutuamente a nossa palavra de que falaremos com absoluta sinceridade e franqueza, sem estarmos com dissimulações. Só a sinceridade, só a franqueza podem conseguir os seus fins.

Eu falei disto a Kátia e ela está de acordo em tudo com Bezmiguin. Por isso todos nós, debaixo da direcção de Bezmiguin, nos comprometemos a proceder com honradez e franqueza durante toda a vida, digam os outros o que disserem e julguem-nos como nos julgarem, a não nos envergonharmos dos nossos entusiasmos, das nossas convicções nem dos nossos erros e a caminhar sempre a direito. Se queres que te respeitem, deves começar por respeitar-te a ti próprio. Só assim, só com este respeito por ti mesmo obrigarás os outros a respeitarem-te. Era assim que dizia Bezmiguin e Kátia estava totalmente de acordo com ele. De uma maneira geral, agora, discutimos acerca das novas convicções e cada um por seu lado reflecte sobre elas, para trocarmos impressões depois, todos juntos...

— Mas que aranzel! — exclamou o príncipe inquieto. — E quem é esse Bezmiguin? Não, isso não pode ficar assim...

— O que é que não pode ficar assim? — perguntou Aliocha. — Ouve, pai: sabes porque disse eu tudo isto diante de ti? Porque quero e espero atrair-te para o nosso círculo. Já lhes dei a minha palavra. Tu sorris-te. bom, eu já sabia que havias de levar o caso para brincadeira. Mas escuta, tu és bom, nobre, hás-de compreender! Não vês que não conheces esses indivíduos, nem ouviste falar deles? Suponhamos, no entanto, que estás ao facto de tudo isso, que estás informado de tudo, que és imensamente culto; pois ainda assim seria preciso conhecê-los, conviver com eles; de maneira que não podes apreciá-los devidamente. Tu imaginas apenas que sabes. Mas não. Tu deves ir vê-los, ouvi-los, depois... dou-te a minha palavra de que serás um dos nossos! E o principal é que eu quero empregar todo o género de meios para salvar-te de te perderes nessa tua sociedade, à qual tanto te agarras, e para arrancar-te das tuas convicções.

O príncipe escutou toda essa arenga em silêncio e com um sorriso sarcástico; o seu rosto reflectia maldade. Natacha olhava-o com uma aversão evidente. E ele bem o notava, mas fazia que não dava por tal. Quando Aliocha acabou, soltou uma gargalhada. Até se repoltreou na cadeira, como se não tivesse forças para se suster. Mas aquela gargalhada, não havia dúvida, era postiça. Via-se perfeitamente que ele se ria apenas com o fim de ridicularizar e humilhar o filho. De facto, Aliocha sentiu-se muito; todo o seu semblante reflectia um desgosto imenso. Mas esperou pacientemente que acabasse o ataque de hilariedade de seu pai.

— Pai — começou com tristeza —, porque te ris assim de mim? Eu dirijo-me a ti franca e abertamente; se, em tua opinião, eu digo tolices, faz-me ver onde está a razão, mas não troces de mim. E de que te terias tu rido? Daquilo que eu tenho por sagrado e sublime? Ora vejamos. Suponhamos que estou enganado, que tudo isso é falso, erróneo; suponhamos que eu seja um imbecil, como tu algumas vezes me chamas; mas, se me engano, faço-o honrada, sinceramente; nem por isso perco a minha nobre alma. Entusiasmo-me por ideias elevadas. Suponhamos que sejam falsas, mas o seu fundamento é sagrado. Comecei por dizer-te que nem tu, nem os teus, nunca me disseram nada que me guiasse, que levasse para vós. Refuta os meus argumentos, diz-me algo de melhor, que eu te seguirei; mas não te rias de mim, pois isso fere-me profundamente.

Aliocha pronunciou estas palavras com extraordinária nobreza e com severa dignidade. Natacha olhava-o com agrado. O príncipe ouvia o filho, espantado, e a seguir mudou de tom.

— Não, não tive a menor intenção de ofender-te, meu amigo — respondeu. — Pelo contrário, até tenho pena de ti. Tu supões-te a dar na vida um passo de tal transcendência, que, perante isso, devias deixar de ser um rapaz estouvado. E este o meu pensamento. Ri-me sem querer e de maneira nenhuma tive a intenção de ofender-te.

— Mas então porque me teria parecido isso? — continuou Aliocha com amargura. — E porque será que já há muito tempo me olhas com olhos hostis, com um sorriso frio e não como um pai ao seu filho? Porque será que, se eu estivesse no teu lugar, não riria tão ofensivamente de um filho meu como tu te ris de mim? Olha, expliquemo-nos francamente, agora mesmo, de uma vez para sempre, para que não nos fique dúvida alguma. E... quero dizer toda a verdade. Quando entrei aqui, pareceu-me que se produziu alguma celeuma; não esperava encontrar-vos todos reunidos. Tenho razão ou não? Ora, se é assim, não seria melhor que cada qual manifestasse os seus sentimentos? Quantos males se podem evitar com a franqueza!

— Fala, fala, Aliocha! — disse o príncipe. — Acho muito bem a tua proposta. Parece-me que era por aí que se devia ter começado — acrescentou, olhando para Natacha.

— Não te aborreças comigo por causa da minha franqueza — começou Aliocha. — És tu mesmo quem a deseja, tu mesmo quem a reclama. Escuta. Tu consentiste no meu casamento com Natacha, proporcionaste-me essa felicidade e, para isso, venceste-te a ti mesmo. És generoso e todos nós apreciamos a tua nobre conduta. Mas porque é que tu, agora, estás continuamente, e com uma certa alegria, a dar-me a entender que eu ainda sou uma criança, que não estou de maneira alguma apto para ser um marido e, como se isto ainda fosse pouco, parece que queres ridicularizar-me, humilhar-me e até desprestigiar-me aos olhos de Natacha? Ficas muito contente sempre que podes ridicularizar-me; não foi só agora que o notei, mas já há muito tempo. Dir-se-ia que tens um interesse especial em nos convenceres de que o nosso casamento seria ridículo, estúpido, e que não fazemos um par conveniente. Verdadeiramente, parece que não acreditas naquilo que dispuseste, como se considerasses tudo isto uma troça, como uma divertida situação de vaudevilles…

Afirmo-te de que não concluí isto apenas das tuas palavras de hoje- Também naquela noite, na de terça-feira passada, uando regressei na tua companhia, depois de termos saído daqui, te ouvi certas expressões estranhas que me assombraram e até me irritaram. E na quarta-feira, à partida, fizeste também algumas alusões à nossa situação actual e disseste a respeito dela... Não, não foi nada de ofensivo, pelo contrário, mas qualquer coisa que eu desejaria não ter ouvido de ti qualquer coisa de demasiado leviano, desamorável e menos respeitoso para com ela... Seria difícil defini-lo; mas o tom não deixa dúvidas, o coração também ouve. Diz-me que estou enganado. Dissuade-me, encoraja-me e... e a ela também, porque também a ela fizeste sofrer. Adivinhei-o ao primeiro olhar, assim que entrei...

Aliocha disse tudo isto com ardor e dignidade. Natacha ouvia-o com certa solenidade e muito comovida, de rosto afogueado, e murmurou por duas vezes enquanto falava: «Sim, é assim mesmo, assim mesmo!» O príncipe ficou mal-humorado.

— Meu amigo — respondeu-lhe —, eu, é claro, não posso lembrar-me de tudo quanto tenho dito; mas é muito estranho que interpretes as minhas palavras dessa maneira. Estou disposto a convencer-te do teu erro por todos os meios ao meu alcance. Que eu me risse há pouco é muito compreensível. Só te digo que, com o meu riso, procurava dissimular a minha amargura. Quando penso, agora, que não tardarás a casar-te, isso afigura-se-me perfeitamente impossível, insensato, e, perdoa-me, ridículo até. Tu censuras-me por me rir, mas afirmo-te que a culpa é toda tua. Também me acuso a mim mesmo; pode ser que eu próprio me tenha preocupado pouco contigo nestes últimos tempos e por isso, até esta noite, não esteja ainda ao facto daquilo para que poderás ter utilidade. Mas agora começo já a tremer quando penso no teu futuro com Natacha Nikolaievna; procedi levianamente; vejo agora que são muito diferentes um do outro. O amor acabará, mas a desigualdade fica. Não quero já falar do teu destino, mas se tens ao menos boas intenções pensa em que te perdes a ti e perdes ao mesmo tempo Natacha Nikolaievna, com toda a certeza. Estiveste aqui a falar do amor pela humanidade e da nobreza das convicções desses excelentes indivíduos que acabas de conhecer, durante uma hora, mas pergunta a Ivan Petrovitch o que lhe dizia eu há pouco, quando subíamos até este 4.º andar, por esta repugnante escada, e parámos depois à porta agradecendo a Deus por termos chegado sãos e salvos. Sabes de que foi que, involuntariamente, eu me lembrei? De que, apesar do amor que tens a Natacha Nikolaievna, possas suportar que ela viva em semelhante tugúrio. Como não percebes que, se não tens meios, se não estás em condições de cumprir os teus deveres, também não tens o direito de te casar nem de arcar com nenhuma responsabilidade? O amor, sozinho, de nada vale; o amor demonstra-se por actos, mas tu pensas deste modo: «Ainda que tenhas de sofrer a meu lado, hás-de viver comigo.» Mas repara que isso não é humano, não é digno. Falar do amor em geral, interessar-se pelas questões que respeitam a toda a humanidade, e ao mesmo tempo cometer uma má acção contra o amor, sem dar sequer por tal... Isso é inconcebível! Não me interrompa, Natacha Nikolaievna, deixe-me terminar; eu não posso suportar isso e é necessário que desabafe. Dizias tu, Aliocha, que nos dias antecedentes andaste cheio de entusiasmo por tudo quanto é digno, belo e honesto, e censuraste-me porque na nossa sociedade não existem tais sentimentos e apenas existe o árido bom senso. Mas vê: entusiasmares-te tanto com o que é nobre e sublime e, depois do que aconteceu na terça-feira passada, abandonares durante quatro dias aquela que, segundo todas as aparências, devias apreciar mais do que tudo no mundo... Falaste também da tua discussão com Catarina Fiodorovna a respeito de que Natacha Nikolaievna gosta de ti a tal ponto que te perdoa todos os desvairos. Mas que direito tinhas tu de contar com esse perdão e de jurar sobre ele? Mas nem uma vez ao menos te detiveste a pensar quantas dores, quantas ideias amargas, quantas dúvidas e suspeitas causaste nestes dias a Natacha Nikolaievna? Então, pelo facto de teres andado assim entusiasmado com essas ideias novas, tinhas o direito de desprezar o mais importante dos deveres? Desculpa-me, por faltar à minha palavra, mas o assunto que agora nos preocupa é mais importante que essa palavra; a senhora mesma há-de compreender... Sabes, Aliocha, que eu vim encontrar Natacha Nikolaievna tão magoada que se compreende todo o sofrimento que lhe causaste nestes quatro dias, que deviam ter sido afinal os melhores dias da tua vida? Tal conduta, de uma parte, e... palavras, palavras e palavras da outra... Não tenho razão? E podes tu, depois disso, vires acusar-me a mim, sendo tu culpado?

O príncipe acabou de falar. Deixara-se arrastar pela sua eloquência e não podia ocultar-nos a sua vitória. Quando Aliocha ouviu falar do sofrimento de Natacha olhou para ela com um olhar desgostoso; mas Natacha tomara já uma resolução:

— Basta, Aliocha, não te preocupes — disse — pelo facto de que outros te deitem culpas. Está quieto e ouve o que eu vou dizer ao teu pai. Chegou o momento!

— Explique-se, Natacha Nikolaievna — insistiu o príncipe. — Peço-lhe respeitosamente. Já há duas horas que estou a ouvir falar deste enigma. Isso torna-se insuportável e confesso-lhe que não esperava tal coisa desta entrevista.

— Pode ser que seja assim, porque o senhor pensava deslumbrar-nos com palavras para que não pudéssemos penetrar as suas intenções secretas. Mas para quê explicar-lhe alguma coisa? O senhor sabe tudo e compreende tudo. Aliocha tem razão. O principal desejo do senhor... consiste em separar-nos. O senhor sabia já tudo de antemão, quase de cor, tudo quanto ia acontecer aqui depois de terça-feira e até contava com isso. Eu já lhe disse que o senhor não nos tomava a sério, nem a mim nem a esse casamento que planeou. O senhor estava a brincar comigo, fazia o seu jogo e perseguia os seus fins. O seu jogo saiu certo. Aliocha tinha razão quando lhe censurou o facto de considerar tudo isto como um vaudeville. O senhor, pelo contrário, devia estar contente e não censurar Aliocha porque ele, que não sabe de nada, fizesse tudo quanto dele esperava, tudo e talvez ainda mais.

Eu estava atónito. Esperava que, nessa noite, acabasse por dar-se ali alguma catástrofe. Mas a franqueza decisiva de Natacha e o tom claramente depreciativo das suas palavras surpreenderam-me extraordinariamente. «Não há dúvida ela sabe de facto qualquer coisa», pensava eu, e, sem rodeios, decidiu-se a declará-lo. É possível até que esperasse o príncipe com impaciência para dizer-lhe tudo na cara. Q príncipe empalideceu levemente. O rosto de Aliocha exprimia um medo ingénuo e uma expectativa ansiosa.

— Lembre-se daquilo de que me culpava há um momento — exclamou o príncipe — e medite um pouco nas suas palavras. Não as compreendo.

— Ah! De maneira que não quer compreender em duas palavras — disse Natacha — que também ele, também Aliocha, o compreendia, como eu, apesar de não termos trocado impressões, nem sequer nos termos visto um ao outro? A ele também lhe parecia que o senhor fazia comigo um jogo indigno, ofensivo, mas ele gosta do senhor e tem fé em si como num deus. O senhor não achou necessário usar com ele de mais cautela, de mais astúcia; contava que ele não o percebesse. Mas ele tem um coração sensível, terno, impressionável, e as suas palavras, o seu tom, como disse, chegaram-lhe ao coração...

— Nada, não compreendo nada! — repetiu o príncipe dirigindo-se a mim com uma expressão do maior assombro, como se me tomasse por testemunha. Estava irritado e excitava-se. — A senhora é desconfiada e está alarmada — continuou, dirigindo-se a Natacha. — Numa palavra, tem ciúmes de Catarina Fiodorovna e por isso não se importa de acusar toda a gente e a mim em primeiro lugar, e... e deixe-me que lhe diga tudo: poder-se-ia formar uma opinião estranha acerca do seu carácter... Eu não estou costumado a estas cenas; não ficaria aqui nem mais um instante se não fosse por causa do meu filho... Mas não perdi ainda a esperança de ouvir as suas explicações.

— De maneira que o senhor teima em não querer compreender as coisas em duas palavras, quando sabe já tudo de cor e salteado? Quer que lhe diga tudo por claro?

É isso mesmo que eu desejo.

— Bem, então, ouça — exclamou Natacha de olhos chamejantes de ira. — vou dizer-lhe tudo, tudo...

 

Levantou-se e começou a falar, sem reparar sequer que se pusera de pé. O príncipe escutava-a, escutava-a e levantou-se também do seu lugar. Essa cena teve um aspecto muito solene.

— Lembre-se das suas próprias palavras de terça-feira passada — começou Natacha. — O senhor disse: «Eu preciso de dinheiro, de caminhos desimpedidos, de uma posição elevada na sociedade...» Lembra-se?

— Lembro.

— Bem; pois, para isso, para conseguir todos esses triunfos, que via já escaparem-se-lhe das mãos, é que o senhor veio aqui na terça-feira e planeou este casamento, pensando que esta farsa o ajudaria a recuperar aquilo que lhe fugia.

— Natacha — exclamei eu —, vê aquilo que dizes!

— Farsa! Cálculo! — repetia o príncipe com expressão de dignidade ultrajada.

Aliocha estava acabrunhado e desgostoso e olhava sem perceber quase nada.

— Sim, sim, não me interrompa; eu jurei dizer-lhe tudo — continuou Natacha excitada. — Senão, julgue o senhor mesmo. Aliocha não tinha feito caso do que o senhor lhe dizia. Havia já ano e meio que o senhor se esforçava em vão porque ele me deixasse. Ele não se rendia. E de repente houve um momento em que isso se tornou para si urgente. Deixá-lo escapar a ele e à noiva, ao dinheiro, ao principal... ao dinheiro, nada mais, nada menos do que três milhões de dote, que lhe fugiam das mãos. Restava apenas um recurso: que Aliocha criasse amizade por aquela que lhe designava por noiva; o senhor disse para consigo: «Quando chegar a ganhar-lhe amizade, pode ser que deixe a outra...»

— Natacha, Natacha! — exclamou Aliocha desgostoso

— Que dizes tu?

— Foi isso o que o senhor fez — continuou ela sem se deter perante o grito de Aliocha — mas... e lá temos outra vez a mesma história. Tudo podia arranjar-se, desde que ele lhe fizesse uma visita. Havia só uma coisa em que tinha esperança: o senhor, como homem experiente e esperto, talvez tivesse já observado que Aliocha costumava cansar-se dos seus anteriores afectos. Também não podia ter deixado de reparar que ele começava a prestar-me menos atenção, a aborrecer-se a meu lado, que deixava passar cinco dias sem me ver. «Talvez acabe por cansar-se de todo e por abandoná-la», quando, de repente, a decisão de Aliocha, na terça-feira passada, o surpreendeu profundamente. Que fazer?

— Dê-me licença — exclamou o príncipe. — Nada disso; esse facto...

— Agora falo eu — atalhou Natacha com altivez —, o senhor perguntava a si próprio nessa noite: «Que hei-de fazer agora?», e decidiu: «Dar-lhe o meu consentimento para que se case com ela, não a sério, mas sim, por boca, só para o calar. A data do casamento pode ser adiada até onde for necessário — pensou o senhor —, e entretanto terá já surgido um novo amor.» O senhor já o conhecia. Era precisamente nesse novo amor nascente que o senhor se fundava.

— Romances, romances — exclamou o príncipe em voz baixa, como para si. — Solidão, desvario e leitura de romances!

— Sim, nesse novo amor fundava o senhor tudo — repetiu Natacha, sem lhe dar ouvidos e sem prestar atenção às suas palavras, cheia de ardor febril e cada vez mais exaltada.

— E quantas probabilidades para esse novo amor! Já tinha começado, quando Aliocha nem sequer conhecia todas as perfeições dessa rapariga! No mesmo instante em que naquela noite lhe declarou que a não podia amar, porque há muito amava outra... essa jovem, logo lhe mostrou tanta nobreza, tanta simpatia, a ele e à sua rival, logo o desculpou tão amigavelmente que ele, apesar de reconhecer a sua beleza, viu que nunca suspeitara, até àquele instante, em como ela era formosa. Dali veio ver-me — só para me falar dela. Que impressão ela lhe causara! Sim, no dia seguinte teve de reconhecer a necessidade imprescindível de ver de novo essa criatura tão bela, nem que fosse apenas por gratidão. E porque não ir vê-la? A outra, a antiga, essa já não sofre. O seu casamento é coisa decidida: irá pertencer-lhe toda a vida, ao passo que a esta apenas poderá dedicar uns breves momentos. Que ingrata seria’Natacha se sentisse ciúmes desses momentos. Veja, como, insensivelmente, foi tirando a essa Natacha, em vez de um minuto, um, dois, três dias! E durante esse tempo a jovem vai-se-lhe revelando sob um aspecto novo, totalmente inesperado... é de condição tão nobre... é uma criança tão entusiasta e ingénua... e liga tão bem com o seu feitio... Juram amizade, fraternidade. E não querem separar-se toda a vida. Em cinco ou seis horas de conversa, toda a alma dele se abre a novas emoções e entrega-lhe o seu coração. «Chegou, enfim, o momento», pensa o senhor. Está a fazer comparações entre o antigo amor e o novo, com as suas recentes sensações: ali tudo é conhecido, habitual, demasiado sério; exigências, ciúmes, enfados, lágrimas... e procuram agradar, brincam com ele. Fazem-no, não como a um igual, mas como a uma criança... mas... principalmente, tudo é demasiado conhecido, tudo vem já de há muito tempo...

Afogavam-na as lágrimas e os soluços ardentes, mas Natacha fez-se forte por um momento.

— E depois? Depois apenas uma questão de tempo! O casamento com Natacha já se não realizará imediatamente; há muito tempo e tudo pode mudar. E aqui poderiam intervir também as suas palavras, as suas explicações, os seus raciocínios. Poderia também caluniar-se essa antipática Natacha, apresentá-la sob um aspecto pouco favorável e... em que irá parar tudo isto... não se sabe! Mas a vitória será sua! Aliocha não me culpes, meu amigo. Não digas que não compreendo o teu amor e que tenho pouco apreço por ele. Olha sei que ainda me amas e que, neste momento, é muito possível que não percebas as minhas queixas. Sei que fiz mal e que tudo isto agora o demonstra. Mas que hei-de fazer se apesar de ver tudo isto, te amo cada vez mais!... Apaixonadamente... Até à loucura!

Cobriu o rosto com as mãos, caiu na cadeira e rompeu em soluços como uma criança. Aliocha deu um grito e lançou-se para ela. Nunca podia ver sem lágrimas as suas lágrimas.

Os seus soluços prestaram um grande serviço ao príncipe. Todo o arrebatamento de Natacha no decorrer daquela larga explicação, toda a dureza dos seus ataques (ante os quais, mais não fosse senão por decoro, não tinha outro remédio senão mostrar-se ofendido), tudo isso podia agora atribuir-se a um absurdo ataque de ciúmes, a amor ressentido, a doença... Seria até decente mostrar simpatia...

— Tranquilize-se, acalme-se, Natacha Nikolaievna’ — consolou-a o príncipe. — Tudo isso é efeito da fantasia, de desvario, da solidão... A que ponto a senhora se deixou levar pela sua desvairada conduta... Veja que se trata apenas de perturbação da sua parte. O principal facto que recorda, a cena de terça-feira, deveria mostrar-lhe o infinito afecto dele por si, e em vez disso põe-se a imaginar...

— Oh! Não me fale, não continue a atormentar-me — cortou Natacha chorando amargamente. — Há muito que o coração me adivinha tudo isto! Pensa, por acaso, que não noto que já se desvaneceu o seu antigo amor? Aqui neste quarto, sozinha... Quando ele me deixava, esquecia-me. Eu já vivia antecipadamente tudo isto... pressentia tudo. Mas que havia de fazer? Não te culpo a ti, Aliocha. Porque é que o senhor me enganava? Pensava acaso que eu não havia de fazer tudo para me enganar a mim mesma?... Oh! Quantas vezes, quantas vezes! Não ouvia eu a voz dele em cada ruído? Não aprendera a ler no seu rosto, no seu olhar? Tudo acabou. Tudo está enterrado... Ai! Como sou desgraçada.

Aliocha chorava diante dela, de joelhos.

— Sim, sim, sou eu o culpado de tudo. Tudo aconteceu por minha causa — repetia entre soluços.

— Não, não te culpes, Aliocha... São coisas dos outros, dos nossos inimigos... São eles... eles!

— Mas permita-me finalmente — começou o príncipe com certa impaciência — com que fundamento me atribui a senhora todos esses... crimes? Repare que tudo isso são suposições suas, sem a mínima prova...

— Provas! — esclamou Natacha levantando-se rapidamente. — Provas para si, grande traidor! O senhor não podia proceder de outro modo ao vir aqui! O senhor precisava de tranquilizar o seu filho e adormecer os seus remorsos para que ele se pudesse entregar por completo a Kátia, com maior liberdade e mais tranquilamente! De outro modo, ele havia de lembrar-se de mim, não lhe obedeceria, e o senhor estava farto de esperar. Ou não será assim?

— Confesso — respondeu o príncipe com um sorriso sarcástico — que, se quisesse enganá-la, decerto havia de calcular as coisas desse modo. A senhora é muito inteligente, mas veja, é preciso demonstrar tudo isso e só então poderá ofender as pessoas com semelhantes recriminações...

— Demonstrar! Mas... e toda a sua conduta anterior, quando o afastou de mim? Quem ensina seu filho a desprezar deveres como estes e a brincar com eles, por vantagens materiais... O que faz é prevertê-lo! Que dizia o senhor, há pouco, desta escada e deste quarto? Não lhe retirou a pensão que antes lhe dava, com o fim de nos obrigar assim a separarmo-nos pela miséria e pela fome? O senhor é que tem a culpa deste quarto e desta escada, e vem agora com censuras, grande pérfido! E de onde tirou, naquela noite, tanto ardor, convicção tão insólita e tão pouco naturais em si? E porque necessitava de mim? Eu andava de trás para diante no meu quarto, durante esses quatro dias; pensava em tudo, ponderava tudo, cada palavra sua, cada expressão do seu rosto, e convencia-me de que tudo fora algo de fictício, uma farsa, uma comédia ofensiva, ruim e indigna. Já vê o senhor que o conheço, que o conheço há muito. Cada vez que Aliocha para aqui vinha, depois de ter ido a sua casa, eu adivinhava no seu semblante tudo o que o senhor lhe tinha dito e sugerido. Compreendia toda a sua influência sobre ele. Não o senhor não chegou a enganar-me. Talvez pensasse outra coisa... Talvez eu não tenha dito o mais importante, Mas é o mesmo. O senhor queria enganar-me e isso é o principal... e isso era preciso dizer-lho cara a cara!

— Mas como! São essas as suas provas? Veja se compreende, minha senhora: com esse passo (como chama à minha proposta de terça-feira) eu comprometia-me bastante. Teria sido muita leviandade da minha parte.

— Em que se comprometia o senhor? Que significava a seus olhos o facto de me enganar? Que importância teria para o senhor ofender uma rapariga qualquer, uma criança que, além do mais, é uma pobre desgraçada, desprezada pelo pai, indefesa, uma imoral que se manchou voluntariamente? Valerá a pena mostrar consideração por ela, se essa farsa trouxer algum proveito, por pequeno que seja?

— Mas em que situação se coloca a si própria, Natacha Nikolaievna. Pense! A senhora insiste em que houve da minha parte uma grave ofensa para si. Mas, se se trata de uma ofensa tão grande, tão humilhante, não percebo como é possível expô-la, e menos ainda como se pode insistir nela. É necessário estar acostumada a tudo para admitir essa ofensa tão à-vontade, desculpe-me que o diga. Eu censuro-a, na verdade, mas porque vira o meu filho contra mim. Se ele ainda não se revoltou contra mim por sua culpa, o seu coração está contra...

— Não, pai, não! — exclamou Aliocha. — Ainda que me revolte contra ti, julgo que não podes ofender e não posso crer que fosse possível ofenderes a tal ponto.

— Ouviu? — exclamou o príncipe.

— Natacha, tenho a culpa de tudo, não o culpes a ele. Isso é um grande pecado.

— Ouviste, Vânia? Ele já está contra mim! — exclamou Natacha.

—- Basta! — disse o príncipe. — É necessário acabar com esta cena vergonhosa. Este absurdo e furioso ataque de ciúmes, fora de todos os limites, mostra-me o seu carácter sob um aspecto completamente novo para mim. Eu estava enganado. Precipitei-me, sim, precipitei-me. A senhora nem sequer vê que me ofendeu; isso, a si, não lhe importa. Precipitei-me, procedi levianamente. Claro que a minha palavra deve ser sagrada, mas... sou pai e desejo a felicidade do meu filho...

— O senhor desobriga-se da sua palavra! — exclamou Natacha fora de si. — O senhor alegra-se com esta bela oportunidade! Pois saiba que eu própria, há uns dois dias, decidi desobrigá-lo a ele dessa palavra. Mas agora declaro-lhe diante de todos: sou eu que me recuso!

— Quer dizer que a senhora procura talvez despertar nele todas as antigas inquietações, o sentimento do dever, «a noção das suas obrigações», como há pouco dizia, para assim se assegurar do seu apego, como antes. Isso está mais de acordo com a sua teoria (e eu digo o mesmo), mas basta; o tempo decidirá. Aguardarei momentos de mais calma para ter uma explicação consigo. Espero que não vamos cortar definitivamente as nossas relações. Espero também que a senhora aprenda a conhecer-me melhor. Eu também queria comunicar-lhe hoje os meus projectos acerca dos seus pais, projectos pelos quais poderia ver... Mas basta! Ivan Petrovitch — acrescentou aproximando-se de mim —, agora mais do que nunca ser-me-á grato conhecermo-nos com mais familiaridade, sem falar já de que isto era um antigo desejo meu. Espero que me entenderá. Dentro de dias passarei por sua casa, permite-mo?

Fiz-lhe um cumprimento, Parecia-me que já não podia evitar. Ele apertou-me a mão, fez, em silêncio, uma reverência a Natacha, e saiu com ar de dignidade ofendida.

 

Durante alguns minutos nenhum de nós pronunciou uma palavra. Natacha permanecia triste, pensativa e deprimida. Toda a sua energia a abandonara. Olhava abstracta sem nada ver, como que ausente, e tinha entre as suas as mãos de Aliocha. Este, imóvel, chorava a sua dor, olhando às vezes para ela com curiosidade discreta.

Finalmente, começou a consolá-la, com uma certa timidez, pediu-lhe que não se aborrecesse e culpou-se de tudo. Era evidente que queria desculpar o pai e que estava nisto a sua maior preocupação. Por mais de uma vez começou a falar dele; mas não se atreveu a falar com clareza, temendo causar novo aborrecimento a Natacha. Jurou-lhe amor eterno, inalterável, e desculpou-se com veemência pelas suas relações com Kátia. Repetia constantemente que só queria a Kátia como a uma irmã, como a uma boa e terna irmã a quem não é possível abandonar — o que seria uma grosseria e uma crueldade da sua parte. E continuava a assegurar que, quando Natacha a conhecesse, imediatamente ambas se fariam amigas e que depois nunca se haviam de separar, e então acabariam todas as desavenças. Esse pensamento era-lhe especialmente grato. O pobrezinho não mentia. Não compreendia o alarme de Natacha e, de modo geral, também não compreendia o que ela há pouco dissera a seu pai. Só compreendia que ambos tinham discutido, e isto pesava como uma pedra sobre o seu coração.

— Censuras a minha conduta para com o teu pai? — perguntou-lhe Natacha.

— Mas... posso eu censurar alguém — respondeu ele com amargura — quando sou eu quem tem a culpa de tudo? Fui eu quem te levou a esse extremo de cólera, e na tua cólera chegaste a culpá-lo, porque querias justificar-me. Tu procuras sempre desculpar-me e eu não o mereço. Era preciso encontrar um culpado, e tu pensaste que era ele. Mas ele, verdade, verdade, não tem culpa nenhuma — exclamou Aliocha anelante. — E foi para isto que ele veio! Por certo que não esperava!...

Mas, ao ver que Natacha o olhava com tristeza e inflexibilidade, perdeu as forças.

Bem! Não direi mais nada! Perdoa-me! — exclamou.

Sou eu o culpado de tudo.

— Sim, Aliocha — continuou ela com esforço. — Agora ele interpôs-se entre nós e estragou a nossa paz para toda a vida. Tu sempre tiveste mais confiança em mim que em ninguém, mas agora ele insinuou no teu coração uma suspeita contra mim: a incredulidade. Tu acusas-me. Ele tirou-me metade do teu coração. Há uma sombra entre nós.

— Não fales assim, Natacha! Porque dizes tu que «há uma sombra entre nós?» — aquela expressão impressionou-o mal.

— com falsa bondade, com generosidade fingida, conseguiu atrair-te — prosseguiu Natacha —, e de hoje em diante cada vez mais te indisporá contra mim.

— Juro-te que não há-de ser assim! — exclamou Aliocha, embora sem grande ardor. — Ele estava irritado ao dizer que «nós nos tínhamos precipitado»... Verás, amanhã ou depois, como ele se justifica. E se estivesse tão aborrecido que se opusesse ao nosso casamento, então juro-te que lhe desobedeceria... Não me falta resolução para isso. E olha, sabes quem nos vai ajudar? — exclamou, entusiasmado com a ideia. — Pois vai ser Kátia! Vais ver como ela é boa! Vais ver se ela pretende ser tua rival e separar-nos... Que injusta foste há pouco ao dizer que eu sou dos que podem esquecer o seu amor no dia seguinte ao casamento! Quanto me custou ouvir-to! Não, eu não sou desses, e se vou com frequência ver Kátia...

— Basta, Aliocha, vai vê-la quando quiseres. Eu não me referia a isso: não posso exigir do teu coração mais do que ele pode dar-me...

Mavra entrou.

— Então? Trago o chá ou não? com todas estas zangas, o samovar já está a ferver há duas horas! E são onze.

Falava com mau modo. Via-se claramente que estava fora de si e aborrecida com Natacha. A verdade é que, desde terça-feira, estivera sempre tão entusiasmada com a ideia de que a sua menina (a quem tinha grande afecto) ia casar-se, que se apressara já a divulgar a notícia por toda a casa e pela vizinhança, na loja e na porteira. Estava muito presumida e contava com solenidade que o príncipe — uma pessoa de grande importância, extraordinariamente rico — tinha ido em pessoa pedir a mão da sua menina, e que ela, Mavra ouvira tudo com os seus próprios ouvidos. E agora tudo estava perdido. O príncipe saíra dali que nem uma fúria e os outros já não queriam chá. Claro que a culpada era apenas a sua menina: Mavra ouvira como ela tratara o príncipe sem nenhum respeito.

— Bem... traz o chá — respondeu Natacha.

— E trago também os aperitivos?

— Pois sim, trá-los também. — E Natacha sorriu.

— Tinha preparado tudo — continuava Mavra. — Desde ontem que não descanso. Fui buscar vinho ao Nevski, mas... — e saiu, aborrecida, batendo com a porta.

Natacha corou e olhou-me de modo algo estranho. Depois serviu-me o chá e uma refeição ligeira: peixe, duas garrafitas de um vinho excelente de Elisseiev (l). «Para quem teria preparado tudo isto?» — pensei eu.

— Olha, Vânia, vê como eu sou — disse Natacha sentando-se à mesa e olhando-me algo confusa. — O coração adivinhava-me como tudo isto ia acabar e, no entanto, também pensava que talvez não acabasse deste modo. Aliocha vinha, fazíamos as pazes... verificava-se que todas as minhas suspeitas eram injustas, eu convencia-me disso e... pronto, mandei preparar uma merenda. «Que importa? — pensava. — Conversaremos durante muito tempo...»

Pobre Natacha! Como corou ao dizer isto! Aliocha entusiasmou-se:

— Pois já vês, Natacha! Tu própria não acreditavas nos

 

(l) Conhecido estabelecimento de víveres. (N. do T.).

 

teus pensamentos; há tempo que já não tinhas fé nas tuas suspeitas. Não, é preciso reparar tudo isto. Eu sou o culpado, sou o causador de tudo, e tenho de arranjar as coisas. Natacha, deixa-me ir falar com o meu pai. Preciso de vê-lo, está ofendido, pesaroso. É preciso. É preciso consolá-lo. Explicar-lhe-ei tudo, falar-lhe-ei unicamente em meu nome. não te misturarei em nada. Hei-de arranjar tudo... Não te aborreças comigo por ter tanta pressa de o ir ver, deixando-te a ti. Não se trata disso; é que ele faz-me pena. Depressa se há-de justificar para contigo, verás... Amanhã, logo pela manhã, ter-me-ás aqui, passarei todo o dia contigo e não irei ver Kátia.

Natacha não o reteve, mas ela própria o aconselhou a ir. Receava horrivelmente que Aliocha viesse a passar consigo um dia inteiro «à força» e que se aborrecesse da sua companhia. Só lhe pediu que a não mencionasse e esforçou-se por sorrir, com a maior alegria possível, ao despedir-se dele. Já estava prestes a sair quando, de repente, se aproximou dela, segurou-lhe as mãos e sentou-se a seu lado. Comtemplou-a com ternura inexprimível.

— Natacha, minha amiga, meu anjo, não te aborreças comigo, não briguemos. Dá-me a tua palavra de que sempre hás-de acreditar em mim, como eu acredito em ti. Ouve, meu anjo, o que vou contar-te. Brigámos uma vez, já não me lembro porquê. A culpa foi minha. Estivemos algum tempo sem nos ver. Eu não queria pedir perdão em primeiro lugar, mas isso causava-me uma tristeza horrível. Andava de trás para diante, pela cidade, espreitava por todos os cantos, ia ver os meus amigos, e tinha o coração tão triste, tão triste... E então pensei: «E se ela, por acaso, adoecer e morrer?» E ao pensá-lo senti uma tristeza tão grande, como se na verdade te tivesse perdido para sempre. Os meus pensamentos eram cada vez mais tristes, mais estranhos. E foi então que, pouco a pouco, comecei a imaginar que ia à tua sepultura e caía sem sentidos sobre ela, a ela me abraçava e morria de dor. Pensei também que me punha a beijar a tua sepultura e que te pedia que saísses dela, ao menos por um momento... e pedia a Deus um milagre: que, ainda que fosse só por breves momentos te ressuscitasse. Pensava como te havia de abraçar, como te beijaria... E morreria ali mesmo, completamente feliz, por ter podido abraçar-te como dantes, embora apenas durante um breve instante. Imaginando tudo isto, disse para comigo, de repente: «vou pedir a Deus que ma entregue por um instante e vou dizer-lhe: há seis meses que vivemos juntos e, durante eles, quantos dias não estivemos sem nos falar, zangados dias inteiros, desperdiçando a nossa felicidade? Mas agora, por um minuto, vou levantar-te da tua sepultura e estou disposto a pagar este minuto com a minha vida...» Ao pensar tudo isto, não pude conter-me, corri para ti, corri para aqui, e tu já estavas à minha espera. Quando nos abraçámos, depois daquela zanga, lembro-me de que te apertei muito contra o meu peito, como se te quisesse sufocar. Natacha, não voltemos a zangar-nos — nunca mais! Quanto me custa tudo isto! E é possível, Senhor, pensar que eu sou capaz de te abandonar? Natacha chorava. Abraçaram-se com força um ao outro e Aliocha mais uma vez lhe jurou que nunca a abandonaria. Depois saiu a correr, à procura do pai. Estava plenamente convencido de que tudo se arranjaria, de que tudo havia de acabar bem.

— Tudo acabou! Tudo se desfez! — disse Natacha, apertando-me convulsivamente a mão. — Ainda me ama e nunca deixará de me querer, mas também ama Kátia e, dentro em pouco, há-de amá-la mais do que a mim. Mas o malvado do pai não se deixará dormir, e então...

— Natacha! Eu também penso que o príncipe não se conduz honestamente, mas...

— Tu não acreditas em tudo o que eu lhe disse! Vi-o na tua cara. Mas, por Deus, tu mesmo estás a ver: tinha ou não tinha razão? E, todavia, olha que eu falava em termos gerais. Deus sabe o que ele estará a congeminar, é um homem terrível. Passei aqui estes quatro dias, aqui neste quarto, e adivinhei tudo. Ele precisava de aliviar, distrair o coração de Aliocha da sua dor, que o impedia de viver, pela responsabilidade do amor que me tinha. E pensou nesse casamento, ao mesmo tempo com intenção de se interpor entre nós com a sua influência e de deslumbrar Aliocha com a sua nobreza e generosidade. É esta a verdade, a verdade, Vânia. Aliocha tem precisamente esse carácter. Inquietava-se pela minha sorte: o seu sobressalto era por mim. Ele havia de dizer: «Agora ela já é minha mulher, minha maeternum», e involuntariamente iria prestando mais atenção a Kátia. O príncipe» sem dúvida, estudaria essa Kátia e adivinharia que era quem convinha a Aliocha, quem poderia distraí-lo melhor do que eu. Oh! Vânia, em ti se resumem agora todas as minhas esperanças. Ele, não sei porquê, quer relacionar-se contigo, fazer amizade. Não o afastes, por amor de Deus, procura ir quanto antes por casa da condessa. Trava relações com essa Kátia, olha-a bem e diz-me como é. Preciso que a observes bem. Ninguém me entende como tu, e tu vês como isso me é necessário. Observa também até que ponto se fizeram amigos, o que há entre eles, de que falam. Kátia, Kátia, sobretudo, olha-a bem. Demonstra-me também agora, querido, meu querido Vânia, demonstra-me também agora a tua amizade. Em ti, só em ti, se resume agora a minha esperança...

Quando voltei a casa era uma da noite. Nelly veio abrir-me a porta com uma carita ensonada. Sorria e olhava-me, carinhosa. A pobrezinha estava muito triste, porque se deixara adormecer. Empenhava-se sempre em esperar-me. Disse que tinha ido procurar-me um indivíduo e que, depois de esperar um pouco, acabara por me deixar um bilhete em cima da mesa. O bilhete era de Masloboiev. Convidava-me a ir a sua casa, no dia seguinte, à uma hora. Eu quis interrogar Nelly, mas deixei isso para o outro dia, insistindo para que se fosse deitar; a pobrezinha já estava cansada de me esperar e apenas se deixara adormecer uma meia hora antes da minha chegada.

 

No outro dia Nelly contou-me coisas muito estranhas acerca do visitante da véspera. Além do mais, já era estranho que tivesse ocorrido a Masloboiev ir ver-me naquela noite. Ele, certamente, sabia que...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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