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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


ILUSÕES HONESTAS / Nora Roberts
ILUSÕES HONESTAS / Nora Roberts

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

ILUSÕES HONESTAS

Primeira Parte

 

UMA MULHER DESAPARECE. Era um truque antigo, com um toque moderno e que nunca falhava em extasiar a plateia. O público esplêndido no Radio City estava tão ávido em ser ludibriado quanto um grupo de caipiras de queixo caído numa exposição de cães e pôneis.

No momento em que subia no pedestal de vidro, Roxanne já conseguia sentir a expectativa deles — a borda prateada do suporte era uma fusão de esperança e dúvida amarrada com mistério. Todos se inclinavam para a frente em seus assentos, desde o presidente até um peão.

A magia tornava todos iguais.

Max dissera isso, relembrou ela. Muitas e muitas vezes.

Em meio à névoa espiralada e ao brilho da luz, o pedestal se elevou devagar, girando de forma majestosa ao som de "Rhapsody in Blue", de Gershwin. O movimento suave de 360 graus mostrou ao público todos os lados do pedestal transparente e da mulher esbelta sobre ele — e aquilo os distraiu do verdadeiro truque.

Aprendera que a apresentação costumava ser a tênue diferença entre um charlatão e um artista.

Em harmonia com o tema musical, Roxanne usava um vestido cintilante azul-escuro que se moldava às curvas longilíneas e flexíveis de seu corpo — tão justo que ninguém que a observasse acreditaria que havia qualquer coisa por baixo da seda adornada de lantejoulas, a não ser a própria pele. Nos cabelos, uma cascata de cachos cor de fogo que chegava à cintura, brilhavam milhares de minúsculas estrelas iridescentes.

Fogo e gelo. Muitos homens já haviam se perguntado como uma mulher poderia ser as duas coisas ao mesmo tempo.

Como se estivesse adormecida ou em transe, seus olhos se fecharam — ou assim parecia — e o rosto elegante estava voltado para o teto estrelado do palco.

Enquanto subia, balançava os braços no ritmo da música. Em seguida, elevou-os acima da cabeça em uma pose teatral que embelezava e era necessária em todos os números de mágica.

Sabia que era uma linda ilusão. A névoa, as luzes, a música, a mulher. Apreciava a profunda dramaticidade da apresentação e não lhe escapava a ironia de usar o antigo símbolo da mulher solitária colocada em um pedestal, acima das preocupações mundanas do trabalho do homem.

Tratava-se também de um número extremamente complexo, que requeria muito controle físico e uma cronometragem de milésimo de segundo. Mas nem aqueles afortunados espectadores que ocupavam a primeira fila seriam capazes de perceber a intensa concentração sob o semblante sereno. Nenhum deles poderia imaginar quantas horas tediosas ela passara aperfeiçoando todos os aspectos do número, primeiro no papel e, depois, na prática. Prática incessante.

Lentamente, ao ritmo de Gershwin, seu corpo começou a girar, inclinar, oscilar. Uma dança solitária a três metros de altura, repleta de cores e movimentos graciosos. Ouviu um murmurinho na plateia e alguns aplausos dispersos.

Eles conseguiam vê-la — sim, podiam vê-la através da névoa azulada e das luzes que giravam. O cintilar do vestido escuro, a fluidez dos cabelos ruivos, o brilho da pele de alabastro.

Então, em um estalar de dedos, num arquejo, já não conseguiam mais vê-la. Em um piscar de olhos, ela se fora. Em seu lugar, apareceu um tigre-de-bengala lustroso que se ergueu nas patas traseiras e arranhou o ar enquanto rugia.

Houve uma pausa, aquele breve instante que satisfazia um artista, quando toda a plateia prendia a respiração devido à surpresa, antes de explodir em aplausos estrondosos que ecoavam enquanto o pedestal descia mais uma vez. O grande felino saltou, pousou direto no palco e caminhou até o lado direito, parando diante de uma caixa negra. Soltou outro rugido, que fez uma mulher na primeira fileira dar um risinho nervoso. Os quatro lados da caixa se abriram de uma só vez.

E lá estava Roxanne, vestida não mais com o brilhante vestido azul, mas com um collant prateado. Ela agradeceu ao público com uma reverência, exatamente como aprendera desde praticamente o dia em que nascera. Fez um floreio.

Enquanto o som do sucesso continuava martelando em seus ouvidos, montou nas costas do tigre e saiu do palco.

— Bom trabalho, Oscar. — Com um breve suspiro, inclinou-se para acariciar o felino entre as orelhas.

— Você estava encantadora, Roxy. — O assistente grande e forte prendeu uma correia na coleira brilhante de Oscar.

— Obrigada, Mouse. — Jogou os cabelos para trás enquanto descia do animal. A área dos bastidores já estava extremamente ativa. Pessoas de confiança protegiam os equipamentos e os escondiam de olhos curiosos. Como agendara uma coletiva de imprensa para o dia seguinte, não veria repórteres naquele momento. Roxanne tinha grandes esperanças de desfrutar uma garrafa de champanhe bem gelada e um banho quente.

Sozinha.

Distraída, esfregou uma mão na outra — um hábito antigo que Mouse poderia lhe dizer que ela pegara do pai.

— Estou com uma sensação estranha — disse com uma meia risada. —Senti isso a noite inteira. Parece que tem alguém me espreitando.

— Bem, ah... — Mouse permaneceu onde estava, deixando que Oscar se esfregasse em seus joelhos. Mouse nunca conseguia se expressar bem, nem nas circunstâncias mais favoráveis. Então, atrapalhou-se tentando achar a melhor maneira de dar a notícia. — Você tem companhia, Roxy. No camarim.

— Ah, é? — Franziu as sobrancelhas, formando uma leve linha de impaciência entre elas. — Quem?

— Venha agradecer ao público de novo, querida. — Lily, assistente de palco e madrasta de Roxanne, passou por eles e pegou o braço dela. — Você foi um sucesso hoje. — Lily passou um lenço nos olhos, sem tocar nos cílios postiços que usava tanto no palco quanto fora dele. — Max teria ficado muito orgulhoso.

Roxanne sentiu um aperto no coração e se esforçou para afastar as próprias lágrimas. Elas não apareceram. Não as permitia em público. Deu um passo à frente, seguindo em direção aos crescentes aplausos.

— Quem está me esperando? — perguntou por sobre o ombro, mas Mouse já tinha partido com o tigre.

O mestre lhe ensinara que a discrição era a melhor parte da sobrevivência.

Dez minutos mais tarde, um tanto tímida pelo sucesso, Roxanne abriu a porta do camarim. O perfume a atingiu primeiro — rosas e maquiagem. Aquele misto de fragrâncias lhe era tão familiar que os inspirava como ar puro. Mas havia outro cheiro ali — o toque profundo de tabaco. Elegante, exótico, francês. Sua mão tremeu na maçaneta enquanto abria totalmente a porta.

Havia um homem a quem ela sempre associaria aquele cheiro. Um homem que ela conhecia e que tinha o costume de fumar cigarrilhas francesas.

Não disse nada quando o viu. Nada podia dizer enquanto ele se levantava da cadeira fumando cigarrilha e tomando champanhe. Meu Deus, era terrível e excitante ver aqueles belos lábios formarem um sorriso familiar, e se deparar com aqueles olhos azuis profundos.

Ainda usava os cabelos compridos, um manto de ébano se agitando atrás de seu rosto. Mesmo quando criança, era muito bonito, com aquele olhar elegante cigano que podia congelar ou incendiar uma pessoa. Com a idade, sua aparência só se aprimorou. Os traços do rosto atraente, com ossos firmes e a covinha no queixo, se tornaram mais refinados e marcantes. Além da beleza, ele emanava uma aura de dramaticidade.

Era um homem pelo qual as mulheres tremiam e que desejavam.

E ela o desejara. Oh, como desejara.

Cinco anos se passaram desde que vira aquele sorriso pela última vez, desde que passara as mãos por entre os cabelos grossos e que sentira a pressão daqueles lábios hábeis sobre os seus. Cinco anos para lamentar, chorar e odiar.

Por que ele não estava morto?, perguntava-se, enquanto se forçava a fechar a porta atrás de si. Por que ele não teve a decência de sucumbir em alguma das várias tragédias pavorosas que imaginara para ele?

E o que, em nome de Deus, ela faria com aquele terrível desejo ardente que sentia só de olhar para ele?

— Roxanne. — O treinamento mantinha a voz de Luke firme ao pronunciar o nome dela. Ele a observara ao longo dos anos. Naquela noite, estudara cada movimento dela nas sombras das coxias. Julgando, avaliando. Desejando. Mas ali, naquele momento, cara a cara, ela estava tão linda que era difícil suportar. — Foi um ótimo espetáculo, e o final foi impressionante.

— Obrigada.

A mão dele estava firme ao lhe servir uma taça de champanhe, assim como a dela quando a aceitou. Afinal, eles eram, acima de tudo, artistas, moldados de forma peculiar em uma mesma forma. A forma de Max.

— Sinto muito pelo Max.

Ela apertou os olhos.

— Você sente?

Por achar que merecia mais do que uma pitada de sarcasmo, Luke apenas acenou com a cabeça, baixou o olhar e o fixou no líquido borbulhante, enquanto relembrava. Seus lábios se curvaram quando voltou a olhar para ela.

— O trabalho em Calais, os rubis. Foi você?

Ela tomou um gole, e o tecido prateado reluziu enquanto dava de ombros.

— É claro.

— Ah. — Ele acenou de novo com a cabeça, satisfeito. Tinha de ter certeza de que ela não perdera aquele toque, para mágica e para roubos. —Ouvi rumores de que a primeira edição de A Queda da Casa de Usher, de Poe, foi levada de uma caixa-forte em Londres.

— Seus ouvidos sempre foram afiados, Callahan.

Ele continuou sorrindo, imaginando onde ela aprendera a exalar sensualidade como se fosse ar. Lembrou-se da menina esperta, da adolescente cheia de energia, da florescência da jovem mulher que se tornou tão sedutora. E sentiu a atração que sempre existiu entre eles. Ele usaria aquilo agora, com remorso, mas ainda assim a usaria para atingir seus objetivos.

Os fins justificavam tudo. Mais uma máxima de Maximillian Nouvelle.

— Tenho uma proposta para você, Rox.

— Sério? — Ela tomou um último gole antes de colocar a taça de lado. As bolhas pareciam amargas na língua.

— Profissional — informou ele com leveza, enquanto batia a cinza da cigarrilha. Pegou as mãos dela, aproximando os dedos aos seus lábios. — E pessoal. Senti saudades, Roxanne. — Era a frase mais verdadeira que podia dizer. Um breve instante da mais legítima honestidade em anos de truques, fraudes, ilusões e simulações. Distraído pelos próprios sentimentos, não notou o brilho de aviso nos olhos dela.

— Sentiu mesmo, Luke? De verdade?

— Mais do que posso expressar. — Submerso nas próprias lembranças e desejos, puxou-a para mais perto de si, sentindo o sangue acelerar nas veias, enquanto seu corpo roçava no dela. Ela sempre foi a única. Não importava quantas fugas realizara, nunca se veria livre da armadilha na qual Roxanne Nouvelle o prendera. — Venha comigo para meu hotel. — Sua respiração era como uma carícia no rosto dela, enquanto ela se derretia em seus braços. — Nós podemos jantar e conversar.

— Conversar? — Os braços dela envolveram o corpo dele. Os anéis brilharam enquanto mergulhava os dedos nos cabelos dele. Perto deles, o espelho de maquiagem acima da penteadeira refletia suas imagens triplicadas. Como se mostrassem o passado, o presente e o futuro. Quando ela falou, sua voz soava como a névoa de onde desaparecia. Sombria, rica e misteriosa. — É isso que quer fazer comigo, Luke?

Ele se esqueceu da importância do controle, esqueceu-se de tudo, menos dos lábios dela, que estavam a poucos centímetros dos dele. O sabor no qual, certa vez, se deleitara estava a um passo de distância.

— Não.

Baixou a cabeça para beijá-la. Então, ele perdeu o fôlego quando ela o acertou com o joelho bem no meio das pernas. Mesmo enquanto ainda estava curvado, ela lhe acertou um soco no queixo.

Roxanne sentiu uma enorme satisfação no momento em que ouviu o grunhido de surpresa e o som da madeira se quebrando quando ele caiu sobre a mesa. As rosas voaram para todos os lados, e a água se esparramou pelo chão. Pequenos botões de flores caíam sobre ele enquanto jazia no carpete úmido.

— Você... — Lançou um olhar de raiva, enquanto tirava uma rosa dos cabelos. A pirralha sempre fora sorrateira, lembrou ele. — Você está mais rápida do que antes, Rox.

Com as mãos no quadril, ela se mantinha diante dele, uma guerreira esbelta e prateada que nunca aprendera que vingança era um prato que se comia frio.

— Muitas coisas estão diferentes agora. — Os nós de seus dedos queimavam como fogo, mas ela usava aquela dor para bloquear outra, mais profunda. — Agora, seu maldito irlandês mentiroso, rasteje de volta para o buraco onde se enfiou nos últimos cinco anos. Chegue perto de mim de novo, e, eu juro, farei você desaparecer para sempre.

Satisfeita com a frase de efeito final, virou de costas e soltou um grito quando Luke a agarrou pelo tornozelo. Ela caiu de bunda no chão com força e, antes que pudesse usar as unhas e os dentes para se defender, ele a imobilizou. Esquecera como ele era forte e rápido.

Um erro de cálculo, Max teria dito. Um erro de cálculo era a raiz de todos os fracassos.

— Tudo bem, Rox, nós podemos conversar aqui. — Apesar de estar sem ar e com dor, ele sorriu. — A escolha é sua.

— Eu vou encontrá-lo no inferno!

— É muito provável. — Seu sorriso desapareceu. — Que droga, Roxy, eu nunca consegui resistir a você. — Quando cobriu os lábios dela com os seus, levou-os de volta ao passado.

 

             1973, PRÓXIMO A PORTLAND, MAINE

- VENHAM! VENHAM todos. Maravilhem-se, surpreendam-se. Assistam ao Grande Nouvelle desafiar as leis da natureza. Por um mísero dólar, vejam ele fazer as cartas dançarem no ar. Vejam uma linda mulher ser serrada em duas partes bem diante de seus olhos.

Enquanto o homem gritava, anunciando as maravilhas do parque, Luke Callahan deslizava pela multidão do festival, ocupado, furtando bolsos. Tinha mãos rápidas, dedos ágeis e a mais importante qualidade de um ladrão bem-sucedido: uma completa ausência de arrependimento.

Tinha 12 anos.

Estava na estrada há quase seis semanas, em fuga. Luke tinha grandes planos de seguir para o sul antes de o verão úmido da Nova Inglaterra se transformar no gélido inverno da Nova Inglaterra.

Não chegaria muito longe com furtos como aqueles, pensou, pescando uma carteira no bolso frouxo do macacão. Não havia muita gente que vinha ao parque para uma volta na cadeira maluca ou tentar a sorte na Roda da Fortuna com a carteira recheada de dinheiro.

Quando chegasse a Miami, porém, tudo seria diferente. Oculto atrás da barraca de lançamento de argolas em garrafas de leite, descartou uma carteira de couro falso e contou os ganhos da noite.

Vinte e oito dólares. Patético.

Uma vez em Miami, terra do sol, diversão e altas rodas, ele quebraria a banca. Tudo que tinha de fazer era chegar lá e, até aquele momento, conseguira juntar quase duzentos dólares. Com um pouquinho mais poderia pegar um ônibus para seguir parte do caminho. Um ônibus intermunicipal, pensou sorrindo. Deixaria a condução a cargo deles, tudo bem, e evitaria pegar caronas com hippies chapados e pervertidos de dedos gordos.

Um fugitivo não poderia ser exigente demais quanto ao meio de transporte. Luke já sabia que uma carona de um cidadão respeitável poderia resultar em relatórios policiais ou, pior ainda, em um sermão sobre os perigos de um garoto fugir de casa.

Não adiantaria tentar contar que em casa era muito mais perigoso do que nas ruas.

Depois de descartar duas moedinhas, Luke dobrou o restante dos ganhos e enfiou dentro das botas gastas. Precisava comer. O cheiro de fritura já tentava seu estômago há quase uma hora. Compraria um hambúrguer bem-passado e batatas fritas, e tomaria um copo de limonada gelada como recompensa pelo trabalho.

Como a maioria dos garotos de 12 anos, Luke teria se divertido dando uma volta nos brinquedos, mas, se tinha vontade de andar em um dos brinquedos iluminados, a escondeu com um sorriso debochado. Os idiotas achavam que estavam vivendo uma aventura, pensou, enquanto o enjoo lhes subia pela garganta. Eles logo estariam recolhidos em suas camas, enquanto ele dormiria sob a luz das estrelas e, quando acordassem, papai e mamãe lhes diriam o que fazer e como fazer.

Nunca mais ninguém lhe diria nenhuma daquelas coisas.

Sentindo-se superior a tudo, enfiou os polegares nos bolsos da frente da calça jeans e seguiu em direção aos quiosques.

Passou pelo pôster de novo — o retrato do mágico, maior do que o tamanho real. O Grande Nouvelle, com cabelos negros, bigode cheio e olhos escuros hipnóticos. Toda vez que Luke olhava para o pôster se sentia atraído em direção a algo que não conseguia compreender.

Os olhos da imagem pareciam atravessá-lo e enxergar dentro dele, como se pudessem ver e saber muita coisa sobre Luke Callahan, que vinha de Bangor, Maine, passando por Burlington, Utica, e só Deus sabia mais onde, porque Luke já se esquecera.

Ele quase esperava que a boca pintada falasse, e que a mão que segurava o leque de cartas saísse do cartaz e o agarrasse pelo pescoço, puxando-o para dentro da imagem. Ficaria preso lá para sempre, batendo no outro lado do pôster do mesmo modo que fizera quando ficara trancado atrás de diversas portas na infância.

Como a ideia lhe causou calafrios, Luke curvou os lábios em desdém.

— Mágico de araque — sussurrou. O coração disparou enquanto encarava o cartaz que o desafiava. — Grande coisa — continuou ganhando confiança. — Tirar coelhos estúpidos de cartolas idiotas, além de fazer uns poucos truques com as cartas.

Queria ver aqueles truques idiotas mais do que dar uma volta na roda-gigante. Mais ainda do que se empanturrar com batatas fritas cobertas com ketchup. Luke vacilou, segurando no bolso uma nota de um dólar.

Valeria a pena gastar um dólar, decidiu, apenas para provar para si mesmo que aquele mágico não era de nada. Pagaria a entrada para se sentar. No escuro, pensou ele, enquanto pegava a nota amassada e pagava pelo ingresso. Provavelmente, haveria alguns bolsos pelos quais poderia escorregar os dedos ágeis.

A pesada lona se fechou atrás dele, bloqueando toda luz e todo ar do caminho. O barulho batia contra a tenda como uma pancada de chuva. As pessoas já estavam acomodadas nos assentos baixos de madeira, murmurando entre si e se abanando com leques de papel para aliviar o calor sufocante.

Parou na parte de trás por um momento, observando. Com um instinto que fora afiado como uma navalha nas últimas seis semanas, passou por um bando de crianças, desistiu de alguns casais por serem pobres demais para terem algo além do preço do ingresso e fez suas escolhas com cuidado. As circunstâncias o levaram a procurar por mulheres, já que os homens estariam sentados em cima do dinheiro.

— Com licença — pediu, educado como um escoteiro, enquanto se espremia por trás de uma mulher que parecia ser avó, distraída com as travessuras de um menino e uma menina, sentados cada qual de um lado.

No momento em que se sentou, o Grande Nouvelle subiu ao palco. Vestia um traje de gala. O smoking preto e a camisa branca engomada pareciam exóticos no calor úmido da tenda, Os sapatos polidos brilhavam. No dedo mindinho da mão esquerda, usava um anel com uma pedra negra no centro que refletia as luzes do palco.

A impressão de grandiosidade foi estabelecida assim que se voltou para o público.

O mágico não disse nada; ainda assim, a tenda se encheu com sua presença, inchou-se com ela. Ele parecia tão dramático quanto no pôster, apesar de os cabelos negros mostrarem mechas prateadas. O Grande Nouvelle levantou as mãos com as palmas voltadas para a plateia. Com um movimento dos punhos, uma moeda surge por entre os dedos vazios. Mais um movimento, outra moeda e outra, até que os Vs largos entre os seus dedos reluzissem como ouro.

 

A atenção de Luke foi capturada e ele se inclinou para a frente, estreitando os olhos. Queria descobrir como se fazia aquilo. Claro que era um truque. Sabia muito bem que o mundo estava cheio deles. Já havia parado de se perguntar por quê, mas não de imaginar como.

As moedas se transformaram em bolas coloridas, as quais mudavam de tamanho e cor. Elas se multiplicavam, diminuíam, apareciam e sumiam enquanto a plateia aplaudia.

Afastar os olhos do espetáculo era difícil. Roubar seis dólares da bolsa da vovó foi fácil. Após guardar seu ganho, Luke deslizou de seu assento e se posicionou atrás de uma loura que deixara a bolsa descuidada no chão ao seu lado.

Enquanto o truque das mãos esquentava a plateia, Luke roubou mais quatro dólares. Mas estava perdendo a concentração. Sentou-se dizendo para si mesmo que esperaria um pouco antes de atacar a mulher gorda à sua direita.

Pelos momentos que se seguiram, Luke foi apenas uma criança, com olhos arregalados de espanto enquanto o mágico embaralhava as cartas, passava uma das mãos por cima, e a outra por baixo, fazendo com que o baralho flutuasse. Com um movimento elegante das mãos, as cartas balançavam, viravam, mergulhavam. Completamente absorta pelo espetáculo, a plateia comemorava. Luke perdeu a chance de fazer a limpa.

— Você aí — chamou a voz de Nouvelle. Luke congelou quando sentiu os olhos escuros pousados nele. — Você me parece a pessoa indicada. Preciso de alguém esperto... — Os olhos piscaram. — Um garoto honesto para me ajudar no próximo truque. Suba aqui. — Nouvelle pegou as cartas no ar e gesticulou.

— Vai lá, garoto. Vai logo — disse alguém, dando uma cotovelada nas costelas de Luke.

Corado, Luke se levantou. Sabia que era perigoso quando as pessoas o notavam, mas, se recusasse o convite, chamaria ainda mais atenção.

— Escolha uma carta — convidou Nouvelle, enquanto Luke subia ao palco. — Qualquer carta.

Ele as abriu em leque, mostrando-as novamente ao público, para que os espectadores vissem que se tratava de um baralho comum. Rápido e ágil, Nouvelle embaralhou as cartas e as espalhou em uma pequena mesa.

— Qualquer carta — repetiu ele, e Luke franziu a testa, concentrado, enquanto retirava uma do bolo. — Mostre-a para a nossa adorável plateia — instruiu Nouvelle. — Segure a carta com a face virada para o público para que todos possam vê-la. Muito bem! Excelente. Você tem talento.

Rindo, Nouvelle pegou o monte descartado, manipulando-o com os dedos longos e inteligentes.

— Agora... — Olhando para Luke, ele estendeu o baralho. — Coloque a carta em qualquer lugar. Em qualquer lugar mesmo. Excelente. — Seus lábios estavam curvados quando ofereceu o baralho ao garoto. — Embaralhe as cartas como quiser. — O olhar de Nouvelle permaneceu em Luke, enquanto o garoto fazia o que lhe fora pedido.

— Agora. — Nouvelle colocou a mão nos ombros de Luke. — Em cima da mesa, por favor. Você gostaria de cortá-las ou é melhor que eu corte?

— Pode deixar comigo. — Luke colocou as mãos sobre as cartas, certo

de que não poderia ser enganado. Não quando estava tão perto.

— Sua carta é a de cima?

Luke virou a carta, sorrindo.

— Não.

Nouvelle parecia surpreso, enquanto o público ficava em suspense.

— Não? Então talvez seja a de baixo?

Entrando no clima, Luke virou o baralho e segurou a carta. — Não. Acho que o senhor errou.

— Estranho, muito estranho — murmurou Nouvelle, batendo o dedo no bigode. — Você é um garoto mais inteligente do que imaginei. Parece que me enganou. A carta que você escolheu não está mesmo neste baralho. Porque está... — Estalou os dedos, girou o pulso e sacou o oito de copas do ar. — Aqui.

Luke arregalou os olhos, e a plateia aplaudiu em aprovação. Aproveitando o barulho, Nouvelle falou baixinho:

— Venha aos bastidores depois do show.

E aquilo foi tudo. Nouvelle deu uma cutucada em Luke, mandando-o de volta a seu lugar.

Durante os vinte minutos que se seguiram, Luke se esqueceu de tudo, menos da mágica. Assistiu a uma menininha ruiva dançar usando um collant. Riu quando ela entrou em uma cartola enorme e se transformou em um coelho branco. Sentiu-se adulto e se divertiu quando a menina e o mágico encenaram uma discussão sobre o horário de dormir. A menina jogou os cachos vermelhos para trás e bateu os pés. Com um suspiro, Nouvelle jogou a capa preta sobre ela e bateu três vezes com sua varinha. A capa escorregou para o chão e a criança desapareceu.

— Um pai — explicou Nouvelle com sobriedade — deve ser firme.

No número final, Nouvelle serrou uma loura curvilínea, usando um collant justíssimo, em duas. As curvas e o traje provocaram muitos assobios e palmas.

Um homem entusiasmado, usando uma camisa estampada e jeans boca de sino, levantou gritando.

— Ei, Nouvelle, se você fez isso com a moça, eu levo uma das metades!

Ele separou as duas partes da moça. Quando Nouvelle pediu, ela mexeu os dedos dos pés e das mãos. Quando uniu as partes novamente, Nouvelle retirou as divisórias de aço da caixa, sacudiu a varinha e escancarou a tampa.

A moça magicamente remontada saiu da caixa e recebeu uma salva de palmas.

Luke se esquecera da bolsa da mulher gorda, mas decidiu que valera a pena ter gasto aquele dinheiro.

Enquanto o público saía para andar no carrossel ou dar um uma olhada em Sahib, o  Encantador de Serpentes, Luke se esgueirou em direção ao palco. Pensou que, já que fora uma espécie de assistente no truque das cartas, talvez Nouvelle lhe mostrasse como fizera aquilo.

— Garoto.

Luke olhou para cima. De seu ponto de vista, o homem parecia um gigante. Devia ter 1,98m de altura e pesar mais de cem quilos de puro músculo. O rosto bem barbeado era largo como um prato, os olhos pareciam duas passas colocadas fora de centro. Havia um cigarro sem filtro pendurado na boca.

Em termos de feiura, Herbert Mouse Patrinski era perfeito.

Instintivamente, Luke se preparou, projetando o queixo para a frente, curvando os ombros e afastando as pernas.

— Hã?

Em resposta, Mouse fez um gesto com a cabeça e se afastou. Luke hesitou por menos de dez segundos e, depois, o seguiu.

A maior parte do glamour espalhafatoso do festival se transformava em tons de cinza à medida que atravessavam a grama pisada e amarelada em direção aos trailers e caminhões.

O trailer de Nouvelle parecia um puro-sangue em um campo de pangarés. Ele era comprido e elegante, sua pintura negra brilhava sob o luar sombrio. Um floreado prateado na lateral anunciava O GRANDE NOUVELLE, EXTRAORDINÁRIO ILUSIONISTA.

Mouse deu uma batida na porta antes de abri-la. Luke sentiu um cheiro estranho e reconfortante de igreja enquanto entrava atrás de Mouse.

O Grande Nouvelle já havia tirado o smoking e estava recostado no sofá embutido, vestindo um roupão de seda preto. Linhas finas de fumaça se desenrolavam, preguiçosas, acima de dezenas de cones de incenso. Uma música indiana de cítara tocava ao fundo, enquanto Nouvelle tomava uma dose de uísque.

Luke enfiou as mãos repentinamente nervosas nos bolsos e olhou à sua volta. Sabia que acabara de entrar em um trailer, mas havia uma forte ilusão de algo exótico. Os aromas, é claro, e as cores vivas das almofadas macias amontoadas aqui e ali, os tapetes pequenos com bordados magníficos espalhados pelo chão, os drapeados de seda nas janelas, o bruxulear misterioso das velas.

Além, é claro, do próprio Maximillian Nouvelle.

— Ah. — Com seu sorriso divertido meio escondido pelo bigode, Max cumprimentou o menino. — Fico feliz que você tenha vindo.

Para mostrar que não estava impressionado, Luke deu de ombros. — Foi um show bem legal.

— Fico lisonjeado com o elogio — disse Max em tom seco e fez um gesto com a mão indicando que Luke podia se sentar. — Você tem algum interesse por mágica, senhor...?

— Meu nome é Luke Callahan. Achei que valia a pena pagar um dólar para ver alguns truques.

— Um valor bastante alto, eu concordo. — Com os olhos fixos em Luke, Max tomou um gole do uísque. — Mas creio que tenha sido um bom investimento para você, não?

— Investimento? — Inquieto, Luke desviou o olhar para o grandalhão Mouse, bloqueando a porta.

— Você está carregando mais dólares nos bolsos do que quando entrou. Em finanças, poderíamos dizer que o senhor teve um retorno rápido de capital.

Luke resistiu a duras penas ao desejo de se encolher e encarou Max nos olhos. Muito bem, pensou Max consigo mesmo. Muito bem mesmo.

— Eu não sei do que está falando. Agora eu tenho de dar o fora.

— Sente-se. — Foi tudo que Max precisou dizer, enquanto erguia um dedo. Luke ficou tenso, mas obedeceu. — Veja bem, sr. Callahan, ou será que posso chamá-lo de Luke? Esse é um bom nome. Vem de Lucius, que significa luz em latim. — Riu e tomou mais um gole.  — Estava divagando. Veja bem, Luke, enquanto você estava me assistindo, eu observava você. Não seria ético de minha parte perguntar quanto você conseguiu, mas um bom palpite seria entre oito e dez dólares. — Sorriu encantador. — Nada mau para alguém trabalhando sozinho.

Luke estreitou os olhos. Sentiu o suor escorrendo pelas costas.

— O senhor está me chamando de ladrão?

— Não, se isso o ofende. Afinal, você é meu convidado e eu estou sendo um anfitrião relapso. Posso lhe oferecer um refresco?

— O senhor pode me dizer o que está acontecendo aqui?

— Ah, logo chegaremos lá. Certamente chegaremos lá. Mas não coloquemos a carroça na frente dos bois, eu sempre digo. Conheço bem o apetite de um garoto, pois já fui um. — Aquele menino era tão magro que Max podia contar as costelas por baixo da camiseta imunda. — Mouse, eu acho que nosso convidado adoraria um hambúrguer ou dois com todos os acompanhamentos.

— Tudo bem.

Quando Mouse saiu pela porta, Max se levantou.

— Aceita uma bebida gelada? — ofereceu, abrindo a pequena geladeira. Não precisava olhar para saber que os olhos do menino estavam na porta. —É claro que você pode fugir — declarou ele calmamente, enquanto pegava uma garrafa de Pepsi. — Duvido que o dinheiro que enfiou na bota direita vá atrasá-lo muito. Mas você pode relaxar e desfrutar de uma refeição civilizada e conversar um pouco.

Luke pensou em dar o fora dali. Seu estômago roncava. Num meio-termo, aproximou-se um pouco mais da porta.

— O que você quer?

— Ora, a sua companhia — respondeu Max, enquanto servia Pepsi com gelo. Ergueu um pouco a sobrancelha quando viu um brilho nos olhos de Luke. Então, pensou, fazendo uma careta, as coisas tinham sido ruins àquele ponto. Esperando mostrar ao menino que estaria a salvo daquele tipo de investida, Max chamou Lily.

Ela entrou pela cortina de seda vermelha. Assim como Max, ela usava um roupão. Mas o dela era rosa-claro, com as bordas forradas de plumas fúcsia, assim como os chinelos de salto alto que calçava. Exalando perfume Chanel, pisou nos tapetes espalhados pelo chão.

— Nós temos companhia. — Ela tinha uma voz divertida, parecia falar sorrindo.

— Sim, Lily querida. — Max pegou a mão dela e a levou aos lábios e manteve ali. — Permita que eu lhe apresente Luke Callahan. Luke, esta é minha adorável assistente e companheira, Lily Bates.

Luke engoliu o nó apertado em sua garganta. Jamais vira alguém como ela. Cheia de curvas e perfume, com a boca e os olhos pintados de forma exótica. Ela sorriu piscando os cílios incrivelmente longos.

— Prazer em conhecê-lo — cumprimentou ela, aconchegando-se mais a Max, quando ele passou o braço em volta de sua cintura.

— Madame.

— Luke e eu temos alguns assuntos para discutir. Não quero que me espere acordada.

— Eu não me importo.

Ele deu um beijo leve nos lábios dela, mas com ternura. Luke sentiu o rosto queimar antes de desviar o olhar.

Je t'aime, ma belle.

— Oh, Max. — Aquele jeito de falar em francês sempre fazia Lily se desmanchar.

— Durma um pouco — murmurou ele.

— Está bem. — Porém, seus olhos diziam claramente que ela esperaria por ele.

— Prazer em conhecê-lo, Luke.

— Madame. — Conseguiu repetir, enquanto ela voltava pela cortina vermelha.

— Uma mulher maravilhosa — comentou Max, enquanto oferecia a Luke um copo de Pepsi. — Roxanne e eu estaríamos perdidos sem ela. Não estaríamos, ma petite?

— Papai! — Meio sem ar, Roxanne engatinhou por debaixo da cortina e se levantou. — Eu estava tão quietinha, Lily nem me viu.

— Ah, mas eu senti a sua presença. — Sorrindo para ela, bateu com o dedo no próprio nariz. — Seu xampu, seu sabonete, os lápis de cera com os quais estava desenhando.

   Roxanne fez uma careta e deu um passo à frente com os pés descalços. — Você sempre sabe.

— E eu sempre saberei quando minha garotinha estiver por perto. —Ergueu-a e a acomodou em seu colo.

Luke reconheceu a criança do show, apesar de agora ela estar vestindo uma camisola longa de babados. Os cabelos ruivos, encaracolados e brilhantes chegavam até o meio das costas. Enquanto Luke tomava o refrigerante, ela colocava o braço em volta do pescoço do pai e estudava o convidado com seus olhos verde-mar.

— Ele parece malvado — deduziu Roxanne, fazendo com que o pai risse antes de depositar um beijo em sua testa.

— Tenho certeza de que está enganada.

Roxanne ponderou e, depois, contemporizou.

— Parece que ele poderia ser malvado.

— Muito melhor assim. — Colocou-a no chão e acariciou seus cabelos. — Agora diga um olá educado.

Ela abaixou a cabeça, depois se inclinou como uma rainha reverenciando seus súditos.

— Olá.

— Tá. Oi. — Pirralha esnobe, pensou Luke. Depois, corou de novo quando seu estômago roncou.

— Acho que você tem de alimentá-lo — declarou Roxanne, como se Luke não passasse de um vira-latas revirando o lixo. — Mas não sei se deveria ficar com ele.

Dividido entre irritação e diversão, Max lhe deu uma palmada de leve no bumbum.

— Vá para a cama, sua rabugenta.

— Só mais uma hora, papai, por favor.

Ele meneou a cabeça e se agachou para beijá-la.

Bonne nuit, bambine.

Ela franziu as sobrancelhas formando uma linha tênue entre elas. — Quando eu crescer, vou ficar acordada a noite toda se eu quiser.

— Tenho certeza de que vai, mais de uma vez. Mas até lá... — Apontou em direção à cortina. Roxanne fez beicinho, mas obedeceu. Abriu a cortina de seda, olhou para trás por sobre o ombro.

— Amo você mesmo assim.

— E eu amo você. — Max sentiu a velha sensação de calor profundo se espalhar pelo corpo. Sua filha. A única coisa que já fizera sem truques ou ilusionismo. — Ela está crescendo — disse Max para si mesmo.

— Merda. — Luke bufou em sua Pepsi. — Ela é só uma criança.

— Tenho certeza de que é o que parece, pelos seus vastos anos de experiência. — O sarcasmo era tão agradável que Luke nem notou.

— Crianças são um pé no saco.

— No coração, muitas vezes — corrigiu Max, sentando-se. — Mas nunca encontrei uma que provocasse desconforto em outra parte da anatomia.

— Elas custam dinheiro, não custam? — Demonstrava raiva contida em suas palavras. — E elas estão sempre no caminho. As pessoas só as têm porque ficam muito excitadas para pensar nas consequências quando dão uma trepada.

Max acariciou o bigode com o dedo enquanto pegava seu uísque.

— Uma filosofia interessante que poderemos discutir mais a fundo em algum outro momento. Mas por esta noite... Ah, sua refeição.

Confuso, Luke olhou para a porta, que ainda estava fechada. Não ouvira nada. Alguns segundos depois, escutou passos e um estalo. Mouse entrou segurando um pacote marrom já salpicado de gordura. O cheiro fez a boca de Luke salivar.

— Obrigado, Mouse. — Pelo canto do olho, Max percebeu que Luke se controlava para não atacar o pacote.

— Você quer que eu fique por aqui? — perguntou Mouse, colocando a comida sobre a pequena mesa redonda em frente ao sofá.

— Não é necessário. Tenho certeza de que está cansado.

— Tudo bem, então. Boa noite.

— Boa noite. Por favor — continuou Max enquanto Mouse fechava a porta. — Sirva-se.

Luke enfiou a mão no pacote e pegou um hambúrguer. Lutando para parecer indiferente, deu uma mordida. Depois, antes que pudesse se conter, abocanhou o restante. Max se acomodou, girando o copo de uísque com os olhos semicerrados.

O garoto comia como um jovem lobo, pensou Max, enquanto Luke mergulhava no segundo hambúrguer e nas batatas fritas. Faminto, imaginou Max, por muitas coisas. Sabia bem o que era estar faminto — por muitas coisas. Por confiar em seus instintos e por acreditar no que viu por trás da desconfiança nos olhos do garoto, lhe daria a oportunidade de ter um banquete.

— Às vezes eu faço o número do mentalista — comentou Max, de forma casual. — Talvez você não saiba disso.

Luke estava de boca cheia e só conseguiu emitir um grunhido.

— É, eu achei que não. Farei uma demonstração, então, se quiser. Você saiu de casa e já está viajando há algum tempo agora.

Luke engoliu e arrotou.

— Errou desta vez. Minha família mora numa fazenda a alguns quilômetros daqui. Eu só vim para dar uma volta nos brinquedos.

Max abriu os olhos. Havia poder neles, e algo fez com que ficassem mais poderosos ainda. Pura bondade.

— Não minta para mim. Pode mentir para os outros, se quiser, mas não para mim. Você fugiu. — Moveu-se tão rápido que Luke não teve tempo de evitar a mão que apertou seu pulso como se fosse de aço. — Diga-me, você deixou para trás uma mãe, um pai e algum avô velhinho de coração partido?

— Eu já falei... — As mentiras inteligentes, que aprendera a contar tão facilmente, secaram em sua língua. Foram aqueles olhos, pensou, sentindo uma onda de pânico. Exatamente como os olhos do pôster, que pareciam olhar para ele e saber de tudo. — Não sei quem é meu pai — confessou enquanto seu corpo começava a tremer com vergonha e fúria. — Acho que também não sabe e, com certeza, não está nem aí. Talvez tenha ficado chateada porque eu fui embora, mas só porque não vai ter ninguém por perto para abrir uma garrafa ou roubar uma, se não tiver dinheiro. Talvez aquele idiota com quem ela vive também esteja sentindo a minha falta, porque não tem mais em quem bater. — Ele não sabia, mas lágrimas queimavam seus olhos. Sentia, porém, o pânico que apertava a sua garganta como as garras de um dragão. — Eu não vou voltar. Juro por Deus que mato você antes que me obrigue a voltar pra lá.

Max afrouxou a mão do pulso de Luke. Conhecia aquela dor, uma dor tão parecida com a dele mesmo quando tinha aquela idade.

— O homem espancava você.

— Quando conseguia me pegar — confirmou em tom desafiador. As lágrimas brilharam por um momento, depois secaram.

— As autoridades.

Luke retorceu os lábios.

— Grande merda.

— É. — Max suspirou. — Você não tem ninguém?

Com o queixo firme:

— Tenho a mim mesmo.

Uma excelente resposta, refletiu Max.

— E quais são seus planos?

— Estou indo para o sul, Miami.

— Mmmm. — Max pegou o outro pulso de Luke e levantou suas mãos. Quando sentiu a tensão do menino, mostrou seu primeiro sinal de impaciência. — Eu não tenho o menor interesse sexual em homens — afirmou ele. — E, se tivesse, eu não iria me rebaixar a fazer isso com um garoto. —Luke ergueu os olhos, e Max viu algo neles, algo que um menino de 12 anos nunca deveria saber que existia. — Este homem abusou de você de alguma outra maneira?

Luke meneou a cabeça bem depressa, envergonhado demais para falar qualquer coisa.

Mas alguém abusou, deduziu Max. Ou alguém tentou. Teria de esperar até que houvesse confiança entre eles.

— Suas mãos são boas. Você tem dedos ágeis e rápidos. Tem uma percepção de tempo muito apurada para alguém tão jovem. Eu podia usar suas qualidades, apurá-las, caso queira trabalhar para mim.

— Trabalhar? — Luke não conseguiu reconhecer bem aquela emoção que o tomava. A memória de uma criança costumava ser curta. E já fazia muito tempo desde que sentira esperança. — Que tipo de trabalho?

— Isso e aquilo. — Max se sentou de novo e sorriu. — Talvez você possa aprender alguns truques, meu jovem Luke. Acontece que, em poucas semanas, partiremos para o sul. Você pode trabalhar por moradia e comida, e ganhar um pequeno salário, se merecer. Eu serei obrigado a pedir que evite furtar carteiras por um tempo, é claro. Eu duvido que qualquer coisa mais que eu pedisse atrapalharia seu estilo.

Sentiu uma dor no peito. Não percebeu que estava prendendo a respiração até sentir os pulmões queimarem.

— Tipo assim, eu participaria do show de mágica?

Max sorriu novamente.

— Não, você não vai participar. Mas será um assistente na montagem e desmontagem. E você talvez aprenda, se tiver jeito para a coisa. Com o tempo, acabará aprendendo bastante.

Tinha que haver um porém. Sempre havia um. Luke pensava na oferta com cuidado, como um homem que rodeia uma serpente adormecida. — Acho que posso pensar no assunto.

— Isso é sempre bom. — Max se levantou deixando o copo vazio de lado. — Por que você não dorme aqui? Vamos começar de onde paramos pela manhã. Vou pegar a roupa de cama — ofereceu Max, saindo sem esperar resposta.

Talvez seja um golpe, pensou Luke, apertando os dedos. Mas não conseguia enxergar a armadilha, ainda não. E seria tão bom, tão bom mesmo, dormir dentro de casa e de barriga cheia, pelo menos uma vez. Espreguiçou-se, dizendo para si mesmo que estava só testando o terreno. Mas suas pálpebras se fecharam. As luzes das velas o hipnotizaram.

Como suas costas ainda doíam, deitou-se de lado. Antes de fechar os olhos novamente, avaliou a distância até a porta, caso precisasse sair rápido.

Sempre poderia ir embora de manhã, disse para si mesmo. Ninguém poderia obrigá-lo a ficar. Ninguém mais poderia obrigá-lo a fazer nada.

Aquele foi seu último pensamento antes de mergulhar no sono. Não ouviu quando Max trouxe o travesseiro e os lençóis limpos. Não sentiu o puxão leve que tirou seus sapatos, deixando-os ao lado do sofá. Nem murmurou ou se mexeu quando sua cabeça foi erguida para ser colocada suavemente sobre o travesseiro forrado com fronha de linho que cheirava levemente a lavanda.

— Eu sei onde você esteve — murmurou Max. — Eu me pergunto para onde você vai.

Analisou o menino adormecido por mais um tempo, percebendo os ossos fortes do rosto e as mãos com punhos cerrados em posição defensiva, o subir e descer profundo do peito que demonstrava extrema exaustão.

Deixou Luke dormindo e foi para os braços macios e convidativos de Lily.

 

LUKE DESPERTOU devagar. Primeiro, ouviu os pássaros cantarolando do lado de fora; depois sentiu o sol aquecer seu rosto. Em sua mente, imaginava que era dourado e líquido e tinha sabor de mel. Em seguida, sentiu o cheiro de café e se perguntou onde estava.

Então, abriu os olhos, viu a garota e se lembrou.

Ela estava em pé entre a mesa redonda e o sofá sobre o qual estava esparramado e o observava com os lábios apertados e a cabeça inclinada. Os olhos eram bem vividos e curiosos — uma curiosidade não totalmente amigável.

Notou que havia sardas esmaecidas sobre o nariz dela. Algo que não notara quando ela estava no palco ou sob a luz de velas.

Tão desconfiado quanto ela, Luke devolveu o olhar, passando lentamente a lingua sobre os dentes. Sua escova de dente estava em uma mochila jeans que roubara de um supermercado e escondera em alguns arbustos ali perto. Ele era bastante meticuloso quanto à higiene bucal, um hábito que adquirira devido ao medo paralisante que tinha de ir ao dentista. Principalmente de um ao qual sua mãe o levara arrastado quase três anos antes. Aquele com bafo de gim e dedos cobertos de pelos pretos e grossos.

Queria escovar os dentes, tomar um pouco daquele café quente e ficar sozinho.

— O que você está olhando?

— Você. — Pensara em cutucá-lo e ficou um pouco decepcionada quando ele acordou antes que tivesse a chance. — Você é magro. Lily disse que você tem o rosto bonito, mas para mim você parece malvado.

Sentiu uma onda de nojo e confusão ao ser chamado de bonito pela voluptuosa Lily. Luke não tinha sentimentos contraditórios em relação a Roxanne. Ela era o que o seu padrasto chamava de piranha classe A. É claro que Luke não conseguia se lembrar de qualquer mulher que Al Cobb não tivesse classificado como um tipo ou outro de piranha.

— Você é magra e feia. E agora? O que vai dizer?

— Eu moro aqui — declarou de forma grandiosa. — E, se eu não gostar de você, posso obrigar meu pai a mandá-lo embora.

— Grande merda.

— Isso é palavrão. — Inspirou de forma afetada e elegante. Ou pelo menos achava que sim.

— Não. — Talvez, se chocasse seus ouvidos angelicais, ela o deixasse sozinho. — Puta merda é palavrão.

É mesmo? — Parecendo interessada, inclinou-se para a frente. —O que é "puta"?

— Pelo amor de Deus. — Ele esfregou os olhos com as costas das mãos e se sentou. —  Sai da minha frente, por favor?

— Eu sei ser educada. — E se ela fosse, pensou Roxanne, talvez conseguisse convencê-lo a lhe explicar o significado daquela nova palavra. —Porque eu sou a anfitriã, vou trazer uma xícara do café que preparei.

— Você fez café? — Incomodou-se por não tê-la ouvido se movimentar pela casa.

É o meu trabalho. — Ela se empertigou enquanto caminhava até o fogão. — Porque papai e Lily dormem até tarde e eu não gosto. Eu não preciso dormir muito, nem quando eu era bebê. Acho que tem a ver com o meu metabolismo — contou, satisfeita por usar a palavra que o pai lhe ensinara.

— Ah, tá. — Observou-a servir o café em uma xícara de porcelana. Luke pensou que devia estar com gosto de lama e ficou ansioso por dizer isso a ela.

— Creme e açúcar? — perguntou ela como uma comissária de bordo. — Pode colocar bastante creme e açúcar.

Ela o atendeu ao pé da letra. Então, mordendo a língua, levou a xícara cheia até a mesa.

— Se quiser, também pode tomar suco de laranja no café da manhã. — Embora não gostasse muito dele, Roxanne gostava de representar uma anfitriã graciosa e se imaginava usando um dos vestidos longos de seda de Lily e os sapatos de salto alto. — Farei o meu especial.

— Ótimo. Luke se preparou para fazer uma careta ao sentir o gosto do café e ficou surpreso ao ver que descia bem. Estava um pouco doce demais, até para o gosto dele, mas nunca tomara um café mais saboroso. —Está muito bom — resmungou ele, e Roxanne o presenteou com um sorriso rápido, feminino por natureza.

— Eu tenho um toque mágico com café. Tomo mundo diz. —Entusiasmada agora, colocou duas fatias de pão na torradeira e abriu a geladeira. — Como pode você não morar com a sua mãe e com o seu pai?

— Não moro com eles porque não quero.

— Mas você tem de morar com eles — insistiu. — Mesmo que não queira.

— Não tenho de fazer merda nenhuma. Além disso, não tenho pai.

— Oh. — Ela apertou os lábios. Embora tivesse apenas 8 anos de idade, sabia que esse tipo de coisa acontecia. Ela mesma perdera a mãe, de quem não tinha qualquer lembrança. E já que Lily ocupara tão bem a posição, aquela não era uma perda que a abalasse. Mas a ideia de ficar sem um pai sempre a deixava triste e assustada.

— Ele ficou doente ou sofreu algum acidente horrível?

— Sei lá, e não estou nem aí. Vamos mudar de assunto.

Em outras circunstâncias, o tom rígido a teria feito perder a calma. Em vez disso, porém, despertou sua compaixão.

— De que parte do show você mais gostou?

— Sei lá. Os truques com cartas foram bem legais.

— Eu conheço um. Posso mostrar. — Com cuidado, ela serviu o suco de laranja nos copos de cristal. — Depois do café da manhã, vou mostrar para você. Se quiser, pode usar o banheiro para lavar as mãos, porque já está quase pronto.

Ele estava bem interessado em esvaziar a bexiga cheia e, seguindo o caminho que ela indicara, encontrou o banheiro do tamanho de um armário atrás de uma cortina vermelha. Tinha cheiro de mulher — não o cheiro pesado e forte que envolvia sua mãe, mas um cheiro de feminilidade doce e luxuriante.

Havia meias-calças penduradas no cabo do chuveiro, uma caixa florida de pó de arroz, e um grande pompom cor-de-rosa estava sobre um paninho de crochê que cobria a caixa de descarga atrás do vaso sanitário. No canto, havia uma pequena cantoneira repleta de garrafas, potes e tubos.

Cobb teria chamado aquilo tudo de ferramentas das prostitutas, mas Luke achou que tudo ali era bonito e organizado, como um jardim que vira nas suas viagens, onde as flores e as ervas daninhas cresciam juntas e livres.

Apesar de entulhado, o aposento era extremamente limpo. Bem diferente, pensou, do banheiro nojento do apartamento imundo do qual fugira.

Sem conseguir resistir, olhou no armarinho do banheiro. Havia artigos masculinos ali. Uma lâmina de barbear, espuma e colônia. Também havia uma escova de dente extra ainda na caixa. O medo de cáries superou qualquer senso de culpa que poderia ter sentido enquanto a usava.

Só quando voltou à sala, perguntando-se se aproveitaria a chance de bisbilhotar um pouco, é que se lembrou dos seus sapatos.

Voltou para a sala como uma bala, mergulhando sob a mesa e verificando o esconderijo.

Calma como uma rainha em seu trono, Roxanne estava recostada em uma almofada de cetim enquanto bebericava o suco.

— Por que você guarda o seu dinheiro no sapato quando tem bolsos?

— Porque é mais seguro. — E, com alívio, notou que era verdade. Cada dólar ainda estava ali. Ele se sentou e olhou para o prato. Havia uma torrada no centro, coberta com um monte de manteiga de amendoim, respingada com o que parecia ser mel e salpicada com canela e açúcar, e cortada ao meio, formando dois triângulos perfeitos.

— Está muito gostosa — assegurou Roxanne, mordiscando a sua.

Luke mordeu metade de um triângulo e foi forçado a concordar. Ela sorriu de novo quando ele terminou até a última migalha.

— Vou fazer mais.

Uma hora mais tarde, quando Max passou pela cortina, viu-os sentados lado a lado no sofá. Sua filhinha tinha uma pilha pequena de notas no seu cotovelo e ela estava virando habilmente três cartas sobre a mesa.

— Tudo bem, onde está a rainha?

Luke soprou os cabelos que caíam sobre seus olhos, hesitou e, então, bateu com o dedo na carta do meio.

— Sei que está aí desta vez. Que droga!

Orgulhosa, Roxanne virou a carta e riu quando ele xingou de novo.

— Roxy — disse Max enquanto caminhava até eles. — É muito rude depenar um convidado.

— Eu disse para ele que o Monte de Três Cartas era um jogo para perdedores, papai — informou, inocente, enquanto sorria para o pai. — Mas ele não quis me ouvir.

Ele riu e apertou o queixo dela.

— Minha pequena trapaceira. Dormiu bem, Luke?

— Dormi. — Perdera cinco dólares para a pequena trapaceira. Era vergonhoso.

— Vejo que já comeu. Se está decidido a ficar, vou levá-lo até Mouse. Ele lhe dará trabalho.

— Isso seria ótimo. — Mas sabia que era melhor não transparecer ansiedade, pois quando você demonstrava esse sentimento era quando puxavam o tapete sob os seus pés. — Mas é apenas por alguns dias.

— Excelente. Agora uma lição gratuita antes de começarmos. — Fez uma pausa para servir café, apreciou o aroma delicioso e tomou um gole. — Nunca aposte no jogo da casa a não ser que perder lhe seja vantajoso. Você precisa de roupas?

Embora não pudesse compreender como perder poderia trazer alguma vantagem para alguém, Luke não fez comentários.

— Tenho algumas coisas.

— Tudo bem, então. Pode pegar suas coisas e aí começamos.

 

UMA DAS vantagens de ser um garoto como Luke era que ele não tinha expectativas. Um outro poderia ter esperado toques de glamour ou aventura, talvez um pouco de camaradagem alegre ou uma vida de diversão. Na filosofia de Luke, porém, as pessoas costumavam ganhar menos do que pagavam pelas coisas boas e mais do que poderiam lidar pelas coisas ruins.

Então, quando o taciturno Mouse o pôs para trabalhar levantando e empurrando, limpando, pintando e levando e buscando encomendas, ele seguiu as ordens sem reclamar e sem conversar. Como Mouse também tinha pouco a dizer, Luke conseguiu seguir o próprio conselho e observar.

Notou que a vida em um parque de diversões não era glamourosa. Era suada e suja. O ar era impregnado de cheiros de fritura, perfume barato e corpos imundos. As cores que pareciam tão brilhantes à noite eram desbotadas na luz do dia. E as atrações que pareciam tão velozes e assustadoras sob o céu estrelado se revelavam cansativas e nada seguras sob o sol escaldante do verão.

Quanto à aventura, não havia nada de excitante em esfregar o grande trailer preto ou em ajudar Mouse a trocar as velas de ignição da caminhonete Chevy que o puxava.

A cabeça e os ombros de Mouse estavam sob o capô, e seus olhos pequenos estavam semicerrados enquanto ouvia o som do motor. As vezes, sussurrava alguma canção ou grunhia e fazia mais alguns ajustes.

Luke apoiava o peso em um pé e depois no outro. Fazia um calor terrível. O suor começava a escorrer pela bandana desbotada que amarrara na cabeça. Não sabia nada sobre carros e não sabia por que precisava saber, já que ainda faltavam anos e anos até que pudesse dirigir um. O modo como Mouse cantarolava e se ocupava do carro estava começando a irritá-lo.

— Parece tudo certo para mim.

Mouse piscou e abriu os olhos. As mãos estavam sujas de graxa, assim como o rosto de lua cheia e a camiseta branca larga. E aquele era o paraíso de Mouse.

— Está faltando alguma coisa — corrigiu e fechou os olhos de novo. Fez mais alguns minúsculos ajustes, de forma tão gentil quanto um homem apaixonado iniciando uma virgem. O motor gemeu para ele. — Meu docinho — suspirou.

Não havia nada mais fascinante ou sedutor no mundo de Mouse do que uma máquina bem lubrificada.

— Meu Deus, é só um caminhão idiota.

Mouse abriu os olhos de novo e havia um sorriso neles. Ele devia ter uns 20 anos e, por causa do seu tamanho e jeito trabalhador, fora considerado uma aberração pelas outras crianças no orfanato estadual onde fora criado. Ele não confiava nem gostava de muita gente, mas já desenvolvera uma afeição tolerante por Luke.

Havia algo no sorriso dele, meio lento e puro como o de um bebê, que fez com que Luke o retribuísse.

— Já acabou ou ainda vai demorar?

— Já acabei. — Para provar o que acabara de dizer, Mouse fechou o capô, deu a volta no carro para pegar as chaves na ignição e guardá-las no bolso. Nunca se esqueceu da onda de orgulho que sentira quando Max lhe confiara aquelas chaves pela primeira vez. — A caminhonete vai funcionar bem esta noite quando formos para Manchester.

— Por quanto tempo vamos ficar lá?

— Três dias. — Mouse pegou um maço de Pall Malls da manga da camisa e tirou um cigarro com os dentes antes de oferecer o maço para Luke, que o aceitou da forma mais casual possível. — Daremos muito duro hoje à noite para arrumar tudo.

Luke deixou o cigarro pendurado no canto da boca e esperou Mouse acender um fósforo.

— Queria entender como alguém como o sr. Nouvelle acaba em um parque mambembe como este.

A chama aumentou quando Mouse tocou a ponta do seu cigarro.

— Ele tem seus motivos. — Mouse levou o fósforo até o cigarro de Luke, apoiou-se na caminhonete e começou a sonhar acordado sobre a jornada longa e silenciosa que teriam pela frente.

Luke experimentou dar uma tragada e engasgou, tossindo, pois cometeu o erro de inalar. Tossiu tanto, que os olhos chegaram a se encher de lágrimas, mas, quando Mouse olhou para ele, lutou para demonstrar um pouco de dignidade.

— Não é a marca que costumo fumar. — A voz saiu fina antes de dar outra tragada determinada. Daquela vez, engoliu a fumaça, trancou a boca e lutou bravamente para não vomitar o almoço. Parecia que os olhos estavam se revirando para dentro da cabeça para encontrar o estômago que subia pelo seu corpo.

— Ei, garoto. — Preocupado com o tom esverdeado da pele de Luke, Mouse lhe deu urna pancada nas costas, forte o suficiente para fazer Luke cair de joelhos. Quando ele vomitou, Mouse deu pequenos tapinhas em sua cabeça com a mão oleosa. — Caramba. O que você tem? Está doente?

— Temos algum problema aqui? — quis saber Max, caminhando até eles. Lily saiu do seu lado e se agachou ao lado de Luke.

— Oh, querido. Tadinho — sussurrou, esfregando a mão para cima e para baixo nas costas de Luke. — Fique quietinho aí, querido, até que o enjoo passe. — Viu o cigarro aceso que caíra da mão de Luke e estalou a língua, — Mas o que este menino estava fazendo com uma destas coisas nojentas?

— É culpa minha. — Mouse olhava para os pés, sentindo-se envergonhado. — Eu não estava pensando direito quando lhe dei um cigarro, Max. A culpa é toda minha.

— Ele não era obrigado a aceitar. — Max meneou a cabeça enquanto Luke juntou forças para se apoiar nas mãos e nos joelhos, ao mesmo tempo que lutava contra a náusea. — E com certeza ele está pagando o preço. Outra lição grátis: não aceite aquilo que não consegue segurar.

— Ah, deixe o menino em paz. — Os instintos maternais de Lily estavam à flor da pele e ela levou o rosto de Luke até o seu peito, onde ele sentiu o cheiro forte de uma mistura de Chanel e suor. Abraçando Luke apertado, ela olhou de cara feia para Max. — Só porque você nunca ficou doente na vida não significa que não possa demonstrar um pouco de compaixão.

— Você está certa — concordou Max com um sorriso. — Mouse e eu vamos deixá-lo aos seus cuidados.

— Vai ficar tudo bem — murmurou ela para Luke. — Você só precisa vir comigo, querido. Vamos, apoie-se em mim.

— Estou bem.

Mas, quando ele se obrigou a ficar em pé, sentiu a cabeça girar em contraponto ao estômago revirado. O enjoo estendeu os dedos escorregadios através dele com tanta habilidade que não teve nem chance de ficar envergonhado enquanto Lily praticamente o carregou de volta para o trailer.

— Não se preocupe com nada, querido. Você só precisa se deitar um pouco. Isso é tudo.

— Sim, senhora. — Ele queria se deitar. Seria mais fácil morrer desse jeito.

— Não venha me chamar de senhora, querido. Você vai me chamar de Lily, como todo mundo. — Ela o segurou com um braço enquanto abria a porta do trailer. — Você se deita no sofá e eu vou buscar um pano molhado e refrescante.

Gemendo, ele se deitou de bruços e começou a rezar fervorosamente e descobriu que não vomitaria de novo.

— Aqui está, bebê. — Carregando um pano molhado e um balde para ele, se precisasse, Lily se ajoelhou ao lado do menino. Depois de tirar a bandana que envolvia sua cabeça, passou o pano em sua testa. — Você logo se sentirá melhor. Prometo. Tive um irmão que passou mal na primeira vez que fumou. — Ela falava naquele tom calmante que algumas mulheres assumiam de forma tão natural ao falar com doentes. — Mas ele ficou bom rapidinho.

O melhor que Luke conseguiu foi gemer. Já Lily continuou falando enquanto passava o pano pelo rosto e pescoço dele.

— Você só precisa descansar. — Seus lábios se curvaram quando sentiu que ele adormecia. — Isso mesmo, querido. Descanse.

Cedendo ao sentimento, passou os dedos pelos cabelos dele. Eram compridos e grossos, macios e sedosos. Se ela e Max tivessem tido um filho juntos, talvez ele tivesse cabelos como aquele, pensou, melancólica. Entretanto, embora seu coração fosse muito fértil de amor para criar crianças, seu útero era estéril.

O garoto tinha um rosto bonito, pensou. A pele estava dourada de sol e era macia como a de uma garota. A estrutura óssea era boa e forte. E aqueles cílios. Ela soltou outro suspiro. Ainda assim, por mais atraente que o garoto fosse, e por mais que a alma dela desejasse encher a sua vida com crianças, não tinha certeza se Max fizera a coisa certa ao acolhê-lo.

Ele não era órfão como Mouse. Afinal, aquele menino tinha mãe. Por mais dura que a própria vida tenha sido, Lily achava quase impossível acreditar que uma mãe não faria tudo ao seu alcance para proteger, abrigar e amar seu filho.

— Aposto que ela está louca atrás de você, querido — murmurou Lily. Estalou a língua fazendo que não. — Você está pele e ossos. E olhe aqui, sua camisa está toda suada. Mas tudo bem, vamos tirá-la e providenciar para que seja lavada.

Gentil, ela levantou a camisa pelas costas dele. Seus dedos congelaram no pano molhado. Seu grito involuntário fez com que ele gemesse no sono. Enquanto as lágrimas de tristeza e raiva escorriam quentes pelo rosto, ela colocou a camisa no lugar.

 

MAX ESTAVA em frente ao espelho que colocara no palco e ensaiava o seu truque de prestidigitação. Assistiu como o público assistiria às moedas passando pelos seus dedos. Max já apresentara a sua versão das Moedas Simpáticas um milhão de vezes, aprimorando o número, refinando-o como fazia com todos os truques e ilusões que aprendera ou inventara desde a primeira vez que ficara na esquina da Bourbon com St. Louis em Nova Orleans, com sua mesa dobrável, sua caixa de papelão com algumas moedas e o truque dos copos.

Não costumava pensar muito sobre o início de sua carreira, agora que era um homem bem-sucedido com mais de 40 anos. Mas o garoto desesperado e amargo que fora poderia reaparecer para assombrá-lo. Como acontecia naquele momento na forma de Luke Callahan.

O garoto tinha potencial, pensou Max, enquanto dividia uma moeda de ouro em duas partes e, depois, em três.

Com um pouco de tempo, cuidado e direcionamento, Luke poderia se tornar alguém na vida. Seja lá o que decidisse ser, Max deixaria a cargo dos deuses. Se o garoto ainda estivesse com eles quando chegassem a Nova Orleans, eles veriam.

Max ergueu as mãos, uniu-as e apertou uma contra a outra, e todas as moedas começaram a desaparecer, exceto aquela com a qual começara.

— Nada na minha manga — murmurou, perguntando-se por que as pessoas sempre acreditavam naquilo.

— Max! — Um pouco sem fôlego pela corrida pelo parque, Lily correu até o palco.

Para Max, sempre era um prazer olhar para ela. Lily usando short e camiseta confortáveis, com as unhas dos pés pintadas aparecendo na ponta da sandália empoeirada, era sempre uma visão para se apreciar. Mas, quando pegou a mão dela para ajudá-la a subir no palco e viu a expressão no rosto da mulher, seu sorriso se apagou.

— O que houve? Roxanne?

— Não, não. — Abalada, ela o abraçou com força. — Roxy está bem. Ela convenceu um dos biscateiros a deixá-la dar uma volta no carrossel. É sobre aquele menino. Aquele pobre menino.

Então, ele riu e lhe deu um abraço rápido e afetuoso.

— Lily, meu amor, ele ficará enjoado por um tempo e se sentirá envergonhado por muito mais tempo, mas vai passar.

— Não, não é isso. — As lágrimas já escorriam pelo rosto, e ela pressionou a testa contra o pescoço dele. — Fiz com que ele se deitasse no sofá e, quando adormeceu, eu ia tirar a camisa dele. Estava toda suada e eu queria que ele ficasse confortável. — Fez uma pausa e respirou fundo. — As costas dele, Max. As costas daquele pobre menino. As cicatrizes. Cicatrizes antigas e cortes que mal sararam. De uma correia ou um cinto ou só Deus sabe o quê. — Ela enxugou as lágrimas com as costas das mãos. — Alguém deve ter dado surras horríveis naquele garoto.

— Foi o padrasto. — A voz de Max parecia equilibrada. As emoções que inundavam seu coração requeriam o mais absoluto controle. Lembranças, por mais cruéis que fossem, podia deixar para trás. Mas a fúria que sentia por tudo pelo que o garoto passara o venceu. — Temo que eu não tenha acreditado que fosse tão sério. Você acha que ele deveria consultar um médico?

— Não. — Com os lábios apertados, ela meneou a cabeça. — Agora são apenas cicatrizes. Cicatrizes horrendas. Não consigo entender como alguém pode fazer algo assim com uma criança? — Fungou e aceitou o lenço que Max lhe ofereceu. — Eu não tinha certeza se você tinha tomado a decisão certa ao acolhê-lo. Achei que a mãe devia estar muito desesperada para receber notícias dele. — Os olhos meigos dela se endureceram como vidro. — A mãe dele — disse ela com desdém. — Gostaria de colocar as mãos naquela vadia. Mesmo que ela não tenha usado a correia, permitiu que fizessem aquela crueldade com o próprio filho. Bem, ela merece ser espancada. Eu mesma faria isso se tivesse a chance.

— Tão furiosa. — Gentilmente, Max tomou seu rosto nas mãos e a beijou. — Meu Deus, amo tanto você, Lily. Por tantos motivos. Agora, quero que você lave o rosto e tome uma xícara de chá para se acalmar. Ninguém nunca mais machucará aquele garoto.

— Não, ninguém nunca mais o machucará. — Ela apertou os pulsos de Max, e seus olhos brilhavam de emoção, embora a voz estivesse surpreendentemente firme. — Ele é nosso agora.

 

O ENJOO DE Luke já tinha quase passado; porém, a sua vergonha aumentara quando acordou e percebeu que Lily estava sentada ao seu lado, tomando chá. Tentou dar uma desculpa, mas ela começou a falar alegremente sobre as frases gaguejadas dele e lhe ofereceu um prato de sopa.

Ela continuou falando enquanto ele comia, sempre em tom alegre e despreocupado e ele quase se convenceu de que ninguém notara a vergonha que passara.

Então, Roxanne entrou apressada.

Estava suja dos pés a cabeça. Os cabelos que Lily trançara naquela manhã estavam desgrenhados. Havia um arranhão novo no joelho e o short estava rasgado. Exalava um cheiro de animal, pois acabara de brincar com os três terriers do show de cachorros.

Lily deu um sorriso indulgente à garota imunda. Lily adorava ver crianças comerem, mas gostava ainda mais de vê-las cobertas de sujeira, a prova de que tinham brincado bastante e se divertido.

— Será que a minha Roxy está aí em algum lugar?

Roxanne riu, abriu a geladeira para pegar uma bebida gelada.

— Eu fui ao carrossel diversas vezes e Big Jim me deixou atirar argolas até eu me cansar.  — Tomou um gole do refrigerante de uva, acrescentando um bigode roxo à sujeira. — Depois eu fui brincar com os cachorros.

— Virou-se para olhar Luke. — É verdade que você fumou um cigarro e acabou vomitando?

Luke arreganhou os dentes, mas não respondeu.

— Para que você ia querer fazer isso? — continuou ela, tagarelando. — Crianças não devem fumar.

— Roxy — chamou Lily em tom alegre. Levantando-se, começou a levar a garota em direção à cortina. — Você tem de se limpar.

— Mas eu só queria saber...

— Vamos logo. Já está quase na hora do primeiro show.

— Eu queria perguntar...

— Você pergunta muito. Agora, vamos logo.

Aborrecida por ter sido dispensada, Roxanne lançou um olhar de raiva para Luke e encontrou olhos igualmente raivosos. Então, como resposta natural, ela lhe deu língua antes de fechar a cortina atrás de si.

Dividida entre a vontade de rir e a compaixão, Lily se virou para ele.

— Bem... — A raiva e a humilhação de Luke estavam estampadas em seu rosto. — Acho que agora temos de trabalhar. — Era inteligente demais para perguntar se ele já estava se sentindo bem para trabalhar aquela noite.

— Por que você não pega alguns folhetos com os garotos para distribuir assim que o público começar a chegar?

Ele deu de ombros, aceitando a tarefa, e se encolheu quando a mão de Lily se aproximou dele. Ele esperava um soco. Ela percebeu isso no olhar escuro e fixo. Também percebeu como ele ficou confuso quando ela lhe fez um carinho rápido e afetuoso nos cabelos.

Nunca ninguém o tocara daquele jeito. Enquanto ele olhava para ela, surpreso, um nó se formou na garganta dele, impossibilitando-o de dizer qualquer coisa.

— Você não precisa ter medo — disse ela baixinho, como se dividisse um segredo com ele. — Eu nunca machucarei você. — Levou a mão até o rosto dele. — Nem agora. Nem nunca. — Queria abraçá-lo naquele momento, mas achou que era cedo demais. Ele não tinha como saber que era o filho dela agora. E o que pertencia a Lily Bates, ela protegia. — Se você precisar de qualquer coisa — acrescentou ela —, você deve me procurar. Entendeu?

Tudo que ele conseguiu fazer foi afirmar com a cabeça enquanto se levantava. Sentiu um aperto no peito e uma secura na garganta. Sabendo que estava prestes a chorar, apressou-se em sair.

Aprendera três coisas naquele dia. Achava que Max diria que eram lições gratuitas e ele jamais esqueceria alguma das três. Primeiro, nunca mais fumaria cigarro sem filtro. Segundo, ele detestava a metida da Roxanne. Terceiro e mais importante, amava Lily Bates.

 

O VERÃO ESQUENTAVA à medida que eles viajavam para o sul. De Portland para Manchester, seguindo para Albany e, então, Poughkeepsie, onde chovera sem parar por dois dias horríveis. Partiram para WilkesBarre, então foram para o oeste até Allentown, onde Roxanne se divertiu muito com duas gêmeas chamadas Tessie e Trudie. Quando tiveram de partir, dois dias depois, em meio a lágrimas e promessas solenes de amizade eterna, Roxanne sentiu pela primeira vez o sabor das desvantagens de uma vida na estrada.

Ficou mal-humorada por uma semana, enlouquecendo Luke ao exaltar as amigas que ficaram para trás. Ele a evitava o máximo, mas era difícil, já que viviam sob o mesmo teto.

Ele e Mouse dormiam no caminhão, mas a maior parte das refeições eram feitas no trailer. E, em mais de uma ocasião, encontrou-a aguardando por ele do lado de fora do banheiro.

Não era que gostasse dele. Na verdade, ela desenvolveu uma profunda aversão que ainda não reconhecera como uma rivalidade natural entre irmãos. Mas, desde a experiência com Tessie e Trudie, Roxanne passou a desejar ter companhias de sua própria idade.

Mesmo que fosse de um garoto.

Ela fazia o que as irmãs mais novas fazem com os irmãos mais velhos desde o início dos tempos. Tornava a vida dele um inferno.

De Hagerstown seguiram para Winchester. De lá, para Roanoke, e, continuando até Winston-Salem, ela o importunava sem piedade, seguia seus passos e o aborrecia de forma implacável. Não fosse por Lily, Luke poderia ter revidado. Mas, por motivos que fugiam à sua compreensão, Lily era louca pela pequena fedelha.

A prova dessa afeição ficou bastante óbvia durante a apresentação em Winston-Salem.

Roxanne estava atrapalhada com o timing, Luke pensou alegre ao assistir ao ensaio enquanto vadiava na tenda. A magrela tapada não conseguia fazer nada direito naquele dia. E ela choramingava.

O ensaio ruim lhe deu esperanças. Conseguiria fazer o truque bem melhor do que ela, se Max lhe desse uma chance, se Max lhe ensinasse só um pouquinho. Luke já tinha praticado alguns dos floreios e movimentos de palco em frente ao pequeno espelho do banheiro.

Tudo de que ele precisava era que a pentelha da Rox pegasse uma doença incurável ou sofresse um trágico acidente. Se ela saísse de cena, poderia assumir seu lugar com facilidade.

— Roxanne — disse Max com paciência, interrompendo os pensamentos de Luke —, você não está prestando atenção.

— Estou, sim. — Seus lábios formaram um beicinho, e os olhos se encheram de lágrimas. Odiava ficar presa naquela tenda velha e quente.

— Max — chamou Lily, entrando no palco. — Talvez devêssemos dar um tempo a ela.

— Lily. — Max lutava para manter a calma.

— Estou cansada de ensaiar — continuou Roxanne, levantando seu rosto corado e triste.  — Estou cansada do trailer, do show e de tudo mais. Eu quero voltar para Allentown e ver Tessie e Trudie.

— Temo que isso seja impossível. — As palavras da filha feriram o orgulho de Max e abriram um buraco por onde lhe penetrava a culpa. — Se você não quer atuar, isso é uma escolha sua. Mas, se eu não posso contar com você, terei de substituí-la.

— Max! — Consternada, Lily deu um passo à frente, somente para congelar no lugar quando Max levantou uma das mãos.

— Sendo minha filha — continuou ele, enquanto uma lágrima solitária escorria pela bochecha de Roxanne —, você tem o direito de ter quantos ataques de raiva você quiser. Mas, sendo minha funcionária, você vai ensaiar quando for chamada para os ensaios. Está entendido?

Roxanne abaixou a cabeça.

— Sim, papai.

— Muito bem então. Agora, por que não paramos um pouco para nos reorganizar? Vá secar seu rosto. — Aproximou-se e pôs a mão em seu queixo. — Eu quero que você... — Parou e colocou a palma da mão na testa da filha. Sentiu um frio no estômago. — Ela está fervendo — disse com uma voz estranha. — Lily. — E o Grande Nouvelle, o Extraordinário Mágico, olhou em direção à amada sem defesa. — Ela está doente.

— Oh, pobrezinha. — Na mesma hora Lily estava de joelhos, verificando, ela mesma, a febre. A testa de Roxanne estava quente e úmida sob sua mão. — Querida, a sua cabeça dói? Seu estômago?

Duas grandes lágrimas se derramaram no chão do palco.

— Eu estou bem. Só está calor aqui. Não estou doente, eu quero ensaiar. Não deixe que o papai me substitua.

— Oh, deixe de bobagem. — Os dedos ágeis de Lily tateavam o pescoço de Rox em busca de glândulas inchadas. — Ninguém vai substituir você. — Colocando a cabeça de Roxanne sobre o ombro, Lily olhou para Max, que estava branco como um lençol. — Acho que devemos ir até a cidade e procurar um médico.

Em silêncio, Luke viu Max levando uma Roxanne em lágrimas embora. Seu maior desejo estava se tornando realidade, ele se deu conta. A fedelha estava doente. Talvez até estivesse com a peste. Com o coração disparado, saiu correndo da tenda e observou a poeira levantada pelo caminhão que partia para a cidade.

Talvez ela morresse antes mesmo que chegassem à cidade. Aquele pensamento lhe causou um tremor de pânico que foi seguido por uma onda terrível de culpa. Ela parecera tão pequena nos braços de Max.

— Aonde eles foram? — perguntou Mouse, arfando um pouco, já que correra depressa quando ouviu o barulho de seu amado motor ligando.

— Médico. — Luke mordeu o lábio com força. — Roxanne está doente.

Antes que Mouse pudesse perguntar mais alguma coisa, Luke se afastou. Esperava que, se Deus existisse mesmo, Ele saberia que Luke não desejara aquilo de verdade.

 

FORAM DUAS horas apavorantes até que o caminhão voltasse da cidade. Enquanto estacionava, Luke se aproximou do caminhão, mas seu coração quase parou quando viu Max pegando uma Roxanne molenga dos braços de Lily e a levando em direção ao trailer.

— Ela está... — Sua garganta fechou na palavra com "M".

— Dormindo. — Lily deu um sorriso distraído a ele. — Sinto muito, Luke, é melhor você ir agora. Teremos muito trabalho por um tempo.

— Mas... mas... — Começou a andar e seguiu Lily até o trailer. — Ela está, quero dizer...

— Os próximos dias serão bem difíceis, mas, assim que a crise passar, ela vai ficar bem.

— Crise? — Sua voz estava áspera. Jesus nos ajude, era a peste.

— Além disso, está tão calor — murmurou ela. — Bem, nós a deixaremos o mais confortável possível enquanto isso durar.

— Eu nunca quis isso — Luke deixou escapar. — Eu juro, eu nunca quis deixá-la doente.

Embora a cabeça dela estivesse em outro lugar, Lily parou à porta.

— Não foi sua culpa, querido. Na verdade, creio que Roxy tenha trazido mais de Trudie e Tessie do que promessas de amizade eterna. — Sorriu enquanto entrava pela porta. — Parece que ela pegou catapora de bônus.

Luke ficou boquiaberto enquanto Lily fechava a porta na cara dele. Catapora? Ele quase morrera de medo, e tudo o que a fedelha tinha era catapora?

 

— Eu CONSIGO fazer isso. — Luke permanecia com teimosia no centro do palco, observando com raiva enquanto Max manipulava as cartas. — Eu consigo fazer qualquer coisa que ela faça.

— Você está longe de estar pronto para atuar. — Max arrumou as cartas na mesa e fez uma virada impressionante.

Fazia três dias que Roxanne estava de cama, com febre, perebenta e infeliz. E, sempre que tinha uma oportunidade durante aquele período, Luke batia na mesma tecla:

— Você só precisa me ensinar o que fazer. — Importunava Mouse para que lhe ensinasse o truque do chapéu-gigante e deu de cara em uma parede intransponível de lealdade. — Eu ouvi quando você disse a Lily que tem um buraco no espetáculo agora que Roxanne está doente. E ela não estará bem para se apresentar por pelo menos mais dez dias.

Pensando em acrescentar um número de mágica final para compensar ausência de Roxanne, Max começou a preparar uma variação do número levitação.

— Sua preocupação com a saúde dela é tocante, Luke.

Corou enquanto enfiava as mãos nos bolsos.

— Não é minha culpa se ela está doente. — Aquela altura, ele já tinha certeza daquilo. — E é só catapora.

Insatisfeito com o truque de prestidigitação, Max largou o baralho. O garoto era inteligente, ponderou Max, e poderia fazer um número simples como o do chapéu-gigante.

— Venha aqui. — Luke deu um passo à frente; no momento em que seu olhar encontrou o de Max, algo nos olhos dele fez Luke conter um calafrio. — Jure — disse Max, com voz profunda e forte sob a tenda poeirenta. —Jure por tudo o que você é e por tudo o que será um dia que jamais revelará os segredos da arte que lhe será mostrada.

Luke queria sorrir e dizer para Max que era só um truque. Mas não conseguiu. Percebeu que aquilo era maior do que podia imaginar. Quando conseguiu falar, sua voz não passou de um sussurro.

— Eu juro.

Max analisou o rosto de Luke por mais um tempo e, então, assentiu. — Muito bem. É isto que eu quero que você faça.

Era realmente bem fácil. Quando percebeu a simplicidade daquilo, ficou surpreso como ele e todo mundo foram enganados. Odiava ter de admitir para si mesmo e se recusava a admitir para Max, mas, agora que sabia como Roxanne se tornava o coelho e como ela desaparecia sob a capa, se sentia um pouco desapontado.

Max não lhe dera tempo para lidar com a perda da inocência. Trabalharam, repetindo a sequência por mais de uma hora. Aperfeiçoando o timing, coreografando cada movimento, substituindo alguns detalhes que tinham a ver com Roxanne por algo que combinasse com Luke.

Aquilo era cansativo, incrivelmente monótono, mas Max se recusava a aceitar qualquer coisa que não fosse a perfeição.

— Para que se preocupar tanto com um bando de caipiras? Por um dólar amassado eles já ficariam satisfeitos com alguns truquezinhos de mágica e um coelho na cartola.

— Mas eu não. Execute, em primeiro lugar, para si próprio e, assim, você sempre dará o seu melhor.

— Mas você, com tudo que sabe fazer, não precisa trabalhar em um circo barato como este.

Os lábios de Max se curvaram sob seu dedo enquanto ele alisava o bigode.

— Obrigado pelo elogio, mesmo que mal formulado. É um erro acreditar que alguém seja obrigado a ficar em algum lugar onde não deseja estar. Eu sinto certo prazer na vida nômade. E, já que você obviamente não percebeu, eu sou o dono deste circo barato.

Balançou a capa sobre Luke, estalou os dedos duas vezes e riu quando a forma por baixo do pano negro não desapareceu.

— Um bom assistente de mágico nunca perde a sua deixa, por mais distraído que esteja.

Luke bufou de raiva sob a capa e logo sua forma desapareceu. Longe de estar decepcionado com o progresso de Luke, Max pensou que o garoto serviria. Poderia usar a insolência de Luke, seus anseios e atitude desafiadora, assim como sua vulnerabilidade subjacente. Usaria tudo o que Luke era e, em troca, daria ao garoto um lar e a chance de escolher.

Era um negócio justo, considerou Max.

— Mais uma vez — disse de forma simples, enquanto Luke voltava ao palco vindo dos bastidores.

Depois de mais uma hora, Luke se perguntou por que desejara tanto fazer parte da apresentação. Quando Lily entrou na tenda, estava prestes a dizer a Max o que ele poderia fazer com sua varinha mágica.

— Sei que estou atrasada — começou enquanto se apressava. — Parece que está dando tudo errado hoje.

— Roxanne?

— Com febre e mal-humorada, mas resistindo. — Lily franziu o cenho de preocupação enquanto olhava por cima do ombro. — Odeio deixá-la sozinha. Estão todos ocupados agora, então eu... Luke. — Na mesma hora a testa de Lily voltou ao normal. — Querido, você me faria um grande favor se pudesse ficar com ela por uma hora mais ou menos.

— Eu? — Ela poderia muito bem ter lhe pedido para comer sapos.

— Ela precisa de companhia. Ajuda a fazê-la se esquecer da dor.

— Bem, sim, mas... — Então, teve uma ideia. — Bem que eu gostaria, mas Max precisa que eu ensaie mais.

— Ensaiar?

Nenhum mentalista poderia ter lido a mente de Luke com mais clareza. Max sorriu, apoiando amigavelmente a mão no ombro do garoto. Fizemos algum progresso, pensou naquele momento. Seu toque provocara em Luke apenas um breve instante de tensão.

— Conheça o mais novo membro de nossa alegre equipe — disse ele a Lily. — Luke vai fazer um número esta noite.

— Esta noite? — Alerta, Luke se virou e encarou Max.

— Só esta noite? Eu não estou aqui suando e ensaiando esse tempo todo para apenas uma noite.

— É isso que vamos ver. Se você for bem esta noite, haverá amanhã à noite. Isso é o que chamamos de período probatório. De qualquer forma, já treinamos o suficiente para o momento. Então você está totalmente livre para distrair Roxanne. — Havia um brilho em seus olhos quando ele se inclinou para o garoto. — Você apostou contra a casa mais uma vez, Luke. Você perdeu.

— Que merda! Eu não faço a menor ideia do que fazer com ela — resmungou Luke enquanto saía do palco pisando duro. Lily suspirou.

— Você poderia jogar algum jogo com ela — sugeriu. — E, querido, seria bom se não dissesse palavrões perto da Roxy.

Ótimo, pensou ele saindo da tenda escura para a luz do sol. Não falaria palavrões perto dela e sim para ela.

Abriu com força a porta do trailer e seguiu direto até a geladeira. O impulso de olhar por cima do ombro enquanto pegava uma bebida gelada ainda era grande. Luke sempre esperava que alguém chegasse e batesse nele por pegar comida.

Ninguém o fez. Mas ainda se sentia um pouco envergonhado pela forma como se comportara na primeira semana com Max. Entrara no trailer sozinho e encontrado uma grande tigela de sobras de macarronada. Devorara tudo, mesmo frio, empanturrando-se. A lembrança de tantos dias de fome o machucava.

Esperara ser punido. Esperara que lhe dissessem que não poderia comer mais nada por um dia, talvez dois. Como sua mãe fizera com ele tantas vezes. Preparando-se para aquilo, escondera barras de chocolate e sanduíches na mochila.

Mas ele não foi punido. Ninguém falou nada.

Sem ninguém para pressioná-lo, Luke improvisou um sanduíche com um pouco da carne do almoço e o comeu antes de ir até Roxanne.

Movia-se em silêncio, outro hábito que precisou desenvolver. Assim que entrou no corredor estreito, escutou a balada de Jim Croce, "Leroy Brown". Roxanne cantava junto com o rádio, adicionando um soprano modulado.

Entretido, Luke espiou pela porta. Ela estava deitada de barriga para cima, olhando para o teto enquanto ouvia o rádio ao seu lado. Em uma pequena mesa de cabeceira redonda, havia uma jarra com suco e um copo, alguns frascos de remédio e um baralho.

Alguém pregara pôsteres nas paredes. A maioria relacionada à mágica, mas o pôster brilhante de David Cassidy fez Luke ter vontade de vomitar. Só servia para mostrar que as garotas não tinham jeito mesmo.

— Cara, isso é nojento.

Roxanne virou a cabeça e o viu. Quase sorriu de tanta vontade de se divertir um pouco.

— O que é nojento?

— Aquilo. — Apontou para o pôster enquanto segurava sua Coca-Cola. — Pendurar uma foto daquele veadinho na sua parede.

Satisfeito com a gozação, Luke tomou um gole da Coca enquanto a analisava. A pele branca estava manchada, pintada com horríveis feridas avermelhadas. Estavam por todo o rosto, e eram tantas que Luke achou que aquilo é que era realmente horrível. Perguntou-se como Lily e Max conseguiam olhar para ela.

- Caraca, você está com essa merda por toda parte, não é? Parece que saiu de algum filme de terror.

— Lily disse que as manchas vão sumir logo e que eu vou ficar bonita de novo.

— Provavelmente vão sumir — disse ele, colocando na voz um tom de dúvida suficiente para preocupar Roxy. — Mas você continuará feia.

Ela se esqueceu da dor horrível de estômago e se sentou na cama.

— Tomara que você pegue catapora de mim e fique cheio de manchas, até no pinto.

Luke se engasgou com o refrigerante e deu um sorriso irônico. — Dá um tempo. Eu já tive isso. Catapora é para bebês.

— Eu não sou um bebê.

Nada a deixava com mais raiva. Antes que Luke pudesse se esquivar, saltou e se jogou em cima dele, dando socos. A garrafa de Coca voou e acertou a parede, espalhando o líquido para todo lado. Poderia ter sido engraçado, ele até soltou uma gargalhada antes de ela o atingir com toda sua fragilidade. Seus braços eram como dois gravetos.

— Tá bem, tá bem. — Por ter se lembrado de que esteve perto de desejar-lhe a morte, não quis arriscar que ela tivesse uma convulsão. — Você é um bebê. Agora volte para a cama.

— Estou cansada de ficar na cama. — Mas voltou para lá, com a ajuda de um nada gentil empurrão de Luke.

— Bom, durona. Merda, olha essa bagunça. Acho que vou ter que limpar isso.

— Foi culpa sua — afirmou e, com uma expressão inocente, olhou com determinação pela janela, fazendo uma pose de uma mulher mais velha no corpo de uma criança. Resmungando sem parar, Luke foi procurar um pano.

Depois que limpou todos os respingos, ela continuou a ignorá-lo. Luke trocou o pé de apoio.

— Poxa, eu retirei o que eu disse, não retirei?

Ela virou um pouco o rosto na direção dele, mas sem derreter o gelo.

— Você vai se desculpar por ter me chamado de feia?

— Acho que eu poderia.

Silêncio.

— Tá bem, tá bem. Nossa. Desculpe por ter chamado você de feia. Roxanne esboçou um sorriso.

— E vai se desculpar por ter dito que David Cassidy era nojento? Agora ele deu uma risada.

— Sem chance.

Os lábios de Roxanne se encurvaram em resposta.

— Acho que está tudo bem, já que você é um garoto. — O pequeno sabor do poder fora agradável. Na esperança de degustá-lo mais, ela abriu um sorriso. Mesmo aos oito anos, esse sorriso tinha poder. Ela era, afinal, filha de seu pai.

Você poderia me dar um pouco de suco?

— Acho que sim.

Pegou a jarra e colocou um pouco de suco no copo antes de entregar a ela.

— Você não fala muito — disse ela um pouco depois.

— E você fala demais.

— Eu tenho muita coisa para falar. Todos dizem que sou brilhante. —Ela também estava bastante entediada. — Nós poderíamos jogar um jogo, se você quiser.

— Estou muito velho para jogos.

— Não está não. O papai diz que ninguém é velho demais para jogos. É por isso que as pessoas são enganadas em monte de três cartas e bolas nos copos nas esquinas e perdem dinheiro. — Vislumbrou um breve lampejo de interesse no rosto de Luke e atacou. — Se jogar Go Fish* comigo, eu ensino um truque de mágica com as cartas para você.

Luke não teria sobrevivido até os 12 anos se não tivesse aprendido a negociar.

— Você me ensina o truque primeiro e depois jogamos.

— Nã-não. — O sorriso de Roxanne era convencido, mais jovem e um pouco mais inocente do que o sorriso de uma mulher que acabara de enganar seu homem. — Eu vou mostrar o truque, e então vamos jogar. Aí depois eu ensino para você como fazer.

Ela pegou na mesa o baralho enrolado em um elástico e o embaralhou com uma considerável habilidade. Concentrado, Luke se sentou na beirada da cama enquanto observava as mãos de Roxanne.

— Bem, este truque se chama "Achado e Perdido". Você escolhe qualquer carta e diga alto o nome dela.

— Grande truque esse, que eu tenho que dizer a você a carta — resmungou Luke. Todavia, quando ela embaralhou as cartas novamente, ele escolheu o rei de espadas.

— Oh, você não pode escolher essa carta — informou Roxanne.

— Por que não? Você disse qualquer droga de carta.

— Mas você não pode ver o rei de espadas, ele não está aqui. — Sorrindo, virou as cartas para cima, e o queixo de Luke caiu. Que droga, ele tinha acabado de ver aquele rei. Como ela fizera com que ele desaparecesse?

— Você o pegou e o escondeu.

Roxanne abriu um sorriso, satisfeita.

— Ah, não há nada nas minhas mangas — disse ela e, colocando o baralho em seu colo, levantou ambas as mãos para mostrar que estavam vazias. — Você pode escolher outra carta.

Dessa vez, com os olhos afiados, escolheu o três de paus. Com um leve suspiro, ela meneou a cabeça.

* Jogo de cartas com regras bem simples. (N.T.)

— Você continua escolhendo cartas perdidas. — Após virar as cartas devagar, Luke observou não só que o três sumira como o rei estava de volta.

Frustrado, tentou agarrar o baralho, mas Roxanne o balançou acima da cabeça.

— Eu não acredito que seja um baralho normal.

— Não acreditar é o que torna mágica a mágica. — Roxanne parafraseou o pai com grande seriedade. Deu uma embaralhada bem astuta nas cartas e as espalhou sobre o lençol com as faces para cima. Um movimento de sua mão apontou que ambas as cartas que Luke escolheu estavam entre as cinquenta e duas.

Ele bufou de raiva, derrotado.

— Tá bem, como você fez isso?

Sorrindo mais uma vez, ela executou quase que perfeitamente sua reviravolta.

— Primeiro, Go Fish.

Ele a teria mandado ir para o inferno. Mas a satisfação de xingá-la era menor do que a vontade de aprender a fazer o truque.

Depois de duas partidas do jogo, ele estava relaxado o suficiente para trazer aos dois uma bebida gelada e uns biscoitos.

— Vou ensinar o truque agora — ofereceu, feliz por ele não estar irritado. — Mas você tem de jurar nunca revelar o segredo.

— Eu já fiz o juramento.

Ela estreitou os olhos.

— Como assim? Quando?

Ele poderia ter mordido a língua.

— No ensaio, ainda há pouco — contou, relutante. — Eu vou substituí-la até você melhorar.

Ela fez bico e, devagar, pegou as cartas e começou a embaralhá-las. Ocupar as mãos sempre a ajudava a pensar.

— Você está roubando o meu lugar.

— O Max disse que havia um buraco no espetáculo sem você. Eu estou tapando esse buraco. — Então, com uma diplomacia que ele não sabia que tinha, acrescentou: — É só por um tempo. Pelo menos, foi o que o Max disse. Talvez seja apenas por esta noite.

Depois de pensar mais um pouco, ela assentiu com a cabeça.

— Se o papai disse, então está bem. Ele disse que sentia muito em ter que me falar que me substituiria. Disse que ninguém jamais conseguiria.

Luke não fazia ideia de como seria ser amado daquela forma ou de onde poderia vir tanta confiança. Sentia a inveja apertar o seu peito.

— É assim que se faz — começou Roxanne, atraindo a atenção de Luke para si. — Primeiro, você deve arrumar as cartas em um monte. — Dividiu o monte em duas pilhas e começou a mostrar a Luke com toda a paciência de uma professora de primeira série ensinando o aluno a escrever o próprio nome.

Executou o truque duas vezes, passo a passo, e entregou o baralho a ele.

— Agora você.

Como Max dissera, o garoto tinha boas mãos.

— Isso é legal — murmurou ele.

— Mágica é demais.

Quando ela sorriu, ele sorriu de volta. Por um momento, eles eram simplesmente duas crianças dividindo um bom segredo.

 

MEDO DE palco era uma experiência nova e humilhante para Luke. Estava pronto, arrogante e ansioso enquanto aguardava nas coxias. O smoking de segunda mão, ajustado às pressas pelas mãos hábeis de Mama Franconi, fazia com que se sentisse um astro. Repassava em sua cabeça os movimentos e ações, enquanto Max aquecia a plateia com algum truque bobo com as mãos.

Aquilo não era nada de mais, pensava. Só um número classe A, que lhe garantiria dez dólares extras por noite, enquanto Roxanne estivesse coberta de manchas vermelhas. Se o prognóstico do médico estivesse correto, isso significaria cem dólares para seu Fundo Miami.

Enquanto comemorava sua sorte e caçoava do pessoal de olhos arregalados da primeira fila, Mouse cutucou seu ombro:

— Está quase na hora.

— Hã?

— A sua deixa.

Mouse fez um gesto com a cabeça em direção ao palco, onde Lily, com seu collant, dançava de forma provocante para os homens da plateia.

— Minha deixa. — Sentiu as entranhas gelarem, e, quando falou, o coração veio à boca.

Mouse assentiu com um resmungo, já empurrando Luke em direção ao palco, pois fora alertado por Max para lidar com situações como aquela.

Quando o menino magrelo tropeçou no smoking folgado, a plateia soltou risinhos. Em contraste com a lapela lustrosa, seu rosto estava branco como cera. Não foi até o lugar marcado e esqueceu a primeira fala. Enquanto o suor escorria pelas costas, o melhor que conseguiu fazer para lidar com a situação foi encarar a plateia sorridente com olhos firmes.

— Ah. — Tão suave quanto os lenços de seda que fizera aparecer e desaparecer, Max caminhou até ele. — Meu jovem amigo parece perdido. —Para o público, parecera que Max havia passado a mão amigavelmente nos cabelos de Luke. Não perceberam que os dedos ágeis cutucaram sua nuca a fim de acordá-lo do pânico da noite de estreia.

Luke estremeceu, piscou e engoliu seco.

— Ih, ah... — Droga, qual era mesmo a fala? — Perdi meu chapéu —falou rápido, seu rosto foi do branco ao vermelho enquanto as gargalhadas sacudiam o palco. Pro inferno com eles, disse a si mesmo dando de ombros. Neste momento, ele se transformou de um garotinho assustado em um rapaz arrogante. — Tenho um encontro com Lily, sem minha cartola não posso levar a linda dama pra dançar.

— Um encontro com Lily? — Como ensaiado, Max primeiro pareceu surpreso, depois chateado, choroso. — Você está enganado, a adorável Lily já tem um compromisso comigo esta noite.

— Acho que ela mudou de ideia. — Luke sorriu e enfiou os dedos em volta das lapelas.  — Ela está me esperando. Nós vamos... — Um pouco de encenação, e uma rosa vermelha enorme saltou de sua lapela. — ... dar um passeio pela cidade.

A chuva de aplausos, para seu primeiro truque de mágica em público, acenava como uma mulher sedutora.

Luke Callahan encontrara sua vocação.

— Entendo. — Max olhou de relance para a plateia. — Você não é muito jovem para uma mulher com os encantos de Lily?

Agora, ele já falava se divertindo.

— Compenso com energia o que me falta em idade.

A observação, feita com um sorriso debochado, arrancou altas gargalhadas da plateia. O som das gargalhadas fez com que Luke sentisse uma mudança interior. Enquanto ficava mais confortável, o ar de desprezo se transformou num sorriso.

— Mas é claro que um cavalheiro não pode acompanhar uma dama pela cidade, sem sua cartola. — Max esfregou suas mãos e olhou para o lado esquerdo do palco. — Acho que essa foi a única cartola que vi esta noite. —Um foco de luz se acendeu sobre uma enorme cartola. — Parece um pouco grande, mesmo para um cabeção como o seu.

Andando de um lado para outro, Luke colocou os dedos polegares nas presilhas de sua calça.

— Estou de olho em seus truques, meu velho. Vou pegar leve com você, se devolver minha cartola ao tamanho normal.

— Eu? — Max colocou a mão no peito com as sobrancelhas levantadas. — Você está me acusando de usar magia para estragar sua noite com Lily?

— Isso mesmo! — Não era exatamente essa a fala ensaiada, mas Luke falou em tom de ameaça, tocando a aba da cartola. — Vamos logo com isso.

— Muito bem, então. — Max suspirou, obviamente devido à falta de boas maneiras do menino. — Faça a gentileza de entrar na cartola. — Sorriu enquanto Luke o encarava seriamente.

— Tudo bem, mas nada de gracinhas. — Com agilidade, Luke pulou para dentro da cartola. — Lembre-se, estou de olho em você.

Max sacou sua varinha no momento em que Luke sumiu dentro da cartola.

— E, presto! Pura magia. — Tirou um coelho branco da cartola. Enquanto a plateia gritava, Max a inclinou para mostrar que estava totalmente vazia. — Tenho minhas dúvidas de que agora Lily vá se interessar em passear com ele pela cidade.

Respondendo à provocação, Lily apareceu. Quando viu o coelho se debatendo nas mãos de Max, deu um chilique.

— De novo, não! — Virou-se irritada para a plateia. — Já é o quarto coelho este mês. Deixe-me dar um conselho, meninas, não namorem um mágico ciumento. — Em meio às gargalhadas, dirigiu-se a Max. — Traga ele de volta.

— Mas, Lily...

— Traga ele de volta já! — Colocou as mãos nos quadris. — Ou nosso namoro acabou.

— Muito bem. — Muito contrariado, Max enfiou o coelho de volta na cartola, suspirou e, em seguida, bateu duas vezes com sua varinha na aba. Luke apareceu reluzente. A plateia ainda aplaudia enquanto Luke se livrava da cartola e reaparecia com os braços para o alto. E, então, uma chuva de gargalhadas, quando perceberam o rabo do coelho que estava estrategicamente escondido debaixo de seu smoking.

Não demorou muito para que Luke aprendesse a se divertir um pouco. Girou a cabeça, deu três voltas em seu redor, tentando olhar o traseiro.

— Um pequeno erro de cálculo. — Max se desculpou quando as coisas se acalmaram. —  Para provar que não há ressentimentos, vou fazer isso desaparecer.

— Você jura? — perguntou Lily, fazendo beicinho.

— Pela minha honra. — Max jurou, com a mão no coração. Tirou a capa e cobriu Luke, depois passou sua varinha mágica sobre a forma envolta em seda. No mesmo instante em que a capa caía ao chão, Max a puxou para o alto por uma das pontas.

— Max! — Lily suspirou horrorizada.

— Mantive minha palavra. — Curvou-se para ela e depois para a plateia, que aplaudia. — O rabo se foi, e aquele moleque abusado também.

Enquanto Lily e Max finalizavam, Luke estava nas coxias, petrificado. Eles estavam aplaudindo, sim, eles o estavam aplaudindo. Luke se inclinou um pouco, olhando fixamente para Max, que se preparava para serrar Lily em duas.

Por alguns instantes eles se entreolharam. Foram instantes tão cheios de compreensão e alegria que Luke sentiu um nó na garganta.

Pela primeira vez na vida, ele começava a gostar de outro homem. E não havia nenhuma vergonha nisso.

 

LUKE FICOU vagando. Muito tempo depois do último espetáculo, ainda podia ouvir o som dos aplausos e gargalhadas na sua cabeça, como uma canção antiga, que repetia sempre a mesma melodia.

Ele era alguém, por alguns minutos ele fora alguém importante. Desaparecera diante dos olhos perplexos de dezenas de pessoas.

E elas acreditaram.

Esse era o segredo, fazer com que as pessoas acreditassem que não era ilusão, ainda que por apenas alguns segundos. Luke dizia para si mesmo, enquanto caminhava entre os funcionários do parque que ainda trabalhavam entre a multidão que já se dispersava. Isso era poder. O verdadeiro poder que ia além de socos e fúria. Perguntava-se se seria capaz de explicar alguém que tudo era poder da mente. E, naquele momento, sua cabeça estava tão cheia desse poder que achava que poderia se abrir e uma luz se espalharia, branca e quente.

Max compreenderia a sensação, ele sabia disso, mas não estava preparado para compartilhar seu pensamento com ninguém. Naquela noite, a sensação da estreia seria só dele.

Quando colocou a mão no bolso, seus dedos amassaram os dez dólares que Max lhe dera depois do último show. A vontade de gastá-los era enorme, maior até do que a fome que ele aprendera a ignorar. Estava com os olhos fixos nas luzes desfocadas da roda-gigante, ouvia o barulho dos carrinhos que giravam. Esta noite poderia andar em todos os brinquedos do parque.

A pequena figura usando jeans e camisa larga que passou bem na frente de seus olhos fez com que parasse, franzisse a testa e gritasse.

— Roxanne! Ei, ei, Rox! — Correu atrás dela afobado e agarrou seu braço. — O que você pensa que está fazendo?

Ela pensara que não teria problema. Pensara que estava enfiada na cama enquanto Luke roubava seu lugar no palco. Pensara em como os dias se tornaram intermináveis e em como passava as noites se coçando. E pensara no fato de que estariam em Nova Orleans, deixando a temporada de verão para trás, antes que tivesse se livrado da catapora.

— Eu vou andar nos brinquedos.

— Não vai mesmo!

Seu rosto pálido ficou vermelho de raiva.

— Você não manda em mim, Luke Callahan. Nunca mandou e nunca vai mandar. Eu vou andar na roda-gigante agora.

— Olha, sua cabeça de titica... — Mas, antes que Luke pudesse terminar a frase, ela lhe deu uma cotovelada no estômago. E, quando ele recuperou o fôlego, ela já estava longe. — Que droga, Roxy! — Conseguiu alcançá-la porque ela ficou presa numa fila. Começou a arrastá-la, e desta vez levou uma dentada.

— Você está maluca?

— Eu vou andar nos brinquedos! — Cruzou os braços sobre o peito magro. As luzes coloridas brincavam em seu rosto criando um efeito divertido em suas manchas.

Ele poderia ter ido embora, certamente Roxy não contaria a ninguém sobre esse encontro. Além disso, não era da conta dele mesmo, mas, por razões que não podia entender, empacou ao lado da menina. Luke acabara de pegar o dinheiro para pagar as entradas, quando o operador do brinquedo, que conhecia bem Roxy, acenou chamando os dois.

Como uma princesa concedendo uma audiência, Roxanne deixou que Luke a acompanhasse.

— Você pode vir comigo se quiser.

— Poxa, obrigado! — Ele pulou a seu lado e esperou pelo dique da barra de segurança.

Roxanne não gritou nem se assustou quando a roda começou a girar para trás. Simplesmente se sentou e fechou os olhos com um sorrisinho de satisfação nos lábios. Anos depois, Luke se lembraria daquele momento e perceberia que ela parecia uma mulher realizada relaxando numa poltrona, depois de um longo dia de trabalho.

Não abriu a boca até a roda dar uma volta completa, e, quando falou, sua voz soou estranhamente adulta.

— Estou cansada de ficar dentro do trailer. Não consigo ver as luzes, não consigo ver as pessoas.

— Toda noite é igual.

— Toda noite é diferente. — Então abriu os olhos, esmeraldas onde todas as luzes coloridas à sua volta se refletiam. Inclinou-se sobre a barra, o vento balançou os cabelos ondulados em direção ao céu. — Está vendo aquele homem magrelo lá embaixo, aquele com o chapéu de palha? Eu nunca tinha visto antes. E aquela menina de shorts carregando o cachorrinho de pelúcia? Também não conheço. Por isso é sempre diferente. —Enquanto eles subiam de novo, ela olhou para as estrelas. — Eu achava que a gente ia até o céu, que eu ia poder tocar e trazer algumas estrelas para mim. — Deu um sorriso adulto o bastante para se divertir com o pensamento infantil, e infantil o bastante para desejar que se tornasse realidade. — Eu queria poder fazer isso, pelo menos uma vez.

— Ia ser bom ter um monte delas aqui embaixo. — Ele sorriu também. Fazia muito tempo que não andava numa roda-gigante, tanto tempo que mal se lembrava da sensação do estômago revirando e do sangue correndo rápido pelas veias.

— Você fez um bom trabalho no show desta noite — disse Roxanne de repente. — Ouvi papai dizer isso, conversando com Lily. Eles achavam que estava dormindo.

— Mesmo? — Luke fez força para fingir indiferença.

— Ele disse que viu alguma coisa em você e que você não o desapontou. Roxanne levantou os braços bem para o alto. A sensação do vento roçando sua pele era deliciosa. — Acho que você vai ser parte do espetáculo.

A onda de excitação que tomou conta de Luke não tinha nada a ver com a descida rápida da roda-gigante.

— Já tenho algo pra fazer. — Deu de ombros para demonstrar indiferença. - Pelo menos, enquanto eu estiver por aqui. — Quando percebeu, ela estava olhando para ele, analisando.

— Ele disse que você fez coisas e viu coisas que não deveria ter visto. Que coisas são essas?

Humilhação, raiva e terror lutavam dentro dele. Max sabia, de alguma maneira ele sabia. Sentiu um calor subindo, mas a voz saiu fria.

— Eu não sei do que você está falando.

— Sabe sim.

— Se eu sei, não é da sua conta.

— Se você for ficar com a gente, é da minha conta sim. Eu sei tudo sobre Mouse, Lily e LeClerc.

— Quem é esse LeClerc?

– Ele é nosso cozinheiro em Nova Orleans e ajuda o papai no espetáculo do cabaré. Ele assaltava bancos.

— Tá brincando?

Satisfeita por ter conseguido atrair toda a atenção de Luke, Roxanne continuou.

— Ele foi pra prisão e tudo mais. Ensinou papai a abrir qualquer fechadura. — Sentindo que estava perdendo o controle sobre ele, parou de contar. — Então eu tenho que saber tudo sobre você também. É assim que funciona.

— Eu ainda não disse se vou ficar, tenho meus planos.

— Você vai ficar — disse Roxanne meio que para si mesma. — Papai quer que você fique e Lily também. Papai vai lhe ensinar a ser mágico, se você quiser. Que nem ele me ensina. Só que eu vou ser melhor. — Seus cílios nem se moveram com o riso debochado dele. - Eu vou ser a melhor.

— Bem, isso nós veremos — murmurou enquanto subiam até o céu. Virando a cabeça na direção do vento, Luke estava quase acreditando que o que fizera não era nada, comparado ao que ainda poderia fazer.

 

A PRIMEIRA IMPRESSÃO de Luke sobre Nova Orleans foi uma mistura confusa de sons e aromas. Enquanto Max, Lily e Roxanne estavam deitados no trailer, ele se espremia na cabine do caminhão, chateado com o sono entrecortado ao som do zunido desafinado de Mouse. Os dois discutiram sobre ligar o rádio desde Shreveport, mas Mouse se mantinha firme. Recusava-se a permitir qualquer som que interferisse no prazer de escutar seu motor.

Agora outros barulhos começavam a adentrar a mente entorpecida de Luke. Vozes altas e gargalhadas barulhentas, estrondos de saxofones, tambores e trompetes. Enquanto começava a acordar, achou que estavam de volta ao parque. Sentia o cheiro de comida e tempero no ar, e o fedor do lixo apodrecendo no calor.

Bocejando, abriu os olhos e olhou pela janela aberta.

Pessoas, uma multidão, andavam depressa pelas ruas. Viu um malabarista parecido com Jesus jogando bolinhas alaranjadas que brilhavam no escuro. Viu também uma enorme mulher obesa com vestido florido havaiano dançando sozinha ao som do jazz que emanava de uma entrada aberta. Sentiu o cheiro de cachorro-quente.

O circo está na cidade, pensou enquanto lutava para se levantar.

E observou que deixaram o parque itinerante para trás para aderir a um mais completo e permanente.

— Onde estamos?

Mouse dirigia o caminhão e o trailer pelas ruas estreitas.

— Em casa — respondeu ele simplesmente, enquanto passava pela Bourbon Street em direção a Chartres.

Luke não saberia dizer por que a palavra o fez sorrir.

Ainda podia ouvir a música, mas estava mais baixa agora. Havia poucas pessoas caminhando por essas ruas silenciosas. Algumas iam em direção ao movimento, outras iam no sentido contrário. Sob a luz oscilante dos postes da rua, vislumbrou antigos prédios de tijolos, varandas floridas, táxis rolando com passageiros e figuras encurvadas adormecidas nas calçadas.

Não entendia como alguém conseguia dormir com a música, os aromas e aquele calor infernal. Seu cansaço deu lugar a uma grande impaciência porque Mouse dirigia devagar.

Luke queria chegar logo aonde estavam indo. Onde quer que fosse.

— Caramba, Mouse, se filmar você em câmera lenta, vai parecer que está parado.

— Não estou com pressa — disse Mouse, e surpreendeu Luke ao parar completamente o veículo no meio da rua e sair.

— Que diabos você está fazendo? — Luke também saiu e viu Mouse parado em frente a um portão de ferro aberto. — Você não pode deixar essa coisa parada no meio da rua. A polícia pode chegar.

— Estou apenas refrescando minha memória. — Mouse estava parado no mesmo lugar, alisando o queixo. — Tenho que colocá-lo para dentro.

— Colocar o quê? — Os olhos de Luke se arregalaram. Ele se movimentou com descrença do portão até o caminhão. — Colocar essa coisa ali? — Luke avaliou o espaço entre os dois muros de tijolos e se virou para avaliar a largura do trailer. — Mas nem ferrando.

Mouse sorriu. Seus olhos brilhavam como os de um pecador que acabara de encontrar uma religião.

— Apenas fique aqui, para caso eu precise de você. — Voltou para o caminhão.

— Não dá para colocar — gritou Luke para ele.

Mas Mouse emitia seu zunido novamente enquanto manobrava o caminhão e o trailer pela rua estreita.

— Você vai bater. Caramba, Mouse. — Luke se preparava para o som de metal arranhando. Fez uma cara de surpresa quando o grande trailer negro deslizou para dentro da abertura mais facilmente do que mãos entram em luvas. Enquanto dava ré no caminhão,  Mouse espiou Luke e piscou o olho.

Foi algo sensacional. Por alguma razão, a manobra do caminhão com o trailer impressionou Luke como um evento tão magnífico quanto o Natal ou a abertura de temporada do beisebol. Ficou surpreso com a própria gargalhada enquanto estava ali parado, cego pelos faróis.

— Mouse, você é o cara — gritou ele no momento em que Mouse descia do caminhão. Luke então começou a gingar como um boxeador em riste quando uma luz se acendeu na casa ao lado deles.

— Quem é? — perguntou a Mouse quando avistou uma figura na entrada da casa.

— LeClerc. — Colocando as chaves no bolso, Mouse foi fechar o portão do quintal.

— Então, vocês voltaram. — LeClerc desceu o degrau e, sob a luz, Luke viu um homem baixo de cabelos grisalhos e barba cheia. Vestia uma camisa esportiva muito branca e uma larga calça cinza amarrada com um cordão. Sua voz tinha um leve sotaque, diferente da forma arrastada de falar de Max, mas algo penetrante, que parecia acrescentar sílabas às palavras.

— Vocês devem estar famintos, não?

— Não paramos para comer — respondeu Mouse.

— Que bom que vocês não pararam. — LeClerc se moveu para a frente, seu modo de andar era rígido e irregular. Luke viu que o homem era velho, uns dez anos mais velho que Max, talvez mais. A impressão do garoto foi de um rosto antigo, um mapa de couro rasgado, marcado com centenas de estradas muito percorridas. Os olhos castanhos eram grandes e astutos sob sobrancelhas grossas.

LeClerc viu um jovem garoto com um belo rosto dominado por olhos desconfiados. Um garoto que se equilibrava sobre a ponta dos pés como se fosse correr ou lutar.

— E quem seria esse?

— É o Luke — respondeu Max enquanto descia do trailer com uma sonolenta Roxanne nos braços. — Ele está conosco agora.

Algo se passou entre os dois homens, algo íntimo, que não foi dito.

— Mais um, hein? — Os lábios de LeClerc se curvaram de leve sobre o cano no cachimbo que ele sempre mantinha apertado entre os dentes. —Veremos. E como está o meu bebê?

Com os olhos pesados, Roxanne estendeu os braços e abraçou LeClerc. Aninhou-se aos ossos e músculos do homem como se fossem um travesseiro.

— Posso comer um beignet?

— Eu faço só para você, não faço? — LeClerc tirou o cachimbo da boca para beijar a menina no rosto. — Você está melhor, oui?

— Eu fiquei um tempão com catapora. Eu nunca, nunca vou ficar doente de novo.

— Vou fazer um amuleto de boa saúde para você. — Endireitou-a confortavelmente em seu colo, enquanto Lily descia do trailer carregando uma pesada bolsa de maquiagem sobre o braço coberto por seu robe. —Ah, Mademoiselle Lily. — LeClerc deu um jeito de cumprimentá-la, apesar da criança no colo. — Mais linda que nunca.

Ela deu uma risadinha e estendeu a mão para que ele beijasse, o que ele fez de forma altiva.

— É bom estar em casa, Jean.

— Venham, entrem. Aproveitem a ceia que estou preparando para vocês.

Com a menção sobre o jantar, Max se afastou do trailer e cumprimentou LeClerc, que caminhava pelo quintal, onde floresciam rosas, lírios e begônias em abundância, até um pequeno lance de escada e uma porta que dava para a cozinha. Uma luz brilhava, iluminando a superfície lisa dos azulejos brancos e a madeira escura.

Havia um pequeno forno de tijolos que a fumaça desbotara do vermelho para um tom rosa acinzentado. Acima dele, repousava uma imagem de plástico da Virgem Maria que brilhava no escuro, e algo que parecia um chocalho indiano com adornos e penas.

Embora estivesse miraculosamente frio do lado de dentro para que Luke acreditasse que o forno fora usado, ele podia jurar que sentiu um cheiro tentador de pão recém-assado.

Havia ramos secos de ervas e especiarias pendurados no teto, junto com réstias de cebolas e alho. Panelas de cobre brilhantes ficavam suspensas em ganchos de ferro. Outra panela exalava vapor na parte de trás do fogão. O cheiro que emanava dali era muito agradável.

Uma longa mesa de madeira já estava posta com pratos, taças e limpíssimos guardanapos de linho xadrez. Ainda carregando Roxanne, LeClerc foi até o armário de louças para providenciar mais um lugar à mesa.

— Sopa de mariscos. — Lily suspirou ao passar o braço pelos ombros de Luke. Ela queria muito que ele se sentisse bem-vindo ao lar. — Ninguém cozinha como Jean, querido. Espere só para sentir o sabor. Se eu não tomar cuidado, em uma semana vou acabar não entrando mais na minha fantasia.

— Não se preocupe, essa noite apenas coma. — LeClerc colocou Roxanne em uma cadeira e, então, pegou dois panos grossos e retirou a panela do fogão.

 

Luke observou, fascinado, como a tatuagem que cobria o fino braço do homem do pulso até o ombro se agitava e dançava. Luke percebeu que eram serpentes. Um ninho de víboras azuis e vermelhas que se trançavam e retorciam sobre a pele rígida do homem.

Todos assobiaram.

— Gostaram? — LeClerc estava com um olhar alegre enquanto analisava Luke. — Cobras, elas são rápidas e perspicazes. Boa sorte para mim. — Emitiu um som agudo enquanto lançava o braço na direção de Luke. —As cobras não vão enganar para você, garoto. — O homem riu de si mesmo enquanto servia a sopa espessa e apimentada. — Você me trouxe um jovem lobo, Max. Ele vai morder primeiro.

— Um lobo precisa de um bando. — Com naturalidade, Max pegou uma cesta da mesa e retirou um pão dourado, depois ofereceu a cesta a Lily.

— O que eu sou, LeClerc? — Totalmente acordada agora, Roxanne comia a sopa.

— Você. — Seu rosto rígido e marcado se suavizou enquanto passava a mão larga e retorcida nos cabelos. — Meu pequeno gatinho.

— Só um gatinho?

— Ah, mas gatinhos são espertos, valentes e sábios, e alguns crescem e se tornam tigres.

Isso fez o olhar de Roxanne brilhar. Ela moveu os olhos em direção a Luke.

— Tigres podem devorar lobos.

 

QUANDO A LUA começou a se pôr, e até os ecos das músicas da Bourbon Street se silenciaram, LeClerc se sentou em um banco de mármore no quintal, cercado pelas flores que tanto amava.

Max era o dono da casa, mas foi Jean LeClerc que a transformou em um lar. Pegara antigas lembranças de uma cabana próxima ao rio, plantas que cresceram sem cuidado, flores que sua mãe plantara em vasos de plástico, o odor de perfumes e temperos misturados, tecidos coloridos e madeira polida, e misturara tudo isso com a necessidade que Max tinha por elegância.

LeClerc teria sido feliz de volta ao pântano, mas não sem Max e a família que ele lhe dera.

Fumava o cachimbo e escutava a noite. Uma fraca brisa farfalhou as folhas de magnólia, atiçando o calor e prometendo chuva, como uma mulher provocante promete um beijo. A umidade que gradualmente gastava os tijolos e pedras da French Quarter pairava como uma névoa no ar.

Não viu Max se aproximar, nem mesmo o escutou, apesar de possuir um bom ouvido. LeClerc o sentiu.

— Então. — Soprou a fumaça do cachimbo e observou as estrelas. —O que vai fazer com o garoto?

— Vou dar a ele uma chance — respondeu Max. — Assim como você fez comigo muito tempo atrás.

— Os olhos do garoto querem devorar tudo o que veem. Essa voracidade pode lhe trazer problemas.

— Então, eu vou alimentá-lo. — Havia uma nota de impaciência na voz de Max quando ele se juntou a LeClerc no banco de mármore. — Você me faria mandá-lo embora?

— É tarde para ser prático agora que seu coração já está envolvido.

— Lily se afeiçoou — começou Max até ser cortado pela estrondosa gargalhada de LeClerc.

— Só Lily, mon ami?

Max demorou para acender um charuto e tragar.

— Eu gosto do garoto.

— Você ama o garoto — corrigiu LeClerc. — E como poderia ser diferente, já que, quando você olha para ele, enxerga a si mesmo? Ele lhe traz lembranças.

Era difícil admitir. Max sabia que, quando se ama, você corre o risco de machucar e se machucar.

— Ele faz com que eu me lembre de não esquecer. Se você esquecer toda a dor, solidão e desespero, esquece-se também de algo grato pela ausência disso tudo. Você me ensinou isso, Jean.

— Ótimo, meu aluno agora é o professor. Isso me deixa feliz. — LeClerc virou a cabeça, e seus olhos escuros brilharam na sombra. — Ficará feliz quando o garoto superar você?

— Não sei. — Max abaixou o olhar para suas mãos. Eram boas, ágeis, ligeiras e hábeis. Tinha medo do que aconteceria com seu coração quando elas ficassem lentas. — Eu comecei a ensinar mágica para ele. Ainda não decidi se lhe ensinarei o restante.

— Não se pode manter segredos longe daqueles olhos por muito tempo. O que ele estava fazendo quando o encontrou?

Max teve que rir.

— Batendo carteiras.

— Ah. — LeClerc deu risadas sob o cachimbo. — Então ele já é um de nós. Ele é bom como você era?

— Muito bom mesmo — admitiu Max. — Talvez melhor que eu naquela idade. Menos medo de represálias, mais insensível. Mas há uma grande distância entre roubar carteiras em um parque e arrombar cofres de mansões e hotéis finos.

— Distância que você percorreu graciosamente. Arrependido, mon ami?

— Não, nem um pouco. — Max riu novamente. — O que há de errado comigo?

— Você nasceu para roubar — disse LeClerc, dando de ombros. —Assim como nasceu para tirar coelhos da cartola. E, aparentemente, para vagar pelo mundo. É bom tê-lo em casa.

— É bom estar em casa.

Por um momento eles permaneceram em silêncio, apreciando a noite. Até que LeClerc começou a falar de negócios.

— Os diamantes que você enviou de Boston são excepcionais.

— Eu prefiro as pérolas de Charleston.

— Ah, sim. — LeClerc soprou fumaça da boca. — São refinadas, mas os diamantes pareciam faiscar, doeu ter que vendê-los.

— E você conseguiu...?

— Dez mil, e apenas cinco pelas pérolas, apesar do refinamento.

— O prazer de possuí-las excede seu valor. — Lembrou-se com prazer de como as pedras ficaram sobre a pele de Lily por uma gloriosa noite. — E a pintura?

— Vinte e dois mil. Em minha opinião, era uma obra deselegante. Esses pintores ingleses não tinham nenhuma paixão — acrescentou, repudiando a paisagem de Turner. — O vaso chinês eu segurei por um pouco mais de tempo. Você trouxe a coleção de moedas?

— Não, eu não as peguei. Quando Roxanne ficou doente, cancelei esse compromisso.

— É bem melhor assim. — LeClerc assentiu e tragou seu cachimbo. — A preocupação com ela poderia distraí-lo.

— Dificilmente eu estaria na minha melhor forma. Então, até que tenhamos o vaso, o dízimo fica em... três mil e setecentos. — O relance na expressão zangada de LeClerc fez Max sorrir. — Muito pouco para tanto ressentimento.

— Até o final do ano, você terá jogado fora, pelo menos, quinze mil. Some isso aos dez por cento que você tira todo ano para aliviar sua consciência...

— Uma doação para a caridade — interrompeu Max, satisfeito. — Não faço isso para aliviar minha consciência, mas para apaziguar minha alma. Sou um ladrão, Jean, um excelente ladrão que não tem a menor pena das pessoas de quem rouba, mas tem pena das pessoas que não possuem nada que valha a pena roubar. — Observou a ponta brilhante de seu charuto. —Eu não sou capaz de viver com a moralidade dos outros, mas tenho que viver com a minha.

— As igrejas que receberam seu dízimo vão te condenar ao inferno.

— Já escapei de lugares piores do que o inferno que os padres imaginam para nós.

— Não é uma piada.

Max ocultou um sorriso enquanto levantava. Sabia que a religião de LeClerc ia do catolicismo à magia negra, e qualquer superstição conveniente entre eles.

— Então, pense nisso como um seguro. Talvez minha tola generosidade nos garanta um lugar mais fresco no além. Vamos dormir um pouco. —Colocou a mão sobre o ombro de LeClerc. — Amanhã vou lhe contar o que andei planejando para os próximos meses.

 

LUKE SABIA que encontrara o paraíso. Não havia uma lista de tarefas para o dia seguinte, o que o deixava livre para vagar pela casa, o que fazia enquanto devorava alguns sonhos que pegara na cozinha. O rastro de açúcar que deixava em sua caminhada passava pelo primeiro andar, subia a escada e chegava até uma das sacadas floridas, e então voltava.

Não conseguia acreditar na sorte que tinha.

Ganhou um quarto só para ele e passou boa parte de uma noite acordado, olhando e tocando em tudo. A cabeceira alta e entalhada o deixou fascinado, assim como o leve brilho do papel de parede e a estampa tranquilizante do tapete. Havia um grande guarda-roupa que Max chamava de armoire. Luke calculou que ali cabiam mais roupas do que uma pessoa precisaria durante a vida inteira.

E havia flores. Um grande vaso azul cheio delas. Nunca tivera flores no quarto antes, e, apesar de saber que deveria se livrar delas por serem coisa de maricas, a fragrância que elas exalavam trazia a ele um profundo e secreto prazer.

Luke se movimentava pela casa silencioso como um gato. Ainda não estava certo a respeito de LeClerc e o evitava facilmente enquanto explorava a casa.

A mobília refletia a elegância de Max. Isso deu a Luke certo conhecimento sobre seu mentor, apesar de não reconhecer as antiguidades britânicas e francesas. Viu graciosas mesas lustrosas, sofás curvos, belas lâmpadas chinesas e paisagens pacíficas.

Por mais que gostasse da casa toda, o lugar favorito de Luke era a varanda de seu quarto. De lá, podia sentir o aroma das flores e da rua. Podia ver pessoas tirando fotos e procurando souvenirs.

Não conseguia deixar de notar como as pessoas eram descuidadas com suas carteiras. Mulheres com as bolsas penduradas no ombro, homens com o dinheiro enfiado no fundo dos bolsos de suas calças com boca de sino. Um paraíso para batedores de carteiras. Se não fosse possível ir a Miami, Luke viu que poderia se dar muito bem ali, complementando seu salário de aprendiz de feiticeiro.

— Você espalhou açúcar pela casa toda — disse Roxanne por trás dele.

Luke ficou tenso. Olhou para as mãos e viu, indignado, que a evidência de seu crime estava cobrindo todos os seus dedos. Sem demora, limpou-os na calça.

— E daí?

— LeClerc vai ficar bravo. Açúcar atrai insetos.

Luke limpou os dedos novamente, pois estavam melados.

— Eu vou limpar.

Ela se juntou a ele no parapeito, linda com seu shorts amarelos.

— O que está fazendo?

— Só olhando.

— Papai disse que podemos tirar o dia todo de folga. Amanhã temos que começar a ensaiar o novo número do cabaré para o clube.

— Que clube?

— O Portão Mágico. Nós trabalhamos lá. — Começou a brincar com as flores que se emaranhavam pelo parapeito. — Lá podemos fazer mágicas maiores do que no parque, e às vezes o papai sai durante o dia e faz apresentações particulares para alguns clientes.

A preocupação com LeClerc e com qualquer possibilidade de represálias foi para o fundo da mente de Luke. Não sabia qual seria o seu lugar no número do cabaré, mas tinha que garantir que teria um.

— Quantas apresentações por noite?

— Duas. — Depois de arrancar uma flor de clematite, ela tentou prendê-la atrás da orelha.    — Às oito e às onze. Somos as estrelas da noite. —Enrugou o nariz. — Eu tenho que tirar um cochilo depois da escola todos os dias, como um bebê.

Luke não estava nem um pouco preocupado com os problemas de Roxanne.

— Ele faz os truques com cartas?

Ela deu um tapinha na flor enquanto se virava em direção ao quarto de Luke para ver o resultado do visual no espelho.

— Ah, ele vai inventar outros.

Luke assentiu e começou a traçar um plano. Estava ficando muito bom nos truques que persuadira Roxanne a lhe ensinar. E ainda praticava os Copos Mágicos pelo menos uma hora por dia. Só precisava mostrar a Max. Não suportaria ser cortado do espetáculo agora.

— O papai me deu dinheiro para tomar sorvete. — Na porta, ela pôs a cabeça para fora. — Você quer?

— Não. — Luke estava muito ocupado para se distrair com doces e com a companhia de uma garota de 8 anos. — Se manda. Tenho que pensar.

— Sobra mais para mim — respondeu Roxanne, mal conseguindo controlar a expressão de insatisfação.

Assim que ficou sozinho, Luke pegou as cartas e começou a praticar. Mal começou a preparar a Mágica dos Quatro Ases e já estava distraído de novo.

Era a voz. Nunca ouvira nada igual. Tentava afastá-la da cabeça, mas ela sempre voltava. Um profundo e doloroso contralto que parecia cantar só para ele. Incapaz de resistir, voltou para a varanda.

Ele a viu no mesmo instante. Uma mulher usando um vestido florido, turbante vermelho, com a pele brilhante como ébano. Estava na esquina, com uma caixa de papelão aos seus pés, e cantava músicas gospel a capella.

Não conseguia se afastar, o som o hipnotizava. Era lindo de verdade. Até que percebeu que aquilo tocava no seu íntimo de uma forma que nunca sentira antes.

A voz ressoava por todo o French Quarter. Não parou nem hesitou quando uma pequena multidão a cercou. E não abaixava o olhar quando as moedas eram jogadas na caixa.

Isso fez sua pele coçar e a garganta doer.

Em um impulso, correu de volta para dentro e pegou uma bolsa que escondia embaixo do travesseiro. Dali tirou uma nota de um dólar amassada. Seu coração ainda palpitava no ritmo da canção enquanto corria para fora do quarto e descia a escada.

Avistou Roxanne no corredor, varrendo o açúcar do chão enquanto LeClerc estava atrás dela, dando uma lição de moral.

— Você deve comer na cozinha, não por toda a casa. É bom que cate todas migalhas, está entendendo?

— Estou catando. — Ela levantou a cabeça para mostrar a língua para Luke.

O coração do garoto estava tão preenchido pela música, o cérebro tão deslumbrado com a ideia de Roxanne levar a culpa por ele, que se esqueceu do último degrau. Com um grito abafado, esticou a mão para se segurar.

Para Luke, tudo aconteceu em câmera lenta. Viu o vaso, o cristal facetado refletindo a luz do sol, cheio de rosas vermelhas como sangue. Com espanto, viu a própria mão atingi-lo, e observou o vaso balançar, enquanto tentava se equilibrar.

Seus dedos roçaram nele. Sentiu o cristal gelado na pele e soltou um grito desesperado enquanto o vaso caía.

O som do vaso se despedaçando na madeira dura era como uma saraivada de tiros. Luke congelou. Os cacos brilhavam sob seus pés, e o cheiro de rosas era intenso no ar.

LeClerc praguejava. Luke não precisava entender francês para saber que a praga era forte e furiosa. Não se moveu, não ousou correr. Estava preparado para levar uma bronca, a parte de si que sentia dor e humilhação já não existia mais. O que estava ali era uma casca silenciosa que se recusava a se importar.

— Você corre pela minha casa como um índio selvagem. E agora me quebra o vaso de cristal Waterford, arruína com as rosas e alaga todo o meu chão. Imbécile! Veja o que você fez com minhas belezinhas.

— Jean. — A voz de Max era um pouco mais forte que um sussurro, mas cortou o ataque de raiva do velho.

— O Waterford, Max. — LeClerc se abaixou para salvar as rosas. —O garoto corria como se as bestas do inferno estivessem atrás dele. Eu lhe disse que ele precisa ser...

— Jean — disse Max mais uma vez. — Já chega. Olhe para o rosto do menino.

Com rosas caindo pelas mãos, LeClerc levantou o olhar. O garoto estava branco como um fantasma, os olhos negros e vidrados com algo muito profundo para ser chamado de medo. Com um suspiro, ele se acalmou.

— Vou pegar outro vaso — disse com a voz calma e se retirou.

— Papai. — Tremendo, Roxanne segurou a mão do pai. — Por que ele está com essa cara?

— Está tudo bem, Roxy. Pode sair.

— Mas papai...

— Pode sair — repetiu, dando um leve empurrão na menina.

Ela voltou para a sala, mas não foi longe. Pela primeira vez, seu pai estava muito atento a outra pessoa para notar.

— Você me decepcionou, Luke — repreendeu, calmamente.

Algo tremeu na barriga de Luke e refletiu rapidamente em seus olhos. Um xingamento ou uma bofetada não teria lhe afetado, mas a simples tristeza na voz de Max o tocou profundamente.

— Eu sinto muito. — As palavras queimaram como ácido em sua garganta fria. — Eu posso pagar. Tenho dinheiro.

Não me mande embora, implorava seu coração. Deus, por favor, não me mande embora.

— Pelo que você sente muito?

— Eu não estava olhando para onde ia. Sou desajeitado. Estúpido. —E tudo o mais do que ele fora acusado em seus curtos 12 anos de vida.

— Eu sinto muito — disse mais uma vez, ficando ainda mais desesperado enquanto esperava pela bofetada. Ou pior, muito pior, ser expulso. — Estava com pressa porque eu pensei que ela podia ir embora.

— Quem?

— A mulher. Cantando na esquina. Eu queria... — Percebendo o absurdo que dizia, Luke olhou sem defesa para a nota ainda embolada na mão.

— Entendo. — E, quando entendeu, o coração de Max quase se partiu. — Ela sempre canta por aqui. Você a escutará de novo.

O pavor ainda brilhava nos olhos de Luke enquanto olhava de novo para Max. Era muito mais assustador ter esperança.

— Posso... posso ficar?

Com um longo suspiro, Max se abaixou e pegou um caco de cristal.

— O que você vê aqui?

— Está quebrado. Eu quebrei. Eu nunca penso em ninguém a não ser mim mesmo, e eu...

— Pare com isso.

A ordem rígida fez a cabeça de Luke estalar. Começou a tremer quando algum lugar dentro de si percebeu que não tinha como fugir disso. Quando Max batesse nele, não sentiria apenas dor física, suas esperanças seriam estilhaçadas assim como o vaso.

— Está quebrado — afirmou Max, lutando para permanecer calmo. —E é bem verdade que você foi o culpado. Você teve a intenção de quebrá-lo?

— Não, mas...

— Veja isso. — Levou o caco do cristal na direção de Luke. — É uma coisa. Um objeto. Algo que qualquer pessoa que pagar por ele pode obter. Acha que você vale menos para mim do que isso? — Quando ele jogou o caco de volta ao chão, Luke não conseguia mais segurar o tremor dentro de si. — Você tem uma opinião tão baixa sobre mim que acha que eu lhe bateria por causa de um vaso quebrado?

— Eu não... — Luke começou a respirar com dificuldade conforme a pressão em seu peito se espalhava como um incêndio na mata. Não pôde evitar que lágrimas quentes e odiosas escorressem de seus olhos. — Por favor. Não me mande embora.

— Meu querido, como pode ficar todas essas semanas comigo e não perceber que sou diferente deles? Deixaram em você uma cicatriz tão profunda assim?

Sem palavras agora, Luke apenas balançou a cabeça.

— Eu passei pelo que você passou — murmurou Max, e deu mais um passo ao trazer Luke para junto de si. O menino ficou rígido, o medo primitivo que sentia era muito profundo. Então, até esse medo desapareceu quando Max se sentou com ele nos degraus e o abraçou. — Ninguém pode mandá-lo embora. Você está seguro aqui.

Sabia que estava humilhado, chorando como um bebê na camisa de Max. Mas os braços ao redor dele eram fortes, sólidos e reais.

Que tipo de menino era esse, perguntou-se Max, que se comovia tanto com uma canção que daria um de seus preciosos dólares por ela? Quão profundamente esse menino fora machucado por uma crueldade nua e crua e pela falta de escolha?

— Pode me contar o que faziam com você?

A vergonha veio à tona, e a necessidade, ah, a necessidade que alguém compreendesse.

— Eu não podia fazer nada. Não conseguia fazer parar.

— Eu sei.

Antigos rancores fervilhavam enquanto as lágrimas caíam.

— Eles me batiam o tempo todo. Se eu fizesse alguma coisa ou deixasse de fazer. Se estivessem bêbados ou sóbrios. — Seus punhos trincaram contra a camisa de Max como pequenas esferas de aço. — Às vezes eles me trancavam, e eu batia na porta do armário implorando para que me deixassem sair. Eu não conseguia sair. Nunca conseguia sair.

Era horrível lembrar-se dessas coisas, do choro histérico dentro do caixão escuro que era aquele armário, sem esperanças, sem ajuda, sem escapatória.

— Os assistentes sociais vinham, e se eu não dissesse as coisas certas, ele me batia com o cinto. Na última vez, naquela última vez antes de partir, pensei que ele me mataria. Ele queria. Sei que ele queria... dava para dizer isso só de olhar nos olhos dele, mas eu não sei por quê. Não sei por quê.

— A culpa não era sua. Nada disso foi culpa sua. — Max acariciou a cabeça do menino e se lembrou dos seus próprios demônios. — As pessoas dizem aos filhos que não existem monstros no mundo. Dizem isso porque acreditam nisso ou porque querem que os filhos se sintam seguros. Mas existem monstros, Luke, ainda mais assustadores, pois eles se parecem com pessoas. — Afastou o menino para olhar suas lágrimas e seu rosto desolado. — Você está livre deles agora.

— Eu odeio ele.

— Tem todo o direito de odiar.

Havia mais. Não estava certo se ousaria contar. A vergonha era sombria e escorregadia.  Mas o olhar tão calmo e intenso de Max o fez superá-la.

— Ele... ele trouxe um homem uma noite. Era tarde e eles estavam bêbados. Aí, ele saiu e trancou a porta. E o homem... ele tentou...

— Está tudo bem. — Max tentou trazê-lo para junto de si mais uma vez, mas o terror fez com que o garoto se afastasse.

— Ele colocou aquelas mãos gordas em mim, e a boca. — Luke enxugava as lágrimas com as costas das mãos. — Ele disse que tinha pagado a Al para eu fazer coisas com ele e deixá-lo fazer comigo. E eu era estúpido, pois não sabia o que ele queria dizer.

Não havia lágrimas agora, apenas raiva, queimando por dentro.

— Eu não sabia, até que ele subiu em mim. Eu achei que ele ia me sufocar até... — O puro terror daquele momento voltou. A pele suada, o fedor de gim, aquelas mãos insaciáveis o apalpando.

— E então percebi tudo. Eu entendi. — Ele abria e fechava as mãos, deixando um profundo arco em suas palmas. — Bati nele, e bati de novo, mas ele não parava. Então, eu mordi e arranhei. Minhas mãos ficaram cheias de sangue, e ele segurava o rosto e gritava. Então Al chegou e me bateu por muito tempo. E não me lembro... não lembro se... — Aquilo era o pior, não saber. Era uma vergonha da qual não conseguia falar em voz alta. — Essa foi a noite que ele quis me matar. Foi a noite em que fugi.

Max ficou em silêncio por um longo tempo, tão longo que Luke temeu ter falado demais, demais para ser perdoado.

- Você fez tudo certo. — Havia um peso na voz de Max que fez com que lágrimas brotassem nos olhos de Luke novamente. — E vou lhe prometer uma coisa. Ninguém nunca vai tocá-lo dessa maneira novamente enquanto estiver comigo. Vou lhe ensinar a escapar do armário. — Os olhos de Max se voltaram para os de Luke e ali permaneceram. — Podem trancá-lo, mas não podem mantê-lo lá dentro.

Luke tentou falar, mas as palavras se prenderam em sua garganta antes que pudesse forçá-las para fora. Sua vida dependia daquela resposta.

- Eu posso ficar?

— Até o dia que você quiser partir.

Sua gratidão foi tão grande que ele pensou que poderia emanar dele, como luz. Como amor.

— Vou pagar pelo vaso — disse. — Eu prometo.

— Você já pagou. Agora corra e vá lavar seu rosto. É melhor limparmos isso antes que LeClerc dê outro ataque.

Max se sentou nos degraus e Luke subiu. Do seu esconderijo na sala, Roxanne escutou o suspiro do pai. E ela chorou.

POR ALGUNS dias, Luke sentiu o clima com cuidado. Não tinha certeza sobre LeClerc, mas sabia que o cajun tomava conta da casa. Fez o possível para não causar mais problemas. Não cometeria o erro de deixar cair migalhas pela casa novamente.

Saiu às compras com Lily, carregou caixas e sacolas pra cima e pra baixo pelas ruas úmidas. Esperou pacientemente sentado nas butiques, enquanto Lily escolhia roupas novas. Esperou em pé enquanto ela apreciava vitrines, entre Ohhs e Ahhs de admiração.

Seu amor por Lily era grande o bastante para que tolerasse que ela escolhesse roupas para ele. Era tão grande que nem fez caretas quando viu as camisas com estampa cashmere que ela comprou para ele. Quando tinha tempo, andava pelo French Quarter, tanta coisa para explorar, ouvir os músicos de rua, ver os artistas trabalhando em Jackson Square.

Os melhores momentos para Luke, porém, eram os ensaios.

A Porta Mágica era um clube apertado e escuro com cheiro de fumo e uísque impregnado nas paredes por décadas. Naquelas tardes quentes, o sol desenhava as sombras dos turistas. O som estridente do ar-condicionado era mais eficiente do que o ar morno que produzia. O ventilador de teto funcionava melhor, mas, com as luzes do palco acesas, o clube parecia uma fornalha.

As paredes eram forradas de veludo vermelho e dourado, e a parede atrás do bar era espelhada para dar ilusão de espaço. Era como ser um besouro numa caixinha de fósforos enfeitada e a criança que o capturou tivesse se esquecido de fazer buraquinhos na tampa.

Luke adorava.

Todas as tardes, Lester Friedmont, o gerente, se sentava à mesa da frente com um toco de charuto aceso e uma cerveja. Era um homem alto, e todo o seu peso extra se concentrava na barriga. Invariavelmente usava camisa branca de mangas curtas, com gravata e suspensórios combinando. Seus sapatos pretos de amarrar estavam sempre brilhando. Os cabelos finos penteados para trás pareciam molhados sob as luzes. Ele olhava o mundo pelas lentes sujas dos óculos pretos e pesados, pendurados na ponta do nariz anguloso.

Uma gata gorda chamada Fifi ronronava entre suas pernas, abaixava-se para beliscar comida nos potes debaixo da mesa e ronronava novamente.

Friedmont mantinha um telefone sobre a mesa. Tinha a habilidade de assistir aos ensaios, fazer comentários, dar broncas em quem estivesse fazendo faxina no clube e falar ao telefone, tudo ao mesmo tempo.

Levou tempo para Luke perceber que Friedmont era um anotador de apostas.

Não importava quantas vezes repetiam um truque, Lester se divertia e balançava a cabeça.

— Jesus, esse foi bom. Vai me mostrar como fez isso, Max?

— Desculpe, Lester, segredo de estado.

Então Lester voltava às suas apostas, coçando a barriga.

Max planejava começar o show com o truque de prestidigitação e alguns dos lenços coloridos, parecido com o que fazia no parque. Depois acrescentaria sua versão da Bola Flutuante, antes de apresentar Roxanne em seu novo truque de Levitação. Acrescentaria uma serra elétrica ao truque de serrar a mulher, usando uma caixa na vertical, e cortaria Lily em três partes. Estava quase perfeito.

Estava experimentando Luke aos poucos. Não tinha dúvidas de que o menino tinha mãos e pensamento rápidos. Agora estava testando o coração de Luke.

— Observe — disse a Luke. — Aprenda.

Em pé no meio do palco, Max puxou do bolso os lenços de seda, cores foram se derramando. Luke começou a se concentrar. Não conseguia entender que o que via era puro timing. Quanto mais tempo levasse, por mais tempo a plateia ia gargalhar e se distrair.

— Estique os braços — pediu Max, em seguida enrolou os lenços nos braços, aparentemente de forma aleatória. — Teremos música, Lily? Ela ligou o gravador.

— "Danúbio Azul".

— A valsa é lenta, adorável — disse Max. — Os gestos refletem isso. — Passava as mãos pelos lenços, que subiam e caíam conforme ele andava ao redor de Luke. — É claro que eu escolheria alguma moça bonita da plateia para ficar em seu lugar. Isso contribuiria para o carisma e a beleza da ilusão. Sua reação será a deixa da plateia. — Girando rapidamente o pulso, Max pegou a ponta de um lenço, chicoteou-o para trás enquanto os outros vieram em seguida, um amarrado ao outro, o vermelho ao amarelo, o amarelo ao azul, o azul ao verde.

Os olhos de Luke se arregalaram um pouco antes que ele abrisse um sorriso.

— Excelente. — Max pegou os lenços, enrolando-os como uma bola colorida, enquanto falava. — Então, veja bem, mesmo em um truque tão pequeno, carisma e presença de palco são tão importantes quanto a destreza. Fazer um truque bem nunca é o bastante. Sempre pode ser mais floreado... — Jogou a bola para o alto. Agora os lenços que não estavam mais amarrados flutuavam caindo até o chão.

Roxanne gargalhou e bateu palmas de perto.

— Eu gosto desse, papai.

— Minha melhor plateia. — Abaixou-se para pegar os lenços de seda. — Mostre-me.

Roxanne esfregou as mãos e mordeu os lábios.

— Não sei fazer com tantos ainda.

— Faça o que sabe.

Em um misto de nervosismo e orgulho, Roxanne escolheu seis lenços. Virando-se para a plateia imaginária, puxou cada um entre as mãos, sacudiu-os no ar e os enrolou nos braços de Luke. Havia um toque feminino inegável em seus gestos, o que fez Max sorrir enquanto ela colocava as mãos por cima e por baixo dos lenços de seda. Apesar de executar piruetas em volta de Luke ao som da música, sua concentração era total. Não havia pequenos truques no mundo de Roxanne. Todos eram grandes.

Encarando Luke novamente, ela sorriu, passou as mãos nos lenços de novo e, como quem acaricia um gato, finalizou girando-os sobre a própria cabeça. Sorriu triunfante enquanto enrolava os lenços em volta dos ombros.

— Muito bom. — Max a pegou e a beijou. — Muito bom mesmo!

— Ela é um trunfo, Max. — Lester exclamou. — Você tem que deixá-la tentar na frente do público.

— O que me diz, Roxanne? — Max passou a mão nos cabelos da filha enquanto falava com ela. — Pronta para um solo?

— Posso? — Seu coração veio à boca. — Por favor, papai, posso?

— Vamos testar no primeiro show; aí veremos.

Ela deu um grito e correu para Lily.

— Posso usar brincos de verdade? Posso?

Ela sorriu para Max por cima da cabeça de Roxanne.

— Pode escolher os de que mais gostar.

— Aqueles que estão na vitrine lá na rua. Os azuis.

— Vocês têm vinte minutos, Lily. — Max sugeriu. — Uma mulher precisa de pelo menos vinte minutos para escolher os acessórios de seu traje. — Queria ficar a sós com Luke.

— Então. — Enquanto Roxanne arrastava Lily para fora, Max pegou um baralho.  Começou a cortá-lo. — Você deve estar se perguntando como uma menininha pode fazer algo que você não consegue.

Luke corou, mas ficou de cabeça erguida.

— Posso aprender qualquer coisa que ela pode.

— É possível. — Para se distrair, Max abanou as cartas. — Eu poderia dizer que é um erro usar Roxanne ou qualquer outra pessoa como referência, mas você não me escutaria.

— Você podia me ensinar.

— Poderia — concordou Max.

— Já sei alguns, tenho praticado.

— De fato. — Max entregou o baralho levantando uma sobrancelha. —Mostre-me.

Enquanto Luke embaralhava as cartas, suas mãos suavam de nervoso.

— Não vai ter muita graça porque você sabe como se faz.

— Engano seu. O melhor público de um mágico é outro mágico. Porque ele entende o objetivo. Você entende, não entende?

— Fazer um truque — respondeu Luke, esforçando-se a fim de se concentrar nas cartas.

— Simples assim? Sente-se — sugeriu Max. Uma vez sentados a uma das mesas, ele escolheu uma carta do baralho de Luke. — Qualquer um pode aprender a fazer um truque. Basta entender como funciona e ter habilidade nata, que pode ser refinada com a prática. Mas mágica... — Deu uma olhada na carta e colocou de volta no monte. — Mágica é tornar real o que não é, tornar tudo uma coisa só por um pequeno espaço de tempo. É fazer alguém que não acredita piscar de espanto, é dar às pessoas o que - querem.

— O que elas querem? — Luke embaralhou as cartas, cortou e virou a carta escolhida. Seu coração se encheu ao sinal de aprovação de Max.

— Excelente. Faça outro. — Ele se recostou enquanto Luke se atrapalhava com um corte de uma mão só. — O que eles querem? Ser trapaceados, enganados e surpreendidos, e assistir a tudo bem diante de seus narizes. – Max abriu a mão e mostrou a Luke uma bolinha vermelha. — Bem diante de seus olhos. — Quicou a bola na mesa e tirou a outra mão de debaixo da mesa, e a bola estava lá, mas sua outra mão estava vazia. Luke deu um sorriso e distribuiu as cartas para a Mágica dos Quatro Ases.

— Você passou a bola — falou Luke. — Eu sei que você passou, mas eu não vi.

— Porque olhei em seus olhos, então você olhou nos meus. Sempre olhe nos olhos deles.  Inocentemente, presunçosamente, do jeito que quiser, mas olhe nos olhos. Isso torna uma ilusão verdadeira.

— Um truque é uma trapaça, não é?

— Só se você não puder fazê-los desfrutar a farsa. — Max balançou a cabeça novamente quando Luke tirou os quatro ases do topo do baralho. —Seus movimentos são bons, mas onde está seu carisma? Onde está aquele encanto que faz com que o público ache que não é só um truque bem-feito, mas pura magia? Mais uma vez — disse entregando as cartas a Luke. — Surpreenda-me.

Max observou a concentração surgir nos olhos de Luke, ouviu duas inspirações profundas enquanto ele se preparava.

— Quero fazer o primeiro de novo.

— Tudo bem. Fale comigo como se fosse com seu público.

Luke ficou vermelho, mas limpou a garganta e começou. Vinha praticando há semanas.

— Quero mostrar alguns truques com as cartas. — Fez um bom russian shuffle e um snappy turnover. — Não são muitos os mágicos que falam antes o que vão fazer, mas eu sou só uma criança, não sei muito bem.

Abriu as cartas em leque mostrando à plateia imaginária para que pudessem ver que se tratava de um baralho comum.

— Vou pedir a este cavalheiro que escolha uma carta, qualquer uma. —Luke espalhou as cartas em cima da mesa, viradas para baixo, esperou um pouco até Max alcançar uma delas.

— Essa? — disse, parecendo desconfortável. — Tem certeza de que é essa?

Entrando na brincadeira, Max balançou a cabeça.

— Claro que tenho.

— Você não prefere essa? — Luke tocou na carta da ponta. — Não? Quando Max se manteve firme em sua escolha, ele engoliu a seco.

— Tudo bem. Lembre-se, sou só uma criança. Por favor, mostre sua carta para a plateia, com cuidado para que eu não veja — acrescentou Luke enquanto esticava o pescoço para dar uma olhadinha. — Bom — disse com a voz trêmula. — Acho que pode colocar de volta em qualquer lugar, em qualquer lugar mesmo. Depois embaralhe, a não ser que prefira que eu faça isso — perguntou esperançoso, enquanto juntava as cartas.

— Não, eu mesmo embaralho.

— Ótimo. — Soltou um suspiro. — Depois que estiverem embaralhadas, vou cortar o baralho e, num passe de mágica, mostrar a carta que este elegante cavalheiro escolheu. — Enfiou a mão no bolso, pegou um lenço invisível e enxugou a testa. — Acho que já chega. Você já embaralhou bastante. — Luke pegou de volta o baralho. Depois de espalhá-lo sobre a mesa, moveu as mãos sobre ele e murmurou. — Quase lá. Agora! — Cortou o baralho e pegou uma carta, triunfante. Pelo balançar suave da cabeça de Max, ele parecia desanimado. — Não é essa? Eu tinha certeza de que estava certo. Espera um minuto.

Arrumou as cartas novamente, murmurou sobre elas mais uma vez e escolheu errado de novo.

— Tem alguma coisa errada com esse baralho. Acho que sua carta não está aí. Acho que você trapaceou. — Levantou enfurecido em direção à plateia. — E alguém daí deve estar ajudando. Você aí. — Apontou para Lester, que estava ocupado anotando apostas. — Vamos, me entregue.

— Entregar o quê, garoto?

— A carta que está com você.

— Ei. — Lester pendurou o telefone no ombro e levantou as mãos. — Não tenho carta nenhuma.

— Ah, não? — Luke se abaixou passando a mão na barriga saliente de Lester e sacou um nove de ouros do cós de sua calça. — Acho que você estava a caminho de um jogo de pôquer.

Enquanto Lester soltava uma gargalhada, Luke mostrava a carta acima de sua cabeça para que a plateia visse.

— Obrigado, obrigado. Ei, você foi um bom ajudante — disse a Lester. — Por que não sobe aqui e agradece à plateia?

— Claro, garoto, com certeza — disse Lester, divertindo-se. — Esse menino promete, Max. Com certeza, promete.

O elogio deixou Luke radiante, mas não foi nada em comparação ao som da gargalhada de Max.

— Agora, sim. — Max se levantou e colocou a mão no ombro de Luke. — Isso é espetacular. Vamos ver se podemos usar no show.

O queixo de Luke caiu.

— Sério?

Max despenteou os cabelos de Luke, contente porque o garoto não se retraiu quando fez isso.

— Sério.

A VIAGEM DE Nova Orleans a Lafayette não era longa. Com Mouse na direção do sedan escuro, Max podia relaxar, fechar os olhos e se preparar. Roubar não era muito diferente de encenar, pelo menos nunca fora para ele. Quando começou anos atrás, fundiu as duas habilidades. Era uma questão de sobrevivência.

Agora, mais velho e maduro, havia separado seus roubos de suas performances. Conforme seu nome foi ficando famoso, teria sido imprudente roubar de sua plateia.

Max não era um homem imprudente.

Algumas pessoas diziam que ele não precisava mais roubar para ter comida no prato ou um teto sobre a cabeça. Ele concordava, mas também acrescentava que era difícil perder um hábito de longa data, especialmente tendo tanta habilidade e gostando tanto.

Como uma criança que fora maltratada, abandonada e desprezada, roubar fora uma questão de controle e de desafio.

Agora, era uma questão de orgulho.

Simplesmente era um dos melhores. Max se considerava generoso o bastante para escolher seus alvos cuidadosamente, roubando somente daqueles que tinham o bastante para se darem ao luxo de perder.

Era raro trabalhar tão perto de casa. Max considerava arriscado e confuso. Ainda assim, regras foram feitas para serem quebradas.

Com os olhos fechados, podia imaginar o brilho e a beleza do colar de águas-marinhas e diamantes, com todo aquele azul e branco glacial. Preferia as pedras quentes, rubis, safiras, de cores vivas e fortes que contêm paixão e glória. O gosto pessoal frequentemente tinha que ser deixado de lado pela praticidade. Se a informação estivesse correta, uma vez retiradas do colar, aquelas águas-marinhas lapidadas como esmeraldas dariam um bom dinheiro.

LeClerc já tinha um comprador.

Mesmo após a partilha e as despesas, Max calculara que sobraria uma boa quantia para a poupança da faculdade de Roxanne e para a que fizera recentemente para Luke.

Riu sozinho, a ironia raramente lhe escapava. Era um ladrão que se preocupava com juros e fundos de investimentos.

Tantos anos passando fome lhe ensinaram o valor de poupar. Suas crianças não passariam fome e teriam a oportunidade de escolher por qual caminho seguir.

— É nessa esquina, Max.

Max abriu os olhos e notou que Mouse estacionara o carro no meio-fio. Era um bairro tranquilo, arborizado, com casas grandes e elegantes, protegidas por plantas e arbustos floridos.

— Que horas são?

Mouse olhou o relógio ao mesmo tempo que Max.

— Duas e dez.

Bom.

— O sistema de alarme é bem simples. Você só tem que cortar os dois fios vermelhos. Mas, se estiver em dúvida, posso cortar pra você.

— Obrigado, Mouse. — Max calçou as luvas pretas. — Acho que eu me viro. Se o cofre é realmente como LeClerc descreveu, só vou precisar de oito minutos para abri-lo. — Volte para me buscar precisamente às duas e meia. Se eu me atrasar mais do que cinco minutos, vá embora. — Como Mouse só resmungou, Max deu um tapinha em seu ombro. — Conto com você.

— Você vai voltar — disse Mouse, recostando-se no banco do carro.

— E nós estaremos muitos dólares mais ricos. — Max saiu do carro e desapareceu na escuridão.

Meia quadra depois, ele saltou um muro baixo de pedras. Não havia luzes acesas na casa de tijolos de três andares, mas checou só para ter certeza antes de localizar a caixa do alarme. Uma vez que os fios vermelhos foram cortados, não hesitou. Mouse nunca estava errado.

   Tirou ventosas e um cortador de vidro da pochete de couro macio que estava em sua cintura. Nuvens dançando na frente da lua faziam a claridade ir e vir, mas ele não precisava. Mesmo que estivesse às cegas, Max conseguiria entrar ou sair passando por uma porta trancada.

Houve um pequeno dique quando ele mexeu na fechadura, e, depois, silêncio. Como sempre, parou para escutar antes de entrar.

Nunca conseguiria descrever para ninguém a sensação que crescia em seu peito cada vez que invadia uma casa escura e silenciosa. Era algum tipo de poder, supunha, estar em algum lugar onde não deveria estar sem ser descoberto.

Silencioso como uma sombra, entrou pela cozinha, passando pela sala de jantar e pelo corredor.

O coração batia rápido. Uma sensação agradável, semelhante às preliminares de um bom sexo.

Encontrou a biblioteca exatamente onde LeClerc disse que encontraria, e o cofre, escondido atrás de uma porta falsa.

Com uma lanterna entre os dentes e um estetoscópio na fechadura, começou os trabalhos.

Ele se divertia. A biblioteca cheirava levemente a rosas e tabaco de cereja. Uma brisa fazia com que os galhos de uma castanheira batessem na janela. Pensou que, se tivesse tempo, encontraria uma garrafa de conhaque por ali e tomaria uma ou duas doses antes de ir embora.

O terceiro dos quatro eixos se encaixou, faltando oito minutos. Então ouviu um ganido.

Virou-se lentamente, já se preparando para correr. Iluminou com a lanterna na direção do som. Um filhote de cachorro com poucas semanas de idade. Deu outro ganido, abaixou-se e fez xixi no tapete persa.

— Tarde demais para pedir para sair — murmurou Max. — Desculpe, mas não tenho tempo para limpar a sua sujeira agora. Você vai ter que arcar com as consequências amanhã de manhã.

Max trabalhou no quarto eixo, enquanto o filhote cheirava seus sapatos. Com um suspiro de satisfação, abriu o cofre.

— Sorte minha não ter planejado esse serviço para o ano que vem, quando você vai estar grande o suficiente para me arrancar um pedaço. Embora eu tenha uma cicatriz nas costas feita por um poodle do seu tamanho.

Ignorou papéis de ações da bolsa e abriu uma caixa de veludo. As águas-marinhas brilharam para ele. Usando a lanterna e a lupa de joalheiro, conferiu as pedras e suspirou aliviado.

— São lindas, não são? — Tirou-as da caixa e guardou na pochete. Enquanto se abaixava para se despedir do filhote com um tapinha na cabeça, ouviu estalos na escada.

— Frisky? — Era uma voz feminina sussurrando. — Frisky, você está aí embaixo?

— Frisky? — disse Max baixinho, fazendo um carinho no cãozinho. —Alguns de nós temos de superar nossos nomes. — Fechou o cofre com um dique e desapareceu na escuridão.

Uma mulher de meia-idade, usando rede nos cabelos e com o rosto cheio de creme, entrou na sala na ponta dos pés. O cãozinho ganiu, abanou o rabo e seguiu atrás de Max.

— Aí está você! Bebê da mamãe! — A menos de um metro de Max, ela jogou o cãozinho pra cima. — O que você está fazendo? Cãozinho levado. — Dava beijos estalados enquanto o cãozinho tentava escapar. — Você está com fome? Está com fome, meu bebê? Vou lhe dar uma bela tigela de leite.

Max fechou os olhos, torcendo pelo cãozinho, que latia e tentava se soltar. Mas a mulher agarrou firme, apertando Frisky contra o peito enquanto se dirigia para a cozinha.

Como aquilo significava que Max não poderia sair por onde entrara, ele abriu a janela. Se tivesse sorte, ela ficaria muito ocupada com o cãozinho para perceber o buraco no vidro chanfrado da porta da cozinha.

Se não tivesse, pensava enquanto colocava uma perna para fora da janela, ainda estaria em vantagem. Fechou a janela e fez o possível para não pisotear os amores-perfeitos.

 

LUKE NÃO conseguia dormir. Só de pensar em atuar na noite seguinte, era tomado por excitação e pânico. Os "e se" o atormentavam.

E se ele se atrapalhasse? E se esquecesse do truque? E se a plateia o achasse bobo?

Sabia que era bom. Sabia que dentro dele existia potencial para ser muito bom. Mas tantos anos ouvindo que era estúpido, inútil, que não servia para nada, deixaram sua marca.

Para Luke a única maneira de lidar com a insônia era comendo. O melhor da festa era quando não havia ninguém por perto para lhe impedir.

Calçou os chinelos e desceu a escada em silêncio. Estava sonhando com o pernil assado e a torta de nozes de LeClerc.

O som da voz de LeClerc fez com que parasse e praguejasse. Certamente, estava longe do velho, mas, quando ouviu a gargalhada de Max, chegou mais perto.

— Suas dicas são sempre confiáveis, Jean. Os desenhos, o cofre, as joias. - Max segurava o conhaque em uma das mãos e as joias na outra. — Não posso nem reclamar muito do cachorrinho.

— Eles não tinham um cachorrinho na semana passada, nem cinco dias atrás.

— Agora têm. — Max riu e tomou um gole do conhaque. — Que ainda não foi treinado.

— Graças a Deus ele não latiu. — LeClerc colocou bourbon no café. —Não gosto de surpresas.

— Somos diferentes nisso. Gosto muito de surpresas. — E a chama do sucesso faiscava nos olhos de Max, tanto quanto o colar brilhava sob a luz. — Senão o trabalho vira rotina. E a rotina facilmente se torna maçante. Então, você acha que eles vão dar falta pela manhã? — Levantou o colar, deixando as pedras deslizarem por seus dedos. — E será que o fato de ser pagamento de dívida de jogo vai evitar que deem parte do roubo?

— Dando parte ou não, eles não vão achar nada aqui. — LeClerc já ia brindar com seu café, mas parou. Apertou os olhos enquanto colocava a xícara na mesa. — Acho que as paredes hoje aqui têm pelo menos dois ouvidos.

Alerta, Max olhou para cima e suspirou.

— Luke — disse o nome e fez um gesto para a escuridão.    — Venha para onde está claro. — Esperou, avaliando o rosto do menino enquanto este entrava na cozinha. — Acordado até esta hora.

— Eu não conseguia dormir. — Apesar de tentar, Luke não conseguia tirar os olhos do colar. Foi uma questão de confiança, de pura confiança, que fez com que ele olhasse para Max e dissesse: — Você roubou esse colar.

— Sim.

Com um dedo hesitante, Luke tocou uma pedra azul-clara.

— Por quê?

Max se recostou, tomando um gole do conhaque e pensou.

— Por que não?

Os lábios de Luke se contraíram. Era uma boa resposta, que o satisfazia mais do que mil desculpas esfarrapadas.

— Então, você é um ladrão.

— Entre outras coisas. — Max se abaixou, mas resistiu ao impulso de colocar a mão na cabeça de Luke. — Está decepcionado comigo?

Os olhos de Luke estavam cheios de um amor que não sabia expressar em palavras.

— Não. — Balançou a cabeça, negando freneticamente. — Nunca.

— Não tenha certeza disso. — Max tocou de leve sua mão, depois pegou o colar. — O vaso que você quebrou naquele dia era uma coisa... assim como esse colar. As coisas só valem tanto ou tão pouco quanto as pessoas acreditam. — Fechou as mãos com o colar, juntou os punhos e depois abriu as duas mãos. Vazias. — Mais uma ilusão. Tenho minhas razões para roubar coisas a que os outros dão valor. Um dia vou lhe contar. Até lá, vou pedir que não comente sobre isso.

— Não vou comentar com ninguém. — Ele morreria antes. — Posso lhe ajudar, sei que posso — repetia ele, furioso com o resmungo de desdém de LeClerc. — Posso fazer uma grana batendo carteiras.

— Luke, não existe dinheiro ruim, mas prefiro que você não faça isso a menos que faça parte do espetáculo.

— Mas por quê?

— Vou lhe dizer por quê. — Max fez um gesto para que Luke se sentasse, e as joias reapareceram em suas mãos. — Se você tivesse continuado a bater carteiras no parque, certamente seria apanhado. Isso seria triste, uma lástima.

— Sou cuidadoso.

— Você é jovem — corrigiu Max. — Duvido que você tenha pensado que o que roubou da carteira daquelas pessoas pudesse fazer falta a elas.

— Balançou a cabeça antes que Luke pudesse responder. — Você estava muito necessitado naquele momento. Agora não.

— Mas você rouba.

— Porque fiz essa escolha. Eu simplesmente gosto de roubar, por motivos complexos. — Parou e riu baixinho. — Eu disse que você não entenderia, mas você entende. — Seus olhos escureceram. — Eu era um pouco mais velho que você quando LeClerc me encontrou. Trabalhava para ganhar centavos fazendo o truque dos Copos Mágicos e truques de cartas. Também batia carteiras. Como você, escapei do tipo de pesadelo que nenhuma criança devia ter. A mágica me sustentava. Roubos também. Tinha que escolher e escolhi me aperfeiçoar nos dois caminhos. Não me desculpo por ser um ladrão. Toda vez que roubo, recupero algo que foi tirado de mim.

Sorriu e tomou um gole.

— Ah, o que um psiquiatra diria sobre isso. Não, não me desculpo, mas também não vou bancar o mártir moderno. Vou lhe ensinar mágica, Luke. Quando você for mais velho, vai fazer suas próprias escolhas.

Luke pensou no assunto.

— Roxanne sabe disso?

Pela primeira vez um lampejo de dúvida apareceu no rosto de Max.

— Não sei por que ela deveria saber.

Melhor assim. Para Luke, saber algo que Roxanne não sabia fazia toda a diferença.

— Vou esperar, vou aprender.

— Tenho certeza de que vai. E, por falar nisso, temos que falar sobre seus estudos.

Foi como um balde de água fria na animação de Luke.

— Estudos? Mas eu não vou pra escola.

— Ah, mas vai. — Max entregou o colar a LeClerc. — Os documentos devem ser bem simples. Acho que ele pode ser filho de um primo, que ficou órfão há pouco tempo.

— Vai levar uma semana — afirmou LeClerc. — Talvez duas.

— Ótimo, então estaremos com tudo pronto para as aulas no início do outono.

— Eu não vou pra escola — repetiu Luke. — Não preciso de escola. Você não pode me obrigar.

— Pelo contrário — disse Max, calmamente. — Você vai para a escola, você certamente precisa e com toda certeza eu posso obrigá-lo.

Luke morreria por Max e ficaria satisfeito com a oportunidade de tentar. Mas não desejava passar várias horas de tédio por dia, cinco dias por semana.

— Eu não vou.

Max apenas sorriu.

 

LUKE ENTROU para a escola. Apelos, barganhas e ameaças não adiantavam. Quando descobriu que até Lily, que era coração mole, estava contra ele, Luke se rendeu.

Ou fingiu.

Eles podiam fazê-lo ir ou ao menos se vestir, carregar um monte de livros idiotas e sair em direção à escola sob os olhos de águia de LeClerc.

Mas não podiam obrigá-lo a aprender coisa alguma.

A maneira arrogante com que Roxanne exibia suas notas dez e estrelas douradas começou a incomodá-lo. Ficava irritado de verdade quando ela olhava em sua direção quando Max e Lily a elogiavam. Todas as noites, a pirralha ficava nos bastidores, fazendo assiduamente seus deveres de casa entre os atos.

Max aumentara a participação dela com o truque dos lenços.

Luke sabia que podia tirar dez. Se quisesse.

Isso não era grande coisa, só um número no papel, mas para provar que não podia ser superado por uma menina esnobe, com cara de macaco, estudou para a prova de geografia.

Não era tão ruim assim estudar sobre os estados e capitais, especialmente quando começou a contar quantos já havia visitado.

Quando a nota chegou, ele mal podia esperar para exibi-la, mas se conteve. Mas se seu teste de geografia com um dez enorme escorregasse de dentro do seu caderno nos bastidores, não seria sua culpa.

Já não aguentava mais de tanta impaciência quando Lily, finalmente, viu e pegou sua prova.

— O que é isso? — Viu os olhos de Lily se arregalarem, sentiu uma emoção que raramente sentira, corou da cabeça aos pés. Era orgulho. - Luke, isso é fantástico! Por que não contou pra gente?

— Não contei o quê? — O sorriso bobo no seu rosto estragou a pretensa indiferença, mas deu de ombros mesmo assim. — Ah, isso? Não é nada de mais.

Não é nada de mais? — Rindo, ela lhe deu um abraço apertado. —É um espetáculo. Você não errou nenhuma questão! — Ainda com o braço em volta dele, Lily chamou Max, tirando-o de uma conversa com Lester. —Max, Max querido, você precisa ver isso.

— O que eu preciso ver?

— Isso. — Triunfante, Lily balançou o teste na frente dele. — Olhe o que nosso Luke fez e não contou pra ninguém.

— Eu ficaria feliz em ver, se você parasse de balançar. — Sua sobrancelha se levantou quando olhou para Luke. — Muito bom, muito bom. Então, você decidiu usar seu cérebro. E com excelentes resultados.

— Não foi nada de mais. — Não sabia que podia ser. — É só decorar.

— Meu querido menino. — Max estendeu a mão e apertou as bochechas de Luke. — A vida é só decorar. Uma vez que você aprenda o truque, há muito pouco que não possa fazer. E você fez muito bem, muito bem mesmo.

Enquanto eles se afastavam, preparando-se para o próximo ato, Luke ficou parado absorvendo toda emoção. Quando a emoção diminuiu um pouco, virou-se e viu Roxanne o analisando com seus olhos sábios.

— O que você está olhando?

— Você — disse ela.

— Então pode parar.

Mesmo quando ele se afastou, ela continuou de olho, como fazia com tudo que a deixava cismada.

A ESCOLA NÃO era tão ruim. Luke percebeu que podia aguentar, e só uma ou duas vezes ao mês matava aulas. Suas notas eram boas. Podia não tirar sempre dez como Roxanne, mas estava fazendo sua parte.

Mas nem tudo Luke aprendia rápido. Custou um olho roxo e um lábio ensanguentado para perceber.

Ao voltar machucado para casa, revoltado e com menos três dólares e vinte e sete centavos, jurou vingança. Teria ganhado deles, pensou. Teria acabado com os três idiotas se o diretor, sr. Rampwick, não tivesse chegado e estragado tudo.

Na verdade, se o sr. Rampwick não tivesse separado a briga, Luke teria pelo menos os dois olhos roxos, mas o orgulho adolescente fantasiava o ocorrido de forma diferente. Só esperava poder se limpar antes de chegar em casa e ser visto por alguém. Perguntava-se se conseguiria cobrir o ago com maquiagem.

— O que você aprontou?

Luke praguejou por ter andado de cabeça baixa pela calçada, em vez de prestar atenção no caminho. Agora, havia topado com Roxanne. — Não é da sua conta,

— Você andou brigando. — Roxanne jogou a mochila rosa nas costas e plantou as mãos na cintura. — Papai não vai gostar nada disso.

— Grande merda. — Mas ficou preocupado. Max iria castigá-lo? Max não bateria nele; pelo menos, prometera que não. Por mais que Luke acreditasse nisso, uma parte dele ainda estava na dúvida e com medo.

— Seu lábio está sangrando. — Suspirando, Roxanne tirou um lenço do bolso de sua saia azul. — Torne. Não, não limpe com as mãos, você só vai espalhar. — Paciente como uma velha senhora, ela mesma cuidou do corte. — É melhor você se sentar. É muito alto, eu não alcanço.

Resmungando, Luke se sentou nos degraus de uma loja. De qualquer maneira queria um tempo para encarar Max e Lily.

— Posso fazer isso sozinho.

Ela não reclamou quando Luke arrancou o lenço de suas mãos. Roxanne estava muito interessada no olho, que já estava ficando roxo.

— Você deixou alguém com raiva?

— Deixei, eles ficaram com raiva porque não dei meu dinheiro. Agora cale a boca.

Ela apertou os olhos.

— Eles? Eles bateram em você e roubaram seu dinheiro?

A humilhação doía mais do que o olho.

— Aquele desgraçado, nojento, do Alex Custer me deu um soco. Eu teria dado um de volta se os dois amigos dele não tivessem me segurado no chão.

— Pra onde eles foram? — Ficou agitada e pegou Luke de surpresa ao ficar de pé nos degraus. — Nós vamos chamar Mouse e dar um jeito neles.

— Nós merda nenhuma. — Riu e seu lábio cortado ardeu como fogo. — Você é só uma garotinha. — Ai! — Segurou a canela que ela chutou. —Que droga!

— Eu sei me cuidar — falou Roxanne em alto e bom som. — É você que está com a cara amassada.

— E de perna quebrada — disse ele, rindo de si mesmo. Roxanne parecia furiosa e estranhamente perigosa. — Eu também sei me cuidar. Não preciso de ajuda.

— Ah, tá — disse ela, implicando com ele. Então respirou fundo, deixando que o ar frio do outono esfriasse seu rosto quente. — De qualquer maneira, é melhor não brigar. É mais divertido ser mais inteligente.

— Mais inteligente do que Alex? — perguntou Luke. Um repolho é mais inteligente do que ele.

— Então seja um repolho. — Sentou-se novamente, com ar de malandragem, não de raiva.  — Vamos dar um golpe nele — disse, divertindo-se.

— Que merda é essa de nós, de novo? — Mas estava interessado.

— Você não tem experiência pra fazer isso sozinho. Tem que fazer de um jeito que ele não perceba que foi enganado. — Ajeitou a saia e colocou sua cabeça fértil para funcionar.  — Conheço Bobby, o irmão mais novo dele. Ele sempre belisca as meninas e rouba comida. — Roxanne deu um risinho. — Bom, eu estava pensando em dar esse golpe nele, mas acho que você pode dar no Alex.

— Qual é o golpe?

— Vou mostrar depois. Temos que ir pra casa, já devem estar preocupados.

Ele só não a segurou porque não queria parecer interessado demais. Depois, estava preocupado com a reação que teriam quando ele entrasse pela porta da cozinha. Provavelmente gritariam com ele, pensou, arrastando os pés. Ou pior, muito pior, Max daria aquele olhar comprido e diria coisas horríveis.

Você me decepcionou, Luke.

Eles realmente gritaram quando ele entrou pela porta da cozinha atrás de Roxanne. Todos gritaram juntos, mas não era o que Luke estava pensando.

— Feliz aniversário!

Ele pulou para trás com o susto.

Todos estavam ao redor da mesa da cozinha, Max, Lily, Mouse e LeClerc e, em cima da mesa, um enorme bolo lindamente confeitado com velas acesas. Enquanto olhava boquiaberto, o sorriso radiante de Lily se transformou num "oh" de espanto.

— Bebê! O que aconteceu? — Max passou rápido à frente de Lily, segurando seu braço. Seus olhos encaravam os de Luke. Mesmo com um pouco de raiva, falava calmamente.

— Andou lutando, não foi?

Luke só deu de ombros, mas Roxanne tomou suas dores.

— Eram três, papai. Isso é covardia não é?

— Claro que é. — Abaixou-se e segurou o queixo de Luke com carinho. - Da próxima vez, avalie suas chances com mais cuidado.

— Experimente isso. — LeClerc pegou uma garrafa na prateleira e molhou um pano limpo com o que estava lá dentro. Quando colocou em cima do olho inchado de Luke, a dor aliviou. — Três? — perguntou ele e piscou. — Isso na sua blusa é um pouco de sangue deles, oui?

Pela primeira vez Luke sentiu que LeClerc o aprovava. Arriscou abrir a boca e desdenhou dos meninos.

— Claro que é.

— Bem — disse Lily. — Nós planejamos uma surpresa para você, e você é que acabou nos surpreendendo. Espero que a nossa seja melhor. Feliz aniversário, bebê.

— Melhor soprar as velas — sugeriu Max enquanto Luke só apreciava. — Antes que pegue fogo na casa.

— Não se esqueça de fazer um pedido — disse Roxanne, ficando na frente da câmera enquanto Mouse tentava focalizar.

Ele só tinha um pedido, que era pertencer a algum lugar. E parece que já havia sido concedido.

EMOÇÃO ESTONTEANTE de seu primeiro bolo de aniversário e de abrir os presentes comprados só pra ele apagaram de sua mente todos os pensamentos sobre Alex e vingança.

Roxanne era mais determinada.

Dois dias depois, Luke estava no meio de uma situação que poderia lhe render muita satisfação, ou uma cara quebrada.

Tinha que admitir que fora inteligente, até mesmo diabólico, pegar emprestado um dos truques baratos de Roxanne. Seguindo suas dicas, Luke fez com que o tal Alex e seus dois jovens capangas o vissem entrando no mercado da esquina, a uma quadra da escola. Comprou uma garrafa de suco de uva, o preferido de Alex, tirou a tampa e tomou um gole enquanto saía.

Então, fingiu ter avistado Alex primeiro e ter ficado com medo. Como um tubarão farejando sangue, Alex não precisava de mais nada para começar a persegui-lo.

A cabecinha oca tinha razão, Luke pensava enquanto entrava num beco, destampando um dos frascos de remédio que LeClerc tinha em casa.

Com mãos rápidas, Luke despejou o forte laxante dentro do suco de uva. Confiava que Roxanne soubesse o que estava fazendo e que aquilo não mataria ninguém. Assim, sua consciência não ficaria muito pesada.

Enfiando o frasco vazio no bolso, virou-se fingindo pânico. Escolhera um beco sem saída deliberadamente. Era provável que levaria uma surra de novo, mas pelo menos um deles pagaria o preço.

— Qual é o problema, cara de bunda? — Vendo sua presa encurralada, Alex estufou o peito e sorriu. — Perdido?

— Não quero confusão. — Luke deixou o orgulho de lado, em nome da vingança, e fez as mãos e a voz tremerem. — Não tenho dinheiro nenhum, gastei comprando isso.

— Não tem dinheiro? — Alex pegou a garrafa de Luke, antes de imprensá-lo na parede. — Veja se ele tá mentindo, Jerry. — Alex deu um gole enorme na bebida e sorriu com o bigode roxo.

Luke choramingou e deixou o garoto procurar em seus bolsos. Queria ter a certeza de que Alex esvaziasse a garrafa.

— Ele não tem nada — disse Jerry. — Quero um gole, Alex.

— Vá comprar o seu. — Alex virou a garrafa e a esvaziou. — Pronto. —Jogou a garrafa fora. — Agora vamos dar uma surra nele.

Mas desta vez Luke estava preparado. Se não puder lutar, corra. Deu uma cabeçada na barriga de Alex e empurrou os outros garotos até que caíssem como um castelo de cartas. Correu para a saída do beco. Era mais rápido, e sabia disso, já estaria longe quando eles conseguissem se levantar para correr atrás dele. Mas queria ser perseguido. Um pouco de exercício faria com que o laxante fizesse efeito mais rápido em Alex.

Fez com que o perseguissem em direção à Jackson Square, descendo para a Royal, virando na esquina da St. Ann, entrando correndo na Decatur. Uma olhada para trás e ele viu o rosto de Alex branco como uma vela e molhado de suor. Luke já estava entrando no quintal de casa, na dúvida se voltava ou continuava, quando Alex gemeu e segurou a barriga.

— Ei, qual é o problema? — Jerry o puxou. — Vem logo, cara, ele está fugindo.

— Minha barriga, minha barriga! — Alex correu para uma moita e se agachou.

— Jesus! — Jerry gritou enojado. — Isso é nojento.

— Não dá pra segurar, não dá! — Era tudo que Alex falava, enquanto o laxante fazia efeito impiedosamente.

— Olhem! — Roxanne apareceu do nada e apontou. — Tem um menino fazendo número dois no mato. Mamãe! — chamou com voz de boneca. —Mamãe, vem depressa.

— Vamos embora, Alex, caramba, vamos. — Depois de olhar em volta, Jerry e seu companheiro deixaram Alex gemendo e fugiram para um local mais seguro, já que vários adultos estavam chegando perto.

Sem disfarçar o sorriso, Roxanne entrou no quintal.

— Isso é melhor do que dar socos nele — disse para Luke. — Socos ele esquece, mas disso ele nunca vai se esquecer.

Luke teve que rir.

— E você disse que eu era mau.

Da varanda, Max viu grande parte do pequeno drama e ouviu tudo do que precisava ouvir. Suas crianças, pensou com uma ponta de orgulho, estavam se saindo bem, muito bem na verdade. Como Moira ficaria feliz com sua menina.

Não se lembrava da esposa com frequência, a ruiva fogosa que entrou e saiu de sua vida como uma flecha. Ah, sim, ele a amou, amou e desejou demais. Como não amar e desejar uma mulher tão bela e destemida?

Mesmo depois de tantos anos, ainda tinha dificuldade de acreditar que todo aquele fogo se apagara. Tão rapidamente. Tão inutilmente.

Uma apendicite. Ela era muito forte para reclamar de dor, e então foi tarde demais. Uma corrida frenética para o hospital e uma cirurgia de emergência não a salvaram. Ela desapareceu da vida deixando o que de mais precioso fizeram juntos.

Sim, ele estava convicto de que Moira teria ficado orgulhosa da filha.

Voltando para o quarto, viu Lily colocar mais um par de meias na mala dele.

Lily, até seu nome o fazia sorrir. A doce e adorável Lily. Um homem não podia amaldiçoar a Deus tendo recebido o amor de duas mulheres maravilhosas em uma mesma vida.

— Você não precisa fazer isso pra mim.

— Eu não me importo. — Checou o kit de barbear para se certificar de que havia novas lâminas antes de guardá-lo. — Vou ficar com saudades.

— Vou voltar antes que você dê por minha falta. Houston é praticamente do outro lado da rua.

— Eu sei. — Suspirou e se enroscou nele. — Eu me sentiria melhor se fosse com você.

— Mouse e LeClerc são proteção suficiente, você não acha? — Beijou-a novamente numa têmpora, depois na outra. Sua Lily tinha a pele tão macia quanto as pétalas de um lírio.

— Acredito que sim. — Inclinou a cabeça e fechou os olhos, enquanto ele passava os lábios em seu pescoço. — E alguém tem que cuidar das crianças. Você acha mesmo que esse trabalho vai render os duzentos e cinquenta mil?

— Ah, no mínimo. Esses homens do petróleo adoram gastar seus trocados em arte e joias.

A ideia de tanto dinheiro a deixava excitada, mas não tanto como o que Max estava fazendo com a língua em sua orelha, naquele momento. — Tranquei a porta.

Max sorriu enquanto a jogava na cama.

— Eu sei.

.HAVERIA TEMPO de sobra no curto voo entre Nova Orleans e Houston, com Mouse no controle do Cessna, para que estudasse as plantas novamente. A casa aonde chegariam algumas horas mais tarde era enorme, com 550m2.

As plantas sobre as quais Max estava debruçado no momento custaram pouco mais de cinco mil em subornos. Era um investimento que Max acreditava que valeria a pena.

O Rancho R. Crooked, que tinha um nome sugestivo, estava recheado de obras de arte dos séculos XIX e XX, a maioria arte oriental e americana, todas escolhidas para os proprietários por agentes. Não foram adquiridas apenas pelo valor estético ou pela simples beleza, mas como um investimento.

Um bom investimento, Max não tinha dúvidas. Investimento que estava prestes a lhe render uma bolada.

Havia joias também. A lista que Max conseguira, no arquivo de uma companhia de seguros com base em Atlanta, continha cordões e pedras suficientes para se abrir uma pequena joalheria.

Como seus alvos tinham seguro, Max deduziu que a falta de segurança estaria a seu favor. Além disso, seguro era uma aposta entre seguradora e segurado. No final, alguém sempre saía perdendo.

Max levantou o olhar e sorriu para LeClerc. Os dedos do cajun ficaram brancos quando segurou o braço da poltrona. Em volta do pescoço, usava uma cruz de prata, uma figa de ouro, um talismã de cristal e uma pena de aguia. Na lapela, havia um terço, um pé de coelho preto e um punhado de as coloridas.

LeClerc se cercava por todos os lados quando voavam.

Como seus olhos estavam bem fechados em uma oração silenciosa, Max não falou nada quando se levantou para servir uma dose de conhaque para ambos.

LeClerc bebeu o conhaque de um só gole.

— Voar não está na natureza do homem. É um desafio aos deuses.

— Toda vez que respiramos estamos desafiando os deuses. De toda forma, desculpe-me por sujeitá-lo a algo de que não gosta, mas minha ausência seria notada em Nova Orleans se viéssemos de carro, tornaria muito tempo.

— Você ficou muito famoso por causa da sua mágica.

— Não sou nada sem ela. A fama tem suas vantagens. O bastante para ser convidado para importantes festas e jantares. — Pegou uma moeda no ar e começou a brincar com ela entre os dedos. — Convidam com a esperança de que eu vá divertir a todos no salão.

— Como um malabarista — disse LeClerc com desgosto, mas Max só deu de ombros.

— Como quiser. Estou sempre disposto a pagar por uma boa refeição. E sou muito bem recompensado pelos contatos que faço. Nossos amigos em Houston ficaram impressionados com minha performance improvisada em Washington no ano passado. Sorte nossa eles terem decidido visitar o primo deles, o senador.

— Mais sorte ainda estarem na Europa agora.

— Muito mais sorte, apesar de não ser grande coisa, assaltar uma casa vazia. — Deu de ombros novamente e transformou uma moeda em duas.

Pegaram uma limusine em Hobby, e Mouse vestiu quepe e uniforme de motorista. A limusine enorme chamaria menos atenção na vizinhança rica do que um sedan sem marca.

Além disso, Max gostava de viajar com conforto, sempre que possível. No banco de trás, ao som de uma cantata de Mozart, checou suas ferramentas uma última vez.

— Duas horas — anunciou. — Não mais que isso.

LeClerc estava colocando as luvas — um velho cavalo que escuta a campainha e sabe que chegou a hora da corrida.

Já havia meses que não ouvia o dique de encaixe dos eixos, meses desde a última vez em que teve o prazer de abrir um cofre na escuridão. Durante um longo verão, tinha sido celibatário — ao menos no sentido figurado — e estava pronto para o romance com o roubo.

Sem Max, sabia que já teria perdido esse prazer. Apesar de nunca tocarem no assunto, ambos sabiam que LeClerc estava diminuindo o ritmo. Alguém mais jovem teria que substituí-lo no triângulo formado por ele, Mouse e Max. E esse dia estava chegando. No momento, só acompanhava Max nos trabalhos mais leves. Se a casa dos homens do petróleo não estivesse vazia, LeClerc sabia que teria ficado em casa esperando, assim como Lily.

Mas ele não ficara amargurado por isso. Estava grato pela oportunidade de sentir a emoção mais uma vez.

Passaram pelo suntuoso caminho de entrada, viram a estátua de um menino nu segurando uma carpa. Quando os texanos estavam em casa, Max imaginava a carpa vomitando no chafariz.

— Uma lição pra você, Mouse. Dinheiro não compra bom gosto.

Quando estacionaram na frente da casa, moveram-se em silêncio. Max e LeClerc foram até a mala do carro, Mouse tratou de lidar com o sistema de segurança. Estava escuro como breu, não havia nenhum indício de luar.

— Muitas terras — sussurrou LeClerc, satisfeito. — Muitas árvores grandes. Os vizinhos devem precisar de binóculos para espiar as janelas uns dos outros.

— Espero que não tenha nenhum voyeur esta noite. — Max tirou da mala do carro uma caixa enorme, forrada de veludo, e um rolo de isolamento acústico geralmente utilizado em cinemas.

E esperaram.

Dez minutos depois, Mouse voltou correndo.

— Desculpe, era um sistema muito bom. Demorou um pouco.

— Não precisa se desculpar. — Max sentia aquele formigamento familiar nas pontas dos dedos enquanto se aproximava da porta da frente. Pegou sua mala de ferramentas e deu início aos trabalhos.

— Por que usar isso? Mouse já conseguiu invadir e até desarmou o alarme.

—Falta finesse — murmurou Max com os olhos fechados, com a mente nos eixos. — Só mais um minuto.

Ele cumpria a palavra. Minutos depois, estavam parados no estonteante saguão de mármore preto e branco, de três andares, encarando uma reprodução da Vênus e um lago interno de peixinhos dourados.

— Caramba. — Foi tudo que Mouse conseguiu falar.

— De fato, quase dá vontade de parar e refletir. — Max olhou para um enorme porta-chapéus feito de chifres de veado. — Quase.

Eles se separaram. LeClerc subiu a ampla escada em curva, em direção ao quarto onde ficava o cofre com as joias da madame; Mouse e Max ficaram com o primeiro andar.

Trabalharam calmamente, cortando as pinturas das molduras que Max considerava cafonas e as enrolando dentro da caixa de veludo. Esculturas de bronze, mármore e pedra foram embrulhadas com o material grosso de isolamento acústico.

— Um Rodin. — Max parou por um momento para dar uma aula. —Uma peça realmente notável. Vê o movimento, Mouse? A leveza, a emoção do artista na sua obra.

Tudo que Mouse enxergou foi um globo de pedra engraçado. — Ah, claro, Max, é lindo.

Max suspirou ao guardar respeitosamente o Rodin entre as pregas do tecido pesado.

— Não, essa não — disse ele quando viu Mouse carregando uma peça em bronze.

— É muito pesada — disse Mouse. — É maciça, deve valer uma fortuna.

— Sem dúvidas, ou não estaria nessa coleção. Mas falta estilo, Mouse, e beleza. É mais importante roubar as peças mais bonitas do que as mais valiosas. Do contrário estaríamos roubando bancos, não acha?

— Acho que sim. — Entrou em outro quarto e saiu erguendo uma obra de Remington de um vaqueiro montando um cavalo. — Que tal essa, Max?

Max olhou. Era uma boa peça, mas devia ser tão pesada quanto um elefante. Apesar de não gostar, percebeu que era a cara de Mouse.

-- Excelente escolha. Melhor levar para a limusine do jeito que está. Estamos quase terminando aqui.

— Acabamos — afirmou LeClerc, descendo a escada e apalpando sua gorda bolsa. — Eu não sei o que a madame e o monsieur levaram para a Europa, mas deixaram muitas bugigangas pra nós. — Tinha sido duro ignorar as ações da bolsa e o dinheiro vivo que achou nos cofres, mas Max era supersticioso com roubo de dinheiro. LeClerc nunca subestimava as superstições de ninguém. — Olhem esse.

Puxou uma corrente de diamantes e rubis trabalhados em um cordão de três voltas. Com um resmungo, Max pegou o colar e o colocou na luz.

— Como alguém pode ter pedras tão bonitas e fazer algo tão horroroso com elas? A madame devia nos agradecer por nunca mais ter que usar isto.

— Deve valer, pelo menos, uns cinquenta mil.

— Humm. — Possivelmente, pensou Max, desejando estar com sua lupa. Poderia escolher algumas pedras e fazer um colar mais adequado para Lily. Uma olhada no relógio e um acenar de cabeça. — Acho que nossa febre consumista terminou. Vamos carregar? Acho que conseguiremos chegar em casa para o brunch.

"É um demônio, um demônio de nascença, em cuja natureza jamais pôde atuar a educação. Foram perdidos todos os meus esforços; sim, perdidos completamente, sempre, quanto foi feito a ele por amor à humanidade”

                 William Shakespeare

 

QUANDO LUKE completou 16 anos, Mouse lhe ensinou a dirigir. Deram algumas batidas e derrapadas em estradas secundárias, e, uma vez, quando Luke tentou virar o volante, trocar a marcha e frear ao mesmo tempo, quase acabaram dentro de um pântano. Mouse tinha uma paciência infinita.

Tirar a carteira de motorista foi um acontecimento na vida de Luke, um passo gigante rumo à virilidade que tanto buscava. Mas mesmo isso perdeu um pouco o brilho em comparação com outro acontecimento. Seu encontro com Annabelle Walker incluiu Guerra nas Estrelas, dois potes gigantes de pipoca, e a noite terminou em sexo no banco de trás do  Nova, carro usado que comprara com suas economias.

Os amassos no banco de trás não eram uma novidade para Annabelle nem para o Nova. Mas era a primeira vez de Luke. E, para ele, a rua escura, o canto das cigarras em contraponto a todos os sussurros e gemidos, o milagre de sentir os seios de Annabelle em suas mãos, era tudo tão romântico e majestoso quanto o Taj Mahal.

Annabelle era considerada uma garota fácil, mas só entrava no carro com um menino se ele fosse bonito, se a tratasse bem e se beijasse bem.

Luke preenchia todos os requisitos.

Quando ela o deixou colocar as mãos por debaixo de sua camiseta, para sentir os seios brancos como leite, Luke achou que tivesse chegado ao céu. Mas, quando ela abriu o zíper de sua Levi's e o segurou, ele entendeu que os portões do paraíso estavam apenas se abrindo.

— Meu Deus, Annabelle. — Estava atrapalhado com o jeans da moça enquanto ela o agarrava, levando-o ao delírio. Ele tivera esperança de que ela o deixaria tocá-la, mas não tinha ideia de que alguns encontros, um punhado de pipocas e uma noite assistindo ao mundo ser salvo a convenceriam a chegar ao grande momento.

E ele não era de perder uma oportunidade quando ela se apresentava. Max lhe ensinara isso.

— Deixa eu... — Não sabia exatamente o quê, mas estava com a mão dentro da calcinha de renda vermelha.

Úmida, quente e escorregadia. Seu sangue desceu freneticamente da cabeça para a virilha, como uma batida tribal, que definia o ritmo de seus dedos. O prazer de Annabelle soou como um zumbido, que se transformou em gemidos desesperados e pequenos sussurros delirantes. Seus quadris fartos, subiam e desciam, batendo no banco esfarrapado do Nova. Luke fechara os vidros para se proteger do vento gelado. Assim, estava tudo embaçado, transformando o carro numa sauna a vapor, cheirando a sexo.

Podia sentir os músculos dela se contraindo em volta dele, enquanto ela atingia o clímax em suas mãos.

Sua respiração estava ofegante enquanto se encaminhava para algo que só imaginara nos sonhos e nas conversas de vestiário.

Com o rosto mergulhado nos seios dela como se fossem um travesseiro e uma das mãos ocupada a acariciando, tirou os quadris de dentro das calças Levi's. A sensação de estar dentro de uma mulher daquela maneira era quase o suficiente para perder o controle. Mas uma pequena parte de seu cérebro permanecia fria, estranhamente distante, divertindo-se até.

Ali estava Luke Callahan, nu em seu Nova 72, Bee Gees cantarolando no rádio — Cristo, tinha que ser Bee-Gees? — e Annabelle abrindo suas pernas em seu melhor estilo líder de torcida, bem debaixo dele.

Seu pênis parecia um foguete, enorme e quente chacoalhando na torre de lançamento. Só esperava que o lançamento não ocorresse antes do previsto.

Não foi habilidade que fez com que desse mais prazer a Anabelle do que os outros meninos com quem ela já havia saído. Foi pura inexperiência, misturada com uma curiosidade saudável e amor por coisas belas. Sentir todo aquele clima quente, sentir a forma de uma mulher estremecer debaixo dele, foi uma das coisas mais belas que Luke já vivera.

— Ah, gostoso! — Uma veterana no assunto sexo em lugares pequenos, Annabelle se contorceu, virou-se e enganchou as pernas em torno do quadril dele. — Não consigo mais esperar, não dá.

Nem ele conseguiria. Puro instinto fez com que a penetrasse. Controlar aquilo foi tanto instinto quanto aprendizagem de alguém que conteve durante quatro anos seu anseio por liberdade. Ambos seguiram em um ritmo delirante até chegarem ao êxtase. A última coisa que ouviu foi Anabelle chamando seu nome. Ela toda chamava por ele.

Por cortesia de Annabelle, na segunda-feira retornaria à escola com uma reputação da qual qualquer garoto da sua idade se orgulharia.

QUANDO CHEGOU em casa, cheirando a sexo, a suor e à colônia de Anabelle, a casa estava escura, exceto por uma luz esquecida acesa na cozinha.

Ficou feliz por não ter ninguém acordado para recebê-lo. Mais feliz ainda por ter uma folga no clube a cada quinze dias para que, como Max disse, pudesse ter uma vida social adequada.

Essa noite, com toda certeza, ele se sentia adequado.

Abriu a geladeira e bebeu um litro de suco de laranja, direto da garrafa. Ele ainda sorria e cantarolava "Witchy Woman", quando se virou e viu Roxanne na porta.

— Isso é nojento. — E mostrou com a cabeça a garrafa que ele segurava.

Com o passar dos anos, desabrochara, tal como ele. Mas, enquanto Luke ainda não chegara a 1,80m, menos do que a média para sua idade, Roxanne era a garota mais alta de sua turma, mais alta até do que a maioria dos garotos. A maior parte era de pernas, como dava pra se notar com o pijama curto que usava. Como ela estava com os cabelos penteados, algo que Luke sabia que ela fazia toda noite antes de ir para cama, percebeu que ela ainda ia dormir.

— Enfia. — Sorriu e colocou a garrafa vazia no balcão.

— Alguém mais podia querer. — Apesar de não estar com sede, foi até a geladeira procurar algo. Enquanto pegava uma garrafa de Dr. Pepper, torceu o nariz para Luke. — Você está fedendo. — Sentiu no ar, entre outras coisas, vestígios do aroma da colônia de Anabelle. — Você saiu com ela de novo.

Por uma questão de princípios, Roxanne odiava Anabelle. Os princípios eram que ela era baixinha, loura, bonita e que Luke saía com ela.

— O que você tem com isso?

— Ela pinta os cabelos e usa roupas muito apertadas.

— Ela usa roupas sensuais — corrigiu Luke se sentindo um expert no assunto. — Você só está com inveja, porque ela tem peitos, e você não.

— Ainda vou ter. — Com quase 13 anos, Roxanne estava irritada com os passos de tartaruga de seu desenvolvimento feminino. Quase todas as meninas de sua turma já tinham, pelo menos, um par de botões como peitos, enquanto ela era lisa como a tábua de cortar pão de LeClerc. — E, quando eu tiver, os meus vão ser melhores que os dela.

— Certo. — Imaginar Roxanne com peitos o divertia, no começo. Quando começou a pensar no assunto, ficou desconfortavelmente excitado. — Cai fora.

— Estou pegando uma bebida. — Serviu um copo de Dr. Pepper para provar. — Aos sábados, não tenho horário para dormir.

— Então, eu vou dormir. — Enquanto se retirava e subia a escada, perguntava-se como um cara podia flutuar numa nuvem de luxúria com aquela resmungona atrás dele? Não querendo perder nem um minuto sequer do sonho prazeroso que planejara, Luke se despiu e pulou na cama, nu.

Acostumara-se com o cheiro e a sensação de lençóis limpos, mas ainda não via como a coisa mais normal do mundo. Era raro ir dormir com fome, e há muito tempo esquecera o que era sentir medo.

Nos últimos quatro anos, viajara por quase todo o leste dos Estados Unidos, apresentara-se em campos de pouso, clubes sombrios e palcos elegantes. No verão anterior, Max, com algum pesar, teve que vender o parque de diversão. Viajaram para a Europa, onde Max ganhou fama como o mestre dos mágicos.

Luke agora arranhava o francês e aprendera como fazer as cartas dançarem. No seu ponto de vista, tinha tudo. A vida estava perfeita, Luke pensava, enquanto tentava dormir.

Uma hora depois, acordou transtornado, suando frio, com um nó na garganta.

Voltara ao passado, àquele apartamento minúsculo de dois quartos. O cinto de Al o atingia como uma lâmina, cortando sua pele, não tinha para onde fugir, nem onde se esconder.

Sentando-se, Luke respirou fundo o ar pesado de outono e esperou a tremedeira passar. Há meses isso não acontecia, disse a si mesmo, apoiando a cabeça nos joelhos. Meses e meses, sem que seu subconsciente o levasse de volta até lá. Toda vez que semanas ou meses se passavam sem um pesadelo, ficava com a certeza de que deixara aquilo tudo para trás.

Aí, tudo voltava do nada, como um gremlin, saindo de um armário para assombrá-lo e torturá-lo.

Não era mais uma criança, Luke lembrou a si mesmo e tropeçou na cama. Não devia mais ter pesadelos e acordar tremendo, querendo que Max ou Lily aparecessem para confortá-lo.

Então decidiu caminhar para esquecer. Vestiu as calças e disse a si mesmo que caminharia até a Bourbon Street e voltaria para se esquecer do pesadelo.

Quando chegou ao pé da escada, ouviu gritos agudos e vozes abafadas. Olhando para a saleta, viu Roxanne sentada no chão, de pernas cruzadas, com uma bacia de pipocas no colo.

— O que você está fazendo?

Ela se mexeu, mas não tirou os olhos da tela.

— Estou assistindo a um filme de terror, O Castelo dos Zumbis. É sobre um conde que embalsama as pessoas. É maneiro.

— Porcaria. — Mas ficou interessado o bastante para se sentar na beirada do sofá e pegar um punhado das pipocas de Roxanne. Ainda se sentia trêmulo, mas, antes que Christopher Lee tivesse o que merecia, já tinha caído no sono.

Roxanne esperou até ter certeza de que ele estava dormindo. Então, apoiou seu rosto no encosto do sofá e acariciou seus cabelos.

ELES ESTÃO crescendo a olhos vistos, Lily.

— Eu sei, querido. — Suspirou enquanto entrava na caixa horizontal brilhante. Estavam ensaiando sozinhos no clube, um novo show que Max chamava de Mulher Dividida.

— Roxy em breve será uma adolescente. — Max encaixou as travas ao dar uma volta com elegância ao redor da caixa, para alegria do público imaginário. — Por quanto tempo mais os meninos vão ficar longe dela?

Lily sorriu e mexeu os pés e mãos que saíam dos buracos da caixa.

— Não por muito tempo. Mas não se preocupe, Max, ela é esperta demais para se contentar com menos do que ela quer.

— Espero que esteja certa.

— Ela é bem filha do pai que tem. — Lily soltou os gritinhos e gemidos apropriados quando Max mostrou a lâmina afiada da cimitarra incrustada de pedras preciosas.

— Com isso você quis dizer que ela é teimosa, ambiciosa e determinada.

Lily ficou em silêncio enquanto Max seguia o ritual de separar e juntar as metades da caixa. Depois, perguntou:

— Você não está triste pelas crianças estarem crescendo, está, querido?

— Talvez um pouco. Faz com que eu me lembre de que estou envelhecendo. Luke dirigindo e correndo atrás de meninas.

— Ele não precisa correr atrás delas. — Lily enrugou a testa, aborrecida. — Elas se atiram em cima dele. De qualquer forma — ela suspirou —, são boas crianças, Max. Um par fantástico.

...

METADE DESSE par fantástico estava a duas quadras dali, praticando energicamente Monte de Três Cartas. Participantes de uma convenção estavam espalhados pela cidade. Roxanne simplesmente não conseguiu resistir.

Estava arrumada com seu conjunto de calça e jaqueta rosa, camiseta florida e tênis brancos como a neve. Os cabelos presos em um rabo de cavalo, e o rosto limpo, exceto pelas sardas.

Parecia uma doce e adorável garota americana. Era exatamente sua intenção. Roxanne sabia o valor da ilusão e da imaginação.

Já conseguira mais de duzentos dólares, mas tinha o cuidado de não lucrar muito com uma mesma vítima. Não fazia aquilo por dinheiro, apesar de, como seu pai, gostar do que o dinheiro podia comprar. Fazia porque achava divertido.

Mais uma vez exibiu três cartas na mesinha dobrável. Pegou a aposta de cinco dólares de sua vítima, um homem corpulento com uma camisa havaiana. Virou as cartas para baixo e começou a manipulá-las. Assim como manipulava toda a multidão.

— Não tire os olhos da dama de espadas. Não pisque, não espirre. Continue olhando pra ela, continue de olho. — Suas mãos pequenas e dedos longos se moviam como um raio. E, é claro, a dama já estava na palma de sua mão.

Ganhou mais cinquenta e pagou vinte para manter um bom relacionamento com a comunidade. Em algum lugar ali por perto, um músico de rua tocava um trompete solitário. Roxanne resolveu que já era hora de parar e ir embora.

— Por hoje é só. Obrigada, senhoras e senhores, aproveitem sua estadia em Nova Orleans. — Começou a recolher as cartas quando uma mão agarrou seu pulso.

— Mais uma vez, ainda não tentei a sorte.

Era um rapaz de uns 18, 19 anos. Em seu jeans desbotado e camiseta da banda Grateful Dead, era puro músculo. Os cabelos desgrenhados eram de um louro dourado, uma moldura em volta do rosto estreito e anguloso. Os olhos castanho-escuros estavam fixos nos de Roxanne.

Ele fez com que ela se lembrasse de Luke, não pela aparência, mas pelo jeito selvagem e potencial para a maldade. Pela voz, não parecia de Nova Orleans, na verdade não parecia de lugar nenhum.

— Chegou tarde — disse ela.

Continuava segurando firme o pulso dela. Quando sorriu, mostrando dentes brancos e perfeitos, ela ficou abalada.

— Uma jogada — pediu ele. — Estava observando você.

Era quase impossível para Roxanne resistir a um desafio. Seu instinto dizia para resistir, mas o orgulho era mais forte.

— Tenho tempo pra uma jogada. A aposta é de cinco dólares.

Com um aceno de cabeça, ele puxou uma nota dobrada do bolso traseiro e colocou sobre a mesa.

Roxanne abriu as cartas, aparecendo duas damas vermelhas e uma negra no centro.

— Observe a dama negra. — Ela começou, virando as cartas. Numa fração de segundos, tomou a decisão de não colocar a carta na palma da mão, mas de provocar mais ainda o desafiante.

Não era um novato no jogo. Ela já estava nisso há muito tempo para não reconhecer um profissional. Roxanne apostou seu ego contra a nota de cinco dólares.

Apesar de não olhar as cartas desde o início, ela sabia exatamente onde a dama negra estava escondida.

— Onde ela está?

Ele não hesitou e bateu o dedo na carta da esquerda. Antes que ela pudesse desvirá-la, ele agarrou seu pulso novamente.

— Eu faço isso. — Desvirou uma dama de copas.

— Parece que minha mão é mais rápida do que seu olho.

Ainda segurando a mão dela, ele desvirou as outras duas cartas. Piscou uma vez quando viu que a dama negra estava exatamente no lugar inicial. No centro.

— Parece — murmurou ele. Os olhos se estreitaram quando a viu colocar seus cinco dólares e as cartas numa bolsa que estava debaixo da mesa.

— Mais sorte na próxima vez. — Dobrou a mesa, enfiou debaixo do braço e seguiu em direção ao Porta Mágica.

Ele não desistia assim facilmente.

Ei, menina, qual é seu nome?

Ela olhou para ele quando ele parou do seu lado.

Roxanne, por quê?

— Só queria saber. Sou Sam. Sam Wyatt. Você é boa, muito boa.

— Eu sei.

Sorriu, mas sua mente estudava as possibilidades. Se pudesse atraí-la para um lugar menos movimentado, poderia pegar de volta seus cinco dólares e o restante de seu lucro também.

— Você ganha fácil. Quantos anos tem? Uns 12, 13?

— E daí?

— Ei, isso é um elogio, amor.

Ele sentiu que a deixou envaidecida, só um pouco. Se foi uma resposta ao elogio ou porque um rapaz da idade dele chamou uma menina de 12 anos de amor, não tinha certeza. De qualquer forma, estava funcionando.

— Uns meses atrás, eu estava em Nova York. Tinha um cara trabalhando numa esquina lá, que tirava quinhentos, seiscentos, por dia. Ele não era melhor do que você. Há quanto tempo você está na picaretagem?

— Não sou uma picareta. — A ideia de ser confundida com um vigarista comum deixou Roxanne enfurecida. — Eu sou mágica — informou ela. —Fazer o truque para aquela gente foi um tipo de ensaio. — Riu sozinha. —Um ensaio remunerado.

— Mágica. — Sam percebeu que ali o tráfego de pedestres era menor. Não via ninguém que pudesse causar problemas quando pegasse a bolsa da menina e saísse correndo. — Por que não me mostra um truque? —Colocou a mão nos braços dela, preparando-se para derrubá-la no chão.

— Roxanne. — Com cara feia, Luke atravessou a rua correndo. — Que diabos você está fazendo? Devia estar no ensaio.

— Estou indo. — Fez uma cara feia para ele também, furiosa por ele ter aparecido, bem quando estava tentando começar uma paquera. — Você também não está lá.

— Não tem nada a ver uma coisa com a outra. — Viu a mesa e a bolsa e adivinhou o que ela andava fazendo. Ficou chateado por ela não tê-lo incluído. Deixando isso de lado por ora, olhou Sam de cima a baixo. Como um animal macho, ficou eriçado.

— Quem é esse?

— Um amigo meu — falou Roxanne, decidida.

— Sam, este é Luke. Sam deu um sorriso descontraído.

— Como vai?

— Tudo bem. Você não é daqui.

— Cheguei à cidade há alguns dias. Estou viajando por aí, sabe?

— Certo. — Luke não gostou dele. O olhar ganancioso não combinava com o sorriso generoso. — Estamos atrasados, Roxy. Vamos embora.

— Num minuto. — Se Luke ia tratá-la como um bebê, mostraria muito bem que já era uma mulher, dona de seu nariz. — Talvez você queira dar um tempo por aqui, Sam. Assista ao ensaio, é logo ali no Porta Mágica.

Parecia que não ia conseguir colocar as mãos na bolsa, mas Sam não era de desistir. O encontro com Roxanne tinha que valer alguma coisa.

-- Seria ótimo, se você tem certeza de que não tem problema.

— Não tem problema nenhum. — Pegou a mão dele e o levou até seu pai.

...

SAM SABIA ser simpático. O verniz de afabilidade, boas maneiras e o bom humor sarcástico faziam parte do jogo, tal como uma carta marcada em um baralho. Sam se sentou no Porta Mágica, aplaudiu, mostrou-se inacreditavelmente surpreso e riu sempre nas horas certas.

Quando Lily o convidou para o jantar, aceitou timidamente com gratidão.

Achou LeClerc velho e estúpido. Mouse, lento e estúpido, mas tratou de causar boa impressão a ambos.

Depois, sumiu por um ou dois dias para não parecer muito abusado. Quando apareceu no Porta Mágica para assistir ao show, foi muito bem recebido. Quis ter a certeza de que Lily o visse contando os trocados para comprar um refrigerante.

— Max. — Lily segurou o braço do marido quando ele chegou aos bastidores, deixando Luke a cargo de seu truque de cinco minutos. — Aquele menino está com problemas.

— Luke?

— Não, não. Sam.

— Ele já não é mais um menino, Lily. É quase um homem.

— Ele é só um pouco mais velho do que Luke. — Deu uma espiada, viu Sam no bar e notou que ele ainda bebia a mesma Coca-Cola aguada. —Acho que ele não tem dinheiro e nem pra onde ir.

— Não me parece que ele esteja procurando emprego. — Max sabia que estava sendo duro e não tinha ideia por que estava sendo tão relutante em oferecer ajuda.

— Querido, você sabe como é difícil achar um emprego. Você não pode arranjar alguma coisa pra ele?

— Talvez, me dê um dia ou dois.

Um ou dois dias era tudo do que Sam precisava. Para coroar sua imagem, sujeitou-se a dormir no jardim dos Nouvelle por uma noite, certificando-se de que seria descoberto pela manhã.

Bem acordado, manteve os olhos fechados, observando por baixo dos cílios quando Roxanne apareceu na porta da cozinha. Bocejou, virou-se, depois, piscou abrindo os olhos, dando um grito abafado de susto, quando ela o avistou.

— O que você está fazendo?

— Nada. — Ele se enrolou num cobertor esfarrapado e ficou em pé. Com a testa enrugada, ela chegou mais perto.

— Você dormiu aí fora?

Sam umedeceu os lábios.

— Olha, isso não tem nada de mais, tá? Não conte a ninguém. — Você não tem um lugar pra ficar?

— Eu perdi. — Deu de ombros tentando se mostrar corajoso e sem esperança ao mesmo tempo. — Logo vou encontrar um lugar para ficar. Eu só não queria ficar pela rua a noite toda. Achei que não ia incomodar ninguém aqui.

Ela tinha o coração de seu pai.

— Vamos, entre. — Estendeu sua mão. — LeClerc está preparando o café da manhã.

— Não preciso de esmolas.

Como ela compreendia seu orgulho, falou com suavidade:

— Papai pode arranjar um emprego para você. Vou pedir a ele.

— Você faria isso? — Deu a mão a ela. — Cara, vou ficar lhe devendo essa, Rox.

 

MAX NEGAVA muito pouca coisa a Roxanne. Mas, por sua causa, contratou Sam Wyatt, apesar de uma estranha relutância em aceitar o rapaz na sua comitiva. Deu a Sam a tarefa de montagem e desmontagem dos equipamentos, ocupação que Sam sabia que estava abaixo de sua dignidade e habilidades.

Mas Sam tinha intuição também, e a sua dizia que se juntar à equipe de Nouvelle poderia ser a porta de entrada para algo muito maior e melhor. Eram todos idiotas. Por mais que sugasse deles, detestava-os por terem lhe tirado da rua como se fosse um cachorro sarnento. Mas, para Sam, o grande golpe valeria mais do que pequenas cartadas. Teria paciência.

Ficava horas carregando e descarregando equipamentos, polindo caixas e dobradiças que Max utilizava nos shows. Prometeu para si mesmo que um dia aquele velho ia pagar caro pelo trabalho degradante que lhe deu, mas era incansavelmente carinhoso e atencioso com Roxanne, e timidamente lisonjeador com Lily. Sam percebera há muito tempo que o poder de verdade, em qualquer grupo, é das mulheres.

Não cometeu o erro de competir com Luke. Tinha dúvidas se seria sensato ir abertamente contra uma pessoa a quem Max considerava como um filho, mas a antipatia de Sam por Luke era nutrida a cada dia chato de trabalho. O fato de ser uma antipatia recíproca facilitava as coisas. Nenhum dos dois saberia dizer o porquê, mas se detestaram à primeira vista. Um deixava seus sentimentos à flor da pele, o outro disfarçava, escondendo seu ódio como um avarento esconde seu ouro.

Sam aguardava o dia em que seria recompensado por isso.

Por enquanto, estava satisfeito com sua posição e com o fato de que passariam uma semana em Los Angeles.

Max também estava satisfeito com a próxima viagem. Teriam a oportunidade de se apresentar no Magic Castle, ir a um jantar oferecido por Brent Taylor, astro do cinema e mágico amador, e Max teria o prazer de mostrar à sua família o brilho de Hollywood.

Também pretendia trazer um pouco de todo esse brilho para o leste. Beverly Hills, com suas mansões cheias de tesouros, seria a cereja do bolo de uma temporada já lucrativa.

Tinha duas casas como alvo, escolheria entre as duas depois que chegasse a Los Angeles e estudasse a área primeiro.

Eles ocuparam vários quartos do Beverly Hills Hotel. Max se divertia vendo Luke encantar o carregador e a camareira com alguns pequenos truques. O menino aprendeu, pensava. E aprendeu bem.

Organizou um almoço especial no Maxim's para toda sua família e membros da trupe, desde o mais humilde trabalhador. Depois, mandou Lily e Roxanne às compras.

— Agora então. — Max acendeu um charuto pós-refeição. — Mouse e eu temos negócios a resolver, mas o restante de vocês tem o dia livre para explorar, passear ou seja lá o que for que os faça felizes. Preciso de vocês com os olhos brilhando no ensaio das nove, amanhã de manhã.

Quando os outros saíram, Luke arrastou uma cadeira para perto de Max.

— Preciso falar com você.

— Claro. — Percebendo tanto o nervosismo quanto a determinação, Max levantou uma sobrancelha. — Algum problema?

— Não acho que seja um problema. — Luke respirou fundo e disparou. — Quero ir com você. — Balançou a cabeça antes que Max pudesse falar. Estava preparando esse discurso há dias. — Eu conheço o procedimento, Max. Você e Mouse vão sair para observar duas casas. Vocês já têm tudo preparado. Uma cópia das apólices de seguro, plantas, esquemas dos sistemas de segurança, uma ideia da rotina da casa. Agora você vai checar primeiro e decidir quando e onde atacar.

Max alisou o bigode. Não sabia se estava aborrecido ou impressionado.

— Você tem se mantido informado.

— Tive quatro anos para estudar o procedimento enquanto esperava que me deixasse participar.

Max bateu a cinza do charuto, antes de tragar enquanto pensava. — Meu querido menino...

— Não sou mais um menino. — Os olhos de Luke brilhavam ao chegar mais perto. — Ou você confia em mim ou não. Tenho que saber.

Max soltou a fumaça e ficou em silêncio enquanto o garçom tirava os pratos.

— Não é uma questão de confiança Luke, é questão do momento certo.

— Não vá dizer que está tentando me salvar da vida de crime.

Max virou os lábios.

— Claro que não. Nunca fui um hipócrita, e sou egoísta como qualquer pai que espera que seu filho siga seus passos. Mas...

Luke segurou Max pelo braço.

— Mas?

— Você ainda é jovem. Não tenho certeza se está pronto. Para ser um ladrão de sucesso é preciso maturidade, experiência.

— É preciso ter bolas no saco. — Luke as segurou, fazendo Max jogar a cabeça para trás e rir.

— Oh, certamente que é. Mas, além disso, uma boa dose de habilidade, sutileza e cabeça fria. Em mais alguns anos, você vai estar maduro, mas por enquanto...

— Que horas são?

Distraído, Max piscou, depois olhou para o relógio. Ou para onde seu relógio deveria estar.

— Eu sempre disse que você tinha boas mãos — murmurou ele.

— Não sabe que horas são? — Luke virou o pulso. A luz do sol brilhou no Rolex de ouro de Max. — São quase três horas. É melhor você pagar a conta e ir embora.

O próprio Luke acenou para o garçom. Distraidamente, Max procurou pela carteira dentro do bolso da jaqueta. E saiu de mãos vazias.

— Está duro? — Luke sorriu e tirou a carteira de Max de seu próprio bolso. — Essa é por minha conta. Acontece que ganhei uma grana boa recentemente.

Ganhou um ponto, Max pensou e sorriu para Mouse.

— Por que você também não tira a tarde de folga? Luke pode me levar.

— Claro, Max. Posso ir conhecer aquele bairro chinês.

-- Divirta-se. — Com um suspiro Max pegou a carteira. — Pronto para ir? — perguntou a Luke.

— Estou pronto há anos.

 

BEVERLY HILLS atraía Luke. Não como Nova Orleans, com suas ruas festivas e glamour decadente. Era o único lugar que Luke jamais consideraria morar. As avenidas largas, arborizadas com palmeiras e a aura de fantasia das casas escondidas sob a névoa no alto das colinas eram como um filme. Supunha que era por isso que muitas estrelas de cinema escolhiam essa parte da cidade para viver.

Prosseguia adiante, seguindo as orientações de Max. Notou que ocasionalmente viam uma viatura policial. Os tiras daqui não tinham carros empoeirados e arranhados e sim carros que brilhavam de tão limpos sob o sol da tarde.

A maioria das propriedades estava escondida atrás de muros altos e cercas. Nas duas vezes em que circularam por ali, viram o ônibus que fazia turismo pelas casas das estrelas de cinema. Luke se perguntava por que alguém pagaria pelo passeio, se só conseguiriam ver muros de pedras e o topo das árvores.

— Por que — perguntou Max enquanto abria sua maleta — você quer roubar?

— Porque é divertido — respondeu Luke sem pensar. — E sou bom nisso.

— Mmmm. Max concordava que era melhor passar a vida fazendo algo de que se gostasse e em que fosse talentoso. — O carregador que trouxe nossas malas estava distraído com seus truques. Ele tinha um relógio e uma carteira. Você roubou?

— Não. — Surpreso, Luke se virou para encará-lo. — Por que eu faria isso?

— Por que não faria é a questão. — Max tirou a gravata e guardou dentro da maleta.

— Bem, não é divertido quando é tão fácil assim. Além disso, ele é só um cara tentando ganhar a vida.

— Pode-se argumentar também que um ladrão é só um cara tentando ganhar a vida.

— Se eu só quisesse isso, poderia assaltar uma loja de conveniências.

— Ah, então você considera esse tipo de negócio fora de questão.

— Não tem classe.

— Luke. — Max suspirou enquanto colocava sua camisa superbranca dentro da maleta.  — Você me deixa muito orgulhoso.

— É como mágica — disse Luke depois de alguns minutos. — Você quer dar o melhor de si. Se vai enganar alguém, então faça com charme. Certo?

— Absolutamente certo. — Max vestiu uma camisa xadrez verde e laranja de manga curta que chamava muita atenção.

— O que você está fazendo?

— Só preparando o traje adequado. — Max acrescentou um boné de baseball do Phillies e óculos espelhados. — Espero estar parecendo um turista.

Luke parou num sinal e aproveitou para analisar Max.

— Você está parecendo um idiota.

— Bem perto. Está vendo o ônibus de turismo no meio do quarteirão? Grude nele.

Obedecendo às ordens, Luke estacionou o carro, mas fez uma careta para o boné que Max lhe deu.

— Pittsburgh. Você sabe que não sou fã de beisebol.

— Vai ter que usar. — Max pendurou a câmera e um binóculo no pescoço. — Essa aqui é a casa de Elsa Langtree — disse Max com um sotaque carregado do centro-oeste enquanto saía do carro. Acrescentou um assobio antes de disputar um lugar com outros turistas para dar uma espiada pelo portão de ferro batido. — Cara, ela é demais!

Luke captou o sotaque e esticou o pescoço.

— Que nada, pai, ela é velha.

- Ela pode se aposentar lá em casa a qualquer hora.

Isso fez com que alguns dos turistas rissem antes que o guia começasse seu discurso. Chegando para trás, Max deu a volta no ônibus e subiu com habilidade em seu telhado enquanto o restante do pessoal da excursão ouvia as explicações e tirava fotos. Max usou lentes telescópicas em sua câmera para tirar fotos por cima do muro do casarão de tijolos de três andares, seus anexos e iluminação externa.

Ei, amigo. — O motorista do ônibus chamou sob a autoridade de seu boné. — Desça já daí, vamos! Jesus Cristo, em todo grupo tem um maluco desses.

Eu só queria ver se conseguia dar uma olhada na Elsa.

- Vamos, pai, você está me envergonhando.

Tudo bem, tudo bem. Esperem, acho que estou vendo ela, Elsa! — Gritou, aproveitando-se da confusão, enquanto as pessoas voltavam para o portão para uma última foto.

Quando o motorista xingou e ameaçou, Max desceu. Deu um sorriso tímido e se desculpou.

— Sou fã dela há vinte anos. Até dei o nome dela para o meu periquito.

— Sim, ela ficaria feliz.

Com uma relutância evidente, Max deixou que Luke o arrastasse de volta para o carro.

— Espere só até eu contar para os meninos lá de Omaha.

— Você conseguiu aquilo de que precisava? — perguntou Luke.

— Acho que sim. Vamos dar uma olhada em mais uma. A casa de Lawrence Trent não está no roteiro, mas ele é conhecido por ter uma coleção de caixas de rapé do século XIX.

— E o que Elsa tem?

— Além do evidente encanto feminino? — Max sintonizou o rádio e encontrou algo de Chopin. — Esmeraldas, meu caro menino. A dama adora esmeraldas. Combinam com seus olhos.

 

MAX TAMBÉM adorava esmeraldas. Depois que LeClerc mandou revelar as fotos, ficou óbvio que a casa de 'Trent seria um alvo fácil. Max não precisava de mais nada para se decidir. Escolheu as pedras.

 

SALTO ALTO, Roxanne?

Roxanne se levantou orgulhosa, um pouco bamba em seus novos saltos de dez centímetros.

— Sou praticamente uma adolescente — disse ela ao pai.

— Acho que ainda faltam alguns meses para essa ocasião especial.

— Isso não é nada. Além disso, eles valorizam a fantasia. — Virou-se com cuidado na malha azul de lantejoulas. — E alguns centímetros extras me dão mais presença no palco. — Já que seus seios estavam demorando uma eternidade para se desenvolverem, tiraria vantagem de sua altura. — Deixar uma boa impressão aqui no Magic Castie é importante, não é? — Sorriu vitoriosa.

— Certamente. — Tinham trinta segundos para entrar no palco. — Suponho que você não trouxe nenhum sapato reserva.

Ela abriu um sorriso ainda maior antes de beijar o rosto do pai.

— Vamos arrebentar!

Talvez fosse efeito das luzes ou seus próprios pensamentos, mas, por um momento, quando a cortina subiu, Max a viu como uma mulher adulta, esguia e linda, brilhando confiante, olhos cintilantes com segredos que só um coração feminino entende.

E, então, era só sua menininha de novo, usando sapatos de gente grande e encantando a plateia com sua habilidade com os lenços de seda. Minutos depois, os lenços estavam amontoados a seus pés, e ela se virou para o pai, preparando-se para entrar em transe para o novo truque de levitação, uma combinação do velho truque da vassoura com o da Menina Flutuante.

A música ecoava. "Für Elise'. Lenta e graciosamente, Max passou as mãos na frente de seu rosto. Sua cabeça balançava. Os olhos se fecharam.

Ele usava vassouras brilhantes, queria beleza, mas não podia faltar drama. A primeira, colocou entre as omoplatas dela, em seguida deu um passo à esquerda e estendeu os braços gesticulando. Como não tivessem peso, as pernas dela começaram a levitar, retas e esticadas, até que o corpo ficou paralelo ao palco. Passou a outra vassoura em cima e embaixo. A longa e dramática cabeleira ruiva caída como uma cascata. Quando ele soltou o único gancho, entregando as duas vassouras para Lily, a multidão já aplaudia.

Aos acordes de Beethoven, Roxanne começou a girar. A luz mudou para dourado enquanto seu corpo se virava, inclinava-se e se colocava na vertical meio metro acima do palco. Ele a trouxe gentilmente para baixo, centímetro a centímetro, até que tocasse o palco.

E, então, ele a despertou.

Roxanne abriu os olhos para uma chuva de aplausos. Não havia som mais doce para sua mente.

— Eu lhe disse, papai — falou, baixinho.

— Sim, você me disse, minha querida.

Sam assistia dos bastidores e balançava a cabeça. Era tudo uma farsa, pensou. O que mais o irritava é que ninguém deixaria que ele descobrisse como era feito. Era mais uma coisa pela qual os Nouvelle teriam de pagar alguma hora.

Tudo de que precisava era chegar mais perto. Aí achava que poderia copiar este ou qualquer outro truque, se quisesse. O fato de pessoas pagarem um bom dinheiro para ver alguém fingir fazer o que não podia ser feito o divertia e aguçava sua ganância.

Tinha de haver um jeito de ganhar dinheiro com isso, pensou. Acendeu um cigarro e observou Luke fazer sua entrada. Grande merda, pensou. O desgraçado acha que é grande coisa ficar lá debaixo dos holofotes recebendo aplausos e atenção.

Vai chegar o dia, Sam disse para si mesmo, em que terei toda a atenção. Porque quando você tem atenção, tem poder. E isso era o que Sam mais desejava.

— Sr. Nouvelie. — No momento em que a apresentação acabou, Brent Taylor, o ator que parecia ídolo de adolescente e tinha voz mansa de barítono, procurou Max no camarim. — Nunca vi nada melhor.

— Fico lisonjeado, sr. Taylor.

— Brent, por favor.

— Brent então, e você me chame de Max. É um pouco apertado aqui, mas eu ficaria honrado se você se juntasse a mim para um conhaque.

— Seria um prazer. O truque da transformação — continuou Taylor enquanto Max servia. — Simplesmente maravilhoso. E a levitação foi espetacular. Estou ansioso por minha festa.  Assim, teremos tempo para conversar sobre mágica.

— Adoro conversar sobre mágica. — Ofereceu uma taça cheia de Napoleon.

— E talvez possamos discutir sobre a magia da telinha. Televisão —disse Taylor, enquanto Max apenas sorria educadamente.

— Sim, mas receio que eu tenha poucas oportunidades de assistir a ela. Mas meus filhos são especialistas.

— E eles próprios também são mágicos impressionantes. Acho que fica riam encantados em tentar a sorte em um especial para televisão.

Max fez um gesto para que Taylor se sentasse em um pequeno sofá, e se sentou em frente à mesa de maquiagem.

— A mágica perde força na televisão.

— Pode perder, certamente, mas com seu senso teatral poderia ser maravilhoso. Vou ser franco, Max, recebi a oportunidade de produzir uma série de especiais para uma rede de TV. E eu gostaria muito de produzir uma hora de "O Espetacular Nouvelle".

— Max. — Luke fez uma pausa com a mão na porta. — Desculpe. Tem um repórter do LA Times aqui.

— Falarei com ele num instante. Brent Taylor, Luke Callahan.

É um prazer conhecê-lo. — Taylor se levantou para apertar a mão de Luke. — Você tem muito talento, o que não é uma surpresa, já que aprendeu com o melhor.

— Obrigado, gosto de seus filmes. — Luke desviou o olhar de Taylor para Max. — Vou pedir que ele o espere no bar.

— Tudo bem.

— Um menino incrivelmente bonito — comentou Taylor quando Luke os deixou sozinhos.

— Se ele decidir não seguir seus passos, arranjo seis papéis amanhã mesmo.

Max sorriu e examinou as unhas.

— Receio que ele esteja bem determinado a seguir meus passos. Agora, quanto à sua oferta...

 

LUKE MAL podia esperar. Não teria tempo de falar com Max em particular até o final do segundo show. No momento em que Max entrou no camarim, Luke aproveitou.

— Quando vamos fazer?

— Fazer? — Max se sentou à mesa de maquiagem e mergulhou os dedos no creme frio. — Fazer o quê?

— O negócio da televisão. — A excitação o envolvia enquanto encarava o reflexo de Max. — O especial que Taylor quer produzir. Nós faríamos aqui em Los Angeles?

Com movimentos deliberados, Max retirava a maquiagem.

— Não.

— Poderíamos fazer em locações em Nova Orleans. — Luke já podia ver as luzes, as câmeras, a fama.

Max jogou fora os lenços usados.

— Nós não vamos fazer, Luke.

— É melhor que cortemos qualquer cena em dose, mas poderíamos preencher... — Sua emoção se transformou em espanto. — O quê? O que quer dizer com nós não vamos fazer?

— Exatamente isso. — Max afrouxou a gravata de seu smoking antes de se sentar para se trocar. — Eu recusei.

— Mas por quê? Nós alcançaríamos milhões de pessoas numa única noite.

— A mágica perde impacto na televisão. — Max pendurou o paletó e começou a tirar as abotoaduras de sua camisa.

— Não precisa perder. Podemos fazer ao vivo. É comum terem estúdios com plateia.

— De qualquer forma, nossa agenda não permitiria. — Max guardou as abotoaduras em uma caixinha dourada. O som de "O Lago dos Cisnes" soou quando ele abriu a tampa.

— Isso é mentira. — A voz de Luke se acalmou enquanto algo além de confusão se passava em sua cabeça. Max não havia encarado seus olhos em nenhum momento desde que entraram no camarim. — Isso é tudo mentira. Você não aceitou por minha causa.

Deliberadamente, Max fechou a tampa, cortando a música.

— Essa é uma ideia extremamente tola.

— Não é não. Você não quer esse tipo de exposição, não junto comigo. Pelo mesmo motivo que negou o Carson Show no ano passado. Você não quer fazer TV porque acha que aquele filho da puta ou a minha mãe podem ver e criar algum problema. Por isso que está recusando todas essas ofertas que poderiam colocá-lo no topo.

Max tirou a camisa branca do smoking e ficou de camiseta branca e calças. Por força do hábito, pendurou a camisa em um cabide acolchoado e passou os dedos pelas pregas.

— Eu faço minhas próprias escolhas, Luke, pelos meus próprios motivos.

— Por minha causa — murmurou Luke. Doía, essa pressão no peito, esse embrulho no estômago. — Isso não está certo.

— Está certo para mim, Luke. — Max se aproximou para tocar seu ombro, mas Luke se afastou. Pela primeira vez, em anos, o menino fez um movimento na defensiva. Isso também doía. — Não precisa encarar dessa maneira.

— E como devo encarar? — perguntou Luke. Queria destruir alguma coisa, qualquer coisa, mas conseguiu manter os punhos cerrados no lugar. — É minha culpa.

— Não tem nada a ver com culpa. Mas com prioridades. Talvez você não tenha idade suficiente para entender isso, mas o tempo vai passar. Daqui a dois anos, você terá 18. Se eu optar por aceitar uma oferta pra fazer televisão, será nessa época.

— Eu não quero que espere. Não por mim. — Seus olhos brilhavam furiosos. — Se tivermos problemas, eu cuido deles. Não sou mais uma criança. E, pelo que sabemos, ela está morta. Espero que esteja mesmo.

— Não. — A voz de Max era afiada como uma espada. — Mesmo com tudo que ela lhe fez ou deixou de fazer, ainda é sua mãe, e lhe deu a vida. Não deseje a morte dela, Luke. Ela chegará para todos nós.

— Como espera que eu não a odeie?

— Seus sentimentos são uma responsabilidade sua. Assim como minhas decisões são minhas. — Subitamente cansado, Max esfregou as mãos no rosto. Sabia que chegaria a hora de falar sobre o assunto. Sempre chega a hora pela qual você mais teme. — Ela não está morta.

O corpo de Luke congelou.

— Como você sabe?

— Você acha que eu podia me arriscar com você? — Furioso por ter que se explicar, Max arrancou uma camisa limpa do cabide. — Eu a mantive sob vigilância, sempre soube onde ela estava, como estava e o que estava fazendo. Se ela tivesse tentado se aproximar de você, eu o teria levado para onde ela não pudesse encontrá-lo.

Toda raiva se esvaiu de Luke, deixando-o vazio e miserável.

— Eu não sei o que dizer.

— Você não tem que dizer nada. Fiz o que fiz e continuarei fazendo porque amo você. Se eu tivesse que pedir algo em troca, eu pediria que tivesse paciência nesses dois anos.

De ombros caídos, Luke mexeu nos potes na penteadeira de Max.

— Nunca serei capaz de retribuir.

— Não me insulte nem tentando.

— Você e Lily... — Pegou uma jarra e colocou de volta no lugar. Algumas emoções são grandes demais para se colocar em palavras. — £u faria tudo por vocês.

— Então tire isso da sua cabeça, por enquanto. Vá e se troque. Ainda tenho trabalho a fazer essa noite.

Luke levantou o olhar. Max se perguntava como aquele menino se transformou em um homem naquele curto espaço de tempo em que ficaram naquele camarim apertado. Mas, agora, foi um homem que se virou para ele com os ombros largos e eretos, os olhos já não tão brilhantes, mas escuros e diretos.

— Você vai fazer o serviço na casa dos Langtree esta noite. Quero ir com você.

Max suspirou e se sentou para tirar os sapatos de palco.

— Você está dificultando as coisas essa noite, Luke. Fui indulgente com você antes, mas há uma grande diferença entre analisar e executar um serviço.

— Eu vou com você, Max. — Luke se aproximou, forçando Max a chegar sua cabeça para trás para que pudesse olhá-lo nos olhos. — Você está sempre falando sobre decisões, já não está na hora de me deixar começar a tomar algumas, sozinho?

Houve uma longa pausa antes que Max falasse outra vez.

— Saímos em uma hora. Vá com roupas escuras.

 

MAX ESTAVA muito agradecido por Elsa Langtree não colecionar os pequenos cachorros fru-fru que muitas atrizes achavam estar na moda. As excentricidades de Elsa se resumiam a colecionar homens, cada vez mais jovens e mais morenos com o passar dos anos. Atualmente, ela estava entre os maridos número sete e oito, tendo se divorciado recentemente de um jogador de futebol americano. Os planos de casamento com seu amor atual, um halterofilista de 28 anos, estavam caminhando.

Elsa tinha 49 anos.

Enquanto seu gosto por homens era reconhecidamente péssimo, em outros aspectos era impecável. Fato que Max contou a Luke enquanto escalavam o muro de segurança de três metros.

— Os ricos geralmente perdem a perspectiva — disse Max baixinho enquanto corriam pelo gramado aparado. — Mas, como você vai ver, a casa que Elsa construiu há uns dez anos é simplesmente encantadora. Ela contratou decoradores, é claro. Baxter e Fitch, muito bons. Mas inspecionou e aprovou cada amostra, cada peça, cada detalhe, pessoalmente.

— Como você sabe de tudo isso?

— Quando alguém se prepara para invadir uma casa, é imperativo saber tudo sobre os moradores, bem como a disposição estrutural. — Fez uma pausa se abrigando sob algumas árvores de mimosas. — Como você pode ver, esta casa é um excelente exemplo de arquitetura colonial. Linhas bem tradicionais, um pouco fluidas e femininas, perfeitamente adequadas para Elsa.

— É grande — comentou Luke.

— Certamente, mas sem ostentação. Uma vez que estivermos lá dentro, fale somente o absolutamente necessário, fique sempre ao meu lado e siga minhas instruções ao pé da letra e sem hesitar.

Luke concordou. Seu sangue fervia de expectativa.

— Estou pronto.

Max encontrou o sistema de alarme camuflado nas jardineiras do quintal. Seguindo as instruções de Mouse, desaparafusou a proteção e cortou os fios adequados. Lutando contra a impaciência, Luke esperava enquanto Max recolocava os parafusos e se dirigia para a porta do terraço.

Vidro jateado, cortado e projetado por um artista em Nova Hampshire - murmurou Max. — Seria um crime danificá-lo. — Em vez de usar o cortador, decidiu trabalhar nas duas fechaduras.

Demorou. Enquanto os minutos se passavam, Luke ouvia todos os tipos de sons pelo ar. O leve zumbido do filtro da piscina, o farfalhar dos pássaros noturnos nas árvores, o dique baixinho de metal com metal, enquanto Max cuidava das fechaduras. Em seguida, o sussurro de sucesso quando Max deslizou a porta.

Agora, pela primeira vez, estava sentindo o que Max sempre sentiu. Aquela emoção vibrando, por andar dentro de uma casa fechada, o prazer misterioso de saber que pessoas dormiam ali dentro, a sensação de poder ao se mover na escuridão para pegar o prêmio.

Caminharam em silêncio, um atrás do outro, atravessando a espaçosa sala. Um leve aroma materno, um despretensioso perfume feminino. Com a clara lembrança das plantas da casa em sua mente, Max seguiu para a cozinha e para a porta que levava ao porão.

— Por quê...

Max balançou a cabeça pedindo silêncio e desceu a escada. As paredes eram revestidas com pinho escuro. No meio da sala principal, havia uma mesa de sinuca, rodeada por aparelhos de musculação. Um bar de carvalho ocupava toda uma parede.

— Salão de jogos — disse Max baixinho. — Para agradar seus homens.

— Ela guarda as joias aqui embaixo?

— Não. — Max riu com a ideia. — Mas a caixa dos disjuntores s" O cofre é de um modelo com temporizador. Bem sofisticado e difícil decifrar. Mas, é claro, se a energia estiver cortada...

— O cofre vai abrir.

— Bingo. — Max abriu a porta da despensa. — Não é prático? — disse a Luke. — Tudo cuidadosamente etiquetado. Biblioteca. — Virou o disjuntor. — Isso deve dar conta. — Virou-se para Luke sorrindo. — Frequentemente, as pessoas escondem seus cofres entre os livros. Interessante, não acha?

— Verdade. — Suas mãos suavam dentro das luvas.

— Como se sente?

— Como na primeira vez em que me deitei no banco de trás com Annabelle. — Luke se ouviu dizendo e, depois, corando.

Max levou a mão ao coração, mas não conseguiu segurar a risadinha.

— Oh, sim. — Conseguiu dizer depois de um momento. — Uma analogia muito apropriada. — Virou-se e saiu na frente, seguindo de volta à escada.

Encontraram o cofre na biblioteca, atrás de um lindo quadro O'Keeffe. Com o temporizador desligado, foi tão simples quanto abrir uma caixa de quebra-cabeças para criança. Max chegou para trás e fez um gesto para Luke.

De pai para filho, pensou com orgulho, enquanto Luke retirava as caixas de joias do cofre. O feixe estreito de luz de sua lanterna brilhava nas pedras quando Luke abria as tampas.

Eram lindas. Era tudo que Luke podia pensar ao olhar para baixo e ver o brilho das pedras, magnificamente engastadas sobre ouro e platina. Saber que não pensara primeiro no valor monetário das joias teria deixado Max muito feliz.

— Ainda não — disse Max perto do ouvido de Luke. — O que brilha é, com frequência, imitação. — Pegou uma lupa em sua pochete e deu a lanterna para que Luke segurasse acima das pedras e, então, as examinou. —Maravilhosas — murmurou ele, suspirando. — Simplesmente maravilhosas. Como eu disse, Elsa tem um gosto refinado. Fechou o cofre e colocou a pintura de volta sobre ele. — É uma pena deixar o O'Keeffe para trás. Mas parece justo, não acha?

Luke estava com milhares de dólares em esmeraldas em suas mãos. E sorriu.

 

O TRUQUE PARA aplicar um golpe perfeito, até onde Sam sabia, era explorar o elo mais fraco. No pouco tempo em que estava na trupe de Nouvelle, fez-se disponível para todo e qualquer tipo de trabalho, sempre manteve um sorriso simpático no rosto e uma palavra de elogio na ponta da língua. Escutou com interesse quando Lily lhe contou sobre o passado de Luke e conquistou seu coração inventando a história de uma mãe morta e de um pai violento, o que deixaria seus pais, que viviam numa modesta casa em Bloomfield, Nova Jersey, surpresos. Nos dezesseis anos em que viveram sob o mesmo teto, nunca levantaram a mão contra ele.

Odiava o subúrbio, e, por razões que seus pais trabalhadores não conseguiam compreender, desprezava-os, bem como suas modestas ambições è estilo de vida.

Durante a adolescência, magoou-os com sua teimosia e rebeldia. Roubou o carro da família pela primeira vez aos 14 anos e fugiu para Manhattan. Teria dado certo, se tivesse se preocupado em pagar o pedágio no túnel. Os tiras o levaram de volta para Bloomfield, insolente e sem arrependimentos.

Tornou-se adepto do furto de lojas, roubando relógios, bijuterias e maquiagem em lojas de departamentos. Embalava a mercadoria com cuidado numa maleta de couro que roubara, depois vendia tudo com descontos aos colegas de escola.

Duas vezes invadiu e vandalizou a escola, mais pelo simples prazer de quebrar vidraças ou arrebentar a tubulação de água. Era inteligente o bastante para não se vangloriar de suas façanhas, era tão encantador com os professores, que nunca suspeitavam dele.

Em casa era um demônio, levando a mãe constantemente às lágrimas. Os pais sabiam que eram roubados por ele, vinte dólares faltando na carteira, bugigangas e joias desapareciam. Não conseguiam entender por que ele se sentia compelido a roubar, já que lhe proviam de tudo. Não entendiam que o filho não gostava particularmente de roubar. Ele gostava muito era de magoar as pessoas.

 

Recusava-se a ir às sessões de aconselhamento, ou, se conseguiam arrastá-lo para a terapia, se sentava carrancudo e não falava nada. Quando, aos 16 anos, a mãe se recusou a emprestar o carro, sua reação foi bater nela, cortando seu lábio e a deixando com o olho roxo. Então, calmamente, pegou as chaves, saiu pela porta e foi embora.

Abandonou o carro perto da fronteira com a Pensilvânia e nunca mais voltou.

Nunca mais pensou em seus pais. Os Natais e aniversários nunca passaram por sua cabeça durante as viagens pela costa. Para Sam, eles não significavam nada; portanto, não existiam.

Os Nouvelle estavam lhe dando alguns trocados, um excelente lugar para ficar e tempo para planejar outro golpe. Por ser capaz de usá-los, desprezava-os tanto quanto o casal que lhe dera a vida.

Por razões que não entendia ou nem tentava entender, era Luke a quem mais odiava. Começou a cortejar Roxanne, pois percebeu que ela tinha uma paixão infantil por Luke.

Também a considerava o elo mais fraco.

Dedicava-lhe seu tempo e atenção, ouvia suas ideias, elogiava suas habilidades como mágica. Fazia com que ela ficasse lisonjeada por mostrar-lhe alguns truques e, aos poucos, ganhou seu carinho e confiança.

Tinha certeza absoluta da lealdade dela. Então, no fim de seu segundo mês em Nova Orleans, decidiu se aproveitar disso.

Muitas vezes saía para encontrá-la na volta da escola, um hábito que tanto Max quanto Lily apreciaram. Era um inverno gelado e úmido, as pessoas corriam das ruas à procura do conforto de suas casas. Era fácil avistar Roxanne, caminhando devagar pela calçada, debaixo das marquises das lojas, fugindo da chuva fina, enquanto olhava as vitrines. Muitos dos lojistas a conheciam bem e a recebiam com gosto, caso entrasse para olhar.

Ela tratava com cuidado e admiração tudo que tocava, sempre fazendo perguntas e armazenando a informação.

Ela ainda estava a duas quadras de casa quando ele a viu, os cabelos lustrosos e a jaqueta azul-marinho brilhando na penumbra. Ele já escolhera seu alvo e, enquanto caminhava ao seu encontro, estava de muito bom humor.

— Ei, Rox, como foi na escola?

— Tudo bem. — Sorriu para ele, tinha idade suficiente e era mulher o suficiente para se sentir lisonjeada com as atenções de um homem de 19 anos. O coração debaixo de seus seios, teimosamente pouco desenvolvidos, acelerou o ritmo.

 

Em uma das lojas da Royal havia mais lixo do que preciosidades. Havia peça interessantes, a maioria delas de baixo valor. A mulher que administrava a loja pegava a mercadoria em consignação e complementava sua renda lendo cartas de tarô. Sam escolhera a loja porque a proprietária costumava trabalhar sozinha e, frequentemente, Roxanne parava para uma consulta às cartas de tarô.

— Quer parar para consultar as cartas? — Sam sorriu para ela. — Talvez você descubra como foi na prova.

— Nunca pergunto coisas bobas assim.

— Você podia perguntar sobre namorado. — Lançou-lhe um olhar que fez com que a pulsação dela disparasse e abriu a porta antes que ela tivesse a chance de seguir em frente. — Talvez ela lhe diga quando você vai se causar.

Roxanne baixou o olhar.

— Você não acredita de verdade nas cartas.

— Vamos ver o que elas vão dizer. Talvez eu acredite.

Madame D'Amour estava sentada atrás do balcão. Tinha um rosto anguloso, bem enrugado, dominado por olhos castanho-escuros. Hoje ela usava um de seus muitos turbantes, roxo, que cobria tudo, menos alguns fiapos de seus cabelos tingidos de ébano. Acrescentou pesados brincos de pedras que iam até quase os ombros de sua túnica púrpura. Em volta do pescoço, usava muitos cordões de prata. Pulseiras tilintavam em ambos os pulsos.

Devia ter 60 e poucos anos e dizia ser descendente de ciganos. Poderia ser verdade, mas, independentemente de sua herança, Roxanne era fascinada por ela.

Quando os sinos da porta tocaram, ela levantou o olhar e sorriu. Cartas de tarô com ilustrações coloridas estavam no balcão à sua frente, dispostas em forma de uma cruz celta.

— Achei que minha amiguinha viesse me visitar hoje.

Roxanne se aproximou para que pudesse estudar as cartas. Estava muito quente dentro da loja, mas não se incomodava. Tinha sempre o cheiro maravilhoso do incenso que a Madame queimava e de um forte perfume de mulher.

— Você veio às compras ou à procura de algo? — perguntou-lhe Madame D'Amour.

— Você tem tempo para colocar as cartas para mim?

— Pra você, meu amor, sempre. Talvez possamos tomar uma caneca de chocolate quente, oui? — Olhou para Sam, e seu sorriso murchou um pouco. Havia alguma coisa naquele rapaz da qual ela não gostava, apesar dos olhos bonitos e do sorriso aberto e simpático. — E você? Tem alguma pergunta para as cartas?

— Tudo bem. — E deu um sorriso tímido. — Acho que isso me assusta um pouco. Vá em frente, Rox, aproveite. Tenho que pegar umas coisas na farmácia. — Encontro você em casa.

— Ok. — Quando Madame pegou as cartas e se levantou, Roxanne foi até a cortina que separava a loja da sala dos fundos. — Diga ao papai que já estou indo.

— Claro. Até mais. — Ele se dirigiu até a porta, parando ao ouvir a cortina se fechar. Seu sorriso não era mais amigável, quando, deliberadamente, abriu a porta, deixando os sininhos tocarem, depois fechou novamente. Com movimentos rápidos, contornou as mesas carregadas de porcarias e preciosidades e se dirigiu ao balcão. Debaixo dele havia uma caixa de charutos pintada, onde Madame guardava a féria do dia. Não havia muito, os negócios andavam devagar com os dias chuvosos de inverno, mas Sam pegou tudo, até o último centavo. Encheu o bolso com as notas e moedas, deu uma olhada rápida em volta para ver se valia perder seu tempo com mais alguma coisa. É claro que teria preferido quebrar alguns vidros e porcelanas, mas, em vez disso, encheu os bolsos com algumas bugigangas. Segurando os sinos com cuidado, abriu a porta, saiu e a fechou lenta e silenciosamente ao sair.

 

DURANTE AQUELA semana, Sam atacou mais quatro lojas no French Quarter. Quando era vantajoso, recorria à ajuda de Roxanne, passeando com ela pelas lojas e esperando, enquanto ela, um rosto familiar no bairro, chamava a atenção do atendente. Enchia os bolsos com o que estivesse ao seu alcance, não importava se era uma valiosa porcelana de Limoges ou um cinzeiro barato. Certa vez, teve sorte bastante para limpar o caixa, enquanto e era levada aos fundos da loja para ver uma boneca de porcelana, que acabara de chegar, importada de Paris.

Sam não se importava com o valor de seus saques. O que mais lhe agradava era que a confiável Roxanne, com olhos arregalados, era inconscientemente sua sócia. Ninguém acusaria a queridinha de Maximillian Nouvelle de roubo de bugigangas. Contanto que estivesse com ela, poderia encher os bolsos à vontade.

Porém, a melhor parte daquele inverno em Nova Orleans foi seduzir Annabelle, afastando-a do apaixonado Luke.

Foi fácil, tão fácil quanto seus roubos compulsivos e mesquinhos nas lojas. Tudo que teve que fazer foi observar, ouvir e tirar vantagem das oportunidades que apareceram.

Como a maioria dos jovens apaixonados, Luke e Annabelle tinham sua cota de brigas. A maior parte delas envolvia o pouco tempo que Luke tinha para ficar com ela e a crescente demanda de Annabelle por cada minuto do dia dele. Ela o atormentava para faltar aos ensaios para levá-la a festas, passeios para dançar. Ele até poderia se deixar levar pelos hormônios, mas Luke era um artista muito profissional e um ladrão muito dedicado para cancelar uma apresentação ou um assalto, até mesmo por Annabelle.

— Escute, eu não posso. — Luke suspirou com impaciência e passou o telefone para a outra orelha. — Annabelle, eu lhe expliquei tudo isso há dias.

— Você está só sendo teimoso. — Pelo telefone, podia-se claramente perceber as lágrimas em sua voz, o que fez com que Luke se sentisse um bosta. — Você sabe, o sr. Nouvelle compreenderia.

— Não, eu não sei — respondeu Luke, porque não pedira que Max compreendesse e nem tinha intenção de fazê-lo. — Não é meu fim de semana de folga, Annabelle. Tenho compromisso com o show.

— Acho que o show significa mais pra você do que eu.

Claro que significava, mas Luke achou que não seria algo sensato de se dizer.

— É algo que eu tenho que fazer.

— A festa da Lucy vai ser a melhor do ano. Todos vão estar lá. O pai dela até contratou uma banda. Vou morrer se eu perder.

— Então vá — disse Luke com raiva. — Eu disse que por mim tudo bem. Não espero que fique sentada sozinha dentro de casa.

 

— Ah, claro. — O deboche evidente se juntou às lágrimas. — Ir à maior festa do ano sem meu namorado. — Fungou e, em seguida, colocou toda adulação a seu dispor no tom de sua voz. — Ah, por favor, querido, você não pode só chegar mais tarde ao show? Não seria tão ruim se fôssemos juntos e depois você tivesse que sair.

Era tentador, como brincar de pique tinha sido não muito tempo atrás. A promessa de diversão, um passeio rápido, de tirar o fôlego. Luke não mudara tanto nos últimos anos para não saber quando resistir a uma oferta de diversão.

— Desculpe, Annabelle. Não posso.

— Não quer — falou ela com frieza.

— Escute... — Começou a falar e, então, estremeceu com a batida do telefone em seu ouvido. — Meu Deus — murmurou ele e colocou o fone no gancho.

— Problemas com mulheres? — Parecia que Sam estava vagando pela cozinha com uma maçã na mão. Na verdade, escutara toda a conversa e já estava bolando planos.

— Elas não entendem nada. — Não era comum Luke confiar em Sam, mas estava com raiva e frustrado o suficiente para descarregar na primeira orelha disponível. — Como eu posso ferrar com a agenda de todo mundo só porque Lucy Harbecker vai dar uma festa?

Sam balançou a cabeça concordando e deu uma mordida em sua maçã.

— Ei, ela vai superar isso. — Deu um soco amigável no braço de Luke. — E, se não superar, tem muitas menininhas por aí, certo? — Piscou e subiu a escada. Parecia que precisaria faltar ao show desta noite Sam tinha que ir à festa.

Uma febre falsa e uma dor de cabeça eram tudo de que ele precisava. Enquanto Luke se preparava para esquentar a plateia no Porta Mágica, Sam bateu na porta de Annabelle. Ela mesma atendeu, estava de mau humor e com os olhos inchados de chorar.

— Ah, oi, Sam. — Fungou e alisou os cabelos. — O que está fazendo aqui?

— Luke me mandou. — Com um sorriso de desculpas, tirou a mão das costas e ofereceu um ramo de margaridas coloridas.

— Oh! — Ela pegou as flores e as cheirou. Eram lindas, mas não fariam com que não perdesse a melhor noite do ano. — Acho que ele está tentando fazer as pazes.

— Ele está realmente chateado, Annabelle, sente-se mal por você perder a festa.

— Eu também. — Seu olhar endureceu; então suspirou e deu de ombros. Seus pais estavam fora, sua noite estava arruinada e tudo que tinha era um estúpido buquê. — Bem, obrigada por trazer as flores.

— Foi um prazer. Não é exatamente um sacrifício trazer flores para uma mulher bonita. — Demonstrou no olhar admiração com um toque de luxúria antes que o desviasse rapidamente. — Acho melhor dar o fora. Você tem coisas a fazer.

— Não, não tenho. — Estava lisonjeada com o olhar e tocada pelo fato de ele ter tentado disfarçar. Com uma noite longa e chata pela frente, parecia bobagem fechar a porta para um rapaz tão atraente. — Talvez você queira tomar uma Coca-Cola ou alguma outra coisa. A não ser que tenha planos.

— Isso seria legal, se você tiver certeza de que os seus pais não se importam.

— Oh, eles estão fora, não vão voltar tão cedo. — E piscou os olhos para ele. — Eu gostaria muito de companhia.

— Eu também. — Fechou a porta ao entrar.

Bancou o tímido no início, mantendo distância entre eles no sofá, enquanto bebiam refrigerante e escutavam discos. Aos poucos, transformou-se no confidente simpático. Teve cuidado para não chegar a criticar Luke, consciente de que facilmente Annabelle poderia se virar contra ele. Sob o pretexto da festa perdida, tentando fazê-la sentir-se melhor, tirou-a,

com um pequeno toque de constrangimento, para uma dança.

Ela achou agradável sua tímida admiração e aconchegou a cabeça em seu ombro, enquanto dançava sobre o tapete. Quando a mão dele começou a se mover para cima e para baixo em suas costas, suspirou.

— Estou tão feliz por você ter vindo — murmurou ela. — Estou me sentindo muito melhor.

— Detestei imaginar você sozinha e triste. Luke é tão sortudo por ter uma garota como você. — Engoliu, certificando-se de que ela escutaria. Quando falou de novo, estava gaguejando. — Eu, ah, eu penso em você o tempo todo, Annabelle. Eu sei que não devia, mas não consigo evitar.

— Sério? — Os olhos dela brilharam quando inclinou a cabeça para trás para olhar o rosto dele. - O que você pensa?

— Em como você é bonita. — Aproximou seus lábios dos dela, sentiu seu tremor. Divertia-se em ver como as mulheres eram fáceis. Fale que são lindas e elas acreditam em tudo que disser. — Quando você vai lá em casa ou no clube, não consigo tirar meus olhos de você. — Encostou seus lábios nos dela, apenas um toque, e então, como se estivesse colocando a cabeça no lugar, desistiu. — Desculpe. — Passou as mãos trêmulas pelos cabelos. — Tenho que ir embora.

Mas não se mexeu, ficou em pé, encarando-a. Em poucos segundos, foi ela, como ele esperava, como planejava, quem chegou perto, quem passou os braços em volta de seu pescoço.

— Não vá, Sana.

Ele era bonito, bom para ela e beijava bem. Os requisitos de Annabelle acabavam de ser preenchidos.

Quando a levou para o sofá e a possuiu, seu corpo estremeceu ao atingir o clímax. Mas estremeceu mais pelo prazer de saber que havia tirado algo que era de Luke.

 

ENQUANTO SAM fazia Annabelle gemer no sofá com estampa desbotada de botões de rosa, Madame caminhava pelos bastidores do Porta Mágica. Estava perturbada por ser a portadora de más notícias. Era algo que faria não pelos comerciantes do bairro nem por si mesma, mas por Roxanne.

— Senhor Nouvelle.

Max olhou por cima dos esboços que estava fazendo e viu Madame na porta de seu camarim. Um verdadeiro prazer iluminou seus olhos quando se levantou para beijar sua mão.

— Ah, Madame, bonsoir, bienvenu. É um prazer vê-la novamente.

— Eu gostaria de dizer que vim para assistir à apresentação, mon ami, mas não seria verdade. — Ela viu o sorriso de seus olhos se transformar em preocupação.

— Temos um problema.

— Oui, um problema que devo lhe contar com pesar. Podemos conversar?

— Claro. — Ele fechou a porta e lhe ofereceu uma cadeira.

— No início dessa semana, minha loja foi roubada.

Talvez fosse irônico que se enchesse de raiva com a ideia, sendo ele próprio um ladrão. Max não se considerava assim. Madame era uma amiga, uma amiga que não poderia se dar ao luxo de ser roubada.

— Qual foi sua perda?

— Mais ou menos cem dólares e algumas bijuterias. É um inconveniente, monsieur, mas não exatamente uma tragédia. Eu dei queixa, é claro, e é claro que há muito pouco que se possa fazer. Quando se tem um negócio, aprende-se a ter perdas. Eu teria pensado muito pouco sobre isso, mas um dia ou dois mais tarde, soube que mais duas lojas, a New Orleans

Boutique na Bourbon e a Rendezvous na Conti, também foram roubadas em pequenas quantias certamente. No dia seguinte, a loja ao lado da minha teve uma perda, não tão pequena. Várias peças valiosas de porcelana foram roubadas e centenas de dólares em dinheiro.

Max passou a mão pelo bigode.

— Alguém viu o ladrão?

— Talvez sim. — Madame brincou com o amuleto que repousava sobre o corpete de seda de sua túnica esvoaçante. — Talvez não. Quando nós, comerciantes, nos reunimos para falar sobre o assunto, percebemos, sempre que os roubos Ocorreram, que alguém que conhecíamos estava na loja no momento. Coincidência, talvez.

— Coincidência? — Max arqueou uma sobrancelha. — Por certo uma incidência improvável. Mas por que vem a mim com isso, Madame?

— Porque o visitante de cada uma das lojas era Roxanne.

Madame comprimiu os lábios com força ao ver o rosto de Max se transformar. O óbvio interesse em ajudar, a preocupação, tudo desapareceu. Em seu lugar, uma fúria perigosa queimava, saía de seus olhos.

— Madame — disse, numa voz pouco mais alta do que um sussurro e tão ameaçadora quanto uma espada. — Como se atreve?

— Eu me atrevo, monsieur, porque amo esta menina.

— No entanto, a Madame acusa de roubar sua loja, de roubar daqueles que a amam e confiam nela?

— Não. — Madame levantou os ombros. — Eu não a acuso. Ela não tiraria o que é meu, quando, em seu coração, sabe que seria só preciso pedir. Ela não estava sozinha nessas visitas, monsieur.

Lutando contra a raiva, Max serviu conhaque aos dois. Esperou para falar depois de tomar o primeiro gole e oferecer uma taça para Madame.

— E com quem ela estava?

— Samuel Wyatt.

Max digeriu a informação e acenou com a cabeça. Gostaria de dizer que estava surpreso. Gostaria de não sentir o inevitável. Acolhera o menino, fizera o melhor por ele, mas sabia, de alguma maneira sabia, que não seria recompensado.

— Poderia me dar um minuto? — Dirigiu-se à porta e chamou Roxanne. Ainda com a fantasia, ela veio ao camarim do pai. Abriu um sorriso ao ver Madame.

— Você veio! — Pulou para beijar o rosto da senhora. — Estou tão feliz por ter vindo. Você viu o novo truque de ilusionismo? Luke e eu apresentamos pela primeira vez ao público no show de hoje. Fizemos bem, não foi, papai?

— Sim. — Fechou a porta e em seguida se abaixou para colocar a mão em seu ombro. — Tenho uma pergunta a fazer, Roxanne. Algo muito importante. Você precisa me dizer a verdade, não importa qual seja.

O sorriso morreu no olhar da menina, tornando-o solene e um pouco assustado.

— Eu não mentiria para você, papai. Nunca.

— Você esteve na loja da Madame no início da semana?

— Na segunda-feira, depois da escola. Madame leu as cartas para mim.

— Você estava sozinha?

— Sim, quero dizer, enquanto ela lia as cartas, sim. Sam foi comigo, mas foi embora.

— Você não levou nada da loja de Madame?

— Não. Acho que eu devia ter comprado aquela garrafinha azul, aquela com o pavão em cima? — Olhou para que Madame confirmasse. — Para o aniversário de Lily, mas eu não tinha levado dinheiro.

— Eu não perguntei se comprou, Roxanne, perguntei se levou.

— Eu... — Ficou boquiaberta quando compreendeu. — Eu não roubaria da Madame, papai. Como poderia? Ela é minha amiga.

— Você viu Sam roubar da Madame ou de alguma outra loja que ele visitou junto com você?

— Ah, não, papai, não. — A ideia fez lágrimas brotarem em seus olhos. — Ele não faria isso.

— Vamos descobrir. — Beijou o rosto da filha. — Sinto muito, Roxanne. Você precisa tirar isso de sua cabeça até o show terminar, e esteja preparada para aceitar a verdade, seja ela qual for.

— Ele é meu amigo.

— Espero que sim.

 

ERA MAIS de uma da madrugada quando Max abriu a porta do quarto de Sam. Viu o corpo debaixo das cobertas e se dirigiu em silêncio para o lado da cama. Bem acordado, Sam se virou e abriu os olhos sonolentos. A luz do luar iluminava seu rosto.

— Está se sentindo melhor?

— Acho que sim. — Sam deu um sorriso amarelo. — Desculpe por deixar vocês na mão essa noite.

Isso não é nada. — Max acendeu a luz, ignorando o grunhido de surpresa de Sam. — Peço desculpas antecipadamente por esta intrusão. Mas é necessária. — Dirigiu-se ao armário.

O que está acontecendo?

Há duas maneiras de encarar isso. — Max empurrou as roupas penduradas para o lado. — Ou estou protegendo minha casa, ou estou lhe fazendo uma grave deslealdade. Sinceramente espero que seja a segunda opção.

Você não tem o direito de bisbilhotar minhas coisas pessoais. — Sam pulou da cama de cuecas e agarrou o braço de Max.

- Ao fazer isso, posso salvar sua reputação.

Venha, Sam. — Com o constrangimento evidente a julgar pelas buchechas coradas, Mouse entrou no quarto para tirar Sam.

- Seu desgraçado, tire suas mãos de mim. — Sam resistiu e o empurrou, mas Mouse segurou firme. A fúria sempre fervilhante de Sam explodiu quando viu Max pegar uma caixa na prat-leira do armário. — Seu cretino, vou você por isso.

Calmamente, Max tirou a tampa da caixa e examinou o conteúdo. O dinheiro estava bem organizado e preso com elásticos. Algumas das bugigangas da lista que Madame lhe dera também estavam lá. Outras devem ter sido vendidas, Max presumiu. Havia um peso em seu coração quando para Sam.

— Eu trouxe você para dentro da minha casa — disse Max calmamente. — Eu não pedi gratidão por isso, desde que você trabalhasse por seu teto e seu sustento. Mas confiei em você para acompanhar minha filha, assim como ela confiou em você como um amigo. Você a usou de uma maneira que roubou junto uma parte de sua infância. Se eu fosse um homem violento, só por isso, já o mataria.

— Ela sabia o que eu estava fazendo. — Sam cuspiu. — Ela fazia parte disso. Ela...

Ele caiu para trás quando Max lhe deu uma bofetada no rosto com as costas das mãos.

— Na verdade, talvez eu seja um homem violento. — Max deu um passo à frente de forma que seus olhos ficassem perto dos de Sam. — Você vai pegar todas as suas roupas e dar o fora daqui esta noite. Vou pagar o que lhe devo. Você vai não só deixar esta casa, como também o French Quarter. Acredite, eu conheço cada palmo do Vieux Carré. Se você ainda estiver aqui de manhã, eu vou saber. E vou encontrá-lo.

Max se virou, levando a caixa, e continuou:

— Solte-o, Mouse. Certifique-se de que ele só vai levar as coisas dele, apenas as dele.

— Você vai me pagar, seu desgraçado. — Sam limpou o sangue de seus lábios. — Juro por Deus, você vai me pagar.

— Já paguei — disse Max por cima dos ombros. — Ao ter submetido minha família a você.

Sam pegou uma calça jeans das costas da cadeira. Zombou de Mouse enquanto se vestia.

— Está tendo um orgasmo aí vendo eu me vestir, sua bicha? Mouse corou um pouco, mas não disse nada.

— De qualquer maneira, vou ficar feliz de dar o fora daqui. — Puxou a camisa. — Nos últimos meses, estava morrendo de tédio.

— Então, mexa-se. — Luke estava parado na porta. Seus olhos faiscavam. — Assim vamos ter tempo para desinfetar o fedor de um canalha que usa criancinhas para proteger seu rabo.

— Você acha que ela não gostou de ser usada? — Sorrindo em desafio, Sam enfiou o restante de suas roupas em um saco de lavanderia. — É disso que as mulheres mais gostam, seu idiota. Pergunte só à Annabelle.

— O que você está querendo dizer com isso?

— Muito bem. — Sam vestiu a jaqueta que Lily comprara para ele. Isso o manteria aquecido por todo o inverno. — Já que perguntou, talvez esteja interessado em saber que, enquanto você bancava o bom empregadinho esta noite, eu estava ocupado fodendo com sua garota. — Viu fúria e desencanto no rosto de Luke. Abriu um sorriso mostrando os dentes. — Bem naquele sofá florido horroroso da sala. — O sorriso de Sam era duro e frio como gelo. — Em cinco minutos, eu tirei aquela calcinha vermelha de renda. Ela gosta mais de ficar por cima, não é? Aí dá pra meter bem fundo. Aquela mancha debaixo do peitinho esquerdo dela é sexy pra caramba, não acha?

Estava preparado, ansioso por uma briga, quando Luke avançou para cima dele. Mas Mouse foi rápido, agarrou Luke e o arrastou para a porta.

— Não vale a pena — falou Mouse. — Venha Luke, deixa pra lá. Não vale a pena. — A gargalhada de Sam ecoava enquanto Mouse empurrava Luke na direção da escada. — Saia e esfrie a cabeça.

— Droga, saia da minha frente.

— Max quer que ele vá embora. — Mouse ficou firme no topo da escada. Se fosse preciso, ele nocautearia Luke. — Isso é tudo o que ele quer. Saia e dê uma volta. Eu tenho que garantir que ele vá embora.

Tudo bem, Luke pensou. Ótimo. Sairia. E esperaria por Sam. Desceu a escada correndo e foi para o quintal. Seu sangue irlandês fervia nas veias. Seus punhos estavam cerrados e prontos. Planejava esperar na rua, seguir Sam por uma ou duas quadras e, então, arrancar sangue dele.

Mas ouviu Roxanne chorando quando estava saindo, pronto, cheio de idéias violentas. Chorava como se estivesse com o coração partido, encolhida em um banco de pedras perto das azaleias.

Se ela fosse dada às lágrimas, talvez Luke tivesse ignorado e ido cuidar da vida. Mas, em todos os anos em que morava com os Nouvelle, nunca vira Roxanne chorar, desde que teve catapora. O som de seu choro tocou fundo em seu coração.

— Deixa disso, Roxy. — Sem jeito, Luke foi até o banco e afagou sua cabeça. — Não chore.

Ela continuou com o rosto escondido entre os joelhos e soluçando.

— Meu Deus. — Mesmo relutante, Luke se viu sentado a seu lado, envolvendo-a em seus braços. — Deixe disso, baby, não permita que ele faça você chorar desse jeito. Ele é um idiota, um maldito canalha. — Luke suspirou, respirou fundo e, aos poucos, se acalmou. — Não vale a pena. — Disse isso mais para si mesmo, percebendo que as palavras de Mouse atingiram o alvo.

— Ele me usou — murmurou Roxanne, com a cabeça encostada no peito de Luke. Agora, com o choro sob controle, se sentia quase forte o bastante para conter as lágrimas. — Fingiu ser meu amigo, mas nunca foi. Ele me usou para roubar de pessoas de quem eu gostava. Eu ouvi o que ele disse para o papai. É como se nos odiasse, como se sempre tivesse nos odiado.

— Talvez odeie. Isso não importa para nós.

— Eu o trouxe para nossa casa. — Apertou os lábios. Não tinha certeza se podia se perdoar por isso. — Ele... ele fez mesmo aquilo com Annabelle?

Luke soltou um suspiro e encostou o rosto nos cabelos de Roxanne.

— Provavelmente sim.

— Sinto muito.

— Se ela realmente deixou, acho que não era minha mesmo.

— Ele queria magoar você. — Passou o dedo pelo braço de Luke, confortando-o. — Acho que ele queria magoar todo mundo. Por isso roubou. Não como papai faz.

— Hã hã — disse Luke distraidamente, depois congelou. — O quê?

— Ah, você sabe, os assaltos. Papai não roubaria um amigo ou alguém que ficaria em uma situação ruim por ter sido roubado. — Bocejou. A crise de choro a deixou cansada. — Ele rouba joias e coisas do tipo. Sempre com seguro.

— Meu Deus. — Empurrou-a de seu colo, fazendo-a aterrissar com força, caindo sentada no banco. — Há quanto tempo você sabe disso tudo? Há quanto tempo sabe o que estamos fazendo?

Ela sorriu com deboche, os olhos inchados brilhavam ao luar. — Sempre — disse simplesmente. — Eu sempre soube.

 

SAM SAIU de casa, mas não foi embora de French Quarter. Não quando tinha contas a acertar. Só havia uma maneira de ele ter sido descoberto, Roxanne deve tê-lo delatado.

Foi fácil se convencer de que ela sabia o que ele estava fazendo desde o início. Ela sassaricava pelas lojas e sassaricava mais uma vez, fazendo tudo muito fácil. E então se virou contra ele, como se estivesse o expulsando a cama quentinha, humilhado. Teria de pagar por isso.

Ele a esperou. Sabia seu caminho para a escola, ele mesmo a acompanhava de vez em quando, tentando ser gentil. Tentando ser gentil, Sam pensou, socando a palma da mão. E olha como ela retribuiu.

Passou várias horas encolhido em um beco tentando se esconder do frio e da garoa fina. Detestava sentir frio.

Mais uma coisa pela qual ela teria que pagar.

Avistou-a e se escondeu. Mas percebeu que não havia necessidade alguma de precaução. Ela estava se arrastando com a mochila nas costas e olhos baixos. Esperou e, quando ela estava bem perto, atacou.

Roxanne nem gritou, quando foi agarrada por trás e puxada para o beco. Seus punhos se levantaram, ela era uma lutadora por natureza, mas se abaixaram novamente quando viu que era Sam.

Seus olhos ainda estavam inchados. Ressentia-se disso, ressentia-se de que ele a tivesse levado às lágrimas. Mas já tinham se esgotado. Ergueu o queixo e o encarou com os olhos completamente secos, faiscando, ameaçadoramente.

- O que você quer?

- Uma conversinha agradável. Só nós dois.

Havia algo no rosto dele que a fazia querer fugir, algo que nunca vira antes. Havia ódio, sim, mas um ódio cego. Como uma navalha enferrujada que cortaria e infectaria.

- Papai disse para você ir embora.

- Você acha que aquele velho me assusta? — Empurrou-a, causando mais susto do que dor, quando bateu contra a parede. — Eu faço o que eu quero e o que eu quero agora é acertar as contas com você. Você está me devendo, Rox.

- Devendo? — Esquecendo-se do susto, esquecendo-se da dor no ombro que bateu contra a pedra, ela mesma se afastou da parede. — Levei você para dentro da minha casa. Pedi para o meu pai arranjar um emprego para você. Eu lhe ajudei, e você roubou meus amigos. Eu não devo nada a você, cara.

- Aonde você vai? — Puxou-a de volta, quando ela tentou escapar. – Pra escola? Acho que não. Acho que você devia passar algum tempo comigo. – Deslizou a mão pelo pescoço dela. Roxanne teria gritado em alto e bom som, mas não podia respirar. — Você me dedurou, Rox.

— Não fui eu — conseguiu sussurrar. — Mas teria, se soubesse.

— É a mesma coisa, não é? — Empurrou-a novamente, sua cabeça bateu dolorosamente contra a parede.

O medo fez com que ela, sem pensar e sem aviso, cravasse as unhas no rosto dele. Ele uivou e soltou a mão. Ela quase chegou à entrada do beco, mas ele a alcançou.

— Sua putinha. — Ofegava quando a empurrou. Havia ódio, havia dor, mas também prazer. Poderia fazer o que quisesse com ela, qualquer coisa, tudo, ninguém o deteria.

A cabeça dela estava rodando. Enquanto se ajoelhava, ela o viu se aproximando. Ia machucá-la, ela sabia, e sabia que seria muito ruim Mire baixo, disse ela para si, e bata forte

Não precisou. No momento em que se preparava para atacar, Luke voou para dentro do beco. Emitiu um som gutural quando saltou sobre Sam. Um som que Roxanne só poderia descrever como o uivo de um lobo.

Então ouviu os socos. Ela conseguiu se levantar, apesar das pernas bambas. Primeiro procurou por alguma arma, uma tábua, uma pedra, algo de metal. Por fim, pegou a tampa de uma lixeira e, levantando-a, avançou para a luta.

Só demorou um minuto para que visse que Luke não precisava de sua ajuda. Estava arrasando com Sam agora, socava metodicamente, sem piedade, seu rosto.

— Agora já chega. — Ela jogou de lado a tampa para usar as duas mãos nos braços inchados de Luke. — Você tem que parar. Vamos ter problemas se você matá-lo. — Teve que se abaixar para que os olhos ferozes de Luke pudessem ver os seus. — Luke, papai não ia gostar se você machucasse suas mãos.

Algo no tom de voz frio e lógico dela fez com que ele olhasse para baixo Os nós de seus dedos estavam machucados, arranhados e sangrando. Ele teve que rir

— Certo. — Mas tocou seu rosto com uma das mãos que sangrava Ficara furioso com o que acontecera com Annabelle, mas aquilo não era nada, nada, comparado com o que sentiu quando viu Roxanne no chão e Sam em volta dela. — Você está bem?

— Estou. Eu ia dar um soco no saco dele, mas obrigada por bater nele por mim

- Sem problemas, eu gostei. Vá pegar sua mochila, espere-me na calçada.

— Você não vai bater mais nele, vai? — Olhou friamente o rosto espancado de Sam. A não ser que estivesse enganada, seu nariz estava quebrado e perdera alguns dentes.

— Não. — Sacudiu a cabeça e apontou a entrada do beco. — Vá, Rox. Espere por mim.

Dando uma última olhada em Sam, Roxanne se virou e foi embora.

— Eu poderia matar você por ter tocado nela. — Luke se abaixou. — Cheque perto dela ou de qualquer um da minha família de novo que eu mato você

Sam se apoiou nos cotovelos quando Luke se levantou. Seu rosto estava pegando fogo, sentia como se seu corpo tivesse sido atropelado por um caminhão. Ninguém, ninguém nunca o machucara.

— Vai ter volta. — Sua voz era um grasnido que fez Luke levantar a sobrancelha com deboche.

— Pode tentar. Aula gratuita, Wyatt, desista enquanto é capaz de ir embora. Da próxima vez, vou quebrar mais do que seu nariz.

Quando Luke o deixou, Sam se encolheu como uma bola para tentar fazer a dor parar. Mas ela o corroía, alimentando seu ódio. Um dia, prometeu a si mesmo enquanto chorava e tentava se levantar, um dia, todos pagariam por tê-lo machucado.

 

                PARIS, 1982

— Eu NÃO sou mais criança. — Roxanne estava de cabeça quente. Isso ficava claro no som de sua voz e no calor em seus olhos, enquanto dava as costas à vista de Paris na primavera.

— Sei muito bem disso. — Em um proposital contraste, o tom de voz de Max era suave. Ele parecia completamente impassível à fúria da filha enquanto adicionava creme ao forte café francês. Os anos deixaram seus cabelos prateados.

— Eu tenho direito de ir com vocês, tenho direito de fazer parte disso. Max passou uma quantidade generosa de manteiga em seu croissant, deu uma mordida e limpou a boca com um guardanapo de linho.

— Não — disse ele com um doce sorriso nos lábios e voltando a comer.

Ela poderia ter gritado. Deus sabia o quanto ela queria... gritar, explodir e se enfurecer. E era muito difícil que esse tipo de comportamento convencesse o pai de que ela era uma adulta competente, pronta para assumir seu lugar nos negócios.

A sala da suíte que ocupavam no Ritz era lindamente mobiliada e suntuosamente confortável. Vestindo um belo roupão de seda estampada com flores vívidas, discretas esmeraldas brilhando nas orelhas e uma complexa trança francesa descendo pelas costas, aquele parecia o seu lugar.

Mas o coração e a alma de Roxanne desejavam becos escuros e terraços fuliginosos. O sangue que lhe corria nas veias sob a pele macia era sangue de ladrão. Só precisava convencer o pai de que já era sua hora de atuar pela primeira vez.

— Papai... — Completou a xícara de café de Max, dando a ele outro sorriso encantador. — Eu entendo que o senhor só queira me proteger.

— O dever mais importante de um pai.

— E eu amo você por isso. Mas tem que me deixar crescer.

Olhou para ela, então. Apesar de manter o sorriso, seus olhos carregavam uma tristeza insuportável.

— Toda a mágica que tenho à minha disposição seria incapaz de evitar isso.

— Estou pronta. — Ela aproveitou o longo suspiro do pai, juntando sua mão à dele, inclinando-se para a frente. Seus olhos estavam doces mais uma vez e o sorriso, persuasivo. — Estou pronta. Sou tão boa quanto Luke...

— Você não faz ideia do quão bom ele é. — Max deu um tapinha na mão dela e voltou ao desjejum. Perguntou-se com que frequência tinham essa discussão desde quando, com a tenra idade de 14 anos, ela anunciou que estava pronta para se juntar ao show de depois do espetáculo? Não tinha.ideia de que ela nem sequer sabia o que ele fazia depois que os holofotes se apagavam e a plateia ia embora.

O olhar de Roxanne congelou. Max quase riu disso. Essa era uma mágica feminina, pensou ele.

— Não importa o quão bom ele possa ser — disse ela. — Eu posso ser melhor.

Isso não é uma competição, minha querida.

Nisso ele estava errado, refletiu Roxanne enquanto se levantava para andar pela sala mais uma vez. Isso já era uma competição, bem acirrada, há anos.

— Isso é porque não sou homem. — Havia amargura em cada sílaba.

— Não tem nada a ver com isso. Tenho certo orgulho em me considerar um feminista. — Max suspirou novamente, afastando o prato. — Você é muito jovem, Roxy.

Esse era o caminho errado a se seguir. Ultrajada, ela se virou.

— Tenho quase 18. Quantos anos ele tinha quando o levou com o senhor pela primeira vez?

— Ele era anos mais velho — murmurou Max. — Por dentro. Roxanne, quero que você vá para a universidade, aprenda as coisas que não posso ensinar. Que descubra a si mesma.

— Eu sei quem eu sou. — Levantou a cabeça e endireitou os ombros. Max viu um reflexo da mulher que ela se tornaria. O orgulho queimava tão forte e voraz que fez com que os olhos dele lacrimejassem. — O senhor me ensinou tudo o que eu preciso saber.

— Não ensinei o suficiente — disse Max com muita calma. — Lily e eu mantemos você próxima de nós, talvez próxima demais, pois não conseguiríamos fazer diferente. Apenas queremos que você dê um passo sozinha. Se voltar, eu me conformarei de que isso é o certo para você.

— E a minha vontade? — reclamou ela. — Eu quero estar lá quando vocês forem à Chaumet, quando abrirem o cofre. Quero saber como é a sensação de ficar lá no escuro e segurar os diamantes de Azzedine em minhas mãos.

Max compreendia muito bem. Podia estar arrependido por ter contado a ela sobre as joias, as histórias e a beleza espetacular que acompanham as cintilantes pedras. Mas em sua vida havia um espaço pequeno para arrependimentos.

— Sua hora vai chegar, se tiver que acontecer. Mas não é agora.

— Que droga, eu quero...

— A sua vontade vai ter que esperar. — O tom de voz dele era uniforme e definitivo. Só ele sabia o alívio que sentiu quando uma batida na porta os interrompeu. Pediu com um gesto para que Roxanne atendesse e voltou para o café.

Ela conseguiu controlar a fúria para atender à porta com um agradável sorriso no rosto, que sumiu no mesmo instante em que viu Luke. O olhar que direcionou a ele era afiado o bastante para cortar aço.

— Ele negou seu pedido, não foi?

Sorriu, enfiou as mãos nos bolsos e passou por ela. O aroma feminino e        provocante do perfume dela provocou um calor momentâneo em seu sangue. Sabia que não conseguia ignorar esse calor, mas podia evitar que ela notasse essa reação que tinha a ela e o fizesse pagar por isso.

— Max. — Enfiou a mão no cesto prateado de pães e se serviu. —Imaginei que gostaria de saber que o restante do equipamento finalmente chegou.

— Ah, até que enfim. — Com um sinal, pediu que Luke se sentasse. —Tome um café. Eu mesmo vou checá-los. Você pode ficar fazendo companhia para Roxanne.

Nem ferrando que ficaria sozinho com ela. As coisas já eram difíceis o suficiente no dia a dia. E sabia, sabia muito bem, que ela não estava usando nada por baixo daquele roupão.

— Eu vou com você.

Já estava se levantando, quando Max o empurrou para baixo novamente.

— Não há necessidade. Mouse e eu podemos verificar se tudo está em ordem. Você deve estar disponível para ensaiar essa tarde. — Foi para a frente do espelho, arrumou a gravata e penteou o bigode.

Será que eles percebiam que soltavam faísca quando estavam perto, perguntou-se Max. Algum espectador inocente poderia pegar fogo. Juventude, pensou, sorrindo com um suspiro. Podia ver o reflexo dos dois no espelho, ambos tensos como gatos de rua, com a maior parte do quarto entre eles.

— Se Lily acordar logo, diga a ela para aproveitar a manhã. Vamos nos encontrar no Le Palace às duas. — Atravessou o quarto para dar um beijo no rosto da filha. — Au revoir, ma belle.

— Nós não terminamos ainda.

— Duas da tarde — disse ele. — Enquanto isso, vocês dois deveriam dar uma volta sob o sol de Paris.

Assim que a porta fechou atrás do pai, Roxanne se voltou contra Luke.

— Eu não vou ficar para trás dessa vez.

— Isso não é comigo.

Caminhou até a mesa onde ele estava sentado e espalmou as mãos sobre a toalha de linho com força o suficiente para fazer tremer as porcelanas.

— E se fosse com você?

Olhou bem nos olhos dela. Podia estrangulá-la por ter ficado tão linda. E ela fez isso bem devagar, de forma traiçoeira ao longo dos últimos anos, esgueirando-se sobre ele como um ladrão para roubar sua respiração com um olhar.

— Eu faria exatamente o que Max fez.

Aquilo machucou. Respirou bem fundo para aguentar a dor aguda da traição.

Por quê?

— Porque você ainda não está pronta.

— Como você sabe? — Jogou a cabeça para trás. A luz que entrava pelas janelas cobria seus cabelos e os transformava em chamas. Luke temia que ela pudesse perceber a paixão em seus olhos. — Como você sabe o que eu estou não pronta para fazer?

Era um desafio evidente. Muito evidente. As mãos de Luke umedeceram.

- Roubar joias da vila de Trimalda é bem diferente de enganar turistas com o truque dos copos e bolas, Rox. — Precisando de um apoio, pegou o café. Anos de treinamento mantinham suas mãos firmes. Conseguia irritá-la, sabia disso. Era melhor assim. Enquanto ela estivesse irritada, ele conseguiria manter as mãos longe dela. Assim esperava.

— Eu sou tão boa quanto você, Callahan. Você nem sabia embaralhar cartas até que eu ensinasse.

— Deve ser duro admitir que você foi superada.

A pele de Roxanne ficou branca como neve e, então, se tornou mais rubra do que as rosas sobre a mesa entre os dois. Ela se ajeitou, e, para a infelicidade de Luke, ele conseguiu ver cada curva do corpo dela por baixo do roupão.

— Seu cretino idiota. Você não conseguiria me superar nem se estivesse com pernas de pau.

Ele apenas sorriu.

— Sobre quem a imprensa falou mais durante o show de Nova York?

— Até um idiota que se acorrenta em um caminhão e se joga no East River atrai a imprensa. — Como ela odiava o fato de que a forma como ele escapava da caixa era espetacular. Toda vez que ele se trancava em uma caixa, ela ficava dividida entre dois sentimentos: uma parte de excitação por sua habilidade e ousadia, e outra enojada por isso.

— Eu atraí a imprensa com o meu número — lembrou a ela, e pegou um dos cigarros franceses pelos quais adquirira certa preferência. — Por ser o melhor. — Acendeu o isqueiro e soprou fumaça do cigarro. — Você deveria ficar satisfeita com as suas ilusões bonitinhas, Rox, e seus namoradinhos fofos... — os quais ele queria matar. — Deixe o trabalho perigoso para quem consegue dar conta.

Era rápida. Ele sempre admirara isso nela. Mal teve tempo de levantar a mão para segurar o punho dela antes que ela lhe acertasse o nariz. Ainda segurando a mão fechada dela, ele se levantou. Estavam cara a cara agora, com os corpos quase se tocando.

Ela sentiu um formigamento subindo por sua espinha. Um desejo ardente floresceu dentro dela como uma chama que nunca se apagava. Ela queira odiá-lo por isso.

— Tome cuidado. — O aviso foi dado calmamente, mostrando a ela que no mínimo conseguira acender uma pequena chama de sua cólera.

- Se pensa que tenho medo de você me bater de volta...

Deixou ambos surpresos ao pegá-la pelo queixo com os dedos tensos, segurando o rosto dela próximo ao seu. Os lábios de Roxanne se separaram tanto de surpresa quanto de expectativa; a sua mente ficou divinamente vazia.

- Eu poderia fazer pior. — Ele cuspiu as palavras. Pareciam vidro moído em sua garganta. — E nós dois pagaríamos o preço.

Afastou-a com um empurrão antes que fizesse algo do qual nunca se perdoaria. Enquanto se dirigia à porta, deu uma ordem.

— Duas horas. Com o traje. — E bateu a porta ao sair.

Quando percebeu que seus joelhos tremiam, Roxanne se sentou em uma cadeira. Depois de respirar fundo várias vezes, esfregou a garganta com as mãos até conseguir engolir, apesar do nó que se formara ali. Por um instante, muito rápido, ele olhou para ela como se percebesse que ali tinha uma mulher. Uma mulher que ele poderia desejar. Uma mulher que

ele desejava.

Com outro suspiro inseguro, ela balançou a cabeça. Isso era ridículo. Ele nunca pensara nela como nada além de um incômodo necessário. E ela não ligava para isso. Há muito tempo havia superado aquela paixão tola e infantil que sentia por ele.

De qualquer jeito, não estava interessada em homens. Tinha planos maiores.

Até parece que esperaria os quatro anos de faculdade para colocá-los em prática. Seus lábios se firmaram. Até parece que esperaria mais uma semana.

Estava na hora de colocar em prática a ideia que vinha tramando em sua cabeça. Há muito tempo. Sorrindo para si mesma, levantou as longas pernas, cruzou-as e, de forma despreocupada, pegou o cigarro que Luke deixara ali queimando. Recostou-se, soprando anéis de fumaça para o teto. E planejou.

 

Luke só podia agradecer a Deus por ter tanta coisa em sua mente. Entre se preparar para o show no Le Palace e o trabalho na Chaumet, não tinha tempo para pensar em Roxanne.

A não ser às três da manhã, quando acordava suando frio, frustrado com os sonhos que tinha com ela. Sonhos incrivelmente vívidos e provocantes daquele corpo comprido e claro junto ao seu. Daqueles cabelos gloriosos estendidos sobre a grama orvalhada em alguma clareira isolada. Daqueles olhos fascinantes, cobertos de paixão.

Se existisse inferno, estaria certo de que iria para lá por ter tais sonhos. Pelo amor de Deus, crescera ao lado dela, e era o que tinha de mais próximo a um irmão. A única coisa que a mantinha a salvo de suas mãos era a ideia fixa dele de que fazer aquilo que desejava com ela seria um tipo de incesto espiritual.

E a certeza de que ela riria dele, e de que essa risada o deixaria exposto, se deixasse transparecer seus sentimentos.

Precisava de uma saída, foi à conclusão que chegou depois de andar em círculo pelo quarto dezenas de vezes. Uma boa e longa caminhada antes do jantar, um passeio pelo crepúsculo parisiense. Pegou sua jaqueta de couro e parou em frente ao espelho tempo o suficiente para ajeitar os cabelos com a mão.

Não notou as mudanças no próprio corpo ao longo dos anos. Muita coisa continuava igual. Os cabelos continuavam escuros e grossos, na altura do colarinho, ou amarrados em um rabo de cavalo. Os olhos ainda eram - azuis, e o comprimento dos cílios não o envergonhava mais, Aprendeu que sua beleza poética poderia encantar as mulheres que valorizavam essas coisas. Sua pele permanecia macia, com ossos compridos sob ela. Na adolescência, deixou um bigode crescer, mas não lhe caiu bem. Agora não possuía nada ao redor dos lábios.

Certa vez quebrara o nariz ao sair de uma caixa, mas voltou para o lugar, o que o deixou um pouco desapontado.

Aos 21 anos, chegou à altura de 1,85m, em um corpo alto e magro. O frequente olhar assombrado que tinha na infância raramente aparecia agora. Os anos ao lado de Max lhe ensinaram a controlar o físico, o mental e o psicológico. Era, e sempre seria, grato por isso.

No momento certo, quebraria as algemas que seus sentimentos por Roxanne lhe impuseram.

Afastou-se do espelho e saiu do quarto, caminhando pelo longo corredor acarpetado até os elevadores. Olhou de relance para a bela e loira camareira que empurrava um carrinho.

Hora de pedir toalhas extras, pastilhas de hortelã em cima do travesseiro. O menino que já havia dormido em valas estava se tornando tão acostumado com tais luxos que mal notava.

— Bon soir — murmurou ele com um sorriso casual quando passou por ela.

— Bon soir, monsieur. — O sorriso da moça foi tímido e rápido antes que ela batesse em uma das portas do corredor.

Luke estava quase nos elevadores quando parou de repente. Aquele aroma. O perfume de Roxanne. Maldita seja, estaria tão deslumbrado que podia sentir o cheiro dela por todos os lugares? Ele se recompôs, deu mais um passo e parou de novo. Seus olhos se estreitaram enquanto se virava e observava a camareira, que colocava uma chave mestra na fechadura.    

Aquelas pernas. Seus dentes se cerraram à medida que observava aquelas pernas longas e magras por baixo da discreta saia preta do uniforme.

As pernas de Roxanne.

Estava fechando a porta atrás de si quando ele a impediu.

— Mas que merda você pensa que está fazendo?

Ela levantou o olhar para ele.

— Pardon?

— Sem essa, Roxanne. Que merda é essa?

— Cale a boca -- sussurrou ela, enquanto o puxava para dentro pelo braço. Estava furiosa, mas isso podia esperar. Primeiro ela queria respostas. - Como soube que era eu?

Não diria a ela que poderia reconhecer aquelas pernas em qualquer lugar. Então mentiu.

— Dá um tempo. Quem você acha que vai enganar com essa roupa?

O fato era que estava perfeito. A curta peruca loira mudara drasticamente sua aparência. Até a cor dos olhos estava diferente. Lentes coloridas, imaginou, mudou a cor de verde esmeralda para castanho-claro. Ela era boa o suficiente com maquiagem para mudar a cor da pele e o formato do rosto com sutileza. Colocara um pouco de enchimento nos quadris, e Luke tinha certeza de que ela também usava um daqueles sutiãs enganadores, que deveriam ser proibidos.

Eles levantam e acolchoam, deixando os homens com água na boca por uma coisa que, na verdade, era uma miragem.

— Papo furado. — Sua voz ainda era um sussurro perfurante. — Passei dez minutos no quarto de Lily, e ela não me reconheceu.

Isso porque ela não passou os últimos dois anos babando por suas pernas.

— Eu reconheci — respondeu e deixou por isso mesmo. — Agora responda, que merda você está fazendo aqui?

— Roubando as joias da sra. Melville.

— Não vai mesmo.

Os olhos dela reluziram. Podiam estar castanhos, pensou Luke, mas eram os olhos de Roxanne.

— Agora me deixe em paz. Tenho tudo sob controle, e não estou fazendo nada de improviso. Planejei cada detalhe, e você está estragando tudo.

— E o que você vai fazer quando a sra. Melville chamar os seguranças?

— Fazer cara de chocada, alarmada e ultrajada, é claro. Como todos os demais hóspedes do hotel. — Dando as costas a Luke, encaminhou-se diretamente à penteadeira. Tirou um lenço do bolso para garantir que não deixaria impressões digitais quando abrisse as gavetas.

Ele fez um som com a garganta que era ao mesmo tempo divertimento e desgosto.

— Acha mesmo que vai encontrar as coisas dela simplesmente jogadas em cima da penteadeira? O Ritz tem um cofre lá embaixo para isso.

Roxanne lançou a ele um olhar de desdém.

— Ela não as deixa lá embaixo. Escutei quando ela e o marido estavam conversando sobre isso. Ela gosta de ter as joias por perto para que toda noite possa escolher qual usar.

Isso era bom, pensou Luke. Muito bom. Precisava encontrar outra falha.

— O que você vai fazer caso algum deles entre no quarto enquanto você revira as coisas?

— Não vou revirar nada. — Movendo-se depressa, ela fechou completamente uma gaveta. — Estou aqui para arrumar a cama. Qual é a sua desculpa?

— Está bem, Rox, já chega. — Agarrou o braço dela. — Nós planejamos o trabalho de Chaumet por meses. Não vou deixar que esse seu joguinho barato estrague tudo.

— Uma coisa não tem nada a ver com a outra. — Ela se libertou dele e se afastou. — E não é um joguinho barato. Você viu as pedras que aquela mulher usa?

— Podem ser falsas.

— Isso é o que vou descobrir. — Com uma sobrancelha arqueada, ele tirou uma lente de joalheiro do bolso. — Convivi com Max por quase dezoito anos — disse enquanto colocava o objeto de volta no bolso. — Sei o que estou fazendo.

— O que você está fazendo é saindo daqui... — Parou de falar quando escutou a chave na fechadura. — Ah, merda.

— Eu poderia gritar — disse ela de forma agradável. — E dizer que você forçou sua entrada para me atacar.

Não era hora para réplicas. Deu a ela um olhar fulminante e fez a única coisa que podia: esconder-se embaixo da cama.

Dobrando a língua, Roxanne começou a arrumar a colcha. Ajeitou-se quando a porta abriu e corou um pouco.

— Oh, monsieur Melville — disse ela com um pesado sotaque inglês. — Devo... voltar outra hora?

— Não será necessário, docinho. — Ele era um texano grande e musculoso com cerca de 50 anos, e a maldita comida francesa lhe dava indigestão. - Pode continuar com o que está fazendo.

— Merci. — Roxanne alisou os cobertores e afofou os travesseiros, muito ciente de que os olhos de Melville estavam pregados em seu traseiro.

— Não me recordo de tê-la visto por aqui antes.

— Esse não é... — Ela se inclinou um pouco mais sobre a cama. É melhor que o dinheiro desse velho vulgar realmente valha a pena, pensou. - Meu andar de costume. — Curtindo sua personagem, virou-se, lançando um olhar por baixo dos cílios. — Deseja mais toalhas, monsieur? Quer que eu lhe traga algo?

— Bem... — Abaixou a cabeça e coçou o queixo. Havia um bafo de uísque em sua boca, não totalmente desagradável. — O que você tem em mente, docinho de coco?

Ela sorriu e agitou os cílios novamente.

— Oh, monsieur. Assim o senhor me provoca, oui?

Ele tinha muita certeza de que provocava, pensou. Desembrulhar um lindo pacote desses seria muito mais divertido do que a ópera para a qual sua esposa queria arrastá-lo. Mas também levaria tempo. Esquecendo-se da indigestão, decidiu que podia tirar um tempo para uma rapidinha.

— Eu tenho um fraco por doces franceses. — Melville lhe deu um tapinha no traseiro, e, quando ela deu um riso nervoso, ele lhe deu uma apertadinha nos seios. Embaixo da cama, Luke tinha certeza de que esta crescendo garras em suas mãos.

Corando e suspirando, Roxanne fitou Melville com seus grandes olhos castanhos.

— Oh, monsieur. Vocês americanos.

— Não sou apenas americano. Sou texano.

— Ah. — Ela deixou que ele desse uma mordidinha em seu pescoço, enquanto Luke continuava escondido, impotente, com os punhos cerrados. — É verdade o que dizem sobre os texanos, monsieur? Que tudo é... maior?

Melville deu um assovio e a beijou na boca com vontade.

— Bem direta, hein, docinho? Por que você mesma não descobre? — Esqueceu-se da esposa e do estômago na mesma hora em que começou a deitá-la na cama. Luke estava tenso, pronto para atacar.

— Mas, monsieur, eu estou em serviço. — Roxanne se desvencilhou dele, ainda dando risinhos. — Eu serei demitida.

— Que tal quando não estiver de serviço?

Brincando com a imagem de safadas que os texanos têm das francesas, ela mordeu o lábio inferior, flertando.

— Talvez possamos nos encontrar à meia-noite. — Agitou os cílios. — Há um pequeno café aqui perto... o Robert's.

— Bem, então. Acho que eu consigo providenciar isso. — Puxou-a para junto de si e apertou seus quadris acolchoados. — Fique de olho em mim. Qual é o seu nome, docinho?

— É Monique. — Acariciou o rosto do homem com a ponta dos dedos. — Vou esperar pela meia-noite.

Ele deu mais um aperto e uma olhada para ela antes de sair, cheio de fantasias com uma noite de sexo com uma francesa.

Roxanne caiu sobre a cama e gargalhou.

— Ah, entendi, virou bagunça — murmurou Luke enquanto saía do esconderijo. — Você deixou aquele merda passar a mão por todo o seu corpo, ele praticamente montou em você, e havia risadinhas o tempo todo. Eu deveria te dar uma surra.

Segurando-se, ela deu um último suspiro.

— Ah, vê se cresce. — Então ela prendeu a respiração quando Luke segurou seu braço e puxou-a até ficar de pé. Reconhecia a fúria quando a via e não protestou.

— Parece que você cresceu por nós dois, não é? Você é muito boa nisso, não Rox? Quantos daqueles valentões da faculdade passaram as mãos nojentas em você?

Dessa vez, o rubor foi verdadeiro.

— Não é da sua conta.

— Claro que é. Eu sou... — Louco por você. As palavras quase saíram antes que ele impedisse. — Alguém tem que cuidar de você.

— Posso fazer isso muito bem sozinha. — Afastou-o com os cotovelos, horrorizada por sua espinha estar formigando. — E para sua informação, cérebro de minhoca, ele não encostou as mãos em mim. Onde ele passou as mãos tinha enchimento suficiente para encher um colchão.

— Esse não é o ponto. — Pegou-a pela mão, mas ela se desvencilhou dele. — Roxanne, nós vamos sair daqui. Agora.

— Saia você. Eu vou terminar o que vim fazer. — Pronta para se levantar, ele jogou a cabeça para trás. — Eu quero isso mais do que nunca. Aquele traidor filho da mãe terá que comprar uma cesta cheia de joias novas para a esposa. Ele vai ter o que merece... por sair para encontrar com uma vadiazinha, a francesa em um café barato.

Sem querer, Luke passou a mão nos cabelos e riu.

— A vadiazinha francesa é você, Rox.

— E sou também quem vai fazê-lo pagar por adultério. — Seu olhar se tornou penetrante. E havia astúcia o suficiente ali para deixar Luke admirado, embora com relutância. — E o que ele poderá falar de mim? Vai falar de uma camareira que encontrou, vai me descrever, mas sem muito detalhe, pois ele estará culpado e com medo. É melhor assim do que se ele nunca tivesse me visto. — Caminhou até o closet e examinou a prateleira do topo. — Et voilà.

Ela teve que se esticar para alcançar a caixa de joias de três andares.

— Nossa, Luke, isso deve pesar uns dez quilos. — Antes que ele pudesse ajudá-la, ela colocou a caixa no chão e se agachou ao lado. — É minha — disse com uma voz de advertência, afastando a mão dele com um tapa. Ela pegou um conjunto de instrumentos no bolso, escolheu um e se pôs a trabalhar para abrir a fechadura.

Levou quarenta e três segundos, Luke cronometrou. Tinha de admitir que ela era melhor, muito melhor, do que ele imaginara.

Oh, nossa. — Seu coração deu um salto quando ela abriu a caixa. Tudo brilhava, irradiava, cintilava. Sentiu-se como se fosse Aladdin explorando a caverna. Não, não, pensou, aquele outro cara dos quarenta ladrões. — Não são lindos? — Cedendo ao desejo, afundou a mão nas joias.

— Se forem de verdade. — Ele não conseguia fazer parar aquele arrepio familiar, mas manteve a voz decisiva. — E um profissional não baba sobre os ganhos.

— Não estou babando. — E sorriu mais uma vez, abrindo aquele sorriso irradiante para ele. — Um pouco, talvez. Luke, elas não são fabulosas?

— Se... — Sua voz vacilou. Teve que limpar a garganta. — Se forem verdadeiras — repetiu ele.

Roxanne apenas suspirou pela falta de visão de Luke e retirou a lente do bolso. Após examinar um colar de safiras e diamantes, ajoelhou-se.

— Elas são verdadeiras, Callahan. — Agindo com pressa agora, examinou peça por peça antes de envolvê-las em toalhas. — Não diria que os diamantes são os mais transparentes, mas servem. Acho que eles devem valer uns... cento e sessenta ou cento e setenta mil líquidos?

Ele chegou às mesmas conclusões, mas não quis dizer a ela o quão próximos estavam seus raciocínios. Em vez disso, puxou-a para que ficasse de pé de novo. Esvaziou a caixa e, usando uma toalha, a colocou no lugar.

— Vamos embora.

— Qual é, Luke. — Ela bloqueou a porta, e seus olhos sorriam. — Pelo menos diga que fiz tudo certo.

— Sorte de principiante. — Mas sorriu de volta.

— Não teve nada de sorte nisso. — Encostou o indicador no peito de Luke. — Gostando ou não, Callahan, você tem uma nova parceira.

 

-VOCÊ NÃO está sendo justo.

Roxanne estava no quarto de vestir do pai usando o traje completo. As lantejoulas e adornos do vestido tomara que caia verde-esmeralda que usava cintilavam por causa das luzes e também por sua indignação.

— Provei que sou capaz — insistiu ela.

— Você provou que é impulsiva, afobada e teimosa. — Depois de colocar as abotoaduras na camisa de seu smoking ao seu gosto, Max olhou a expressão furiosa da filha pelo espelho. — E você não vai, repito, não vai participar do trabalho da Chaumet. Agora, tenho dez minutos para fazer as marcações, mocinha. Mais alguma coisa?

Naquele momento ela voltou à infância. O seu lábio inferior tremeu, enquanto ela se jogava em uma cadeira.

— Papai, por que não confia em mim?

— Pelo contrário. Eu confio em você implicitamente. Entretanto, você deve confiar em mim quando digo que não está pronta.

— Mas os Melville...

— Foi um risco que você nunca deveria ter corrido. — Balançava a cabeça à medida que se aproximava de Roxanne para levantar seu rosto com a mão. Sabia, melhor do que ninguém, como era o desejo por aqueles brinquedinhos brilhantes, a excitação de roubá-los no escuro. Como poderia esperar que uma criança com seu próprio sangue fosse diferente?

Estava, de verdade, muito orgulhoso dela. Um orgulho deturpado, pensou com um meio sorriso. Mas orgulho de pai era orgulho de pai.

— Ma belle, vou lhe falar uma coisa. Nunca, jamais coloque mais água no seu feijão.

Roxanne arqueou uma sobrancelha.

— Não me lembro de você ter devolvido as joias, papai.

Complicando-se, ele passou a língua pelos dentes. -

— Não — concordou, esforçando-se para falar. — Não se deve criticar um diamante dado de presente, por assim dizer. Mas, ainda assim, o que conseguiu é apenas uma fração do que conseguiremos essa noite. Foram meses de planejamento, Roxanne. Tudo milimetricamente calculado. Mesmo que eu quisesse colocá-la no plano a essa altura ou qualquer outra pessoa, atrapalharia essas escalas delicadamente balanceadas.

— Isso é uma desculpa — refutou ela, sentindo-se como uma garotinha proibida de ir a uma festa. — Da próxima vez, você inventará outra.

— Essa é a verdade. Da próxima vez haverá outra verdade. Quando foi que eu menti para você?

Ela abriu a boca e fechou logo em seguida. Ele se esquivava, fugia e brincava com a verdade. Mas mentir para ela? Não, nunca.

— Eu sou tão boa quanto Luke.

— Ele costumava dizer a mesma coisa sobre você, no palco. E falando nisso... — Pegou a mão da filha, levantando-a e beijando-a com leveza. —Temos um show para fazer.

— Tudo bem. — Ela abriu a porta, e então se virou. — Papai, eu quero a minha parte dos cento e sessenta mil.

Ele sorriu de orelha a orelha. Algum pai já teve uma filha tão perfeita? — Essa é a minha garota.

 

A PLATEIA DO Le Palace estava cheia de estrelas do cinema, modelos parisienses e aquelas pessoas ricas e glamourosas o suficiente para estarem do lado deles. Max criou um show sofisticado e complicado o bastante para entreter esse seleto público. Não era possível Roxanne participar do espetáculo estando com a mente em outro lugar.

Como fora treinada, colocou tudo de lado, menos a magia. Era ela que fazia a ilusão das Bolas Flutuantes agora, uma mulher magra cintilando como uma esmeralda. Luke observou que ela parecia uma rosa: o sinuoso caule verde e os cabelos de fogo. A plateia estava encantada por sua beleza e pelas bolas prateadas que dançavam e balançavam a centímetros de suas graciosas mãos.

Gostava de provocá-la, é claro, dizendo que seus números eram brilho demais e conteúdo de menos. Mas, na verdade, ela era extraordinária. Mesmo sabendo o segredo do truque, Luke se surpreendia.

Ela levantou os braços. Três esferas tremularam por cada um dos braços, dos ombros até os pulsos. Enquanto tocava Debussy, Lily os cobriu com um lenço de seda verde-esmeralda, longe dos holofotes. Ao girar os braços, com a palma das mãos para cima, Roxanne fez o lenço se movimentar pelo chão. E ali, onde os globos brilhantes estavam, pombas brancas se empoleiravam.

A plateia explodiu em aplausos quando ela fez sua reverência e saiu. Luke estava nas coxias, sorrindo para Roxanne, enquanto Mouse atraía as pombas de volta para a gaiola.

— Pássaros são legais, Rox, mas se você fizesse com um tigre...

— Vai se... — Ela cortou no meio porque Lily a seguira e estava pronta para censurá-la.

— Não comecem. — Deu um tapinha carinhoso no rosto dos dois. - Mouse, querido, mantenha esses dois na linha. Tenho que voltar para minha posição. — Deu um suspiro exagerado. — Eu juro, Max nunca deixa de inventar novas maneiras de me cortar em pedaços. — Após dar uma última e demorada olhada em Luke, ela entrou, em meio aos aplausos para Max.

— Você sabe o que há de errado com ela, não sabe? — disse Roxanne após um suspiro.

— Não há nada de errado com Lily. — Os lábios de Luke se curvavam enquanto assistia ao chamativo número de Max, que começava com ele soltando fogo das pontas dos dedos e terminava com ele cortando Lily em três com raios laser.

— Ela está preocupada com você, só Deus sabe por quê.

Aquilo o atingiu bem na ferida, bem na culpa que sempre estivera presente.

Não há nada para ela se preocupar. Eu sei o que estou fazendo.

Roxanne se virou para ele, segurando-se. O show business significava muito para ela para permitir-se ter um ataque de raiva nos bastidores. Então falou o que achava, mas em um sussurro.

Você sempre sabe, não é, Luke? Você faz o que lhe dá na telha desde o dia em que Max e Lily o acolheram. Eles amam você, caramba, e isso está remoendo Lily por dentro, e você continua fazendo.

Ele desligava todas as emoções. Era a única maneira de sobreviver.

- É o que eu faço. Você faz com que bolas bonitinhas flutuem no ar. Eu escapo de correntes. E todos nós roubamos. — Seus olhos faiscavam ao fitá-la. — É o que fazemos. É o que somos.

Não lhe custaria nada cortar aquela parte de seu número.

Ficaram se encarando por um momento ou dois. Ela pensou ter visto no fundo dos olhos dele algo que nunca seria capaz de compreender. — Você está errada — disse ele simplesmente e se foi.

Roxanne se virou para o palco. Queria muito ir atrás dele e implorar. Mas sabia que não ia adiantar, e nem esperava por isso. Luke estava certo. Eles faziam o que faziam. Lily era capaz de compreender isso e ela até gostava dos assaltos. Teria de aprender a fazer o mesmo em relação ao truque de Luke.

Ele sempre seria o lobo solitário que LeClerc disse que era muitos anos atrás. Seguiria seu caminho quando quisesse. Sempre com alguma coisa a provar, pensou ela agora.

E a verdade, que ela odiava admitir, era que o final no show da noite a preocupava quase tanto quanto a Lily.

Colocou um sorriso no rosto para que nem Max nem Lily percebessem que estava chateada. Sabia controlar os sinais externos de perturbação. Era simples controle da mente sobre a matéria. Mas não conseguia fazer sumir aquela imagem que não saía de sua cabeça, a da versão de Luke para o truque de Houdini em que escapa de um tanque de água. Só que nessa imagem em seu cérebro, ele não conseguia se libertar.

 

ESSE NÚMERO era sempre de arrasar, pensava Max enquanto direcionava o holofote para Luke. Ninguém sabia, nem mesmo Lily, quanto fora difícil para ele entregar o grand finale do espetáculo para Luke. Mas já era hora, pensava Max, flexionando seus dedos ainda ligeiros, hora de entregar o número principal à juventude.

E o garoto era tão talentoso. Tão motivado. Tão... mágico.

A ideia fez Max sorrir enquanto a cortina se levantava, revelando o tanque de vidro cheio de água. O próprio garoto o projetara, cuidadosamente. As dimensões, a espessura do vidro, até mesmo os encaixes de bronze em forma de magos e feiticeiros. Luke sabia a quantidade de água que o tanque devia conter para não transbordar quando seu corpo acorrentado imergisse nela.

Sabia quantos segundos levava para conseguir se livrar das algemas que o prendiam às laterais da câmara.

E sabia por quanto tempo seus pulmões aguentariam caso algo desse errado.

Com uma roupa drapeada completamente branca, Rosanne estava ao lado da câmara de água. Apesar do coração palpitante, seu rosto estava sereno. Foi ela que tirou a camiseta de Luke, deixando-o nu da cintura para cima.

Não olhou para as cicatrizes que se cruzavam nas costas dele. Nenhuma vez, em todos esses anos que estavam juntos, ela mencionara tais cicatrizes. Ela poderia abrir qualquer cadeado, mas não tocaria na fechadura do orgulho de Luke.

Era ela que esperava calmamente enquanto dois voluntários da plateia trocavam as pesadas correntes em torno dele. Quando os braços de Luke estavam cruzados sobre o peito e atados ali, as algemas de ferro se fechavam sobre seus pulsos, seus pés descalços também eram presos por algumas algemas ligadas pelo tornozelo a uma placa de madeira maciça.

Violoncelos tocavam, baixo, ameaçadores, à medida que a plataforma em que Luke estava era suspensa no ar.

- Dizem – começou em uma voz que ecoara sobre a plateia – que o grande Houdini perdeu a vida devido aos ferimentos causados por essa escapada. Desde sua morte, é um desafio para os mágicos, todos os escapistas, repetir essa escapada, e torná-la sua ao triunfar.

Olhou para baixo e lá estava Mouse muito envergonhado em seu traje de cavaleiro árabe, segurando uma grande maleta.

- Tomara que não precise que meu amigo musculoso quebre o vidro. – Olhou para Roxanne. – Mais talvez eu preciso que a adorável Rosane me faça uma pequena respiração boca a boca.

Roxanne não ligou para o improviso, mas a plateia gargalhou e aplaudiu.

- Uma vez que eu estiver submerso na câmara, ela será selada completamente. – A plateia perdia o fôlego à medida que a plataforma se virava sobre o eixo. Luke estava de frente para eles, mais uma vez, porém, de cabeça para baixo. Começou a respirar profundamente, enchendo seus pulmões. Rosanne pedia para que a agitação da plateia parasse.

- Pedimos silêncio durante o número e que prestem atenção ao relógio – ao comando de Rosanne, um holofote iluminou um grande cronômetro no fundo do palco. – Vai começar a contar no momento em que Callahan emergir na água. – Ela mantinha os olhos e a mente fixos na plateia. – Callahan terá quatro minutos, e nada mais para escapar do tanque ou seremos forçados a quebrar o vidro. Um médico está a postos em caso de um acidente.

Agora ela tinha de se virar, lançando os braços para o alto, causando impacto, enquanto a cabeça de Luke imergia na água. Ela o assistiu até que seu corpo estivesse completamente submerso. Escutou o barulho que a plataforma fazia enquanto se encaixava sobre o tanque.  Os cabelos de Luke serpeavam, enquanto seus olhos, azuis e brilhantes, encontravam os dela.

Então, a fina cortina branca desceu, cobrindo todos os quatro lados do tanque.

O relógio começou a contar.

— Um minuto — anunciou Roxanne com um tom de voz que não revelava nem um pouco de seu temor. Imaginava Luke se libertando das algemas. Ele já devia estar retirando as correntes.

Houve murmúrios na plateia quando o relógio alcançou a marca de dois minutos. Roxanne sentia o suor brotar gelado sobre as mãos, a nuca e as costas. Ele sempre saía com três minutos, no máximo vinte segundos depois. Ela podia ver vagamente uma sombra se movendo por baixo do pano.

Não tinha como ele pedir ajuda, pensava ela freneticamente conforme o relógio se aproximava da marca de três minutos. Não havia como fazer sinal algum caso seus pulmões falhassem e ficassem sem ar. Ele podia morrer antes de rasgarem a cortina, antes que Mouse pudesse quebrar o vidro. Ele podia morrer sozinho e em silêncio, acorrentado na própria ambição.

— Três minutos — disse ela, e agora um suor de medo gotejava e fazia a plateia se inclinar para a frente.

— Três minutos e vinte segundos — disse ela, olhando em pânico para Mouse. — Três minutos e vinte e cinco. Por favor, senhoras e senhores, permaneçam calmos e sentados. — Engoliu seco, imaginando os pulmões de Luke queimando. — Três minutos e quarenta e cinco segundos.

Uma mulher na parte de trás da plateia começou a gritar histericamente em francês. Isso causou uma reação em cadeia de preocupação que atingiu todas as fileiras até que a plateia ficasse elétrica. Muitos deles pulavam da cadeira conforme o relógio se aproximava da marca de quatro minutos.

— Oh, Mouse, meu Deus. — Faltando oito segundos, Roxanne deixou os gracejos de lado e rasgou a cortina. Caiu no chão no momento em que Luke empurrava a plataforma com o ombro. Ele emergiu, suave como uma lontra, e inspirou com voracidade. Seus olhos estavam acesos pelo triunfo, enquanto a plateia explodia em gritos e aplausos. Valeram a pena os trinta segundos a mais que ele aguardara, já solto, sob a água.

Inspirando, ele se pôs de pé, com uma das mãos levantada. Já planejava adicionar aquele toque extra de drama no próximo show. Enganchando os braços em torno da plataforma, ele saiu do tanque, e, novamente, para o palco. Ainda pingava ao fazer suas reverências.

Num impulso, pegou a mão de Roxanne, curvou-se de forma galanteadora e beijou seus dedos, para deleite dos românticos franceses.

— Sua mão está tremendo. — Ele notou sob o som dos aplausos. — Não me diga que você ficou preocupada de eu não conseguir sair.

Em vez de puxar a mão de volta, como gostaria, ela sorriu para ele.

— Fiquei com medo de o Mouse ter que quebrar o vidro. Você sabe quanto custa um novo?

— Essa é a minha Roxanne. — Beijou a mão dela mais uma vez. — Eu o amo sua mente gananciosa.

Dessa vez, ela puxou a mão. Os lábios de Luke ficaram muito tempo sobre sua pele, além do confortável.

— Você está pingando em cima de mim, Callahan — disse ela, e se afastou para que ele desfrutasse os holofotes sozinho.

 

ROXANNE MORRIA quando tinha que ficar sentada esperando. Era degradante, pensava, andando de um lado para outro da sala, enquanto Lily, esparramada no confortável sofá, assistia a um antigo filme em preto e branco na TV.

Era como esperar ao lado do telefone por horas com a expectativa de que aquele babaca que lhe levou ao cinema ligasse para convidar para sair de novo. Fazer as mulheres esperarem é uma coisa tão típica dos homens.

Disse isso para Lily, que concordou com um murmúrio.

— Quero dizer, eles fazem isso desde o começo dos tempos. — Roxanne se jogou em uma cadeira, e se levantou de novo, impaciente, para abrir a cortina e observar o brilho da Cidade das Luzes. — Os homens das cavernas saíram para caçar e deixavam as mulheres ao lado das fogueiras. Vikings estupravam e pilhavam enquanto as esposas ficavam em casa. Cowboys cavalgavam ao pôr do sol, marinheiros embarcavam em navios, soldados marchavam para as guerras. E onde nós ficávamos? — reclamava Roxanne, o vivido robe floral que usava rodava conforme ela girava o corpo. — Esperando nas sacadas, estações de trem, usando cintos de castidade ou sentadas ao lado do maldito telefone. Bem, eu não deixarei um homem ditar minha vida.

— Amor. — Lily assoava o nariz energicamente enquanto rolavam os créditos. — É o amor que dita, querida, não o homem.

— Ah, pro inferno com isso.

— Oh, não. É a melhor coisa que há. — Lily suspirava, satisfeita com o romance, a tragédia e o choro de alegria. — Max só está fazendo o que ele acha ser o melhor para você.

— E quanto ao que eu acho melhor para mim? — reclamou Roxanne.

— Você terá todo o tempo do mundo para isso. — Lily se ajeitou, endireitando sob o corpo seu robe favorito, um de seda tailandesa enfeitado com plumas de avestruz cor-de-rosa. — Os anos passam tão rápido, Roxy. Você não imagina isso agora, mas, antes que perceba, eles começam a correr bem depressa. Se você não preenchê-los com amor, sua vida terminará vazia. O que quer que escolha como sendo o melhor para você, se for acompanhado de amor, será o melhor.

Não adiantava argumentar com Lily, pensou Roxanne. Ela era romântica até o último fio de cabelo. Roxanne se orgulhava em ser uma mulher mais prática.

— Você nunca quis ir com eles? Nunca quis fazer parte disso?

— Eu faço parte. — Lily sorriu, parecendo jovem, bela e feliz. — Minha parte nisso é ficar aqui. Eu sei que Max vai entrar por aquela porta com aquele olhar no rosto. Aquele olhar que diz que ele fez exatamente o que queria fazer. E ele vai precisar me contar, compartilhar comigo. Ele terá que me contar o quanto é esperto e inteligente.

— E isso é o bastante? — Apesar de seu amor por ambos, achou isso assombroso, espantoso. — Ser uma ouvinte do ego de Max?

O sorriso de Lily desapareceu. O azul de seus olhos desbotou.

— Eu estou exatamente onde quero estar, Roxanne. Em todos esses anos que estou com Max, ele nunca me usou ou machucou meus sentimentos de propósito. Isso pode não significar muita coisa pra você, mas para mim isso é muito mais que o bastante. Ele é gentil e carinhoso e me dá tudo o que eu possa querer.

— Sinto muito. — E sentia mesmo quando pegou a mão de Lily. Sentia que havia magoado Lily. Sentia também que sua alma independente não conseguia compreender. — Eu me sinto horrível por eles terem me deixado para trás e estou descontando em você.

— Querida, as pessoas não pensam da mesma forma, nem sentem da mesma forma, nem são iguais. Você... — Lily se inclinou para a frente para tocar o rosto de Roxanne. — Você é filha de seu pai.

— Talvez ele preferisse ter tido um filho.

Os dedos de Lily se apertaram.

— Nem pense uma coisa dessas.

— Luke está lá com ele. — Um amargor escapou por uma fenda em seu ego. — Eu estou sentada aqui sem fazer nada.

— Roxy, você só tem 17 anos.

— Então, eu odeio ter 17. — Levantou-se em um salto mais uma vez, com a seda serpeando por seu corpo enquanto caminhava até a janela para abri-la. — Odeio ter que esperar por tudo e que as pessoas me digam que tenho muito tempo.

Mas é claro que você tem. — Havia um sorriso nos lábios de Lily e lágrimas frescas em seus olhos enquanto observava Roxanne. Ela é tão linda, pensou Lily. Tão cheia de vontades. Como é desesperador ter 17 anos. Como é maravilhoso e, ao mesmo tempo, terrível ser jogada nessa fase tão difícil da vida da mulher. — Eu posso lhe dar um conselho, mas pode não ser o que você quer ouvir.

Roxanne levantou o rosto para a agradável noite de primavera e fechou os olhos. Como ela poderia explicar a Lily esse calor, essas vontades que lhe pulsavam por dentro, quando nem ela mesma conseguia entender?

- Escutar conselhos não dói, aceitá-los já é outra história.

Lily riu, pois essa era uma das frases de Max.

- Compromisso. — Roxanne suspirou ao ouvir a palavra, mas Lily só estava começando. — Compromissos não são tão penosos quando é você quem dita os termos. — Levantou-se, satisfeita quando Roxanne se virou em sua direção com um brilho pensativo no olhar. — Você é uma mulher, quer dar esse fato?

Os lábios de Roxanne se curvaram quando se lembrou do alivio e do orgulho que sentiu quando seus seios por fim começaram a crescer.

— Não. Não quero.

— Então use isso, minha querida. — Lily repousou a mão no ombro de Roxanne. — Usar isso não é a mesma coisa que...

— Explorar? — sugeriu Roxanne, e Lily sorriu de alegria.

— Isso mesmo. Você tira vantagem daquilo que possui. Faça com que isso trabalhe a seu favor. Seu cérebro, sua beleza, sua feminilidade. Querida, há séculos as mulheres que fazem isso são livres. Mas os homens nem sempre sabem disso, só isso.

— Vou pensar sobre o assunto. — Assentindo como quem toma uma decisão, Roxanne beijou Lily no rosto. — Obrigada. — Ficou tensa quando escutou o barulho da chave na fechadura e se forçou a relaxar. Ao lado dela, Lily já estava vibrando de expectativa. Isso confundia Roxanne, e a alegrava. Após todos esses anos que estavam juntos, refletia enquanto Max entrava pela porta, ele ainda fazia com que Lily se sentisse daquele jeito.

Ela se perguntou, por um momento, se algum dia haveria alguém que lhe fizesse sentir-se assim.

Luke apareceu atrás de Max, sorriu e jogou uma bolsa para Roxanne.

— Ainda acordadas? — Orgulhoso da vitória, Max já beijava Lily. —O que mais um homem pode querer, Luke, do que chegar em casa depois de uma aventura bem-sucedida e encontrar duas belas damas esperando por ele?

— Uma cerveja gelada — respondeu enquanto avançava para o frigobar. — Devia estar fazendo uns cinquenta graus dentro daquele lugar depois que cortamos a energia. — Luke abriu uma cerveja e virou metade da garrafa em sua garganta seca.

Ele parecia um bárbaro, pensou Roxanne, sacudindo a bolsa em sua mão. Sombrio, suado, indiscutivelmente um homem. Como observá-lo fazia sua garganta secar, ela se virou para o pai. Aquele sim era um homem de classe, pensou. Um pirata aristocrata, com um bigode singular, calças apertadas de forma meticulosa e um suéter de cashmere com o suave odor de seu perfume.

Havia ladrões e ladrões, concluiu ela enquanto sentava no braço do sofá.

— Mouse e LeClerc? — perguntou Lily.

— Ambos estão atirados na cama. Convidei Luke para uma bebida antes de dormir. Meu garoto, você poderia abrir uma garrafa daquele Chardonnay que deixamos gelando?

— É claro. — Enquanto desarrolhava a garrafa, olhou para Roxanne. — Não quer ver o que tem na bolsa, Rox?

— Eu imagino. — Não queria parecer ansiosa. Não queria demonstrar muita receptividade a nenhum dos dois. Mas, quando virou o conteúdo da bolsa em sua mão, ficou sem fôlego. — Oh — disse conforme os diamantes chamuscavam sobre sua pele. E mais uma vez: — Oh.

— São espetaculares, não são? — Max pegou a bolsa e derramou o restante dela nas mãos de Lily. — Diamantes russos brancos, lapidação redonda, qualidade perfeita. O que me diz, Luke, um milhão e meio?

— Quase dois. — Ofereceu uma taça de vinho a Roxanne e pôs a de Lily sobre a mesa.

— Talvez esteja certo. — Max agradeceu com a voz baixa quando Luke lhe entregou sua taça. — Foi difícil não ceder à ganância, admito, ficando naquela galeria. — Ao fechar os olhos, ele podia vê-la. — Todos aqueles objetos de aço brilhando, recheados com um tesouro de esmeraldas, rubis, safiras. Ah, Lily, que obras de arte. Colares gotejando em cores. Pedras quadradas, ovais, compridas... — Suspirou. — Mas esses nossos lindos amiguinhos serão muito mais fáceis de transportar e investir.

Luke se lembrou de uma peça em particular, uma bela sinfonia de esmeraldas, diamantes, topázios e ametistas trabalhadas em um colar de ouro em estilo bizantino. Imaginou-se deslizando a peça ao redor do pescoço de Roxanne, levantando todo aquele pesado cabelo e o fechando por trás. Ela ficaria como uma rainha usando-o.

Ele teria tentado dizer a ela seu desejo em vê-la usando tal peça, de dar a ela algo que ninguém mais podia.

E ela teria dado risadas.

Luke balançou a cabeça quando a voz de Max invadiu sua fantasia.

— O quê? Desculpe.

— Pensando em algo?

— Não. — Com esforço, tirou aquela imagem da cabeça e a carranca da cara. — Estou cansado, é só isso. Foi um longo dia, vou me deitar.

Instintos maternos eram mais fortes do que o brilho das joias. Lily se esqueceu dos diamantes cintilando em suas mãos.

— Querido, você não quer um sanduíche ou alguma coisa? Você I tocou no seu jantar.

— Estou bem. — Deu-lhe um beijo nas duas bochechas, um hábito q adquiriu com os anos. — Boa noite, Lily. Max.

— Fez um excelente trabalho, Luke — elogiou Max. — Durma bem.

Abriu a porta e lançou um olhar por cima dos ombros. Estavam todos juntos, próximos.  Max no centro, com Lily aconchegada em seu braço,. Roxanne no braço do sofá, com a cabeça apoiada no pai e com as cheias de pedras brancas como gelo.

Um retrato de família, pensou. Sua família. Seus olhos se moveram para os de Roxanne e se contiveram. Era melhor lembrar que ela era sua família.

— Até mais, Rox.

Fechou a porta e caminhou pelo corredor até seu próprio quarto, onde sabia que gastaria o restante da noite sonhando com um prêmio muito mais inatingível que diamantes.

 

ELA COLOCOU o dedo na ferida de Luke no dia seguinte. No momento em que o ensaio terminou, Roxanne pulou na traseira da motocicleta de um belo rapaz loiro. Deu um aceno bem-humorado, passou os braços em torno da cintura do maldito francês e desapareceu no caótico trânsito parisiense.

— Quem diabos era aquele? — Luke quis saber.

Max parou próximo a um vendedor de flores e comprou um cravo para sua lapela.

— Quem era quem?

— Aquele imbecil com quem Roxanne saiu daqui.

— Ah, o garoto. — Max cheirou a flor avermelhada antes de prendê-la na lapela. —  Antoine, Alastair, algo assim. Estuda na Sorbonne. Um artista, eu acho.

— Você permite que ela saia com um cara que você nem conhece? — Era ultrajante. Inconcebível. Doloroso demais. — Um cara francês?

— Roxanne o conhece — comentou Max. Feliz com a vida em geral, Max inspirou profundamente. — Quando Lily terminar de se arrumar, acredito que todos nós vamos almoçar em algum café excêntrico.

— Como pode pensar em comer? — Luke girou sobre os calcanhares e lutou contra o desejo de apertar as mãos na garganta de Max. — Sua filha acabou de sair com um completo estranho. Ele poderia ser um perigo para todos que você conhece.

Max deu risadas e decidiu escolher uma dúzia de rosas para Lily.

— Roxanne pode muito bem lidar com ele.

— Ele não parava de olhar para as pernas dela — disse Luke de forma rude.

— Sim, bem. É difícil culpá-lo por isso. Ah, e lá está Lily. — Presenteou-a com as rosas e fez uma reverência que a fez sorrir.

 

— R0XANNE TEVE um dia maravilhoso. Um piquenique na região campestre, o aroma das flores selvagens, um artista francês lendo poesias para ela sob a sombra de um castanheiro silvestre.

Ela adorou o passeio, os suaves e emocionantes beijos, as palavras de carinho sussurradas no idioma mais romântico que existe. Entrou para o seu quarto sonhando acordada, com um sorriso secreto nos lábios e brilhos nos olhos.

— O que você andou fazendo?

Abafou o som agudo de susto que soltou, cambaleando para trás e encarando Luke. Ele estava sentado na cadeira próxima à janela, com uma garrafa de cerveja na mão, uma guimba de cigarro no cinzeiro ao lado e muita raiva nos olhos.

— Caramba, Callahan, você me assustou mesmo. Está fazendo o que no meu quarto?

— Esperando você decidir voltar para casa.

Uma vez que seu coração voltou a bater normalmente, ela afastou os cabelos dos ombros. Estavam bagunçados, já que viera de moto, e fizeram com que ele se lembrasse de uma mulher acabando de se levantar da cama após um período de sexo ardente e impulsivo. Era mais um motivo para sentir raiva.

— Não sei do que você está falando. Ainda falta uma boa hora até termos que sair para o teatro.

Ela deixou que o filho da mãe a beijasse. Ah, ele sabia. Ela estava com aquele olhar, os lábios frágeis e inchados, os olhos pesados. A camisa de Roxanne estava amarrotada. Ela o deixou deitá-la sobre a grama ou...

Não conseguia tolerar tal pensamento.

Já era ruim o bastante quando estavam em casa e ela saía com uns caras americanos. Mas francês?

Todo homem tinha um limite.

— Quero saber onde você estava com a cabeça. O que pensou que estava fazendo quando resolveu sair com esse francês bajulador e detestável chamado Alastair?

— Fui a um piquenique — respondeu ela. — E ele não é bajulador nem detestável. Ele é um homem doce e sensível. Um artista. — Soltou isso como um desafio. — E, para sua informação, o nome dele é Alain.

— Eu não me importo nem um pouco com o nome dele. — Luke levantou devagar. Tinha a ilusão de estar no controle. — Você não vai sair com ele de novo.

Por um instante, ela ficou muito surpresa para falar qualquer coisa. Mas só por um instante.

— Que merda você acha que é? — Ela avançou sobre ele, empurrando-o. — Eu posso sair com quem eu quiser.

Ele prendeu o pulso de Roxanne e a trouxe, com violência, para junto de si.

— Não pode mesmo.

Ela levantou o queixo, e seus olhos estavam em chamas.

— E quem você acha que vai me impedir? Você? Você não tem nenhum poder de decidir o que eu posso ou não fazer, Callahan. Nem agora, nem nunca.

— Está errada — disse ele entre os dentes. Sua mão mergulhou nos cabelos dela e se cerrou. Não conseguia parar. Podia sentir seu cheiro, e do prolongado tempo na grama, da luz do sol. Flores selvagens. Uma raiva assassina o dominava ao pensar que alguém mais chegara tão perto. Perto o bastante para tocar. Para provar. — Você deixou que ele colocasse as mãos em você. Faça isso mais uma vez e eu o mato.

Ela teria rido da ameaça, ou gritado. Mas viu nos olhos de Luke a verdade nua e crua. O único jeito de combater o medo que saltava por sua garganta era se enfurecendo.

— Você está maluco? Se ele colocou as mãos em mim, foi porque eu permiti que fizesse. Porque eu gostei. — Sabia que era a coisa errada a dizer mas estava tão impotente em apagar o fogo da ira de Luke quanto ele estava em não permitir que ela se acendesse. — E eu quero que tire suas mãos de mim. Agora.

— Você quer? — Sua voz estava leve e suave como seda. Aquilo a deixou ainda mais assustada, muito mais do que as ameaças irônicas. — Por que não chamamos isso de lição grátis? — Ele se amaldiçoou no momento em cobriu os lábios dela com os seus.

Ela não lutou, não protestou. Não sabia se ainda estava respirando. Como poderia, quando o calor queimava tão rápido e incinerava tudo? Até mesmo o pensamento. Isso não era nem um pouco como os beijos suaves e gentis do artista. Não era como os abraços esquisitos ou arrogantes dos garotos que ela saía. Isso era cru, era primitivo, era assustador. Ela se perguntou se existiria alguma mulher que gostaria de ser beijada de qualquer outra maneira.

A boca de Luke se encaixou sobre a dela perfeitamente. O arranhão na pele causado pela barba malfeita se somava a estonteante consciência de que, finalmente, fora segurada por um homem. Agressão nua, paixão frustrada, raiva pura irrompiam de Luke até ela, culminando em um beijo que superava tudo que ela já havia experimentado. Aquele momento único e selvagem era tudo com que ela sonhara.

Com a mão ainda fechada sob os cabelos de Roxanne, ele puxou a cabeça dela para trás. Se ele ia para o inferno, ao menos teria a satisfação de saber que valeu a pena. Não pensava, não ousava pensar, apenas penetrava sua língua entre os lábios divididos dela e se deliciava.

Ela era tudo o que ele imaginava e mais. Frágil, forte, sensual. O gemido veio como uma resposta imediata e tórrida. O modo como o corpo dela ficou tenso e tremeu contra o dele, o modo como sua boca violentamente buscava calor. Seus lábios se uniam aos dele e formavam seu nome. Engoliu os gemidos como um homem faminto engole uma casca de pão.

Queria desesperadamente derrubá-la na cama. Rasgar suas roupas e penetrá-la. Senti-la arquear enquanto o envolvesse. Não podia esperar por isso.

Era como estar trancado em uma caixa. Aprisionado. Ficando sem ar. Coração e pulmão se esforçando. Não tinha controle sobre eles. Não tinha controle sobre nada.

Ele se jogou para trás, buscando ar e um pouco de sanidade. Ela ainda estava enroscada a ele, com os olhos pesados e misteriosos, seus lábios macios partidos e ávidos por mais. Ondas de vergonha e carência quebravam sobre ele, ondas gigantescas que o fizeram empurrá-la para longe de si.

— Luke...

— Não. — Estava rígido como ferro e inquieto como um garanhão. Se ela o tocasse agora, apenas o tocasse, ele a pegaria como um animal. Para protegê-la disso, ele se camuflou com toda a fúria que sentia por aquilo que quase fizera, e apontou diretamente para ela. — Lição grátis — repetiu e fingiu não ver os lábios dela partidos com o choque ou seus olhos faiscando de dor. — Esse é o tipo de tratamento que você está pedindo ao sair com homens que você não conhece.

Ela tinha orgulho, e era atriz o suficiente para mascarar sua desolação.

— Estranho, não é? Você foi o único que já me tratou desse jeito. E eu conheço você. Ou achava que conhecia. — Deu as costas a ele e ficou olhando pela janela. Não choraria, prometeu a si mesma. E, se chorasse, ele não veria. — Saia do meu quarto, Callahan. Se me tocar desse jeito outra vez, você vai pagar caro.

Já estava pagando, pensou Luke. Ele cerrou os punhos antes que pudesse ceder à tentação de acariciar aqueles cabelos. De implorar. Em vez disso, caminhou até a porta.

— Eu falei sério, Roxanne.

Ela lançou um olhar faiscante sobre o ombro.

— Eu também.

 

ROXANNE ACEITOU o conselho de Lily e se comprometeu com Max, embora preferisse pensar nisso como um acordo. Ela se matricularia na Universidade de Tulane e levaria a sério sua educação. Caso após um ano ainda estivesse determinada a fazer parte do show privado de seu pai, seria admitida como aprendiz.

Era perfeitamente conveniente para Roxanne, primeiro porque ela adorava o processo de aprendizagem, segundo porque não tinha a intenção de mudar de ideia.

As exigências de sua carreira no palco e de seus estudos tinham a vantagem de mantê-la bastante ocupada; assim, passava o menor tempo possível na companhia de Luke.

Ela teria perdoado a gritaria, as ordens, certamente teria perdoado o beijo, mas nunca o perdoaria por ter transformado um de seus momentos mais gloriosos em nada mais do que uma lição de um mestre a seu discípulo.

Ela era muito profissional para permitir que isso interferisse em seu trabalho ou no dele. Quando os ensaios eram necessários, ensaiava com ele, apresentavam-se noite após noite, sem que seus sentimentos fervilhantes aflorassem durante o show.

Caso a trupe fosse para a estrada, viajavam juntos sem incidentes, desconhecidos educados que dividiam um avião, um trem ou um carro, de um lugar a outro.

Somente uma vez, quando Lily demonstrou preocupação pelo truque de Luke, que estava se tornando cada vez mais complexo e perigoso, é que uma emoção contida escapou.

— Deixe ele — soltou Roxanne em resposta. — Homens como ele sempre querem provar alguma coisa.

A sua doce vingança estava em namorar uma sucessão de homens atraentes. Frequentemente os trazia em casa para jantar, para festas e grupos de estudo. Foi um grande prazer saber que seu atual bofe, como Lily gostava de chamar seus namorados, estava na plateia. Ficou muito mais feliz ainda em saber que Luke estava ciente disso.

Tinha uma queda pelo tipo acadêmico, porque mentes aguçadas a atraíam. Diabolicamente também porque sabia que nenhum dos estímulos de Max fizera com que Luke fosse além do primeiro ano de faculdade. Era muito gratificante mencionar, ocasionalmente, que Matthew era um estudante de Direito ou que Philip estava trabalhando em seu mestrado em Economia.

Roxanne escolhera estudar História da Arte e Gemologia. Sua finalidade, para alegria de Max, era melhorar seu conhecimento no que agora ela chamava de hobby. Avisou ao pai que, quando alguém fosse roubar obras de arte ou joias, deveria ter um sólido conhecimento da história e do valor da peça.

Max estava orgulhoso de ter uma filha com visão.

Estava satisfeito também que sua reputação como artista e o respeito por sua trupe tinham crescido. O prêmio de Mágico do Ano, da Academia de Artes Mágicas, era guardado como um tesouro. Já não achava mais necessário evitar a exposição nacional. Os Nouvelle tinham dois especiais de sucesso na televisão, e Max assinara recentemente um contrato para escrever um livro sobre mágica.

No mês anterior privara uma senhora de Boston de um conjunto de broche e brincos de opala com brilhantes. Usou sua parte dos lucros após a partilha para pagar uma pesquisa no que, agora, seria seu principal interesse: a pedra filosofal.

Para alguns era uma lenda. Para Max, um objetivo que perseguia desesperadamente, agora que sua dupla profissão alcançara seu apogeu. Ele queria aquela pedra, segurá-la, o sonho de todo mágico. Não seria só a transformação de ferro em ouro, seria um testemunho de tudo que havia aprendido, conquistado, ganhado e perdido, durante toda sua vida. Já havia reunido mapas, livros, centenas de cartas e diários.

Rastrear a pedra filosofal seria a maior façanha de Maximillian Nouvelle. Uma vez com ela, imaginava, esperava, facilitar sua aposentadoria. Ele e Lily viajariam pelo inundo como vagabundos, enquanto seus filhos continuariam a tradição dos Nouvelle.

Em Nova Orleans, estava um inverno frio e chuvoso, Max estava em paz com o mundo. O tempo úmido trazia umas pontadas ocasionais, curadas com algumas aspirinas e facilmente ignoradas.

Roxanne gostava da chuva, dava-lhe um sentimento acolhedor e sonhador observá-la fazendo desenhos na calçada, escorrendo pelas vidraças. Estava na varanda coberta do apartamento de Gerald e observava a cortina fina de frio afugentando os pedestres. Se respirasse fundo, poderia sentir o cheiro do café au lait que Gerald preparava em sua pequena cozinha.

Que bom estar aqui, pensou, de folga nesta noite chuvosa. Gostava da companhia de Gerald, achava-o inteligente e carinhoso. Um homem que gostava de escutar Gershwin e de assistir a filmes estrangeiros. Seu pequeno apartamento, em cima de uma loja de souvenires, era repleto de livros, discos e fitas de vídeo. Gerald era um estudante de cinema, colecionava mais filmes do que Roxanne imaginava poder assistir em toda sua vida.

Esta noite veriam Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, e Um Corpo que Cai, de Hitchcock.

— Você não está com frio? — Gerald estava em pé na porta estreita com um suéter na mão. Talvez fosse alguns centímetros mais baixo do que Roxanne, os ombros largos davam a impressão de ser mais alto. Tinha cabelos escorridos cor de areia, que caíam sobre a testa — um charme, na opinião dela. Parecia um homem nascido para liderar, o que fazia com que ela se lembrasse vagamente de Harrison Ford. Seus doces olhos castanhos se destacavam com os óculos de tartaruga que usava.

— Na verdade, não. — Mas entrou. — Parece que não há uma alma na cidade esta noite. Todos estão escondidos dentro de casa.

Ele soltou o suéter.

— Fico feliz que esteja escondida aqui.

— Eu também. — Ela lhe deu um beijinho. — Gosto daqui. — Eles se viam uma vez ou outra já há quase um mês, mas era a primeira vez que Roxanne ia a seu apartamento.

Era evidente que era um estudante com dificuldades. As paredes eram adornadas com pôsteres, o sofá cambeta estava coberto com uma colcha desbotada, a mesa de madeira toda arranhada ficava encostada no canto, coberta de livros. Seus aparelhos eletrônicos, no entanto, eram os mais modernos.

— Acho que esses equipamentos para assistir aos filmes em casa são a onda do futuro.

— Lá pelo fim da década, gravadores de vídeo serão tão comuns como as televisões nas casas americanas. Todo mundo vai ter uma câmera de vídeo. — Sorriu e acariciou a sua. — Diretores amadores vão aparecer em todo lugar. — Tocou os cabelos dela, um emaranhado de cachos que cortara recentemente na altura do queixo. — Talvez me deixe fazer um filme com você algum dia.

— Comigo? — A ideia a fez rir. — Não posso imaginar.

Ele podia. Pegando sua mão, levou-a para o sofá.

— Primeiro Bergman, ok?

— Tudo bem. — Roxanne pegou seu café e se encostou à curva dos braços dele. Gerald apertou alguns botões de seu controle remoto. Um para ligar o videocassete, o outro para ligar a câmera, estrategicamente colocada entre as pilhas de livros.

Roxanne se considerava leiga, mas Bergman não capturou sua atenção. Dê-me uma perseguição de carro por dia, ela pensava enquanto tentava se concentrar na arte lenta em preto e branco que cintilava na tela.

Não se importava com o braço de Gerald à sua volta. Ele cheirava a enxaguante bucal de menta e a um suave aroma de colônia barata. Não se importava com a leve trilha que seus dedos faziam para cima e para baixo em seu braço. Quando ele se moveu para beijá-la, não teve problemas em inclinar a cabeça para trás e aceitar a oferta.

Mas quando tentou se livrar, ele segurou forte.

— Gerald. — Deu uma leve risada enquanto virava a cabeça. — Você vai perder o filme.

— Eu já vi esse filme. — Sua voz estava rouca e ofegante enquanto a beijava no pescoço.

— Eu não. — Ela não estava realmente preocupada. Talvez um pouco incomodada pelos movimentos fervorosos que ele fazia, mas não preocupada.

— Você não acha erótico? As imagens, as sutilezas.

— Não acho. — Entediante era o que ela achava, tão entediante quanto o fato de ele estar pressionando suas costas contra as almofadas do sofá. — Mas talvez eu não tenha muita imaginação. — Fechou a boca, mas não foi suficientemente rápida para deter os dedos dele, que se atrapalhavam com os botões de sua blusa. — Pare, Gerald. — Não queria magoá-lo nem ferir seus sentimentos. — Não foi por isso que vim aqui, e eu não quero.

- Eu desejei você desde a primeira vez que a vi. — Tentou abrir suas pernas e começou a pressionar sua ereção contra ela. Roxanne se aborreceu quando sentiu escapar os primeiros traços de pânico. — Eu vou despi-la e fazer de você uma estrela.

- Não vai, não. — Ela resistiu com força quando a mão dele segurou e apertou seu seio. O pavor crescente fez sua voz ficar trêmula. Um erro, ela percebeu quando a respiração dele se acelerava com a excitação. — Que droga, sai de cima de mim. — Resistia como um cavalo selvagem, ouviu sua blusa rasgar.

- Você gosta com força, amorzinho? Tudo bem. — Agarrou o zíper de sua calça com mãos suadas e impacientes. — Assim que é bom. A visão é melhor. Assistimos depois.

— Seu filho da puta. — Ela nunca soube se foi o timing ou o pavor que fez com que desse uma cotovelada forte o bastante na têmpora dele, fazendo-o cair no chão. Ela não hesitou, fechou o punho e socou seu nariz.

O sangue jorrou, respingando em sua blusa, fazendo com que ele gritasse como um cãozinho que levou um chute. Levou as mãos ao rosto, entortando seus óculos. Roxanne passou por cima dele, agarrando sua bolsa de lona que atingiu a lateral do rosto dele.

Seus óculos voaram pela sala.

— Ei, ei. — O sangue escorria entre os dedos dele enquanto olhava arregalado para ela. -- Você quebrou o meu nariz.

— Tente isso de novo comigo, ou com qualquer outra pessoa, que eu quebro o seu pinto.

Ele ia se levantar, mas afundou de novo quando ela levantou os dois punhos em posição de boxeador.

— Venha. — Ela provocou. Havia lágrimas em seus olhos agora, mas não eram de medo. Eram de puro ódio. — Você quer me pegar, seu canalha?

Ele sacudiu a cabeça, pegando a ponta do lençol para estancar o sangue do nariz.

— Só vá embora. Jesus, você é louca.

— Sim! — Ela sentia a histeria crescendo. Percebeu que queria bater nele de novo. Queria bater, socar, surrar, até que ele ficasse tão assustado e indefeso, como ela ficara minutos atrás. — Lembre-se disso, sua aberração, e fique longe de mim. — Saiu batendo a porta, deixando-o tagarelando sobre hospitais e ações judiciais.

Roxanne estava a uma quadra dali procurando por um táxi, quando se deu conta. Fazer de você uma estrela? Assistir depois? Soltou um grito de raiva quando percebeu.

O filho da puta deve ter filmado tudo.

 

ERA Como um pesadelo. Apesar de a chuva ter se abrandado para uma garoa, a noite estava fria e miserável. Nada combinaria tão perfeitamente com o mau humor de Luke.

Em sua mão havia uma carta que o arrastou de volta para um passado confuso e distante. Cobb. O canalha o encontrara. Em pé no jardim dos Nouvelle, com a chuva fina escorrendo pela gola do casaco, Luke se perguntava por que se permitira acreditar que era possível escapar.

Não importava o quão inteligente, forte e bem-sucedido ele fosse, podia voltar a ser um garotinho assustado. Bastavam algumas palavras num papel.

Callahan, há quanto tempo. Estou ansioso para falar sobre os velhos tempos. Se não quiser perder sua posição social, encontre-me às dez no Bodine's na Bourbon. Não tente o truque de desaparecer, senão terei que ter uma longa conversa com seus camaradas, os Nouvelle. Al Cobb.

Queria ignorá-lo. Queria rir, rasgar e picar o papel em pedacinhos insignificantes para mostrar o quão pouco aquilo significava para o homem que se tornara. Mas suas mãos estavam trêmulas. Seu estômago estava revirado e embrulhado. E sabia, sempre soubera, que não poderia escapar de onde viera ou do que vivera.

Ainda assim, não era mais uma criança com medo de encarar o monstro no armário. Enfiou o papel no bolso e foi para a rua. Enfrentaria Cobb esta noite e de alguma maneira encontraria um jeito de sumir com ele e com tudo que representava.

A chuva encharcava seu casaco, seus sapatos e estragava ainda mais seu humor. Encolheu os ombros, praguejou alguma coisa e foi para a esquina. Quando um táxi encostou no meio-fio, hesitou, pensando se seria melhor um passeio seco ou uma caminhada molhada para melhorar seu estado de espírito.

Esqueceu-se das duas possibilidades quando viu Roxanne sair do taxi. Era um alvo à mão para sua frustração.

De volta tão cedo? — perguntou. — Não se divertiu com seu amigo quatro-olhos?

Vá à merda, Callahan. — Manteve a cabeça baixa quando passou por ele, na esperança de fugir para dentro de casa invisível. Mas Luke se sentia mal o bastante para provocá-la.

— Ei. — Agarrou seu braço e a girou de volta. — Você tem algum... - Parou mortificado, quando viu o estado de suas roupas. Por baixo da jaqueta brilhante, a camisa xadrez de algodão estava rasgada e salpicada com sangue. O pânico tomou conta dele, quando a segurou pelos ombros. – O que aconteceu com você?

— Nada. Deixe-me em paz.

Ele a sacudiu com força.

— O que aconteceu? — Sua voz parecia presa na garganta, como se estivesse saindo através de lâminas. — Rox, o que aconteceu?

— Nada — disse ela outra vez. Por que estava começando a tremer agora? Estava tudo acabado. Acabado e superado. — Gerald fazia uma ideia diferente da minha sobre o que eu fui fazer no apartamento dele. — Ergueu o queixo, pronta para uma palestra. — Tive que dissuadi-lo da ideia.

Ela ouviu Luke prender a respiração — não em choque. Mas como um animal rosnando. Quando olhou para o rosto dele, sentiu sua pulsação acelerar. Os olhos dele estavam vidrados, com um brilho perigoso.

— Eu vou matá-lo. — Cravou os dedos nos ombros dela com força suficiente para fazê-la gritar. Soltou-a tão rápido que Roxanne cambaleou. Quando recuperou o equilíbrio, teve que correr atrás dele.

— Luke. Pare com isso. — Agarrou a manga da jaqueta dele. Apesar de seu coração ter acelerado quando ele se virou com olhos brilhando e dentes aparentes, ela se conteve. — Não aconteceu nada. Nada. Eu estou bem.

— Tem sangue em você.

— Não é meu. — Tentou sorrir, tirando os cabelos molhados do rosto. - Vamos, eu gosto da ideia de um cavaleiro vindo me salvar, mas eu cuidei dele. Você nem sabe onde o idiota mora.

Ele o encontraria. De alguma forma, Luke sabia que podia rastreá-lo como um lobo rastreando uma lebre. Mas a mão de Roxanne tremia em seus braços.

- Ele machucou você? — Foi um esforço manter a voz firme e calma, mas achava que ela precisava disso. — Fale a verdade, Roxy, ele estuprou

— Não. — Ela não resistiu quando os braços de Luke a envolveram. Percebeu que não era medo o que a fazia tremer, e sim a assustadora sensação de traição. Conhecia Gerald, gostava dele, e ele tinha se preparado para forçá-la a fazer sexo. — Não, ele não me estuprou, eu juro.

— Ele rasgou sua camisa.

Dessa vez seu sorriso foi mais confiante.

— Ele disse que eu quebrei o nariz dele, mas acho que só tirei sangue. — Sorriu e deitou a cabeça nos ombros de Luke. Era tão bom estar ali debaixo da chuva com ele, sentindo a batida forte e constante de seu coração. Sempre que as coisas ficavam realmente ruins, pensou, Luke estava lá. Aquilo era reconfortante. — Você tinha que ter escutado os gritos dele. Luke, não quero que Max e Lily saibam. Por favor.

— Max tem esse direito.

— Eu sei. — Ela levantou a cabeça novamente. A chuva escorria por seu rosto como lágrimas. — Não tem nada a ver com direitos. Iria machucá-lo e assustá-lo. E já passou. O que ele poderia fazer?

— Não digo nada, se...

— Eu sabia que haveria um se.

— Se — repetiu Luke colocando um dedo debaixo de seu queixo —você concordar que eu fale com esse idiota. Tenho que me certificar de que ele vai ficar longe de você.

— Acredite em mim, não há nada com que se preocupar. Ele deve até conseguir um mandado para que eu não possa chegar a cem metros dele.

— Ou falo com ele, ou falo com Max.

   — Que droga. — Ela suspirou, considerou suas opções, então deu de ombros. — Tudo bem, vou dizer onde encontrá-lo se...

— Tudo bem, se?

— Se você jurar que só vai conversar. Não quero que tenha que bater em ninguém de novo por minha causa. — Sorriu novamente, sabendo que ambos tinham pensado em Sam Wyatt. — Eu mesma fiz isso dessa vez.

— Só conversar — disse Luke. A não ser que decidisse ser necessário mais do que isso.

— Na verdade, você podia me fazer um favor. — Ela se afastou porque era um pedido difícil. — Não tenho certeza, mas eu acho... Pelo que ele disse quando estava, bem..

— O quê?

- Eu acho que ele tinha uma câmera escondida. Filmando o acontecido entende?

Luke abriu a boca e fechou de novo. Talvez fosse até melhor ficar sem palavras.

- Como assim?

- Ele é entendido em filmes. — Apressou-se em dizer. — Realmente fissurado em filmes e essa coisa de vídeos. Por isso fui ao apartamento dele. Para assistir a uns clássicos. E ele... — Deu um suspiro que soltou fumaça no ar e desapareceu na chuva. — Tenho quase certeza de que ele tinha uma câmara ligada; assim, depois, poderíamos nos ver.

— Miserável pervertido.

— Bem, eu estava pensando, se você insiste em falar com ele, poderia fazer com que ele lhe entregue a fita ou o que quer que seja.

— Vou pegar. Se você nunca mais fizer algo desse tipo de novo.

— Eu? — Ela colocou as mãos nos quadris. — Olha, cabeça de ervilha, eu quase fui estuprada. Eu sou a vítima, entendeu? Não fiz nada para merecer aquele tipo de tratamento.

— Eu não quis...

— Vá para o inferno. Você e todos os homens. — Ela se virou, deu dois passos e voltou. — Eu devo ter pedido por isso, certo? Eu atraí aquele pobre homem desamparado para minha rede, depois, protestei quando as coisas ficaram sérias.

— Cale a boca. — Puxou-a para si e segurou firme. — Desculpe, eu não quis dizer nada disso. Por Cristo, Roxanne, você não entendeu como me assustou? Eu não sei o que teria feito se ele tivesse... — Pressionou a boca em seus cabelos. — Eu não sei o que teria feito.

— Tudo bem. — Outra tremedeira tomou conta dela, descendo pela espinha. — Está tudo bem.

— Ok. — Ele murmurava, acariciava-a, tentando confortá-la, enquanto seus lábios buscavam os dela. — Ninguém vai machucá-la outra vez. — Os lábios dela estavam molhados de chuva. Beijou-a suave e carinhosamente e queria mais. Ela o abraçou enquanto seu corpo derretia como cera junto ao dele. Ele se deu um momento, um glorioso momento para segurá-la e fingir que podia ser real.

— Está se sentindo melhor? — Seu sorriso era tenso quando a afastou.

— Estou sentindo alguma coisa. — A voz dela era como a névoa que serpenteava pelo chão aos seus pés. Quando levou a mão até o rosto dele, ele a segurou e pressionou os lábios na palma de sua mão. Ela se perguntava se a chuva não a teria deixado confusa.

— Rox... é melhor... — Parou de falar quando um homem atravessou a cortina de chuva. Luke simplesmente empurrou Roxanne para o lado quando viu o rosto de Cobb, os olhos de Cobb, e sentiu sua vida virar de cabeça para baixo.

Como fora tolo em esquecer por um momento que tinha seus próprios demônios para enfrentar naquela noite.

Mesmo que não pudesse fazer mais nada, pelo menos impediria que aquele ser horroroso tocasse em Roxanne.

- Entre — ordenou ele.

— Mas, Luke...

— Entre, agora. — Empurrou-a pelo portão do jardim. — Tenho algo a fazer.

— Eu vou esperar.

— Não vai. — Quando ele se virou, ela fitou seus olhos e viu o tormento que havia neles.

Luke andou pela chuva para enfrentar um antigo pesadelo.

 

FAZ TEMPO, garoto. — Al Cobb estava sentado em um bar de striptease na Bourbon Street, fumando um Camel. Era seu tipo de lugar, mulheres com olhos cansados, rebolando e mexendo nos seios, cheio de bêbados decadentes e de sexo impessoal. Sabia que Luke viria atrás dele.

Luke estava com o braço apoiado no encosto da cadeira. Tentava relaxar, usando toda sua força de vontade para evitar que aqueles flashbacks asquerosos voltassem à sua mente.

— O que você quer?

— Uma bebida e bater um papo. — Cobb pousou os olhos nos seios da garçonete, depois abaixou o olhar até a virilha. — Um bourbon duplo.

— Black Jack — pediu Luke, sabendo que sua habitual cerveja não seria suficiente.

— Bebida de homem. — Cobb sorriu, mostrando os dentes manchados de fumo. Os anos de levantamento de garrafa não foram gentis com ele.

Mesmo na penumbra, Luke podia ver o labirinto de vasos estourados em seu rosto, o cartão de apresentação de todo bêbado inveterado. Ganhara muito peso, quase todo concentrado na altura da barriga, deixando a camiseta de malha esticada sobre a circunferência.

— Eu perguntei o que você quer.

Cobb não disse nada até as bebidas serem servidas. Levantou a sua, tomou um gole e olhou para o palco. Uma ruiva falsificada usava um improvável uniforme de serviçal francesa. Vestia calcinha fio dental e segurava um par de espanadores.

— Jesus, olha os peitos dessa cadela. — Cobb entornou sua bebida e fez sinal para mais uma. Sorriu para Luke. — Qual é o problema, garoto, não gosta de olhar peitos?

— O que está fazendo em Nova Orleans?

— Estou de férias. — Cobb lambeu os lábios quando a dançarina balançou os seios abundantes e os apertou. — Pensei em procurá-lo, já que estava por perto. Não vai perguntar sobre sua mãe?

Luke bebia devagar seu uísque, deixando o calor deslizar para seu estômago, aquecendo os músculos congelados.

— Não.

— Isso não é normal. — Cobb estalou a língua. — Ela está morando em Portland agora. Ainda ficamos juntos de vez em quando. Ela começou a cobrar, sabe? — Deu uma piscadela lasciva para Luke e ficou satisfeito em ver os músculos de sua mandíbula se apertarem. — Mas a velha Maggie é sentimental o bastante para me dar uma cortesia quando eu bato na porta. Quer que eu mande lembranças por você?

— Não quero mandar nada pra ela.

— Que atitude de merda. — Cobb entornou mais bourbon enquanto a música ficava mais alta, mais estridente. Um homem tentou subir no palco e foi expulso. — Você sempre foi assim. Se tivesse ficado comigo mais tempo, eu teria metido algum respeito em você.

Luke se inclinou para a frente, os olhos faiscando.

— Ou teria me transformado numa prostituta.

— Você tinha um teto sobre sua cabeça e comida na barriga. — Cobb deu de ombros e continuou bebendo. — Eu só esperava que pagasse por isso. — Não lhe ocorreu sentir medo de Luke. Sua memória era afiada o suficiente para se lembrar do quão facilmente intimidava o rapaz com umas fortes chibatadas de seu cinto. — Mas isso já ficou para trás, não é? Hoje em dia você é foda. Quase me engasguei com uma dose de gim quando vi você na TV. — Soprou seu bourbon. — Fazendo truques, pelo amor de Deus. Aprendeu a usar sua varinha mágica, é, Luke? — Caiu na gargalhada com a própria piada até as lágrimas brilharem em seus olhos. — Você e aquele velho fazem um papel ridículo.

A gargalhada se transformou em susto quando Luke o agarrou pela colarinho. Seus rostos estavam tão perto agora, que Luke podia sentir o bafo de uísque de Cobb, misturado com o cheiro da bebida e fumaça do bar.

— O que você quer? — Repetiu, falando palavra por palavra.

— Quer me bater, garoto? — Sempre disposto para brigas, passou os dedos gordos em volta dos pulsos de Luke. Ficou surpreso com a força que encontrou, mas nunca duvidou de sua própria superioridade. — Quer um corpo a corpo comigo?

Ele queria, queria tanto que seu corpo estremeceu com uma necessidade tão básica como o sexo. Mas havia uma parte dele enterrada bem lá no fundo, um garotinho assustado que se lembrava do estalar do cinto de couro em sua carne.

— Eu não quero estar no mesmo estado que você.

— Esse é um país livre. — Esperto o bastante para saber que uma briga não lhe daria o que queria, Cobb se afastou e pediu outra bebida. —O problema é que a gente tem que pagar por absolutamente tudo. Você está ganhando muito dinheiro com seus truques de mágica.

— É isso que você quer? — Luke teria sorrido se o enjoo não tivesse bloqueado sua garganta. — Você quer que eu lhe dê dinheiro?

— Ajudei a criar você, não foi? Sou o mais próximo que você teve de um pai.

Agora ele sorriu de verdade. Havia fúria suficiente na gargalhada para fazer com que as pessoas que estavam por perto olhassem assustadas.

— Foda-se. — Antes que pudesse se levantar, Cobb segurou a manga de sua jaqueta.

— Eu posso causar problemas para você e para aquele velho a quem você se juntou. Tudo que preciso fazer são umas ligações para alguns repórteres. O que você acha que os produtores de TV pensariam ao ler sobre sua vida? Callahan, é assim que você se chama agora, não é? Só Callahan puro. Artista fugitivo e garoto de programa.

- Isso é mentira. — Mas Luke ficou pálido, e Cobb percebeu. Todas aquelas memórias voltaram como uma cachoeira, as mãos gordas o apalpando suor e a respiração ofegante. — Eu não deixei ele me tocar.

Você não sabe o que aconteceu depois que eu apaguei você. — Cobb estava satisfeito em ver seu blefe dando certo. Alimentava-se do terror, da dúvida e da repulsa nos olhos de Luke. — De uma maneira ou de outra, as pessoas ficariam em dúvida, não é? As pessoas iam gostar daquele número quente que você fazia tempos atrás. Você acha que ela vai deixar você colocar o pinto nela quando souber que você chupava bichas loucas aos 12

anos? — Riu com ódio nos olhos. — Não importa se é mentira ou a mais pura verdade, garoto, não depois que for publicado.

— Eu vou matar você. — Náusea pesava na voz de Luke, e suor brotava em sua testa.

— Mais fácil me pagar. — Confiante de que podia continuar com o show, Cobb acendeu outro cigarro. — Não preciso de muito. Dois mil para começar. — Soprou fumaça na direção de Luke. — Começando amanhã. Depois ligo para você de vez em quando, dizendo quanto e para onde mandar. Senão... procuro a imprensa. Eu teria que contar a eles como você se vendia para pervertidos, como roubava sua pobre mãe, como se juntou com aquele Nouvelle. Acho que ele violou uma ou duas leis ao acolher um fugitivo. Além disso, pode parecer que ele tinha outras utilidades para você. Você sabe. — Sorriu novamente, satisfeito com a transformação no rosto de Luke. — Posso fazer com que as pessoas fiquem na dúvida se ele não conseguiu grátis o que você vendia a outros.

— Deixe Max fora disso.

— Vou ficar feliz com isso. — Cobb estendeu a mão em acordo. — Você me traz dois mil amanhã à noite, bem aqui. Uma amostra da sua boa-fé. Depois sigo meu caminho. Não apareça e tudo que vou precisar fazer é ligar para o National Enquirer. Acho que os menininhos e menininhas, papais e mamães não teriam muito interesse em um mágico que gosta de carne nova. Não. — Deu outro trago. — Não sei se ele faria outra apresentação para a rainha da Inglaterra depois de ser acusado de sodomia. É como aqueles ingleses chamam isso. Sodomia. — Cobb riu novamente quando se levantou. — Amanhã à noite. Vou esperar.

Luke ficou sentado onde estava, lutando para respirar. Mentiras, merda de mentiras. Ele podia provar, não podia? Sua mão tremeu ao pegar o copo. Ninguém acreditaria, ninguém acreditaria que Max teria...

Enojado, apertou os olhos com as mãos.

Cobb estava certo. Uma vez publicado, as pessoas logo começariam a cochichar e questionar, não importava. A mancha estaria ali, a vergonha e o pavor.

Poderia suportar por ele, mas não suportaria o pensamento de atingir Max ou Lily. Ou Roxanne. Meu Deus, Roxanne. Fechou os olhos bem apertados enquanto entornava o restante de uísque. Pediu mais um e relaxou, até ficar miseravelmente bêbado.

 

ELA ESTAVA esperando por ele. Roxanne tinha entrado em casa e escapado para seu quarto sem ser notada. Um banho quente e longo aliviara as dores e algumas frustrações. Depois se aconchegou na varanda para esperar.

Ela o viu cambaleando pela neblina e garoa. Observou-o acenar e parar, e andar de novo com o cuidado exagerado de um bêbado. Sua preocupação e confusão se transformaram em ódio mortal.

Ele a deixara na chuva, com os nervos à flor da pele e ido ao encontro de uma garrafa. Ou de várias garrafas, pelo seu estado. Roxanne se levantou, amarrou forte o cinto de seu robe, como um soldado se preparando para uma batalha. Depois desceu para interceptar Luke no jardim.

— Seu imbecil.

Ele cambaleou para trás, tentou manter o equilíbrio no chão irregular e deu um sorriso bobo.

— Meu docinho, o que tá fazendo na chuva? -- Deu um passo desajeitado à frente. — Meu Deus, Roxanne, você tá linda. Você me deixa louco.

— É claro. — Não parecia um elogio, as palavras estavam embaralhadas, não dava para entender. Ela se aproximou para segurar seu braço quando ele cambaleou. — Amanhã de manhã, você vai pagar por isso.

— Amanhã à noite — murmurou ele enquanto a cabeça girava e girava em volta de seus ombros. — Vou pagar amanhã à noite.

— Você tem que viver até lá. — Ela suspirou, mas aguentou o peso del colocando um de seus braços em volta dos ombros. — Venha, Callah vamos ver se colocamos um irlandês bêbado na cama sem acordar a casa.

— O meu bisavô era da cidade de Sligo. A velha me contou uma vez. já contei isso?

— Não. — Ela resmungou um pouco pelo esforço de arrastá-lo pela porta lateral.

— Achava que tinha uma voz de anjo. Cantava em bares, sabe. — a chuva escorria em seu rosto, fria e suave, quando sua cabeça caiu para trás. — Filho da puta, nunca foi meu pai. Nada dele dentro de mim.

— Não, pela maneira que você fede, só tem um litro de uísque dentro de você.

Ele sorriu e bateu contra a porta antes que ela pudesse abri-la.

— Desculpe. Você está tão cheirosa, Rox. Como a chuva nas flores selvagens.

— Ah, um poeta irlandês. — Seu rosto corou, enquanto segurava Luke com uma das mãos e empurrava a porta com a outra.

— Só estou feliz porque você não tem peitos daqueles como os dessa noite. Acho que eu não ia gostar.

— Daqueles? — Roxanne sussurrava antes de soltar um suspiro. — Deixa pra lá.

— Eu não acho nada interessante olhar uma mulherzinha qualquer fazendo strip com vários caras olhando. Prefiro só eu e ela, entendeu?

- Fascinante. — Ela não sentiu o menor remorso quando se virou e o deixou no canto da cozinha. — Você me deixa na chuva e corre para um antro de strip. Você é um príncipe, Callahan.

- Sou um canalha — disse ele, rindo como um bêbado. — Nasci assim, vou morrer assim. — Cambaleava enquanto ela tentava direcioná-lo para a escada dos fundos. — Eu devia matá-lo, talvez. Mais fácil assim.

- Não, você me prometeu que ia só falar com ele.

Luke passou a mão pelo rosto para ter certeza de que ainda estava lá.

- Falar com quem?

- Gerald.

- Sim, sim. — Tropeçou no primeiro degrau, apesar de ter caído com força, pareceu não notar. Para assombro de Roxanne, ele simplesmente se esparramou pela escada e se preparou para dormir. — É assustador, é muito assustador ver ele chegando daquele jeito. E saber que não pode fazer nada para pedir. Agarrando, chantageando. Oh, Deus... — Sua voz morreu com um sussurro. — Não quero pensar nisso.

- Então, não pense. Pense em subir a escada.

— Preciso me deitar — murmurou ele, irritado quando ela o empurrou e cutucou. — Por favor, me deixa em paz.

— Você não vai apagar aqui, como o bêbado idiota que é. Lily vai ficar superpreocupada se encontrar você aqui.

— Lily. — Suspirou, engatinhando alguns degraus para cima com os estímulos de Roxanne. — A primeira mulher que amei. Ela é a melhor. Ninguém vai magoar Lily.

— Claro que não. Venha, só mais um pouquinho. — Os esforços de Roxanne fizeram seu robe se abrir. De seu excelente ponto de vista, Luke tinha uma visão perturbadora de sua coxa branca e macia. Nem o uísque podia fazer com que seu sangue parasse de esquentar.

— Indo para o inferno — disse ele com um sorriso quando Roxanne o sacudiu. — Direto para o inferno. Por Cristo, eu queria que você usasse algo por baixo de seu robe de vez em quando. Deixa eu só... — Mas, quando ele ia tocar naquela pele branca e macia, aterrissou com um soluço no primeiro andar.

— Fique em pé, Callahan — sussurrou Roxanne em seu ouvido. — Você não vai acordar Max e Lily.

— Tudo bem, tudo bem. — Ele tentou engolir, mas a saliva tinha gosto de veneno. Caiu sozinho de joelhos, esforçou-se para ficar de pé quando Roxanne o arrastou. — Vou passar mal? — perguntou no momento em que o enjoo revirou seu estômago.

— Espero que sim — disse ela trincando os dentes enquanto meio que o empurrava, meio que o carregava para o quarto dele. — Eu, sinceramente, espero que sim.

— Odeio isso, me faz sentir como daquela vez que Mouse me deu meu primeiro cigarro. Não vou mais ficar bêbado, Rox.

— Está bem. Aqui estamos... Merda.

Ele mirou na cama. Mas, por mais que Roxanne tenha sido rápida, não foi o suficiente para evitar cair junto com ele. Caiu por cima dela com força bastante para tirar seu fôlego.

— Sai de cima de mim, Callahan.

Sua resposta foi um ininteligível murmúrio. Por causa de seu bafo de Jack Daniel's ela virou o rosto. Seus lábios se aninharam sonolentos em seu pescoço.

- Para com isso. Ah... maldição. — A maldição terminou num gemido abafado. Um prazer, pesado e escuro, se apoderou dela quando ele colocou a mão em seu seio. Ele não apalpou, não apertou, simplesmente possuiu.

— Macia — murmurou ele. — Roxanne é macia. — Seus dedos acariciavam seda fina, preguiçosa e distraidamente, enquanto seus lábios esfregavam na pele.

— Luke, me beije. — Seu corpo já flutuava enquanto tentava virar sua boca para a dele.  — Como da outra vez.

— Mmm-hmm. — Ele deu um longo suspiro e desmaiou.

— Luke. — Sacudiu os ombros dele. Não pode ser, disse a si mesma, não duas vezes na mesma noite. Quando segurou um punhado de cabelo para puxar a cabeça dele para trás, percebeu que ele apagara. Rangendo os dentes e xingando baixinho, ela empurrou para o lado o corpo inerte.

Deixou-o esparramado, atravessado na cama, totalmente vestido, e foi tomar um bom banho frio, há tanto tempo considerado o melhor remédio.

 

ELE QUASE se matou. No meio de uma ressaca violenta e em um estado emocional precário, Luke viu que seu ritmo e seu equilíbrio estavam comprometidos. Sabia que não podia ter feito o que fez. A arte da escapologia, que tinha regras rígidas e rigorosas, simplesmente delineavam a fronteira entre a vida e a morte.

Mas escolher jogar de acordo com as regras e ignorar o orgulho deixava pouco espaço para manobra. Luke seguiu em frente com o número de escape no primeiro show, permitindo que o prendessem na camisa de força, algemassem suas mãos e acorrentassem seus pés antes de se dobrar dentro de uma arca de ferro no centro do palco.

Estava quente, escuro e abafado ali dentro. Como uma tumba, como uma catacumba. Como um armário. Como sempre, sentiu aquela onda inicial de pânico por estar preso.

Não tem como sair, dizia a voz de Cobb dentro da sua cabeça. Não tem como sair! Não se esqueça disso.

Aquele medo antigo e impotente tomou conta dele, bandidos sorridentes e corcundas nas trevas, prontos para dar o bote e assumir o controle. Respirou devagar e superficialmente para se acalmar enquanto soltava as mãos.

Podia sair. Já provara diversas vezes que ninguém nunca mais o manteria preso de novo. Concentrando-se, seguiu para o próximo passo.

Cobb estava esperando por ele.

Estou com a chave, seu pirralho, e você vai ficar exatamente onde eu o coloquei. Está na hora de você saber quem é que manda aqui.

A lembrança do armário voltou, o garotinho soluçando, batendo com as mãos na porta até ficarem feridas. A respiração de Luke ficou difícil enquanto seu coração batia em suas costelas, ecoando na sua cabeça que girava. A náusea que não ia embora queimava seu estômago como um mar de ácido. O medo voltou, rondando como minúsculos insetos em volta de sua pele suada.

Sentindo a dor causada pelo ferro em seus pulsos, zunia. Com um único movimento cego, lutava com as algemas como um prisioneiro faz ao ir para a cadeia. E sentiu o cheiro cúpreo de seu próprio sangue.

Respirando rápido demais, disse para si mesmo, nervoso pelo som impotente de seus próprios pulmões lutando por ar, acalme-se, droga, acalme-se.

Contorceu o próprio corpo; a dor esperada e familiar ao manipular suas juntas ajudou. Seu ombro assumiu uma posição impossível, permitindo que deslizasse e escorregasse na camisa de força.

O pulsar em suas têmporas fez com que amaldiçoasse o Jack Daniel's. Foi forçado a parar de novo a fim de se recompor o suficiente para suportar a dor.

Estava tonto, uma sensação que fez com que se lembrasse muito bem de sua condição na noite anterior — e de Roxanne. As imagens vinham, mesmo enquanto ele as combatia e tentava se concentrar em livrar os braços. Aquela pele clara e macia sendo explorada por suas mãos. O corpo cheio de curvas e ansioso embaixo do seu.

Ah, Deus, Jesus Cristo, será que ele a seduzira, que usara sua confusão interior e a bebedeira como desculpa para realizar uma fantasia que o perseguia há anos?

O suor escorria por Luke formando estreitos rios quentes. Perdera o controle do tempo, um enorme erro. Se ainda tivesse fôlego, xingaria a si mesmo. Quando estava livre da camisa de força, seus músculos e juntas doloridos gritavam. Só precisava bater na caixa — assim como batera na porta do armário.

Eles abririam, permitindo que saísse, permitindo que respirasse o ar puro. Jogou a cabeça para trás, batendo com força na lateral da arca. Uma dor penetrante rasgava sua cabeça, e imagens dançavam atrás de seus olhos fechados.

O olhar malicioso de Cobb, as mentiras que ele cuspia atormentavam Luke.

Cuidaria de Cobb, prometeu Luke para si mesmo enquanto sua mente ficava cinzenta. Só lhe custaria dinheiro.

Roxanne. Aquelas imagens de Roxanne na fita que conseguira arrancar de Gerald. Podia escutar o som da camisa dela rasgando, os pedidos abafados para que ele a soltasse. Podia ver o sangue jorrando, quase sentir o cheiro, quando ela conseguiu se libertar.

E a aparência dela, meu Deus do céu, a fisionomia dela ali parada, os punhos cerrados e prontos, o corpo ereto como de uma guerreira, coragem a envolvendo como uma aura de medo e fúria faiscando em seus olhos.

Sua vontade era de abraçá-la naquele momento, afastar todos os temores. Assim como quisera bater no já machucado Gerald até deixá-lo como uma polpa amassada.

Por mais furioso que estivesse, porém, estava igualmente envergonhado. Será que ele, cego pela bebedeira e pelo desejo, fizera com Roxanne a mesma coisa que Gerald tentara?

Não. Estava sendo bobo. Não acordara passando mal, com dor de cabeça e totalmente vestido? Até os sapatos. O gosto em sua boca não era o de Roxanne, mas o sabor podre de uísque estragado.

Desejo e chantagem. Bem, não valia a pena morrer por nenhum dos dois. Levantou a mão trêmula e bateu na própria cara, uma vez, duas vezes, para que o choque da dor afastasse toda essa névoa de sua mente,

Começou a se ocupar das correntes das pernas, respirando devagar o ar que estava se esgotando.

 

— ESTÁ DEMORANDO muito. — Roxanne escutou o tom de pânico na própria voz ao agarrar a manga do pai. — Pai, já se passaram dois minutos.

— Eu sei. — Max cobriu a mão da filha com a sua, que já estava gelada. — Ainda há tempo. — Não tinha por que contar para ela que ele vira o rosto pálido e os olhos fundos de Luke no camarim e exigira que ele cancelasse a performance naquela noite.

Mas, neste momento, não adiantava dizer a ela que Luke passara por cima dele. O garoto era um homem agora e o poder estava mudando de mãos.

— Algo está errado. — Podia imaginá-lo inconsciente, sufocado, impotente. — Droga. — Ela deu a volta com a intenção de correr até Mouse para pegar as chaves. Antes que pudesse dar um passo, a tampa da arca se abriu.

Impressionado, e com razão, o público aplaudiu. Encharcado de suor, Luke fez as reverências e encheu os pulmões sedentos de ar. Quando Max o viu cambalear, preparou-se, fez um sinal para Roxanne e, na mesma hora, entrou no palco para distrair a plateia com alguns truques de prestidigitação.

— Idiota. Cretino. Cabeça oca. — Insultava-o através de dentes trincados abertos em um sorriso enquanto o pegava pelo braço e levava para os bastidores. — O que você estava tentando fazer?

Lily estava bem ali com um grande copo de água e uma toalha. Luke bebeu até a última gota. O fato de ainda estar se sentindo fraco o deixou mortificado.

— Sair, a maior parte do tempo — disse ao enxugar o suor do rosto. Quando ele cambaleou, Roxanne o segurou. O coração dela batia como um trovão em seus ouvidos enquanto continuava a repreendê-lo.

— Você não podia ter entrado ali depois de ter passado a noite bebendo.

— O meu trabalho é entrar ali — lembrou ele. Era uma sensação tão boa tê-la segurando seus braços para que ficasse de pé. Ele se afastou e foi para seu camarim. Como um cachorrinho irritado, Roxanne foi atrás.

— Show business não significa que você tem de se matar. E se você... — Parou na porta do camarim dele. — Luke, você está sangrando.

Abaixou o olhar e viu que escorria sangue de seus pulsos e tornozelos.

- Tive uns probleminhas com as correntes hoje. — Levantou a mão para impedir que ela entrasse. — Quero me trocar.

— Você precisa limpar essas feridas. Deixe-me...

— Já disse que quero me trocar. — Desta vez foi o olhar frio dele que a impediu. — Posso cuidar disso eu mesmo.

Ela apertou um lábio contra outro para evitar que tremessem. Será que ele não sabia que dispensá-la assim friamente magoava muito mais do que uma palavra furiosa? Ergueu a cabeça. Claro que ele sabia. Quem a conhecia melhor do que ele?

— Por que você está me tratando assim, Luke? Depois de ontem à noite...

— Eu estava bêbado — disse, rapidamente, mas ela balançou a cabeça.

— Antes... Você não estava bêbado antes. Quando me beijou.

Línguas de fogo o queimavam por dentro. Só um homem cego não veria o que ela estava lhe oferecendo com o olhar. Sentiu-se enjoado, carente e exausto.

— Você estava chateada — conseguiu dizer com uma calma notável. —Eu também. Tentei fazer com que você se sentisse melhor, só isso.

O orgulho falou mais alto.

— Você está mentindo. Você me queria.

Ele abriu um sorriso calculado para insultar. Ainda lhe restava um pouco de autocontrole.

— Querida, se eu aprendi uma coisa nos últimos dez anos, foi tomar o que eu quero. — Suas mãos estavam cerradas em punhos, mas manteve o olhar de desdém. — Vá encantar os mauricinhos da sua faculdade com suas fantasias. Agora, tenho coisas a fazer antes do próximo show.

Bateu a porta bem na cara dela, depois encostou pesadamente sobre ela.

Foi por pouco, Callahan, pensou, fechando os olhos. Em mais de um aspecto. Como suas dores estavam incomodando, afastou esses pensamentos e foi procurar aspirinas. Precisava ir encontrar Cobb e estaria armado com dois mil dólares e com a cabeça tranquila.

 

NINGUÉM SABIA melhor do que Maximillian Nouvelle o valor do momento certo. Esperou pacientemente o segundo show acabar, não fez nenhum comentário, não emitiu nenhuma crítica. Firmemente se sobrepôs às objeções de Lily e Roxanne quando Luke entrou na arca de ferro para a última apresentação. Max sabia que, se um homem não encara os próprios demônios, é inteiramente devorado por eles.

Em casa, educadamente convidou Luke para tomar uma dose de conhaque com ele na sala e, antes que o convite pudesse ser aceito ou rejeitado, apareceu com os copos.

— Não estou com muita disposição de beber. — O estômago de Luke se revirou só de pensar em álcool.

Max apenas se acomodou em sua poltrona favorita, esquentando o conhaque com a mão.

— Não? Mas você pode me fazer companhia enquanto tomo o meu.

— Foi uma noite longa — começou Luke, afastando-se.

— Certamente foi. — Max levantou a mão de dedos longos e apontou para uma poltrona. — Sente-se.

O poder ainda estava presente, a mesma força que atraíra um menino de12 anos a um palco escuro. Luke se sentou, pegou um cigarro. Mas só ficou brincando com ele entre os dedos enquanto esperava Max falar.

Existem muitos métodos de suicídio. — A voz de Max era moderada como um homem se preparando para contar uma história. — Mas devo admitir que considero todas uma prova de covardia. Entretanto. — Gesticulando com a mão, abriu um sorriso bondoso. — Uma escolha dessa natureza é altamente pessoal, não acha?

Luke estava perdido. Mas, como aprendera muito tempo atrás a ter cuidado com as palavras quando Max estava preparando uma armadilha, apenas deu de ombros.

— Muito bem colocado — disse Max com uma pontada de sarcasmo que fez Luke estreitar os olhos. — Se você contemplar essa hipótese mais uma vez — continuou após um gole de conhaque e um suspiro, apreciando seu sabor —, sugiro um método mais limpo e mais rápido, tipo usar a arma que fica na gaveta de cima da cômoda do meu quarto.

Antes que Luke pudesse piscar surpreso, Max se inclinou e, com uma das mãos ainda segurando delicadamente o copo de conhaque, com a outra agarrou o colarinho da camisa de Luke. Quando seus rostos estavam bem próximos, Max falou com a mesma fúria intensa que faiscava em seus olhos.

— Nunca mais use o meu palco, ou a ilusão da mágica, para algo tão covarde quanto colocar um fim à sua própria vida.

— Max, pelo amor de Deus. — Luke sentiu os dedos fortes em volta de seu pescoço, atrapalhando suas palavras, depois soltando.

— Eu nunca levantei um dedo para você. — Agora o controle que Max vestira durante e depois do segundo show começou a se quebrar de forma que precisou se levantar e virar para falar. — Uma década e mantive a promessa que lhe fiz. Mas estou avisando agora, eu vou quebrá-la. Se você fizer uma coisa dessas de novo, vou lhe dar uma surra. — Virou-se para encarar Luke com olhos escuros que cintilavam sua ira. — Naturalmente, vou ter de pedir para Mouse segurá-lo para que eu possa fazer isso, mas eu juro que sei muito bem onde bater para machucar.

Primeiro se sentiu insultado. Luke ficou de pé, palavras de ousadia e negação na ponta da língua. Foi quando viu, pela luz do abajur, que o que brilhava nos olhos de Max não era fúria e sim lágrimas. Isso o atingiu mais do que mil socos o atingiriam.

— Eu não deveria ter feito o número esta noite — disse, com o tom de voz baixo. — Eu não estava concentrado. Tive uns problemas que não consegui tirar da cabeça. Sabia que tinha de tirar, mas não consegui... Eu não estava tentando me machucar, Max, juro. Foi estupidez e orgulho.

— Muito orgulho e muita estupidez, eu diria. — Max tomou mais um gole para limpar a garganta. — Você levou Lily às lágrimas. Isso é algo que tenho dificuldade em perdoar.

Pela primeira vez em anos, Luke sentiu aquele medo — de ser rejeitado. De perder o que se tornara precioso em sua vida.

— Eu não pensei. — Sabia que era uma desculpa fraca. Uma parte dele queria contar todas as suas razões. Mas, se não podia fazer nada mais, pelo menos os pouparia disso. — Vou falar com ela, me desculpar.

— Espero que faça isso. — Mais calmo agora, colocou a mão no ombro de Luke. Ali havia um conforto e uma compreensão que dispensavam quaisquer palavras. — É alguma mulher?

Luke pensou em Roxanne e em como suas mãos ardiam para tocá-la. Isso fora parte do que encobriu sua mente, além de Cobb e do excesso de álcool. Apenas deu de ombros.

— Eu poderia lhe dizer que nenhuma mulher vale a sua vida nem a sua paz de espírito. Mas é claro que isso seria uma mentira. — Os lábios dele se curvaram e seus dedos apertaram. — Existem algumas, e um homem é tanto abençoado quanto amaldiçoado por encontrá-las. Quer conversar sobre isso?

— Não. — Foi o que Luke conseguiu dizer com a voz abafada. A ideia de discutir seu desejo louco por Roxanne com o pai dela o deixou entre querer rir e gritar. — Está tudo sob controle.

— Muito bem. Talvez queira saber sobre nosso próximo serviço.

— Quero sim.

Satisfeito de que o ar estivesse leve de novo, Max se sentou e recostou.

— LeClerc conseguiu algumas informações bem interessantes. Um certo político de alto escalão mantém uma amante no subúrbio de Maryland, perto da capital do nosso país. — Max fez uma pausa para beber. Já interessado, Luke pegou o copo. — Seu estômago não estava mais parecendo um campo minado. — Nosso servidor público não está acima de propinas... uma forma particularmente feia de garantir o sustento, na minha opinião, mas tudo bem. De qualquer forma, ele é sábio o suficiente para não inflar seu estilo de vida com essas bonificações e, assim, provocar especulação. Em vez disso, ele discretamente investe em joias e obras de arte, e guarda esses investimentos com a amante.

— Ela deve ser muito gostosa.

— Exatamente. — Max inclinou a cabeça, passou o dedo pelo suntuoso bigode. — É difícil imaginar por que um homem que trai a esposa e seus eleitores confiaria à mulher que o ajuda nessas traições quase dois milhões em quinquilharias. — Max suspirou, como sempre perplexo e encantado com os caprichos da natureza humana. — Eu não admitiria isso na frente das encantadoras mulheres da nossa casa, mas um homem não é levado pelo nariz, mas pelo pinto.

Luke riu.

— Achei que o caminho para se conquistar um homem fosse pelo estomago.

— Ah, é sim, meu rapaz. Contanto que passe pela virilha. Nós somos, afinal, animais, pensantes, mas animais. Nós nos enterramos em uma mulher, não é mesmo? Literalmente. Quantos de nós resistem à ilusão de voltar para o útero?

Luke levantou uma sobrancelha.

— Eu não diria que é nisso que penso quando estou com uma mulher.

Max girou seu conhaque. Fora uma forma indireta de fazer o garoto falar, embora Max geralmente preferisse falar sem rodeios.

— O que quero dizer, Luke, é que em determinado momento, graças a Deus, o intelecto desliga e o animal assume o controle. Quando se está fazendo tudo certo, não se está pensando. O pensamento vem antes, na atração, na conquista, na sedução, no romance. Uma vez que o homem está dentro de uma mulher, que ela o envolve, a mente se desliga e o controle é perdido. Acho que por isso o sexo é mais perigoso do que a guerra, e muito

mais desejável.

Luke só balançou a cabeça.

— Não é tão difícil assim curtir a experiência e manter a mente alerta.

— Obviamente você não encontrou a mulher certa ainda. Mas ainda é jovem — disse Max, gentilmente. — Agora — ele se inclinou para a frente — sobre a nossa viagem para Washington.

 

FIZERAM SEIS meses de planejamento. Os detalhes precisavam ser refinados e lapidados com tanto cuidado quanto no palco em que os Nouvelle se apresentariam no Kennedy Center.

Em abril, quando as cerejeiras estavam floridas e aromáticas, Luke viajou para o rico Potomac, Maryland. Disfarçado com um terno risca de giz, peruca loura e barba bem aparada, ele foi conhecer imóveis com um ávido corretor. Com sotaque de Boston, assumiu a identidade de Charles B. Holderman, representante de um rico industrial da Nova Inglaterra que estava interessado em comprar uma casa nos elegantes subúrbios da capital.

Apreciou a viagem por ela mesma e pela oportunidade de ficar longe de Roxanne. Ela conseguira se vingar da forma mais ordinária e eficaz de todas. Agindo como se nada tivesse acontecido.

Luke não relaxava totalmente havia meses e estava vendo essa viagem como férias trabalhando. E ainda tinha o bônus de ter uma suíte no magnífico Madison, bancar o turista — particularmente gostou da exposição de pedras preciosas no Smithsonian — e de simplesmente ficar sozinho.

Foi a todas as casas da lista junto com o corretor de imóveis, hesitava e fazia perguntas sobre as propriedades e sua localização. As perguntas que fazia como representante de um potencial comprador coincidiam com o que precisava saber como um potencial ladrão.

Quem morava na vizinhança e o que faziam? Havia cães que latiam muito? Patrulhas de polícia? Que empresa ele recomendava para instalar um sistema de segurança? E assim por diante.

Mais tarde naquele mesmo dia, Luke se aproximou diretamente de Miranda Leesburg. Atravessou o caminho margeado por flores que levava à porta de carvalho e vidro e bateu.

Já sabia o que esperar. Já analisara fotos da sagaz e impetuosa loura de 30 e poucos anos com um corpo escultural e gélidos olhos azuis. Resignado, escutou o latido agudo de dois cachorros. Já sabia que ela tinha dois Spitz alemães, uma pena eles serem tão ruidosos.

Quando ela abriu a porta, ele ficou surpreso ao ver os cabelos louros escorridos presos aleatoriamente em um rabo de cavalo e o rosto sagaz e impetuoso coberto de suor. Havia uma toalha em volta do pescoço de Miranda. O restante daquele corpo voluptuoso e cheio de curvas estava ajustado em duas peças roxas de roupa de ginástica.

Ela pegou os dois cãezinhos, acalmando-os ao encostá-los em seios que transbordavam como duas luas brancas de dentro do pequeno top.

Luke não lambeu os lábios, mas pensou nisso. Começou a entender por que o bom senador mantinha seu prêmio escondido.

Nas fotografias, ela era linda de uma forma distante, fria e óbvia. Pessoalmente, ela exalava sex appeal suficiente para derrubar um homem cego a um metro de distância. Luke estava bem mais perto.

— Com licença. — Sorriu e falou com seu sotaque carregado. — Desculpe incomodá-la. — Os cãezinhos ainda estavam latindo e ele precisou elevar a voz um tom acima. — Sou Holderman, Charles Holderman.

— Pois não? — Ela o olhou de cima a baixo como se ele fosse uma escultura que estava contemplando em uma galeria de arte. — Eu o vi pela vizinhança.

— Meu patrão está interessado em comprar uma propriedade nesta área — Luke sorriu de novo. A gravata marrom de Holderman estava começando a estrangulá-lo.

— Desculpe, minha casa não está à venda.

— Não, eu sei disso. Será que eu poderia ter um minuto de sua atenção? Podemos conversar aqui mesmo se a senhora se sentir mais à vontade.

— Por que eu me sentiria mais à vontade aqui fora? — Ela arqueou a delicada sobrancelha esculpida ao analisá-lo. Jovem, linda, reprimida. abaixou-se para colocar os cãezinhos no chão de madeira encerada, movimento que provocou uma linda visão, e deu uma palmadinha neles para que fossem embora. Com o amante viajando há duas semanas em um tour para angariar fundos, estava entediada. Charles B. Holderman parecia uma diversão interessante. — Sobre o que gostaria de falar comigo?

— Ah, sobre paisagismo. — Esforçou-se e conseguiu manter os olhos afastados do volume dos seios dela. — Meu patrão tem algumas exigências bem específicas sobre os jardins. E o seu se aproxima muito do que ele quer. Gostaria de saber se a senhora mesma construiu o jardim de pedras na lateral da casa?

Ela riu, usando a toalha para enxugar os seios que cintilavam.

— Querido, eu não sei a diferença entre uma gérbera e uma petúnia. Contratei uma empresa.

— Entendi. Será que poderia me passar o contato? — O sempre eficiente Holderman tirou um bloco com capa de couro do bolso. — Ficaria muito agradecido.

— Acho que posso lhe ajudar. — Ela pousou um dedo sobre os lábios. — Entre. Vou procurar o cartão.

— Muita gentileza sua. — Luke guardou o bloco e ocupou a mente com os detalhes do vestíbulo, da escada, tamanho e quantidade de cômodos. - Sua casa é linda.

— Obrigada, redecorei alguns meses atrás.

Os papéis de parede eram florais e em tons pastel. Tranquilo, feminino. O voluptuoso corpo vestido em pequenos pedaços de pano roxo acrescentava um toque de sexo. Como paixão em uma campina.

Luke parou para admirar um quadro de Corot.

— Lindo — disse quando Miranda o olhou sobre os ombros de forma questionadora.

— Você gosta de quadros? — Ela fez um biquinho ao parar ao lado dele para analisar o quadro.

— Gosto, sou um admirador de arte. Corot, com seu estilo sonhador, é um dos meus preferidos.

— Corot, certo. — Ela não dava a mínima para o estilo, mas sabia o valor do quadro até o último centavo. — Nunca consegui entender por que as pessoas pintam árvores e moitas.

Luke sorriu de novo.

— Talvez para fazer com que as pessoas se perguntem quem ou o que está atrás delas.

Ela riu com a ideia.

— Essa é boa, Charles, muito boa. Tenho uma pasta com todos os cartões na cozinha. Por que não me acompanha em alguma bebida para refrescar enquanto encontro o cartão do meu paisagista?

— Seria um prazer.

A cozinha acompanhava o charme feminino e suave do restante da casa. Vasos com violetas africanas pegavam sol em um balcão marfim e lilás. Os utensílios eram funcionais e discretos. Uma mesa redonda de vidro com quatro cadeiras de ferro forjado ficava no centro do ambiente em cima de um tapete cor-de-rosa. De forma um tanto incongruente, o som inconfundível da guitarra de Eddie Van Haien ecoava pelos alto-falantes da cozinha.

— Eu estava malhando quando você tocou a campainha. — Miranda foi até a geladeira e pegou uma jarra de limonada. — Gosto de me manter forma, sabe? — Colocou a jarra sobre o balcão e passou as mãos pelos quadris. — Esse tipo de música me faz suar.

Luke passou a língua por dentro da boca para impedir que ela ficasse caída para fora e respondeu como Holderman responderia.

— Tenho certeza de que é estimulante.

— Pode apostar. — Riu para si mesma enquanto pegava dois copos e servia a limonada. — Sente-se, Charles. Vou procurar o cartão para você.

Ela colocou os copos sobre a mesa, causando aquele tilintar de vidro sobre vidro, depois passou bem perto dele ao se encaminhar para a gaveta. O cheiro de almíscar que exalava entrou e foi parar diretamente entre as pernas dele. Pensando agora, era um lugar que ele não vinha usando muito desde que, sob o efeito de Jack Daniel's, desmaiara em cima de Roxanne.

Calma, rapaz, pensou ele e endireitou o nó da gravata antes de pegar a limonada.

— Lindo dia — disse para puxar papo enquanto ela remexia na gaveta. - Sorte sua poder estar em casa para aproveitar.

— Ah, posso aproveitar bem o tempo. Eu tenho uma butique em Georgetown. Não ganho muito dinheiro, devo dizer, mas tenho um gerente que cuida dos problemas do dia a dia. — Ela pegou o cartão de visitas da gaveta e ficou brincando com ele na palma da mão. — Você é casado, Charles?

— Não. Divorciado.

— Eu também. — Sorriu. — Descobri que gosto de poder controlar a minha casa e a minha vida. Quanto tempo você vai ficar por aqui?

- Ah, infelizmente, só um ou dois dias, no máximo. Independentemente de meu patrão comprar um imóvel aqui, meu trabalho estará concluído.

— E vai voltar para...

- Boston.

— Hummm. — Isso era bom. Na verdade, era perfeito. Se ele fosse ficar mais tempo, ela o dispensaria depois da limonada e de entregar o cartão. Mas dessa forma, ele era a resposta para duas semanas longas e frustrantes. De vez em quando, bem discretamente, Miranda gostava de trocar de parceiros e de dança.

Ela não o conhecia, nem o senador. Uma rapidinha secreta faria muito melhor para seu estado de espírito do que uma hora malhando.

— Bem... — Ela deslizou a mão pelo corpo de forma a roçar de leve sua virilha. — Podemos dizer que você vai... entrar e sair.

Luke colocou o copo na mesa para não deixá-lo cair.

— Podemos dizer que sim.

—  Já que você está aqui agora. — Encarando-o, ela enfiou o cartão no vale que havia dentro de seu top. — Por que não pega o que veio buscar?

Luke ficou na dúvida por um segundo apenas. Não seria exatamente como imaginara. Mas, como Max gostava de dizer, um pouco de espontaneidade não atrapalhava o planejamento.

— Por que não? — Levantou-se e, aproximando-se muito mais rápido do que ela imaginara, colocou o dedo dentro dos finos shorts dela. Ela estava quente e molhada como um gêiser.

Enquanto ela arqueava as costas, surpresa, e soltava o primeiro gemido de prazer, ele já se livrara deles. Com dois movimentos rápidos, ele abriu as próprias calças e a penetrou violentamente. O primeiro orgasmo a pegou de surpresa. Nossa, ele não parecia tão talentoso.

— Ah, Deus! — Os olhos dela estavam arregalados de prazer. Então, ele a segurou pelos quadris e a levantou com braços surpreendentemente fortes, de forma que ela montou nele. Ela conseguiu soltar alguns suspiros e se preparou para a cavalgada de sua vida.

Ele a observava. Seu sangue estava pulsando rápido e quente, o corpo estava envolvido pelo lampejante veludo que era o sexo. Mas sua mente — essa estava lúcida o suficiente para ver os olhos dela se fecharem, sua língua se mexer rapidamente. Sabia que os cachorros tinham entrado, nervosos e curiosos com os sons que sua dona emitia. Eles estavam encolhidos embaixo da mesa de vidro, latindo.

Van Halen estava gritando nos alto-falantes. Luke entrou no mesmo ritmo, baixo e sujo. Podia contar os orgasmos dela, e viu que o terceiro que proporcionou a ela a deixou tonta e fraca. Ainda a levou a mais um clímax antes de atingir o seu. Mas mesmo nesse momento teve controle o suficiente para evitar que ela batesse com a cabeça na porta do armário de carvalho branco — suficiente para impedir que ela mexesse em seus cabelos e tirasse a peruca do lugar.

— Meu Deus. — Miranda teria caído no chão se ele não a tivesse segurado com sua misteriosa força. — Quem poderia imaginar que você era isso tudo embaixo desse terno da Brooks Brothers?

— Só o meu alfaiate. — Um pouco atrasado, segurou a cabeça dela para um beijo.

— Quando você disse que precisa ir embora?

— Amanhã à noite. Mas tenho tempo hoje. — E poderia usar para estudar a casa. — Você tem uma cama?

Miranda passou os braços em volta do pescoço dele.

— Tenho quatro. Por onde você quer começar?

 

— VOCÊ PARECE muito satisfeito — comentou LeClerc assim que ele colocou as malas no chão do vestíbulo da casa em Nova Orleans.

— Trabalho feito. Por que eu não estaria satisfeito? — Luke abriu sua pasta e pegou um bloco cheio de anotações e desenhos. — A planta da casa. Dois cofres, um na suíte principal, outro na sala de estar. Ela tem um Corot no corredor do térreo e um maldito Monet sobre a cama.

LeClerc resmungou ao olhar as anotações.

— E como foi que você descobriu o quadro e o cofre no quarto dela, mon ami?

— Deixei que ela acabasse comigo na cama. — Sorrindo, Luke tirou a jaqueta de couro. — Estou me sentindo tão vulgar.

— Casse pas mon cceur — murmurou LeClerc, achando divertido. — Da próxima vez, vou pedir para Max mandar que eu vá.

— Bonne chance, velho. Uma hora com aquela mulher acabaria com você. Jesus Cristo, você não acreditaria no que ela faz... — Parou ao escutar um barulho no topo da escada. Roxanne estava parada lá, urna das mãos segurando o corrimão. Seu rosto estava branco, gelado, a não ser pelas bochechas vermelhas que podiam ser de constrangimento ou raiva. Sem falar nada, ela se virou e desapareceu. Ele escutou a porta batendo.

Agora, ele se sentia ainda mais vulgar, e sujo. Ficaria feliz em estrangulá-la por isso.

— Por que você não me disse que ela estava aqui?

— Você não perguntou — respondeu LeClerc simplesmente. — Allons. Max está no escritório. Ele vai querer saber o que você descobriu.

No andar de cima, Roxanne estava deitada de bruços na cama, lutando para não demonstrar fraqueza. Não daria essa satisfação a ele. Não precisava dele, não o desejava. Não se importava. Se ele quisesse passar o tempo transando com prostitutas de luxo, seria problema dele.

Maldito era ele por gostar.

Havia uma dúzia — bem, pelo menos meia dúzia — de homens que adorariam livrá-la do fardo de sua virgindade. Talvez estivesse na hora de escolher um.

Poderia se gabar. Poderia ostentar as suas descobertas sexuais bem embaixo do nariz dele.

Não podia tomar uma decisão como essa com raiva.

Mas também não podia ficar sentada, esperando nas coxias enquanto os homens se divertiam sozinhos. Quando eles entrassem na casa em Potomac, ela estaria lá com eles.

 

— ESTOU TOTALMENTE preparada, pai. — Roxanne tirou uma blusa perfeitamente dobrada de sua mala e colocou na gaveta da cômoda em sua suíte do Washington Ritz. — E eu cumpri a minha parte do acordo. — Arrumou as peças íntimas na gaveta de cima. — Terminei o primeiro ano em Tulane com uma ótima média final. E tenho a intenção de continuar estudando quando as aulas começarem no outono.

— Fico muito feliz com isso, Roxanne. — Max estava na janela. Atrás dele, o sol de Washington esquentava o asfalto, e o calor se erguia novamente em forma de fumaça. — Mas esse trabalho está sendo planejado há meses. Seria mais sábio que você debutasse em algo menor.

— Prefiro começar por cima. — Com a precisão de seu senso de arrumação nato, ela começou a pendurar vestidos e roupas de festa no armário. — Não sou uma novata, e você sabe disso. Faço parte desse lado da sua vida, nos bastidores infelizmente, desde que eu era criança. Consigo abrir fechaduras também, geralmente mais rápido do que LeClerc. — Sabendo bem o que estava fazendo, sacudiu um vestido de seda que estava dobrado. — Sei muita coisa sobre motores e mecânica graças a Mouse. — Depois de fechar as portas do armário, lançou um olhar tranquilo para o pai. — Sei mais de computadores do que qualquer um de vocês. Você sabe muito bem que esse tipo de conhecimento é inestimável.

— Apreciei muito a sua ajuda nos estágios iniciais desse trabalho, porém...

— Não tem porém, papai. Está na hora.

— Os aspectos físicos são tão importantes quanto os mentais — começou ele.

— Você acha que tenho malhado cinco horas por semana há um ano para ficar mais saudável? — Ela deu um passo atrás. Aquele era um momento decisivo. Roxanne estava determinada, e colocou as mãos na cintura. - Você está me impedindo de fazer isso por motivos paternais, para não me levar para o caminho da desonestidade?

— Certamente não. — Ele pareceu chocado, depois ofendido. — Eu considero o meu trabalho uma antiga e inestimável forma de arte. Assalto é uma profissão muito honrada, menina. Bem diferente daqueles criminosos que roubam as pessoas pelas ruas ou aqueles trapalhões gananciosos que assaltam bancos com armas em punho. Nós somos seletivos. Somos românticos. — A voz dele estava cheia de paixão. — Somos artistas.

— Bem, então. — Ela deu um beijo no rosto dele. — Quando começamos?

Ele encarou o rosto sorridente e presunçoso e começou a rir.

— Você me dá muito orgulho, Roxanne.

— Eu sei, Max. — Deu-lhe outro beijo. — Eu sei.

 

OKENNEDY CENTER se rendeu às grandes ilusões, assim como as câmeras de televisão que filmavam o evento para um especial que iria ao ar no outono. Max apresentou o show de cento e dois minutos, em três atos, com orquestra completa, iluminação complexa e trajes elaborados,

Começava com Max sozinho no palco escuro, iluminado por um único holofote, como uma lua cheia. Estava envolto num manto azul-marinho, pespontado com fios prateados cintilantes. Em uma das mãos segurava a varinha, também prateada, que brilhava sob a luz. Na outra mão, uma bola de cristal.

Merlin também devia estar desse modo, quando tramou o nascimento de um rei.

Feitiçaria era o tema, encenou o feiticeiro místico com dignidade e drama. Levantou a bola na ponta dos dedos. Luzes piscavam enquanto falava com a plateia sobre magia, encantos e dragões, alquimia e bruxaria. Enquanto observavam já entretidos pelos efeitos teatrais, a bola começou a flutuar pelas dobras do manto de veludo, sobre a ponta da varinha mágica, girando alto, acima de sua cabeça, ao dizer um encanto. Durante todo o tempo, luzes piscavam dentro da bola, saltando do vermelho-escarlate ao azul-safira, do amarelo-âmbar ao verde-esmeralda, refletindo em seu rosto altivo. A plateia prendeu a respiração quando a bola desceu em direção ao chão, aplaudiram quando parou a centímetros de ser destruída, girando em círculos crescentes, subindo, subindo em direção às mãos estendidas de Max. Mais uma vez, segurou-a nas pontas dos dedos. Bateu uma vez com a varinha mágica e a jogou para o alto. A bola se transformou numa chuva de prata, caindo sobre o palco, antes de escurecer.

Quando as luzes se acenderam de novo, segundos depois, era Roxanne quem estava no centro do palco. Vestida toda em prata reluzente. Estrelas brilhavam em seus cabelos. Nos braços apenas uma coluna de lantejoulas. Em pé, ereta como uma espada, braços cruzados sobre o peito, olhos fechados. Quando a orquestra começou a tocar os acordes da sexta sinfonia de Beethoven, ela começou a bailar. Abriu os olhos.

Falou de feitiços lançados e sobre amores perdidos, bruxaria que não deu certo. Quando descruzou os braços, levantou-os para o alto, faíscas voaram de seus dedos. Seus cabelos, uma cascata de cachos até quase os ombros, começaram a balançar com um vento invisível. O foco dos holofotes se ampliou para mostrar uma pequena mesa a seu lado, sobre ela um sino, um livro e uma vela apagada. Com um movimento das mãos, acendeu as chamas, que subiam e desciam como se respirassem. Quando passava as mãos sobre as velas, as chamas pingavam na palma de sua mão, jorrando do pavio numa cascata dourada.

Um movimento de suas mãos, e as páginas do livro começaram a virar devagar, depois cada vez mais rápido até se formar um turbilhão. O sino se ergueu da mesa entre suas mãos estendidas. Quando balançou as mãos, ele soou. De repente, embaixo da mesa onde não havia nada, três velas queimavam. O fogo foi aumentando até que a mesa ficasse em chamas, com Roxanne de pé atrás dela, o rosto coberto pela luz e pelas sombras. Estendeu os braços e não havia mais nada além de fumaça. No mesmo instante, outro holofote se acendeu. Luke estava lá, no fundo do palco à esquerda.

Estava elegantemente vestido de preto com acabamentos em dourado. A incrível maquiagem de Lily acentuara suas maçãs do rosto e arqueara as suas sobrancelhas. Seus cabelos negros, quase tão longos quanto os dela, esvoaçavam. Olhou para Roxanne, uma mistura de deus e pirata. O coração traidor dela bateu forte, antes que pudesse disfarçar seu desejo.

Encarou Luke, que estava do outro lado do palco, com fumaça dançando entre eles. A postura dela era desafiadora, com a cabeça para trás, um braço para cima, o outro estendido ao lado. Um feixe de luz saía das pontas de seus dedos na direção de Luke. Ele ergueu a mão parecendo pegá-lo. A plateia irrompeu em aplausos conforme o duelo continuava. Os combatentes se aproximaram, girando fumaça, lançando fogo enquanto luzes douradas e róseas se acendiam, simulando o nascer do sol.

Roxanne colocou os braços sobre os olhos, como para proteger-se. Então, seus braços e cabeça caíram devagar. O vestido prateado brilhava, refletindo na luz enquanto o corpo dela balançava, como se estivesse ligado por fios às mãos de Luke. Ele a rodeou, passando as mãos ao seu redor, a poucos centímetros de tocá-la. Passou a mão aberta na frente de seus olhos, mostrando o transe, depois, lentamente, bem lentamente, a trouxe de volta. Os pés dela se elevaram do palco. Suas costas ficaram em linha reta como uma lança enquanto ela flutuava, até se deitar, em nada mais do que colunas de fumaça azul.

Ele girou uma vez e, quando olhou para o público de novo, segurava uma fina argola prateada. Com a graça de um dançarino, passou a argola da cabeça aos pés dela, deslizando-a pelo corpo de Roxanne. Em um gesto não ensaiado, inclinou-se, como se fosse beijá-la. Sentiu o corpo dela se enrijecer quando seus lábios pararam a um milímetro de distância.

— Não estrague tudo, Rox — sussurrou. Então, arrancou sua capa e jogou sobre ela. Passaram-se alguns instantes, e a forma por debaixo da capa parecia derreter. Quando a capa caiu ao chão, Luke tinha um cisne branco em seus braços.

Ouviu-se um estrondo, como de um trovão, vindo dos bastidores. Luke se abaixou para pegar sua capa, rezando para que o maldito cisne não atrapalhasse esse momento. Agachou-se sacudindo a capa sobre a cabeça. E desapareceu.

— Eu não gostei do improviso — disse Roxanne a Luke no momento em que se encontraram.

— Não? — Entregou o cisne a Mouse e sorriu para ela. — Achei que daria um toque especial. O que achou, Mouse?

Mouse acariciou o cisne, era o único que podia fazer isso sem arriscar os próprios dedos.

— Bem... eu acho que deu um toque especial, sim. Tenho que dar o lanche de Myrtle.

— Viu? — Luke apontou depois que Mouse se retirava. — Adorou.

— Tente isso novamente, e eu é que vou improvisar. — Ela cutucou sua camisa. — Você vai acabar com os lábios sangrando.

Agarrou os pulsos dela antes que ela fosse embora. Pelo som dos aplausos, sabia que Max e Lily estavam fazendo uma grande apresentação. Suas emoções estavam cada vez mais tumultuadas. Achava que nunca se sentira tão bem em toda sua vida.

— Escute, Rox, o que fazemos no palco é um show. Um trabalho. Exatamente como o que vamos fazer amanhã à noite em Potomac. —Algum demônio interior fez com que ele se aproximasse mais, imprensando-a entre ele e a parede. — Nada pessoal.

O sangue estava pulsando, mas Roxanne abriu um sorriso amigável.

— Talvez você esteja certo.

Ele podia sentir seu perfume, a maquiagem, o suave perfume do suor do palco.

— É claro que eu estou certo. É só uma questão de... — Expirou forte, quando ela lhe deu uma cotovelada no saco. Ela se afastou rapidamente, com um sorriso bem mais sincero.

— Nada pessoal — disse ela com doçura. Entrou em seu camarim, fechou e trancou a porta. Era hora de mudar de fantasia.

A próxima vez que teve de lidar com ele, estavam quase cara a cara, só com uma fina placa de compensado entre eles. Estavam trancados em uma caixa e tinham apenas alguns segundos antes da transmutação.

— Faça aquilo de novo, querida — sussurrou Luke enquanto mudavam de posição. — E eu juro que bato em você também.

— Oh! Estou tremendo. — Roxanne pulou para fora da caixa no lugar de Luke sob calorosos aplausos.

Fizeram suas reverências depois do final do número. Luke deu um beliscão nela forte o bastante para deixar um hematoma. Roxanne pisou forte em seu pé.

Ele se curvou em agradecimento, e com um floreio fez surgirem rosas do nada e ofereceu a ela, que aceitou, mas, antes que pudesse lhe agradecer a cortesia, ele se afastou. De jeito nenhum deixaria o golpe sem um troco. Curvou-a para trás num mergulho exagerado e a beijou.

Ou, o que parecia ser um beijo para a plateia. Ele a mordeu.

— Seu desgraçado. — Forçou um sorriso com os lábios latejantes. Chegaram para trás enquanto Max fazia sua aparição final. Luke pegou a mão de Roxanne. Arregalou os olhos quando ela torceu seu polegar.

— Por Deus, Rox, as mãos não. Não posso trabalhar sem elas.

— Então fique longe de mim, meu camarada. — Soltou-o, satisfeita com a ideia de que o dedo doeria tanto quanto seus lábios. Juntaram-se a Max e Lily no meio do palco para uma reverência final.

Eu amo o show business — disse Roxanne, rindo com vontade.

O bom humor em sua voz fez Luke mudar de ideia e não dar um chute no trazeiro dela. Pegou a mão dela novamente, com mais cuidado.

- Eu também.

ELA TAMBÉM não via vantagem em começar uma briga. A recepção elegante na Casa Branca encerraria a noite com perfeição. Sabia que Max era completamente apolítico. Votava porque considerava um direito e um dever, mas não o fazia com a mesma alegria descontraída com que apostava.

Max não entrava de cabeça.

Em Washington, não era a política que atraía Roxanne, e sim o ambiente formal, pomposo, que a política propiciava. Bem diferente de Nova Orlens, pensava, admirando os dançarinos vestidos com elegância e conservadorismo rodopiando pelo salão.

— Parece que a mágica virou seu trabalho.

Roxanne se virou, o sorriso agradável que a acompanhava se transformou em puro choque.

— Sam, o que faz aqui?

— Aproveitando as festividades. Estou me divertindo quase tanto quanto me diverti na sua apresentação. — Pegou a mão dela, levando os dedos retesados até seus lábios.

Ele havia mudado consideravelmente. O adolescente magro e malvestido tinha se transformado em um homem esbelto e impecável. Os cabelos cor de areia tinham um corte tão conservador quanto o smoking que usava. Na mão, brilhava um discreto anel de brilhante. Roxanne sentiu o cheiro de perfume masculino quando seus lábios roçaram em sua pele.

Estava bem barbeado, seu rosto brilhava tanto quanto as antiguidades fabulosas que cobriam a Casa Branca. Tal como o ambiente que os rodeava, ele exalava uma forte e inconfundível aura de riqueza e sucesso. Assim como na política, ela pensou, por baixo dessa aura brilhante, está escondida a sujeira da corrupção.

— Você cresceu, Roxanne. E ficou linda.

Ela puxou sua mão das mãos dele. Onde ele tocara, sua pele formigava, como se tivesse chegado muito perto de uma corrente que poderia ser fatal.

— Eu diria o mesmo sobre você.

Os dentes dele brilhavam. Aqueles que perdera na briga com Luke foram substituídos com perfeição.

— Por que não diz... enquanto dançamos?

Ela poderia ter recusado sem rodeios, educadamente. Tinha habilidade para tal, mas estava curiosa. Sem uma palavra, moveu-se com ele e se juntou ao ritmo dos dançarinos.

— Eu poderia dizer — começou ela, mais do que surpresa por encontrá-lo feliz e realizado — que a Casa Branca era o último lugar onde eu esperava revê-lo. Mas... — olhou nos olhos dele — os gatos sempre caem de pé.

— Ah, eu sempre planejei ver você... todos vocês, de novo. Engraçado que o destino tenha feito isso em um ambiente tão... poderoso. — Ele a puxou mais para perto, gostando da forma como ela conseguia manter aquele corpo esguio e macio, rígido, e ainda assim seguir seus passos com a fluidez da água. — O show dessa noite foi muito superior àqueles showzinhos naquele clube sujo de French Quarter. Melhor até do que o espetáculo que Max criou para o Magic Castle.

— Ele é o melhor que há.

— Seu talento é fenomenal — concordou Sam. Analisou o rosto dela, viu seus olhos se apertarem. O apelo sexual era forte demais. Mexeu-se, só o suficiente para que ela sentisse sua ereção. — Mas admito que você e Luke . tiraram o meu fôlego. Um showzinho bem sexy aquele.

— Uma ilusão — disse ela friamente. — Sexo não tem nada a ver com isso.

— Se havia um homem que não estivesse excitado quando você levitou, ele está morto e enterrado. — E como seria interessante tê-la, pensou. Sentir a agitação dela, querendo e não querendo. Seria um magnífico troco, ainda com o bônus do sexo quente e prazeroso. — Posso garantir a você que eu estou bem vivo.

Roxanne estava com o estômago embrulhado, mas manteve o olhar altivo.

— Se você acha que estou impressionada com a protuberância em suas calças, Sam, está enganado. — Ficou satisfeita ao perceber os lábios dele se apertarem de raiva antes que continuasse. E, sim, ela percebeu que seus olhos também estavam assim. Astutos, sagazes e potencialmente maus. —Para onde você foi quando deixou Nova Orleans?

Agora ele não só a desejava, como queria magoá-la primeiro.

— Aqui e ali.

— E esse aqui e ali o trouxeram... — Fez um gesto. — Para cá?

— Esse mundo dá voltas. No momento, sou o braço direito do Senhor do Tennessee.

— Você está brincando.

— De maneira nenhuma. — Puxou-a para mais perto, abrindo a palma da mão nas costas dela. — Sou assessor do senador. E pretendo ser muito mais.

Levou apenas um momento para ela se recuperar.

— Bem, acho que combina com você, já que a política é um jogo de interesses. Suas indiscrições do passado não interferem nas suas ambições?

— Pelo contrário. Minha infância difícil me dá uma perspectiva mais solidária dos problemas de nossas crianças, nosso mais valioso bem. Sou um modelo a ser seguido, mostrando-lhes aonde podem chegar.

— Suponho que não vá colocar em seu currículo que usava uma criança ignorante para ajudá-lo a roubar os amigos dela.

— Que equipe nós formávamos. — Riu, como se sua traição tivesse sido só uma brincadeira. — Podemos formar urna equipe melhor ainda agora.

— Sinto dizer que essa ideia me revolta. — Ela sorriu piscando os cílios. Quando ia se afastar, ele segurou sua mão com força o bastante para fazê-la estremecer.

— Acho que existem coisas que é melhor deixarmos para trás, esquecidas no fundo da memória. Você não acha, Roxanne? Afinal, se de repente você tiver vontade de fofocar sobre um velho conhecido, eu poderia fazer o mesmo. — Seu olhar era duro quando a puxou mais para perto. Para um observador casual, parecia que iam se beijar. — Eu não deixei Nova Orleans logo depois. Observar e fazer perguntas se tornaram meu negócio. Para saber todo tipo de coisas. A não ser que eu esteja enganado, você prefere que essas coisas sejam mantidas em segredo.

Ela sentiu sua cor sumir. De todas as coisas que podia controlar, nunca fora capaz de lidar com a delicada pele traidora de uma ruiva.

— Não sei do que está falando. Você está me machucando.

— Eu prefiro evitar isso. — Soltou o pulso dela. — A não ser que seja em circunstâncias mais íntimas. Talvez uma tranquilo jantar à meia-noite, em que poderíamos relembrar nossa velha amizade.

— Não. Sei que pode ser um duro golpe em seu ego, Sam, mas realmente não tenho o menor interesse em seu passado, presente ou futuro.

— Então não vamos falar de negócios. — Aproximou a boca da orelha dela e sussurrou uma sugestão tão descarada que Roxanne não tinha certeza se devia cair na gargalhada ou encolher-se. Não teve a chance de fazer nem uma coisa nem outra, uma mão agarrou seu braço e a puxou para trás.

— Tire suas mãos de cima dela. — O rosto de Luke estava cheio de ódio quando ficou entre Roxanne e Sam. Voltou aos 16 anos e estava pronto para a batalha. — Nunca mais encoste nela,

— Bem, parece que pisei nos calos de alguém. — Ao contrário das palavras ríspidas de Luke, Sam falou cordialmente. Estava certo, afinal. Nem todas as faíscas que vira no palco eram resultado de mágica e efeitos especiais.

— Luke. — Com plena consciência de que as pessoas estavam se virando para olhar para eles, Roxanne deu o braço para ele, o que lhe deu a chance de cravar as unhas em sua pele. — Uma recepção na Casa Branca não é lugar para fazer uma cena. — Sorria enquanto falava.

— Linda e sensata. — Sam apontou para ela, mas manteve os olhos em Luke. Então ainda estava lá, Sam ficou feliz com isso. A mistura de ciúmes e ódio ainda o tirava do sério. — Eu ouviria a dama, Caliahan. Afinal, esse é meu território, não seu.

— Você sabe quantos ossos tem na mão? — Luke falou de forma agradável enquanto seus olhos fulminavam Sam. — Se você tocar nela de novo, vai saber. Porque eu vou quebrar todos deles.

— Parem com isso. Eu não sou um osso para vocês dois disputarem. — Roxanne ficou aliviada quando viu seu pai e Lily abrindo caminho pela multidão. — Vamos esquecer isso, não vamos? Papai! — Entusiasmada virou-se para Max. — Você não vai acreditar quem está aqui. É Sam Wyatt. Depois de tanto tempo.

— Max. — Suave como uma cobra, Sam ofereceu a mão, depois, com a mão livre, pegou os dedos de Lily para beijá-los. — Lily, mais linda do que nunca.

— Vocês não vão adivinhar o que Sam anda fazendo. — Roxanne continuou a conversa como se fosse uma reunião de bons e velhos amigos.

Max não era homem de guardar rancor. Nem de baixar a guarda.

— Então, você se estabeleceu na política.

— Sim, senhor. E poderia dizer que devo isso a você.

— Poderia?

— Você me ensinou a capacidade de representar. — Sorriu, a imagem de um político jovem de sucesso. — Senador Bushfield, senhor. — Sam interceptou um homem careca, com olhos castanhos cansados e de sorriso torto. — Acho que já conhece os Nouvelle.

— Sim, sim. — O sotaque do Tennessee era forte e verdadeiro, apesar do cansaço no rosto do senador. — Um show maravilhoso, como disse mais cedo, Nouvelle.

— Eu não mencionei antes, senador, porque queria fazer uma surpresa para meus velhos amigos. — Com um olhar debochado para Luke, Sam colocou a mão nos ombros de Max. — Passei muitos meses com o mestre, como aprendiz de mágico.

— Não me diga? — Os olhos de Bushfield brilharam com interesse.

— Digo sim. — Sam sorriu e inventou a história de um jovem confuso e desencantado que foi bem encaminhado pela generosidade de um homem e de sua família. — Infelizmente — concluiu —, nunca estive apto a atuar no palco. Mas, quando deixei os Nouvelles, foi com um firme propósito. — Sorriu e, furtivamente, correu um dedo pelas costas de Roxanne. — Sem eles, não estaria onde estou hoje.

— Vou lhes dizer uma coisa. — Bushfield bateu nas costas de Max paternalmente. — Esse garoto vai longe. Afiado como uma faca e escorregadio como uma enguia. — Piscou para Max. — Talvez não fosse bom com abracadabra, mas certamente, com seu charme, consegue seduzir os constituintes.

— Nunca faltou charme em Sam — disse Max. — Talvez foco.

— Estou focado agora. — Lançou um olhar para Luke. — Eu sei fazer o que precisa ser feito.

 

— AQUELE FILHO da puta nojento estava com as mãos em cima de você.

Roxanne apenas suspirou. Era difícil de acreditar que Luke estivesse na mesma sintonia. Talvez porque ela o tivesse evitado a maior parte das vinte e quatro horas.

— Estávamos dançando, idiota.

— Ele estava babando em seu pescoço.

— Pelo menos, não me mordeu. — Lançou a Luke um sorriso com ar de superioridade e se recostou. Mouse dirigia silenciosamente pelos bairros, fazendo uma lenta varredura da área em torno da casa de Miranda. — Esqueça a sarjeta, Callahan, concentre-se no trabalho.

— Gostaria de saber o que se passa na cabeça dele — resmungou Luke. - Não é sinal de boa sorte encontrá-lo assim.

— Sorte é sorte, meu rapaz — falou Max, sentado no banco da frente. - O que fazemos com ela é que determina se é boa ou não. — Satisfeito com a atmosfera, Max tirou o paletó e a camisa com frente falsa, que escondia um fino suéter preto.

Já no banco de trás, Luke e Roxanne faziam transformações semelhantes.

— Fique longe dele.

— Vá à merda.

— Crianças. — Max sacudiu a cabeça olhando para trás. — Se não se comportarem, papai não vai levá-los para achar o tesouro escondido. Trinta e cinco minutos — disse ele a Mouse. — Nem mais, nem menos.

— Deixa comigo, Max. — Parou o carro no meio-fio e depois manobrou. Estava com um grande e feliz sorriso no rosto. — Merda pra você, Roxanne.

— Obrigada, Mouse. — Ela se esticou para beijá-lo antes de saltar do carro.

Era uma noite tranquila e úmida. A luz da pequena lua estava quase escondida pela neblina e pelo calor que pairavam no ar. Ela podia sentir o cheiro das rosas, do jasmim, da grama recém-cortada e do aroma de madeira do solo regado.

Moviam-se como sombras sobre o gramado, passando pelas azaleias que não estavam mais floridas e pelas flores do verão que começavam a brotar. Outra sombra passou por eles, fazendo Roxanne dar um forte encontrão em Luke. Seu coração foi à boca.

Mas era só um gato, correndo atrás de um rato ou de seu par.

— Nervosa, Rox? — Os dentes de Luke brilharam no escuro.

— Não. — Irritada, ela se apressou, tranquilizando-se com o balançar da pochete de couro em sua coxa.

— Eles têm uma floresta aqui — sussurrou Luke perto do ouvido dela. - Mas acho que não tem lobos. Talvez alguns cachorros selvagens.

— Vá pastar. — Mas ela olhava desconfiada para as sombras, procurando olhos amarelos ou presas.

Como planejado, separaram-se no canto leste da casa, Luke cortaria os fios do telefone, Max desarmaria o sistema de alarme.

— É preciso um toque de sabedoria. — Max instruía pacientemente sua filha. — Não se deve ter pressa nem ficar confiante demais. É preciso prática — disse ele, como fizera inúmeras vezes durante os ensaios. — Prática nunca é demais para um artista. Até mesmo a melhor das bailarinas continua tendo aulas durante toda sua vida profissional.

Ela o observou separando e descascando fios. Era um trabalho manual entediante, feito com alicates. Roxanne segurava firme a lanterna e observava cada movimento que ele fazia.

— Tem uma unidade lá dentro que opera em código. É possível, com tato, desarmá-la daqui.

— Como vai saber que desarmou?

Ele sorriu e deu um tapinha na mão dela, ignorando a dor que moía seus dedos.

— Fé, misturada com um pouco de intuição e experiência. E... aquela luzinha ali vai apagar. Et voilá — sussurrou quando o ponto vermelho ficou branco.

— Seis minutos se passaram. — Luke estava agachado atrás deles.

— Não vamos cortar o vidro. — Max continuou a dar instruções enquanto se dirigiam à porta do terraço de trás. — Tem alarme, como podem ver. Mesmo com o alarme desligado é complicado, e muito mais demorado do que usar a fechadura.

Pegou seu jogo de grampos, um presente de LeClerc uns trinta anos atrás. Com certa cerimônia, entregou a Roxanne.

— Tente sua sorte, meu amor.

— Pelo amor de Deus, Max, ela vai demorar muito.

Roxanne fez uma careta para Luke antes de se curvar para realizar sua tarefa. Nem mesmo ele poderia estragar esse momento. Fez como seu pai ensinara. Com paciência. Com mãos tão delicadas quanto as de um cirurgião, trabalhou na fechadura. Orelhas coladas na porta, olhos serenamente fechados.

Ela se imaginava dentro da fechadura, gentilmente liberando os tambores. Girando, rodando, manobrando.

Seus lábios se curvaram num sorriso suave quando ouviu o dique. Ah, o poder.

— É como música — sussurrou ela, levando lágrimas de orgulho aos olhos de Max.

— Dois minutos e trinta e oito segundos. — Max olhou para Luke quando apertou o botão em seu relógio. — Tão bom quanto você.

Sorte de principiante, pensou Luke, mas foi sábio o suficiente para não emitir sua opinião. Entraram em fila pela porta e depois se separaram novamente.

O desenho que Luke fizera da disposição da casa havia sido tão completo que não foi preciso subornar ninguém para obter as plantas. A atribuição de Roxanne eram as pinturas. Ela as cortou cuidadosamente das molduras e enrolou Corots, Monets e uma especial cena de rua de Pissarro, colocando-as dentro da mochila em suas costas antes de se juntar ao pai na sala de estar.

Sabia bem que não podia perturbá-lo durante o trabalho. Os dedos dele saltavam sobre os números do mostrador do cofre. Roxanne achava que ele parecia Merlin preparando seus feitiços. Seu coração se inchou de orgulho.

Trocaram sorrisos quando a porta se abriu facilmente.

— Rápido agora, querida. — Abriu caixas de veludo e estojos compridos e planos, despejando o conteúdo em sua pochete.

Querendo provar que aprendera bem, Roxanne pegou uma lupa e, sob a luz de sua lanterna, examinou as pedras do broche de safiras.

— Azul da Prússia — sussurrou. — Com um excelente...

Foi quando ouviram o latido de um cachorro.

— Ah, merda.

— Calma. — Max colocou a mão em seu braço para acalmá-la. — Ao primeiro sinal de problemas, dê o fora pela porta e volte direto para Mouse.

Seus nervos se agitaram como as cordas de um banjo, mas a lealdade se manteve inabalada.

— Não vou deixá-lo aqui.

— Vai sim. — Com movimentos rápidos, Max esvaziou o cofre.

No andar de cima, Luke fez uma careta para os cãezinhos que rosnavam. Não se esquecera deles. Pela tarde que havia passado ali, sabia que eles costumavam dormir na cama da dona.

Por isso, tinha dois ossos em sua pochete.

Tirou-os da bolsa e congelou quando Miranda resmungou com os cachorros, sonolenta, e rolou na cama. Então se agachou, uma sombra nas sombras, e gesticulou com os ossos.

Não falou nada. Não ousou arriscar, nem quando Miranda começou a roncar levemente. Mas os cães não precisavam de nenhum apelo verbal. Farejando o lanche, saltaram para fora da cama e usaram suas mandíbulas.

Satisfeito, Luke retirou a frente falsa da estante de livros e iniciou os trabalhos no cofre.

Foi um pouco perturbador, com a mulher dormindo no quarto. Não que ele nunca tivesse assaltado uma casa antes com uma mulher roncando por perto. Mas nunca com uma mulher com quem compartilhara a mesma cama.

Um pouco mais de emoção, pensou.

E você não sabia que a sedutora Miranda dormia completamente nua?

A excitação que ele sentia ao abrir uma tranca, que era quase sexual, aumentou drasticamente. Na hora em que abriu o cofre, estava excitadíssimo e lutando para conter o riso diante do absurdo da situação.

Claro que sempre poderia deitar na cama e seduzi-la enquanto ela estivesse meio dormindo. Afinal, tinha a vantagem de saber que posições ela preferia.

E, além disso, ela o reconheceria no escuro, não tinha dúvidas.

Seria emocionante, sem dúvida, mas o tempo estava contra ele.

É claro que havia conveniências e prioridades. Como Max diria. Então,

novamente, ele também diria, ataque enquanto o ferro ainda está quente.

Meu Deus do Céu, pensou Luke, no momento seu ferro estava tão quente que poderia derreter pedra.

Que pena, gostosa, pensou, dando uma última olhada numa Miranda esparramada. Perguntou-se se ela consideraria uma rapidinha como pagamento pela perda das joias. Então, teve que abafar outra risada enquanto saía mancando do quarto.

— Você está dois minutos atrasado. — Roxanne estava na beira da escada, assobiando para ele. — Eu já ia subir. — Seus olhos se apertaram na escuridão. — Por que você está andando desse jeito? — Luke só bufou com um riso abafado e continuou mancando escada abaixo.

— Você se machucou? Você está... — Parou de falar quando percebeu o que o estava incomodando. — Meu Deus, você é um pervertido.

— Apenas saudável, como todo menino americano, Roxy.

— Doente. — Afastou-se, morrendo de ciúmes. — Nojento.

— Sou normal. É doloroso, mas sou normal.

— Ah, crianças. — Como um professor paciente, Max chamou a atenção. — Talvez possamos discutir isso no carro?

Roxanne continuou a sussurrar insultos enquanto corriam pelo gramado. Quando chegaram ao carro, a emoção da noite toda tomou conta deles. Ela se jogou no banco atrás de Mouse, rindo. Beijou-o, enquanto ele dirigia sonolento pela rua. Deu um beijo estalado em Max, e como se sentia generosa, e talvez um pouco vingativa, virou-se e pressionou os lábios nos de Luke.

— Meu Deus.

— Espero que você sofra. — Recostando-se, ela abraçou a bolsa cheia de joias sobre os seios. — Ok, papai. Quando iremos repetir?

 

R0XANNE ANDAVA de um lado para o outro na loja de Madame, entre cúpulas enfeitadas e molduras de quadros, varinhas de cristal e portajoias. Com um jeans desbotado e uma enorme camiseta do New Orleans Saints, ela parecia exatamente o que era. Uma universitária recém-formada esperando sua vida começar.

Madame cuidadosamente calculava o troco de um cliente. Após trinta anos nos negócios, ela continuava evitando as distrações modernas, como, por exemplo, caixa registradora. A velha caixa de charutos pintada à mão lhe servia muito bem.

— Aproveite — disse ela, balançando a cabeça enquanto um freguês saía da loja com um papagaio de pelúcia embaixo do braço. Turistas, ela pensou, compram qualquer coisa. — Então, pichouette, veio me mostrar seu diploma universitário?

— Não. Acho que Max mandou emoldurar. — Deu um leve sorriso, brincando com uma xícara de porcelana que tinha uma lasca na alça dourada. — Parece que eu descobri a cura do câncer em vez de apenas me matar de estudar nos quatro anos em que passei em Tulane.

— Querida, formar-se em quinto lugar na turma não é pouca coisa.

Roxanne deu de ombros com desdém. Estava inquieta, muito inquieta, mas não sabia por quê.

— Só precisei me dedicar. Tenho boa memória para detalhes.

— E isso lhe incomoda?

— Não. — Roxanne colocou a xícara no lugar e respirou fundo. — Estou preocupada com meu pai. — Foi um alívio dizer isso em voz alta. — Suas mãos não são mais as mesmas.

Era algo que ela não podia conversar com ninguém, nem mesmo com Lily. Todos sabiam que a artrite estava ganhando de Max, inchando suas juntas, enrijecendo seus dedos ágeis. Não havia médico, remédio ou massagem que resolvesse. Roxanne sabia que a dor não era nada comparada ao medo de perder o que ele mais amava. Sua mágica.

— Nem mesmo Max pode parar o tempo, petite.

— Eu sei, e entendo, mas não consigo aceitar. Está o afetando emocionalmente, Madame. Ele se entocou, passa tempo demais sozinho em seu escritório pesquisando sobre aquela maldita pedra mágica. E piorou, depois que Luke se mudou ano passado.

Madame levantou a sobrancelha com amargura.

— Roxanne, quando um homem se torna um homem, precisa de seu próprio espaço.

— Só para poder levar mulheres.

Madame virou os lábios.

— Isso é motivo suficiente. E ele ainda está por perto, no bairro. Ele não continua trabalhando com Max?

— Continua sim. — Roxanne assentiu com desdém. — Eu não queria mudar de assunto. É com meu pai que estou preocupada. Desde que ele ficou obcecado por aquela maldita pedra, não consigo me aproximar dele como antes.

— Pedra? Diga-me, que pedra é essa?

Roxanne se encostou no balcão, pegou o baralho de tarô que Madame deixava lá e começou a embaralhar.

— A Pedra Filosofal. É uma lenda, Madame. Uma ilusão. Diz a lenda que tudo que for tocado por essa pedra se transforma em ouro. E...— Lançou um olhar significativo. — Devolve a juventude aos idosos, a saúde aos enfermos.

— E você não acredita nessas coisas? Você, que viveu a vida toda com magia?

— Eu sei como a magia funciona. — Roxanne cortou as cartas e fez uma cruz celta. — Suor e prática, distração e momento certo. Emoção e drama. Eu acredito na arte da magia, Madame, não em pedras mágicas. Não no sobrenatural.

— Entendo. — Madame levantou uma sobrancelha para as cartas no balcão. — No entanto, vem em busca de respostas aqui?

— Hã? — Distraída interpretando as cartas, Roxanne franziu a testa e corou. — Só para passar o tempo.

Antes que pudesse juntar as cartas, Madame pegou sua mão.

— Uma vergonha atrapalhar uma leitura. — Madame debruçou sobre as cartas. — A menina está pronta para se tornar uma mulher. Há uma viagem à vista, em breve. Tanto literal quanto figurativamente.

Roxanne sorriu. Não se conteve.

— Vamos a um cruzeiro. Para o norte, no Saint Lawrence Seaway. Vamos nos apresentar, é claro. Max vê como férias a trabalho.

— Prepare-se para mudanças. — Madame tocou na carta da Roda da Fortuna. — A realização de um sonho, se você for sábia. E a perda do mesmo. Alguém de seu passado. Tristeza. Tempo de cura.

— E a carta da morte? — Roxanne ficou surpresa quando sua pele se arrepiou ao ver o esqueleto sorridente.

— A morte persegue a vida desde o primeiro sopro. — Madame tocou a carta gentilmente com o dedo. — Você é muito jovem para senti-la sussurrando em seu ouvido. Mas esta é a morte que não é a morte. Prossiga em sua jornada, pichouette, e aprenda.

 

LUKE ESTAVA mais do que pronto para partir. Não havia nada que quisesse fazer mais do que sair da cidade. Sobre a mesa do café, o último pagamento de Cobb, selado e endereçado.

Durante os últimos anos, a demanda por dinheiro fora tão frequente quanto o pagamento de uma hipoteca. Dois mil aqui, quatro ali, uma média de cinquenta mil por ano.

Luke não se importava com o dinheiro, isso ele tinha muito. Ainda precisava controlar a náusea cada vez que encontrava um cartão-postal em branco em sua caixa de correio.

No cartão vinha escrito 2K, ou talvez 5K quando Cobb ficava sem sorte, e a caixa postal. Nada mais.

Luke teve quatro anos para reconsiderar a inteligência de Cobb. O homem era bem mais esperto do que Luke jamais acreditara. Um tolo teria forçado a barra e secado a fonte. Mas Cobb, o velho e bom Al, do poderoso cinto, sabia o valor do constante pinga-pinga.

Assim, Luke estava mais do que pronto para se livrar dos cartões-postais, da sensação desagradável de ter alguém sempre em seu pescoço, de se preocupar com Max e sua opressora obsessão por uma pedra mágica que não existia.

Ficariam muito ocupados no navio tendo que se preocupar com as apresentações, portos de escala e o belo trabalho que planejaram para Manhattan.

Quando tivesse tempo livre, Luke planejava se enfiar na piscina com fones no ouvido e mergulhar o nariz em um livro, enquanto alguma garçonete ninfeta não deixaria faltar cerveja gelada.

 

De uma forma geral, a vida era boa. Tinha um pouco mais de dois milhões de dólares em contas na Suíça, a mesma quantia em títulos e ações nos Estados Unidos, além de alguns investimentos em imóveis modestos. Em seu closet, ternos de Savile Row e Armani, embora ainda preferisse suas calças jeans Levi's. Talvez se sentisse mais à vontade em tênis Nike, mas havia sapatos Gucci bem engraxados em sua sapateira e uma coleção de botas John Lobb. Dirigia um Corvette vintage e pilotava seu próprio Cessna. Adorava charutos importados e champanhe francês, e tinha uma queda por mulheres italianas.

Resumindo, parecia que o batedor de carteiras morto de fome se transformara em um notável homem cosmopolita.

O preço para manter essa imagem foi chantagem — e reprimir uma pequena, irritante e incessante necessidade.

Roxanne.

Mas Max o ensinara a não se importar com o preço, a não ser que fosse o orgulho.

Luke pegou uma caneca de café e foi para a varanda observar o movimento lá embaixo em Jackson Square. Havia garotas em lindos vestidos de verão, bebês em seus carrinhos, homens com câmeras penduradas no pescoço. Avistou três crianças negras dançando sapateado. Seus pés se moviam freneticamente. Mesmo a distância, podia ouvir o ruído alegre do clique dos sapatos no concreto, o que atraía uma multidão, fato que o agradava.

A mulher que ele ouvira em seu primeiro dia em Nova Orleans não contava mais em French Quarter. Sentia falta de sua voz e, apesar de nunca ter sentido novamente o mesmo apelo emocional por outra pessoa, ficava satisfeito ao ver as caixas de papelão dos artistas de rua cheias de moedas.

Sem Max, pensou. Sem Max e Lily, ele poderia ter feito algo muito pior do que dançar por alguns centavos.

Aquilo o fez franzir a testa. Sabia por que Max estava, cada vez mais, deixando os truques de prestidigitação por conta dele e de Roxanne. Até compreendia por que Max estava dedicando tanto tempo, que antes era para preparar os truques de cartas, para a maldita pedra filosofal. E isso doía.

Max estava envelhecendo bem diante de Luke.

Uma batida na porta fez com que se virasse com relutância da cena de rua, mas quando a abriu foi puro prazer.

- Lily. — Luke se abaixou para beijá-la, para sentir aquele maravilhoso e familiar Chanel, antes de pegar as muitas sacolas e caixas que ela carregava.

— Fui às compras. — Ela sorriu arrumando os cabelos loiros. — Acho que é óbvio. Tive que dar uma passadinha aqui. Espero não estar atrapalhando.

— Você nunca atrapalha. — Ele jogou as compras em uma poltrona ao lado de uma mesa Belker. — Pronta para despachar Max e vir morar comigo?

Ela riu de novo, com aquele som borbulhante do champanhe que ele adorava. Agora já com mais de 40, continuava tão bonita e exuberante quanto quando Luke a viu pela primeira vez, soberba no palco. Era preciso de um toque a mais para manter a ilusão, e Lily tinha um estoque infinito.

— Se eu fizesse isso, seria para dar uma surra nessas moças que vivem entrando e saindo daqui.

— Trocaria todas elas pela mulher certa.

Dessa vez Lily não sorriu, mas havia um tipo de alegria diferente em seus olhos.

— Ah, tenho certeza disso, querido. Estou envelhecendo esperando você dar o próximo passo. Mas... — Continuou, antes que ele pudesse falar. — Eu não vim até aqui para falar de sua vida amorosa, por mais fascinante que ela possa ser.

Ele sorriu.

— Você vai me deixar vermelho.

— Provavelmente. — Estava orgulhosa dele, era tanto orgulho que quase fazia seu coração explodir. Ele era alto e esbelto, extremamente bonito. E mais, muito mais do que isso, havia uma bondade dentro dele que Lily sabia que havia cultivado. — Passei por aqui para ver se você precisava de ajuda com a arrumação das malas ou se precisa de alguma coisa, já que fui às compras. Meias, cuecas?

Ele não conseguiu se conter. Deixou a caneca de lado, segurou seu rosto e a beijou novamente.

— Eu amo você, Lily.

Suas bochechas coraram de satisfação.

— Também amo você. Sei como os homens detestam fazer malas e comprar cuecas e outras coisas.

— Tenho um monte.

— Provavelmente estão furadas e com elástico frouxo.

Com olhar solene, levantou a mão em juramento.

— Juro por Deus que não coloquei na mala nenhum par de meias ou cueca dos quais eu me envergonharia de estar usando se sofresse um acidente.

Ela fungou, mas seus olhos sorriram.

— Você está me ridicularizando.

— Estou mesmo. Que tal um café?

— Prefiro algo gelado, se tiver.

— Limonada? — Ele se dirigiu para a cozinha. — Acho que tive uma premonição de que você ia passar por aqui quando espremi esses limões de manhã.

— Você quem fez? Sozinho? — Ficou tão orgulhosa, como ficaria se ele tivesse ganhado o prêmio Nobel.

Ele pegou uma jarra de vidro verde-claro e copos combinando. Sua cozinha era pequena e arrumada, com um fogão a gás antiquado de duas bocas e uma pequena geladeira de cantos arredondados. Lily achava a coisa mais linda os potinhos de tempero que ficavam no parapeito da janela.

— Sei que você é capaz. — Doía um pouco saber que ele se virava muito bem sem ela. — Você sempre conseguiu fazer tudo o que colocava na cabeça. — Pegou o copo que ele ofereceu e mexeu o gelo, voltando para a sala. — Você tem muito bom gosto.

Levantou a sobrancelha, percebendo a maneira com que ela passava as pontas dos dedos pelas curvas de seu sofá de dois lugares, pela superfície de uma cômoda antiga.

— Aprendi por osmose.

— Com Max, eu sei. Eu tenho um tremendo mau gosto. Só gosto de coisas cafonas.

— Seja lá o que aprendi, aprendi com os dois. — Segurando a mão dela, levou-a para se sentarem no sofá. — O que está acontecendo, Lily?

— O que está acontecendo? Já disse, só vim fazer uma visita.

— Você parece preocupada.

— Que mulher não parece preocupada? — Mas desviou o olhar.

Ele passou os dedos pelo rosto dela. Ainda era macio como de um bebê.

— Eu quero ajudá-la.

Foi o bastante para fazer ruir a frágil parede que se esforçara construir para antes de bater na porta. Lágrimas turvaram sua visão quando tirou os óculos. Então, ele a abraçou.

— Estou sendo tola, sei que estou. Mas não posso evitar.

— Está tudo bem. — Beijou seus cabelos, sua têmpora e esperou.

— Acho que Max não me ama mais.

— O quê? — Queria ser solidário, acolhedor e compreensivo. Em vez disso, afastou-se rindo.— Isso é uma piada. Ah, merda sussurrou ele enquanto ela soluçava indefesa. — Não faça isso, vamos Lily, não chore. — Lágrima de mulher era a única coisa da qual ele não sabia se defender. - Desculpe por ter rido. O que fez com que dissesse algo tão absurdo?

— Ele, ele... — Foi tudo que ela conseguiu dizer enquanto chorava em seu ombro.

Mudança de tática, Luke pensou, e acariciou as costas dela.

— Tudo bem, querida, não se preocupe. Vou até lá agora mesmo dar um soco nele por você.

Isso fez com que risos se misturassem com as lágrimas. Ela não se envergonhava nem dos risos nem das lágrimas. Aprendera a não ter vergonha do que a fazia se sentir bem.

— É que eu o amo tanto, sabe? Ele foi a melhor coisa que me aconteceu. Você nem sabe como era, antes dele.

— Não. — Ficou sério, descansando o rosto em seus cabelos. — Não sei.

— Éramos tão pobres. Mas era bom. Minha mãe era maravilhosa. Mesmo depois que papai morreu, ela cuidou de tudo. Sempre dava um jeito para ter um dinheiro extra para o cinema ou para um sorvete. Só fui saber muito depois que ela ganhava dinheiro saindo com homens. Mas não era prostituta. — Lily levantou o rosto coberto de lágrimas. — Foi só a maneira que encontrou para cuidar de seus filhos.

— Então deve se orgulhar dela.

Nenhuma mãe, ela pensou, nunca teve um filho tão inteligente.

— Já fui casada. Max sabe disso, mas ninguém mais sabe.

— E ninguém mais vai saber, se é o que quer.

— Foi um grande erro, um erro terrível. Eu tinha só 17 anos, e ele era tão bonito. — Deu um leve sorriso, sabendo como parecia tola. — Fiquei grávida, então nos casamos. Ele não gostava de ser pobre nem de ter uma mulher que passava mal todas as manhãs. Ele me bateu algumas vezes.

Ela percebeu que Luke estava ficando tenso, ficou um pouco envergonhada e se apressou.

— Como continuou me batendo, eu disse que ia embora. Minha mãe não me criou para ser um saco de pancadas. Ele disse que minha mãe era uma puta e eu também. Dessa vez me bateu pra valer e eu perdi o bebê. — Ela estremeceu com a lembrança. — Fez um estrago dentro de mim e disseram que eu nunca mais poderia ter filhos.

— Sinto muito. — Não podia fazer nada além disso.

— Estou contando pra você para que entenda de onde vim. Nessa época minha mãe morreu. Saber o quanto ela havia trabalhado para que eu pudesse ter coisas boas me ajudou a ficar mais forte. Então, mesmo quando ele apareceu e disse o quanto estava arrependido e que nunca mais me bateria, eu o deixei e fui trabalhar em um parque de diversões. Trabalhei nos quiosques, li a sorte. Cometi pequenos furtos. Foi assim que conheci Max.

Ela continuou:

— Ele já era mágico naquela época. Ele e a pequena Roxanne. Acho que amei os dois no instante em que os vi, e quase estraguei tudo. Ele tinha perdido a esposa e talvez um pouco de si mesmo também. Eu o desejava. Então fiz o que qualquer mulher esperta faria, eu o seduzi.

Luke a abraçou mais forte.

— Aposto que ele fez disso um cavalo de batalha.

Isso a fez rir e suspirar.

— Ele podia ter se aproveitado e deixado por isso mesmo. Mas não, ele me acolheu e me tratou como uma dama. Mostrou como devem ser as coisas entre um homem e uma mulher, ele me deu uma família. E o mais importante de tudo, ele me amou, só a mim, você entende o que quero dizer.

— Sim, eu entendo. Mas acho que não foi só ele, Lily. Você também retribuiu dando o melhor de si.

— Sempre tentei. Luke, eu o amo há quase vinte anos agora. Acho que eu não suportaria perdê-lo.

— O que a faz pensar que isso possa acontecer? Ele é louco por você. Isso foi uma das coisas que sempre fez eu me sentir melhor, a maneira como vocês são, um com o outro.

— Ele está se afastando. — Ela respirou fundo algumas vezes para fortalecer a voz. — Ah, ele ainda é carinhoso comigo, quando se lembra de que estou por perto. Max nunca magoaria a mim ou qualquer outra pessoa de propósito. Mas passa horas e horas sozinho com livros, anotações e diários. Aquela maldita pedra. — Fungou procurando um lenço de renda em seu bolso. — A princípio, achei interessante. — Assoou o nariz. — Quero dizer, será que existe mesmo algo assim? Mas ele ficou tão obcecado que ninguém mais tem vez. E ele está se esquecendo das coisas. — Mordeu o lábio inferior e esfregou as mãos. — Pequenas coisas, como compromissos e refeições. Quase nos atrasamos para uma apresentação na semana passada porque ele esqueceu completamente. Sei que ele está preocupado porque não consegue mais fazer alguns truques de prestidigitação, e isso está afetando seu... — Parou, pensando como poderia explicar com jeito. — O que eu quero dizer é que Max sempre foi, assim, vigoroso sexualmente. Mas ultimamente nós quase não... você sabe.

Ele sabia, mas preferia não saber.

— Bem, eu entendo.

— Não me refiro só ao desempenho, por assim dizer. É o romance. Ele não me procura mais à noite, não pega na minha mão nem me olha mais com aquele olhar. — Outra lágrima brotou e escorreu pelo seu rosto.

— Ele está compenetrado, Lily, só isso. Toda aquela pressão para fazer outro especial, escrever outro livro, as turnês pela Europa. E depois os trabalhos. Max sempre deu muito de si no planejamento e na execução.

Não ia mencionar que no último trabalho achou Max de pé em frente ao cofre como se estivesse em transe. Ou que Max havia levado quase cinco minutos para voltar a si e lembrar o que estava fazendo.

— Você sabe o que eu acho — disse, pegando o lenço de renda e secando ele mesmo os olhos de Lily. — Acho que você está tão estressada quanto Max, com a formatura da Rox, com os preparativos para os shows de verão. E eu... espere! — Pegou sua mão, virando a palma para cima. — Vejo uma longa viagem pelo mar — continuou enquanto Lily dava uma risada chorosa. — Noites enluaradas, brisa salgada. Romance. — Piscou para ela. —E sexo incrível.

— Você não sabe ler a sorte.

— Você me ensinou, não foi? — Pressionou os lábios na palma da mão dela, depois pegou a mão dela na sua. — Você é a mulher mais bonita que já conheci, e Max a ama... quase tanto quanto eu. Ei, não comece a choramingar de novo, por favor.

— Tudo bem — disse ela, lutando contra as lágrimas. — Tudo bem.

— Quero que confie em mim quando digo que vai ficar tudo bem. Vamos ficar fora por uns tempos, relaxando, tomando champanhe e coquetéis no deque do navio.

— Talvez ele só precise descansar. — Ela deu de ombros com um último suspiro. — Eu não queria despejar isso tudo em você, Luke, mas fiquei bem feliz que estava aqui.

— Eu também. Despeje sempre que desejar.

— Já terminei. — Secando as lágrimas dos olhos, ela se endireitou. — Tem certeza de que não quer que eu faça suas malas?

— Já fiz. Estou tão ansioso quanto você para embarcar pela manhã.

— Estou ansiosa, isso mesmo. — Recuperada, pegou a limonada e tomou um gole para limpar a garganta. — Mas ainda não fiz nenhuma mala. Roxanne já arrumou tudo direitinho e em duas malas somente. Não sei como ela consegue.

— A pirralha é maníaca por organização desde que tinha 8 anos.

- Humm. — Ela deu mais um gole, observando Luke. — Ela não tem mais 8 anos. Espere para ver o vestido que ela comprou para o jantar do capitão.

Luke apenas deu de ombros e se sentou.

— E você? Alguma coisa sensual nessas sacolas? — perguntou ele.

— Algumas.

Sabendo como Lily gostava de exibir as suas compras, Luke continuou brincando.

— Vai mostrar pra mim?

— Talvez. — Ela piscou os cílios ainda úmidos e se virou para deixar o copo de novo. Seu olhar passou pela carta que ele deixara sobre a mesa, fixou-se nela e congelou. — Cobb. — Formou-se um nó em sua garganta.

- Por que está escrevendo para ele?

— Não estou. — Praguejando, Luke pegou a carta e enfiou em seu bolso. - Isso não é nada.

— Não minta para mim. — De repente sua voz ficou frágil como vidro. - Nunca minta para mim.

— Não estou mentindo. Eu disse que não estava escrevendo para ele.

— Então, o que tem no envelope?

Seu rosto ficou pálido e estático.

— Não tem nada a ver com você.

Por um instante, ela não disse nada, mas a emoção tomou conta de seu rosto em lágrimas.

— Você tem tudo a ver comigo — disse ela em voz baixa, enquanto se levantava. — Ou pelo menos pensei que tivesse. É melhor eu ir embora.

— Não vá. — Praguejou novamente e segurou o braço dela. — Que droga, Lily, não me olhe assim. Estou lidando com isso da maneira que sei. Deixe comigo.

— É claro. — Ela tinha um jeito que certas mulheres têm, de serem extremamente agradáveis deixando os homens de joelhos. — Você vai chegar lá em casa às oito, não vai? Não queremos perder o voo.

— Droga, que inferno. Eu estou pagando a ele, está bem? Mando dinheiro pra ele de vez em quando e ele me deixa em paz. — Seu olhar era feroz e mortal. — Deixa todos nós em paz.

Balançando a cabeça, Lily se sentou novamente.

— Ele está chantageando você?

— É um acordo de cavalheiros. Sem derramamento de sangue. — Furioso consigo mesmo, Luke caminhou até a janela. — Posso me dar ao luxo de manter esse acordo.

— Por quê?

Ele só balançou a cabeça. Não falaria sobre isso nem com ela nem com ninguém. Nem sobre o que tinha sido, nem sobre os pesadelos que o perseguiam por um ou dois dias depois que encontrava o cartão-postal em branco na caixa de correio.

— Enquanto você pagar, ele vai ficar atrás de você. — Lily falou com calma, bem atrás dele. Carinhosamente, colocou a mão em suas costas. — Ele nunca vai deixar você em paz.

— Talvez não. Ele sabe de coisas que me envergonham o suficiente para que eu pague para ele não contar para ninguém. — As dançarinas foram sapatear em outra vizinhança, Luke pensou. Pombos voavam pelo parque. — E ele pode insinuar muito mais, torcer mentiras com verdades, de uma maneira que eu não conseguiria conviver. Por isso custa a mim alguns milhares de dólares para manter essa paz ilusória. Para mim, vale a pena.

— Você não sabe que ele não pode mais machucar você?

— Não. — Então ele se virou, com os músculos tensos. — Eu não sei. Pior, não sei quem mais ele poderia machucar. Não vou arriscar, Lily. Nem mesmo por você.

— Não vou pedir que faça isso. Vou pedir que confie em mim o bastante para contar comigo. Sempre. — Ficou na ponta dos pés para beijar o rosto dele. — Sei que sou boba, volúvel...

— Pare.

Ela apenas riu.

— Querido, eu sei o que sou. E não fico triste com isso. Sou uma mulher de meia-idade que usa muita maquiagem, que vai morrer antes de deixar aparecer um cabelo branco. Mas dou apoio a quem eu amo. E amo você há muito tempo. Se achar que precisa, envie aquele cheque. Se ele pedir mais do que pode gastar, que me procure. Tenho minhas economias.

— Obrigado. — Ele pigarreou. — Mas ele não força muito a barra.

— Há mais uma coisa de que quero que você se lembre. Não há nada que você tenha feito, ou que poderia ter feito, de que eu me envergonhe. — Virou-se e começou a juntar suas sacolas. — É melhor eu ir para casa. Vou ficar metade da noite para escolher o que colocar nas malas. Ah, meu Deus. — Colocou as mãos no rosto. — Tenho que limpar meu rosto primeiro. Não posso sair em público com rímel pelo rosto todo. — Correu para o

banheiro, bolsa em punho. — Ah, Luke, você podia vir para casa comigo, passar a noite em seu antigo quarto. Vai ser mais fácil juntar as coisas pela manhã.

Vendo por esse lado, pensou, e enfiou as mãos nos bolsos. Seria bom ir para casa, mesmo que só por uma noite.

— Deixe-me pegar minhas malas — disse para ela. — Vou levá-la para casa em grande estilo.

 

AS ACOMODAÇÕES para os artistas a bordo do Yankee Princess não eram tão luxuosas quanto Roxanne esperava. Como tinham o status de convidados especiais, foram acomodados em cabines externas um pouco acima do nível da água.

A cabine com um beliche era tão pequena que ela ficou grata por não precisar d ividir o espaço nas seis semanas seguintes. Sua natureza prática fez com que entrasse logo em sua cabine para desarrumar as duas malas. Como de costume, tudo foi cuidadosamente dobrado ou pendurado no minúsculo armário. Era romântica o suficiente para querer se apressar para estar no deque no momento em que soasse o apito indicando que o navio ia zarpar.

Demorou-se ao arrumar os antigos frascos e garrafas que ela colecionava há anos, todos cuidadosamente preenchidos com perfumes e cremes. Fora difícil empacotá-los de uma forma que não quebrassem, e ela sabia que teria sido mais prudente o uso de embalagens plásticas. Mas ao ver todos eles ali, todas aquelas formas coloridas, sorriu. O peso extra e o incômodo tinham valido a pena.

Olhou-se no espelho, feliz por seus cabelos terem crescido e já terem passado dos ombros, depois da decisão precipitada de dois anos antes de cortá-los na altura do queixo. Seus cabelos também eram uma fonte de problemas, já que gastava muito tempo para secá-los e penteá-los. Mas era vaidosa o suficiente para considerar o tempo e o esforço bem gastos.

Satisfeita ao ver que o sistema interno de música tinha uma estação clássica, retocou a maquiagem — um pouco mais de sombra bronze nas pálpebras e uma pincelada a mais de blush nas maçãs do rosto. Isso não era exatamente uma vaidade, pensou. Parte do trabalho que a trupe Nouvelle aceitara era se misturar com os outros passageiros e ser sociável, apresentável e agradável.

Era um preço bem baixo para se pagar por uma viagem de seis semanas a bordo de um elegante hotel flutuante.

Pegando sua grande bolsa de lona, ela saiu da cabine e subiu. Os passageiros a bordo já enchiam os corredores estreitos, procurando suas cabines e explorando. Pilhas de malas estavam amontoadas na frente das portas das cabines. A vontade de roubar brotou no coração de Roxanne. Seria tão ridiculamente simples pegar uma coisa aqui, outra acolá. Como colher margaridas, pensou, sorrindo para um homem com a barriga redonda que usava boné de beisebol passando por ela.

Haveria tempo para diversão e jogos, lembrou-se. Seis longas semanas. Mas nesta tarde estava de folga. No topo da escada, virou e atravessou o Lido Lounge até o deque na popa do navio, onde passageiros ávidos bebericavam coquetéis, filmavam ou simplesmente se debruçavam nas grades esperando para acenar para o horizonte de Manhattan.

Pegou um copo com líquido rosado da bandeja de um garçom e, provando o drinque de rum extremamente doce, analisou seus companheiros de viagem.

Em um chute, Roxanne calculou que a idade média era de 65 anos. Havia algumas famílias com crianças, alguns casais em lua de mel, mas a grande maioria era de casais mais velhos, senhores e senhoras solteiros e alguns gigolôs à espreita.

— Acho que podemos apelidar de Navio Geriátrico — disse Luke bem perto do ouvido dela e quase fazendo com que ela entornasse a bebida de rum.

— Eu acho maravilhoso.

— Eu não disse que não era. — Apesar do tom de voz afiado, passou um abraço amigável em volta dos ombros dela. Decidira que, se iam passar as próximas semanas tão perto um do outro, deveriam tentar ser civilizados. — Olhe aquele cara.

Ele rejeitara o rum, preferindo uma garrafa de cerveja Beck's e gesticulava com ela na mão enquanto conversava com um senhor de cabeça grisalha usando um blazer de seis botões azul-marinho e elegantes calças brancas. Já havia um grupo de senhoras em volta dele o admirando.

— Joe Smooth.

— Do Palm Beach Smooths — disse ela, achando divertido. — Quanto você quer apostar que ele dança chá-chá-chá?

— Provavelmente sabe um ou dois passos de rumba. E olhe lá. — Fez um gesto de novo, dessa vez apenas arqueando a sobrancelha e fazendo Roxanne desviar o olhar. Perto da grade virada para o porto, estava uma grande e pesada loura com conjunto de moletom cor-de-rosa. Estava com uma câmera e um binóculo pendurados no pescoço, e ocupada levando cada hora um entre os goles de sua surpresa de rum. — A própria turista.

— Esnobe.

Ele apenas sorriu.

— Escolha você agora.

Ela olhou pelo deque, então tocou o lábio superior com a ponta da língua.

— Hummm. Vou escolher aquele. Tom Maravilhoso.

Luke analisou o oficial do navio, bronzeado, louro e lindo com seu uniforme branco. O humor dele mudou na mesma hora.

— Se você gosta do tipo.

— Gosto. — Não conseguindo resistir, ela soltou um suspiro exagerado. — Ah, eu gosto. Olha, lá vem o Mouse. — Roxanne acenou para que ele os visse. — O que está achando?

— É grandioso. — O grande rosto pálido estava corado de prazer. Músculos enchiam as mangas da camisa florida que Lily escolhera para ele. — Permitiram que eu descesse até a sala de máquinas. Precisava verificar o equipamento do show, mas disseram que mais tarde eu posso subir até a ponte.

— Tem mulheres lá embaixo? — perguntou Luke.

— Na sala de máquinas? — Mouse sorriu e balançou a cabeça. — Não. Só coladas nas paredes.

— Cole em mim, parceiro. Vou conseguir umas de verdade.

— Deixe ele em paz, seu monte de hormônios ambulante. — Para defender Mouse, Roxanne colocou a mão no braço dele. — Escutem. — Ela apertou enquanto escutava dois longos apitos. — Estamos zarpando.

— No deque de cima — murmurou Luke quando ela começou a levantar o pescoço.

Ela olhou para cima e os viu. Lily, parecendo alegre com um leve vestido azul esvoaçante, Max, arrojado com um paletó off-white e calças azul-marinho, e LeClerc, como uma sombra atrás deles.

— Ele vai ficar bem. — Luke pegou a mão dela e entrelaçou seus dedos.

— É claro que vai. — Afastou qualquer nuvem de dúvida. — Vamos subir, quero tirar umas fotos.

 

NÃO SERIA um passeio na praia. A primeira reunião de tripulação já

a bordo do navio afastou qualquer ideia de que as próximas seis semanas

seriam uma temporada de férias. Os Nouvelle fariam uma miniapresentação naquela noite para dar as boas-vindas aos passageiros, os outros artistas também fariam rápidas apresentações. Uma cantora francesa, um comediante que incrementava seus monólogos com malabarismo e o grupo de música e dança que era formado por seis membros e se chamava Moonglades.

Além de suas apresentações, solicitaram que eles ajudassem em outras atividades diárias que iam de bingos a excursões em terra. Quando descobriram que Roxanne falava francês fluentemente, logo a incumbiram de ajudar os dois intérpretes do navio.

As regras também foram passadas. Ser simpático e agradável com os passageiros era obrigatório. Ser íntimo, não. Aceitar gorjetas não era permitido, e não era de bom tom ficar bêbado. As refeições só seriam feitas depois que os passageiros fizessem as suas. E, no caso de algum problema no mar, os tripulantes só entrariam nos botes salva-vidas depois que todos os passageiros estivessem a salvo.

Alguns tripulantes mais experientes reclamaram um pouco quando as tarefas semanais foram entregues. O diretor do cruzeiro, Jack, um vigoroso veterano com dez anos de experiência em navios de cruzeiro, aceitou tranquilamente.

— Se precisarem de alguma coisa, é só pedir. E não liguem para esses ranzinzas. A maior parte das atividades com os passageiros é pura diversão.

— Isso é o que ele diz. — Uma loura, alta e esbelta, chamada Dori, abriu um lindo sorriso para Luke. — Se tiver algum problema em se adaptar, é só me avisar. — Ela sorriu para Roxanne para incluí-la no convite. — Teremos um ensaio rápido no teatro às três e meia. Fica no Promenade Deck, na popa.

— E o primeiro show é às oito — completou Jack. — Tirem um tempo para se familiarizarem com o navio.

ROXANNE GANHOU uma camiseta do Yankee Princess fúcsia, um broche com seu nome e um tapinha no ombro de boa sorte. Andou pelo navio, ensaiou, andou mais pelo navio, respondendo a perguntas, sorrindo, desejando boa viagem aos passageiros.

Quando a tarde já ia se tornando noite, conseguiu pegar uma maçã e uns pedaços de queijo no buffet que os passageiros tinham dizimado e os levou escondido para o camarim improvisado onde ela e Lily deveriam trocar de roupa para o primeiro show.

— Tem tantos deles — disse Roxanne, mordendo sua maçã. — E eles querem saber de tudo.

— Todos são tão legais e atenciosos. — Lily conseguiu evitar bater em um quadro e se retorceu para vestir a fantasia. — Deus, conheci pessoas do país inteiro. É como estar na estrada de novo.

— Max gosta disso, não é?

— Ele adora. Ama mesmo.

Isso era o suficiente para Roxanne, embora precisasse colocar a mão na barriga quando o navio balançava. — Você acha que vai continuar?

— 0 quê, querida?

— O balanço. — Soltou a respiração, deixando a maçã de lado para pegar sua fantasia.

— Ah, o navio? Parece que estamos sendo ninados, não acha? É tão reconfortante.

— Ok. — Roxanne engoliu seco.

Ela conseguiu sobreviver ao primeiro show antes que o navio que a ninava a mandasse correndo para sua cabine. Acabara de vomitar quando Luke entrou na minúscula cabine.

— Eu tranquei a porta — disse ela com toda dignidade que conseguiu juntar sentada no chão.

— Eu sei. Precisei de trinta segundos para abrir.

— O que eu quis dizer foi que, como tranquei a porta, isso provavelmente significa que queria ficar sozinha.

— Entendi. — Ele estava distraído molhando um pano com água fria. Ajudou-a a se levantar a levou para a cama. — Sente-se. Coloque isso na nuca.

Ele mesmo fez isso, o que tirou um suspiro agradecido dela.

— Como você sabia que eu estava passando mal?

Ele passou a mão pelas lantejoulas verde-esmeralda do vestido dela.

— Seu rosto estava da mesma cor da fantasia. Ficou evidente.

— Estou bem agora. — Ou esperava estar. — Vou me acostumar. — Os olhos dela estavam um pouco mais do que desesperados quando os levantou para fitá-lo. — Você não acha?

— Claro que vai. — Era tão raro ver Roxanne Nouvelle vulnerável que ele teve de resistir à vontade de abraçá-la e afastar todo o mal. — Tome isso. - Ele lhe deu dois comprimidos brancos.

— Suponho que não seja morfina.

— Sinto muito, apenas Dramin. Tome junto com uns goles de refrigerante.

Pegue. — Competente como um enfermeiro, ele virou o pano e pressionou o lado mais frio na nuca dela de novo. — Se não melhorar, o médico do navio vai cuidar de você.

— Imbecil. -- Mais irritada do que constrangida, ela tomou mais refrigerante e rezou para passar. — Eu andava em todos os brinquedos no parque. Uma noite no navio e já estou mareada.

— Vai passar. — Como a cor dela já estava quase normal, ele supôs que já estivesse passando. — Se você não estiver bem, podemos fazer o segundo show sem você.

— De forma alguma. — Ela se levantou, desejando que suas pernas e seu organismo estivessem firmes. — Um Nouvelle nunca perde um show. Só preciso de um minuto. — Voltou para o banheiro para lavar a boca e retocar a maquiagem. — Acho que fico devendo uma a você.— disse ao sair.

— Querida, você me deve muito mais do que uma. Pronta?

— Claro que estou pronta. — Abriu a porta e saiu. — Luke, não precisamos contar isso, precisamos?

Ele levantou as sobrancelhas.

— Contar o quê?

— Ok. — Sorriu. — Fico devendo duas.

 

COMO O ENJOO não voltou no dia seguinte, nem no outro, Roxanne

foi forçada a acreditar que o movimento do navio apenas contribuiu para o

cenário formado por estresse, rum em um estômago quase vazio e nervos.

Não era uma conclusão muito agradável para uma mulher que tinha orgulho de dizer que era capaz de lidar com qualquer coisa que aparecesse em seu caminho. Seus dias, porém, estavam cheios demais para ter tempo de pensar nisso.

Jack estava certo, afinal. A maior parte do trabalho era pura diversão. Gostava dos passageiros e dos jogos e eventos distribuídos pelo dia para mantê-los entretidos. O restante de sua família parecia estar pegando o espírito da coisa também. Max e Lily foram jurados de um concurso de dança, Mouse passava a maior parte de seu tempo livre rondando a casa de máquinas e os quartos da tripulação e LeClerc encontrou três camaradas para jogar pôquer.

O estresse que nem sabia estar sentindo quando embarcou estava cada vez mais se dissipando. Poderia ter sumido totalmente se não tivesse encontrado Max, na escada do Laguna Deck, parado, parecendo perdido.

— Pai? — Como ele não respondeu, ela se aproximou e tocou em seu braço. — Pai?

Ele levou um susto, e ela viu pânico nos olhos dele. Naquele instante, o sangue dela congelou. Viu mais do que pânico ali; viu uma confusão total. Ele não a reconheceu. Estava encarando-a e não a reconhecia.

— Pai — disse ela de novo, não conseguindo afastar o tremor de sua voz. — Você está bem?

Ele piscou, um músculo se mexia furiosamente no maxilar dele. Como uma nuvem que se afasta lentamente, a confusão sumiu de seu olhar, deixando apenas a irritação.

— Claro que estou bem. Por que não estaria?

— Bem, eu pensei que você... — Ela conseguiu colocar um sorriso no rosto. — Acho que você errou o caminho. Vivo fazendo isso.

— Sei exatamente para onde estou indo. — Max sentia a pulsação forte em seu pescoço.  Quase conseguia escutar. Não sabia. Por um momento, não foi capaz de se lembrar onde estava ou o que estava fazendo. Medo puro fez com que repreendesse a filha. — Não preciso de ninguém me vigiando. E não gosto que fiquem andando atrás de mim.

— Desculpe. — Seu rosto ficou sem cor. — Eu só estava subindo para a sua cabine. — Percebeu que tinha um livro embaixo do braço dele. Um antigo e surrado livro de alquimia. — Eu não tive a intenção de vigiar você.

— Com o orgulho ferido, ela saiu andando.

Uma onda de vergonha fez com que ele a segurasse.

— Desculpe-me. Não sei onde estava com a cabeça.

Ela apenas deu de ombros, um gesto distintamente feminino que servia para deixar qualquer homem humilhado.

Ele pegou a chave para abrir a porta da cabine. Mouse, LeClerc e Luke já estavam esperando.

— Muito bem, meus queridos. — Max puxou a única cadeira que havia ali e se sentou. — Hora de tratarmos de negócios.

— Lily não chegou ainda — comentou Luke, preocupado, quando Max olhou em volta do quarto com a expressão perdida.

— Ah, verdade.

Roxanne quebrou o silêncio desconfortável.

— Já tem pelo menos uma dúzia de passageiros inscritos para o show de talentos no fim da semana. Vai ser o máximo.

—  Quanto você quer apostar que alguém vai cantar "Moon River"? — perguntou Luke.

Roxanne estava esfregando uma mão na outra, ansiosa, mas sorriu.

— Nada. Ouvi dizer que a sra. Steiner sapateia. Talvez... — Fez uma pausa, aliviada quando viu Lily entrar.

— Desculpem o atraso. — Estava lindamente corada e tirou a câmera e

a bolsa dos ombros. — Está tendo uma demonstração de escultura em gelo

perto da piscina, eu me distraí. Ele fez um pavão incrível. — Sorriu para Max, que apenas fez um gesto indiferente.

— Muito bem, então. O que temos?

LeClerc uniu as mãos nas costas.

— DiMato na cabine sete-meia-sete. Brincos de brilhante, provavelmente dois quilates, relógio Rolex e um pingente de safira que deve ter uns seis quilates.

— Os DiMato estão comemorando bodas de ouro — disse Roxanne, pegando uma uva da cesta de frutas que estava sobre a cômoda. - O pingente foi o presente pelas bodas. Eles são tão fofos juntos.

Max sorriu, compreendendo.

— Mais alguma coisa?

— Bem, a sra. Gullager na cabine meia-dois-zero — falou Roxanne. —Um conjunto de rubi com bracelete, colar, brincos. Parece uma relíquia de família.

— Ah, ela é um amor. — Lily lançou um olhar de súplica para Roxanne. — Tomei chá com ela um dia desses. Ela mora em Roanoke, Virgínia, com dois gatos.

— Mais algum candidato? — Max fez um gesto com o braço incluindo todos.

— Tem Harvey Wallace na cabine quatro-três-meia. — Luke deu de ombros. — Abotoaduras e alfinete de gravata de brilhante, outro Rolex. Mas... merda, ele é um senhor tão divertido.

— Ele é legal — comentou Mouse. — Ele me contou que montou um De Soto 1962.

— Os Jamison — disse LeClerc entre os dentes. — Cabine sete-dez. Anel de brilhante, lapidação quadrada, uns cinco quilates. Anel de rubi. Possivelmente da Birmânia, cinco quilates também. Broche de esmeralda antigo...

— Nancy e John Jamison? — interrompeu Max. — Eu me diverti muito jogando bridge com eles no Promenade Deck ontem. Ele trabalha com alimentos processados e ela tem uma livraria na cidade de Corpus Christi.

- Bon Dieu — murmurou LeClerc.

— Somos um grupo um tanto sentimental, não acham? — Roxanne bateu na mão de LeClerc. — E uma vergonha para você, tenho certeza. — Depois de pegar outra uva, ela sentou em cima das pernas. — Não sei como podemos roubar de pessoas que estão convivendo com a gente diariamente. Principalmente gostando tanto delas.

Max juntou as mãos, bateu com os dedos no queixo.

— Você está certa, Roxanne. Uma vez que formamos um vínculo emocional, deixa de ser divertido. — Olhou para todos, avaliando seus rostos. — Concordamos então? Nenhum alvo esta semana?

Todos assentiram, menos LeClerc, que resmungou.

— Saúde. Luke pegou o copo com água mineral de Max e levantou um brinde. -- Ainda temos muito tempo para o fim das seis semanas. Vai acabar embarcando alguém de quem não vamos gostar.

— Então, reunião encerrada.

— Você tem um minuto? — perguntou Luke para Max enquanto todos saíam.

— Claro.

Luke esperou até ficarem sozinhos, mas, ainda assim, falou baixo, por precaução.

— Por que você está fazendo isso com Lily?

Max ficou boquiaberto.

— Como?

— Droga, Max, você a está magoando.

— Que absurdo. — Sentindo-se insultado, Max se levantou da cadeira para pegar seu livro. — De onde você tirou essa ideia?

— Da própria Lily. — Furioso demais para ser respeitoso, Luke agarrou o livro e o jogou na cama. — Ela foi me visitar um dia antes de viajarmos para Nova York. Desgraçado, você a fez chorar.

— Eu? Eu? — Perturbado com a ideia, Max se sentou. — Como?

— Com negligência — acusou Luke. — Desinteresse. Você está tão obcecado com essa tal pedra mágica que não consegue ver o que está acontecendo bem na sua cara. Ela acha que você não a ama mais. E, depois de ver como você a está tratando esses últimos dias, entendi de onde ela tirou isso.

Muito pálido, imóvel, Max encarou Luke.

— Essa é uma ideia estúpida. Ela não tem razões para duvidar dos meus sentimentos.

— Mesmo? — Luke se sentou na beirada da cama, inclinando-se para a frente. — Qual foi a última vez que você falou para ela sobre seus sentimentos? Você já se sentou com ela à luz da lua e escutou o mar? Você sabe o quanto ela se importa com as pequenas coisas, mas você se mexeu para fazer alguma dessas coisas? Você usou essa cama para algo além de dormir?

— Você está indo longe demais. — Max ficou tenso. — Longe demais.

— Estou mesmo. Não vou ficar parado vendo aquele olhar magoado no rosto dela. Ela beijaria o chão que você pisa e você não se incomoda nem em dar dez minutos do seu valioso tempo para ela.

— Você está errado. — Max olhou para os próprios punhos cerrados. - E., se Lily se sente assim, ela está errada. Eu a amo. Sempre amei.

— Você não me engana. Você nem olhou para ela quando ela entrou aqui.

— Estávamos tratando de negócios — começou ele, depois parou. Sempre se orgulhou de ser honesto, do seu jeito. — Talvez eu ande um pouco distraído ultimamente e mais do que um pouco envolvido com as minhas coisas. — Levantou os olhos que fitavam as mãos doloridas. — Eu nunca a magoaria. Eu cortaria o meu próprio coração antes de machucá-la.

— Diga isso a ela. — Luke se virou para a porta. — Não para mim.

— Espere. — Max pressionou os dedos nos olhos. Se cometera um erro, faria qualquer coisa para corrigir. Abriu um leve sorriso. E corrigiria com estilo. — Preciso de um favor.

O fato de Luke ter hesitado mostrou a Max o quão séria era a situação. E o quão sérios eram seus pecados.

— O quê?

— Primeiro, quero que essa conversa fique só entre nós dois. Segundo, depois da última apresentação de hoje à noite, eu agradeceria se você distraísse Lily por uns trinta minutos antes de ela voltar para a cabine. Depois, preciso que você garanta que ela venha diretamente para cá.

— Ok.

— Luke?

Ele já estava com a mão na porta, mas parou e olhou para trás. — O quê?

— Obrigado. De vez em quando um homem precisa que alguém lhe mostre seus erros e suas bênçãos. Você fez as duas coisas.

— Só acerte as coisas com ela.

— Farei isso. — Max abriu um enorme sorriso, então. — Isso, pelo menos, eu posso prometer.

 

— FIZEMOS um bom trabalho. — Roxanne se jogou em uma cadeira no canto da boate. A segunda apresentação fora um sucesso tão grande quanto a primeira.

— Nós arrasamos. — Luke se sentou, esticou as pernas. — Ë claro, com um público dessa idade nem é tão difícil.

Roxanne bufou.

— Não seja grosseiro. E faça alguma coisa útil, vá pegar um drinque pra mim e para Lily.

— Ah, acho que vou dispensar. — Lily olhou pelo salão iluminado, procurando Max. — Vocês, jovens, se divirtam.

— De jeito nenhum. — Luke segurou a mão dela. — Você não vai sair daqui antes de dançar comigo. — Enquanto ela ria, ele a puxou para a pista de dança onde todos dançavam "Beat it", de Michael Jackson.

— Isso é uma competição? — Dori se sentou na cadeira que Luke deixara vazia.

— É difícil acompanhá-la.

— Ela é ótima — concordou Dori e chamou a atenção da garçonete. - Quero dizer, além de ser uma fofa, olha esse corpo. Quer beber alguma coisa?

— Uma taça de vinho branco — decidiu Roxanne. — Um Pink Lady para Lily e uma Beck's para Luke.

— Duas Beck's — disse Dori, depois se debruçou sobre a mesa de novo. A música estava alta, mas não ensurdecedora. Havia alguns passageiros na pista de dança girando no ritmo de Michael Jackson.

Quando as bebidas foram servidas, ela disse:

— A primeira rodada é por minha conta. Eu gosto de trabalhar em cruzeiros. A maioria das pessoas vem pra se divertir. Isso facilita as coisas. E conhecemos tantos tipos diferentes. Falando nisso. — Tomou um gole de cerveja. — Qual é a história dele?

Roxanne olhou para onde Luke estava fazendo Lily girar embaixo de seu braço.

— História?

— Quero dizer, ele é lindo, dinâmico, solteiro. Hétero, certo?

Roxanne riu.

— Definitivamente, heterossexual.

— E por que você ainda não pulou em cima dele?

Roxanne se engasgou com o vinho.

— Pular em cima dele?

— Roxanne, ele é de dar água na boca. — Para provar, passou a língua pelos lábios. — Eu mesma faria isso, mas não gosto de mexer na gaveta dos outros..

Depois de respirar fundo, Roxanne balançou a cabeça.

— Não estou entendendo, Dori.

— Vocês dois. É tão óbvio.

— O que é óbvio?

— Há tensão sexual entre vocês dois o suficiente para incendiar esse navio.

Como seu rosto estava corado, Roxanne esperava que pudesse culpar as luzes da boate.

— Você está interpretando errado.

— Ah, estou? — Dori olhou para Luke, bebeu, depois voltou a atenção para Roxanne. — Você está dizendo que não quer Luke?

— Não. Quer dizer, sim... quer dizer... — Não estava acostumada a ficar envergonhada. — O que eu quero dizer é que as coisas entre nós não são desse jeito.

— Porque você não quer que sejam?

— Porque... porque não são.

— Sei. Bem, eu não gosto de me intrometer.

Roxanne teve de rir.

— Ah, deu para perceber.

— De qualquer forma. — Dori abriu um sorriso encantador. — Se eu fosse me intrometer, daria o seguinte conselho. Intrigue, confunda, seduza. E, se isso não funcionar, pule em cima dele. Tem de dar certo.

— Sei, entendo. — Roxanne ficou olhando para seu vinho, desenhando linhas com o dedo. Estava tão absorvida em seus pensamentos que se assustou quando Lily e Luke voltaram.

— Nossa, isso foi divertido. — Quase sem fôlego, Lily pegou seu drinque.

— Termine logo com isso e vamos voltar.

— Não nessa vida. — Ela sacudiu a mão. — Vá com Roxy.

Roxanne engasgou de novo e ficou vermelha.

— Calma. — Luke cutucou o ombro dela. — Quer dançar, Rox?

— Não. Ah, talvez mais tarde. — O corpo inteiro dela estava formigando. Seu coração batia no ritmo do baixo e pulsava contra as costelas. Atrito sexual? Era isso que existia? Se sim, era fatal. Tomou mais um gole, com mais cuidado. Intrigue. Certo, faria uma tentativa. — Gostei de ver vocês dois dançando. — De leve, tocou nas costas de Luke. — Até que você dança bem, Callahan.

Encarou-a. Que brilho era aquele nos olhos dela? Em outra mulher, interpretaria como um convite. Em Roxanne, perguntava-se onde ela iria morder ou arranhar primeiro.

— Obrigado.

Pegou a cerveja e, casualmente, olhou para o relógio.

— Está atrasado para algum encontro? — implicou Roxanne.

— O quê? Não.

Bem, isso não era interessante? Lily estava pensando. Uma brincadeirinha de gato e rato com Roxanne no papel de gato.

— Vocês dois deviam dar uma volta no deque. Está uma linda noite.

— Boa ideia. Por que não vamos todos? — Luke agarrou a mão de Lily e fitou Roxanne com cuidado. Ainda precisava segurar Lily por mais dez minutos, depois achava que seria prudente salvar a própria pele.

— Não, não, estou um pouco cansada. — Lily fingiu bocejar. — Vou descer agora e me recolher.

— Você nem terminou seu drinque. — Luke se sentou de novo, segurando firmemente a mão de Lily. — E eu estava mesmo querendo perguntar... - O quê? O quê? — Ah, se você acha que vai chover em Sydney amanhã?

— Na Austrália? — disse Lily, com os olhos arregalados.

— Não, na Nova Escócia. Vamos ancorar lá amanhã. Eu tenho umas horinhas de folga e pensei em dar uma volta pela cidade.

Roxanne se perguntava por que ele estava nervoso, e achou isso estranhamente encantador.

— Eu também — disse ela. — Quer companhia?

— Bem...

— Eu realmente estou cansada. — Lily bocejou de novo e soltou sua mão da de Luke. Divirtam-se.

Merda, pensou Luke. Só podia torcer para ter dado tempo.

— Eu também estou cansado. — Luke se levantou quando Lily se afastou e soltou um som surpreso quando Roxanne também se levantou, o corpo dela colidindo com o seu.

— Um passeio pelo deque vai ajudá-lo a dormir melhor. — Ela inclinou um pouco a cabeça de forma que ficaram cara a cara, os lábios quase se encostando. Ele podia sentir os lábios formigando.

— Não. — Pensou em todas as coisas que gostaria de fazer com ela, nela, sob a luz do luar. — Garanto que não. Você deveria ir descansar também.

— Acho que não. — Passou o dedo pelo braço dele. — Acho que tem alguém por aqui que quer dançar ou passear. — Roçou seus lábios levemente sobre os dele. — Boa noite, Callahan.

— Tá. — Observou-a se afastar. Então foi para uma mesa onde alguns outros artistas estavam bebendo. Duvidava que conseguiria dormir.

 

LILY DESTRANCOU a porta de sua cabine, sorrindo ao pensar em Roxanne e Luke andando de mãos dadas pelo deque sob a luz da lua. Já esperara tempo demais para ver seus dois filhos se encontrando. Talvez esta noite, pensou, e abriu a porta e encontrou música, luz de velas e rosas.

— Ah! — Ficou parada ali, sua silhueta emoldurada pela luz do corredor. Max se afastou da mesa onde havia uma garrafa de champanhe esperando. Aproximou-se dela, dando-lhe uma única rosa cor-de-rosa.

Não disse nada, apenas pegou a mão dela e levou até os lábios enquanto fechava a porta. E trancava.

— Ah, Max.

— Espero que não seja tarde demais para uma celebração de bon voyage.

— Não. — Ela juntou os lábios para conter as lágrimas. — Não é tarde demais. Nunca é tarde demais.

Segurando o rosto dela com as mãos, ele a puxou um pouco para trás.

— Meu amor — sussurrou ele. Os lábios dele eram suaves e fortes contra os dela. Então, o beijo ficou mais intenso, longo conforme suas línguas se encontravam em uma lenta e familiar dança.

Quando ele a afastou, aquele velho brilho que ela adorava estava nos olhos dele.

— Posso lhe pedir um favor?

— Você sabe que sim.

— Sabe aquela camisola vermelha que você trouxe? Poderia vesti-la enquanto eu sirvo o vinho?

 

ELE FINALMENTE percebeu. Levou alguns dias e algumas noites maldormidas, mas finalmente percebeu.

Ela estava tentando enlouquecê-lo.

Era a única explicação razoável para...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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