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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME
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21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.


CONTINUA

21. ELLA

JULIETTE

Eu sou uma ladra.

Roubei este caderno e esta caneta de um dos médicos, de um dos seus jalecos de laboratório quando ele não estava olhando, e enfiei os dois na minha calça. Isso foi pouco antes de ele ordenar que aqueles homens viessem me pegar. Os de trajes estranhos, com luvas grossas e máscaras de gás, com janelas de plástico enevoadas escondendo os olhos. Eles eram alienígenas, eu me lembro de pensar. Lembro-me de pensar que eles deviam ser alienígenas porque não podiam ser humanos, aqueles que algemavam minhas mãos nas minhas costas, aqueles que me amarravam no meu assento. Eles prenderam Tasers* na minha pele repetidamente, sem nenhuma razão além de me ouvir gritar, mas eu não o faria. Eu choraminguei, mas nunca disse uma palavra. Senti as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, mas não estava chorando.

Eu acho que isso os deixou com raiva.

Eles me deram um tapa para acordar, mesmo que meus olhos estivessem abertos quando chegamos. Alguém me soltou sem tirar minhas algemas e me chutou nos joelhos antes de ordenar que eu me levantasse. E eu tentei. Eu tentei, mas não pude e finalmente seis mãos me empurraram para fora da porta e meu rosto estava sangrando no concreto por um tempo. Eu realmente não consigo me lembrar da parte em que eles me arrastaram para dentro.

Sinto frio o tempo todo.

Sinto-me vazia, como se não houvesse nada dentro de mim, exceto esse coração partido, o único órgão que restou neste inferno. Sinto os ecos balidos dentro de mim, sinto as batidas reverberarem em volta do meu esqueleto. Eu tenho um coração, diz a ciência, mas sou um monstro, diz a sociedade. E eu sei, é claro que eu sei. Eu sei o que fiz. Não estou pedindo simpatia.

Mas às vezes eu penso – às vezes eu me pergunto – se eu fosse um monstro – certamente já sentiria isso agora?

Eu me sentiria zangada, cruel e vingativa.

Eu conheceria raiva cega e sede de sangue e uma necessidade de vingança.

Em vez disso, sinto um abismo dentro de mim que é tão profundo, tão escuro que não consigo ver dentro dele; Não consigo ver o que isso contém. Não sei o que sou ou o que pode acontecer comigo.

Não sei o que posso fazer de novo.

— Um trecho dos diários de Juliette no manicômio.


*N.T.: Tasers: armas que disparam farpas presas por fios às baterias, causando paralisia temporária.


22. KENJI

Eu fico imóvel por um momento, deixando o choque de tudo se acalmar ao meu redor, e quando finalmente me ocorre que Nazeera está realmente aqui, realmente acordada, muito bem, eu a puxo em meus braços. Sua postura defensiva derrete e, de repente, ela é apenas uma garota – minha garota – e a felicidade dispara através de mim. Ela não está nem perto de ser baixa, mas nos meus braços, ela parece pequena. De bolso. Como se ela sempre quisesse se encaixar aqui, contra o meu peito.

É como o céu.

Quando finalmente nos separamos, estou sorrindo como um idiota. Eu nem me importo que todo mundo esteja olhando para nós. Eu só quero viver neste momento.

— Ei — eu digo a ela. — Estou tão feliz que você está bem.

Ela respira fundo e instável e depois sorri. Isso muda todo o seu rosto. Faz com que ela se pareça muito menos com uma mercenária e muito mais com uma garota de dezoito anos de idade. Embora eu ache que gosto das duas versões, se estou sendo honesto.

— Estou tão feliz que você também está bem — diz ela calmamente.

Nós nos encaramos por mais um momento antes de ouvir alguém pigarrear de uma maneira dramática.

Relutantemente, eu me viro.

Eu sei, em um instante, que o pigarro veio de Nouria. Percebo pela maneira como seus braços estão cruzados, como seus olhos se estreitam. Sam, por outro lado, parece divertida.

Mas Castle parece feliz. Surpreso, mas feliz.

Eu sorrio para ele.

A carranca de Nouria se aprofunda.

— Vocês dois sabem que Warner foi embora, certo?

Isso limpa o sorriso do meu rosto. Eu giro, mas não há sinal dele. Eu me viro, xingando baixinho.

Nazeera me lança um olhar.

— Eu sei — eu digo, balançando a cabeça. — Ele vai tentar sair sem nós.

Ela quase ri.

— Definitivamente.

Estou prestes a me despedir de novo quando Nouria se levanta.

— Espere — diz ela.

— Não há tempo — eu digo, já saindo pela porta. — Warner vai nos pagar, e eu...

— Ele está prestes a tomar um banho — diz Sam, me cortando.

Eu congelo tão rápido que quase caio. Eu me viro, sobrancelhas erguidas.

— Ele vai o que agora?

— Ele está prestes a tomar um banho — diz ela novamente.

Eu pisco para ela lentamente, como se eu fosse estúpido, o que, honestamente, é como eu estou me sentindo no momento.

— Você quer dizer que, tipo, você está assistindo ele se preparando para tomar um banho?

— Não é estranho — diz Nouria categoricamente. — Pare de tornar isso estranho.

Eu olho de soslaio para Sam.

— O que Warner está fazendo agora? — Eu pergunto a ela. — Ele já está no chuveiro?

— Sim.

Nazeera levanta uma única sobrancelha.

— Então você está assistindo Warner nu no chuveiro agora?

— Eu não estou olhando para o corpo dele — diz Sam, parecendo muito perto de irritada.

— Mas você poderia — eu digo, atordoado. — É por isso que é tão estranho. Você poderia assistir qualquer um de nós tomar banho extremamente nus.

— Você sabe o quê? — Nouria diz bruscamente. — Eu ia fazer algo para facilitar as coisas para vocês na saída, mas acho que mudei de ideia.

— Espere — diz Nazeera. — Facilitar as coisas como?

— Eu estava indo ajudá-los a roubar um jato.

— Ok, tudo certo, eu retiro o que disse — eu digo, levantando minhas mãos em um pedido de desculpas. — Retiro todos os meus comentários anteriores sobre nudez. Eu também gostaria de me desculpar formalmente com Sam, que todos sabemos que é boa demais e legal demais para espionar alguém no chuveiro.

Sam revira os olhos. Abre um sorriso.

Nouria suspira.

— Eu não entendo como você lida com ele — diz ela a Castle. — Eu não suporto todas as piadas. Me deixaria louca ter que ouvir isso o dia todo.

Estou prestes a protestar quando Castle responde.

— Isso é só porque você não o conhece bem o suficiente — diz Castle, sorrindo para mim. — Além disso, nós não o amamos por suas piadas, não é, Nazeera? — Os dois travam os olhos por um momento. — Nós o amamos por seu coração.

Com isso, o sorriso desliza do meu rosto. Ainda estou processando o peso dessa afirmação – a generosidade de tal afirmação – quando percebo que já perdi uma batida.

Nouria está falando.

— A base aérea não fica longe daqui — ela está dizendo — e acho que é uma hora tão boa quanto qualquer outra para que todos saibam que Sam e eu estamos prestes a tirar uma página do manual de Ella e assumir o Setor 241. Roubar um avião será o menor dano – e, de fato, acho que é uma ótima maneira de lançar nossa estratégia ofensiva. — Ela olha por cima do ombro. — O que você acha, Sam?

— Brilhante — diz ela — como sempre.

Nouria sorri.

— Eu não sabia que essa era sua estratégia — diz Castle, o sorriso desaparecendo de seu rosto. — Você não acha, com base em como as coisas acabaram da última vez, que eu...

— Por que não discutimos isso depois de enviarmos as crianças para a missão? No momento, é mais importante colocá-los em posição e dar-lhes uma despedida adequada antes que seja oficialmente tarde demais.

— Ei, por falar nisso — digo rapidamente — o que faz você pensar que ainda não estamos atrasados?

Nouria encontra meus olhos.

— Se eles tivessem feito a transferência — diz ela — teríamos sentido isso.

— Sentido como?

É Sam quem responde:

— Para que o plano deles funcione, Emmaline precisa morrer. Eles não deixam que isso aconteça naturalmente, é claro, porque uma morte natural pode ocorrer de várias maneiras, o que deixa muitos fatores no ar. Eles precisam ser capazes de controlar o experimento o tempo todo – e é por isso que eles estavam tão desesperados para ter Ella em suas mãos antes de Emmaline morrer. Eles quase certamente vão matar Emmaline em um ambiente controlado e configurá-lo de uma maneira que não deixa espaço para erro. Mesmo assim, estamos fadados a sentir algo mudar.

— Essa mudança infinitesimal – depois que os poderes de Emmaline retrocederem, mas antes de serem canalizados para um novo corpo hospedeiro – causará um choque dramático no visual do mundo. E esse momento ainda não aconteceu, o que nos faz pensar que Ella provavelmente ainda está segura. — Sam encolhe os ombros. — Mas pode estar acontecendo a qualquer momento agora. O tempo é realmente essencial.

— Como você sabe tanto sobre isso? — Nazeera pergunta, as sobrancelhas franzidas. — Durante anos, tentei colocar minhas mãos nessas informações e não consegui nada, apesar de estar tão perto da fonte. Mas você parece saber tudo isso em algum tipo de nível pessoal. É incrível.

— Não é tão incrível — diz Nouria, balançando a cabeça. — Acabamos de nos concentrar em nossa pesquisa. Todos os grupos rebeldes têm uma força ou princípio central diferente. Para alguns, é segurança. Para outros, é guerra. Para nós, tem sido pesquisa. As coisas que vimos estão aqui para todo mundo ver – há falhas o tempo todo – mas quando você não as procura, não as percebe. Mas eu percebi. Sam percebeu. Foi uma das coisas que nos uniu.

As duas mulheres compartilham um olhar.

— Tínhamos certeza de que a arte de nossa opressão era uma ilusão — diz Sam. — E temos procurado a verdade com todos os recursos que temos. Infelizmente, ainda não sabemos tudo.

— Mas estamos mais perto do que a maioria — diz Nouria. Ela respira fundo, focando novamente. — Nós vamos segurar o final das coisas enquanto vocês estiverem fora. Esperançosamente, quando vocês voltarem, teremos virado mais de um setor para o nosso lado.

— Você realmente acha que conseguirá realizar isso em tão pouco tempo? — Eu pergunto, olhos arregalados. — Eu esperava que não ficássemos fora por mais de alguns dias.

Nouria sorri para mim então, mas é um sorriso estranho, um sorriso de busca.

— Você não entende? — ela diz. — É isso. Esse é o fim. Esse é o momento decisivo pelo qual todos lutamos. O fim de uma era. O fim de uma revolução. Atualmente, finalmente, temos todas as vantagens. Temos pessoas por dentro. Se fizermos isso direito, poderemos derrubar O Restabelecimento em questão de dias.

— Mas tudo isso depende de nós chegarmos a J a tempo — eu digo. — E se estivermos atrasados?

— Você terá que matá-la.

— Nouria — Castle suspira.

— Você está brincando — eu digo. — Diga-me que você está brincando.

— Não estou brincando nem um pouco — diz ela. — Se você chegar lá e Emmaline estiver morta e Ella tomar seu lugar, você deve matar Ella. Você tem que matá-la e o maior número possível de comandantes supremos.

Minha mandíbula está transtornada.

— E toda essa merda que você disse para J na noite em que chegamos aqui? E toda essa conversa sobre como ela é inspiradora e quantas pessoas foram movidas por suas ações – como ela é basicamente uma heroína? O que aconteceu com toda essa bobagem?

— Não foi bobagem — diz Nouria. — Eu quis dizer cada palavra. Mas estamos em guerra, Kishimoto. Não temos tempo para ser sentimental.

— Sentimental? Você está...

Nazeera coloca uma mão calma no meu braço. — Encontraremos outro caminho. Tem que haver outra maneira.

— É impossível reverter o processo quando estiver em vigor — diz Sam calmamente. — A Operação Síntese removerá todos os vestígios de sua velha amiga. Ela ficará irreconhecível. Um super soldado no sentido da palavra. Além da salvação.

— Eu não estou ouvindo isso — eu digo com raiva. — Eu não estou ouvindo isso.

Nouria levanta as mãos.

— Essa conversa pode acabar sendo desnecessária. Contanto que você possa chegar a tempo, não importa. Mas lembre-se: se você chegar lá e Ella ainda estiver viva, precisará garantir que ela mate Emmaline acima de tudo. Remover Emmaline é fundamental. Depois que ela se for, os comandantes supremos se tornam alvos fáceis. Vulneráveis.

— Espere. — Eu franzo a testa, ainda com raiva. — Por que tem que ser J quem mata Emmaline? Um de nós não poderia fazer isso?

Nouria balança a cabeça.

— Se fosse assim tão simples — diz ela — você não acha que já teria sido feito agora?

Eu levanto minhas sobrancelhas.

— Não, se ninguém soubesse que ela existia.

— Nós sabíamos que ela existia — diz Sam, em voz baixa. — Já sabemos sobre Emmaline há um tempo.

Nouria continua:

— Por que você acha que entramos em contato com sua equipe? Por que você acha que arriscamos a vida de um dos nossos para enviar uma mensagem a Ella? Por que você acha que abrimos nossas portas para vocês, mesmo sabendo que estaríamos nos expondo a um possível ataque? Tomamos uma série de decisões cada vez mais difíceis, colocando em risco a vida de todos aqueles que dependiam de nós. — Ela suspira. — Mas mesmo agora, depois de sofrer uma perda desastrosa, Sam e eu pensamos que, finalmente, fizemos a coisa certa. Você pode imaginar o porquê?

— Porque vocês são... bons samaritanos?

— Porque percebemos, meses atrás, que Ella era a única forte o suficiente para matar sua própria irmã. Precisamos dela tanto quanto você. Não apenas nós — Nouria gesticula para ela e Sam — mas o mundo inteiro. Se Ella é capaz de matar Emmaline antes que qualquer poder possa ser transferido, ela mata a maior arma do Restabelecimento. Se ela não matar Emmaline agora, enquanto o poder ainda corre pelas veias de Emmaline, O Restabelecimento pode continuar a aproveitar e transferir esse poder para um novo hospedeiro.

— Uma vez pensamos que Ella teria que lutar com a irmã — diz Sam. — Mas com base nas informações que Ella compartilhou conosco enquanto ela estava aqui, parece que Emmaline está pronta e disposta a morrer. — Sam balança a cabeça. — Mesmo assim, matá-la não é tão simples quanto desligar. Ella vai entrar em guerra com o fantasma da genialidade de sua mãe. Evie, sem dúvida, colocou em prática vários cofres de segurança para manter Emmaline invulnerável à ataques de outras pessoas e de si mesma. Não faço ideia do que Ella vai enfrentar, mas posso garantir que não será fácil.

— Jesus. — Eu largo minha cabeça em minhas mãos. Eu pensei que já estava vivendo com níveis máximos de estresse, mas estava errado. Esse estresse que estou enfrentando agora está em um nível totalmente novo.

Sinto a mão de Nazeera nas minhas costas e olho para cima. Seu rosto parece tão incerto quanto o meu, e de alguma forma, isso me faz sentir melhor.

— Façam as malas — diz Nouria. — Alcancem Warner. Encontro vocês três na entrada em vinte minutos.


23. ELLA

JULIETTE

Na escuridão, imagino luz.

Sonho com sóis, luas, mães. Vejo crianças rindo, chorando, vejo sangue, sinto cheiro de açúcar. A luz destrói a escuridão pressionando contra meus olhos, fraturando nada em algo. Formas sem nome se expandem e giram, colidem, dissolvendo-se em contato. Eu vejo poeira. Vejo paredes escuras, uma pequena janela, vejo água, vejo palavras em uma página...

Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não sou louco Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Sou louco não insano Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca Eu não sou louca

Na dor, imagino felicidade.

Meus braços são como vento, correndo, enrolando-se nas profundezas de mim mesma, expulsando, dissipando a escuridão

Imagino amor, imagino vento, imagino cabelos dourados e olhos verdes e sussurros, risadas

Eu imagino

Eu

extraordinária, ininterrupta

a garota que se chocou por sobreviver, a garota que se amou através do aprendizado, a garota que respeitava sua pele, entendia seu valor, encontrou sua força

f o r ç a

m a i s f o r t e

a mais forte

Imagina me

mestre do meu próprio universo

eu sou tudo o que eu sempre sonhei


24. KENJI

Estamos no ar.

Estamos no ar há horas agora. Passei as primeiras quatro horas dormindo – normalmente consigo adormecer em qualquer lugar, em qualquer posição – e passei as últimas duas horas comendo todos os lanches do avião. Temos mais uma hora em nosso voo e estou tão entediado que comecei a me cutucar nos olhos só para passar o tempo.

Começamos bem – Nouria nos ajudou a roubar um avião, como prometido, protegendo nossas ações com uma camada de luz – mas agora que estamos aqui em cima, estamos basicamente sozinhos. Nazeera teve que afastar algumas perguntas pelo rádio, mas porque a maioria das forças armadas não tem ideia de que nível de merda já estamos, ela ainda tem a influência necessária para contornar as perguntas de líderes e soldados do setor intrometidos. Nós percebemos que é apenas uma questão de tempo, porém, antes que alguém perceba que não temos autoridade para estar aqui.

Até então...

Eu olho em volta. Estou sentado perto o suficiente da cabine para estar ao alcance de Nazeera, mas ela e eu decidimos que eu deveria ficar para trás para ficar de olho em Warner, que está sentado longe o suficiente para me manter a salvo de sua carranca.

Honestamente, o olhar em seu rosto é tão intenso que estou surpreso que ele não tenha começado a envelhecer prematuramente.

Basta dizer que ele não gostou do plano de jogo de Nouria.

Quero dizer, também não gosto – e não tenho nenhuma intenção de segui-lo – mas Warner parecia que ele poderia atirar em Nouria por sequer pensar que poderíamos ter que matar J. Ele está sentado rigidamente na cadeira do avião desde que embarcamos, e tenho receio de me aproximar dele, apesar de nossa recente reconciliação. Semi-reconciliação?

Estou chamando isso de reconciliação.

Mas agora eu acho que ele precisa de espaço.

Ou talvez seja eu, talvez seja eu quem precise de espaço. Ele é cansativo de lidar. Sem J por perto, Warner não tem arestas suaves. Ele nunca sorri. Ele raramente olha para as pessoas. Ele está sempre irritado.

Agora, sinceramente, não consigo me lembrar por que J gosta tanto dele.

De fato, nos últimos dois meses eu tinha esquecido como ele era sem ela por perto. Mas esse lembrete foi mais do que suficiente. Demais, de fato. Não quero mais lembretes. Posso garantir que nunca mais esquecerei que Warner não é um cara divertido de se passar o tempo. Aquele cara carrega tanta tensão em seu corpo que é praticamente contagioso.

Então, sim, estou dando espaço a ele.

Até agora, dei a ele sete horas de espaço.

Lanço outro olhar para ele, me perguntando como ele se mantém tão imóvel – tão rígido – por sete horas seguidas. Como ele não flexiona um músculo? Por que ele nunca tem que ir ao banheiro? Para onde tudo isso vai?

A única concessão que recebemos do Warner foi que ele apareceu mais como seu eu normal. Sam estava certa: Warner tomou banho. Você pensaria que ele estava saindo para um encontro, não para uma missão de assassinato/resgate. É óbvio que ele quer causar uma boa impressão.

Ele está usando outra camisa de Haider: um blazer verde pálido, calça combinando.

Botas pretas. Mas como essas peças foram selecionadas por Haider, o blazer não é um blazer normal. Claro que não é. Este blazer não tem lapelas, nem botões. A silhueta é cortada em linhas afiadas que forçam a jaqueta a se abrir, expondo a camisa de Warner por baixo – um simples decote em V branco que mostra mais de seu peito do que me sinto confortável olhando. Ainda assim, ele parece bem. Um pouco nervoso, mas...

— Seus pensamentos são muito altos — diz Warner, ainda olhando pela janela.

— Oh meu Deus, eu sinto muito — eu digo, fingindo choque. — Diminuiria o volume, mas teria que morrer para que meu cérebro parasse de funcionar.

— Um problema facilmente corrigido — ele murmura.

— Eu ouvi isso.

— Eu disse para você ouvir.

— Ei — eu digo, percebendo algo. — Isso não parece algum tipo de déjà vu estranho?

— Não.

— Não, não, estou falando sério. Quais são as chances de que nós três estivéssemos em uma viagem como essa novamente? Embora a última vez que estivemos em uma viagem como essa, acabamos sendo alvejados, então sim, eu não quero reviver isso. Além disso, J não está aqui. Assim. Hã. — Eu hesito. — Ok, acho que estou percebendo que talvez eu realmente não entenda o que déjà vu significa.

— É francês — diz Warner, entediado. — Isso significa literalmente já visto.

— Espere, então eu sei o que isso significa.

— Que você saiba o que qualquer coisa significa é surpreendente para mim.

Antes que eu tenha a chance de me defender, a voz de Nazeera sai da cabine.

— Ei — ela chama. — Vocês estão sendo amigos de novo?

Eu ouço o familiar clique e deslize do metal – um som que significa que Nazeera está se soltando do modo piloto. De vez em quando, ela coloca o avião no controle de cruzeiro (ou o que seja) e vem até mim. Mas já faz pelo menos meia hora desde seu último intervalo, e eu senti sua falta.

Ela se dobra na cadeira ao meu lado.

Eu sorrio para ela.

— Estou tão feliz que vocês finalmente estão conversando — diz ela, suspirando enquanto afunda na cadeira. — O silêncio foi deprimente.

Meu sorriso morre.

A expressão de Warner escurece.

— Escute — diz ela, olhando para Warner. — Eu sei que tudo isso é horrível – que a razão pela qual estamos neste avião é horrível – mas você precisa parar de ser assim.

Temos, assim, trinta minutos restantes neste voo, o que significa que estamos prestes a sair juntos, para fazer algo enorme. O que significa que todos temos que entrar na mesma página. Temos que ser capazes de confiar um no outro e trabalhar juntos. Se não o fizermos, ou se você não nos deixar, podemos acabar perdendo tudo.

Quando Warner não diz nada, Nazeera suspira novamente.

— Eu não ligo para o que Nouria pensa — diz ela, tentando um tom suave. — Nós não vamos perder Ella.

— Você não entende — diz Warner em voz baixa. Ele ainda não está olhando para nós. — Eu já a perdi.

— Você não sabe disso — diz Nazeera com força. — Ella ainda pode estar viva. Ainda podemos mudar isso.

Warner balança a cabeça.

— Ela estava diferente antes mesmo de ser levada — diz ele. — Algo mudou dentro dela, e eu não sei o que era, mas eu podia sentir. Eu sempre fui capaz de senti-la – eu sempre fui capaz de sentir sua energia – e ela não era a mesma. Emmaline fez algo com ela, mudou algo dentro dela. Eu não tenho ideia de como ela vai estar quando eu a ver novamente. Se eu a vir novamente. — Ele olha pela janela. — Mas estou aqui porque não posso fazer mais nada. Porque este é o único caminho a seguir.

E então, mesmo sabendo que isso vai irritá-lo, digo a Nazeera:

— Warner e J estavam noivos.

— O quê? — Nazeera congela. Seus olhos estão arregalados. Super amplos. Maiores que o avião. Seus olhos ficam tão arregalados que basicamente enchem o céu. — Quando? Como? Por que ninguém me contou?

— Era para ser um segredo — diz Warner bruscamente, me lançando um olhar.

— Eu sei. — Eu dou de ombros. — Mas Nazeera está certa. Agora somos uma equipe, goste ou não, e devemos divulgar tudo isso em campo aberto. Trazer ao ar livre.

— Ao ar livre? E o fato de você e Nazeera estarem em um relacionamento que você nunca se incomodou em mencionar?

— Ei — eu digo — eu ia...

— Espere. Espere. — Nazeera me interrompe. Ela levanta as mãos. — Por que estamos mudando de assunto? Warner, noivo! Oh meu Deus, isso é... Isso é tão bom. Isso é muito importante, poderia nos dar uma per...

— Não é um grande negócio. — Eu me viro, carrancudo para ela. — Todos nós sabíamos que esse tipo de coisa estava por vir. Os dois estão basicamente destinados a ficar juntos, até eu posso admitir isso. — Inclino minha cabeça, considerando. — Quero dizer, é verdade, acho que eles são um pouco jovens, mas...

Nazeera está balançando a cabeça.

— Não. Não. Não é disso que estou falando. Eu não me importo com o engajamento real. — Ela para e olha para Warner. — Quero dizer, hum, parabéns e tudo.

Warner parece mais do que irritado.

— Só quero dizer que isso me lembrou algo. Algo tão bom. Não sei por que não pensei nisso antes. Deus, isso nos daria a vantagem perfeita.

— Isso o que?

Mas Nazeera está fora de sua cadeira, seguindo até Warner e, cautelosamente, eu sigo.

— Você se lembra — ela diz a ele — quando você e Lena estavam juntos?

Warner dá um olhar venenoso a Nazeera e diz, com um frio dramático: — Eu realmente prefiro não lembrar.

Nazeera descarta sua declaração com a mão. — Bem, eu lembro. Eu me lembro muito mais do que deveria, provavelmente, porque Lena costumava reclamar comigo sobre o seu relacionamento o tempo todo. E lembro-me, especificamente, de quanto seu pai e a mãe dela queriam que vocês, tipo, eu não sei – se prometessem um ao outro no futuro próximo, para a proteção do movimento...

— Prometer a si mesmos? — Eu franzo a testa.

— Sim, tipo... — Ela hesita, ela é uma roda giratória enquanto reúne seus pensamentos, mas Warner de repente se senta mais reto em sua cadeira, parecendo entender.

— Sim — ele diz calmamente. A irritação se foi de seus olhos. — Lembro que meu pai me disse algo sobre a importância de unir nossas famílias. Infelizmente, minha lembrança da interação é vaga, na melhor das hipóteses.

— Certo, bem, eu tenho certeza que seus pais estavam perseguindo a ideia de ganho político, mas Lena estava – e provavelmente ainda está – tipo, genuinamente apaixonada por você, e sempre foi meio obcecada pela ideia de ser sua esposa. Ela estava sempre conversando comigo sobre se casar com você, sobre seus sonhos para o futuro, sobre como seriam seus filhos...

Olho para Warner para ver sua reação a essa afirmação, e o olhar revoltado em seu rosto é surpreendentemente satisfatório.

— Mas eu me lembro dela dizendo algo, mesmo assim, sobre como você era desapegado, como você era fechado, e como um dia, quando vocês dois se casassem, ela finalmente seria capaz de vincular seus perfis familiares no database, o que lhe daria a habilitação de segurança necessária para rastrear sua...

O avião dá uma sacudida repentina e violenta.

Nazeera fica quieta, as palavras morrendo na garganta. Warner se levanta. Todos corremos para o cockpit.

As luzes estão piscando, gritando alertas que eu não entendo. Nazeera examina o monitor ao mesmo tempo que Warner, e os dois compartilham um olhar.

O avião dá outro solavanco violento, e eu bato com força contra algo afiado e metálico.

Eu solto uma longa série de maldições e por alguma razão, quando Nazeera estende a mão para me ajudar...

Eu surto.

— Alguém vai me dizer o que diabos está acontecendo? O que está acontecendo? Estamos sendo atirados para fora do céu agora? — Eu giro, observando as luzes piscando, o bipe constante ecoando pela cabine. — Maldito déjà vu! Eu sabia!

Nazeera respira fundo. Fecha os olhos. — Nós não estamos sendo atirados para fora do céu.

— Então...

— Quando entramos no espaço aéreo da Oceania — explica Warner — a base deles foi alertada para a presença de nossas aeronaves não autorizadas. — Ele olha para o monitor. — Eles sabem que estamos aqui e não estão felizes com isso.

— Certo, eu entendo isso, mas...

Outro choque violento e eu caio no chão. Warner nem parece assustar. Nazeera tropeça, mas graciosamente, e cai no cockpit. Ela parece estranhamente vazia.

— Então, hum, ok... O que está acontecendo? — Estou respirando com dificuldade. Meu coração está acelerando. — Você tem certeza de que não seremos atirados para fora do céu novamente? Por que ninguém está enlouquecendo? Estou tendo um ataque cardíaco?

— Você não está tendo um ataque cardíaco e eles não estão nos atirando para fora do céu — diz Nazeera novamente, seus dedos voando sobre os mostradores, passando pelas telas. — Mas eles ativaram o controle remoto da aeronave. Eles assumiram o controle do avião.

— E você não pode consertar isso?

Ela balança a cabeça.

— Não tenho autoridade para substituir a missiva de um comandante supremo.

Depois de um momento de silêncio, ela se endireita. Se vira para nos encarar.

— Talvez isso não seja tão ruim — diz ela. — Quero dizer, eu não tinha exatamente certeza de como aterrissaríamos aqui ou como tudo iria acontecer, mas tem que ser um bom sinal de que eles querem que entremos vivos, certo?

— Não necessariamente — diz Warner em voz baixa.

— Certo. — Nazeera franze a testa. — Sim, eu percebi que isso estava errado somente depois que eu disse isso em voz alta.

— Então devemos esperar aqui? — Sinto que meu pânico intenso começa a desaparecer, mas só um pouco. — Nós apenas esperamos aqui até que cheguem ao nosso avião e, quando chegarem, nos cercarem com soldados armados e, quando sairmos do avião, eles nos matam e depois – sabe, estamos mortos? Esse é o plano?

— Isso — diz Nazeera — ou eles poderiam mandar nosso avião que se chocar contra o oceano ou algo assim.

— Oh meu Deus, Nazeera, isso não é engraçado.

Warner olha pela janela.

— Ela não estava brincando.

— Ok, só vou perguntar isso mais uma vez: por que eu sou o único que está enlouquecendo?

— Porque eu tenho um plano — diz Nazeera. Ela olha para o painel mais uma vez. — Temos exatamente quatorze minutos antes do avião pousar, mas isso me dá tempo mais que suficiente para dizer a vocês exatamente o que vamos fazer.


25. ELLA

JULIETTE

Primeiro, vejo luz.

Brilhante, laranja, queimando atrás das minhas pálpebras. Os sons começam a surgir logo depois, mas a revelação é lenta e enlameada. Eu ouço minha própria respiração, depois um apito fraco. Um shhh de metal, uma onda de ar, o som de risadas. Passos, passos, uma voz que diz:

Ella

No momento em que estou prestes a abrir meus olhos, uma inundação de calor flui pelo meu corpo, queima através dos ossos. É violento, generalizado. Pressiona com força contra a minha garganta, me sufocando.

De repente, estou entorpecida.

Ella, a voz diz.

Ella

Escute

— Qualquer minuto agora.

A voz familiar de Anderson rompe a névoa da minha mente. Meus dedos se contraem contra lençóis de algodão. Sinto o peso insubstancial de um cobertor fino cobrindo a metade inferior do meu corpo. Picadas de agulhas. Um rugido de dor. Percebo, então, que não posso mover minha mão esquerda.

Alguém limpa a garganta.

— Essa é a segunda vez que o sedativo não funcionou como deveria, — diz alguém. A voz não é familiar. Raivosa. — Com Evie indo embora, todo este lugar está indo para o inferno.

— Evie fez mudanças substanciais no corpo de Ella, — diz Anderson, e eu me pergunto de quem ele está falando. — É possível que algo em sua nova composição física impeça os sedativos de funcionar tão rápido quanto deveriam.

Uma risada sem humor.

— Sua amizade com Max conseguiu muitas coisas para você nas últimas duas décadas, mas a graduação em medicina não é uma delas.

— É apenas uma teoria. Eu acho que pode ser po...

— Não quero saber de suas teorias, — diz o homem, interrompendo-o. — O que eu quero saber é por que diabos você pensou que seria uma boa ideia ferir nosso assunto chave, manter a estabilidade física e mental dela é crucial para...

— Ibrahim, seja razoável, — Anderson intercepta. — Depois do que aconteceu da última vez, eu só queria ter certeza de que tudo estava funcionando como deveria. Eu só estava testando a le...

— Todos sabemos sobre o seu fetiche por tortura, Paris, mas a novidade de sua mente singularmente doente se esgotou. Estamos sem tempo.

— Não estamos sem tempo, — diz Anderson, parecendo notavelmente calmo. — Esse é apenas um pequeno revés; Max conseguiu consertá-lo imediatamente.

— Um pequeno revés? — Ibrahim troveja. — A garota perdeu a consciência. Ainda estamos em alto risco de regressão. O assunto deveria estar em estase. Eu lhe permiti libertar a garota, mais uma vez, porque sinceramente não achei que você seria tão estúpido. Porque eu não tenho tempo para tomar conta de você. Porque Tatiana, Santiago e Azi e eu todos temos nossas mãos cheias tentando fazer o seu trabalho e o de Evie, além do nosso. Além de todo o resto.

— Eu estava fazendo meu próprio trabalho muito bem, — diz Anderson, sua voz como ácido. — Ninguém pediu para você se meter.

— Você está esquecendo que perdeu o emprego e o continente no momento em que a filha de Evie lhe deu um tiro na cabeça e reivindicou seus restos para si mesma. Você deixa uma adolescente tirar sua vida, seu sustento, seus filhos e seus soldados, bem debaixo do seu nariz.

— Você sabe tão bem quanto ela que ela não é uma garota comum, — diz Anderson. — Ela é filha de Evie. Você sabe do que ela é capaz...

— Mas ela não fez! — Ibrahim chora. — Metade da razão pela qual a garota foi criada para viver uma vida de isolamento foi para que ela nunca conhecesse toda a extensão de seus poderes. Ela deveria apenas se metamorfosear silenciosamente, sem ser detectada, enquanto esperávamos o momento certo para nos estabelecermos como um movimento. Ela só foi confiada aos seus cuidados por causa de sua amizade de décadas com Max – e porque você era um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que pudesse conseguir para avançar.

— Isso é engraçado, — diz Anderson, sem graça. — Você costumava gostar de mim por ser um iniciante intrigante e conivente que estava disposto a aceitar qualquer trabalho que eu conseguisse.

— Eu gostava de você, — diz Ibrahim, fervendo, — quando você fazia o trabalho. Mas no ano passado, você não passou de peso morto. Demos a você uma ampla oportunidade para corrigir seus erros, mas parece que você não consegue acertar as coisas. Você tem sorte de que Max conseguiu consertar a mão dela tão rapidamente, mas ainda não sabemos nada sobre o estado mental dela. E juro a você, Paris, que se houver consequências imprevistas e irreversíveis para suas ações, vou desafiá-lo diante do comitê.

— Você não ousaria.

— Você pode ter escapado com suas bobagens enquanto Evie ainda estava viva, mas o resto de nós sabe que a única razão pela qual você chegou até aqui foi por causa da indulgência de Evie com Max, que continua a assegurar você por razões insondáveis ??para o resto de nós.

— Por razões insondáveis ??para o resto de nós? — Anderson ri. — Você quer dizer que não consegue se lembrar por que me manteve por todos esses anos? Deixe-me ajudar a refrescar sua memória. Pelo que me lembro, você gostava mais de mim quando eu era o único disposto a fazer os trabalhos abjetos, imorais e desagradáveis ??que ajudaram a levantar esse movimento do chão. — Uma pausa. — Você me manteve por todos esses anos, Ibrahim, porque, em troca, eu mantive o sangue longe de suas mãos. Ou você esqueceu? Você já me chamou de seu salvador.

— Eu não me importo se te chamei de profeta. — Algo quebra. Metal e vidro batendo forte em outra coisa. — Não podemos continuar pagando pelos seus erros descuidados. Estamos em guerra agora e, no momento, mal conseguimos manter nossa liderança. Se você não consegue entender as possíveis ramificações de um pequeno atraso nesta hora crítica, não merece ficar entre nós.

Uma batida repentina. Uma porta batendo com força.

Anderson suspira, longo e devagar. De alguma forma, posso dizer, mesmo pelo som de sua expiração, que ele não está com raiva.

Estou surpresa.

Ele apenas parece cansado.

Devagar, os dedos de calor se desenrolam ao redor da minha garganta. Depois de mais alguns segundos de silêncio, meus olhos se abrem.

Olho para o teto, meus olhos se ajustando à intensa explosão de luz branca. Sinto-me um pouco imobilizada, mas pareço estar bem.

— Juliette?

A voz de Anderson é suave. Muito mais gentil do que eu esperava. Eu pisco para o teto e então, com algum esforço, consigo mover meu pescoço. Eu olho para ele.

Ele parece diferente de si mesmo. Barba por fazer. Incerto.

— Sim, senhor, — eu digo, mas minha voz é áspera. Não usada.

— Como você está se sentindo?

— Eu me sinto rígida, senhor.

Ele aperta um botão e minha cama se move, me reajustando para que eu me sente relativamente. O sangue corre da minha cabeça até as extremidades e fico levemente tonta. Eu pisco, lentamente, tentando recalibrar. Anderson desliga as máquinas ligadas ao meu corpo, e eu assisto fascinada.

E então ele se endireita.

Ele vira as costas para mim e enfrenta uma pequena janela alta. É muito alta para eu ver a vista. Ele levanta os braços e passa as mãos pelos cabelos com um suspiro.

— Eu preciso de uma bebida — diz ele para a parede.

Anderson assente para si mesmo e sai pela porta adjacente. A princípio, fico surpresa de ser deixada sozinha, mas quando ouço sons abafados de movimento e o tilintar familiar de copos batendo, não estou mais surpresa.

Estou confusa.

Percebo então que não tenho ideia de onde estou. Agora que as agulhas foram removidas do meu corpo, posso me mover com mais facilidade e, enquanto giro para observar o espaço, me ocorre que não estou em uma ala médica, como suspeitei. Parece mais com o quarto de alguém.

Ou talvez até um quarto de hotel.

Tudo é extremamente branco. Estéril. Estou em uma grande cama branca com lençóis brancos e um edredom branco. Até a estrutura da cama é feita de madeira branca. Ao lado dos vários carrinhos e monitores agora desligados, há uma única mesa de cabeceira decorada com uma única lâmpada simples. Há uma porta esbelta entreaberta e, através de uma inclinação de luz, acho que espio o que serve como armário, embora pareça estar vazio. Ao lado da porta está uma mala, fechada mas descompactada. Há uma tela montada na parede, em frente a mim, e embaixo dela, uma mesa. Uma das gavetas não está completamente fechada e desperta meu interesse.

Ocorre-me então que não estou usando roupas. Estou usando uma bata de hospital, mas sem roupas de verdade. Meus olhos vasculham a sala em busca do meu uniforme militar e eu me levanto um pouco.

Não há nada aqui.

Lembro-me então, em um momento de clareza, que devo ter sangrado por todas as minhas roupas. Lembro-me de ajoelhado no chão. Lembro-me da crescente quantidade de meu próprio sangue em que desmaiei.

Olho para minha mão machucada. Só machuquei meu dedo indicador, mas toda a minha mão esquerda está presa em gaze. A dor foi reduzida a uma pulsação maçante. Eu tomo isso como um bom sinal.

Cautelosamente, começo a remover a bandagens.

Só então, Anderson reaparece. Seu paletó se foi. A gravata dele se foi. Os dois primeiros botões de sua camisa estão desfeitos, a curva de tinta preta é mais claramente visível, e seu cabelo está despenteado. Ele parece mais relaxado.

Ele permanece na porta e toma um gole de um copo meio cheio de líquido âmbar.

Quando ele faz contato visual comigo, eu digo:

— Senhor, eu queria saber onde estou. Eu também estava pensando onde estão minhas roupas.

Anderson toma outro gole. Ele fecha os olhos enquanto engole, recostando-se na soleira. Suspira.

— Você está no meu quarto — diz ele, com os olhos ainda fechados. — Este complexo é vasto, e as alas médicas – das quais existem muitas – estão, na maioria das vezes, situadas no extremo oposto da instalação, a cerca de um quilômetro e meio de distância. Depois que Max atendeu às suas necessidades, pedi que ele te trouxesse aqui para que eu pudesse vigiá-la durante a noite. Quanto às suas roupas, não faço ideia. — Ele toma outro gole. — Eu acho que Max as incinerou. Tenho certeza de que alguém lhe trará outro uniforme em breve.

— Obrigada, senhor.

Anderson não diz nada.

Eu não digo mais nada.

Com os olhos fechados, me sinto mais segura em encará-lo. Aproveito a rara oportunidade de olhar mais de perto para sua tatuagem, mas ainda não consigo entender. Principalmente, olho para o rosto dele, que nunca vi assim: Suave. Relaxado. Quase sorrindo. Mesmo assim, posso dizer que algo o está incomodando.

— O quê? — ele diz sem olhar para mim. — O que é agora?

— Eu estava pensando, senhor, se você está bem.

Os olhos dele se abrem. Ele inclina a cabeça para olhar para mim, mas seu olhar é inescrutável. Lentamente, ele se vira.

Ele engole rapidamente o resto da bebida, encosta o copo na mesa de cabeceira e se senta em uma poltrona próxima.

— Eu fiz você cortar seu próprio dedo ontem à noite, lembra?

— Sim, senhor.

— E hoje você está me perguntando se eu estou bem.

— Sim, senhor. Você parece chateado, senhor.

Ele se recosta na cadeira, parecendo pensativo. De repente, ele balança a cabeça.

— Sabe, agora percebo que fui muito duro com você. Eu fiz você passar por muita coisa. Talvez tenha testado demais sua lealdade. Mas você e eu temos uma longa história, Juliette. E não é fácil para eu perdoar. Eu certamente não esqueço.

Eu não digo nada.

— Você não tem ideia do quanto eu te odiei — diz ele, falando mais para a parede do que para mim. — Quanto eu ainda te odeio, às vezes. Mas agora, finalmente...

Ele se senta, me olha nos olhos.

— Agora você é perfeita. — Ele ri, mas não há calor nisso. — Agora você é absolutamente perfeita e eu tenho que desistir de você. Entregar seu corpo para a ciência. — Ele se vira para a parede novamente. — Que pena.

Medo surge no meu peito. Eu ignoro isso.

Anderson se levanta, pega o copo vazio da mesa de cabeceira e desaparece por um minuto para enchê-lo novamente. Quando ele volta, ele me olha da porta. Eu olho de volta. Permanecemos assim por um tempo antes que ele diga, de repente...

— Sabe, quando eu era muito jovem, eu queria ser um padeiro.

Surpresa dispara através de mim, arregalando meus olhos.

— Eu sei — diz ele, tomando outro gole do líquido âmbar. Ele quase ri. — Não é o que você esperaria. Mas sempre gostei de bolo. Poucas pessoas percebem isso, mas o cozimento requer infinita precisão e paciência. É uma ciência exigente e cruel. Eu teria sido um excelente padeiro. — E então: — Não sei ao certo por que estou dizendo isso. Suponho que já faz um longo tempo desde que eu senti que poderia chegar abertamente a alguém.

— Você pode me dizer qualquer coisa, senhor.

— Sim — ele diz calmamente. — Estou começando a acreditar nisso.

Nós dois estamos em silêncio então, mas eu não consigo parar de encará-lo, minha mente subitamente invadida por perguntas sem resposta.

Mais vinte segundos e ele finalmente quebra o silêncio.

— Tudo bem, o que foi? — A voz dele é seca. Zombando de si mesmo. — O que você está morrendo de vontade de saber?

— Sinto muito, senhor — eu digo. — Eu só estava pensando... Por que você não tentou? Ser padeiro?

Anderson dá de ombros, gira o copo em suas mãos.

— Quando fiquei um pouco mais velho, minha mãe costumava me forçar a engolir alvejante. Amônia. O que quer que ela pudesse encontrar embaixo da pia. Nunca foi o suficiente para me matar — ele diz, encontrando meus olhos. — Apenas o suficiente para me torturar por toda a eternidade. — Ele engole o resto da bebida. — Você pode dizer que eu perdi meu apetite.

Não posso mascarar meu horror com rapidez suficiente. Anderson ri de mim, ri da expressão no meu rosto.

— Ela nunca teve um bom motivo para fazê-lo — diz ele, virando-se. — Ela apenas me odiava.

— Senhor — eu digo — Senhor, eu...

Max entra no quarto. Eu vacilo.

— O que diabos você fez?

— Há tantas respostas possíveis para essa pergunta — diz Anderson, olhando para trás. — Por favor seja mais específico. A propósito, o que você fez com as roupas dela?

— Estou falando de Kent — Max diz com raiva. — O que você fez?

Anderson parece subitamente incerto. Ele olha de Max para mim e depois de volta.

— Talvez devêssemos discutir isso em outro lugar.

Mas Max parece além da razão. Seus olhos são tão selvagens que não sei dizer se ele está com raiva ou aterrorizado.

— Por favor, diga-me que as fitas foram adulteradas. Diga-me que estou errado. Diga-me que você não realizou o procedimento sozinho.

Anderson parece ao mesmo tempo aliviado e irritado.

— Acalme-se — diz ele. — Eu assisti Evie fazer esse tipo de coisa inúmeras vezes – e a última vez, comigo. O garoto já havia sido drenado. O frasco estava pronto, esperando no balcão, e você estava tão ocupado com... — ele olha para mim — de qualquer maneira, eu tive um tempo livre e achei que me faria útil enquanto estivesse por perto.

— Eu não posso acreditar – é claro que você não vê o problema — diz Max, agarrando um punhado de seu próprio cabelo. Ele está balançando a cabeça. — Você nunca vê o problema.

— Isso parece uma acusação injusta.

— Paris, há uma razão pela qual a maioria dos não naturais tem apenas uma habilidade. — Ele está começando a andar agora. — A ocorrência de dois dons sobrenaturais na mesma pessoa é extremamente rara.

— E a filha de Ibrahim? — ele diz. — Esse não foi o seu trabalho? O de Evie?

— Não — Max diz com força. — Esse foi um erro aleatório e natural. Ficamos tão surpresos com a descoberta quanto qualquer outra pessoa.

Anderson fica subitamente sólido de tensão.

— Qual é exatamente o problema?

— Não é...

Um súbito toque de sirenes e as palavras morrem na garganta de Max.

— De novo — ele sussurra. — Deus, de novo não.

Anderson me lança um único olhar antes de desaparecer em seu quarto e, desta vez, ele reaparece totalmente montado. Nem um cabelo fora do lugar. Ele verifica o cartucho de uma pistola antes de guardá-la, em um coldre escondido.

— Juliette — diz ele bruscamente.

— Sim, senhor?

— Estou ordenando que você permaneça aqui. Não importa o que você veja, não importa o que ouça, você não deve sair desta sala. Você não deve fazer nada, a menos que eu ordene o contrário. Você entende?

— Sim, senhor.

— Max, pegue algo para ela vestir — Anderson late. — E então a mantenha escondida. Guarde-a com sua vida.


26. KENJI

Esse era o plano:

Todos nós deveríamos ficar invisíveis – Warner pegando emprestado o meu poder e o de Nazeera – e pular do avião pouco antes de pousar. Nazeera ativaria seus poderes voadores e, com Warner reforçando seu poder, nós três contornaríamos o comitê de boas-vindas que pretendia nos matar. Em seguida, seguiríamos diretamente para o coração do vasto complexo, onde começaríamos nossa busca por Juliette.

Isso é o que realmente aconteceu:

Nós três ficamos invisíveis e saltamos do avião quando ele pousou. Essa parte funcionou. O que não esperávamos, é claro, era que o comitê de boas vindas/assassinato antecipasse completamente nossas mudanças.

Estamos no ar, voando sobre as cabeças de pelo menos duas dúzias de soldados altamente armados e um cara que parece ser o pai de Nazeera, quando alguém lança algum tipo de arma de cano longo no céu. Ele parece estar procurando por algo.

Nós.

— Ele está escaneando as assinaturas de calor — diz Warner.

— Eu percebo isso — diz Nazeera, parecendo frustrada. Ela aumenta a velocidade, mas isso não importa.

Segundos depois, o cara com a pistola de calor grita algo para outra pessoa, que aponta uma arma diferente para nós, uma que desativa imediatamente nossos poderes.

É tão horrível quanto parece.

Eu nem tenho chance de gritar. Não tenho tempo para pensar no fato de que meu coração está batendo um quilômetro por minuto, ou que minhas mãos estão tremendo, ou que Nazeera – Nazeera destemida e invulnerável – parece subitamente aterrorizada quando o céu cai sob ela. Até Warner parece atordoado.

Eu já estava super assustado com a ideia de ser atirado para fora do céu novamente, mas posso dizer honestamente que não estava mentalmente preparado para isso. Esse é um nível totalmente novo de terror. Nós três somos subitamente visíveis e em espiral para nossas mortes e os soldados lá embaixo estão apenas olhando para nós, esperando.

Para quê? Eu penso.

Por que eles estão apenas olhando para nós enquanto morremos? Por que se esforçar para tomar o nosso avião e nos pousar aqui, em segurança, apenas para nos ver cair do céu?

Eles acham isso divertido?

O tempo parece estranho. Infinito e inexistente. O vento está correndo contra meus pés, e tudo o que posso ver é o chão, vindo rápido demais para nós, mas não consigo parar de pensar em como, em todos os meus pesadelos, nunca pensei que morreria assim. Eu nunca pensei que morreria por causa da gravidade. Eu não acho que essa era a maneira que eu estava destinado a sair do mundo, e parece errado, e parece injusto, e estou pensando sobre rapidez que tudo falhou, como nós nunca tivemos uma chance – quando ouço uma explosão repentina.

Um lampejo de fogo, gritos discordantes, os sons distantes de Warner gritando, e então não estou mais caindo, não estou mais visível.

Tudo acontece tão rápido que me sinto tonto.

O braço de Nazeera está em volta de mim e ela está me puxando para cima, lutando um pouco, e então Warner se materializa ao meu lado, ajudando a me sustentar. Sua voz aguda e presença familiar são a minha única prova de sua existência.

— Bom tiro — diz Nazeera, suas palavras sem fôlego altas no meu ouvido. — Quanto tempo você acha que temos?

— Dez segundos antes de eles começarem a atirar às cegas contra nós — grita Warner. — Temos que sair do alcance. Agora.

— Indo — grita Nazeera de volta.

Evitamos por pouco os tiros quando nós três caímos, em uma diagonal acentuada, no chão. Já estávamos tão perto do chão que não demoramos muito tempo para pousar no meio de um campo, longe o suficiente do perigo para podermos dar um suspiro momentâneo de alívio, mas muito longe do complexo para o alívio durar muito.

Estou curvado, mãos nos joelhos, ofegando, tentando me acalmar.

— O que você fez? O que diabos aconteceu?

— Warner jogou uma granada — explica Nazeera. Então, para Warner: — Você encontrou isso na bolsa de Haider, não foi?

— Isso e algumas outras coisas úteis. Nós precisamos nos mover.

Ouço o som de seus passos em retirada – botas esmagando a grama – e corro para segui-lo.

— Eles se reagrupam rapidamente — diz Warner — então temos apenas alguns momentos para elaborar um novo plano. Acho que devemos nos separar.

— Não — Nazeera e eu dizemos ao mesmo tempo.

— Não há tempo — diz Warner. — Eles sabem que estamos aqui e obviamente tiveram muitas oportunidades de se prepararem para nossa chegada. Infelizmente, nossos pais não são idiotas; eles sabem que estamos aqui para salvar Ella. Nossa presença quase certamente os inspirou a começar a transferência, se ainda não o fizeram. Nós três juntos somos ineficientes. Alvos fáceis.

— Mas um de nós tem que ficar com você — diz Nazeera. — Você precisa de nós por perto se quiser usar invisibilidade para se locomover.

— Eu vou aproveitar minhas chances.

— De jeito nenhum — diz Nazeera categoricamente. — Ouça, eu conheço esse complexo, então ficarei bem sozinha. Mas Kenji não conhece esse lugar o suficiente. A pegada inteira mede cerca de um hectare e vinte acres de terra – o que significa que você pode se perder facilmente se não souber onde procurar. Vocês dois ficam juntos. Kenji lhe emprestará sua invisibilidade, e você poderá ser o guia dele. Eu vou sozinha.

— O quê? — Eu digo em pânico. — De jeito nenhum...

— Warner não está errado — diz Nazeera, me cortando. — Nós três, como grupo, realmente somos um alvo mais fácil. Existem muitas variáveis. Além disso, tenho algo que preciso fazer e, quanto mais cedo puder acessar um computador, mais fáceis as coisas serão para vocês dois. É provavelmente melhor se eu resolver isso sozinha.

— Espere, o quê?

— O que você está planejando? — Warner pergunta.

— Vou convencer os sistemas a pensar que sua família e Ella estão ligadas — diz ela à Warner. — Já existe um protocolo para esse tipo de coisa no Restabelecimento. Portanto, se eu puder criar os perfis e autorizações necessários, o banco de dados o reconhecerá como um membro da família Sommers. Você terá acesso fácil à maioria das salas de alta segurança em todo o complexo. Mas não é infalível. O sistema verifica automaticamente anomalias a cada hora. Se conseguir ver através das minhas modificações, você será bloqueado e denunciado. Mas até então, você poderá procurar por Ella mais facilmente nos edifícios.

— Nazeera — diz Warner, sentindo-se incomumente impressionado. — Isso é... ótimo.

— Melhor do que ótimo — acrescento. — Isso é incrível.

— Obrigada — diz ela. — Mas eu devo ir. Quanto mais cedo eu começar a voar, mais cedo eu posso fazer isso, o que significa que, quando você chegar à base, eu terei feito algo acontecer.

— Mas e se você for pega? — Eu pergunto. — E se você não puder fazer isso? Como vamos encontrar você?

— Você não vão.

— Mas- Nazeera...

— Estamos em guerra, Kishimoto — diz ela, com um leve sorriso em sua voz. — Não temos tempo para ser sentimental.

— Isso não tem graça. Eu odeio essa piada. Eu odeio tanto.

— Nazeera vai ficar bem — diz Warner. — Você obviamente não a conhece bem, se você acha que ela é facilmente capturada.

— Ela literalmente acabou de acordar! Depois de levar um tiro! No peito! Ela quase morreu!

— Isso foi um acaso — dizem Warner e Nazeera ao mesmo tempo.

— Mas...

— Ei — diz Nazeera, sua voz subitamente fechada. — Tenho a sensação de que estou a quatro meses de me apaixonar loucamente por você, então, por favor, não se mate, ok?

Estou prestes a responder quando sinto uma súbita onda de ar. Eu a ouço se lançando para o céu, e mesmo sabendo que não vou vê-la, levanto o pescoço como se fosse vê-la partir.

E simplesmente assim...

Ela se foi.

Meu coração está batendo forte no peito, sangue correndo na minha cabeça. Sinto-me confuso: apavorado, excitado, esperançoso, horrorizado. Todas as melhores e piores coisas sempre parecem acontecer comigo ao mesmo tempo.

Não é justo.

— Porra — eu digo em voz alta.

— Vamos lá — diz Warner. — Vamos continuar.


27. ELLA

JULIETTE

Max está olhando para mim como se eu fosse um alienígena.

Ele não se moveu desde que Anderson saiu; ele apenas fica ali, rígido e estranho, enraizado no chão. Lembro-me do olhar que ele me deu na primeira vez em que nos conhecemos – a hostilidade desprotegida em seus olhos – e pisco para ele da minha cama, me perguntando por que ele me odeia tanto.

Depois de um trecho desconfortável de silêncio, eu limpo minha garganta. É óbvio que Anderson respeita Max – até gosta dele – então decido que devo falar com ele com um nível semelhante de respeito.

— Senhor — eu digo. — Eu realmente gostaria de me vestir.

Max se assusta com o som da minha voz. Sua linguagem corporal é completamente diferente agora que Anderson não está aqui, e ainda estou lutando para descobrir. Ele parece nervoso. Eu me pergunto se devo me sentir ameaçada por ele. Seu carinho por Anderson não é indicação de que ele possa me tratar como qualquer coisa, exceto um soldado sem nome.

Uma subordinada.

Max suspira. É um som alto e áspero que parece afastá-lo de seu estupor. Ele me lança um último olhar antes de desaparecer na sala adjacente, de onde ouço sons indiscerníveis e embaralhados. Quando ele reaparece, seus braços estão vazios.

Ele olha fixamente para mim, parecendo mais irritado do que há um momento atrás. Ele passa a mão pelo cabelo. Ele fica em pé em alguns lugares.

— Anderson não tem nada que caiba em você — ele diz.

— Não, senhor — digo com cuidado. Ainda confusa. — Eu esperava poder receber um novo uniforme.

Max se vira, olha para o nada.

— Um novo uniforme — ele diz para si mesmo. — Certo. — Mas quando ele respira fundo, estremecendo, fica claro para mim que ele está tentando ficar calmo.

Tentando ficar calmo.

Percebo, de repente, que Max pode ter medo de mim. Talvez ele tenha visto o que eu fiz com Darius. Talvez ele seja o médico que o curou.

Mesmo assim...

Não vejo por que razão para ele pensar que eu o machucaria. Afinal, minhas ordens vêm de Anderson e, até onde sei, Max é um aliado. Eu o observo atentamente enquanto ele levanta o pulso até a boca, solicitando silenciosamente que alguém entregue um novo conjunto de roupas para mim.

E então ele se afasta de mim até ficar encostado na parede. Há um único ruído agudo quando os calcanhares de suas botas atingem o rodapé e depois o silêncio.

Silêncio.

Ele entra em erupção, instalando-se completamente na sala, o silêncio atingindo até os cantos mais distantes. Eu me sinto fisicamente presa por isso. A falta de som parece opressiva.

Paralisando.

Passo o tempo contando as contusões no meu corpo. Acho que não passei tanto tempo me olhando nos últimos dias; Eu não tinha percebido quantas feridas eu tinha. Parece haver vários cortes recentes em meus braços e pernas, e sinto uma vaga picada ao longo da parte inferior do abdômen. Afasto a gola da camisola do hospital, olhando através do buraco do pescoço excessivamente grande para o meu corpo nu por baixo.

Pálido. Ferido.

Há uma pequena cicatriz fresca correndo verticalmente pela lateral do meu tronco, e não sei o que fiz para adquiri-la. De fato, meu corpo parece ter acumulado uma constelação inteira de novas incisões e contusões desbotadas. Por alguma razão, não me lembro de onde elas vieram.

Olho de repente, quando sinto o calor do olhar de Max.

Ele está me encarando enquanto eu me estudo, e o olhar penetrante em seus olhos me deixa cautelosa. Eu me sento. Me encosto.

Não me sinto confortável fazendo a ele nenhuma das perguntas empilhadas na minha boca.

Então eu olho para minhas mãos.

Eu já removi o resto das minhas ataduras; minha mão esquerda está quase toda curada.

Não há cicatriz visível onde meu dedo foi cortado, mas minha pele está manchada até meu antebraço, principalmente roxo e azul escuro, algumas manchas amarelas. Eu enrolo meus dedos em um punho, solto. Dói apenas um pouco. A dor está diminuindo a cada hora.

As próximas palavras saem dos meus lábios antes que eu possa detê-las:

— Obrigada, senhor, por consertar minha mão.

Max olha para mim, incerto, quando seu pulso acende. Ele olha para a mensagem e depois para a porta e, quando se aproxima da entrada, lança estranhos olhares selvagens para mim por cima do ombro, como se estivesse com medo de me dar as costas.

Max fica mais bizarro a cada momento.

Quando a porta se abre, a sala é inundada com som. Luzes piscando pulsam através da brecha de porta aberta, gritos e passos trovejando pelo corredor. Eu ouço metal batendo em metal, o toque distante de um alarme.

Meu coração acelera.

Estou de pé antes que eu possa me conter, meus sentidos aguçados, alheios ao fato de que minha camisola do hospital faz pouco para cobrir meu corpo. Tudo o que sinto é uma necessidade súbita e urgente de participar do tumulto, de fazer o que puder para ajudar e de encontrar meu comandante e protegê-lo. Foi para isso que eu fui construída.

Eu não posso simplesmente ficar aqui.

Mas então eu lembro que meu comandante me deu ordens explícitas para permanecer aqui, e a luta deixa meu corpo.

Max fecha a porta, silenciando o caos com esse único movimento. Abro a boca para dizer algo, mas o olhar em seus olhos me adverte para não falar. Ele coloca as roupas na cama – recusando-se a se aproximar de mim – e sai do quarto.

Troco de roupa rapidamente, trocando o vestido solto pelo tecido rígido e engomado de um uniforme militar recém-lavado. Max não me trouxe roupas de baixo, mas não me importo em apontar isso; Estou aliviada por ter algo para vestir. Eu ainda estou abotoando a cinta frontal, meus dedos trabalhando o mais rápido possível, quando meu olhar cai mais uma vez no gabinete, diretamente em frente à cama. Há uma única gaveta deixada levemente aberta, como se estivesse fechada às pressas.

Eu notei isso antes.

Não consigo parar de encará-la agora.

Algo me puxa para frente, alguma necessidade que não posso explicar. Agora está se tornando familiar – quase normal – sentir o calor estranho enchendo minha cabeça, então eu não questiono minha compulsão em chegar mais perto. Algo em algum lugar dentro de mim está gritando para eu me afastar, mas estou apenas vagamente consciente disso. Eu ouço a voz baixa e abafada de Max na outra sala; ele está falando com alguém em tom agressivo e atormentado. Ele parece totalmente distraído.

Encorajada, dou um passo à frente.

Minhas mãos enrolam em torno da gaveta e é preciso apenas um pouco de esforço para abri-la. É um sistema suave e macio. A madeira quase não faz som enquanto se move. E estou prestes a olhar para dentro quando...

— O que você está fazendo?

A voz de Max envia uma nota aguda de clareza através do meu cérebro, limpando a névoa. Dou um passo para trás, piscando. Tentando entender o que eu estava fazendo.

— A gaveta estava aberta, senhor. Eu estava indo fechá-la. — A mentira vem automaticamente. Facilmente.

Eu fico maravilhada com isso.

Max bate a gaveta e olha, desconfiado, para o meu rosto. Eu pisco para ele, encontrando alegremente seu olhar.

Percebo então que ele está segurando minhas botas.

Ele as empurra para mim; Eu as pego. Quero perguntar se ele tem um elástico – meu cabelo é extraordinariamente comprido; Tenho uma vaga lembrança de que era muito menor – mas decido ficar quieta.

Ele me observa atentamente enquanto calço as botas e, quando estou de pé novamente, ele me manda segui-lo.

Eu não me mexo.

— Senhor, meu comandante me deu ordens diretas para permanecer nesta sala. Eu vou ficar aqui até instruções contrárias.

— Você está sendo instruída no momento. Eu estou instruindo você.

— Com todo o respeito, senhor, você não é meu comandante.

Max suspira, a irritação escurecendo suas feições, e ele leva o pulso a boca.

— Você ouviu isso? Eu disse que ela não ia me obedecer. — Uma pausa. — Sim. Você terá que vir buscá-la você mesmo.

Outra pausa.

Max está ouvindo por um fone de ouvido invisível, não muito diferente do que vi Anderson usar – um fone de ouvido que agora percebo que deve estar implantado em seus cérebros.

— Absolutamente não — diz Max, sua raiva tão repentina que me assusta. Ele balança a cabeça. — Eu não vou tocar nela.

Outra batida de silêncio e...

— Eu percebo isso — diz ele bruscamente. — Mas é diferente quando os olhos dela estão abertos. Há algo no rosto dela. Não gosto do jeito que ela olha para mim.

Meu coração fica mais lento.

A escuridão enche minha visão, pisca de volta à luz. Eu ouço meu coração batendo, me ouço inspirar, expirar, ouço minha própria voz, alta – muito alta...

Havia algo sobre meu rosto

As palavras choram, diminuem a velocidade

haviaaalgo sobre meu rostoaaalgo sobre meu rostoaaaalgo sobre meus olhos, do jeito que eu olhava para ela

Meus olhos se abrem com um sobressalto. Estou respirando com dificuldade, confusa, e mal tenho um momento para refletir sobre o que aconteceu na minha cabeça antes que a porta se abra novamente. Um rugido enche meus ouvidos – mais sirenes, mais gritos, mais sons de movimentos caóticos e urgentes...

— Juliette Ferrars.

Há um homem na minha frente. Alto. Proibindo. Cabelo preto, pele morena, olhos verdes. Eu posso dizer, apenas olhando para ele, que ele exerce uma grande quantidade de poder.

— Sou o Comandante Supremo Ibrahim.

Meus olhos se arregalam.

Musa Ibrahim é o comandante supremo da Ásia. Segundo todos os relatos, os comandantes supremos do Restabelecimento têm níveis iguais de autoridade – mas o Comandante Supremo Ibrahim é amplamente conhecido por ser um dos fundadores do movimento e um dos únicos comandantes supremos que ocuparam a posição desde o início. Ele é extremamente bem respeitado.

Então, quando ele diz: — Venha comigo — eu digo:

— Sim, senhor.

Eu o sigo para a porta e para o caos, mas não tenho muito tempo para enfrentar o pandemônio antes de fazer uma curva acentuada em um corredor escuro. Sigo Ibrahim por um caminho estreito e curvo, as luzes diminuindo à medida que avançamos. Olho para trás algumas vezes para ver se Max ainda está conosco, mas ele parece ter ido em outra direção.

— Por aqui — diz Ibrahim bruscamente.

Damos mais uma volta e, de repente, o caminho estreito se abre para uma grande área de pouso bem iluminada. Há uma escada industrial à esquerda e um grande e reluzente elevador à direita. Ibrahim vai para o elevador e coloca a mão contra a porta sem moldura.

Depois de um momento, o metal emite um sinal sonoro silencioso, assobiando ao se abrir.

Quando nós dois estamos dentro, Ibrahim me dá um amplo espaço. Espero que ele acione o elevador – procuro no interior por botões ou monitor de algum tipo – mas ele não faz nada. Um segundo depois, sem avisar, o elevador se move.

A viagem é tão suave que me leva um minuto para perceber que estamos nos movendo para os lados, em vez de subir ou descer. Olho em volta, aproveitando a oportunidade para examinar mais atentamente o interior e só então percebo os cantos arredondados. Eu pensei que esta unidade fosse retangular; parece ser circular. Eu me pergunto, então, se estamos nos movendo como uma bala, perfurando a terra.

Disfarçadamente, olho para Ibrahim.

Ele não diz nada. Não indica nada. Ele não parece nem interessado nem perturbado pela minha presença, que é nova. Ele se mantém com uma certeza que me lembra muito Anderson, mas há algo mais sobre Ibrahim – algo mais – que parece único. Mesmo de relance, é óbvio que ele se sente absolutamente seguro de si. Não tenho certeza se até Anderson se sente absolutamente seguro de si. Ele está sempre testando e cutucando – examinando e questionando. Ibrahim, por outro lado, parece confortável. Sossegado.

Confiante sem esforço.

Eu me pergunto como isso deve ser.

E então eu me choco por pensar.

Quando o elevador para, ele produz três zumbidos sonoros breves e duros. Um momento depois, as portas se abrem. Espero Ibrahim sair primeiro e depois sigo.

Quando atravesso o limiar, fico impressionada com o cheiro. A qualidade do ar é tão ruim que nem consigo abrir os olhos direito. Há um cheiro acre no ar, algo que lembra enxofre, e passo por uma nuvem de fumaça tão espessa que imediatamente faz meus olhos arderem. Não demorou muito para eu tossir, cobrindo meu rosto com o braço enquanto eu forçava o meu caminho através da sala.

Não sei como Ibrahim aguenta isso.

Somente depois de passar pela nuvem, o cheiro ardente começa a se dissipar, mas então eu perdi Ibrahim de vista. Eu giro, tentando entender o que está ao meu redor, mas não há pistas visuais para me enraizar. Este laboratório não parece muito diferente dos outros que eu já vi. Um monte de vidro e aço. Dezenas de longas mesas de metal se estendem pela sala, todas cobertas de taças e tubos de ensaio e o que parecem microscópios enormes. A única grande diferença aqui é que existem enormes cúpulas de vidro perfuradas nas paredes, os semicírculos lisos e transparentes parecendo mais vigias do que qualquer outra coisa. Ao me aproximar, percebo que são plantadores de algum tipo, cada um contendo uma vegetação incomum que nunca vi. As luzes piscam enquanto eu me movo através do vasto espaço, mas grande parte ainda está envolta em escuridão, e eu ofego, de repente, quando bato diretamente em uma parede de vidro.

Dou um passo para trás, meus olhos se ajustando à luz.

Não é uma parede.

É um aquário.

Um aquário maior do que eu. Um aquário do tamanho de uma parede. Não é o primeiro tanque de água que eu já vi em um laboratório aqui na Oceania, e estou começando a me perguntar por que existem tantos deles. Dou outro passo para trás, ainda tentando entender o que estou vendo. Insatisfeita, eu me aproximo novamente. Há uma fraca luz azul no tanque, mas isso não ajuda muito a iluminar as grandes dimensões. Giro o pescoço para ver o topo, mas perco o equilíbrio, me segurando contra o vidro no último segundo. Isso é um esforço fútil.

Eu preciso encontrar Ibrahim.

No momento em que estou prestes a recuar, noto um flash de movimento no tanque. A água treme por dentro, começa a se debater.

Uma mão bate forte contra o vidro.

Eu suspiro.

Lentamente, a mão recua.

Eu fico lá, congelada de medo e fascinação, quando alguém agarra meu braço.

Desta vez, eu quase grito.

— Onde você esteve? — Ibrahim diz com raiva.

— Sinto muito, senhor — eu digo rapidamente. — Eu me perdi. A fumaça era tão espessa que eu...

— Do que você está falando? Que fumaça?

As palavras morrem na minha garganta. Eu pensei ter visto fumaça. Não havia fumaça?

Esse é outro teste?

Ibrahim suspira.

— Venha comigo.

— Sim, senhor.

Desta vez, mantenho meus olhos em Ibrahim o tempo todo.

E desta vez, quando atravessamos o laboratório escuro em uma sala circular ofuscantemente brilhante, sei que estou no lugar certo. Porque algo está errado.

Alguém está morto.

 


                               CONTINUA