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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME
IMAGINA-ME

 

 

                                                                                                                                                

 

 

 

 

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.


CONTINUA

17. ELLA

JULIETTE

Anderson me leva para conhecer Max.

Eu o sigo até as entranhas do complexo, por caminhos sinuosos e tortuosos. Os passos de Anderson ecoam pelas passarelas de pedra e aço, as luzes piscando à medida que avançamos. As ocasionais luzes excessivamente brilhantes projetavam sombras gritantes em formas estranhas. Sinto minha pele formigar.

Minha mente divaga.

Um lampejo do corpo flácido de Darius brilha em minha mente, carregando uma pontada afiada que torce meu intestino. Eu luto contra o impulso de vomitar, enquanto sinto o conteúdo do meu café da manhã escasso subindo pela minha garganta. Com esforço, forço de volta a bile. Gotas de suor estão na minha testa, na parte de trás do meu pescoço.

Meu corpo está gritando para parar de se mover. Meus pulmões querem expandir, coletar ar. Eu não permito.

Eu me forço a continuar andando.

Afasto as imagens, expulsando pensamentos de Darius da minha mente. A agitação no meu estômago começa a desacelerar, mas a pele fica com uma sensação fria e úmida. Eu luto para relembrar as coisas que comi esta manhã. Eu devo ter comido mal; algo não está certo no meu estômago. Eu estou com febre.

Eu pisco.

Eu pisco novamente, mas desta vez por muito tempo e vejo um lampejo de sangue borbulhando dentro da boca aberta de Darius. A náusea volta com uma rapidez que me assusta. Eu respiro fundo, meus dedos tremulando, desesperados para pressionar contra o meu estômago. De alguma forma, eu seguro firme. Eu mantenho meus olhos abertos, ampliando-os a ponto de doer. Meu coração começa a bater forte. Tento desesperadamente manter o controle sobre meus pensamentos em espiral, mas minha pele começa a se arrepiar. Eu cerro meus punhos. Nada ajuda. Nada ajuda. Nada, eu penso.

nada

nada

nada

Começo a contar as luzes que passamos.

Eu conto meus dedos. Eu conto minhas respirações. Conto meus passos, medindo a força de cada passo que troveja em minhas pernas, reverbera em volta dos meus quadris.

Lembro que Darius ainda está vivo.

Ele foi levado, aparentemente para ser curado e retornado à sua posição anterior.

Anderson não parecia se importar que Darius ainda estivesse vivo. Anderson estava apenas me testando, eu percebi. Me testando, mais uma vez, para ter certeza de que eu era obediente a ele e a ele apenas.

Eu respiro fundo, me fortalecendo.

Eu me concentro na figura de Anderson em retirada. Por razões que não posso explicar, olhar para ele me firma. Retarda meu pulso. Acalma meu estômago. E deste ponto de vista, não posso deixar de admirar a maneira como ele se move. Ele tem uma forma impressionante e musculosa – ombros largos, cintura estreita, pernas fortes – mas fico maravilhada com a maneira como ele se comporta. Ele tem um passo confiante. Ele caminha com sua estatura elevada, com eficiência suave e sem esforço. Enquanto eu o observo, um sentimento familiar se agita através de mim. Ele se reúne no meu estômago, provocando um calor fraco que envia um breve choque ao meu coração.

Eu não luto contra isso.

Há algo sobre ele. Algo em seu rosto. A presença dele. Encontro-me inconscientemente aproximando-me dele, observando-o com muita atenção. Notei que ele não usa jóias, nem mesmo um relógio. Ele tem uma cicatriz desbotada entre o polegar direito e o indicador.

Suas mãos são ásperas e calejadas. Seu cabelo escuro está coberto de prata, cuja extensão é visível apenas de perto. Seus olhos são verde-azulados de águas rasas e azuis.

Incomum.

Água-marinha.

Ele tem cílios castanhos compridos e marcas de riso. Lábios cheios e curvos. Sua pele fica mais áspera com o passar do dia, a sombra dos pêlos faciais sugerindo uma versão dele que tento e não consigo imaginar.

Eu percebo que estou começando a gostar dele. Confiar nele.

De repente, ele para. Estamos do lado de fora de uma porta de aço, ao lado da qual há um teclado e um scanner biométrico.

Ele leva o pulso à boca.

— Sim. — Uma pausa. — Eu estou do lado de fora.

Sinto meu próprio pulso vibrar. Olho para baixo, surpresa, para a luz azul piscando através da pele no meu pulso.

Estou sendo convocada.

Isso é estranho. Anderson está bem ao meu lado; Eu pensei que ele era o único com autoridade para me chamar.

— Senhor? — Eu digo.

Ele olha para trás, as sobrancelhas levantadas como se dissesse... Sim? E algo que parece felicidade floresce dentro de mim. Eu sei que é imprudente fazer parecer tanto algo tão pequeno, mas seus movimentos e expressões parecem subitamente mais suaves agora, mais casuais. É claro que ele começou a confiar em mim também.

Eu levanto meu pulso para mostrar a mensagem. Ele faz uma careta.

Ele se aproxima de mim, pegando meu braço piscando em suas mãos. As pontas de seus dedos pressionam contra a minha pele enquanto ele gentilmente dobra a articulação, seus olhos se estreitando enquanto estuda a convocação. Fico estranhamente imóvel. Ele faz um som de irritação e exala, sua respiração deslizando pela minha pele.

Um raio de sensação se move através de mim.

Ele ainda está segurando meu braço quando ele fala em seu próprio pulso.

— Diga a Ibrahim para recuar. Eu tenho isso sob controle.

No silêncio, Anderson inclina a cabeça, ouvindo um fone de ouvido que não é facilmente visível. Eu só posso assistir. Esperar.

— Eu não me importo — diz ele com raiva, seus dedos fechando inconscientemente em volta do meu pulso. Eu suspiro, surpresa, e ele se vira, nossos olhos se encontrando, colidindo.

Anderson faz uma careta.

Seu agradável aroma masculino enche minha cabeça e eu o respiro quase sem querer.

Estar tão perto dele é difícil. Estranho. Minha cabeça está nadando com confusão.

Imagens quebradas inundam minha mente – um lampejo de cabelos dourados, dedos roçando a pele nua – e depois náuseas. Tontura.

Quase me derruba.

Desvio o olhar assim que Anderson puxa meu braço para cima, em direção a um holofote, apertando os olhos para ver melhor. Nossos corpos quase se tocam, e de repente estou tão perto que posso ver as bordas de uma tatuagem, escuras e curvas, subindo pela borda de sua clavícula.

Meus olhos se arregalam de surpresa. Anderson solta meu pulso.

— Eu já sei que era ele — diz ele, falando rapidamente, seus olhos disparando para longe de mim. — O código dele está no carimbo de data e hora. — Uma pausa. — Apenas limpe a convocação. E depois lembre-o de que ela se reporta apenas a mim. Eu decido se e quando ele vai falar com ela.

Ele deixa cair o pulso. Toca um dedo na têmpora.

E então, estreita os olhos para mim.

Meu coração pula. Eu me endireito. Não espero mais ser solicitada. Quando ele me olha assim, eu sei que é minha sugestão para confessar.

— Você tem uma tatuagem, senhor. Eu estava surpresa. Eu me perguntava o que era.

Anderson levanta uma sobrancelha para mim.

Ele parece prestes a falar quando, finalmente, a porta de aço se abre. Uma onda de vapor escapa pela porta, atrás da qual emerge um homem. Ele é alto, mais alto que Anderson, com cabelos castanhos ondulados, pele morena clara e olhos claros e brilhantes, cuja cor não é imediatamente óbvia. Ele veste um jaleco branco. Botas altas de borracha.

Uma máscara facial está pendurada no pescoço e uma dúzia de canetas foram enfiadas no bolso do casaco. Ele não faz nenhum esforço para avançar ou se afastar; ele só fica na porta, aparentemente indeciso.

— O que está acontecendo? — Diz Anderson. — Enviei uma mensagem para você uma hora atrás e você nunca apareceu. Então eu chego à sua porta e você me faz esperar.

O homem – Anderson me disse que se chamava Max – não diz nada. Em vez disso, ele me avalia, seus olhos se movendo para cima e para baixo no meu corpo em uma demonstração de ódio indisfarçado. Não sei como processar sua reação.

Anderson suspira, agarrando algo que não é óbvio para mim.

— Max — ele diz calmamente. — Você não pode estar falando sério.

Max lança um olhar penetrante para Anderson.

— Ao contrário de você, nem todos somos feitos de pedra. — E então, olhando para o outro lado: — Pelo menos não inteiramente.

Fico surpresa ao descobrir que Max tem sotaque, nada diferente dos cidadãos da Oceania. Ele deve ser nascido nessa região.

Anderson suspira novamente.

— Tudo bem — Max diz friamente. — O que você quer discutir? — Ele tira uma caneta do bolso, destampando-a com os dentes. Ele enfia a mão no outro bolso e tira um caderno.

Ele o abre.

De repente fico cega.

No espaço de um único instante, a escuridão inunda minha visão. Limpa. Imagens turvas reaparecem, o tempo acelera e desacelera de vez em quando. Cores aparecem nos meus olhos, dilatam minhas pupilas. Estrelas explodem, luzes piscando, faiscando. Eu escuto vozes. Uma única voz. Um sussurro...

Eu sou uma ladra

A fita rebobina. Reproduz. O arquivo corrompe.

Eu sou

Eu sou

EU EU EU

sou

uma ladra

uma ladra eu roubei

Eu roubei esse caderno eessacanetadeumdosmédicos

— Claro que você fez.

A voz aguda de Anderson me traz de volta ao momento presente. Meu coração está batendo na garganta. O medo pressiona contra a minha pele, conjurando arrepios ao longo dos meus braços. Meus olhos se movem muito rapidamente, dando voltas em angústia até descansarem, finalmente, no rosto familiar de Anderson.

Ele não está olhando para mim. Ele nem está falando comigo.

Um alívio silencioso me inundou com a realização. Meu interlúdio durou apenas um momento, o que significa que não perdi muito mais do que algumas palavras trocadas. Max se vira para mim, me estudando com cautela.

— Entre — diz ele, e desaparece pela porta.

Sigo Anderson pela entrada e, assim que atravesso o limiar, uma rajada de ar gelado envia um arrepio na minha pele. Não chego muito além da entrada antes de me distrair.

Espantada.

Aço e vidro são responsáveis pela maioria das estruturas no espaço – telas e monitores maciços; microscópios; mesas de vidro compridas cheias de copos e tubos de ensaio meio cheios. Os tubos de acordeão cortam o espaço vertical ao redor da sala, conectando mesas e tetos. Blocos de luminárias artificiais estão suspensos no ar, zumbindo constantemente. A temperatura da luz aqui é tão azul que não sei como Max aguenta.

Sigo Max e Anderson até uma mesa em forma de meia-lua que parece mais um centro de comando. Os papéis estão empilhados em um lado da parte superior de aço, as telas piscando acima. Mais canetas estão enfiadas em uma caneca de café lascada sobre um livro grosso.

Um livro.

Não vejo uma relíquia assim há muito tempo.

Max senta-se. Ele gesticula para um banquinho escondido embaixo de uma mesa próxima, e Anderson balança a cabeça.

Eu continuo de pé.

— Tudo bem, então, continue — diz Max, seus olhos piscando na minha direção. — Você disse que havia um problema.

Anderson parece subitamente desconfortável. Ele não diz nada por tanto tempo que, eventualmente, Max sorri.

— Fale logo — diz Max, gesticulando com a caneta. — O que você fez de errado desta vez?

— Eu não fiz nada de errado — diz Anderson bruscamente.

Então ele franze a testa.

— Acho que não.

— Então, o que é?

Anderson respira fundo. Finalmente:

— Ela diz que está... atraída por mim.

Os olhos de Max se arregalam. Ele olha de Anderson para mim e depois de volta. E então, de repente...

Ele ri.

Meu rosto esquenta. Eu olho para frente, estudando o equipamento estranho empilhado nas prateleiras contra a parede oposta.

Pelo canto do olho, vejo Max rabiscando em um bloco de notas. Toda essa tecnologia moderna, mas ele ainda parece gostar de escrever à mão. A observação me parece estranha. Arquivei as informações, sem realmente entender o porquê.

— Fascinante — diz Max, ainda sorrindo. Ele balança a cabeça rapidamente. — Faz todo sentido, é claro.

— Estou feliz que você ache isso engraçado — diz Anderson, visivelmente irritado. — Mas eu não gosto disso.

Max ri de novo. Ele se recosta na cadeira, as pernas estendidas, cruzadas nos tornozelos. Ele está claramente intrigado – empolgado, até – com o desenvolvimento, e está causando o descongelamento da sua frieza anterior. Ele morde a tampa da caneta, considerando Anderson. Há um brilho nos olhos dele.

— Meus olhos me enganam — diz ele — ou o grande Paris Anderson admite ter consciência? Ou talvez: um senso de moralidade?

— Você conhece melhor do que ninguém que eu nunca tive nenhum dos dois, então temo não saber como é.

— Touché.

— De qualquer forma...

— Sinto muito — Max diz, seu sorriso se alargando. — Mas preciso de outro momento com essa revelação. Você pode me culpar por estar fascinado? Considerando o fato incontestável de você ser um dos seres humanos mais depravados que eu já conheci – e entre nossos círculos sociais, isso diz muito.

— Ha ha — Anderson diz categoricamente.

— Acho que estou surpreso. Por que isso é demais? Por que essa é a linha que você não cruzará? De todas as coisas...

— Max, fale sério.

— Estou falando sério.

— Além das razões óbvias pelas quais essa situação deveria ser perturbadora para qualquer um... A garota não tem nem dezoito anos. Mesmo eu não sou tão depravado quanto isso.

Max balança a cabeça. Ergue a caneta.

— Na verdade, ela tem dezoito anos há quatro meses.

Anderson parece discutir, e então...

— Claro — diz ele. — Eu estava me lembrando da papelada errada. — Ele olha para mim enquanto diz e sinto meu rosto ficar mais quente.

Estou simultaneamente confusa e mortificada.

Curiosa.

Horrorizada.

— De qualquer maneira — Anderson diz bruscamente — eu não gosto. Consegue consertar isso?

Max se senta para frente, cruza os braços.

— Se posso consertar? Posso consertar o fato de que ela não pode deixar de se sentir atraída pelo homem que gerou os dois rostos que ela conhece mais intimamente? — Ele balança a cabeça. Ri de novo. — Esse tipo de fiação não é desfeito sem causar sérias repercussões. Repercussões que nos atrasariam.

— Que tipo de repercussão? Nos atrasaria como?

Max olha para mim. Olha para Anderson.

Anderson suspira.

— Juliette — ele late.

— Sim, senhor.

— Nos deixe sozinhos.

— Sim, senhor.

Eu giro bruscamente e vou para a saída. A porta se abre em antecipação à minha abordagem, mas eu hesito, a poucos metros de distância, quando ouço Max rir novamente.

Eu sei que não deveria escutar. Eu sei que está errado. Eu sei que seria punida se fosse pega. Eu sei isso.

Ainda assim, não consigo me mexer.

Meu corpo está revoltado, gritando comigo para cruzar o limiar, mas um calor generalizado começou a penetrar em minha mente, entorpecendo a compulsão. Eu ainda estou congelada na frente da porta aberta, tentando decidir o que fazer, quando as vozes deles me alcançam.

— Ela claramente tem um tipo — Max está dizendo. — Neste ponto, está praticamente escrito no DNA dela.

Anderson diz algo que não ouço.

— É realmente uma coisa tão ruim? — Max diz. — Talvez o carinho dela por você possa funcionar a seu favor. Tire vantagem disso.

— Você acha que eu estou tão desesperado por companhia – ou tão completamente incompetente – que eu precisaria resultar em sedução para conseguir o que quero da garota?

Max solta uma risada.

— Nós dois sabemos que você nunca esteve desesperado por companhia. Mas quanto à sua competência...

— Não sei por que me incomodo com você.

— Faz trinta anos, Paris, e eu ainda estou esperando você desenvolver um senso de humor.

— Faz trinta anos, Max, e você pensaria que eu teria encontrado novos amigos agora. Amigos melhores.

— Você sabe, seus filhos também não são engraçados — diz Max, ignorando-o. — Interessante como isso funciona, não é?

Anderson grune.

Max apenas ri mais alto.

Eu franzo a testa.

Eu fico lá, tentando e falhando em processar suas interações. Max apenas insultou um comandante supremo do Restabelecimento – várias vezes. Como subordinado de Anderson, ele deve ser punido por falar com tanto desrespeito. Ele deveria ser demitido, no mínimo. Executado, se Anderson considerar preferível.

Mas quando ouço o som distante da risada de Anderson, percebo que ele e Max estão rindo juntos. É uma percepção que me assusta e me surpreende: Que eles devem ser amigos.

Uma das luzes do teto aparece e zumbe, assustando-me para fora dos meus devaneios.

Eu balanço minha cabeça rapidamente e saio pela porta.


18. KENJI

De repente, sou um grande fã dos groupies* do Warner.

No caminho de volta à minha tenda, contei a apenas algumas pessoas que vi no caminho que Warner estava com fome – mas ainda não se sentindo bem o suficiente para se juntar a todos no refeitório – e eles estavam entregando pacotes de comida no meu quarto desde então. O problema é que toda essa gentileza tem um preço. Seis garotas diferentes (e dois caras) apareceram até agora, cada um esperando pagamento por sua generosidade na forma de uma conversa com Warner, o que – obviamente – nunca acontece. Mas eles geralmente se contentam com uma boa olhada nele.

É estranho.

Quero dizer, até eu sei, objetivamente, que Warner não é nojento de olhar, mas toda essa produção de flerte descarado está realmente começando a parecer estranha. Não estou acostumado a estar em um ambiente em que as pessoas admitem abertamente gostar de algo sobre Warner. Quando estávamos no Ponto Ômega – e mesmo na base do setor 45 – todos pareciam concordar que ele era um monstro. Ninguém negou o medo ou a repugnância por tempo suficiente para tratá-lo como o tipo de cara com quem eles poderiam bater os cílios.

Mas o engraçado é que sou o único que fica irritado.

Toda vez que a campainha toca, eu digo: é isso, é o momento em que Warner finalmente perde a cabeça e atira em alguém, mas ele nem parece notar. De todas as coisas que o irritam, homens e mulheres boquiabertos não parecem estar na lista.

— Então isso é normal para você, ou o quê? — Ainda estou arrumando a comida em pratos na pequena sala de jantar da minha tenda. Warner está parado rigidamente em um ponto aleatório ao lado da janela. Ele escolheu aquele lugar aleatório quando entramos e ele está parado ali, olhando para o nada, desde então.

— O que é normal para mim?

— Todas essas pessoas — eu digo, gesticulando para a porta. — Chegando aqui fingindo que não estão imaginando você sem suas roupas. Esse é apenas um dia normal para você?

— Acho que você está esquecendo — ele diz calmamente — que fui capaz de sentir emoções pela maior parte da minha vida.

Eu levanto minhas sobrancelhas. — Portanto, esse é apenas um dia normal para você.

Ele suspira. Olha pela janela novamente.

— Você nem vai fingir que não é verdade? — Rasgo um recipiente de papel alumínio. Mais batatas. — Você nem finge que não sabe que o mundo inteiro o acha atraente?

— Isso foi uma confissão?

— Você gostaria que fosse, idiota.

— Acho chato — diz Warner. — Além disso, se eu prestasse atenção a todas as pessoas que me consideravam atraente, nunca teria tempo para mais nada.

Eu quase derrubei as batatas.

Espero que ele abra um sorriso, me diga que ele está brincando, e quando não o faz, balanço a cabeça, atordoado.

— Uau — eu digo. — Sua humildade é uma inspiração do caralho.

Ele encolhe os ombros.

— Ei — eu digo — falando de coisas que me dão nojo – você talvez queira, tipo, lavar um pouco do sangue do seu rosto antes de comermos?

Warner olha para mim em resposta.

Eu levanto minhas mãos.

— Ok. Legal. Isso é bom. — Eu aponto para ele. — Na verdade, ouvi dizer que o sangue é bom para você. Você sabe – orgânico. Antioxidantes e toda essa merda. Muito popular entre os vampiros.

— Você consegue ouvir o que diz em voz alta? Você não percebe o quão perfeitamente idiota você soa?

Eu reviro meus olhos. — Tudo bem, rainha da beleza, a comida está pronta.

— Estou falando sério — diz ele. — Nunca lhe ocorre pensar antes de falar? Nunca lhe ocorre parar de falar completamente? Se não, deveria.

— Vamos lá, bundão. Sente-se.

Relutantemente, Warner faz o seu caminho. Ele se senta e olha, inexpressivo, a refeição à sua frente.

Dou-lhe alguns segundos antes de dizer...

— Você ainda se lembra de como fazer isso? Ou você precisa que eu te alimente? — Eu apunhalo um pedaço de tofu e aponto na direção dele. — Diga ah. O trenzinho do tofu está chegando.

— Mais uma piada, Kishimoto, e eu removerei sua coluna.

— Você está certo. — Larguei o garfo. — Entendi. Também fico ranzinza quando estou com fome.

Ele olha bruscamente.

— Isso não foi uma piada! — Eu digo. — Estou falando sério.

Warner suspira. Pega seus utensílios. Olha ansiosamente para a porta.

Eu não forço a minha sorte.

Eu mantenho meu rosto na minha comida – estou genuinamente animado por ter um segundo almoço – e espero até que ele dê várias mordidas antes de eu ir para a jugular.

— Então — eu finalmente digo. — Você propôs, hein?

Warner para de mastigar e olha para cima. De repente, ele me parece jovem. Além da necessidade óbvia de tomar banho e trocar de roupa, ele parece estar finalmente começando a derramar um pouquinho de tensão. E posso dizer pela maneira como ele está segurando a faca e o garfo agora – com um pouco mais de entusiasmo – que eu estava certo.

Ele estava com fome.

Eu me pergunto o que ele teria feito se eu não o tivesse arrastado para cá e o sentado.

Forçado-o a comer.

Ele teria apenas caído no chão?

Acidentalmente morrido de fome a caminho de salvar Juliette?

Ele parece não ter nenhum cuidado real com seu eu físico. Não se importa com suas próprias necessidades. Parece-me, repentinamente, bizarro. E preocupante.

— Sim — ele diz calmamente. — Eu propus.

Sou tomado por uma reação brusca para provocá-lo – sugerir que o mau humor dele faz sentido agora, que ela provavelmente o recusou – mas até eu sei melhor do que isso. O que está acontecendo na cabeça de Warner agora é sombrio. Sério. E eu preciso lidar com essa parte da conversa com cuidado.

Então eu vou com cuidado.

— Estou supondo que ela disse sim.

Warner não encontra meus olhos.

Eu respiro fundo, solto lentamente. Está tudo começando a fazer sentido agora.

Nos primeiros dias depois que Castle me pegou, minha guarda estava tão alta que eu nem conseguia ver por cima. Eu não confiava em ninguém. Eu não acreditava em nada. Eu estava sempre esperando o outro sapato cair. Deixei que a raiva me chamasse para dormir à noite, porque ficar com raiva era muito menos assustador do que ter fé nas pessoas – ou no futuro.

Fiquei esperando as coisas desmoronarem.

Eu tinha tanta certeza de que essa felicidade e segurança não durariam, que Castle me mandaria embora, ou que ele acabaria sendo um pedaço de merda. Abusivo. Algum tipo de monstro.

Eu não conseguia relaxar.

Levei anos para acreditar realmente que tinha uma família. Levei anos para aceitar, sem hesitação, que Castle realmente me amava, ou que coisas boas poderiam durar. Que eu poderia ser feliz novamente sem medo de repercussão.

É por isso que perder o Ponto Ômega foi tão cataclísmico.

Foi a fusão de quase todos os meus medos. Tantas pessoas que eu amava foram exterminadas da noite para o dia. Minha casa. Minha família. Meu refúgio. E a devastação tomou Castle também. Castle, que tinha sido minha rocha e meu exemplo; no rescaldo, ele era um fantasma. Irreconhecível. Eu não sabia como algo se encaixaria depois disso. Eu não sabia como sobreviveríamos. Não sabia para onde iríamos.

Foi Juliette quem nos puxou.

Aqueles eram os dias em que ele e eu chegamos muito perto. Foi quando eu percebi que não só podia contar com ela e me abrir para ela, mas que podia confiar nela. Eu nunca soube o quão forte ela era até que eu a vi assumir o comando, levantando-se e reunindo todos nós quando estávamos no nosso ponto mais baixo, quando mesmo Castle estava quebrado demais para suportar.

J fez mágica da tragédia.

Ela nos encontrou segurança e esperança. Nos unificou com o Setor 45 – com Warner e Delalieu – mesmo diante da oposição, correndo o risco de perder Adam. Ela não ficou sentada esperando Castle tomar as rédeas, como todos nós; não havia tempo para isso.

Em vez disso, ela mergulhou no meio do inferno, completamente inexperiente e despreparada, porque estava determinada a nos salvar. E se sacrificar no processo, se esse era o preço. Se não fosse por ela – se não fosse pelo que ela fez, por todos nós – não sei onde estaríamos.

Ela salvou nossas vidas.

Ela salvou minha vida, com certeza. Estendeu a mão na escuridão. Me puxou para fora.

Mas nada disso machucaria tanto se eu tivesse perdido o Ponto Ômega durante meus primeiros anos lá. Não demoraria muito tempo para me recuperar e eu não precisaria de tanta ajuda para superar a dor. Doeu assim porque eu finalmente baixei a guarda. Eu finalmente me permiti acreditar que tudo ia ficar bem. Eu comecei a ter esperança. Sonhar.

Relaxar.

Eu finalmente me afastei do meu próprio pessimismo e, no momento em que o fiz, a vida enfiou uma faca nas minhas costas.

É fácil, durante esses momentos, jogar a toalha. Ignorar a humanidade. Para dizer a si mesmo que você tentou ser feliz e veja o que aconteceu: mais dor. Uma dor pior. Ser traído pelo mundo. Você percebe então que a raiva é mais segura que a bondade, que o isolamento é mais seguro que a comunidade. Você calou tudo. Todos. Mas alguns dias, não importa o que você faça, a dor fica tão forte que você se enterra vivo apenas para fazê-la parar.

Eu saberia. Eu estive lá.

E estou olhando para Warner agora e vejo a mesma morte por trás dos olhos dele. A tortura que persegue a esperança. Aquele sabor específico de ódio próprio experimentado apenas depois de receber um golpe trágico em resposta ao otimismo.

Estou olhando para ele e me lembrando do olhar em seu rosto quando ele soprou suas velas de aniversário. Lembro-me dele e de J depois, aconchegados no canto da sala de jantar. Lembro-me de como ele estava com raiva quando eu apareci no quarto deles no amanhecer, determinado a arrastar J da cama na manhã de seu aniversário.

Estou pensando...

— Porra. — Eu jogo meu garfo. O plástico atinge o prato com um baque surpreendente.

— Vocês dois estavam noivos?

Warner está olhando sua comida. Ele parece calmo, mas quando diz: — Sim — a palavra é um sussurro tão triste que arrasta uma faca pelo meu coração.

Balanço a cabeça. — Sinto muito, cara. Eu realmente sinto. Você não tem ideia.

Os olhos de Warner se erguem de surpresa, mas apenas por um momento.

Eventualmente, ele apunhala um pedaço de brócolis. Olha para ele.

— Isso é nojento — diz ele.

Percebo que é um código para Obrigado.

— Sim — eu digo. — Isso é.

Que é o código para Não se preocupe, mano. Estou aqui por você.

Warner suspira. Ele pousa os utensílios. Olha pela janela. Eu posso dizer que ele está prestes a dizer algo quando, de repente, a campainha toca.

Eu xingo baixinho.

Afasto-me da mesa para atender a porta, mas desta vez só abro uma fresta. Uma garota da minha idade olha de volta para mim, parada com um pacote de papel alumínio nos braços.

Ela sorri.

Abro a porta um pouco mais.

— Eu trouxe isso para Warner — diz ela, cochichando. — Ouvi dizer que ele estava com fome. — O sorriso dela é tão grande que você provavelmente poderia vê-lo em Marte. Eu tenho que fazer um esforço real para não revirar os olhos.

— Obrigado. Eu vou le...

— Oh — diz ela, empurrando o pacote fora de alcance. — Eu pensei que poderia entregá-lo pessoalmente. Você sabe, apenas para ter certeza de que está sendo entregue à pessoa certa. — Ela sorri.

Desta vez, eu realmente reviro os olhos.

Relutantemente, abro a porta, me afastando para deixá-la entrar. Eu me viro para dizer à Warner que outro membro de seu fã-clube está aqui para dar uma longa olhada em seus olhos verdes, mas no segundo que eu demoro para me mover, eu a ouço gritar. O recipiente de comida cai no chão, macarrão espaguete e molho vermelho derramando por toda parte.

Eu giro, atordoado.

Warner prendeu a garota na parede, a sua mão em volta da garganta dela.

— Quem te enviou aqui? — ele diz.

Ela luta para se libertar, seus pés chutando forte contra a parede, seus gritos sufocados e desesperados.

Minha cabeça está girando.

Eu pisco e Warner a colocou no chão, de joelhos. A bota dele está plantada no meio das costas dela, os dois braços dobrados para trás, presos em suas garras. Ele torce. Ela grita.

— Quem te enviou aqui?

— Eu não sei do que você está falando — diz ela, ofegando.

Meu coração está batendo como um louco.

Não tenho ideia do que diabos aconteceu, mas sei que não devo fazer perguntas. Tiro a Glock escondida dentro do meu cinto e aponto na direção dela. E então, quando estou começando a entender o fato de que é uma emboscada – e provavelmente de alguém daqui, de dentro do Santuário – percebo que a comida começa a se mover.

Três escorpiões enormes começam a sair debaixo do macarrão, e a visão é tão perturbadora que quase vomito e desmaio ao mesmo tempo. Eu nunca vi escorpiões na vida real.

Notícias de última hora: são horríveis.

Eu pensei que não tinha medo de aranhas, mas isso é como se as aranhas estivessem drogadas, como se as aranhas fossem muito, muito grandes e meio que transparecessem e usassem armadura e tivessem ferrões enormes e venenosos em uma extremidade, prontos para te matar. As criaturas fazem uma curva acentuada, e as três vão direto para Warner.

Eu solto um suspiro em pânico.

— Uh, mano... não é para, hum, te assustar ou algo assim, mas existem, tipo, três escorpiões indo direto para você...

De repente, os escorpiões congelam no lugar.

Warner solta os braços da garota e ela se afasta tão rápido que suas costas batem contra a parede. Warner olha para os escorpiões. A garota também olha.

Os dois estão tendo uma batalha de vontades, eu percebo, e é fácil para mim descobrir quem vai ganhar. Então, quando os escorpiões começam a se mover novamente – desta vez direção dela – eu tento não dar um soco no ar.

A garota se põe de pé, os olhos arregalados.

— Quem te enviou? — Warner pergunta novamente.

Ela está respirando com dificuldade agora, ainda encarando os escorpiões enquanto se afasta um pouco mais. Eles estão subindo nos sapatos dela agora.

— Quem? — Warner exige.

— Seu pai me enviou — diz ela sem fôlego. Canelas. Joelhos. Escorpiões nos seus joelhos. Oh meu Deus, escorpiões nos seus joelhos. — Anderson me enviou aqui, ok? Mande eles pararem!

— Mentirosa.

— Foi ele, eu juro!

— Você foi enviada aqui por um tolo — diz Warner — se você foi levada a acreditar que poderia mentir para mim repetidamente sem repercussão. E você é uma tola se acredita que serei misericordioso.

As criaturas estão subindo seu torso agora. Subindo seu peito. Ela engasga. Trava seus olhos com ele.

— Entendo — diz ele, inclinando a cabeça para ela. — Alguém mentiu para você.

Os olhos dela se arregalam.

— Você foi enganada — diz ele, segurando o olhar dela. — Eu não sou gentil. Eu não estou perdoando. Eu não ligo para a sua vida.

Enquanto ele fala, os escorpiões rastejam por seu corpo. Eles estão sentados perto de sua clavícula agora, apenas esperando, ferrões venenosos pairando sob seu rosto. E então, lentamente, os ferrões dos escorpiões começam a se curvar em direção à pele macia em sua garganta.

— Mande eles pararem! — ela chora.

— Esta é sua última chance — diz Warner. — Diga-me o que você está fazendo aqui.

Ela está respirando com tanta dificuldade agora que seu peito se agita, suas narinas se abrem. Seus olhos percorrem a sala em pânico. Os ferrões dos escorpiões pressionam mais perto de sua garganta. Ela se encosta na parede, um suspiro quebrado escapando de seus lábios.

— Trágico — diz Warner.

Ela se move rápido. À velocidade de um relâmpago. Puxa uma arma de algum lugar dentro de sua blusa e aponta na direção de Warner, e eu nem penso, apenas reajo.

Eu atiro.

O som ecoa, se expande – parece violentamente alto – mas é um tiro perfeito. Um buraco limpo no pescoço. A garota fica comicamente parada e depois cai, lentamente, no chão.

Sangue e escorpiões se acumulam ao redor de nossos pés. O corpo de uma garota morta está espalhado no meu chão, a poucos centímetros da cama em que acordei, seus membros dobrados em ângulos desajeitados.

A cena é surreal.

Eu olho para cima. Warner e eu travamos nossos olhares.

— Eu vou com você buscar J — eu digo. — Fim da discussão.

Warner olha de mim para o cadáver e depois de volta.

— Tudo bem — diz ele, e suspira.


*N.T.: Groupie: uma pessoa que segue regularmente um grupo de música pop ou outra celebridade na esperança de encontrá-los ou conhecê-los.


19. ELLA

JULIETTE

Estou parada do lado de fora da porta olhando para uma parede de pedra polida e lisa por pelo menos quinze minutos antes de verificar meu pulso por uma convocação.

Nada ainda.

Quando estou com Anderson, não tenho muita flexibilidade para olhar em volta, mas ficar de pé aqui me deu tempo para examinar livremente meu entorno. O trecho do corredor é estranhamente silencioso, vazio de médicos ou soldados de uma maneira que me perturba. Há longas grades verticais sob os pés, onde o chão deveria estar, e eu estou aqui tempo suficiente para me sintonizar com os pingos incessantes e rugidos mecânicos que preenchem o fundo.

Olho para o meu pulso novamente.

Olhe ao redor do corredor.

As paredes não são cinza, como eu pensava originalmente. Acontece que elas são um branco opaco. Sombras pesadas fazem com que pareçam mais escuras do que são – e, de fato, fazem com que todo esse piso pareça mais escuro. As luzes do teto são conjuntos incomuns de favo de mel dispostos ao longo das paredes e do teto. A luz de forma estranha dispersa a iluminação, lançando hexágonos retangulares em todas as direções, mergulhando algumas paredes na escuridão completa. Dou um passo cauteloso à frente, olhando mais de perto para um retângulo de escuridão que eu havia ignorado anteriormente.

Percebo que é um corredor, inteiramente à sombra.

Sinto uma repentina compulsão em explorar suas profundezas e preciso me impedir fisicamente de dar um passo à frente. Meu dever está aqui, nesta porta. Não é da minha conta explorar ou fazer perguntas, a menos que tenha sido explicitamente solicitada a explorar ou fazer perguntas.

Minhas pálpebras tremem.

O calor se espalha em mim, chamas como dedos cavando em minha mente. O calor percorre minha espinha, envolve meu cóccix. E então atira para cima, rápido e forte, forçando meus olhos a abrir. Estou respirando com dificuldade, girando.

Confusa.

De repente, faz todo o sentido que eu deva explorar o corredor escuro. De repente, parece não haver necessidade de questionar meus motivos ou quaisquer consequências possíveis para minhas ações.

Mas eu só dei um único passo na escuridão quando sou empurrada de forma agressiva para trás. O rosto de uma garota olha para mim.

— Você precisa de algo? — ela diz.

Levanto as mãos, depois hesito. Talvez eu não esteja autorizada a machucar essa pessoa.

Ela dá um passo à frente. Ela está vestindo roupas civis, mas não parece estar armada.

Eu espero que ela fale, mas ela não diz nada.

— Quem é você? — Eu exijo. — Quem lhe deu a autoridade para estar aqui em baixo?

— Eu sou Valentina Castillo. Eu tenho autoridade em todos os lugares.

Eu abaixo minhas mãos.

Valentina Castillo é filha do comandante supremo da América do Sul, Santiago Castillo. Eu não sei como Valentina deve ser, então essa garota pode ser uma impostora. Então, novamente, se eu correr um risco e estiver errada...

Eu poderia ser executada.

Olho ao seu redor e não vejo nada além de escuridão. Minha curiosidade – e inquietação – estão aumentando a cada minuto.

Olho para o meu pulso. Ainda não há convocação.

— Quem é você? — ela diz.

— Eu sou Juliette Ferrars. Sou uma soldado supremo do nosso comandante Norte-Americano. Deixe-me passar.

Valentina olha para mim, seus olhos me examinando da cabeça aos pés.

Ouço um duplo clique, como o som de algo se abrindo, e eu giro ao redor, procurando a origem do som. Não há ninguém.

— Você desbloqueou sua mensagem, Juliette Ferrars.

— Que mensagem?

— Juliette? Juliette.

A voz de Valentina muda. De repente, ela parece estar assustada e sem fôlego, como se estivesse em movimento. Sua voz ecoa. Eu ouço o som de passos batendo no chão, mas eles parecem distantes, como se ela não fosse a única correndo.

— Viste*, não havia muito tempo — diz ela, seu sotaque espanhol ficando mais grosso. — Foi o melhor que pude fazer. Eu tenho um plano, mas no sé si será posible. Este mensaje es en caso de emergencia*.

— Eles levaram Lena e Nicolás nessa direção — diz ela, apontando para a escuridão.

Estou a caminho de tentar encontrá-los. Mas se eu não puder...

Sua voz começa a desaparecer. A luz que ilumina seu rosto começa a brilhar, quase como se ela estivesse desaparecendo.

— Espere — eu digo, estendendo a mão. — Onde você está...

Minha mão se move diretamente através dela e eu ofego. Ela não tem forma. O rosto dela é uma ilusão.

Um holograma.

— Sinto muito — diz ela, sua voz começando a distorcer. — Eu sinto muito. Foi o melhor que pude fazer.

Uma vez que sua forma evapora completamente, sou puxada para a escuridão, o coração batendo forte. Não entendo o que está acontecendo, mas se a filha do supremo comandante da América do Sul estiver com problemas, tenho o dever de encontrá-la e protegê-la.

Eu sei que minha lealdade é com Anderson, mas esse calor estranho e familiar ainda está pressionando contra o interior da minha mente, acalmando o impulso que me diz para me virar. Acho que sou grata por isso. Percebo, distante, que minha mente é uma estranha bagunça de contradições, mas não tenho mais que um momento para insistir nisso.

Esse corredor é escuro demais para facilitar o acesso, mas eu já havia observado que o que antes pensava serem ranhuras decorativas nas paredes era na verdade portas embutidas, então aqui, em vez de confiar nos meus olhos, uso minhas mãos.

Eu corro meus dedos ao longo da parede enquanto caminho, esperando por uma interrupção no padrão. É um longo corredor – espero que haja várias portas para percorrer – mas parece haver pouco nessa direção. Nada visível pelo toque ou visão, pelo menos.

Quando finalmente sinto o padrão familiar de uma porta, hesito.

Pressiono as duas mãos contra a parede, preparada para destruí-la, se for preciso, quando de repente as fissuras se abrem sob minhas mãos, como se estivesse me esperando.

Me esperando.

Entro na sala, meus sentidos aumentados. Uma luz azul fraca pulsa pelos pisos, mas fora isso, o espaço está quase completamente escuro. Continuo me movendo e, embora não precise usar uma arma, pego o rifle preso nas minhas costas. Ando devagar, minhas botas macias e silenciosas e sigo as luzes distantes e pulsantes. Enquanto eu me movo mais fundo na sala, as luzes começam a piscar.

As luzes do teto naquele padrão familiar de favo de mel brilham, quebrando o chão com inclinações incomuns de luz. As vastas dimensões da sala começam a tomar forma. Olho para a enorme sala em forma de cúpula, para o tanque vazio de água ocupando uma parede inteira. Há mesas abandonadas, suas respectivas cadeiras tortas. Os touchpads são empilhados precariamente em pisos e mesas, papéis e pastas empilhados por toda parte.

Este lugar parece assombrado. Deserto.

Mas é claro que já esteve uma vez em completo uso.

Óculos de segurança pendurados em um rack próximo. Jalecos em outro. Existem caixas de vidro grandes e vazias colocadas em cima de locais aparentemente aleatórios e intermitentes, e, enquanto me afasto ainda mais na sala, noto um brilho roxo constante emanando de tão longe.

Eu viro a esquina, e há a fonte:

Oito cilindros de vidro, cada um com a altura da sala e a largura de uma mesa, estão dispostos em uma linha perfeita, em frente ao laboratório. Cinco deles contêm figuras humanas. Três no final permanecem vazios. A luz púrpura se origina de dentro dos cilindros individuais e, quando me aproximo, percebo que os corpos estão suspensos no ar, ligados inteiramente pela luz.

Existem três garotos que não reconheço. Uma garota que eu não reconheço. O outro...

Eu me aproximo do tanque e suspiro.

Valentina.

— O que você está fazendo aqui?

Eu me viro, tiro o rifle e aponto na direção da voz. Largo a arma quando vejo o rosto de Anderson. Em um instante, o calor generalizado recua da minha cabeça.

Minha mente voltou para mim.

Meu mente, meu nome, minha posição, meu lugar – meu comportamento vergonhoso, desleal e imprudente. Horror e medo fluem através de mim, colorindo minhas feições. Como explico o que não entendo?

O rosto de Anderson permanece pedregoso.

— Senhor — eu digo rapidamente. — Essa jovem é a filha do comandante supremo da América do Sul. Como serva do Restabelecimento, senti-me compelida a ajudá-la.

Anderson apenas olha para mim.

Por fim, ele diz:

— Como você sabe que essa garota é filha do supremo comandante da América do Sul?

Eu balanço a cabeça.

— Senhor, houve... algum tipo de visão. De pé no corredor. Ela me disse que era Valentina Castillo e que precisava de ajuda. Ela sabia meu nome. Ela me disse para onde ir.

Anderson exala, seus ombros liberando sua tensão.

— Essa não é a filha de um comandante supremo do Restabelecimento — diz ele calmamente. — Você foi enganada por um exercício prático.

A mortificação renovada envia um novo calor ao meu rosto.

Anderson suspira.

— Sinto muito, senhor. Eu pensei... pensei que era meu dever ajudá-la, senhor.

Anderson encontra meus olhos novamente.

— Claro que sim.

Eu mantenho minha cabeça firme, mas a vergonha me queima por dentro.

— E? — ele diz. — O que você acha?

Anderson gesticula na linha dos cilindros de vidro, nas figuras exibidas dentro.

— Eu acho que é uma bela exibição, senhor.

Anderson quase sorri. Ele dá um passo mais perto, me estudando.

— Uma bela exibição, de fato.

Eu engulo.

Sua voz muda, torna-se suave. Gentil. — Você nunca me trairia, Juliette?

— Não, senhor — eu digo rapidamente. — Nunca.

— Diga-me uma coisa — diz ele, levantando a mão até meu rosto. As costas dos nós dos dedos roçam minha bochecha, seguem meu queixo. — Você morreria por mim?

Meu coração está batendo forte no meu peito.

— Sim, senhor.

Ele pega meu rosto nas mãos agora, seu polegar roçando suavemente meu queixo.

— Você faria qualquer coisa por mim?

— Sim, senhor.

— E ainda assim, você deliberadamente me desobedeceu. — Ele abaixa a mão. Meu rosto está subitamente frio. — Eu pedi para você esperar do lado de fora — diz ele calmamente. — Eu não pedi para você vagar. Eu não pedi para você falar. Não pedi para você pensar por si mesma ou salvar alguém que alegasse precisar ser salvo. Eu pedi?

— Não, senhor.

— Você esqueceu — diz ele — que eu sou seu mestre?

— Não, senhor.

— Mentirosa — ele chora.

Meu coração está na minha garganta. Eu engulo em seco. Não digo nada.

— Vou perguntar mais uma vez — diz ele, encarando-me. — Você esqueceu que eu sou seu mestre?

— S-sim, senhor.

Os olhos dele brilham.

— Devo lembrá-la, Juliette? Devo lembrá-la a quem você deve sua vida e sua lealdade?

— Sim, senhor — eu digo, mas pareço sem ar. Eu me sinto doente de medo. Febril. O calor formiga minha pele.

Ele pega uma lâmina de dentro do bolso do paletó. Com cuidado, ele a desdobra, o metal brilhando na luz neon.

Ele pressiona o punho na minha mão direita.

Ele pega minha mão esquerda e a explora com as suas, traçando as linhas da minha palma e as formas dos meus dedos, as costuras das minhas juntas. Sensações espiralam através de mim, maravilhosas e horríveis.

Ele pressiona levemente o meu dedo indicador. Ele encontra meus olhos.

— Esse — diz ele. — Dê para mim.

Meu coração está na minha garganta. No meu intestino. Batendo atrás dos meus olhos.

— Corte-o. Coloque na minha mão. E tudo será perdoado.

— Sim, senhor — eu sussurro.

Com as mãos trêmulas, pressiono a lâmina contra a pele macia na base do meu dedo. A lâmina é tão afiada que perfura a carne instantaneamente e, com um grito abafado e agonizante, a pressiono mais fundo, hesitando apenas quando sinto resistência. Faca contra osso. A dor explode através de mim, me cegando.

Eu caio em um joelho.

Há sangue por toda parte.

Estou respirando com tanta dificuldade que estou ofegante, tentando desesperadamente não vomitar por causa da dor ou do horror. Aperto os dentes com tanta força que envia choques de dor fresca para cima, direto para o meu cérebro, e a distração é útil. Eu tenho que pressionar minha mão ensanguentada contra o chão sujo para mantê-la estável, mas com um último grito desesperado, eu corto o osso.

A faca cai da minha mão trêmula, caindo no chão. Meu dedo indicador ainda está pendurado na minha mão por um único pedaço de carne, e eu o arranco em um movimento rápido e violento. Meu corpo está tremendo tão excessivamente que mal posso suportar, mas de alguma forma eu consigo depositar o dedo na palma estendida de Anderson antes de cair no chão.

— Boa menina — ele diz suavemente. — Boa menina.

É tudo que eu o ouço dizer antes de desmaiar.


*N.T.: Tradução: Você vê.

*N.T.: Tradução: Não sei se será possível. Essa mensagem é em caso de emergência.


20. KENJI

Nós dois olhamos para a cena sangrenta por mais um momento antes que Warner de repente se endireite e saia pela porta. Enfio minha arma no cós da calça e corro atrás dele, lembrando de fechar a porta atrás de nós. Eu não quero esses escorpiões soltos por aí.

— Ei — eu digo, alcançando-o. — Onde você vai?

— Encontrar Castle.

— Legal. OK. Mas você acha que talvez da próxima vez, em vez de apenas sair sem uma palavra, você possa me dizer o que diabos está acontecendo? Eu não gosto de correr atrás de você assim. É humilhante.

— Isso soa como um problema pessoal.

— Sim, mas eu pensei que problemas pessoais eram sua área de especialização — eu digo. — Você tem o que, pelo menos alguns milhares de problemas pessoais, certo? Ou são alguns milhões?

Warner me lança um olhar sombrio.

— Seria bom você abordar sua própria turbulência mental antes de criticar a minha.

— Uh, o que isso quer dizer?

— Isso significa que um cão raivoso pode sentir seu estado desesperado e quebrado.

Você não está em posição de me julgar.

— Com licença?

— Você mente para si mesmo, Kishimoto. Você esconde seus verdadeiros sentimentos por trás de um verniz fino, brincando de palhaço, quando o tempo todo acumula detritos emocionais que se recusa a examinar. Pelo menos eu não me escondo. Sei quais são minhas falhas e as aceito. Mas você — ele diz. — Talvez você deva procurar ajuda.

Meus olhos se arregalam ao ponto de dor, minha cabeça balançando para frente e para trás entre ele e o caminho à minha frente.

— Você deve estar brincando comigo agora. Você está me dizendo para procurar ajuda para os meus problemas? O que está acontecendo? — Eu olho para o céu. — Eu estou morto? Isso é inferno?

— Eu quero saber o que está acontecendo com você e Castle.

Estou tão surpreso que paro brevemente no lugar.

— O quê? — Eu pisco para ele. Ainda confuso. — Do que você está falando? Não há nada de errado entre mim e Castle.

— Você tem sido mais profano nas últimas semanas do que em todo o tempo que eu te conheço. Algo está errado.

— Estou estressado — digo, sentindo-me arrepiado. — Às vezes eu xingo quando estou estressado.

Ele balança a cabeça.

— Isso é diferente. Você está passando por uma quantidade incomum de estresse, mesmo para você.

— Uau. — Minhas sobrancelhas se erguem. — Eu realmente espero que você não tenha se incomodado em usar a sua... — eu faço aspas no ar — ... capacidade sobrenatural de sentir emoções... — eu abaixo minhas mãos — ...para descobrir isso. Obviamente, estou estressado ainda mais agora. O mundo está pegando fogo. A lista de coisas que me estressam é tão longa que nem consigo acompanhar. Estamos até o pescoço na merda. J se foi. Adam desertou. Nazeera foi baleada. Você estava com sua cabeça tão longe que pensei que nunca voltaria...

Ele tenta me cortar, mas eu continuo falando.

— ...e literalmente cinco minutos atrás — eu digo — alguém do Santuário – ha, nome hilário e horrível – apenas tentou matá-lo, e eu matei alguém por isso. Cinco minutos atrás. Então, sim, acho que estou experimentando uma quantidade incomum de estresse agora, gênio.

Warner descarta meu discurso com um único movimento de cabeça.

— Seu uso de palavrões aumenta exponencialmente quando você está irritado com Castle. Sua linguagem parece estar diretamente conectada ao seu relacionamento com ele. Por quê?

Eu tento não revirar os olhos.

— Não que essa informação seja realmente relevante, mas Castle e eu fechamos um acordo alguns anos atrás. Ele achava que minha... — eu faço mais aspas no ar — ... dependência excessiva da profanidade estava inibindo minha capacidade de expressar minhas emoções de maneira construtiva.

— Então você prometeu a ele que diminuiria seus xingamentos.

— Sim.

— Entendo. Parece que você renegou os termos desse acordo.

— Por quê você se importa? — Eu pergunto. — Por que estamos falando sobre isso? Por que estamos perdendo de vista o fato de termos sido atacados por alguém de dentro do Santuário? Precisamos encontrar Sam e Nouria e descobrir quem era essa garota, porque ela era claramente deste campo, e elas deveriam saber o que...

— Você pode dizer a Sam e Nouria o que quiser — diz Warner. — Mas eu preciso falar com Castle.

Algo em seu tom me assusta.

— Por quê? — Eu exijo. — O que está acontecendo? Por que você está tão obcecado com Castle agora?

Finalmente, Warner para de se mover.

— Porque... — ele diz. — Castle tinha algo a ver com isso.

— O quê? — Sinto o sangue escorrer do meu corpo. — De jeito nenhum. Não é possível.

Warner não diz nada.

— Vamos lá, cara, não fique louco – Castle não é perfeito, mas ele nunca...

— Ei... o que diabos aconteceu? — Winston, sem cessar e em pânico, vem correndo até nós. — Ouvi um tiro vindo da direção da sua tenda, mas quando fui checar você, vi... vi...

— Sim.

— O que aconteceu? — A voz de Winston é estridente. Aterrorizada.

Nesse exato momento, mais pessoas vêm à loucura. Winston começa a oferecer às pessoas explicações que não me importo em corrigir, porque minha cabeça ainda está cheia de vapor. Não tenho ideia do que diabos Warner está enfrentando, mas também estou preocupado por conhecê-lo muito bem para negar sua mente. Meu coração diz que Castle nunca nos trairia, mas meu cérebro diz que Warner geralmente está certo quando se trata de sussurrar esse tipo de merda. Então, eu estou enlouquecendo.

Vejo Nouria à distância, sua pele escura brilhando ao sol, e o alívio toma conta de mim.

Finalmente.

Nouria saberá mais sobre a garota dos escorpiões. Ela tem que saber. E o que ela sabe quase certamente ajudará a absolver Castle de qualquer afiliação com essa bagunça. E assim que pudermos resolver esse acidente, Warner e eu podemos dar o fora daqui e começar a procurar por J.

É

É isso aí.

Esse é o plano.

Me sinto bem por ter um plano. Mas quando estamos perto o suficiente, Nouria estreita os olhos para mim e Warner, e o olhar em seu rosto envia uma nova onda de medo através do meu corpo.

— Sigam-me — diz ela.

Nós seguimos.

Warner parece lívido.

Castle parece assustado.

Nouria e Sam parecem que estão doentes e cansadas de todos nós.

Eu posso estar imaginando coisas, mas tenho certeza de que Sam apenas lançou um olhar para Nouria – cujo subtexto provavelmente era Por que diabos você deixou que seu pai viesse ficar conosco? – era tão desanimador que Nouria nem sequer ficou chateada, ela apenas balançou a cabeça, resignou-se.

E o problema é que nem sei de que lado estou.

No final, Warner estava certo sobre Castle, mas ele também estava errado. Castle não estava planejando nada nefasto; ele não enviou aquela garota – o nome dela era Amelia – atrás de Warner. O erro de Castle foi pensar que todos os grupos rebeldes compartilhavam a mesma visão de mundo.

No começo, também não me ocorreu que a vibração poderia ser diferente por aqui.

Diferente do nosso grupo no Ômega, pelo menos. No Ômega, fomos liderados por Castle, que era mais um educador do que um guerreiro. Nos seus dias anteriores ao Restabelecimento, ele era um assistente social. Ele viu toneladas de crianças entrando e saindo do sistema e, com o Ponto Ômega, ele procurou construir um lar e refúgio para os marginalizados. Nós éramos tudo sobre amor e comunidade. E mesmo sabendo que estávamos nos preparando para uma luta contra o Restabelecimento, nem sempre recorremos à violência; Castle não gostava de usar seus poderes de maneira autoritária.

Ele era mais uma figura paterna para a maioria de nós.

Mas aqui...

Não demorou muito para perceber que Nouria era diferente de seu pai. Ela é legal o suficiente, mas também é só negócios. Ela não gosta de gastar muito tempo conversando, e ela e Sam são mais reservadas. Elas nem sempre comem suas refeições com todo mundo.

Elas nem sempre participam de coisas de grupo. E quando se trata disso, Sam e Nouria estão prontas e dispostas a incendiar a merda. Inferno, elas parecem estar ansiosas por isso.

Castle nunca foi realmente esse cara.

Acho que ele ficou um pouco cego quando aparecemos aqui. De repente, ele ficou sem emprego quando percebeu que Nouria e Sam não iriam receber ordens dele. E então, quando ele tentou conhecer as pessoas...

Ele ficou desapontado.

— Amelia era um pouco fanática — diz Sam, suspirando. — Ela nunca exibiu tendências perigosas e violentas, é claro, e é por isso que a deixamos ficar, mas todos sentimos que suas opiniões eram um pouco intensas. Ela era um dos poucos membros que achavam que as linhas entre O Restabelecimento e os grupos rebeldes deveriam ser claras e finitas. Ela nunca se sentiu segura com os filhos dos comandantes supremos em nosso meio, e eu sei disso porque ela me chamou em privado para me dizer. Tive uma longa conversa com ela sobre a situação, mas agora vejo que ela não estava convencida.

— Obviamente — eu murmuro.

Nouria me lança um olhar. Eu limpo minha garganta.

Sam continua:

— Quando todos, exceto Warner, foram basicamente sequestrados – e Nazeera foi baleada – Amelia provavelmente imaginou que poderia terminar o trabalho e se livrar de Warner também. — Ela balança a cabeça. — Que situação horrível.

— Você teve que atirar nela? — Nouria diz para mim. — Ela era realmente tão perigosa?

— Ela tinha três escorpiões! — Eu choro. — Ela apontou uma arma para Warner!

— O que mais ele deveria pensar? — Castle diz gentilmente. Ele está olhando para o chão, seus longos dreads livres do penteado de sempre na base do pescoço. Eu gostaria de poder ver a expressão em seu rosto. — Se eu não conhecesse Amelia pessoalmente, até pensaria que ela estava trabalhando para alguém.

— Diga-me novamente — diz Warner a Castle — exatamente o que você disse a ela sobre mim.

Castle olha para cima. Suspira.

— Ela e eu entramos em uma discussão acalorada — diz ele. — Amelia estava determinada que os membros do Restabelecimento não podiam mudar, que eram maus e permaneceriam maus. Eu disse a ela que não acreditava nisso. Eu disse a ela que acreditava que todas as pessoas eram capazes de mudar.

Eu levanto uma sobrancelha.

— Espere, tipo, você quer dizer que acha que até alguém como Anderson é capaz de mudar?

Castle hesita. E eu sei, apenas olhando nos olhos dele, o que ele está prestes a dizer.

Meu coração pula no meu peito. Com medo.

— Acho que se Anderson estivesse realmente arrependido — diz Castle — ele também poderia mudar. Sim. Eu acredito nisso.

Nouria revira os olhos.

Sam deixa a cabeça cair nas mãos.

— Espere. Espere. — Eu levanto um dedo. — Então, tipo, em uma situação hipotética – se Anderson viesse ao Ômega pedindo anistia, alegando ser um homem mudado, você...?

Castle apenas olha para mim.

Eu me encosto de volta na minha cadeira com um gemido.

— Kenji — Castle diz suavemente. — Você sabe melhor do que ninguém como fizemos as coisas no Ponto Ômega. Dediquei minha vida a dar segunda e terceira chances para aqueles que foram expulsos pelo mundo. Você ficaria surpreso se soubesse quantas vidas das pessoas foram descarriladas por um simples erro que se estendeu, levando além do seu controle, porque ninguém estava lá para oferecer uma mão ou mesmo uma hora de assistência...

— Castle. Senhor. — Eu levanto minhas mãos. — Eu te amo. De verdade. Mas Anderson não é uma pessoa comum. Ele...

— Claro que ele é uma pessoa comum, filho. Esse é exatamente o ponto. Somos todos pessoas comuns, quando você nos despe. Não há nada a temer quando você olha para Anderson; ele é tão humano quanto você ou eu. Tão aterrorizado. E tenho certeza que se ele pudesse voltar e fazer sua vida novamente, ele tomaria decisões muito diferentes.

Nouria balança a cabeça.

— Você não sabe disso, pai.

— Talvez não — ele diz calmamente. — Mas é o que eu acredito.

— É nisso que você acredita sobre mim também? — Warner pergunta. — Foi isso que você disse a ela? Que eu era apenas um garoto legal, uma criança indefesa que nunca levantaria um dedo para machucá-la? Que se eu pudesse fazer tudo de novo, eu escolheria viver minha vida como monge, dedicando meus dias à caridade e a demonstrar boa vontade?

— Não — diz Castle bruscamente. É claro que ele está começando a ficar irritado. — Eu disse a ela que sua raiva era um mecanismo de defesa e que não era sua culpa ter nascido de um pai abusivo. Eu disse a ela que, em seu coração, você é uma boa pessoa e não quer machucar ninguém. Na verdade não.

Os olhos de Warner brilham.

— Eu quero machucar as pessoas o tempo todo — diz ele. — Às vezes não consigo dormir à noite porque penso em todas as pessoas que gostaria de matar.

— Ótimo. — Concordo, recostando-me na cadeira. — Isso é super ótimo. Toda essa informação que estamos coletando é super essencial e útil. — Conto com os dedos: — Amelia era uma psicopata, Castle quer ser melhor amigo de Anderson, Warner tem fantasias da meia-noite sobre matar pessoas, e Castle fez Amelia pensar que Warner é um coelhinho perdido tentando encontrar o caminho de casa.

Quando todo mundo me encara, confusos, eu esclareço:

— Castle basicamente deu a Amelia a ideia de que ela poderia entrar em um quarto e assassinar Warner! Ele praticamente disse a ela que Warner era tão prejudicial quanto um bolinho de massa.

— Oh — Sam e Nouria dizem ao mesmo tempo.

— Eu não acho que ela queria matá-lo — diz Castle rapidamente. — Tenho certeza que ela apenas...

— Pai, por favor. — A voz de Nouria é aguda e final. — É o suficiente. — Ela compartilha um olhar com Sam e respira fundo.

— Escute — diz ela, tentando um tom mais calmo. — Sabíamos que, quando você chegou aqui, teríamos que lidar com essa situação eventualmente, mas acho que é hora de conversarmos sobre nossos papéis e responsabilidades por aqui.

— Oh. Entendo. — Castle junta as mãos. Olha fixamente para a parede. Ele parece tão triste, pequeno e velho. Até seus cabelos parecem mais prateados que pretos hoje em dia.

Às vezes esqueço que ele tem quase cinquenta anos. A maioria das pessoas pensa que ele é quinze anos mais novo do que ele realmente é, mas é só porque ele sempre pareceu muito, muito bem para a idade dele. Mas, pela primeira vez em anos, sinto que estou começando a ver a idade em seu rosto. Ele parece cansado. Esgotado.

Mas isso não significa que ele terminou aqui.

Castle ainda tem muito mais o que fazer. Muito mais para dar. E eu não posso simplesmente sentar aqui e deixá-lo ser empurrado para o lado. Ignorado. Eu quero gritar com alguém. Quero dizer a Nouria e Sam que elas não podem simplesmente chutar Castle para o meio-fio assim. Não depois de tudo. Assim não.

E estou pronto para dizer algo exatamente assim, quando Nouria fala.

— Sam e eu — ela diz — gostaríamos de oferecer a você uma posição oficial como nosso conselheiro sênior aqui no Santuário.

A cabeça de Castle se levanta.

— Conselheiro sênior? — Ele olha para Nouria. Olha fixamente para Sam. — Você não está me pedindo para ir embora?

Nouria parece subitamente confusa.

— Ir embora? Pai, você acabou de chegar aqui. Sam e eu queremos que você fique pelo tempo que quiser. Apenas pensamos que é importante que todos saibamos o que estamos fazendo aqui, para que possamos gerenciar as coisas da maneira mais eficiente e organizada da maneira possível. É difícil para eu e Sam sermos eficazes em nosso trabalho se estivermos preocupadas em contornar seus sentimentos, e mesmo que seja difícil ter conversas como essa, achamos que seria melhor apenas...

Castle puxa Nouria para um abraço tão feroz, tão cheio de amor que sinto meus olhos ardendo de emoção. Na verdade, tenho que desviar o olhar por um momento.

Quando eu olho novamente, Castle está radiante.

— Eu ficaria honrado em aconselhar da maneira que puder — diz Castle. — E se eu não disse o suficiente, deixe-me dizer novamente: estou tão orgulhoso de você, Nouria. Tão orgulhoso de vocês duas — ele diz, olhando para Sam. — Os meninos teriam ficado tão orgulhosos.

Os olhos de Nouria ficam vidrados de emoção. Até Sam parece comovida.

Mais um minuto e vou precisar de um lenço de papel.

— Certo, bem. — Warner está de pé. — Fico feliz que a tentativa contra minha vida tenha conseguido reunir sua família. Estou saindo agora.

— Espere... — Eu agarro o braço de Warner e ele me empurra.

— Se você continuar me tocando sem minha permissão, vou remover suas mãos do seu corpo.

Eu ignoro isso.

— Não devemos dizer a eles que nós estamos saindo?

Sam faz uma careta.

— Saindo?

As sobrancelhas de Nouria se erguem.

— Nós?

— Nós vamos buscar J — explico. — Ela voltou para a Oceania. James nos contou tudo. Falando nisso... Você provavelmente deveria falar com ele. Ele tem algumas notícias sobre Adam que você não vai gostar, notícias que não quero repetir.

— Kent traiu todos vocês para se salvar.

— Para salvar James — eu esclareço, lançando um olhar sujo para Warner. — E isso não foi legal, cara. Eu apenas disse que não queria falar sobre isso.

— Estou tentando ser eficiente.

Castle parece atordoado. Ele não diz nada. Ele apenas parece atordoado.

— Fale com James — eu digo. — Ele vai te contar o que está acontecendo. Mas Warner e eu vamos pegar um avião...

— Roubar um avião.

— Certo, roubar um avião, antes do final do dia. E você sabe, nós apenas vamos buscar J e voltaremos muito rápido, bim bam boom.

Nouria e Sam estão me olhando como se eu fosse um idiota.

— Bim bam boom? — Warner diz.

— Sim, você sabe, tipo... — bato palmas — ...boom. Feito . Fácil.

Warner se afasta de mim com um suspiro.

— Espere – então, apenas vocês dois estão fazendo isso? — Sam pergunta. Ela está carrancuda.

— Honestamente, quanto menos, melhor — responde Nouria por mim. — Dessa forma, há menos corpos a esconder, menos ações a coordenar. Independentemente disso, eu me ofereceria para ir com vocês, mas ainda temos tantos feridos que precisamos cuidar – e agora que Amelia está morta, com certeza haverá mais agitação emocional para administrar.

Os olhos de Castle se iluminam.

— Enquanto eles vão atrás de Ella — ele diz para Nouria e Sam — e vocês duas estão fazendo as coisas aqui, eu estava pensando em falar com os amigos da minha rede. Deixá-los saber o que está acontecendo, e essa mudança está em andamento. Eu posso ajudar a coordenar nossos movimentos ao redor do mundo.

— Essa é uma ótima ideia — diz Sam. — Talvez nós p...

— Eu não ligo — diz Warner em voz alta, e se vira para a porta. — E eu vou embora agora. Kishimoto, se você estiver vindo, ande logo.

— Certo — eu digo, tentando parecer importante. — Sim. Tchau. — Faço uma rápida saudação de dois dedos para todos e corro direto para a porta, apenas para bater em Nazeera.

Nazeera.

Puta merda. Ela está acordada. Ela é perfeita.

Ela está chateada.

— Vocês dois não vão a lugar nenhum sem mim. — diz ela.



 

                                           CONTINUA