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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


IMAGINA-ME
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12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

CONTINUA

12. KENJI

Ninguém veio ao funeral.

Demorou dois dias para enterrar todos os corpos. Castle cansou sua mente ao ponto de quase adoecer, escavando tanta sujeira. O resto de nós usou pás. Mas não havia muitos de nós para fazer o trabalho naquele momento, e não há o suficiente para assistir a um funeral agora.

Ainda assim, estou sentado aqui ao amanhecer, empoleirado no topo de uma pedra, sentado no alto do vale onde enterramos nossos amigos. Companheiros de equipe. Meu braço esquerdo está em uma tipóia, minha cabeça dói como o inferno, meu coração está permanentemente quebrado.

Eu estou bem, de outra forma.

Alia vem atrás de mim, tão quieta que eu quase nem a noto. Eu quase nunca a noto.

Mas agora há muito poucos corpos para ela se esconder por trás deles. Eu me movo na rocha e ela se senta ao meu lado, nós dois olhando para o mar de túmulos abaixo. Ela está segurando dois dentes de leão. Oferece um para mim. Eu o pego.

Juntos, deixamos cair as flores, observando como elas flutuam suavemente no abismo.

Alia suspira.

— Você está bem? — Eu pergunto a ela.

— Não.

— Sim. — Eu concordo.

Segundos se passam. Uma brisa suave empurra o cabelo para fora do meu rosto. Eu olho diretamente para o sol recém-nascido, desafiando-o a queimar meus olhos.

— Kenji?

— Sim?

— Onde está Adam?

Balanço a cabeça. Dou de ombros.

— Você acha que vamos encontrá-lo? — ela pergunta, sua voz praticamente um sussurro.

Eu olho para cima.

Há um desejo lá – algo mais que preocupação geral em seu tom. Eu me viro completamente para encontrar seus olhos, mas ela não olha para mim.

Ela está repentinamente corando.

— Eu não sei, — eu digo a ela. — Acredito que sim.

— Eu também, — ela diz suavemente.

Ela descansa a cabeça no meu ombro. Nós olhamos para longe. Deixamos o silêncio devorar nossos corpos.

— Você fez um trabalho incrível, a propósito. — Eu aceno para o vale abaixo. — Isso é lindo.

Alia realmente se superou. Ela e Winston.

Os monumentos que eles projetaram são simples e elegantes, feitos de pedra originária da própria terra.

E há dois.

Um pelas vidas perdidas aqui, no Santuário, dois dias atrás. O outro pelas vidas perdidas lá, no Ponto Ômega, dois meses atrás. A lista de nomes é longa. A injustiça de

tudo ruge através de mim.

Alia pega minha mão. Aperta.

Eu percebo que estou chorando.

Eu me afasto, me sentindo idiota, e Alia me solta, me dá espaço para me recuperar. Eu limpo meus olhos com força excessiva, com raiva de mim mesmo por desmoronar. Irritado comigo mesmo por estar decepcionado. Irritado comigo mesmo por sempre ter esperança.

Perdemos J.

Não temos certeza exatamente como isso aconteceu. Warner está praticamente em coma desde aquele dia, e obter informações dele é quase impossível. Mas parece que realmente nunca tivemos uma chance, no final. Um dos homens de Anderson tinha a capacidade sobrenatural de se clonar, e demoramos muito tempo para descobrir. Não podíamos entender por que a defesa deles de repente dobrava e triplicava, justo quando pensávamos que as estávamos desgastando. Mas acontece que Anderson tinha um suprimento inesgotável de soldados fictícios. Warner não conseguiu lidar com isso. Era a única coisa que ele falava repetidamente...

Eu deveria saber, eu deveria saber

...e apesar do fato de Warner estar se matando pelo descuido, Castle diz que foi justamente por causa de Warner que qualquer um de nós ainda está vivo.

Não deveria haver nenhum sobrevivente. Esse foi o decreto de Anderson. A ordem que ele deu depois que eu caí.

Warner descobriu o truque bem a tempo.

Sua capacidade de aproveitar os poderes do soldado e usá-lo contra ele era nossa única graça salvadora, aparentemente, e quando o cara percebeu que ele tinha uma concorrência, ele pegou o que podia obter e fugiu.

O que significa que ele conseguiu prender Haider e Stephan inconscientes. Isso significa que Anderson escapou.

E J, é claro.

Isso significa que eles pegaram J.

— Devemos voltar? — Alia diz calmamente. — Castle estava acordado quando saí. Ele disse que queria falar com você.

— Sim. — Eu aceno, me levantando. Me recompondo. — Alguma atualização sobre James, a propósito? Ele já está liberado para receber visitas?

Alia balança a cabeça. Também se levanta. — Ainda não, — diz ela. — Mas ele estará acordado em breve. As meninas estão otimistas. Entre os poderes de cura dele e os delas, elas têm certeza de que serão capazes de fazê-lo passar por isso.

— Sim, — eu digo, respirando fundo. — Tenho certeza que você está certa.

Mentira.

Não tenho certeza de nada.

Os destroços deixados na sequência do ataque de Anderson deixaram todos nós para baixo. Sonya e Sara estão trabalhando o tempo todo. Sam ficou gravemente ferida.

Nazeera ainda está inconsciente. Castle está fraco. Centenas de outros estão tentando se curar.

Uma séria escuridão desceu sobre todos nós.

Lutamos muito, mas levamos muitos golpes. Éramos muito poucos para começar. Havia tanta coisa que qualquer um de nós poderia fazer.

Essas são as coisas que continuo dizendo a mim mesmo.

Começamos a andar.

— Isso parece pior, não é? — Alia diz. — Pior que da última vez. — Ela para, de repente, e eu a sigo, estudando a cena diante de nós. Os prédios destruídos, os detritos ao longo dos caminhos. Fizemos o possível para limpar o pior, mas se eu olhar no lugar errado na hora errada, ainda encontro sangue nos galhos das árvores quebrados. Estilhaços de vidro.

— Sim, — eu digo. — De alguma forma, isso é muito pior.

Talvez porque as apostas fossem mais altas. Talvez porque nunca perdemos J antes.

Talvez porque eu nunca vi Warner tão perdido ou quebrado. Um Warner zangado era melhor que isso. Pelo menos, Warner zangado ainda tinha alguma luta restante dentro de si.

Alia e eu nos separamos quando entramos na tenda de jantar. Ela está oferecendo seu tempo como voluntária, indo de maca em maca para verificar as pessoas, oferecendo comida e água sempre que necessário, e essa tenda de jantar é atualmente o seu local de trabalho. O enorme espaço foi transformado em uma espécie de lar convalescente. Sonya e Sara estão priorizando ferimentos graves; ferimentos leves estão sendo tratados da maneira tradicional, pelo que resta da equipe original de médicos e enfermeiros. Esta sala está empilhada, de ponta a ponta, com aqueles de nós que estão curando ferimentos leves ou descansando após uma intervenção importante.

Nazeera está aqui, mas ela está dormindo.

Sento-me em um assento ao lado de sua cama, checando-a do jeito que faço a cada hora. Nada mudou. Ela ainda está deitada aqui, ainda como pedra, a única prova de vida vinda de um monitor próximo e os movimentos suaves de sua respiração. O ferimento dela era muito pior que o meu. As meninas dizem que ela vai ficar bem, mas pensam que ela estará dormindo até pelo menos amanhã. Mesmo assim, me mata olhar para ela. Observar essa garota cair foi uma das coisas mais difíceis que já tive de testemunhar.

Eu suspiro, arrastando uma mão pelo meu rosto. Ainda me sinto uma merda, mas pelo menos estou acordado. Poucos de nós estão.

Warner é um deles.

Ele ainda está coberto de sangue seco, recusando-se a ser ajudado. Ele está consciente, mas está deitado de costas, encarando o teto desde o dia em que foi arrastado até aqui. Se eu não soubesse melhor, pensaria que ele era um cadáver. Eu tenho o verificado também, de vez em quando – certificando-me de que eu peguei aquela subida e queda suave de seu peito – apenas para ter certeza de que ele ainda está respirando.

Eu acho que ele está em choque.

Aparentemente, uma vez que ele percebeu que J se foi, ele rasgou os soldados restantes em pedaços com as próprias mãos.

Aparentemente.

É claro que não compro essa, porque a história soa um pouco à esquerda do que considero credível, mas, então, tenho ouvido todo tipo de merda sobre Warner nos últimos dias. Ele deixou de ser apenas relativamente consequente para se tornar genuinamente aterrorizante e assumir o status de super-herói – em trinta e seis horas. Em uma reviravolta na história que eu nunca poderia ter esperado, as pessoas aqui estão subitamente obcecadas por ele.

Eles acham que ele salvou nossas vidas.

Um dos voluntários que verificou meu ferimento ontem me disse que ouviu alguém dizer que viu Warner arrancar uma árvore inteira com apenas uma mão.

Tradução: Ele provavelmente quebrou um galho de árvore.

Outra pessoa me disse que ouvira de um amigo que uma garota o vira salvar um grupo de crianças do fogo amigo.

Tradução: Ele provavelmente jogou um monte de crianças no chão.

Outra pessoa me disse que Warner havia assassinado sozinho quase todos os soldados supremos.

Tradução...

Ok, esse último é meio que verdade.

Mas sei que Warner não estava tentando fazer um favor a ninguém aqui. Ele não dá a mínima para ser um herói.

Ele estava apenas tentando salvar a vida de J.

— Você deveria falar com ele, — diz Castle, e eu me assusto tanto que ele dá um pulo para trás, surtando por um segundo também.

— Desculpe, senhor, — eu digo, tentando diminuir minha frequência cardíaca. — Eu não vi você aí.

— Está tudo bem, — diz Castle. Ele está sorrindo, mas seus olhos estão tristes. Exaustos. — Como vai você?

— Tão bem quanto se pode esperar, — digo. — Como está Sam?

— Tão bem quanto se pode esperar, — diz ele. — Nouria está lutando, é claro, mas Sam deve conseguir se recuperar totalmente. As meninas dizem que era principalmente uma ferida de carne. Seu crânio estava fraturado, mas elas estão confiantes de que podem recuperá-lo quase do jeito que era. — Ele suspira. — Elas ficarão bem, as duas. Com o tempo.

Eu o estudo por um momento, de repente o vendo como nunca o vi antes: Velho.

Os dreads de Castle estão desamarrados, pairando soltos em seu rosto, e algo sobre o rompimento de seu estilo habitual – dreads amarrados ordenadamente na base de seu pescoço – me faz perceber coisas que eu nunca tinha visto antes. Novos cabelos grisalhos.

Novas rugas ao redor dos olhos, da testa. Leva um pouco mais de tempo para se endireitar como costumava fazer. Ele parece cansado. Parece que ele foi chutado muitas vezes.

Como o resto de nós.

— Eu odeio que isso seja o que parece ter conquistado a distância entre nós, — diz ele após um período de silêncio. — Mas agora Nouria e eu, os dois líderes da resistência, sofremos grandes perdas. A coisa toda foi difícil para ela, assim como foi para mim. Ela precisa de mais tempo para se recuperar.

Eu respiro fundo.

Até a menção daquele tempo sombrio inspira uma dor no meu coração. Não me permito pensar muito na casca de uma pessoa que Castle se tornou depois que perdemos o Ponto Ômega. Se o fizer, os sentimentos me dominam tão completamente que eu me afundo direto na raiva. Eu sei que ele estava sofrendo. Eu sei que havia muita coisa acontecendo.

Eu sei que foi difícil para todos. Mas para mim, perder Castle assim – ainda que temporariamente – era pior do que perder todo mundo. Eu precisava dele, e parecia que ele havia me abandonado.

— Eu não sei, — eu digo, limpando a garganta. — Não é realmente a mesma coisa, é? O que perdemos – quero dizer, perdemos literalmente tudo no atentado. Não apenas nosso pessoal e nossa casa, mas anos de pesquisa. Equipamento inestimável. Tesouros pessoais. — Eu hesito, tento ser delicado. — Nouria e Sam perderam apenas metade do seu povo, e sua base ainda está de pé. Essa perda não é tão grande.

Castle se vira, surpreso.

— Não é como se fosse uma competição.

— Eu sei disso, — eu digo. — É só que...

— E eu não gostaria que minha filha conhecesse o tipo de sofrimento que experimentamos. Você não tem ideia da profundidade do que ela já sofreu em seus poucos anos de vida. Ela certamente não precisa sentir mais dor para merecer sua compaixão.

— Eu não quis dizer isso, — eu digo rapidamente, balançando a cabeça. — Eu só estou tentando apontar que...

— Você já viu James?

Eu olho para ele, minha boca ainda formando uma palavra não dita. Castle mudou de assunto tão rapidamente que quase me deu chicotadas. Isso não é do feitio dele. Isso não é do nosso feitio.

Castle e eu nunca tivemos problemas para conversar. Nunca evitamos tópicos difíceis e conversas confidenciais. Mas as coisas estão afundando há um tempo agora, se estou sendo honesto. Talvez desde que eu percebi que Castle estava mentindo para mim, todos esses anos, sobre J. Talvez eu tenha sido um pouco menos respeitoso ultimamente. Linhas cruzadas. Talvez toda essa tensão esteja vindo de mim – talvez seja eu quem o empurre sem perceber.

Eu não sei.

Eu quero consertar o que está acontecendo entre nós, mas agora, estou muito confuso.

Entre J e Warner e James e Nazeera inconsciente – Minha cabeça está em um lugar tão estranho que não tenho certeza se tenho capacidade mental para muito mais.

Então eu deixei pra lá.

— Não, eu não vi James, — eu digo, tentando parecer otimista. — Ainda esperando a luz verde. — A última vez que verifiquei, James estava na tenda médica com Sonya e Sara.

James tem suas próprias habilidades de cura, então ele deve estar bem, fisicamente – eu sei disso – mas ele passou por muita coisa ultimamente. As meninas queriam ter certeza de que ele estava completamente descansado, alimentado e hidratado antes que ele tivesse visitas.

Castle assente.

— Warner se foi, — diz ele depois de um momento, um argumento non sequitur*, se é que houve algum.

— O que? Não, eu apenas o vi. Ele... — Eu me interrompo quando olho para cima, esperando encontrar a visão familiar dele deitado em sua cama como uma carcaça. Mas Castle está certo. Ele se foi.

Eu viro minha cabeça, vasculhando a sala em busca de sua figura em retirada. Eu não vejo nada.

— Eu ainda acho que você deveria falar com ele, — diz Castle, retornando à sua declaração de abertura.

Eu me arrepio.

— Você é o adulto, — eu indico. — Foi você quem quis que ele se refugiasse entre nós. Você é quem acreditou que ele poderia mudar. Talvez você deva falar com ele.

— Não é disso que ele precisa, e você sabe disso. — Castle suspira. Olha pela sala. — Por que todo mundo tem tanto medo dele? Por que você tem tanto medo dele?

— Eu? — Meus olhos se arregalam. — Não tenho medo dele. Ou, seja como for, não sou o único com medo dele. Embora sejamos realistas, — murmuro — qualquer pessoa com duas células cerebrais para se esfregar deve ter medo dele.

Castle levanta uma sobrancelha.

— Exceto você, é claro, — acrescento apressadamente. — Que razão você teria para ter medo do Warner? Ele é um cara tão legal. Adora crianças. Grande conversador. Ah, e bônus: ele não mata mais pessoas profissionalmente. Não, agora matar pessoas é apenas um hobby gratificante.

Castle suspira, visivelmente irritado.

Eu sorrio. — Senhor, tudo o que estou dizendo é que realmente não o conhecemos, certo? Quando Juliette estava por perto...

— Ella. O nome dela é Ella.

— Uh-huh. Quando ela estava por perto, Warner era tolerável. Pouco. Mas agora ela não está por perto, e ele está agindo como o cara que eu lembro quando me alistei, o cara que ele era quando estava trabalhando para o pai e dirigindo o Setor 45. Que razão ele tem para ser leal ou gentil com o resto de nós?

Castle abre sua boca para responder, mas só então chega a minha salvação: almoço.

Um voluntário sorridente aparece, distribuindo saladas simples em tigelas de papel alumínio. Eu tomo a comida oferecida e talheres de plástico com um super entusiasmado obrigado, e rasgo imediatamente a tampa do recipiente.

— Warner recebeu um duro golpe, — diz Castle. — Ele precisa de nós agora mais do que nunca.

Olho para Castle. Coloco uma garfada de salada na minha boca. Mastigo devagar, ainda decidindo como responder, quando me distraio com o movimento a distância.

Eu levanto os olhos.

Brendan, Winston, Ian e Lily estão no canto, reunidos em torno de uma pequena mesa improvisada, todos segurando tigelas de papEllalumínio. Eles estão acenando para nós.

Faço um gesto com uma garfada de salada. Falo com minha boca cheia.

— Você quer se juntar a nós?

Castle suspira quando ele se levanta, alisando rugas invisíveis em suas calças pretas.

Olho para a figura adormecida de Nazeera enquanto junto minhas coisas. Eu sei, racionalmente, que ela vai ficar bem, mas ela está se recuperando de um golpe no peito – não muito diferente de J uma vez – e dói vê-la tão vulnerável. Especialmente para uma garota que uma vez riu na minha cara com a perspectiva de ser dominada.

Isso me assusta.

— Você vem? — Castle diz, olhando por cima do ombro. Ele já está a alguns passos de distância, e eu não sei há quanto tempo estou parado aqui, olhando para Nazeera.

— Oh, sim, — eu digo. — Bem atrás de você.

No minuto em que nos sentamos à mesa deles, sei que algo está errado. Brendan e Winston estão sentados rigidamente, lado a lado, e Ian não faz mais do que olhar para mim quando me sento. Acho essa recepção especialmente estranha, considerando o fato de que eles me chamaram. Você pensaria que eles ficariam felizes em me ver.

Depois de alguns minutos de silêncio desconfortável, Castle fala. — Eu estava apenas dizendo a Kenji, — diz ele, — que ele deveria conversar com Warner.

Brendan olha para cima.

— Essa é uma ótima ideia.

Eu atiro a ele um olhar sombrio.

— Não, sério — diz ele, escolhendo cuidadosamente um pedaço de batata para comer.

Espere – onde eles conseguiram batatas? Tudo o que consegui foi salada. — Alguém definitivamente precisa falar com ele.

— Alguém definitivamente precisa, — eu digo, irritado. Eu estreito meus olhos para as batatas de Brendan. — Onde você conseguiu isso?

— Isso é exatamente o que eles me deram, — diz Brendan, olhando surpreso. — Claro, estou feliz em compartilhar.

Eu me movo rapidamente, pulando da minha cadeira para arrancar um pedaço de batata da tigela. Enfio o pedaço inteiro na boca antes mesmo de me sentar e ainda estou mastigando quando agradeço a ele.

Ele parece um pouco repugnado.

Acho que sou um homem das cavernas quando Warner não está por perto para me manter decente.

— De qualquer forma, Castle está certo, — diz Lily. — Você deveria falar com ele, e logo. Acho que ele é meio que um canhão armado agora.

Eu apunhalo um pedaço de alface, reviro os olhos. — Posso talvez almoçar antes que todo mundo comece a pular na minha garganta? Esta é a primeira refeição de verdade que tenho desde que levei um tiro.

— Ninguém está pulando na sua garganta. — Castle faz uma carranca. — E eu achei que Nouria tivesse dito que o horário normal de jantar voltou a vigorar ontem de manhã.

— Voltou — eu digo.

— Mas você levou um tiro três dias atrás, — diz Winston. — O que significa...

— Tudo bem, tudo bem, acalmem-se, Detetive Winston. Podemos mudar de assunto, por favor? — Eu dou outra mordida na alface. — Eu não gosto desse.

Brendan pousa a faca e o garfo. Com força.

Eu me endireito.

— Vá falar com ele, — ele diz novamente, desta vez com um ar de finalidade que me surpreende.

Eu engulo minha comida. Muito rápido. Quase engasgo.

— Estou falando sério, — diz Brendan, franzindo a testa enquanto eu tusso um pulmão.

— Este é um tempo miserável para todos nós, e você tem mais conexão com ele do que qualquer outra pessoa aqui. O que significa que você tem uma responsabilidade moral de descobrir o que ele está pensando.

— Uma responsabilidade moral? — Minha tosse se transforma em uma risada.

— Sim. Uma responsabilidade moral. E Winston concorda comigo.

Levanto os olhos, erguendo as sobrancelhas para Winston.

— Eu aposto que sim. Aposto que Winston concorda com você o tempo todo.

Winston ajusta os óculos. Ele apunhala cegamente a comida e murmura: "Eu te odeio" baixinho.

— Oh sim? — Faço um gesto entre Winston e Brendan com o garfo. — Que diabos está acontecendo aqui? Essa energia é super estranha.

Quando ninguém me responde, chuto Winston debaixo da mesa. Ele se vira, murmurando besteiras antes de dar um longo gole no copo d'água.

— Ok, — eu digo devagar. Pego meu próprio copo de água. Tomo um gole. — Sério. O que está acontecendo? Vocês dois estão brincando com os pés embaixo da mesa ou algo assim?

Winston fica totalmente vermelho.

Brendan pega seus utensílios e, olhando para o prato, diz:

— Vá em frente. Diga à ele.

— Me dizer o quê? — Eu digo, olhando entre os dois. Quando ninguém responde, olho para Ian como, que diabos?

Ian apenas encolhe os ombros.

Ian está mais quieto que o normal. Ele e Lily estão passando muito mais tempo juntos ultimamente, o que é compreensível, mas isso também significa que eu realmente não o vi muito nos últimos dias.

Castle de repente se levanta.

Ele me dá um tapinha nas costas.

— Fale com o Sr. Warner, — diz ele. — Ele está vulnerável agora e precisa de seus amigos.

— Você está...? — Faço um show olhando em volta, por cima dos ombros. — Sinto muito, a quais amigos você está se referindo? Porque, até onde eu sei, Warner não tem nenhum.

Castle estreita os olhos para mim. — Não faça isso, — diz ele. — Não negue sua própria inteligência emocional em favor de pequenas queixas. Você sabe mais. Você é mais do que isso. Se você se importa com ele, sacrificará seu orgulho para alcançá-lo. Para verificar se ele está bem.

— Por que você tem que parecer tão dramático? — Eu digo, olhando para longe. — Não é grande coisa. Ele sobreviverá.

Castle descansa a mão no meu ombro. Obriga-me a encontrar seus olhos.

— Não, — ele diz para mim. — Pode ser que não.

Espero até Castle sair antes de finalmente largar o garfo. Estou irritado, mas sei que ele está certo. Eu murmuro um adeus geral para meus amigos enquanto me afasto da mesa, mas não antes de notar Brendan sorrindo triunfante em minha direção. Estou prestes a lhe dar uma merda por isso, mas noto, com um sobressalto, que Winston ficou com um tom de rosa tão magnífico que você provavelmente poderia vê-lo do espaço.

E aí está: Brendan está segurando a mão de Winston embaixo da mesa.

Eu suspiro audivelmente.

— Cale a boca, — diz Winston. — Eu não quero ouvir isso.

Meu entusiasmo murcha. — Você não quer me ouvir dizer parabéns?

— Não, eu não quero ouvir você dizer eu te disse.

— Sim, mas eu te disse, não disse? — Uma onda de felicidade se move através de mim, conjurando um sorriso. Eu não sabia que ainda tinha isso em mim.

Alegria.

— Estou tão feliz por vocês, — eu digo. — Verdadeiramente. Vocês acabaram de deixar esse dia de merda muito melhor.

Winston olha para cima, desconfiado. Mas Brendan sorri para mim.

Eu aponto um dedo na direção deles. — Mas se vocês se transformarem nos clones de Adam e Juliette, eu juro por Deus que vou perder a cabeça.

Os olhos de Brendan se arregalam. Winston fica roxo.

— Estou bincando! — Eu digo. — Estou apenas brincando! Obviamente, estou super feliz por vocês dois! — Depois de uma batida, eu limpo minha garganta. — Não, mas é sério, no entanto.

— Foda-se, Kenji.

— Sim. — Eu disparo uma arma com os dedos para Winston. — Você conseguiu.

— Kenji, — ouço Castle chamar. — Olha a boca.

Eu giro, surpreso. Eu pensei que Castle tinha saído. — Não fui eu! — Eu grito de volta.

— Pela primeira vez, eu juro, não fui eu!

Vejo apenas as costas de Castle quando ele se afasta, mas de alguma forma, posso dizer que ele ainda está irritado.

Balanço a cabeça. Não consigo parar de sorrir.

É hora de se reagrupar.

Pegar as peças. Continuar. Encontrar J. Encontrar Adam. Derrubar o Restabelecimento, de uma vez por todas. E a verdade é: vamos precisar da ajuda de Warner. O que significa que Castle está certo, preciso falar com Warner. Merda.

Olho para meus amigos.

Lily está com a cabeça no ombro de Ian e ele está tentando esconder o sorriso. Winston me ignora, mas ele está rindo. Brendan coloca outro pedaço de batata na boca e me manda embora.

— Vá em frente, então.

— Tudo bem, tudo bem, — eu digo. Mas quando estou prestes a dar os passos necessários, sou salvo novamente.

Alia vem correndo em minha direção, com o rosto iluminado por uma expressão de felicidade que raramente vejo nela. É transformador. Inferno, ela está brilhando. É fácil perder o rastro de Alia, que é quieta em voz e presença. Mas quando ela sorri assim...

Ela é linda.

— James está acordado, — diz ela, quase sem fôlego. Ela está apertando meu braço com tanta força que está cortando minha circulação.

Eu não ligo.

Eu estava carregando essa tensão há quase duas semanas. Preocupando-me todo esse tempo, com James e se ele estava bem. Quando o vi pela primeira vez no outro dia, amarrado e amordaçado por Anderson, senti meus joelhos doerem. Não tínhamos ideia de como ele estava ou que tipo de trauma ele sofreu. Mas se as meninas estão deixando que ele tenha visitas...

Isso tem que ser um bom sinal.

Agradeço em silêncio a quem estiver ouvindo. Mãe. Papai. Fantasmas. Sou grato.

Alia está me arrastando pelo corredor, e mesmo que seu esforço físico não seja necessário, eu a deixo fazê-lo. Ela parece tão animada que não tenho coragem de detê-la.

— James está oficialmente pronto para receber visitantes, — diz ela, — e ele pediu para ver você.


*N.T.: Non sequitur é uma expressão em língua latina que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.


13. ELLA

JULIETTE

Quando acordo, estou com frio.

Eu me visto no escuro, vestindo roupas de frio e botas polidas. Eu puxo meu cabelo para trás em um rabo de cavalo apertado e realizo uma série de lavagens eficientes na pequena pia da minha câmara.

Dentes escovados. Rosto lavado.

Após três dias de treinamento rigoroso, fui selecionada como candidata a soldado supremo, honrada com a perspectiva de servir nosso comandante norte-americano. Hoje é minha oportunidade de provar que mereço a posição.

Amarro minhas botas, atando-as duas vezes.

Satisfeita, puxo a trava de liberação. A fechadura exala quando se abre, e a costura ao redor da minha porta deixa passar um anel de luz que corta diretamente minha visão. Eu me afasto do brilho apenas para encontrar meu próprio reflexo em um pequeno espelho acima da pia. Eu pisco, focando.

Pele pálida, cabelos escuros, olhos estranhos.

Eu pisco novamente.

Um flash de luz chama minha atenção no espelho. Eu viro. O monitor adjacente ao meu pod de sono ficou escuro a noite toda, mas agora pisca com as informações:

Juliette Ferrars, relatório

Juliette Ferrars, relatório

Minha mão vibra.

Olho para baixo, com a palma para cima, enquanto uma suave luz azul brilha através da pele fina do meu pulso.

relatório

Eu abro a porta.

O ar fresco da manhã entra correndo, estremecendo contra meu rosto. O sol ainda está nascendo. A luz dourada banha tudo, distorcendo brevemente minha visão. Os pássaros cantam enquanto eu subo o lado da colina íngreme que protege minha câmara particular contra os ventos uivantes. Eu me puxo para o limite.

Imediatamente, localizo o complexo à distância.

Montanhas cambaleiam no céu. Um enorme lago brilha nas proximidades. Eu empurro contra emaranhados de rajadas de vento selvagens e ferozes enquanto caminho em direção à base. Por nenhuma razão, uma borboleta pousa no meu ombro.

Eu paro.

Eu tiro o inseto da minha camisa, apertando suas asas entre os dedos. Ele vibra desesperadamente enquanto eu o estudo, examinando seu corpo hediondo enquanto eu o viro na minha mão. Lentamente, eu aumento a intensidade do meu toque, e suas vibrações ficam mais desesperadas, asas batendo contra a minha pele.

Eu pisco. A borboleta se contorce.

Um zumbido baixo sai de seu corpo de inseto, um zumbido suave que passa por um grito. Espero pacientemente que a criatura morra, mas ela só bate mais forte as asas, resistindo ao inevitável. Irritada, fecho meus dedos, esmagando-a no meu punho. Limpo seus restos contra um caule coberto de trigo e musgo.

É dia 5 de maio.

Tecnicamente, esse é o clima de outono na Oceania, mas as temperaturas são irregulares e inconsistentes. Hoje, os ventos estão particularmente zangados, o que torna tudo excepcionalmente frio. Meu nariz fica entorpecido enquanto eu caminho pelo campo; quando encontro uma insignificante inclinação da luz solar, eu me inclino para dentro dela, aquecendo sob seus raios. Todas as manhãs e noites, faço essa caminhada de três quilômetros até a base. Meu comandante diz que é necessário.

Ele não explicou o porquê.

Quando finalmente chego à sede, o sol mudou no céu. Olho para a estrela que está morrendo enquanto abro a porta da frente e, no momento em que passo pela entrada, sou atacada pelo cheiro de café queimado. Silenciosamente, ando pelo corredor, ignorando os sons e olhares dos trabalhadores e soldados armados.

Uma vez fora de seu escritório, eu paro. Faltam apenas alguns segundos para a porta se abrir.

O comandante supremo Anderson olha para mim de sua mesa.

Ele sorri.

Eu o saúdo.

— Entre, soldado.

Eu entro.

— Como você está se ajustando? — ele diz, fechando uma pasta em sua mesa. Ele não me pede para sentar. — Faz alguns dias desde a sua transferência do 241.

— Sim, senhor.

— E? — Ele se inclina para frente e aperta as mãos na frente dele. — Como você está se sentindo?

— Senhor?

Ele inclina a cabeça para mim. Pega uma caneca de café. O cheiro acre do líquido escuro queima meu nariz. Eu o vejo tomar um gole e a ação simples evoca uma emoção dentro de mim. Sinto uma pressão contra minha mente em flashes de memória: uma cama, um suéter verde, um par de óculos escuros, depois nada. Pedra falhando ao acender uma chama.

— Você está sentindo falta da sua família? — ele pergunta.

— Eu não tenho família, senhor.

—Amigos? Um namorado?

Uma vaga irritação surge dentro de mim; Eu empurro para o lado.

— Nenhum, senhor.

Ele relaxa na cadeira, seu sorriso cada vez mais amplo.

— É melhor assim, é claro. Mais fácil.

— Sim, senhor.

Ele se levanta.

— Seu trabalho nos últimos dias tem sido notável. Seu treinamento teve mais sucesso do que esperávamos. — Ele olha para mim então, esperando por uma reação.

Eu apenas o encaro.

Ele toma outro gole de café antes de pousar a xícara ao lado de uma pilha de papéis. Ele anda pela mesa e fica na minha frente, avaliando. Um passo mais perto e o cheiro de café me domina. Inspiro o aroma amargo e peculiar que inunda meus sentidos, deixando-me vagamente enjoada. Ainda assim, eu olho para frente.

Quanto mais ele se aproxima, mais consciente dele me torno.

Sua presença física é sólida. Categoricamente masculina. Ele é uma parede de músculos diante de mim, e nem o traje que ele veste pode esconder as curvas sutis e esculpidas de seus braços e pernas. Seu rosto está duro, a linha de sua mandíbula tão afiada que eu posso vê-la mesmo fora de foco. Ele cheira a café e algo mais, algo limpo e perfumado. É inesperadamente agradável; enche minha cabeça.

— Juliette — diz ele.

Uma agulha de inquietação penetra minha mente. É mais do que incomum que o comandante supremo me chame pelo meu primeiro nome.

— Olhe para mim.

Eu obedeço, levantando minha cabeça para encontrar seus olhos.

Ele olha para mim, sua expressão ardente. Seus olhos são de um estranho tom de azul, e há algo nele – sua testa pesada, seu nariz afiado – que desperta sentimentos antigos dentro do meu peito. O silêncio se reúne ao nosso redor, curiosidades não reveladas nos unindo. Ele procura meu rosto por tanto tempo que eu começo a procurá-lo também. De alguma forma eu sei que isso é raro; que talvez ele nunca mais me dê a oportunidade de olhar para ele assim.

Eu aproveito isso.

Eu catalogo as linhas fracas que vincam sua testa, as explosões de estrelas ao redor de seus olhos. Estou tão perto que posso ver a fibra de sua pele, áspera, mas ainda não como couro, seu barbear mais recente evidenciado em um corte microscópico na base de sua mandíbula. Seu cabelo castanho é cheio e grosso, as maçãs do rosto altas e os lábios um tom de rosa escuro.

Ele toca um dedo no meu queixo, levanta meu rosto.

— Sua beleza é excessiva, — diz ele. — Eu não sei o que sua mãe estava pensando.

Surpresa e confusão surgem através de mim, mas atualmente não me ocorre ter medo. Eu não me sinto ameaçada por ele. Suas palavras parecem superficiais. Quando ele fala, vislumbro uma pequena lasca no incisivo inferior.

— Hoje, — diz ele. — As coisas vão mudar. Você vai me acompanhar daqui por diante. Seu dever é proteger e servir meus interesses, e somente os meus.

— Sim, senhor.

Seus lábios se curvam, apenas um pouco. Há algo por trás dos olhos dele, algo mais, algo mais.

— Você entende, — diz ele, — que você me pertence agora.

— Sim, senhor.

— Minhas regras são sua lei. Você não obedecerá a nenhum outro.

— Sim, senhor.

Ele dá um passo à frente. Suas íris são tão azuis. Uma mecha de cabelo escuro se curva em seus olhos.

— Eu sou seu mestre, — diz ele.

— Sim, senhor.

Ele está tão perto que posso sentir sua respiração contra a minha pele. Café e menta e algo mais, algo sutil, fermentado. Álcool, eu percebo.

Ele dá um passo para trás.

— Fique de joelhos.

Eu olho para ele, congelada. O comando foi claro o suficiente, mas parece um erro.

— Senhor?

— De joelhos, soldado. Agora.

Cuidadosamente, eu o faço. O chão é duro e frio e meu uniforme é rígido demais para tornar essa posição confortável. Ainda assim, eu permaneço de joelhos por tanto tempo que uma aranha curiosa corre para frente, me olhando por baixo de uma cadeira. Olho para as botas polidas de Anderson, as curvas musculosas de suas panturrilhas perceptíveis até pelas calças. O chão cheira a alvejante, limão e poeira.

Quando ele me ordena, eu olho para cima.

— Agora diga — ele diz suavemente.

Eu pisco para ele.

— Senhor?

— Diga-me que eu sou seu mestre.

Minha mente fica em branco.

Uma sensação quente e maçante toma conta de mim, uma paralisia que bloqueia minha língua e congela minha mente. O medo impulsiona através de mim, me afogando, e eu luto para quebrar a superfície, arranhando meu caminho de volta ao momento.

Eu encontro seus olhos.

— Você é meu mestre — eu digo.

Seu sorriso duro se dobra, se curva. A alegria pega fogo nos olhos dele.

— Bom — ele diz suavemente. — Muito bom. Que estranho você já ser minha favorita.


14. KENJI

Eu paro na porta.

Warner está aqui.

Warner e James, juntos.

James recebeu sua própria seção particular na TM - que é normalmente cheia e apertada - e os dois estão aqui, Warner sentado em uma cadeira ao lado da cama de James, James apoiado em uma pilha de travesseiros. Estou tão aliviado por vê-lo parecendo bem. Seu cabelo loiro sujo é um pouco longo demais, mas seus olhos claros e luminosos estão abertos e animados. Ainda assim, ele parece um pouco cansado, o que provavelmente explica o IV ligado ao corpo.

Em circunstâncias normais, James deve ser capaz de se curar, mas se seu corpo for drenado, isso tornará o trabalho mais difícil. Ele deve ter chegado desnutrido e desidratado.

As meninas provavelmente estão fazendo o que podem para ajudar a acelerar o processo de recuperação. Sinto uma onda de alívio.

James estará melhor em breve. Ele é um garoto tão forte. Depois de tudo o que ele passou...

Ele vai passar por isso também. E ele não estará sozinho.

Olho novamente para Warner, que parece apenas um pouco melhor do que a última vez que o vi. Ele realmente precisa lavar esse sangue do corpo. Não é comum Warner ignorar as regras básicas de higiene - o que deve ser uma prova suficiente de que o sujeito está perto de um colapso total - mas por enquanto, pelo menos, ele parece bem. Ele e James parecem estar conversando profundamente.

Eu permaneço na porta, escutando. Só me ocorre tardiamente que eu deveria dar privacidade a eles, mas a essa altura estou muito entretido para me afastar. Estou quase certo de que Anderson disse a James a verdade sobre Warner. Ou, eu não sei exatamente.

Na verdade, não consigo imaginar um cenário em que Anderson revele alegremente a James que Warner é seu irmão, ou que Anderson é seu pai. Mas de alguma forma eu posso dizer que James sabe. Alguém disse a ele. Percebo pelo olhar em seu rosto.

Esse é o momento venha-para-Jesus.

Esse é o momento em que Warner e James finalmente se enfrentam não como estranhos, mas como irmãos. Surreal.

Mas eles estão falando baixinho, e eu só consigo entender partes da conversa deles, então decido fazer algo verdadeiramente repreensível: fico invisível e entro completamente na sala.

No momento em que o faço, Warner endurece.

Merda.

Eu o vejo olhar em volta, seus olhos alertas. Seus sentidos são muito nítidos.

Silenciosamente, dou alguns passos para trás.

— Você não está respondendo à minha pergunta, — diz James, cutucando Warner no braço. Warner não olha para ele, seus olhos se estreitam em um ponto a apenas um pé de onde estou.

— Warner?

Relutantemente, Warner se vira para o garoto de dez anos.

— Sim — diz ele, distraído. — Quero dizer, o que você estava dizendo?

— Por que você nunca me contou? — James diz, sentando-se reto. Os lençóis caem, como uma poça no colo dele. — Por que você não me disse nada antes? Durante todo o tempo em que vivemos juntos...

— Eu não queria assustar você.

— Por que eu teria medo?

Warner suspira, olha pela janela quando diz baixinho:

— Porque eu não sou conhecido pelo meu charme.

— Isso não é justo — diz James. Ele parece genuinamente chateado, mas sua exaustão visível o impede de reagir com muita força. — Eu vi coisas piores do que você.

— Sim. Eu percebo isso agora.

— E ninguém me disse. Não acredito que ninguém me disse. Nem mesmo Adam. Eu fiquei tão bravo com ele. — James hesita. — Todo mundo sabia? Kenji sabia?

Eu endureço.

Warner se vira novamente, desta vez olhando precisamente na minha direção quando ele diz:

— Por que você não pergunta a ele?

— Filho da puta — murmuro, minha invisibilidade desaparecendo.

Warner quase sorri. Os olhos de James se arregalam.

Essa não era a reunião que eu esperava.

Mesmo assim, o rosto de James quebra no maior sorriso, que – eu não vou mentir – faz maravilhas para a minha auto-estima. Ele joga as cobertas e tenta pular da cama, descalço e inconsciente da agulha presa no braço, e nesses dois segundos e meio eu consigo sentir alegria e terror.

Grito um aviso, correndo para impedi-lo de rasgar a carne do seu antebraço, mas Warner me ultrapassa. Ele já está de pé, não tão gentilmente empurrando o garoto de volta.

— Oh. — James cora. — Desculpe.

Eu o encaro de qualquer maneira, puxando-o para um abraço longo e excessivo, e a maneira como ele se agarra a mim me faz pensar que sou o primeiro a abraçá-lo. Eu tento lutar contra uma onda de raiva, mas não tenho sucesso. Ele é um garoto de dez anos, pelo amor de Deus. Ele passou pelo inferno. Como ninguém lhe deu a garantia física de que quase certamente precisa agora?

Quando finalmente nos separamos, James tem lágrimas nos olhos. Ele enxuga o rosto e eu me afasto, tentando lhe dar privacidade, mas quando me sento ao pé da cama de James, vejo um lampejo de dor nos olhos de Warner. Dura apenas meio segundo, mas é o suficiente para me fazer sentir mal pelo cara. E é o suficiente para me fazer pensar que ele pode ser humano novamente.

— Ei — eu digo, falando diretamente com a Warner pela primeira vez. — Então, o que...

O que você está fazendo aqui?

Warner olha para mim como se eu fosse um inseto. Seu olhar de costume.

— O que você acha que eu estou fazendo aqui?

— Sério? — Eu digo, incapaz de esconder minha surpresa. — Isso é tão decente da sua parte. Eu não pensei que você seria tão... emocionalmente... responsável. — Eu limpo minha garganta. Sorrio para James. Ele está nos estudando curiosamente. — Mas estou feliz por estar errado, mano. E me desculpe por ter te julgado mal.

— Estou aqui para coletar informações — diz Warner friamente. — James é uma das únicas pessoas que podem nos dizer onde meu pai está localizado.

Minha compaixão rapidamente se transforma em pó.

Pega fogo.

Vira raiva.

— Você está aqui para interrogá-lo? — Eu digo, quase gritando. — Você está louco? O garoto mal se recuperou de um trauma inacreditável, e você está aqui tentando procurá-lo por informações? Ele provavelmente foi torturado. Ele é uma criança, porra. Que diabos está errado com você?

Warner é indiferente aos meus teatros.

— Ele não foi torturado.

Isso me para friamente.

Eu me viro para James.

— Você não foi?

James balança a cabeça.

— Não exatamente.

— Hã. — Eu franzo a testa. — Quero dizer, não me entenda mal – estou emocionado – mas se ele não o torturou, o que Anderson fez com você?

James encolhe os ombros.

— Ele me deixou em confinamento solitário. Eles não me bateram, — diz ele, esfregando distraidamente as costelas — mas os guardas eram bem duros. E eles não me alimentaram muito. — Ele encolhe os ombros novamente. — Mas, honestamente, a pior parte foi não ver Adam.

Eu puxo James em meus braços novamente, seguro-o com força.

— Sinto muito — eu digo gentilmente. — Isso parece horrível. E eles não deixaram você ver Adam? Nem uma vez? — Eu recuo. Olho nos olhos dele. — Sinto muito. Tenho certeza que ele está bem, homenzinho. Nós o encontraremos. Não se preocupe.

Warner faz um som. Um som que parece quase uma risada.

Eu giro com raiva.

— O que diabos há de errado com você? — Eu digo. — Isso não é engraçado.

?Não é? Acho a situação hilária.

Estou prestes a dizer algo para a Warner que realmente não deveria dizer na frente de uma criança de dez anos, mas quando olho de relance para James, eu paro. James está sacudindo rapidamente a cabeça para mim, seu lábio inferior tremendo. Parece que ele está prestes a chorar de novo.

Volto para a Warner.

— Ok, o que está acontecendo?

Warner quase sorri quando diz:

— Eles não foram sequestrados.

Minhas sobrancelhas voam pela minha testa.

— O que foi que você disse?

— Eles não foram sequestrados.

— Eu não entendo.

— Claro que não.

— Não é a hora, mano. Me diga o que está acontecendo.

— Kent localizou Anderson sozinho, — diz Warner, olhando para James. — Ele ofereceu sua lealdade em troca de proteção.

Meu corpo inteiro fica frouxo. Eu quase caio da cama.

Warner continua:

— Kent não estava mentindo quando disse que tentaria anistia. Mas ele deixou de fora a parte de ser um traidor.

— Não. De jeito nenhum. De jeito nenhum.

— Nunca houve uma abdução — diz Warner. — Nenhum sequestro. Kent se entregou em troca da proteção de James.

Desta vez, eu realmente caio da cama.

— Se entregou... como? — Eu consigo me levantar do chão, tropeçando nos meus pés.

— O que Adam tinha para entregar? Anderson já conhece todos os nossos segredos.

É James quem diz baixinho:

— Ele lhes deu seu poder.

Eu olho para o garoto, piscando como um idiota.

— Eu não entendo — eu digo. — Como você pode dar a alguém seu poder? Você não pode simplesmente dar a alguém seu poder. Certo? Não é como um par de calças que você pode tirar e entregar.

— Não — diz Warner. — Mas é algo que o Restabelecimento sabe colher. De que outra forma você acha que meu pai tomou os poderes curativos de Sonya e Sara?

— Adam disse a eles o que ele pode fazer — diz James, sua voz quebrando. — Ele lhes disse que pode usar seu poder para desligar os poderes de outras pessoas. Ele achou que poderia ser útil para eles.

— Imagine as possibilidades — diz Warner, afetando a admiração. — Imagine como eles poderiam armar um poder como esse para uso global - como poderiam tornar uma coisa tão poderosa que poderiam efetivamente desligar todos os grupos rebeldes do mundo. Reduzir a oposição antinatural a zero.

— Jesus, porra, Cristo.

Eu acho que vou desmaiar. Na verdade, me sinto desmaiar. Tonto. Como se eu não pudesse respirar. Como isso é impossível.

— De jeito nenhum — eu digo. Estou praticamente respirando as palavras. — De jeito nenhum. Não é possível.

— Uma vez eu disse que a capacidade de Kent era inútil — diz Warner em voz baixa. — Mas agora vejo que fui um tolo.

— Ele não queria fazer isso — diz James. Ele está chorando ativamente agora, as lágrimas silenciosas percorrendo seu rosto. — Juro que ele só fez isso para me salvar. Ele ofereceu a única coisa que ele tinha – a única coisa que ele pensava que eles queriam - para me manter seguro. Eu sei que ele não queria fazer isso. Ele estava apenas desesperado. Ele pensou que estava fazendo a coisa certa. Ele continuou me dizendo que ia me manter a salvo.

— Correndo para os braços do homem que abusou dele a vida toda? — Estou puxando meu cabelo em minhas mãos. — Isso não faz nenhum sentido. Como isso... como... ?

Como?

Eu olho de repente, percebendo.

— E então veja o que ele fez — digo atordoado. — Depois de tudo, Anderson ainda usou você como isca. Ele trouxe você aqui como alavanca. Ele teria matado você, mesmo depois de tudo pelo que Adam desistiu.

— Kent era um idiota desesperado — diz Warner. — Que ele estava sequer disposto a confiar ao meu pai o bem-estar de James, diz exatamente quão longe ele estava.

— Ele estava desesperado, mas ele não é um idiota — James diz com raiva, seus olhos se enchendo de lágrimas. — Ele me ama e estava apenas tentando me manter seguro. Estou tão preocupado com ele. Estou com tanto medo que algo tenha acontecido com ele. E estou com tanto medo que Anderson tenha feito algo horrível com ele. — James engole em seco. — O que nós vamos fazer agora? Como vamos recuperar Adam e Juliette?

Eu fecho meus olhos com força, tento respirar fundo.

— Escute, não se estresse, ok? Nós vamos recuperá-los. E quando o fizermos, eu mesmo vou matar Adam.

James engasga.

— Ignore-o — diz Warner. — Ele não está falando sério.

— Sim, eu realmente quero dizer isso.

Warner finge não me ouvir.

— De acordo com as informações que reuni alguns momentos antes de você entrar aqui — ele diz calmamente, — parece que meu pai estava mantendo uma corte no Setor 45, exatamente como Sam previu. Mas ele não está lá agora, disso tenho certeza.

— Como você pode ter certeza de alguma coisa agora?

— Porque eu conheço meu pai — diz ele. — Eu sei o que mais importa para ele. E sei que quando ele saiu daqui, ficou gravemente ferido. Há apenas um lugar que ele iria em um estado como esse.

Eu pisco para ele.

— Onde?

— Oceania. De volta a Maximil ian Sommers, a única pessoa capaz de reconstituí-lo.

Isso me impede de morrer.

— Oceania? Por favor me diga que você está brincando. Temos que voltar para a Oceania? — Eu grunho. — Droga. Isso significa que temos que roubar outro avião.

— Nós — diz ele irritado, — não vamos fazer nada.

— Claro que nós...

Nesse momento, as meninas entram. Elas travam ao notar eu e Warner. Dois pares de olhos piscam para nós.

— O que vocês estão fazendo aqui? — elas perguntam ao mesmo tempo.

Warner está de pé em um instante.

— Eu estava saindo.

— Eu acho que você quer dizer que nós estávamos saindo — digo bruscamente.

Warner me ignora, acena com a cabeça para James e se dirige para a porta. Estou seguindo-o para fora da sala antes que me lembre, de repente...

— James — eu digo, girando ao redor. — Você vai ficar bem, você sabe disso, certo? Vamos encontrar Adam, trazê-lo para casa e deixar tudo isso bem. Seu trabalho daqui em diante é relaxar, comer chocolate e dormir. Tudo certo? Não se preocupe com nada. Você entende?

James pisca para mim. Ele assente.

— Bom. — Dou um passo à frente para plantar um beijo no topo de sua cabeça. — Bom, — eu digo novamente. — Você vai ficar bem. Tudo ficará bem. Vou me certificar de que fique tudo bem, ok?

James olha para mim.

— Tudo bem — diz ele, enxugando as últimas lágrimas.

— Bom — eu digo pela terceira vez, e aceno com a cabeça, ainda encarando seu rosto pequeno e inocente. — Ok, eu vou fazer isso agora. Legal?

Finalmente, James sorri.

— Legal.

Eu sorrio de volta, dando-lhe tudo o que tenho, e então saio pela porta, esperando pegar Warner antes que ele tente resgatar J sem mim.

 

 

                             CONTINUA