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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME
IMAGINA-ME

 

 

                                                                                                                                                 

 

 

 

 

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

CONTINUA

15. ELLA

JULIETTE

É um alívio não falar.

Algo mudou entre nós nesta manhã, algo quebrou. Os olhos de Anderson relaxaram na minha frente de uma maneira que parece pouco ortodoxa, mas não é da minha conta questioná-lo. Sinto-me honrada por ter essa posição, por ser o soldado supremo mais confiável, e isso é tudo o que importa. Hoje é meu primeiro dia oficial de trabalho e estou feliz por estar aqui, mesmo quando ele me ignora completamente.

Na verdade, eu gosto disso.

Encontro conforto em fingir desaparecer. Eu existo apenas para escondê-lo enquanto ele se move de uma tarefa para outra. Fico de lado, olhando para frente. Não o assisto enquanto ele trabalha, mas o sinto constantemente. Ele ocupa todo o espaço disponível. Estou sintonizada com todos os seus movimentos, todos os seus sons. Meu trabalho agora é conhecê-lo completamente, antecipar suas necessidades e medos, protegê-lo com a minha vida e servir inteiramente a seus interesses.

Então eu escuto, por horas, os detalhes.

O rangido de sua cadeira quando ele se recosta, considerando. Os suspiros que escapam dele enquanto ele digita. Cadeira de couro e calças de lã se encontrando, movendo. O baque surdo de uma caneca de cerâmica batendo na superfície de uma mesa de madeira. O tilintar de cristal, o rápido derramamento de bourbon. O aroma afiado e doce de tabaco e o farfalhar de papel fino. Teclas. Uma caneta arranhando. O súbito rasgar e chiar de um papel. Enxofre. Teclas. Um estalo de um elástico. Fumaça, fazendo meus olhos lacrimejarem. Um monte de papéis batendo juntos como um baralho de cartas. Sua voz, profunda e melódica em uma série de telefonemas tão breves que não posso diferenciá-los. Teclas. Ele nunca parece precisar usar o banheiro. Não penso nas minhas próprias necessidades, e ele não pergunta. Teclas. Ocasionalmente, ele olha para mim, me estudando, e eu mantenho meus olhos em frente. De alguma forma, eu posso sentir o sorriso dele.

Eu sou um fantasma.

Eu espero.

Eu ouço pouco. Eu aprendo pouco.

Finalmente...

— Venha.

Ele está de pé e sai pela porta e eu me apresso a segui-lo. Estamos lá em cima, no último andar do complexo. Os corredores circulam em torno de um pátio interior, no centro da qual há uma grande árvore, galhos pesados ??de folhas alaranjadas e vermelhas. Cores de outono. Olho, sem mexer a cabeça, para fora de uma das muitas janelas altas que enfeitam os corredores, e minha mente registra a incongruência das duas imagens. Lá fora, as coisas são uma estranha mistura de verde e desolação. No interior, esta árvore é quente e com tons rosados. Folhagem de outono perfeita.

Afasto o pensamento.

Tenho que andar duas vezes mais rápido para acompanhar os longos passos de Anderson. Ele não para ninguém. Homens e mulheres de jaleco saltam para o lado quando nos aproximamos, murmurando desculpas em nosso rastro, e estou surpresa com a sensação tonta que surge dentro de mim. Eu gosto do medo deles. Aprecio esse poder, esse sentimento de domínio sem desculpas.

A dopamina inunda meu cérebro.

Eu ganho velocidade, ainda me apressando para acompanhar. Ocorre-me então que Anderson nunca olha para trás para ter certeza de que estou seguindo-o, e isso me faz pensar no que ele faria se descobrisse que eu estava desaparecida. E então, com a mesma rapidez, o pensamento me parece bizarro. Ele não tem motivos para olhar para trás. Eu nunca iria desaparecer.

Hoje o complexo está mais ocupado do que o normal. Anúncios soam pelos alto-falantes e o ar ao meu redor se enche de fervor. Os nomes são chamados; demandas feitas. Pessoas vêm e vão.

Nós subimos as escadas.

Anderson nunca para, nunca parece sem fôlego. Ele se move com a força de um homem mais jovem, mas com o tipo de confiança adquirida apenas pela idade. Ele se comporta com uma certeza aterrorizante e aspiracional. Rostos pálidos ao vê-lo. A maioria desvia o olhar. Alguns não podem deixar de olhar. Uma mulher quase desmaia quando o corpo dele bate contra o dela, e Anderson nem sequer quebra o passo quando ela causa uma cena.

Eu estou fascinada.

Os alto-falantes estalam. Uma voz feminina suave e robótica anuncia uma situação código-verde com tanta calma que não consigo deixar de me surpreender com a reação coletiva. Testemunho algo semelhante ao caos quando portas se abrem ao redor do prédio. Tudo parece acontecer em sincronia, um efeito dominó ecoando pelos corredores de cima para baixo do composto. Homens e mulheres em jalecos de laboratório sobem e fervilham por todos os níveis, obstruindo as passarelas enquanto avançam.

Ainda assim, Anderson não para. O mundo gira em torno dele, abre espaço para ele. Retarda quando ele acelera. Ele não acomoda ninguém. Ou qualquer coisa.

Estou anotando.

Finalmente, chegamos a uma porta. Anderson pressiona a mão contra o scanner biométrico e encara uma câmera que escaneia seus olhos.

A porta se abre.

Sinto algo estéril, como anti-séptico, e no momento em que entramos na sala, o cheiro queima meu nariz, causando lágrimas nos olhos. A entrada é incomum; um pequeno corredor que esconde o resto da sala da vista imediata. À medida que nos aproximamos, ouço três monitores apitarem em três níveis diferentes de decibéis. Quando dobramos a esquina, a sala quadruplica de tamanho. O espaço é vasto e brilhante, luz natural combinada com o brilho abrasador de lâmpadas artificiais no alto.

Há pouco mais aqui além de uma cama de solteiro e a figura amarrada nela. O sinal sonoro não vem de três máquinas, mas de sete, todas as quais parecem estar afixadas no corpo inconsciente de um menino. Não o conheço, mas ele não pode ser muito mais velho do que eu. Seus cabelos estão cortados perto do couro cabeludo, um suave tom de marrom interrompido apenas pelos fios perfurados em seu crânio. Há um lençol puxado até o pescoço, então não consigo ver muito mais do que o rosto em repouso, mas a visão dele ali, amarrado assim, me lembra algo.

Um flash de memória queima através de mim.

É vago, distorcido. Tento afastar as camadas nebulosas, mas quando consigo vislumbrar algo – uma caverna, um homem alto e negro, um tanque cheio de água – sinto uma pontada aguda e eletrizante de raiva que deixa minhas mãos tremendo. Isso me incomoda.

Dou um passo brusco para trás e balanço minha cabeça uma fração de polegada, tentando me recompor, mas minha mente está enevoada, confusa. Quando finalmente me recomponho, percebo que Anderson está me observando.

Lentamente, ele dá um passo à frente, seus olhos se estreitando na minha direção. Ele não diz nada, mas sinto, sem saber por que, exatamente, que não posso desviar o olhar. Eu devo manter contato visual enquanto ele quiser. É brutal.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — diz ele.

Não é uma pergunta. Não tenho certeza de que exija uma resposta. Mesmo assim...

— Nada de consequência, senhor.

— Consequência, — diz ele, com uma pitada de sorriso brincando em seus lábios. Ele dá alguns passos em direção a uma das enormes janelas e cruza as mãos atrás das costas. Por um tempo, ele fica em silêncio.

— Tão interessante, — diz ele finalmente. — Que nunca discutimos consequências.

O medo desliza, subindo pela minha espinha.

Ele ainda está olhando pela janela quando diz baixinho:

— Você não vai esconder nada de mim. Tudo o que você sente, toda emoção que experimenta - pertence a mim. Você entende?

— Sim, senhor.

— Você sentiu algo quando entrou aqui, — ele diz novamente. Desta vez, sua voz está pesada com algo, algo sombrio e aterrorizante.

— Sim, senhor.

— E o que foi?

— Eu senti raiva, senhor.

Ele se vira com isso. Levanta as sobrancelhas.

— Depois da raiva, senti confusão.

— Mas raiva, — diz ele, caminhando em minha direção. — Por que raiva?

— Eu não sei, senhor.

— Você reconhece esse garoto? — ele diz, apontando para o corpo caído sem nem olhar para ele.

— Não, senhor.

— Não. — Sua mandíbula aperta. — Mas ele lembra você de alguém.

Eu hesito. Tremores ameaçam, e eu os expulso. O olhar de Anderson é tão intenso que mal consigo encontrar seus olhos.

Olho novamente para o rosto adormecido do garoto.

— Sim, senhor.

Os olhos de Anderson se estreitam. Ele espera por mais.

— Senhor, — eu digo baixinho. — Ele me lembra você.

Inesperadamente, Anderson fica parado. Surpresa reorganiza sua expressão e de repente, surpreendentemente...

Ele ri.

É uma risada tão genuína que parece chocá-lo ainda mais do que me choca. Eventualmente, o riso se instala em um sorriso. Anderson enfia as mãos nos bolsos e se inclina contra a moldura da janela. Ele olha para mim com algo parecido com fascínio, e é um momento tão puro, um momento tão intocado pela malícia que ele me parece, de repente, tão bonito.

Mais do que isso.

A visão dele – algo sobre seus olhos, algo sobre a maneira como ele se move, a maneira como ele sorri – A visão dele de repente mexe algo em meu coração. Um calor antigo. Um caleidoscópio de borboletas mortas chutado por uma breve e seca rajada de vento.

Isso me deixa doente.

O olhar pedregoso retorna ao seu rosto.

— Isso. Aí. — Ele desenha um círculo no ar com o dedo indicador. — Esse olhar no seu rosto. O que é que foi isso?

Meus olhos se arregalam. Inquietação toma conta de mim, aquecendo minhas bochechas.

Pela primeira vez, eu vacilo.

Ele move-se rapidamente, avançando para mim com tanta raiva que eu questiono a minha capacidade de permanecer estável. Grosseiramente, ele pega meu queixo na mão e levanta meu rosto. Não há segredos aqui, tão perto dele. Eu não posso esconder nada.

— Agora, — diz ele, com a voz baixa. Com raiva. — Diga-me agora.

Eu quebro o contato visual, tentando desesperadamente reunir meus pensamentos, e ele grita para que eu olhe para ele.

Eu me forço a encontrar seus olhos. E então eu me odeio, odeio minha boca por trair minha mente. Odeio minha mente por pensar em tudo.

— Você – você é extremamente bonito, senhor.

Anderson abaixa a mão como se tivesse sido queimado. Ele se afasta, parecendo, pela primeira vez...

Desconfortável.

— Você está... — Ele para, franzindo a testa. E então, muito rápido, a raiva nubla sua expressão. Sua voz é praticamente um rosnado quando ele diz: — Você está mentindo para mim.

— Não, senhor. — Eu odeio o som da minha voz, o pânico ofegante.

Os olhos dele afiam. Ele deve ver algo na minha expressão que lhe dá uma pausa, porque a raiva evapora de seu rosto.

Ele pisca para mim.

Então, com cuidado, ele diz:

— No meio de tudo isso... — ele acena para a sala, para a figura adormecida ligada às máquinas — de todas as coisas que poderiam estar passando pela sua cabeça, você estava pensando... que você me acha atraente.

Um calor traidor inunda meu rosto.

— Sim, senhor.

Anderson faz uma careta.

Ele parece querer dizer algo e depois hesita. Pela primeira vez, ele parece despreocupado.

Alguns segundos de silêncio torturado se estendem entre nós, e não tenho certeza da melhor maneira de proceder.

— Isso é inquietante, — Anderson finalmente diz, e principalmente para si mesmo. Ele pressiona dois dedos na parte interna do pulso e levanta o pulso na boca.

— Sim, — ele diz calmamente. — Diga a Max que houve um desenvolvimento incomum. Eu preciso vê-lo imediatamente.

Anderson me lança um breve olhar antes de dispensar, com um único movimento da cabeça, toda a troca mortificante.

Ele segue em direção ao garoto amarrado na cama e diz:

— Esse jovem faz parte de um experimento em andamento.

Não tenho certeza do que dizer, então não digo nada.

Anderson se inclina sobre o garoto, brincando com vários fios e depois endurece, de repente. Olha para mim pelo canto do olho.

— Você pode imaginar por que esse garoto faz parte de um experimento?

— Não, senhor.

— Ele tem um presente, — diz Anderson, endireitando-se. — Ele veio a mim voluntariamente e se ofereceu para compartilhar comigo.

Eu pisco, ainda sem saber como responder.

— Mas há muitos de vocês, não naturais, correndo soltos neste planeta, — diz Anderson. — Tantos poderes. Tantas habilidades diferentes. Nossos asilos estão cheios deles, cheios de poder. Eu tenho acesso a praticamente qualquer coisa que eu quiser. Então, o que o torna especial, hum? — Ele inclina a cabeça para mim. — Que poder ele poderia ter que seria maior que o seu? Mais útil?

Mais uma vez, não digo nada.

— Você quer saber? — ele pergunta, um toque de sorriso tocando seus lábios.

Isso parece um truque. Eu considero minhas opções.

Por fim, digo:

— Quero saber apenas se você quiser me dizer, senhor.

O sorriso de Anderson floresce. Dentes brancos. Prazer genuíno.

Sinto meu peito quente com seu elogio silencioso. Orgulho endireita meus ombros. Eu desvio meus olhos, olhando silenciosamente para a parede.

Ainda assim, vejo Anderson se afastar novamente, avaliando o garoto com outro olhar único e cuidadoso.

— Esses poderes foram desperdiçados com ele de qualquer maneira.

Ele remove o touchpad encaixado em um compartimento da cama do garoto e começa a tocar na tela digital, rolando e procurando informações. Ele olha uma vez para os monitores emitindo vários sinais vitais e franze a testa. Finalmente, ele suspira, passando a mão pelos cabelos perfeitamente arrumados. Eu acho que parece melhor quando está bagunçado. Mais quente. Mais suave. Familiar.

A observação me assusta.

Eu me afasto bruscamente e olho pela janela, me perguntando, de repente, se algum dia vou poder usar o banheiro.

— Juliette.

O timbre zangado de sua voz faz meu coração disparar. Eu me endireito em um instante. Olho para a frente.

— Sim, senhor, — eu digo, parecendo um pouco sem fôlego.

Percebo então que ele nem está olhando para mim. Ele ainda está digitando algo no touchpad quando diz, calmamente:

— Você estava sonhando acordada?

— Não, senhor.

Ele retorna o touchpad ao seu compartimento, as peças se conectando com um clique metálico satisfatório.

Ele olha para cima.

— Isso está ficando cansativo, — diz ele calmamente. — Eu já estou perdendo a paciência com você e nem chegamos ao fim do seu primeiro dia. — Ele hesita. — Você quer saber o que acontece quando perco a paciência com você, Juliette?

Meus dedos tremem; Eu os cerro em punhos.

— Não, senhor.

Ele estende a mão.

— Então me dê o que me pertence.

Dou um passo incerto para a frente e sua mão estendida voa para cima, palma para fora, me parando no lugar. Sua mandíbula aperta.

— Estou me referindo à sua mente, — diz ele. — Quero saber o que você estava pensando quando perdeu a cabeça por tempo suficiente para olhar pela janela. Eu quero saber o que você está pensando agora. Eu sempre vou querer saber o que você está pensando, — ele diz bruscamente. — Em todo momento. Quero todas as palavras, todos os detalhes, todas as emoções. Todo pensamento solto e esvoaçante que passa pela sua cabeça, eu quero, — ele diz, perseguindo-me. — Você entende? São meus. Você é minha.

Ele para a poucos centímetros do meu rosto.

— Sim, senhor, — eu digo, minha voz falhando.

— Só vou pedir isso mais uma vez, — diz ele, tentando moderar sua voz. — E se você me fizer trabalhar tanto novamente para obter as respostas que preciso, você será punida. Está claro?

— Sim, senhor.

Um músculo salta em sua mandíbula. Os olhos dele se estreitam.

— Com o que você estava sonhando acordada?

Eu engulo. Olho para ele. Desvio o olhar.

Silenciosamente, eu digo:

— Eu estava pensando, senhor, se você me deixaria usar o banheiro.

O rosto de Anderson fica repentinamente vazio.

Ele parece atordoado. Ele me olha mais um momento antes de dizer, sem rodeios:

— Você estava pensando se poderia usar o banheiro.

— Sim, senhor. — Meu rosto esquenta.

Anderson cruza os braços sobre o peito.

— Isso é tudo?

De repente, sinto-me compelida a dizer a ele o que pensei sobre o cabelo dele, mas luto contra o desejo. A culpa me atravessa com a indulgência, mas minha mente é acalmada por um calor familiar e estranho, e de repente não sinto nenhuma culpa por ser apenas parcialmente sincera.

— Sim, senhor. Isso é tudo.

Anderson inclina a cabeça para mim.

— Não há novas ondas de raiva? Não há perguntas sobre o que estamos fazendo aqui? Nenhuma preocupação com o bem-estar do garoto... — ele aponta — ...ou os poderes que ele possa ter?

— Não, senhor.

— Entendo, — diz ele.

Eu encaro.

Anderson respira fundo e desfaz um botão do blazer. Ele passa as duas mãos pelos cabelos. Começa a andar.

Ele está ficando confuso, eu percebo, e não sei o que fazer sobre isso.

— É quase engraçado, — diz ele. — Isso é exatamente o que eu queria e, no entanto, de alguma forma, estou decepcionado.

Ele respira fundo, afiado, e gira ao redor.

Me estuda.

— O que você faria, — diz ele, acenando com a cabeça uma polegada para a esquerda, — se eu lhe pedisse para se jogar pela janela?

Eu me viro, examinando a grande janela pairando sobre nós dois.

É um vitral maciço e circular que ocupa metade da parede. As cores se espalham pelo chão, criando uma bela, distraída obra de arte sobre os pisos de concreto polido. Ando até a janela, corro meus dedos pelas vidraças ornamentadas de vidro. Observo a extensão de verde abaixo. Estamos pelo menos quinhentos pés acima do solo, mas a distância não inspira meu medo. Eu poderia dar esse salto facilmente, sem ferimentos.

Eu olho para cima.

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Ele dá um passo mais perto.

— E se eu pedisse para você fazer isso sem usar seus poderes? E se fosse simplesmente meu desejo que você se jogasse pela janela?

Uma onda de calor abrasador se move através de mim, selando minha boca. Amarrando meus braços. Não consigo abrir minha própria boca contra o ataque aterrorizante, mas só posso imaginar que faz parte desse desafio.

Anderson deve estar tentando testar minha lealdade.

Ele deve estar tentando me pegar em um momento de desobediência. O que significa que eu preciso me provar. Minha lealdade.

É preciso uma quantidade extraordinária de minha própria força sobrenatural para combater as forças invisíveis que fecham minha boca, mas eu consigo. E quando finalmente posso falar, digo:

— Eu faria isso com prazer, senhor.

Anderson dá mais um passo à frente, seus olhos brilhando com algo... Algo novinho em folha. Algo semelhante a se questionar.

— Você faria mesmo? — ele diz suavemente.

— Sim, senhor.

— Você faria qualquer coisa que eu pedisse para você fazer? Qualquer coisa mesmo?

— Sim, senhor.

Anderson ainda está segurando meu olhar quando ele levanta o pulso na boca novamente e diz baixinho:

— Venha aqui. Agora.

Ele abaixa a mão.

Meu coração começa a bater forte. Anderson se recusa a desviar o olhar de mim, seus olhos ficando mais azuis e brilhantes a cada segundo. É quase como se ele soubesse que apenas seus olhos são suficientes para perturbar meu equilíbrio. E então, sem aviso, ele agarra meu pulso. Percebo tarde demais que ele está checando minha pulsação.

— Tão rápido, — ele diz suavemente. — Como um passarinho. Diga-me, Juliette. Você está com medo?

— Não, senhor.

— Você está animada?

— Eu... eu não sei, senhor.

A porta se abre e Anderson solta meu pulso. Pela primeira vez em minutos, Anderson desvia o olhar de mim, finalmente quebrando uma conexão invisível e dolorosa entre nós. Meu corpo fica frouxo de alívio e, lembrando-me, rapidamente me endireito.

Um homem entra.

Cabelos escuros, olhos escuros, pele pálida. Ele é jovem, mais jovem que Anderson, acho, mas mais velho que eu. Ele usa um fone de ouvido. Ele parece incerto.

— Juliette, — diz Anderson, — este é Darius.

Eu me viro para encarar Darius.

Darius não diz nada. Ele parece paralisado.

— Não vou mais precisar dos serviços de Darius, — diz Anderson, olhando na minha direção.

Darius empalidece. Mesmo de onde eu estou, eu posso ver o corpo dele começar a tremer.

— Senhor? — Eu digo confusa.

— Não é óbvio? — Diz Anderson. — Gostaria que você o descartasse.

A compreensão me atinge.

— Certamente, senhor.

No momento em que me viro na direção de Darius, ele grita; é um som agudo e assustador que irrita meus ouvidos. Ele corre para a porta e eu giro rapidamente, jogando meu braço para detê-lo. A força do meu poder o envia voando pelo resto do caminho até a saída, seu corpo batendo com força contra a parede de aço.

Ele cai, com um gemido suave, no chão.

Eu abro minha palma. Ele grita.

O poder surge através de mim, enchendo meu sangue de fogo. O sentimento é intoxicante. Delicioso.

Eu levanto minha mão e o corpo de Darius levanta do chão, sua cabeça jogada para trás em agonia, seu corpo atravessado por varas invisíveis. Ele continua a gritar e o som enche meus ouvidos, inunda meu corpo com endorfinas. Minha pele zumbe com sua energia. Eu fecho meus olhos.

Então eu fecho meu corpo.

Gritos frescos perfuram o silêncio, ecoando pelo vasto espaço cavernoso. Sinto um sorriso puxando meus lábios e me perco no sentimento, na liberdade de meu próprio poder. Há uma alegria nisso, em usar minha força tão livremente, em finalmente deixar ir.

Felicidade.

Meus olhos se abrem, mas eu me sinto drogada, delirantemente feliz enquanto vejo seu corpo suspenso e preso começar a convulsionar. O sangue jorra do nariz, borbulha dentro da boca aberta e ofegante. Ele está engasgado. Quase morto. E eu estou apenas começando...

O fogo deixa meu corpo tão de repente que me faz tropeçar para trás.

Darius cai, com um baque surdo, no chão.

Um vazio desesperado queima através de mim, me deixa fraca. Eu levanto minhas mãos como se estivesse em oração, tentando descobrir o que aconteceu, me sentindo de repente perto das lágrimas. Eu giro, tentando entender...

Anderson está apontando uma arma para mim.

Eu abaixo minhas mãos.

Anderson deixa cair a arma.

O poder surge através de mim mais uma vez e respiro fundo, agradecida, encontrando alívio no sentimento que inunda meus sentidos, reabastecendo minhas veias. Eu pisco várias vezes, tentando limpar a cabeça, mas são os choros patéticos e agonizados de Darius que me trazem de volta ao momento presente. Eu olho para seu corpo quebrado, as poças rasas de sangue no chão. Sinto-me vagamente irritada.

— Incrível.

Eu me viro.

Anderson está me encarando com um espanto perverso.

— Incrível, — ele diz novamente. — Isso foi incrível.

Eu olho para ele, incerta.

— Como você está se sentindo? — ele pergunta.

— Decepcionada, senhor.

As sobrancelhas dele se juntam.

— Por que está decepcionada?

Olho para Darius.

— Porque ele ainda está vivo, senhor. Não completei a tarefa.

O rosto de Anderson abre um sorriso tão amplo que eletrifica seus traços. Ele parece jovem. Ele parece gentil. Ele parece maravilhoso.

— Meu Deus, — ele diz suavemente. — Você é perfeita.


16. KENJI

— Ei — eu chamo. — Espere!

Ainda estou correndo atrás de Warner e, em um movimento que surpreende absolutamente ninguém, ele não espera. Ele nem diminui a velocidade. Na verdade, tenho certeza que ele acelera.

Percebo, ao acelerar o ritmo, que não sinto ar fresco há alguns dias. Olho em volta enquanto vou tentando entender os detalhes. O céu está mais azul do que eu já vi. Não há nuvens à vista por quilômetros. Não sei se esse clima é exclusivo da localização geográfica do setor 241 ou se é apenas uma mudança climática regular. Independentemente disso, respiro fundo. O ar é bom.

Eu estava ficando claustrofóbico na sala de jantar, passando horas intermináveis com os doentes e feridos. As cores da sala começaram a sangrar juntas, todos os lençóis de linho e cinza e a luz muito brilhante e artificial. Os cheiros eram intensos também. Sangue e água sanitária. Antisséptico. Isso estava fazendo minha cabeça nadar. Acordei com uma enorme dor de cabeça esta manhã – porém, para ser justo, acordo com uma forte dor de cabeça quase todas as manhãs – mas estar do lado de fora está começando a acalmar a dor.

Quem saberia.

É bom aqui fora, mesmo que esteja um pouco quente nessa roupa. Estou usando um par de roupas velhas que encontrei no meu quarto. Sam e Nouria se certificaram desde o início que tínhamos tudo o que precisávamos – mesmo agora, mesmo depois da batalha.

Temos produtos de higiene pessoal. Roupas limpas.

Warner, por outro lado...

Eu olho para sua figura em retirada. Não acredito que ele ainda não tomou banho. Ele ainda está vestindo a jaqueta de couro de Haider, mas está praticamente destruída. Suas calças pretas estão rasgadas, seu rosto ainda manchado com o que eu só posso imaginar como sendo uma combinação de sangue e sujeira. Seu cabelo está selvagem. Suas botas são maçantes. E de alguma forma – de alguma forma – ele ainda consegue parecer inteiro.

Eu não entendo.

Eu diminuo o passo quando paro ao lado dele, mas ainda estou andando com força.

Respirando com dificuldade. Começando a suar.

— Ei — eu digo, puxando minha camisa para longe do meu peito, onde está começando a grudar. O tempo está ficando mais estranho; de repente está sufocante. Eu estremeço para cima, em direção ao sol.

Aqui, dentro do Santuário, tenho tido uma ideia melhor do estado do nosso mundo.

Novidade: A Terra ainda está basicamente indo à merda. O Restabelecimento acaba de tirar vantagem da merda mencionada, fazendo com que essas coisas pareçam irreparavelmente ruins.

A verdade, por outro lado, é que eles são apenas reparavelmente ruins.

Rá.

— Ei — eu digo novamente, desta vez dando um tapinha no ombro de Warner. Ele tira minha mão com tanto entusiasmo que quase tropeço.

— Ok, escute, eu sei que você está chateado, mas...

Warner desaparece subitamente.

— Ei, onde diabos você está indo? — Eu grito, minha voz retumbando. — Você está voltando para o seu quarto? Devo apenas encontrar você lá?

Algumas pessoas se voltam para me encarar.

Os caminhos normalmente ocupados estão bem vazios agora, porque muitos de nós ainda estão em convalescença, mas as poucas pessoas que permanecem no sol brilhante me lançam olhares sujos.

Como se eu fosse o esquisito.

— Deixe-o em paz — alguém assobia para mim. — Ele está sofrendo.

Eu reviro meus olhos.

— Ei - babaca — eu grito, esperando que Warner ainda esteja perto o suficiente para me ouvir. — Eu sei que você a ama, mas eu também e eu...

Warner reaparece tão perto do meu rosto que quase grito. Dou um passo repentino e aterrorizado para trás.

— Se você valoriza sua vida — diz ele — não se aproxime de mim.

Estou prestes a apontar que ele está sendo dramático, mas ele me interrompe.

— Eu não disse que isso para ser dramático. Eu nem disse isso para te assustar. Estou dizendo isso por respeito Ella, porque sei que ela prefere que eu não mate você.

Fico quieto por um segundo inteiro. E então eu franzo a testa.

— Você está fodendo comigo agora? Você definitivamente está fodendo comigo agora. Certo?

Os olhos de Warner ficam furiosos. Elétricos. Esse tipo assustador de loucura.

— Toda vez que você afirma entender até uma fração do que estou sentindo, quero estripá-lo. Eu quero cortar sua artéria carótida. Eu quero arrancar suas vértebras, uma por uma. Você não tem ideia do que é amá-la — ele diz com raiva. — Você nem pode começar a imaginar. Então pare de tentar entender.

Uau, às vezes eu realmente odeio esse cara.

Eu tenho que literalmente apertar minha mandíbula para me impedir de dizer o que realmente estou pensando agora, que é que eu quero colocar meu punho no crânio dele. (Na verdade, imagino por um momento, imagino como seria esmagar a cabeça dele como uma noz. É estranhamente satisfatório.) Mas então lembro que precisamos desse babaca e que a vida de J está em risco. O destino do mundo está em risco.

Então, luto contra a raiva e tento novamente.

— Escute — eu digo, fazendo um esforço para suavizar minha voz. — Eu sei o que vocês têm é especial. Eu sei que realmente não consigo entender esse tipo de amor. Quero dizer, inferno, eu sei que você estava pensando em propor a ela – e isso deve ter...

— Eu propus a ela.

De repente eu endereço.

Percebo apenas pelo som de sua voz que ele não está brincando. E eu posso dizer pelo olhar em seu rosto – o flash infinitesimal de miséria em seus olhos – que esta é a minha abertura. Esses são os dados que estou perdendo. Essa é a fonte da agonia que o afogou.

Examino a área imediata em busca de bisbilhoteiros. Sim. Vários dos novos membros do fã-clube Warner embalando seus corações.

— Vamos lá — eu digo a ele. — Vou levá-lo para almoçar.

Warner pisca, a confusão temporariamente limpando sua raiva. E então, bruscamente:

— Não estou com fome.

— Isso é obviamente besteira. — Eu o olho de cima a baixo. Ele parece bem – ele sempre parece bem, o idiota – mas ele parece com fome. Não apenas o tipo regular de fome, também, mas a fome desesperada que está com tanta fome que nem parece mais fome.

— Você não come nada há dias — digo a ele. — E você sabe melhor do que eu que será inútil em uma missão de resgate se desmaiar antes mesmo de chegar lá.

Ele olha para mim.

— Vamos lá, mano. Você quer que J volte para casa com pele e ossos? Do jeito que você está indo, ela vai dar uma olhada em você e correr gritando na direção oposta. Essa não é uma boa aparência. Todos esses músculos precisam de comida. — Eu cutuco seu bíceps. — Alimente seus filhos.

Warner se afasta de mim e respira fundo, irritado. O som disso quase me faz sorrir.

Parece com os velhos tempos.

Eu acho que estou fazendo progresso.

Porque desta vez, quando digo para ele me seguir, ele não luta.

 

 

 

                               CONTINUA