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À ESPERA DE UM MILAGRE 3 / Stephen King
À ESPERA DE UM MILAGRE 3 / Stephen King

 

 

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À ESPERA DE UM MILAGRE

 

Parte V

JORNADA NA NOITE

Mr. H. G. Wells em tempos escreveu uma história sobre um homem que inventou uma máquina do tempo, e eu cheguei à conclusão que, ao escrever estas memórias, criei a minha própria máquina do tempo. Ao contrário da de Wells, esta só pode viajar para o passado - na realidade, de regresso a 1932, altura em que eu era o manda-chuva dos guardas prisionais do Bloco E, na penitenciária de Cold Mountain - mas, não obstante essa peculiaridade, é fantasmagoricamente eficiente. Seja como for, esta máquina do tempo traz-me à recordação o velho Ford que eu conduzia nessa altura: podia-se ter a certeza de que o motor acabaria por pegar, embora nunca se soubesse se uma volta com a chave na ignição seria o suficiente para iniciar a combustão ou se seria necessário utilizar a manivela, até que o nosso braço estivesse prestes a soltar-se do corpo devido ao esforço.

Tenho tido muitos arranques fáceis desde que comecei a nanar esta história sobre o John Coffey, mas ontem fui obrigado a servir-me da manivela. Estou em crer que foi por ter chegado ao assunto da execução do Delacroix, e parte da minha mente não desejar reviver esses momentos. Tratou-se de uma morte muito má, uma morte terrível, e foi-o por causa do Percy Wetmore, o jovem que adorava pentear-se, mas que não era capaz de suportar que se rissem dele - nem sequer um pequeno franciú, meio calvo, que jamais voltaria a ver outro Natal.

No entanto tal como acontece com a maioria das tarefas repugnantes, o que custa é começar. Para um motor é indiferente que a sua ignição se faça por meio de chave ou de manivela; depois de ligado, funciona sempre da mesma maneira. Foi o que aconteceu comigo ontem. Ao princípio, as palavras começaram a brotar-me da boca aos arrancos, mas depois se guiram-se frases completas que culminaram numa torrente de fluência verbal. A escrita é uma forma bastante aterradora e muito especial de rememorar, tal como vim a descobrir . re_ veste-se de uma inteireza que quase se assemelha a um crime de estupro. É possível que eu tenha essa percepção somente porque sou um homem já muito velho (por vezes tenho a sen_ sação de que isso aconteceu nas minhas costas, sem que eu me desse conta); todavia, não estou muito seguro. Acredito que a combinação lápis e memória dá origem a uma magia prática, e a magia é perigosa. Na minha qualidade de homem, que conheceu o John Coffey e assistiu àquilo que ele era ca- paz de fazer - tanto aos ratos como aos homens - sinto-me bastante habilitado a fazer essa afirmação.

A magia é perigosa.

Em qualquer dos casos, ontem escrevi durante todo o dia, as palavras fluíram sem a mínima dificuldade, e o jardim de' Inverno deste glorioso lar para pessoas da terceira idade desapareceu para dar lugar à arrecadação situada no extremo da Milha Verde, onde tantas das minhas crianças problemáticas se sentaram pela última vez, e ao fundo das escadas que davam acesso ao túnel abaixo da estrada. Foi aí que o Dean, o Harry, o Brutal e eu próprio confrontámos o Percy Wetmore a por causa do corpo fumegante do Eduard Delacroix, e onde o obrigámos a renovar a sua promessa de que pediria transferência para o Briar Ridge, o estabelecimento hospitalar do estado destinado aos doentes mentais.

No solário há sempre flores frescas, mas, por volta do meio-dia de ontem, a única coisa que me chegava às narinas era o cheiro nauseabundo da carne cozinhada do corpo do homem morto. O som da máquina de cortar relva no relvado mais abaixo fora substituído pelo gotejar cavo da água que se infiltrava lentamente através do tecto abaulado do túnel. Eu viajara de regresso a 1932, se não corporalmente, pelo menos de alma e mente.

Dispensei o almoço, tendo ficado a escrever até mais ou menos às quatro da tarde, e, quando por fim pousei o lápis, sentia a mão dorida. Num passo lento dirigi-me à extremidade do corredor do segundo andar. Nesse lugar existe uma janela sobranceira ao parque de estacionamento dos funcionarios do lar. O Brad Dolan, o servente que me faz lembrar o' Percy - e aquele que mostra uma curiosidade excessiva quanto às minhas idas e vindas e quanto ao que faço durante os meus passeios - conduz um velho Chevrolet cujo pára-choques tem um autocolante que diz: "Eu VI DEUS E O SEU NOME É NEWT." O automóvel não estava no parque de estacionanento; o Brad tinha terminado o seu turno e seguira para qualquer que fosse o jardim a que chamava lar. Imaginei uma caravana em cujo interior estivessem coladas com fita-cola as páginas centrais das revistas pornográficas, com latas de cerveja Dixie nas prateleiras.

Saí através da cozinha onde já haviam começado a preparar o jantar.

- O que é que leva nesse saco, Mister Edgecombe? --perguntou-me o Norton.

- É só uma garrafa vazia - respondi-lhe. - Lá em baixo, no bosque, descobri a fonte da juventude. Todas as tardes, por volta desta hora, vou até lá buscar um pouco. Costumo beber o líquido antes de me deitar. Só te digo que é de boa qualidade.

- Pode ser que o mantenha jovem - interveio George, o outro cozinheiro -, mas não está a fazer nada para que fique mais bem-parecido.

Todos demos uma boa gargalhada com aquele comentário e eu saí para as traseiras. Dei comigo a olhar em redor, à procura do Dolan, embora o seu carro não se encontrasse ali; disse a mim próprio que era um idiota chapado por permitir que o homem me bulisse tanto com os nervos. Atravessei o campo de jogos. Para lá deste existe um arremedo de campo de golfe de aspecto miserável, que parece ser muito mais agradável nas fotografias das brochuras de Georgia Pines, havendo por detrás deste uma vereda sinuosa, que vai dar a um pequeno arvoredo situado a oriente do lar. Também existem dois velhos barracões à berma deste caminho, que hoje em dia não têm qualquer serventia. Chegado ao segundo, que se situa próximo do elevado muro de pedra erigido entre os terrenos de Georgia Pines e a Auto-Estrada 47 que atravessa a Jórgia, entrei, tendo permanecido no seu interior durante algum tempo.

Nessa noite comi um bom jantar, vi um bocado de televisão e deitei-me cedo. Há muitas noites em que acordo e, sorrateiramente desço até à sala do televisor, onde costumo ver filmes antigos no canal de filmes americanos. No entanto, isso não aconteceu na noite passada; na noite passada dormi que nem uma pedra, sem ter sido perturbado por nenhum dos sonhos que tanto me têm assombrado desde que iniciei as ~ nhas incursões no campo da literatura. Devo ter ficado cansado com toda a escrita desse dia. Como sabem, já não sou jovem como costumava ser.

Quando despertei e vi que o retalho de sol, que habitualmente se projecta no soalho às seis da manhã, já subira até aos pés da minha cama, levantei-me de um salto, tão alarmado que nem dei pelas guinadas de dor na bacia, nos joelhos e nas articulações dos tornozelos. Vesti-me o mais depressa possível e saí apressadamente para o corredor, em direcção à panela que dá para o parque de estacionamento, na esperança de que o lugar onde o Dolan costumava estacionar o seu velho Chevrolet continuasse a estar desocupado. Por vezes ele chegava a atrasar-se meia hora...

Naquele dia não tive essa sorte. O carro estava no parque, ferrugento sob o sol da manhã. Porque Mr. Brad Dolan tinha um motivo para chegar pontualmente nestes últimos tempos, não é verdade? Sim. O velho Paulie Edgecombe costuma ir a um lugar desconhecido logo de manhã cedo, o velho Paulie Edgecombe anda a tramar alguma, e o Brad Dolan está determinado em descobrir do que é que se trata. O que é que costumas fazer ali em baixo, Paulie? Diz-me. O mais provável era ele já estar à minha espera, oculto para que eu não o visse. O melhor seria eu deixar-me ficar onde estava... Só que não podia.

- Paul?

Dei meia volta com tanta rapidez que estive prestes a cair. Era a minha amiga Elaine Connelly. Tinha os olhos muito abertos e estendera as mãos para a frente, como se pretendesse suster a minha queda. Felizmente para ela, recuperei o equilíbrio; a Elaine tem artrite e o mais provável teria sido eu quebrá-la em duas, como se fosse um galho seco, caso tivesse tombado para cima dos seus braços. O romance não more quando se entra naquela estranha zona que se situa para lá dos oitenta anos, mas podemos muito bem esquecer-nos das tretas do estilo E Tudo o Vento Levou.

- Desculpa - disse ela. - Não tive intenção de te pregar um susto.

- Não tem importância - repliquei-lhe, oferecendo-lhe o esboço de um sorriso. - É melhor acordar assim do que com um balde de água fria no rosto. Eu devia contratar-te para fazeres isso todas as manhãs.

Estavas à procura do carro dele, não é assim? Do carro do Dolan. Não valia a pena tentar enganá-la, pelo que me limitei a  acenar que sim.

. Quem me dera ter a certeza de que ele está na ala oeste. Gostaria de sair por algum tempo, mas não me quero arriscar a que ele me veja.

Elaine sorriu-me - o fantasma do sorriso endiabrado e tentador que ela deveria ter tido nos seus tempos de rapariga. - Ele é um intrometido, não achas?

- Sim - concordei.

- E também não está na ala oeste. Já desci para tomar o pequeno-almoço e posso dizer-te onde é que ele se encontra, porque dei uma espreitadela. Neste momento, está na cozinha.

Olhei para ela, embasbacado. Eu sabia que o Dolan era curioso, mas não àquele ponto.

- Não podes adiar o teu passeio da manhã? - perguntou a Elaine.

Fiquei a pensar naquela sugestão. - Suponho que poderia, mas... - Devias fazê-lo sugeriu ela. - Não. Não devia - retorqui, resoluto.

Agora, pensei, ela vai perguntar-me onde é que vou, e o que é que tenho a fazer lá em baixo, no arvoredo, que seja assim tão diabolicamente importante.

A Elaine, porém, não fez isso. Pelo contrário, brindou-me uma vez mais com aquele seu sorriso endiabrado, que tinha um aspecto estranho e absolutamente maravilhoso naquele rosto emaciado e marcado pela dor.

- Conheces Mister Howland? - perguntou-me ela.

- Com certeza - respondi apesar de não costumar vê-lo muitas vezes. Encontrava-se instalado na ala oeste, o que, em Georgia Pines era quase o mesmo que viver num país vizinho. - Porque perguntas?

- Sabes o que é que ele tem de especial? - Sacudi a cabeça, indicando-lhe que não sabia. - Mister Howland - continuou Elaine exibindo um sorriso extremamente rasgado - é um dos únicos cinco residentes de Georgia Pines que tem autorização para fumar. Isso acontece porque ele já vivia cá antes de os regulamentos terem sido alterados.

- Devia ser uma velha cláusula, antiquíssima. E que lugar era mais adequado para tal cláusula do que um lar para a terceira idade?

A Elaine levou a mão à algibeira do seu vestido às riscas azuis e brancas, e tirou de lá duas coisas: um cigarro e uma carteira de fósforos.

- Apequena Ellie vai fazer chichi na cama esta noite cantarolou ela numa voz engraçada.

- Elaine, o que é...

- Acompanha esta velhota até ao andar de baixo - convidou ela, voltando a colocar o cigarro e os fósforos dentro do bolso, agarrando no meu braço com uma das suas mãos enodadas. Começámos a percorrer o corredor na direcção inversa. Enquanto caminhávamos, decidi desistir e colocar-me' nas suas mãos. Elaine já tinha uma idade avançada e um corpo frágil; todavia, não era nada estúpida.

Enquanto seguíamos para baixo, andando com o cuidado que merecem as relíquias em que o tempo nos transformou, a Elaine retomou a palavra.

- Espera ao fundo dos degraus. Vou à ala oeste, à casa de banho do corredor. Sabes a qual é que estou a referir-me, não sabes?

- Sim - respondi. - A que fica mesmo ao lado da tina de hidromassagem. Mas porquê?

- Há mais de quinze anos que não fumo um cigarro continuou ela -, mas esta manhã está a apetecer-me fumar um. Não sei quantas baforadas serão necessárias para accionar o detector de incêndios que existe nessa casa de banho, mas tenciono vir a descobrir.

Fiquei a olhar para ela com uma nova admiração, pensando no quanto ela me recordava a minha mulher - a Jan poderia muito bem ter feito a mesma coisa. A Elaine fitou-me

com o seu sorriso atrevido e endiabrado. Com a palma da mão em forma de concha envolvi-lhe a nuca esguia, cheguei o rosto dela ao meu e beijei-a ao de leve nos lábios.

- Amo-te, Ellie - disse-lhe eu.

- Mas que conversa tão séria - retorquiu ela, mas eu vi que se sentia agradada.

- E quanto ao Chuck Howland? - perguntei. - Isto vai arranjar-lhe problemas?

- Não, porque ele está na sala a ver televisão com mais duas dúzias de pessoas. Assim que o detector de incêndio entrar em acção e o alarme da ala oeste desatar a tocar, eu tenciono desaparecer rapidamente.

. Tem cuidado, não vás cair e magoar-te, mulher. Eu nunca seria capaz de me perdoar se...

- Oh, deixa-te disso - atalhou a Elaine e desta vez foi ela quem me beijou. O amor entre as ruínas humanas. É possível que a alguns de vós isto possa parecer estranho, ou grotesco, mas permitam-me que vos diga uma coisa, meus amigos: um amor que possa parecer estranho é melhor do que amor nenhum.

Observei-a a afastar-se num passo lento e rígido (no entanto, a Elaine só se serve de uma bengala nos dias de chuva, e, mesmo nessas alturas, só se as dores forem insuportáveis; é uma das suas poucas vaidades), e aguardei. Passaram cinco minutos, depois dez, e quando eu já estava prestes a concluir que ou ela tinha perdido a coragem, ou então descobrira que a pilha que accionava o detector de incêndios da casa de banho estava gasta, começou a soar o alarme na ala oeste com um som estridente e ininterrupto.

Sem mais delongas, dirigi-me para a cozinha, embora caminhasse num passo lento - não havia razão para me apressar até ter a certeza de que o Dolan não se cruzaria comigo. Entretanto, começou a sair da sala da televisão (aqui chamam-lhe Centro Recreativo; ora, isso é que é grotesco) um grupo de velhotes, a maioria de roupão, curiosos por saberem o que é que estava a passar-se. O Chuck Howland encontrava-se entre eles, tal como verifiquei para meu grande contentamento.

- Edgecombe! - chamou o Kent Avery na sua voz enroquecida, agarrando-se à andadeira com uma mão, enquanto com a outra coçava obsessivamente a região das virilhas por baixo do pijama. - Trata-se de um alarme a sério ou outro dos falsos? O que é que te parece?

- Acho que não há maneira de saber - respondi. Nessa altura passaram por nós três serventes a correr em direcção à ala oeste, gritando às pessoas que se encontravam arpadas junto da porta da sala de televisão, que saíssem para o exterior onde deveriam aguardar até que alguém lhes dissesse que não havia perigo. O terceiro deles era o Brad Dolan. Quando passou nem sequer olhou para mim, facto que me agradou extraordinariamente. Enquanto me dirigia para a cozinha, ocorreu-me que a dupla formada por a Elain Connelly e o Paul Edgecombe seria provavelmente uma dupla que chegaria para uma dúzia de Brad Dolan, juntamente com meia dúzia de Percy Wetmore para compor o ramalhet,

Os cozinheiros continuavam a arrumar as coisas do pequeno-almoço na cozinha, sem prestarem a mínima atenção ao alarme contra incêndios, o qual continuava a fazer-se ouvir com toda a estridência.

- Mister Edgecombe - disse o George -, parece-me que o Brad Dolan andava à sua procura. De facto, perdeu-ó. por pouco.

Que sorte a minha! - pensei, tendo dito em voz alta que haveria de me cruzar mais tarde com o Dolan. Em seguida perguntei se havia sobrado alguma torrada do pequeno almoço.

- Com certeza - disse o Norton - mas nesta altura já está completamente fria. Esta manhã atrasou-se.

- Pois atrasei, mas tenho fome.

- Só preciso de um minuto para lhe preparar uma torrada fresca e bem quentinha - acrescentou o George, estendendó a mão para o pão.

- Não, a fria serve perfeitamente - atalhei e quando ele me deu duas torradas em pão de forma (com uma expressão intrigada... na realidade, tanto um como o outro se mostravam deveras intrigados), saí apressadamente porta fora, sentindo-me como o rapazinho que em tempos fora, faltando à escola para poder ir à pesca, levando um bolo embrulhado em papel de cera na parte da frente da camisa.

Já do lado de fora da porta da cozinha, olhei rapidamente à minha volta, numa atitude reflexa, à procura do Dolan, não tendo avistado nada que pudesse alarmar-me; dirigi-me num passo apressado para o campo de jogos e atravessei a zona de golfe, mordiscando uma das torradas enquanto caminhava. Quando cheguei ao arvoredo, que me protegeria de olhares indiscretos, abrandei o passo e, ao percorrer a vereda, os meus pensamentos concentraram-se na pavorosa execução do Eduard Delacroix.

Nessa mesma manhã, eu falara com o Hal Moores e ele dissera-me que o tumor que a Melinda tinha no cérebro estava a fazer com que ela às vezes praguejasse e utilizasse uma' linguagem ordinária... o que a minha mulher, posteriormente, classificou (bastante a medo; ela não sabia se se tratava exactanente da mesma coisa) de Síndrome de Tourettet. Os tremores na voz do Moores, em conjunto com a maneira como o John Coffey curara tanto a minha infecção urinária como a espinha fracturada do rato de estimação do Delacroix eram factores que finalmente me haviam impelido para lá da linha que se estende entre o pensar uma determinada coisa e o passar à fase de concretização dessa mesma coisa.

E existia algo mais. Uma coisa que se relacionava com as mãos do John Coffey e com o meu sapato.

Por conseguinte, eu telefonara aos homens com quem trabalhava, os homens a quem tinha vindo a confiar a minha vida ao longo dos anos - o Dean Stanton, o Harry Terwilliger e o Brutos Howell. Eles foram almoçar a minha casa no dia seguinte ao da execução do Delacroix e escutaram-me com atenção a delinear-lhes o plano que concebera. É claro que todos eles sabiam que o Coffey tinha curado o rato; de facto, o Brutal até assistira a essa cura. Assim, quando sugeri que um outro milagre poderia vir a dar resultado, caso levássemos o John Coffey até junto da Melinda Moores, eles não desataram a rir-se. Foi o Dean Stanton quem levantou a questão mais preocupante: e se o John Coffey decidisse tentar a fuga enquanto o levávamos a dar aquele passeio pelo campo?

- Suponhamos que ele tinha oportunidade de matar alguém - perguntara Dean. - Eu não gostava nada de perder o emprego e passar uma temporada na penitenciária... Tenho mulher e filhos que dependem de mim para comer mas não me parece que odiaria qualquer dessas coisas tanto como ter na consciência o peso de outra garotinha morta.

Naquele momento fez-se silêncio, os três ficaram a olhar para mim, para ver como é que eu responderia àquilo. Eu sabia que tudo iria alterar-se se dissesse o que tinha na ponta da língua; chegáramos a um ponto para lá do qual era impossível bater em retirada.

Deve acrescentar-se que, pelo menos no que me dizia respeito, a retirada já era impossível. Abri a boca e comecei a falar.

Uma doença rara, que deve o seu nome ao médico francês Georges Gilles de la Tourette caracterizada por tiques involuntários e por uma verbalização incontrolável, que envolve especialmente ecolalia e o uso de linguagem obscena. (N. da T.)

- Isso não virá a acontecer - afirmei.

- Como é que podes estar assim tão certo? - perguntou o Dean.

Não dei resposta imediata àquela pergunta. Não sabia bem por onde havia de começar. Eu soubera de antemão que aquela questão acabaria por vir à baila, mas continuava sem saber como dizer-lhes o que sabia. Foi o Brutal quem veio em meu auxílio.

- Não acreditas que ele tenha feito aquilo, pois não, Paul? - perguntou-me ele com uma expressão de incredulidade. - Achas que o idiota gigante está inocente.

- Tenho a certeza absoluta que ele está inocente - repliquei.

- Como é que podes ter tanta certeza?

- Existem duas coisas - continuei. - Uma delas tem a

ver com o meu sapato.

- Com o teu sapato?! - exclamou o Brutal, atónito. - O que é que o teu sapato tem a ver com o facto de o John Coffey ter morto, ou não, aquelas duas garotinhas?

- Ontem à noite descalcei um dos meus sapatos e entreguei-lho - expliquei. - Depois da execução, quer dizer, quando as coisas se acalmaram um pouco. Meti-o por entre

as barras da cela e ele agarrou-o com aquelas suas mãos enormes. Disse-lhe que atasse o atacador. Eu tinha de estar absolutamente certo, porque, bem vêem, todas as nossas crianças problemáticas habitualmente usam pantufas, pelo que o meu sapato era necessário; não nos esqueçamos de que um homem realmente determinado a suicidar-se poderá fazê-lo com os atacadores, no caso de estar mesmo empenhado. Isso é uma coisa de que todos temos conhecimento.

Os três confirmaram com um acenar de cabeça.

- Ele colocou o sapato em cima das coxas e começou a entrecruzar as pontas dos atacadores sem qualquer dificuldade, mas de repente ficou sem saber o que fazer. Disse que tinha quase a certeza de que alguém lhe mostrara como é que se fazia quando ainda era um rapazito, talvez o pai ou um dos namorados que a mãe tivera depois de o marido se ter ido embora, mas perdera-lhe o jeito.

- Eu estou como o Brutal... Continuo sem compreender qual a relação do teu sapato com o facto de o John Coffey ter morto ou não as gémeas Detterick - disse o Dean. Consequentemente, passei uma vez mais em revista a história do rapto e assassínio - que eu lera nos jornais da biblioteca da prisão naquele dia de muito calor, enquanto os meus órgaos genitais pareciam uma fornalha e o Gibbons ressonava a um canto, e narrei tudo o que o repórter Hammersmith me contara posteriormente.

.O cão dos Detterick não era muito de morder, mas a ladrar era dos melhores do mundo - expliquei. - O homem que levou as garotas manteve o animal calado, dando-lhe salsichas. Cada vez que lhe oferecia uma, chegava-se mais perto do animal, imagino eu, e, enquanto o rafeiro comia a última, agarrou-lhe a cabeça, torceu-lhe o pescoço e partiu-lho.

"Mais tarde, quando encontraram o Coffey, o assistente do xerife que chefiava o grupo de voluntários, o Rob McGee, reparou numa saliência no bolso do peito do fato-macaco que o Coffey usava na ocasião. De início, o McGee assumiu que poderia ser uma arma, mas o Coffey disse-lhe que se tratava de uma merenda, como efectivamente veio a provar-se, umas duas sanduíches com picles, embrulhadas em papel de jornal e atadas com um cordel. O Coffey não foi capaz de se lembrar de quem é que lhas tinha dado; a única coisa de que se recordava era que tinha sido uma mulher que usava um avental.

- Sanduíches, picles e nada de salsichas - disse o Brutal. - Não havia salsichas - concordei.

- Claro que não havia - interveio o Dean. - Ele deu-as a comer ao cão.

- Pois bem, foi isso exactamente o que o promotor de justiça disse durante o julgamento - admiti -, mas se de facto o Coffey tivesse desembrulhado a merenda para poder dar as salsichas ao cão como é que ele teria voltado a atar o embrulho de papel de jornal com o cordel? Nem sequer sei quando é que ele teria tido oportunidade para fazer isso, mas deixemos esse assunto de lado pelo menos de momento. O homem

nem sequer é capaz de dar um nó simples.

Fez-se um longo silêncio de grande estupefacção, que finalmente foi quebrado pelo Brutal.

Como é que ninguém se lembrou de levantar essa questão.durante o julgamento?

- Porque ninguém pensou nisso - retorqui, dando comigo a pensar de novo no Hammersmith, o repórter, o Hammersmith que tinha frequentado a universidade em Bowlin Green, o Hammersmith que gostava de se considerar uma pessoa esclarecida, o mesmo Hammersmith que me dissera que os cães rafeiros e os negros eram mais ou menos a mesma coisa, que tanto uns como outros, de repente e sem mais nem menos, são capazes de nos decepar um membro, sem que para isso haja a mínima razão. Só que ele passara o temppo todo a referir-se a eles como os vossos negros, como se estes continuassem a ser propriedade de alguém... mas não propriedade sua. Não, não lhe pertenciam. Impossível que fossem seus. E nessa época, toda a região do Sul se encontrava repleta de gente da laia do Hammersmith. - Ninguém teve capacidade para pensar nesse aspecto, nem o próprio advogado de defesa do Coffey.

- Mas tu tiveste - retorquiu o Harry. - Raios partam isto, rapazes, aqui estamos nós sentados na companhia do Sherlock Holmes. - O seu tom de voz era, simultaneamente, um misto de assombro e troça.

- Oh, pára lá com isso - atalhei. - Também não me teria ocorrido se não tivesse começado a juntar o que ele disse nesse dia ao assistente do xerife, o McGee, com o que me disse depois de ter curado a minha infecção e depois de ter curado o rato.

- O quê? - perguntou o Dean.

- Quando eu fui à cela do Coffey, senti-me como se houvesse sido hipnotizado. Tive a sensação de que seria incapaz de resistir a fazer aquilo que ele queria, ainda que o tentasse.

- Não me agrada nada o que está implícito nisso - interveio o Harry, agitando-se na cadeira.

- Perguntei-lhe o que é que ele queria, ao que me respondeu: "Só evitar o mal". Recordo-me disso com toda a clareza. E quando tudo ficou terminado e comecei a sentir-me melhor, ele ficou bem ciente disso. "Eu consegui evitar o mal", disse o Coffey. "Eu consegui evitar o mal, não é verdade?"

- Tal e qual como com o rato - comentou o Brutal com um acenar de cabeça. - Tu disseste: "Conseguiste evitar o mal", e o Coffey repetiu a mesma coisa como se fosse

um papagaio. "Eu consegui evitar o mal no rato do Del." Foi nessa altura que soubeste? Foi isso, não é assim?

Sim, calculo que foi. Recordei-me daquilo que ele tinha dito ao McGee, quando este lhe perguntou o que sucedem. Foi publicado em todos os artigos sobre os assassínios, ou quase todos. "Eu não consegui evitar o mal. Tentei desfazer o que estava feito, mas já era tarde de mais." Um homem que diz uma coisa destas e que tem uma garotinha em cada braço, ambas de raça branca e louras, enquanto ele é grande que nem uma casa... não admira que eles se tenham enganado. Ouviram aquilo que ele dizia, dando-lhe a interpretação que se ajustava ao que tinham à frente, e o que viam era de raça negra. Partiram do princípio de que ele estava a confessar o crime, que se sentira compelido a raptar as duas garotas, a violá-las e a matá-las. Que mais tarde se apercebera do acto que tinha cometido, tentando desfazer...

- Mas nessa altura já era demasiado tarde - murmurou o Brutal.

- Sim. Só que o que ele tentava realmente dizer-lhes era que as havia encontrado e tentara corá-las... fazê-las regressar à vida, sem qualquer êxito. Elas já se encontravam irremediavelmente mortas.

- Paul, acreditas nisso? - perguntou o Dean. - Acreditas mesmo numa coisa dessas?

Examinei o meu coração, tão cuidadosamente quanto estava ao meu alcance, e acenei num gesto afirmativo. Não só eu sabia naquele momento, como existia em mim uma faceta intuitiva que soubera que algo não batia certo na situação do John Coffey assim que o Percy irrompera pelo bloco, arrastando o Coffey por um braço e berrando com toda a força dos seus pulmões: "Homem morto a caminhar!" Eu até lhe tinha apertado a mão, não era verdade? Nunca apertara a mão de um homem que tivesse dado entrada na Milha Verde; não obstante isso havia dado um aperto de mão ao John Coffey.

- Jesus! - exclamou o Dean. - Meu bom Jesus Cristo! - Portanto, o teu sapato é uma das coisas - continuou - Qual é a outra?

-Não muito antes de o grupo de voluntários ter encontrado o John Coffey e as garotas, os homens saíram do bosque próximo da margem sul do rio Trapingus. Nesse local, encontraram um trecho do caminho com as ervas acamadas, uma grande quantidade de sangue derramado, e o que restava da camisa de noite da Cora Detterick. Durante algum tempo, os cães mostraram-se confusos. A maior parte dos animais indicava que queria seguir em direcção a sudeste, pela corrente abaixo ao longo da margem. Mas dois deles... os dois cães caça, pretendiam continuar rio acima. O responsável pelos cães era o Bobo Marcham e quando ele deu a camisa de dormir a farejar aos animais, estes voltaram atrás e juntaram-se ao resto da matilha.

- Os cães de caça ficaram confusos, não é verdade? perguntou o Brutal. Aos cantos da sua boca dançava um pequeno sorriso estranho e mórbido. - Eles não foram criados para seguir rastos, pelo que se sentiram baralhados.

- Sim - confirmei.

- Não estou a entender - admitiu o Dean.

- Os cães de caça tinham-se esquecido do que quer que fosse que o Bobo lhes colocara debaixo do focinho para iniciar a busca - explicou o Brutal. - Quando surgiram na margem do rio, os animais seguiram a pista do assassino e não a das garotas. O que não era problema desde que o homicida e as garotinhas permanecessem juntos, mas...

Começava a fazer-se luz na mente do Dean. O Harry já tinha percebido.

- Quando se pensa no assunto - continuei -, interrogamo-nos como é que alguém, até mesmo um júri que desejasse atribuir o crime a um tipo de raça negra sem poiso certo, pôde ter acreditado, ainda que só por um minuto, que o John Coffey era o homem que procuravam. Por si só, a artimanha de manter o cão sossegado com comida até se lhe poder torcer o pescoço estava muito para além das capacidades mentais do Coffey.

"Ele nunca esteve mais próximo da quinta dos Detterick do que a margem sul do Trapingus, e esta é a minha opinião. A dez quilómetros ou mais. Deambulava por ali sem destino, talvez a pensar em descer pelos carris do caminho-de-ferro, a fim de apanhar um comboio de mercadorias com destino a algures... quando eles saem do viaduto não trazem muita velocidade, o que permite que se salte para o seu interior... quando se apercebeu do tumulto mais a norte.

- E o assassino? - inquiriu o Brutal.

- O assassino. Possivelmente, já as teria violado, ou talvez fosse isso mesmo o que o Coffey ouviu. Seja como for, a área de ervas ensanguentadas foi onde o homicida terminou o assunto, bateu violentamente com as cabeças das raparigas uma na outra, deixou-as cair no solo e depois pôs-se a méxer.

Pôs-se a mexer em direcção a noroeste - acrescentou o Brutal - Precisamente para onde os cães de caça queriam ir. Certo. O John Coffey surge de entre um maciço de pinheieiros, que se encontra um pouco mais a sudeste do lugar onde as garotas foram deixadas, provavelmente curioso por causa de todo aquele tumulto, e depara com os corpos. É muito possível que uma delas ainda continuasse viva; talvez até as duas, embora por pouco tempo. Sem dúvida que o John Coffey nunca teria sabido se elas continuavam vivas ou não. Tudo o que sabe é que possui nas mãos um poder que lhe permite curar e tentou usá-lo na Cora e na Kathe Detterick. Ao ver que os seus esforços não resultavam, foi-se abaixo, começando a chorar histericamente. Foi nesse estado que os homens o encontraram.

- Mas porque é que ele não ficou ali, no lugar onde as havia encontrado? - inquiriu o Brutal. - Por que motivo as levou para sul, ao longo da margem do rio? Fazes alguma ideia?

- Aposto que inicialmente se deixou ficar no mesmo lugar - repliquei. - Durante o julgamento falou-se de uma grande área espezinhada, em que as ervas ficaram todas esmagadas. E o John Coffey é um homem corpulento.

- O John Coffey é um gigante do caralho - corroborou o Harry, falando em voz baixa para que a minha mulher não pudesse ouvi-lo a dizer asneiras, caso ela estivesse a prestar atenção à nossa conversa.

- Talvez ele tenha entrado em pânico ao verificar que os seus esforços não produziam efeito. Ou talvez tenha ficado com a impressão de que o assassino ainda andaria por ali, no arvoredo, a observar os seus movimentos um pouco mais rio acima. Como vocês bem sabem, apesar de toda a sua corpulência, o Coffey não prima pela bravura. Harry, lembras-te de quando ele perguntou se costumávamos deixar as luzes acesas no bloco, depois da hora de deitar?

- Sim. Recordo-me de ter pensado que isso era bastante peculiar, tendo em vista o tamanho dele. - O Harry parecia abalado e pensativo.

- Pois bem, se não foi ele quem matou as garotas, então quem foi? - perguntou o Dean.

- Outra pessoa qualquer - respondi com um abanar de cabeça. - Algum branco. O promotor de justiça fartou-se de dizer que era necessário um homem com muita força para poder matar um cão como o que os Detterick tinham, mas...

- Isso não passa de uma treta - resmungou o Brutos. , Qualquer rapariga forte, de doze anos de idade, seria capaz de torcer o pescoço de um cão, se apanhasse o animal de surpresa e soubesse por onde é que havia de o agarrar. Se não foi o Coffey, é possível que tenha sido qualquer pessoa... isto ~ um homem qualquer. O mais provável é nunca virmos a saber quem foi o responsável.

- A menos que ele volte a fazer o mesmo - atalhei eu. -Mesmo nesse caso não saberíamos, se ele decidisse cometer o crime no Texas ou na Califórnia - disse o Harry. O Brutal recostou-se para trás e, com os punhos fechados, esfregou os olhos, como se fosse um rapazinho com sono, e voltou a deixá-los cair sobre as coxas.

- Isto é um pesadelo - disse ele. - Temos um homem que pode estar inocente... que possivelmente está inocente,.. e, no entanto, vai percorrer a Milha Verde tão certo como Deus ter criado as árvores grandes e os peixes pequenos. O que é que devemos fazer a este respeito? Se começarmos a falar dessa merda dos dedos com poderes curativos, toda a gente vai partir o coco a rir, e ele acabará por ir parar na mesma à velha chapa dos grelhados.

- Preocupemo-nos com esse assunto mais tarde - sugeri, uma vez que não fazia a mínima ideia do que responder. - A questão que se nos coloca neste momento é o que fazer... ou não fazer, em relação à Melly. Eu diria que nos acalmássemos e meditássemos durante alguns dias sobre o assunto, mas estou em crer que cada dia de espera aumenta as hipóteses de ele não poder vir a fazer nada por ela.

- Estão lembrados de como ele estendeu as mãos para o rato? - perguntou o Brutal. - Dizendo: "Entreguem-mo enquanto ainda há tempo." Enquanto ainda há tempo.

- Lembro-me sim.

- Podem contar comigo - afirmou o Brutal com um acenar de cabeça depois de ter pensado durante algum tempo - Eu também me sinto mal com o que aconteceu ao Del, mas acima de tudo acho que só quero ver o que é que acontece quando ele lhe tocar. O mais provável é não suceder nada, mas talvez...

- Eu duvido muito, mas mesmo muito, que cheguemos ao ponto de conseguir tirar aquele grande idiota do bloco interveio o Harry, soltando um suspiro e acenando com a cabeça. - Mas que interessa isso? Contem comigo.

Eu também alinho - acrescentou o Dean. - Quem é que vai ficar de guarda ao bloco, Paul? Vamos tirar à sorte? - Não, senhor - respondi - Nada de tirar à sorte. És tu que fica.

Assim, sem mais nem menos? Uma ova é que fico! - vociferou o Dean, magoado e encolerizado. Tirou os óculos e começou a limpar furiosamente as lentes com a fralda da camisa.

- Que raio de combinação é essa?

. É uma daquelas a que se chega quando se é suficientemente jovem para ter filhos em idade escolar - explicou o Brutal. - O Harry e eu somos solteiros. O Paul é casado e tem filhos, mas pelo menos estes já são adultos e vivem por conta própria. Estamos a planear um esquema muito louco; tenho a impressão de que quase de certeza seremos apanhados. - Olhou para mim com uma expressão solene. - Há uma coisa que ainda não mencionaste, Paul; ainda que consigamos trazer o Coffey para fora da prisão e depois se chegue à conclusão de que os seus dedos curativos não produzem efeito, é o próprio Hal Moores quem poderá vir a denunciar-nos. - Deu-me oportunidade de responder às suas palavras, talvez para as refutar, mas eu não tinha quaisquer argumentos e por isso fiquei de boca fechada. O Brutal voltou a dedicar a sua atenção ao Dean, prosseguindo: - Não me interpretes mal: continuarás a correr o risco de vir a ser despedido, mas pelo menos terás a oportunidade de te manter afastado da prisão, no caso de as coisas começarem a aquecer realmente. O Percy ficará convencido de que tudo não passou de uma simples partida; se estiveres de serviço, podes alegar que pensaste a mesma coisa, uma vez que nunca te pusemos ao corrente da situação.

- Continuo a não gostar dessa combinação - insistiu o Dean, mas era evidente que estava disposto a alinhar nela, quer esta lhe agradasse ou não. Pensar nos filhos pequenos tinha-o levado a decidir-se. - E vai ser esta noite? Vocês têm a certeza?

- Se estivermos dispostos a levar isto para a frente, é melhor que seja esta noite - adiantou o Harry. - Se eu pensar mais no assunto, o mais certo é perder a coragem.

- Deixem que seja eu a ir à enfermaria - pediu o Dean. Pelo menos posso fazer isso não posso?

- Desde que o faças sem seres apanhado - respondeu o Brutal.

O Dean ficou com uma expressão ofendida e eu dei-lhe uma palmada no ombro.

- Assim que pegares ao serviço poderás prosseguir, parece-te bem? - perguntei.

- Podes crer.

Naquele momento, a minha mulher meteu a cabeça pela porta entreaberta, como se eu lhe tivesse indicado que o fizesse.

- Quem é que quer mais chá gelado? - perguntou ela com vivacidade. - Tu, Brutus?

- Não, obrigado - replicou ele. - O que me apetece é um bom trago de uísque, mas, dadas as circunstâncias, talvez isso não seja muito boa ideia.

A Janice olhou para mim; tinha um sorriso nos lábios e os olhos preocupados.

- Em que alhada é que estás a meter estes rapazes, Paul? Mas mesmo antes de eu ter começado a estruturar uma resposta, ela ergueu a mão e acrescentou: - Esquece, não interessa, não quero saber.

 

Mais tarde, muito depois de os meus colegas se terem ido embora, enquanto eu vestia o uniforme para ir trabalhar, a Janice agarrou-me por um braço, fez-me dar meia volta e olhou-me nos olhos com uma intensidade arrebatadora.

- A Melinda? - perguntou lacónica. Acenei que sim. - Podes fazer alguma coisa por ela, Paul? Fazer realmente alguma coisa por ela, ou é apenas uma esperança ilusória provocada pelo que viste ontem à noite?

Pensei nos olhos do Coffey, nas mãos do Coffey, no modo como eu me tinha dirigido a ele, como que hipnotizado, quando ele quisera que eu o fizesse. Lembrei-me também da forma como ele estendera as mãos para o corpo mutilado e moribundo do Mister Jingles. "Enquanto ainda há tempo"> dissera o Coffey. E aquelas coisas negras esvoaçantes, que depois se tornaram brancas e tinham desaparecido.

- Acho que somos a única oportunidade que lhe resta disse eu por fim.

- Nesse caso, não a desperdices - replicou Janice, abotoand° os botões da frente do meu novo sobretudo de Outono. Havia estado pendurado no guarda-roupa desde o meu aniversário, no início de Setembro, mas era apenas a terceira ou quarta vez em que eu o usava. - Não a deixes fugir - insistiu ela.

A minha mulher empurrou-me praticamente pela porta fora.

 

Nessa noite marquei o cartão de ponto - sob muitos aspectos, foi a noite mais estranha de toda a minha vida - às seis horas e vinte minutos. Pensei que ainda me chegava às narinas o cheiro vago a carne queimada que continuava a pairar no ar. Não fora uma ilusão - as portas que davam para o exterior, tanto do bloco como da arrecadação, tinham estado abertas durante a maior parte do dia e os dois turnos anteriores haviam passado horas a esfregar esta última -, mas isso não alterava o que o meu nariz me dizia, e acho que não teria sido capaz de comer o jantar ainda que não me tivesse sentido assustado de morte perante a noite que se desenhava à minha frente.

O Brutal entrou no bloco às seis e quarenta e cinco, e o Dean às sete e dez. Perguntei ao último se poderia ir à enfermaria pedir um emplastro para eu aplicar nas costas, alegando que tinha a impressão de as ter esforçado nessa madrugada ao ajudar a transportar o corpo do Delacroix até ao túnel. O Dean respondeu-me que teria todo o gosto em fazer o que eu lhe pedia. Estou convencido que ele queria piscar-me o olho, mas conseguiu refrear-se.

O Harry marcou o cartão de ponto às sete menos três. - A camioneta? - perguntei.

- Está onde combinámos - respondeu-me.

Até ali, tudo a correr pelo melhor. Decorreu algum tempo em que estivemos junto da mesa do guarda de serviço a beber café, sem que deliberadamente aflorássemos o assunto em que todos pensávamos e em que depositávamos tantas esperanças: que o Percy chegasse atrasado, que o Percy talvez não aparecesse de todo. Levando em consideração as críticas de que fora alvo quanto à forma como lidara com a electrocussão, aquela hipótese parecia-nos ser, no mínimo, bastante Plausível.

Todavia, o Percy perfilhava, aparentemente, aquele velh axioma, que dizia que não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje; transpôs a porta às sete horas e seis minutos, resplandecente no seu uniforme azul, com o coldre presa a uma anca, enquanto na outra trazia o bastão de nogueira dentro daquela ridícula bainha feita de encomenda. Marcou o cartão de ponto e olhou para nós com uma expressão desconfiada (excepto para o Dean, que ainda não regressara da enfermaria).

- O meu motor de arranque avariou-se. Tive de pôr o carro a funcionar com a manivela - informou ele.

- Au! - exclamou o Harry. - Pobrezinho.

- Devias de ter ficado em casa para poderes arranjar a maldita coisa - acrescentou o Brutal num tom de voz ameno. - Não queremos que esforces o teu braço, não é verdade, rapazes?

- Pois, era isso mesmo o que vocês queriam, não é verdade? - retorquiu o Percy com escárnio, mas fiquei com a impressão de que ele se sentira tranquilizado devido à relativa brandura com que o Brutal proferira o seu comentário. E ainda bem. Durante as próximas horas, não poderíamos ser demasiado hostis nem excessivamente cordiais. Depois do que sucedera na noite anterior, ele acharia suspeita qualquer coisa que se assemelhasse, ainda que muito vagamente, à simpatia.

Não iríamos conseguir apanhá-lo sem as suas defesas a postos, como sabíamos, mas eu estava convicto de que conseguiríamos armar-lhe a cilada, se jogássemos as nossas cartas com todas as precauções. Era importante - pelo menos no que me dizia respeito - que ninguém saísse lesionado. Nem sequer o Percy Wetmore.

Entretanto, o Dean regressara ao bloco, fazendo-me um pequeno acenar de cabeça.

- Percy - disse eu - quero que vás à arrecadação e laves o chão com a esfregona. Incluindo os degraus que dão para o túnel. Em seguida, podes começar a escrever o teu relatório sobre a noite passada.

- Isso é que deve ser um trabalho cheio de criatividade - comentou o Brutal, mordaz, enfiando os polegares dentro do cinto e olhando para o tecto.

- Vocês têm mais piada do que uma queca dada na igreja- retorquiu o Percy, mas não levantou qualquer objecção. Nem sequer referiu o que era óbvio: que o chão da sala da arrecadação já tinha sido lavado pelo menos em duas ocasiões nesse dia. O meu palpite é que ele se sentiu satisfeito com aquela oportunidade de poder manter-se afastado de nós.

Comecei a examinar o relatório correspondente ao turno anterior, não li nada que me dissesse respeito e dirigi-me para a cela do Whart°n. Este encontrava-se sentado na sua tarimba com os joelhos dobrados para cima e com os braços à volta das canelas, fitando-me com um grande sorriso pleno de hostilidade.

-Ora bem, com que então temos aqui o grande chefe - disse ele, mordaz. - Tão grande como a vida e duas vezes mais feio. Tem um ar mais contente do que o de um porco mergulhado na merda até aos joelhos, chefe Edgecombe. A sua mulher fez-lhe uma festa na picha antes de ter saído de casa, foi?

- Como é que estás, Kid? - perguntei num tom neutro, o que fez com que ele mostrasse uma expressão verdadeiramente iluminada. Estendeu as pernas, levantou-se e espreguiçou-se. O seu sorriso alargou-se, dando origem a que alguma da hostilidade lhe desaparecesse da fisionomia.

- Raios me partam! - exclamou ele. - Para variar acertou no meu nome. O que é que se passa consigo, chefe Edgecombe? Está doente ou qualquer coisa no género?

Não, não estava doente. De facto tinha estado doente, mas o John Coffey tratara disso. As suas mãos já haviam esquecido como se atavam os atacadores dos sapatos, se é que alguma vez o tinham sabido, mas sabiam fazer outras habilidades. Sim, na realidade sabiam.

- Meu amigo - disse-lhe eu -, se queres ser um Billy the Kid em vez de um Bill Selvagem, é-me completamente indiferente.

Ele ficou todo inchado, como um daqueles peixes de aspecto asqueroso que vivem nas águas dos rios da América do Sul e que conseguem picar-nos com os espigões que têm na Parte de cima e nos lados do corpo, até ficarmos prestes a morrer. Durante o tempo em que trabalhei na Milha, fui forçado a lidar com muitos homens perigosos, mas poucos, ou nenhum deles, eram tão repelentes como o William Wharton, o qual se considerava um fora-de-lei de grande envergadura, mas cujo comportamento na penitenciária raramente se elevou acima de mijar, ou escarrar, por entre as barras da sua cela.

~ Até ao momento ainda não lhe havíamos concedido a admiração respeitosa que ele achava merecer por direito, ~ acontece que, naquela noite, muito em especial, eu pretendia que ele se portasse de uma maneira minimamente tratável, Se isso significava que tinha de lhe passar a mão pelo pêlo com toda a meiguice, fá-lo-ia com a maior das satisfações.

- Eu tenho muito em comum com o Kid, e é melhor que acredite nisso - continuou o Wharton. - Não foi a roubar rebuçados na mercearia do meu bairro que vim parar aqui

acrescentou ele com tanto orgulho como se tivesse acabado de se alistar na Brigada dos Heróis da Legião Estrangeira Francesa, em vez de ter acabado de ir parar com o coiro a uma cela que distava setenta passos longos da cadeira eléctrica. - Onde é que está o meu jantar?

- Deixa-te disso, Kid, o relatório diz que o comeste às cinco e meia. Rolo de carne picada com molho, puré de batata e ervilhas. Não consegues enganar-me com essa facilidade.

Ele riu-se expansivamente e sentou-se de novo na sua tarimba.

- Nesse caso, ligue o rádio.

- Talvez mais tarde, matulão - repliquei. Afastei-me da sua cela e com o olhar percorri o corredor. O Brutal tinha ido até ao extremo mais afastado para verificar se a fechadura da cela do isolamento estava só trancada e não fechada à chave. Eu sabia que era esse o caso, porque eu próprio já tinha verificado. Mais tarde, iríamos querer abrir essa porta o mais rapidamente possível. Não haveria tempo para retirar do interior toda aquela tralha que as pessoas têm por hábito guardar nos sótãos das suas casas ao longo dos anos; já retiráramos tudo e fizéramos uma selecção, tendo arrumado as coisas noutros lugares pouco depois de o Wharton se ter juntado à nossa feliz banda. Tínhamos a impressão de que a cela com as paredes almofadadas estava pronta a ter bastante uso, pelo menos até o Billy the Kid caminhar pela Milha.

O John Coffey, que já deveria estar deitado àquela hora, com as suas pernas grossas e compridas a saírem-lhe para fora da tarimba e de rosto virado para a parede, encontrava-se sentado na ponta da tarimba com os dedos entrelaçados, observando o Brutal com uma expressão tão alerta que não era nada habitual. Os seus olhos também não lacrimejavam.

O Brutal experimentou a maçaneta da porta da cela do isolamento, após o que voltou a percorrer a Milha. Lançou um olhar ao Coffey quando passou pela sua cela, e este disse algo de curioso.

Com certeza. Gostaria de dar um passeio - como se em resposta a qualquer coisa que o Brutal houvesse dito. O olhar deste cruzou-se com o meu. Ele sabe, podia eu quase ouvi-lo a dizer. Não sei como, mas o certo é que ele sabe

Encolhi os ombros e abri os dedos das mãos, como se replicasse: Claro que ele sabe.

 

O velho Pouca Terra efectuou a sua última volta da noite pelo Bloco E por volta das oito e quarenta e cinco. Comprámos o suficiente da porcaria que ele vendia, para lhe fazermos assomar aos lábios um sorriso de avareza.

- A propósito, algum de vocês viu o rato? - perguntou ele. Respondemos-lhe com um abanar de cabeça.

- Talvez o Rapazinho Bonito o tenha visto - sugeriu o Pouca Terra, fazendo um gesto com a cabeça na direcção da arrecadação, onde o Percy estaria a lavar o chão, a escrever o seu relatório ou a meter o dedo no olho do cu.

- O que é que isso te interessa? - perguntou o Brutal. - Não é assunto que te diga respeito. Põe as rodas a rolar, Pouca Terra. Estás a empestar o bloco.

O Pouca Terra esboçou aquele seu sorriso tão peculiarmente desagradável, desdentado e com as faces encovadas, e pôs-se a cheirar o ar de forma acintosa.

- Este cheiro não é meu - disse ele. - Deve ser o do Del a dizer adeus.

Com um riso casquinado, começou a empurrar o seu carrinho, saindo pela porta que dava para o pátio de recreio. E continuou a fazer rolar aquele carrinho por mais dez anos - raios, por muito tempo depois de Cold Mountain ter desaparecido - vendendo bolos e refrigerantes aos guardas e prisioneiros que tinham dinheiro para comprá-los. Por vezes, até mesmo agora, parece-me que estou a ouvi-lo nos meus sonhos, a gritar que está a fritar, está a fritar, que é um peru assado.

A passagem do tempo alongou-se interminavelmente depois de o Pouca Terra ter saído do bloco, e os ponteiros do relógio pareciam arrastar-se. Ligámos o rádio durante hora e meia, e o Wharton riu-se a bandeiras despregadas ao ouvir o programa do Fred Allen O Beco de Allen, embora eu estivesse pronto a apostar fosse o que fosse em como ele não compreendia muitas das piadas. O John Coffey continuava sentado no extremo da tarimba, com as mãos entrelaçadas e olhar que mal se desprendia de quem quer que se encontrasse sentado na mesa do guarda de serviço. Já tive oportunidade de observar homens com a mesma atitude, os quais aguardavam nos terminais das camionetas que seja anunciada a partida do seu transporte.

Por volta das dez e quarenta e cinco, o Percy saiu da arrecadação, tendo-me entregue um relatório laboriosamente feito a lápis. A folha de papel ainda tinha restos da borracha com que ele havia apagado algumas partes, sobre as quais voltara a escrever. Passei o polegar por uma destas zonas manchadas.

- Isto é apenas um primeiro rascunho - apressou-se ele a dizer. - Quero copiá-lo para outra folha. Qual é a tua opinião?

A minha opinião era que aquele maldito relatório era o mais ultrajante branqueamento que eu lera em toda a minha permanência à face da Terra. Mas disse-lhe que estava óptimo, e ele afastou-se todo satisfeito consigo próprio.

O Dean e o Harry jogavam às cartas, falando num timbre de voz demasiado elevado, e implicando um com o outro em demasia por causa da contagem dos pontos, enquanto de cinco em cinco segundos lançavam olhares aos ponteiros do relógio que davam a impressão de não avançar. Em pelo menos um dos seus jogos dessa noite, fiquei com a sensação de que haviam efectuado três voltas em vez de duas. O ambiente estava tão carregado de tensão que parecia ser possível cortá-lo à faca; as únicas pessoas que, aparentemente, não se sentiam afectadas por aquela tensão eram o Percy e o Bill Selvagem:

Quando faltavam dez minutos para a meia-noite, não fui capaz de suportar mais aquela situação e acenei ligeiramente ao Dean. Este dirigiu-se para o meu gabinete, levando consigo uma garrafa de Cola RC que havia comprado ao Pouca Terra, e voltou a sair um ou dois minutos depois. Naquele momento, a bebida encontrava-se no interior de um pequeno púcaro de alumínio, que os prisioneiros não poderiam quebrar e utilizar como arma de ataque.

Agarrei no púcaro e olhei em volta. O Harry, o Dean e Brutal não despregavam os olhos de mim, nem o John Coffey. Todavia, isso não se verificava com o Percy, que entretanto voltara para a arrecadação, onde provavelmente se sentiria mais à vontade naquela noite em especial. Rapidamente, cheirei o conteúdo do púcaro, sem que dele se evolasse qualquer odor, para além do da RC, a qual, nesses tempos, tinha uma fragrância a canela estranhamente agradável.

Levei a bebida até à cela do Wharton. Encontrava-se estendido na sua tarimba. Não estava a masturbar-se - pelo menos, por enquanto - mas já tinha uma tumefacção bastante avantajada por baixo das cuecas, e de vez em quando dava um bom apalpão saudável ao membro retesado, como se fosse um mau rabequista a tocar uns acordes suplementares nas cordas tensas.

-Kid - chamei.

- Não me incomode - replicou ele.

- De acordo - concordei. - Como esta noite te tens comportado como um ser humano, o que é quase um recorde, trouxe-te um refrigerante, mas, como não queres ser incomodado, vou bebê-lo eu.

Fiz menção de fazer o que acabara de dizer erguendo o púcaro de alumínio (todo amolgado por terem batido com ele contra as barras das celas) até aos lábios. Como se fosse um relâmpago, o Wharton levantou-se da tarimba, o que não me surpreendeu. Não fora um bluff de grande risco; quase todos os condenados mais perigosos - ladrões, violadores e os homens marcados para a Velha Faísca - era uns gananciosos pelas suas guloseimas, e aquele não constituía excepção.

- Dê cá isso, seu palerma - disse o Wharton. Expressou-se como se fosse ele o capataz, não passando eu de um lacaio dos mais desprezíveis. - Dê isso ao Kid.

Mantive o púcaro do lado de fora das barras, deixando que fosse ele a estender o braço para lhe pegar. Fazê-lo de outra forma é a receita certa para a ocorrência de um desastre, tal como qualquer guarda de prisão com muitos anos de experiência nos dirá. Lembrávamo-nos disso, sem sequer nos darmos conta de que o fazíamos - da mesma maneira que sabíamos que não devíamos permitir aos prisioneiros que nos tratassem pelos nossos nomes próprios e que o som de chaves que se entrechocavam com rapidez significava a ocorrência de problemas no bloco uma vez que esse era o ruído provocado por um guarda a correr, e estes nunca corriam, a menos que se verificassem complicações. Isso era o género de coisa que o Percy Wetmore nunca seria capaz de aprender.

No entanto, naquela noite, o Wharton não estava interesado em agarrar ou asfixiar ninguém. Arrancou-me da mão púcaro de alumínio, bebeu o refrigerante em três grandes goladas e soltou um estrondoso arroto.

-Excelente! - exclamou.

- O púcaro - disse eu, estendendo a mão.

O Wharton deixou-se ficar com ele por alguns momento exibindo um olhar trocista.

- Suponha que eu quero ficar com ele?

- Nesse caso, entraremos na cela para to tirar - respondi com um encolher de ombros. - Em seguida, vais para a cela pequena e terás bebido a tua última RC. Isto é, a menos que costumem servi-las nas profundezas do inferno.

- Eu não gosto de piadas sobre o inferno, cabeça de parafuso - retorquiu ele com o sorriso a apagar-se-lhe dos lábios. Estendeu-me o púcaro através das barras. - Aqui está. Pode levá-lo.

Agarrei no púcaro. Atrás de mim ouviu-se a voz do Percy, - Em nome de Deus, porque é que ofereceste a um mentecapto como esse um refrigerante?

Porque o refrigerante tinha soporíferos da enfermaria em quantidade suficiente para o deixar de costas durante quarenta e oito horas, e ele não dera por nada, pensei para comigo.

- No que diz respeito ao Paul - interveio o Brutal -, a misericórdia nunca é restrita; tomba dos céus como uma chuva suave.

- Hem?! - perguntou o Percy com o sobrolho franzido. - Significa que ele tem um coração bondoso. Sempre teve e sempre terá. Queres jogar à bisca, Percy?

- Com a excepção do burro, esse é o jogo de cartas mais idiota que alguma vez existiu - respondeu o Percy com uma expressão desdenhosa.

- Foi por isso que me ocorreu que talvez gostasses de o jogar - replicou o Brutal com um sorriso cheio de doçura. - Hoje estão todos muito espertalhões - observou o Percy, tendo ido todo amuado para o meu gabinete. Não ~ agradava muito o facto de o pequeno lorpa instalar o traseud por detrás da minha secretária, mas mantive a boca fechada Os ponteiros do relógio continuavam a arrastar-se. Meia-noite e vinte; meia-noite e meia. À meia-noite e quarenta,

John Coffey ergueu-se da sua tarimba e colocou-se junto da porta da cela; as suas mãos agarravam as barras da maneta solta. O Brutal e eu dirigimo-nos para a cela do Wharton e olhámos para o interior. Estava deitado sobre a tarimba, a sorrir para o tecto. Mantinha os olhos abertos, mas estes assemelhavam-se a bolas de vidro. Tinha uma mão em cima do peito, enquanto a outra pendia flacidamente de um dos lados da ~¡mba, com o nó dos dedos a roçar pelo chão.

- Meu Deus - disse o Brutal -, passou de Billy the Kid a Alie, o Choramingas em menos de uma hora. Pergunto a mim mesmo quantos comprimidos de morfina é que o Dean terá posto na bebida.

- O suficiente - repliquei. A minha voz tremia ligeiramente. Não sei se o Brutal se apercebeu desse pormenor, mas a mim não me passou despercebido. - Mãos a obra. Ponhamos em prática o que planeámos.

- Não queres esperar que ali o lindinho perca a consciência?

-Ele já a perdeu, Brute. Está é muito pedrado para fechar os olhos.

- Tu é que és o chefe. - Olhou em redor à procura do Harry, mas este já se encontrava presente. O Dean sentava-se muito direito à mesa do guarda de serviço, baralhando as cartas com tanta rapidez e violência que era um milagre elas não pegarem fogo, e de vez em quando olhava de relance para a esquerda, na direcção do meu gabinete. Estava de olho no Percy.

- Já está na hora? - perguntou o Harry. O seu rosto alongado, com traços cavalares, mostrava-se muito empalidecido acima da camisa azul do uniforme; no entanto, a sua fisionomia denotava determinação.

- Sim - confirmei. - Está na hora. Vamos pôr o nosso plano em acção.

O Harry benzeu-se e beijou a ponta do polegar. Em seguida encaminhou-se para a cela do isolamento, abriu a porta e regressou com o colete-de-forças. Entregou-o ao Brutal. Começámos a percorrer a Milha Verde, os três. O Coffey continuava junto à porta da sua cela, observando todos os nossos movimentos sem proferir uma única palavra. Quando chegámos à secretária no corredor o Brutal colocou o colete-de-força atrás das costas as quais eram suficientemente espadaúdas

para o ocultar com facilidade.

-- Sorte - disse o Dean. Tinha as faces tão pálidas como as do Harry, embora se mostrasse tão determinado quanto este.

O Percy encontrava-se por detrás da minha mesa, tal como esperávamos, sentado na minha cadeira e franzindo a testa enquanto lia o livro que durante as últimas noites o tinha acompanhado para todo o lado - não era a Argozy ne Stag, mas sim Os Cuidados a Prestar aos Doentes Mentais em Hospícios. Ter-se-ia pensado, a fazer fé no olhar de culpa e de consternação que ele nos lançou quando entrámos, que se tratava de Os Ultimos Dias de Sodoma e Gomorra.

- O que foi? - perguntou ele, fechando o livro com toda a rapidez. - O que é que querem?

- Falar contigo, Percy - disse eu -, mais nada. Contudo, ele leu muito mais nas nossas expressões do que o mero desejo de conversar, e levantou-se da cadeira que nem uma flecha, apressando-se - sem no entanto ter começado a correr, embora não houvesse faltado muito - na direcção da porta aberta que dava para a arrecadação. Convenceu-se de que tínhamos ido à sua procura para lhe darmos uma boa ensinadela, no mínimo dos mínimos e, muito provavelmente, uma boa sova.

O Harry aproximou-se por detrás dele, cortando-lhe a retirada pela porta e cruzando os braços à frente do peito.

- Mas que diabo! - exclamou o Percy, voltando-se para mim, alarmado, apesar de se esforçar por não o mostrar. - O que é isto?

- Não perguntes, Percy - repliquei-lhe. Eu tinha pensado que ele ficaria bem... pelo menos, que iria regressar ao normal depois de termos dado início a todo aquele assunto tresloucado, mas o certo é que as coisas não estavam a desenrolar-se como eu supusera. Era-me difícil acreditar no que estava a fazer. Era como se tudo aquilo não passasse de um sonho mau. Esperava constantemente que a minha mulher me sacudisse até eu acordar, para me dizer que estivera a gemer durante o sono. - Será mais fácil se te limitares a vogar no sentido da maré.

- O que é que o Howell tem escondido atrás das costas? perguntou o Percy numa voz enrouquecida, dando meia volta para poder observar melhor o que o Brutal estava a fazer.

- Nada - respondeu este. - Bem... suponho que isto.

Estendeu a mão com que segurava no colete-de-forças sacudindo-o contra uma das ancas, como se fosse um toureiro a lançar a capa perante um touro que investia.

Os olhos do Percy arregalaram-se e ele arremessou-se para

a frente. Tinha a intenção de desatar a correr, mas o Harry agarrou-o pelos braços.

Larga-me imediatamente! - gritou o Percy, tentando soltar-se do Harry. Não teria possibilidades de se escapar. ~ Harry pesava, pelo menos, mais cinquenta quilos que ele e tinha os musculos de um homem que passava a maior parte do tempo dele a lavrar a terra e a cortar madeira; todavia, o Percy ainda conseguiu fazer valer alguns dos seus esforços, arrastando o Harry até meio do gabinete, deslocando a horrível carpete verde que eu dizia a mim mesmo que teria de substituir, sem nunca o fazer. Por breves instantes, pensei que ele iria conseguir libertar um braço; o pânico pode ser um motivador muito forte.

- Acalma-te, Percy - aconselhei. - Será mais fácil se... - Não te atrevas a dizer-me para me acalmar, meu grandessíssimo ignorante! - berrou o Percy, dando safanões com os ombros, tentando libertar-se dos braços do Harry. - Só quero é que se afastem de mim. Todos vocês! Eu tenho os meus conhecimentos. Gente importante! Se não pararem já com isto, terão de ir a pé até à Carolina do Sul só para conseguir uma refeição na sopa dos pobres!

Investiu uma vez mais para a frente, batendo com as coxas contra a minha secretária. O livro que ele estivera a ler, Os Cuidados a Prestar aos Doentes Mentais em Hospícios, sofreu um safanão, enquanto o mais pequeno, do tamanho de um pequeno livro de bolso e que estivera escondido dentro do outro, saiu do seu lugar. Não admirava que o Percy tivesse exibido uma expressão de culpa quando entrámos no gabinete. Não eram Os Últimos Dias de Sodoma e Gomorra, mas era o que por vezes costumávamos dar aos prisioneiros com uma fusa mais forte e que por se terem comportado suficientemente bem mereciam uma atenção. Tenho a impressão de que já falei disto - o pequeno livro aos quadradinhos em que a

Olívia Palito fornica com toda a gente, excepto com o

Sweet Pea, o miúdo.

Achei lamentável que o Percy tivesse ido para o meu gabinete entreter-se com aquele género de pornografia tão frouxa e o Harry - aquilo que eu conseguia ver dele por cima do ombro do Percy, que continuava a tentar libertar-se - ficou com uma expressão ligeiramente nauseada, mas o Brutal desatou às gargalhadas o que despojou o Percy da sua vontade de se debater, pelo menos, momentaneamente.

- Oh, Percizinho - disse ele. - O que é que a tua mãe

diria? Já agora, o que é que o governador diria? As faces do Percy adquiriram uma tonalidade vermelha escura.

- Cala-te e deixa a minha mãe fora do assunto.

O Brutal lançou-me o colete-de-forças, colocando o rosto mesmo em frente do do Percy.

- Com certeza, desde que estendas os braços como um bom rapazinho.

Os lábios do Percy tremelicavam e os olhos estavam demasiado brilhantes. Compreendi que se encontrava à beira das lágrimas.

- Não quero - disse ele numa voz trémula de criança -, e vocês não podem obrigar-me. - Em seguida, elevou' a voz e começou a gritar por ajuda. O Harry retraiu-se todo, o mesmo sucedendo a mim próprio. Se alguma vez estivemos' prestes a pôr fim a tudo aquilo, foi precisamente naquela altura. E era o que teríamos feito, não fora a presença do Brutal. Este não hesitou nem um segundo. Colocou-se por detrás do Percy, tendo ficado ombro a ombro com o Harry, o qual continuava a manter as mãos do Percy imobilizadas atrás das costas deste. O Brutal avançou e agarrou no Percy pelas orelhas.

- Pára de berrar - ordenou-lhe o Brutal. - A menos que desejes ficar com as orelhas mais singulares que existem em todo o mundo.

Ao ouvir aquilo, o Percy parou de gritar por ajuda, limitando-se a ficar ali a tremer, baixando o olhar para a capa daquele livro ordinário aos quadradinhos, no qual se viam o Popey e e a Olívia a terem relações sexuais numa posição deveras criativa, de que eu já ouvira falar mas que nunca tinha experimentado. "Oohhh, Popeye!", lia-se na legenda acima da cabeça da Olívia. "Âque... âque... âque... âque!", lia-se na que se encontrava por cima de Popeye. Ele continuava a fumar o seu cachimbo.

- Estende os braços - disse o Brutal -, e vamos acabar com todos estes disparates. Despacha-te.     

- Não quero - replicou o Percy. - Recuso-me a fazê-lo e tu não podes obrigar-me. - Não sei se sabes, mas estás redondamente enganado, a esse respeito - continuou o Brutal, agarrando firmemente nas orelhas do Percy, enquanto as fazia girar como quem gira os botões de um fogão. Isto é, um fogão que não tivesse a intensidade de calor desejável para se poder cozinhar. O Percy soltou um guincho de dor e de surpresa; eu teria dado bastante para não ter ouvido aquilo. Bem vêem, não se tratava somente de dor e surpresa também era de compreensão. Pela primeira vez em toda a sua vida, o Percy tinha a percepção de que as coisas horríveis não aconteciam apenas às outras pessoas, àqueles que não eram suficientemente afortunados para serem familiares do governador. Eu só desejava dizer ao Brutal que parasse com aquilo, mas como é evidente não o podia fazer. As coisas já haviam ido longe de mais para que eu procedesse dessa forma. Tudo o que podia fazer para acalmar a minha consciência era recordar a mim mesmo o que o Percy tinha feito ao Delacroix, fazendo-o passar por sabia Deus que agonias, só porque este tinha ousado rir-se dele. No entanto, aquela recordação não contribuiu em muito para me tranquilizar. É possível que isso tivesse acontecido se a minha maneira de ser estivesse mais em consonância com a do Percy.

- Estende-me esses braços para a frente, querido - disse o Brutal -, ou eu dou-te outra dose.

O Harry já tinha soltado os braços do jovem Mr. Wetmore. Este desatou a chorar convulsivamente como uma criança, com as lágrimas, que até então lhe haviam marejado os olhos, a correrem-lhe livremente pelas faces abaixo, após o que, num gesto brusco, estendeu as mãos, qual sonâmbulo num filme de comédia. Em três segundos, enfiei-lhe as mangas do colete-de-forças pelos braços abaixo. Mal as tinha puxado até aos ombros, já o Brutal largara as orelhas do Percy, para poder agarrar nas correias que pendiam dos punhos do colete. Puxou as mãos do Percy em redor dos flancos, de forma a que os braços ficassem apertadamente cruzados à frente do peito. Entretanto o Harry tratou da parte de trás, prendendo bem as tiras de lona que se entrecruzavam. Depois de o Percy ter desistido e estendido os braços todo aquele processo ficou concluído em menos de dez segundos.

- Muito bem, fofos - acrescentou o Brutal. - Em frente; vamos a marchar!

Ele, porém, recusava-se a andar. Fitou o Brutal para logo a seguir me olhar com uma expressão aterrorizada. Naquele momento, o Percy não fazia a mínima alusão aos seus conhecimentos, nem tão-pouco à maneira como seríamos forçados a ir para

a Carolina do Sul apenas para podermos comer uma refeição graças à generosidade de alguém; o Percy encontrava-se muito para lá desse tipo de argumentos.

- Por favor - murmurou ele numa voz áspera e permeada de lágrimas. - Não me leves para junto dele, Paul. Foi então que compreendi o motivo por que ele estava em pânico e se debatera com tanta violência; estava convencido de que o íamos colocar junto do Bill "Selvagem" Wharton; que o seu castigo por causa da esponja seca seria um tratamento especial ministrado pelo nosso psicopata interno. Ao invés de sentir qualquer simpatia pelo Percy, por ter compreendido a razão do seu medo, senti apenas desdém e uma maior determinação. Ao fim e ao cabo, o homem estava a julgar-nos pela sua bitola, caso as nossas posições tivessem sido invertidas.

- Não é para junto do Wharton que vais - disse-lhe eu. - É sim para a cela do isolamento, Percy. Vais passar três ou quatro horas lá dentro, sozinho na escuridão, a pensar naquilo que fizeste ao Delacroix. Muito provavelmente já é tarde de mais para poderes aprender novas lições quanto à forma como te deves comportar... pelo menos, é essa a opinião do Brutal, mas eu continuo a ser optimista. Agora, mexe-te.

Ele obedeceu, resmungando entre dentes que haveríamos de lamentar aquilo, lamentar e muito, que esperássemos para ver, mas, de uma maneira geral, dava a impressão de se sentir aliviado e não demasiado preocupado.

Quando o conduzimos para o corredor, o Dean lançou-nos um olhar arregalado de surpresa e de uma inocência tão cheia de candura que eu teria desatado a rir se o assunto não se revestisse de tanta seriedade.

- Diz-me uma coisa: não te parece que a brincadeira já foi longe de mais? - perguntou o Dean.

- Cala-me mas é essa boca, se sabes o que é bom para ti - vociferou o Brutal. Havíamos ensaiado aquelas frases à hora do almoço; por isso, tudo aquilo me parecia ser uma en

cenação, apenas umas linhas mal alinhavadas, mas, se servissem para assustar e confundir o Percy, tanto melhor, uma vez que ainda poderiam vir a salvar o emprego do Dean Stanton, caso as coisas chegassem a esses extremos. Por mim não pensava que isso fosse viável; no entanto, tudo era possível. Desde então, sempre que duvido disso, limito-me a pensar no John Coffey e no rato do Delacroix.

Obrigámos o Percy a percorrer a Milha Verde aos tropeções, enquanto ele nos pedia ofegante que abrandássemos o passo, dizendo que cairia de cara no chão se não fôssemos mais devagar. O Wharton continuava deitado na sua tarimba, passámos pela cela dele demasiado depressa para conseguir ver se ainda dormia ou se estava acordado. O John Coffey continuava junto à porta da cela, observando tudo o que se passava no bloco.

. Tu és um homem mau e mereces ir para aquele lugar escuro - disse ele, mas não me parece que o Percy o tenha ouvido.

Entrámos na cela do isolamento. As faces avermelhadas do Percy estavam molhadas de lágrimas, enquanto os olhos lhe rebolavam nas órbitas; os seus cabelos ondulados, a que ele prestava tantos cuidados, caíam-lhe pela testa todos despenteados. Com uma mão, o Harry retirou-lhe o revólver do coldre e com a outra agarrou no bastão de nogueira que tão querido lhe era.

- Não te preocupes, porque te serão devolvidos - prometeu-lhe o Harry. A sua voz deixava adivinhar um certo constrangimento.

- Quem me dera poder dizer o mesmo quanto ao teu emprego - replicou o Percy. - Aos empregos de todos vocês. Não podem fazer-me uma coisa destas. Não podem!

Era óbvio que ele se encontrava na disposição de continuar com aquele tema, mas nós não tínhamos tempo para ouvir a sua ladainha. Eu enfiara num dos meus bolsos um rolo de fita de fricção, o antepassado dos anos 30 da fita de embalagem que se usa hoje em dia. Quando o Percy avistou o rolo, começou a recuar. O Brutal aproximou-se dele por trás e agarrou-o, manietando-lhe os braços até eu ter colocado a fita a tapar-lhe a boca desenrolando o rolo em redor da cabeça até à nuca para maior segurança. Quando a fita fosse retirada, o Percy iria ficar com umas quantas madeixas de cabelo a menos e uns lábios severamente irritados para compor o ramalhete, mas eu deixara de me preocupar muito com as consequências. Estava positivamente pelos cabelos com o Percy Wetmore.

Retrocedemos e afastámo-nos dele. Ficou no meio da cela, por baixo da lâmpada, imobilizado pelo colete-de-forças, a respirar por narinas frementes, e soltando sons abafados por detrás da fita que lhe tapava a boca. No cômputo geral, o seu era o mesmo de qualquer prisioneiro.

- Quanto mais sossegado te mantiveres, mais depressa sairás daqui - disse-lhe eu. - Tenta não te esqueceres disso Percy.    , - E se te sentires sozinho, pensa na Olívia Palito aconselhou o Harry com mordacidade. - "Âque.., tique... âque... âque!"

Em seguida, saímos dali. Fechei a porta e o Brutal trancou-a à chave. O Dean encontrava-se um pouco afastado na Milha, mesmo do lado de fora da cela do Coffey. Já tinha inserido a chave-mestra na fechadura de cima. Entreolhámo-nos sem que nenhum de nós dissesse fosse o que fosse. Não havia necessidade de quaisquer palavras. Havíamos posto o mecanismo em movimento; naquele momento, tudo o que poderíamos esperar era que as coisas corressem de acordo com os planos que havíamos delineado, em vez de saltarem para fora dos carris algures ao longo do caminho.

- Continuas a querer dar um passeio, John? - perguntou o Brutal.

- Sim, senhor - respondeu o Coffey. - Acho que sim, - Excelente - atalhou o Dean. Girou a chave na primeira fechadura, tirou-a e inseriu-a na segunda.

- Vamos ter de te acorrentar, John? - perguntei.

O Coffey deu a impressão de ter ficado a pensar naquilo. - Se quiserem, podem - respondeu ele por fim. - Mas não há necessidade.

Acenei ao Brutal, ele abriu a porta da cela, e eu virei-me para o Harry que, mais ou menos, apontava o revólver do Percy na direcção do Coffey, enquanto este saía da cela. - Entrega isso ao Dean - disse-lhe eu.

O Harry pestanejou como se tivesse estado completamente ausente, reparando que a arma e o bastão do Percy continuavam nas suas mãos, e entregou as duas coisas ao Dean.

Entretanto, o Coffey, com a sua figura corpulenta, entrou no corredor onde a cabeça calva quase tocava nas lâmpadas Vendo-o ali com as mãos estendidas à sua frente e os ombros inclinados para o seu peito entroncado pensei a mesma coisa que pensara a primeira vez que o vira: um urso enorme que tinha sido capturado.

- Fecha à chave os brinquedos do Percy na mesa do corredor até regressarmos - disse eu.

- Se regressarmos - acrescentou o Harry.

- De acordo - respondeu-me o Dean sem prestar atenção ao que o Harry dissera.

E se alguém aparecer por aqui... o mais provável é ninguém vir até cá, mas se por acaso aparecer alguém, o que é que tu lhe dizes?

- Que o Coffey ficou perturbado por volta da meia-noite -

replicou o Dean. A sua expressão era tão aplicada como a de um estudante a fazer um exame importante. Tivemos de o meter no colete-de-forças e fechá-lo na cela do isolamento. Caso se ouça algum barulho, quem quer que o ouça deduzirá que é ele. - Ergueu o queixo na direcção de John Coffey.

- E quanto a nós? - inquiriu o Brutal por sua vez. - O Paul foi à administração buscar o processo do Del para se inteirar do nome das testemunhas - continuou o Déan. - O que desta vez é um assunto muito importante, dado que a execução dele correu de forma tão atabalhoada. Disse que o mais certo seria ter de ficar por lá durante o resto do turno. Tu, o Harry e o Percy foram à lavandaria pôr a vossa roupa a lavar.

Pois bem, isso era o que se costumava dizer. Havia noites em que tinha lugar um fogo de dados na arrecadação da lavandaria, enquanto nas outras era póquer, cartas ou qualquer outro jogo. Os guardas que participavam neles costumavam dizer que iam pôr a roupa a lavar. Naquelas reuniões, bebia-se normalmente uísque destilado em casa e, de vez em quando, um charro passava de mão em mão até completar o círculo. Suponho que isto acontece em todas as penitenciárias desde que estas foram inventadas. Quando se passa toda a vida a vrgiar homens de maus princípios, é impossível evitarmos suar-nos um pouco. Em qualquer dos casos, era pouco provável que alguém aparecesse no bloco. "A lavagem das roupas" era um assunto tratado com extrema discrição em Cold Mountain.

- Tudo bem com o "Senhor a Postos" - disse eu, dando meia volta ao Coffey para o pôr em movimento. - E se tudo for por água abaixo, Dean, não sabes nada de nada. - Isso é muito fácil de dizer, mas...

Naquele preciso momento, um braço magricela saiu disparado por entre as barras da cela do Wharton, agarrando no músculo do braço do Coffey. Todos ficámos sem fôlego. Em Princípio o Wharton deveria estar morto para o mundo, quase que em coma. Contudo ali se encontrava ele de pé, com o corpo a oscilar de um lado para o outro, qual pugilista violentamente esmurrado exibindo um esgar sorridente e um olhar toldado.

A reacção do Coffey foi absolutamente notável. Não afastou, mas ficou também a arquejar, inspirando o ar por cima dos dentes inferiores, como alguém que houvesse tocado inadvertidamente em algo frio e desagradável. Os seus olhos arredondaram-se e, por breves momentos, pareceu nunca ter visto o mentecapto, quanto mais levantar-se à mesma hora que ele todas as manhãs e deitar-se na mesma altura todas ~ as noites. Mostrara-se bastante alerta - presente - quando quis que eu entrasse na sua cela, de maneira a poder tocar-me. Conseguir evitar o mal, em linguagem do Coffey. Quando tinha estendido as mãos para o rato, mostrara exactamente a mesma atitude. Agora, e pela terceira vez, a sua fisionomia iluminara-se, como se um foco de luz houvesse sido, subitamente, ligado no interior do seu cérebro. Só que desta vez era diferente. Desta vez era mais frio, e perguntei a mim mesmo o que é que sucederia se o John Coffey, de súbito, decidisse entrar em fúria. Estávamos munidos das nossas armas, pelo que poderíamos alvejá-lo; contudo, subjugá-lo poderia vir a provar ser uma tarefa bastante árdua.

Nas feições do Brutal li pensamentos similiares; todavia, o Wharton continuava a exibir o seu sorriso de imbecil pedrado, com os lábios descaídos.

- Onde é que pensas que vais? - perguntou ele. As suas palavras saíram-lhe da boca numa toada arrastada.

O Coffey mantinha-se imóvel, fitando primeiro o Wharton, depois a sua mão, para logo voltar a olhar para o seu rosto. Eu não conseguia ler aquela expressão. Quer dizer, detec tava a inteligência no seu semblante, mas era incapaz de o ler. Quanto ao Wharton, não me sentia minimamente preocupado com ele. Mais tarde, não se recordaria de nada daquilo; seria como um bêbedo a caminhar por uma zona completamente às escuras.

- Tu és um homem mau - sussurrou o Coffey e eu não consegui destrinçar o que lhe ouvia na voz: sofrimento, cólera ou temor. Talvez uma amálgama dos três sentimentos. O Coffey baixou o olhar uma vez mais na direcção da mão que continuava no seu braço, da mesma forma que olharia para um insecto que o pudesse picar de maneira bastante desagra' dável, caso estivesse decidido a isso.

- É verdade, negro - retorquiu o Wharton com um sorriso matreiro e sinistro. - Tão mau quanto possas imaginar subitamente, tive a certeza absoluta de que estava prestes a acontecer algo, horrível, algo que iria alterar o curso planeado daquele início de madrugada, da mesma forma que um terramoto de proporções catastróficas pode alterar o leito de um rio. Iria suceder algo e nada que eu ou qualquer de nós pudesse então o impediria.

Foi então que o Brutal estendeu a mão e retirou a do Wharton do braço do John Coffey, pondo termo àquele meu pressentimento de inevitabilidade. Era como se um circuito potencialmente perigoso tivesse sido interrompido. Eu já vos disse que durante todo o tempo em que trabalhei no Bloco E a linha directa para o governador nunca tocou. O que era verdade, mas imagino que, se isso tivesse acontecido alguma vez, teria sentido o mesmo alívio que me invadiu quando o Brutal retirou a mão do Wharton do braço daquele homem gigantesco que se elevava ao meu lado. Uma vez mais, os olhos de Coffey adquiriram uma expressão ausente; era como se o foco de luz até então existente no seu cérebro houvesse sido desligado.

-Deita-te, Billy - disse o Brutal. - Descansa um pouco. - Aquela era habitualmente a minha frase para os acalmar, mas, dadas as circunstâncias, não me incomodei por ele a ter utilizado.

- Talvez faça isso mesmo - concordou o Wharton. Num passo cambaleante começou a retroceder e quase caiu, mas recuperou o equilíbrio no último instante. - Oohhh, paizinho! A cela está a girar. Parece que estou bêbedo.

Recuou até à tarimba, mantendo o olhar atordoado no Coffey enquanto seguia às arrecuas.

- Os negros deviam ter a sua própria cadeira eléctrica - disse ele. Então, a parte de trás dos seus joelhos bateu na tarimba, e ele deixou-se tombar. Antes de a cabeça ter tocado na almofada da prisão, já começara a ressonar; os seus olhos mostravam umas olheiras azuladas e profundas, enquanto a ponta da língua pendia da boca.

- Como é que ele foi capaz de se levantar com tanta droga no bucho? - perguntou o Dean num murmúrio.

- Isso não interessa agora já perdeu a consciência - respondi. - Se ele voltar a querer despertar, dá-lhe outro compr¡mido dissolvido num copo de água. Não lhe dês mais do que um. Tem cuidado. Não queremos matá-lo.

- Fala por ti - atalhou o Brutal num resmungo, lançando ao Wharton um olhar de desprezo. - Seja como for, é impossível matar um gorila como ele só com drogas. Eles desabrocham sob o seu efeito.

- Ele é um homem mau - repetiu o Coffey, desta feita num tom mais baixo, como se não estivesse bem certo daquilo que estava a dizer, nem do seu significado.

- Tens toda a razão - corroborou o Brutal. - Terrivelmente mau! Mas isso agora não interessa, uma vez que não vamos ter de dançar o tango com ele. - Retomámos a nossa caminhada; o Coffey seguia ladeado pelos quatro, como se fôssemos idólatras em redor de um ídolo que tivesse assumido uma qualquer semivida pouco definida. - Diz-me uma coisa, John... sabes para onde é que vamos levar-te? - inquiriu o Brutus.

- Para conseguir evitar o mal - respondeu ele. - penso que é uma senhora? - Olhou para o Brutal com uma expressão de ansiedade esperançada.

- É isso mesmo - retorquiu o Brutal com um acenar afirmativo de cabeça. - Mas como é que soubeste isso? Como é que sabes?

O John Coffey ficou a avaliar aquela pergunta com todo o cuidado, após o que abanou a cabeça.

- Não sei - disse ele ao Brutal. - Para lhe dizer a verdade, chefe, eu não sei muito de nada. Nunca soube. Tivemos de contentar-nos com aquela explicação vaga.

 

Eu sabia que a pequena porta existente entre o meu gabinete e os degraus que davam para a sala da arrecadação não fora construída levando em consideração as pessoas da estatura do Coffey, mas nunca me apercebera de até que ponto aquela disparidade existia até ele se ter colocado em frente da entrada para onde olhava com um ar meditativo.

O Harry riu-se, mas o próprio Coffey pareceu não achar qualquer graça ao facto de um homem corpulento se encontrar em frente daquela porta tão pequena. Claro que não teria achado graça àquilo; ainda que a sua inteligência tivesse sido um pouco mais alargada do que efectivamente era, continua' ria a ser da mesma opinião. Durante a maior parte da vida, ~

Coffey fora um homem gigantesco, e aquela porta era um tudo-nada mais pequena do que a maioria.

Sentou-se, transpondo-a, e voltou a erguer-se, tendo descido as escadas até onde o Brutal o aguardava. Chegado ali, deteve-se, olhando para o outro lado da pequena sala, na direcção do estrado onde se encontrava a Velha Faísca, tão silenciosa - e tão lúgubre - como um trono no castelo de um rei morto. O capacete continuava pendurado, com um garbo falso, num dos ganchos das costas, parecendo menos a coroa de um rei do que o barrete de um bobo da corte, mas sendo algo que qualquer idiota usaria ou agitaria parã fazer com que o seu público, todo emproado, risse ainda mais das suas macaquices. A sombra que a cadeira projectava, alongada e tenebrosa, subia ameaçadoramente por uma parede. E sim, pensei que ainda conseguia cheirar a carne queimada no ar. Embora fosse bastante vago, eu estava convencido de que aquilo era mais do que apenas o fruto da minha imaginação.

O Harry baixou a cabeça para poder passar pela porta, e em seguida foi a minha vez. Não me agradou nada a forma como o John Coffey olhava mesmerizado para a Velha Faísca. Gostei ainda menos daquilo que vi nos seus braços quando me aproximei mais dele: a pele toda arrepiada.

- Vamos lá, matulão - disse eu, tentando encorajá-lo. Agarrei-o pelo pulso, tentando levá-lo na direcção da porta que dava acesso ao túnel mais abaixo. De início não se mexeu, e eu tive a sensação de que tentava arrastar um penedo do solo apenas com as minhas mãos.

- Vamos lá, John, temos de continuar, a menos que queiras que a carruagem se transforme numa abóbora - disse o Harry, soltando de novo uma gargalhada nervosa. Agarrou no outro braço do John e começou a puxar, mas este continuava imobilizado. Foi então que ele proferiu algo numa voz baixa e sonhadora. Não era a mim que ele se dirigia, não falava para nenhum de nós em particular, mas jamais me esqueci do que ele disse então.

- Eles continuam ali. Bocados dos seus corpos ainda ali estão. Consigo ouvi-los gritar.

As risadas nervosas do Harry cessaram de imediato, deixando-lhe nos lábios um sorriso que parecia ter ficado pendurado na boca, qual persiana desconjuntada numa casa abandonada. O Brutal lançou-me um olhar que se aproximava muito de terror, e afastou-se do John Coffey. Pela segunda vez em menos de cinco minutos, tive o pressentimento de que todo aquele empreendimento se encontrava à beira de ir por água abaixo. Desta feita fui eu quem interveio; quando a iminência do desastre nos ameaçou uma terceira vez, o que aconteceu um pouco mais tarde, foi a vez de o Harry interferir. Acreditem que, naquela noite, todos tivemos a nossa oportunidade de intervir no desenrolar dos acontecimentos.

Interpus-me entre o John Coffey e a visão da cadeira, pondo-me em bicos dos pés para ter a certeza de que bloqueava inteiramente toda a sua linha de visão. Em seguida, fiz estalar os meus dedos em frente dos olhos do Coffey, por duas vezes e com todo o vigor.

- Vamos lá! - urgi eu. - Caminha! Foste tu que disseste que não precisavas de ser acorrentado, agora prova isso! Começa a andar, matulão! Caminha, John Coffey! Naquela direcção! Para aquela porta!

- Sim, chefe - aquiesceu ele, parecendo ter despertado. E, Deus seja louvado, começou realmente a andar.

- Olha para a porta, John Coffey. Mantém os olhos na porta sem olhares para mais nada.

- Sim, chefe. - Obedientemente, o John prendeu o olhar na porta.

- Brutal - acrescentei, apontando.

Este tomou apressadamente a dianteira, sacudindo o seu molho de chaves, à procura da que abria a porta. O John mantinha o olhar fixo na porta que dava para o túnel, enquanto eu não despregava os meus olhos dele, embora pelo canto do olho pudesse ver o Harry lançar olhares cheios de nervosismo para a cadeira, como se nunca a tivesse visto.

Continuam ali bocados dos seus corpos... Consigo ouvi-los gritar.

Se isso era de facto verdade, o Eduard Delacroix só podia estar a gritar mais alto e durante mais tempo do que todos os outros condenados; senti-me satisfeito por não ser capaz de ouvir o que o John Coffey ouvia.

O Brutal abriu a porta. Começámos a descer os degraus com o Coffey na dianteira. Chegado ao fundo, ele começou olhar para o túnel com uma expressão taciturna, fitando o tecto baixo de tijolos. Inevitavelmente, iria ficar com dores nas costas quando chegasse ao outro extremo, a menos que Puxei a maca para junto de mim. O lençol sobre o qual deitáramos o Del já havia sido retirado (e provavelmente inci-nerado), pelo que o almofadado negro da maca se encontrava

à vista.

- Deita-te aqui - ordenei eu ao John. Ele ficou a olhar

para mim com uma expressão duvidosa; acenei-lhe num gesto de encorajamento. - Será mais fácil para ti e não nos dificultará a passagem pelo túnel.

. De acordo, chefe Edgecombe. - Sentou-se e depois deitou-se ao comprido, fitando-nos com os seus olhos castanhos que traíam preocupação. Os seus pés, calçados com as pantufas baratas da prisão, ficavam de fora, suspensos quase até roçarem no chão. O Brutal colocòu-se entre eles e começou a empurrar o John Coffey pelo corredor húmido, à semelhança do que tinha feito a muitos outros. A única diferença era que o actual passageiro da maca continuava a respirar. A mais ou menos meio caminho - por baixo da auto-estrada, de acordo com a minha estimativa, e conseguindo ouvir o som abafado das viaturas que sobre ela passassem, caso houvesse alguma aquela hora da noite - o John começou a sorrir.

- Isto é muito divertido - comentou ele. Todavia, não pensaria da mesma forma da próxima vez que fosse empurrado em cima da maca; esse foi o pensamento que atravessou a minha mente. Na realidade, da próxima vez que fosse levado na maca, não pensaria nem sentiria o que quer que fosse. Ou seria isso possível? Bocados dos corpos deles continuavam ali, dissera ele; conseguia ouvi-los gritar.

Caminhando atrás dos outros e sem que estes me vissem, senti-me estremecer.

- Espero que não te tenhas esquecido da Aladino, chefe Edgecombe - disse o Brutal quando chegámos ao extremo do túnel.

- Não te preocupes - repliquei. A Aladino não parecia apresentar qualquer diferença que a distinguisse das outras chaves que eu costumava trazer sempre comigo nesses tempos... e eu tinha um molho que deveria pesar dois quilos. Mas aquela era a chave-mestra de todas as chaves-mestras, a que abria todas as fechaduras. Nessa época, para cada um dos cinco blocos havia uma Aladino, sendo cada uma delas da responsabilidade do superintendente do respectivo bloco. Os outros guardas podiam utilizá-las, mas só o manda-chuva dos bardas é que não era obrigado a registar que a levara.

Havia um portão de barras de aço na extremidade do túnel. Nunca falhava em me trazer à memória as imagens que eu vira de castelos antigos; vocês sabem, dos tempos do antigamente em que abundavam os cavaleiros destemidos de cavalheirescos. Com a diferença de que Cold Mountain ficava a;, uma grande distância de Camelot. Para lá dos portões, havia um lanço de escadas que dava para um portão maciço e discreto que era accionado na horizontal, com dísticos onde se

lia: "É PROIBIDA A ENTRADA, PROPRIEDADE DO ESTADO e VEDAÇÃO ELECTRIFICADA" no lado exterior.

Abri os portões e o Harry afastou-os para trás. Subimos os degraus; uma vez mais, era o John Coffey quem tomava a dianteira, mantendo os ombros inclinados para a frente e a cabeça vergada. Já no cimo, o Harry conseguiu passar à sua volta (não sem experimentar algumas dificuldades, embora fosse o mais pequeno de nós três), e abriu o portão maciço que deslizava na horizontal. Era pesado. Conseguia deslocá-lo, mas não era capaz de o içar.

- Deixe, chefe - disse o John. Avançou mais, empurrando o Harry contra a parede com a anca ao avançar, erguendo o portão só com uma mão. Poder-se-ia ter pensado que era feito de cartão pintado em vez de chapa de aço. O ar da noite era frio devido ao vento que soprava vindo do cume das montanhas, e iríamos senti-lo até Março ou Abril, açoitando as nossas faces. Com as rajadas de vento veio um turbilhão de folhas mortas; o John Coffey apanhou uma delas com a sua mão livre. Jamais me esquecerei da maneira como ele olhou para ela, ou a forma como a amachucou por debaixo do seu nariz largo e de linhas bonitas, de molde a que libertasse a sua fragrância.

- Vamos lá - urgiu o Brutal. - Em frente, toca a andar!

Saímos da prisão, o John desceu o portão e o Brutal fechou-o à chave - aquele não precisava da chave Aladino, embora esta fosse necessária para abrir os portões da gaiola de arame e postes que circundavam o portão levadiço.

- Mantém as mãos junto ao corpo, matulão, enquanto es tiveres a passar - advertiu o Harry num sussurro. - Não ta ques no arame, se não quiseres sofrer uma queimadura grave.

Naquela altura já nos encontrávamos do lado de fora, ~unto da berma da estrada, formando um pequeno maciço (deveríamos ter a aparência de três pequenas colinas em redor de uma montanha, era o que eu imaginava), olhando para lá luzes e guaritas da penitenciária de Cold Mountain. Na realidade, eu até conseguia distinguir a forma pouco definida do guarda no interior de uma dessas torres, o qual soprava o bafo quente para as mãos, embora apenas por breves instantes; as pequenas janelas , das guaritas que davam para a estrada eram ínfimas e pouco importantes para nós. No entanto, tínhamos de nos manter muito, muitíssimo calados. E se um automóvel passasse por acaso poderíamos estar metidos em grandes complicações.

- Vamos a despachar - murmurei. - Indica tu o caminho, Harry.

Sorrateiramente, dirigimo-nos para norte ao longo da estrada, formando uma pequena fila indiana; o Harry seguia à frente, depois o John Coffey, o Brutal, e eu à retaguarda. Subimos a primeira elevação de terreno e, do outro lado, tudo o que avistávamos da penitenciária era o clarão das luzes intensas acima das copas das árvores. O Harry continuava a conduzir-nos em frente.

- Onde é que a deixaste estacionada? - perguntou o Brutal numa voz sussurrada, com a condensação da respiração a sair-lhe da boca sob a forma de uma nuvem branca. - Em Baltimore?

- Está ali, um pouco mais à frente - retorquiu o Harry, irritadiço e nervoso. - Aguenta os cavalos, Brutus.

O Coffey, porém, pelo que eu tinha visto dele, ter-se-ia sentido satisfeito por poder continuar a caminhar até ao nascer do Sol, talvez mesmo até este se pôr de novo. Olhava para tudo em seu redor a começar - não com medo mas deliciado, tenho a certeza - por um mocho que começou a piar. Foi então que me ocorreu que, embora ele pudesse ter receio da escuridão entre paredes, ali fora não sentia medo. O John dava a impressão de acariciar a noite, roçando os sentidos por ela através do caminho da mesma maneira que um homem poderia roçar o rosto pelas saliências e concavidades dos seios de uma mulher.

- Temos de virar aqui - indicou o Harry num resmungo. Deparámos com um pequeno trecho de caminho - estreito e por pavimentar, com ervas que cresciam a meio - que se desviava para a direita. Virámos naquele lugar e caminhámos mais uns quatrocentos metros. O Brutal já começara a resmungar de novo, quando o Harry se deteve, dirigindo-se à berma esquerda daquele trilho, e começou a remover ramagens quebradas de pinheiros. O John e o Brutal ajudaram-no, e, antes que eu pudesse ter metido mãos à obra, eles já haviam posto a descoberto a parte da frente amolgada de uma velha camioneta Farmall, como os faróis presos por aromes a olharem para nós como olhos esbugalhados.

- Não sei se compreendes, mas eu quis ter muito cuidado - justificou-se o Harry, dirigindo-se ao Brutal num tom de repreensão. - Para ti isto é capaz de ser uma grande brincadeira, Brutus Howell, mas acontece que eu venho de uma família muito religiosa, tenho primos tão religiosos que fazem com que os cristãos se assemelhem aos leões, e se eu fosse apanhado a fazer uma coisa destas!...

- Não tem importância - respondeu-lhe o Brutal, Estou só um bocado nervoso, mais nada.

- Eu também - acrescentou o Harry numa voz comida. - Agora só precisamos que este maldito calhambeque pegue...

Contornámos a parte da frente da pequena camioneta de caixa aberta, e, continuando a resmungar, o Brutal piscou-me o olho. No que dizia respeito ao Coffey, nós tínhamos deixado de existir. Mantinha a cabeça inclinada para trás, absorvendo por todos os poros a visão das estrelas que pontilhavam o firmamento.

- Se quiseres, eu vou com ele na parte de trás - ofereceu-se o Brutal. Atrás de nós, o motor de arranque da Farmall começou a dar breves sinais de vida, parecendo mais um velho cão, tentando encontrar os seus pés numa manhã fria de Inverno, até finalmente ter começado a funcionar em pleno. O Harry acelerou-o uma vez e deixou-o ficar a trabalhar em ponto morto. - Não há necessidade de irmos os dois.

- Senta-te tu à frente - disse-lhe eu. - Na viagem de regresso podes vir com ele. Isto é, se não acabarmos por fazer esse percurso encarcerados na parte de trás da nossa própria diligência.

- Não digas essas coisas - redarguiu ele, genuinamente preocupado. Era como se compreendesse pela primeira vez até que ponto aquela situação seria grave para nós, caso fossemos apanhados. - Caramba, Paul!

- Vamos, despacha-te - ordenei-lhe eu. - Senta-te na cabina.

O Brutus fez como lhe diziam. Puxei pelo braço do John Coffey até ter conseguido chamar a sua atenção, fazendo"o regressar à Terra, ainda que só por algum tempo, e conduzi-o para a parte de trás da camioneta, que se encontrava coberta. O Harry tinha estendido a lona por cima da estrutura, o queera vantajoso, no caso de passarmos por outras camionetas ou automóveis que seguissem na direcção contrária. No entanto, em relação à entrada das traseiras não pudera fazer coisa nenhuma.

- Cá vamos nós, matulão - disse eu.

- Agora vamos dar o passeio? - perguntou o Coffey. - Exactamente.

- Óptimo - retorquiu ele com um sorriso. Era um sorriso encantador e cheio de doçura, talvez mais ainda porque não era complicado, não possuía um excesso de raciocínio. O Coffey subiu para a traseira da pequena camioneta. Fui atrás dele, tendo-me dirigido para a parte da frente da área de carga e bati no tejadilho da cabina. O Harry engatou a primeira e a camioneta saiu daquele abrigo improvisado, feito com folhagem, a sacolejar e com o motor a vibrar intensamente.

O John Coffey estava em pé de pernas abertas no meio da caixa de carga do veículo, com a cabeça inclinada de forma a poder olhar de novo para as estrelas, exibindo um sorriso rasgado, sem reparar nas ramadas que o zurziam, enquanto o Harry conduzia a camioneta em direcção à auto-estrada.

- Olhe, chefe! - disse ele num tom de voz baixo e enlevado, apontando para as sombras da noite. - É a Cassie, a senhora na cadeira de baloiço!

Ele tinha razão; eu conseguia avistar o que ele me indicava na faixa de estrelas visível entre o maciço envolto em trevas do arvoredo que nos ladeava. Mas não foi em Cassiopeia que eu pensei quando ele mencionou a senhora na cadeira de baloiço; foi sim na Melinda Moores.

- Estou a vê-la John - retorqui, tocando-lhe no braço. - Mas agora tens de~te sentar. De acordo?

Sentou-se com as costas contra a cabina, sem nunca afastar os olhos do firmamento nocturno. No seu rosto espalhava-se uma expressão de felicidade sublime. A Milha Verde ia~ ficando cada vez mais para trás de nós a cada volta dada pelos pneus carecas da Farmall, e, pelo menos de momento, o lacrimejar do John Coffey, que parecia nunca ter fim, havia cessado.

 

Eram cerca de quarenta quilómetros até à casa do Hal Moores em Chimney Ridge, e na vagarosa camioneta do Harry Terwilliger, que seguia aos solavancos, aquele percurso levou mais de uma hora. Foi uma viagem bastante estranha, e embora nesta altura eu tenha a impressão de que todos os momentos dessa jornada continuam bem gravados na minha memória - todas as curvas, todas as saliências do piso, todos os buracos, as ocasiões de susto (foram duas), quando passá. vamos por outras camionetas que seguiam na direcção contrária - não me parece que possa sequer descrever de forma adequada aquilo que senti, sentado ali atrás na companhia do John Coffey; ambos estávamos enrolados em mantas como dois índios, mantas essas que o Harry tivera o cuidado de trazer.

Em grande medida, o que eu sentia era perda - o terrível e profundo sentimento que uma criança sente quando se apercebe de que, algures ao longo do caminho, tomou a direcção errada; todos os pontos de referência lhe são estranhos, e ela não sabe como atinar com o caminho para casa. Eu encontrava-me fora da penitenciária acompanhado de um prisioneiro - não um prisioneiro qualquer, mas um que fora julgado e condenado pelo homicídio de duas garotinhas e destinado a morrer pelo crime cometido. O facto de eu acreditar que ele estava inocente não serviria de atenuante no caso de sermos apanhados; nós próprios acabaríamos por ir parar à cadeia, e, possivelmente, o Dean Stanton teria o mesmo destino. Eu tinha desbaratado toda uma vida de trabalho, sempre convicto das minhas ideias, por causa de uma execução que correra mal, e porque acreditava que o desajeitado que se encontrava sentado junto de mim, o qual crescera demasiado, poderia ter capacidade para curar o tumor que minava o cérebro de uma mulher que os médicos consideravam inoperável. E todavia, ao observar o John, que continuava a fitar incansavelmente as estrelas, compreendi com grande espanto que já não acreditava nisso, se é que alguma vez havia acreditado realmente; a minha infecção urinária naquele momento já parecia muito distanciada no tempo, e perdera grande parte da sua importância, tal como costuma acontecer sempre a esse género de coisas dolorosas e desagradáveis depois de terem passado (se as mulheres guardassem na sua recordação o quanto custa ter o primeiro filho, dissera-me a minha mãe numa ocasião, nunca dariam à luz um segundo). Quanto ao Mister Jingles, não seria possível que nos tivéssemos enganado em relação á gravidade da lesão que o Percy lhe infligira? Ou ainda que o John - o qual na verdade possuía um certo poder hipnótico, pelo menos disso não restavam dúvidas - houvesse sido capaz de nos ludibriar, levando-nos a pensar que tínhamos visto algo que de facto não víramos. Havia ainda a acrescentar a questão do Hal Moores. No dia em que eu o surpreendera no seu gabinete, tinha deparado com um homem de idade, trémulo e lacrimejante. Mas eu não considerava que aquela fosse a faceta mais verdadeira do director Moores. Continuava firmemente convicto de que o autêntico director Moores era o homem que quebrara o pulso de um prisioneiro irado que tentara esfaqueá-lo; o homem que me havia chamado a atenção, com uma precisão cheia de cinismo, para o facto de os tomates do Delacroix irem ser estorricados independentemente do homem que fosse destacado como responsável do grupo de execução. Passar-me-ia pela cabeça que o Hal Moores se poria humildemente de lado, permitindo que levássemos a sua casa um assassino de crianças, que fora condenado à morte, e que este colocasse as mãos sobre a sua própria mulher?

As minhas incertezas aumentavam como uma doença enquanto percorríamos a estrada. Muito simplesmente, estava incapaz de compreender o que me levara a fazer as coisas que fiz, ou por que motivo havia persuadido os outros a alinharem comigo naquela jornada nocturna de loucos; não acreditava que tivéssemos a mais pequena hipótese de conseguirmos safar-nos daquela, nem que o diabo tocasse rabeca, como os antigos costumavam dizer. Apesar de todas aquelas reticências, também não tentei cancelar o projecto, o que talvez tivesse conseguido levar a cabo as coisas não iriam sair irrevogavelmente das nossas mãos,~até termos chegado a casa do Moores. Alguma coisa - penso que talvez não tivesse sido mais do que as ondas de exaltação que me eram transmitidas pelo gigante sentado ao meu lado - me impediu de bater na janela da cabina, gritando ao Harry que invertesse a marcha e regressasse à prisão enquanto ainda havia tempo.

este era o meu estado de espírito quando saímos da estrada Principal e entrámos na secundária, a número 5, e desta na Chimney Ridge. Mais ou menos quinze minutos depois avistei o recorte de um telhado que se erguia para as estrelas' e soube que tínhamos chegado ao nosso destino. O Harry desengatou a segunda, metendo a primeira (acho que ele engatou a quarta apenas uma vez durante toda aquela estranha viagem). Laboriosamente, o motor abrandou e toda a camioneta foi abalada por um estremecimento, como se também temesse aquilo que se encontrava à nossa frente.

O Harry entrou no caminho de gravilha que dava acesso à casa do Moores e estacionou a pequena camioneta recalcitrante atrás do prático Buick preto do director da penitenciária. À nossa frente, e ligeiramente à direita, encontrava_se uma casa muito bem cuidada e construída num estilo que estou em crer chamar-se Cape Cod. Aquele género de residência talvez devesse dar a impressão de não se enquadrar na nossa região montanhosa, mas tal não acontecia. A Lua já brilhava no firmamento; naquela madrugada o seu sorriso era um pouco mais cheio do que o habitual; sob a sua luz observei que o jardim, que sempre se mantivera tão maravilhosamente cuidado, apresentava agora um aspecto de desleixo. Em grande parte, aquela incúria devia-se apenas a folhas secas e mortas por apanhar. Em circunstâncias normais, aquela tarefa teria cabido à Melly, mas acontece que, naquele Outono, a Melly não estivera em condições de limpar o jardim das folhas e nunca mais voltaria a ver as folhas a caírem das árvores. Esse é que era o cerne da questão, e eu fora suficientemente louco para pensar que aquele idiota, de olhar vazio, poderia alterar esse estado de coisas.

Apesar de tudo, talvez ainda não fosse tarde de mais para nos salvarmos. Fiz menção de me levantar, deixando tombar dos ombros a manta em que estivera enrolado. Inclinar-me-ia para a frente, bateria na janela do lado do motorista, dizendo ao Harry que se pusesse a andar dali para fora, antes de... O John Coffey agarrou-me pelo antebraço com um pino enorme, obrigando-me a sentar-me com tão pouco esforço como o que eu poderia ter usado com uma criança que tivesse começado a dar os seus primeiros passos.

- Ouça, chefe - disse ele, apontando para a casa. - Há alguém a pé. Segui a direcção do seu dedo e senti um baque, não só nas entranhas mas também no coração. Através de uma das janelas das traseiras filtrava-se um feixe de luz. Muito provavelmente, a sala onde a Melinda passava os seus dias. Estaria tão capaz de poder subir as escadas, como de ~~ um ancinho para remover do jardim as folhas que haviam tombado das árvores durante o vendaval que ocorrera recentemente.

É claro que eles tinham dado pela chegada da camioneta - a maldita Farmall do Harry Terwilliger, com o seu ruidoso motor desembocando num tubo de escape que não era estorvado por algo tão frívolo como uma panela de escape. Mas que diabo, o mais certo era os Moores não terem andado a dormir muito bem naquelas últimas noites.

Entretanto, alguém acendeu uma luz mais próxima da frente da casa (na cozinha), e em seguida foi a vez da do tecto da sala de estar, a do vestíbulo da frente e a do alpendre. Observei esta sucessão de luzes a serem ligadas, sentindo o mesmo que um homem encostado a uma parede de cimento, enquanto fumava o seu último cigarro, podendo observar a marcha de um pelotão de fuzilamento que se aproximava. E, contudo, não reconheci inteiramente perante mim próprio, até mesmo naquele instante, que já era demasiado tarde quando o ruído incerto do motor da Farmall esmoreceu e se silenciou. Ouviu-se o ranger das portas do veículo a abrirem-se, e o Harry e o Brutal pisaram sonoramente a gravilha.

O John já se pusera de pé, arrastando-me consigo. Naquela semiobscuridade, a expressão do seu rosto era viva e ansiosa. E porque não?, recordo-me de ter pensado. Porque não haveria ele de se mostrar ansioso? O Coffey era um pobre de espírito.

O Harry e o Brutal mantinham-se ombro a ombro imobilizados ao fundo da camioneta como crianças numa tempestade, não me passando despercebido que ambos pareciam tão receosos como aquelas estariam e tão pouco à vontade como eu próprio me sentia. Aquilo fez com que o meu mal-estar aumentasse ainda mais.

O John desceu. Para ele aquele acto era mais um passo do que um salto. Fui atrás dele acabrunhado e sentindo as pernas entorpecidas. Ter-me-ia esparramado em cima da gravilha gelada, não fora ele agarrar-me pelo braço.

- Isto é um erro - disse o Brutal numa voz sibilada quase num

murmúrio. Os seus olhos desmesuradamente abertos espelhavam temor. - Deus do céu, Paul! Em que é que nós estávamos a pensar?

-Agora já é tarde de mais - repliquei. Dei um empurrão numa das ancas do Coffey, o qual se colocou bastante obedientemente ao lado do Harry. Em seguida, agarrei no braço do Brutal como se aquilo fosse um encontro amoroso e começámos a caminhar em direcção aos degraus do alpendre, que naquele momento estavam iluminados. - Deixame ser eu a conduzir a conversa. Estás a compreender?

- De acordo - respondeu o Brutal. - Nesta altura, pareceme que é a única coisa que sou capaz de compreender. - Harry, fica com ele junto da camioneta, até eu te chamar - disse-lhe eu por cima do ombro. - Não quero que o Moores o veja até eu estar preparado. - Mas eu nunca iria estar preparado. Agora apercebome disso.

O Brutal e eu estávamos quase no primeiro degrau do alpendre quando a porta da frente se abriu de rompante, com tanta força que a aldraba de latão bateu contra a chapa. Ali estava o Hal Moores, vestindo as calças do seu pijama azul e uma camisola interior sem mangas, com os cabelos grisalhos, de um tom ferroso, despenteados e espetados. Era um homem que fizera um milhar de inimigos no decurso da sua carreira, estando bem ciente desse facto. Firmemente empunhada na sua mão direita, com um cano invulgarmente longo que não apontava exactamente para o chão, encontrava-se a pistola que costumava estar pendurada acima da cornija da lareira. Era o tipo de arma que tinha um dispositivo de apoio para a outra mão quando se disparava, conhecida pelo nome de Ned Buntline Especial, e que pertencera ao seu avô; naquela ocasião (observei isto sentindo uma outra reviravolta nas entranhas) encontrava-se totalmente engatilhada.

- Quem diabo é que anda por aí às duas e meia da madrugada? - perguntou ele. Não detectei o mínimo receio na sua voz. E, pelo menos de momento, os seus tremores tinham cessado. A mão que empunhava a arma mantinha-se firme que nem uma rocha. - Respondam-me ou... - O cano da pistola começou a erguer-se.

- Pare, director! - gritou o Brutal, erguendo as mãos com as palmas para cima na direcção do homem que empunhava a arma. Eu nunca tinha ouvido a sua voz com o timbro que possuía naquela ocasião; era como se os tremores houvessem saído das mãos do Moores e, de uma maneira estranha, tivessem conseguido entrar na garganta do Brutos Ha well. - Somos nós! O Paul e eu, e... somos nós!

Ele deu o primeiro passo, de forma a que a luz do tecto do alpendre lhe incidisse directamente sobre o rosto. Aproximei-me. O olhar do Hal Moores ia de um para o outro; A determinação encolerizada deu lugar a uma enorme perplexidade - que é que estão a fazer aqui? - perguntou. - Não só estamos nas primeiras horas da madrugada, como também vocês deveriam estar de serviço. Eu sei que estão a trabalhar no turno da noite, tenho a escala dos turnos pendurada em cima da minha bancada na garagem. Portanto," o que é que, em nome de... oh, meu bom Jesus! Não me digam que se trata do confinamento dos presos por medidas de segurança? Ou de algum motim? - Olhou para nós; o seu olhar perscrutou mais atentamente. - Quem mais é que está junto daquela camioneta?

Deixa-me ser eu a conduzir a conversa. Isso fora o que eu dissera ao Brutal, mas agora, que tinha chegado a altura de começar a falar, nem sequer era capaz de abrir a boca. Nessa tarde, quando ia a caminho do trabalho, planeara cuidadosamente tudo o que tencionava dizer quando chegássemos ali, e pensara que nada daquilo dava a impressão de ser demasiado disparatado. Não era normal - nada naquela situação poderia ser apelidado de normal - mas talvez suficientemente próximo do que era normal, permitindo-nos transpor a porta e dando-nos uma oportunidade. Dar ao John uma só oportunidade. Mas, agora, todas as minhas palavras, tão cuidadosamente ensaiadas, se perdiam numa confusão incomensurável. Pensamentos e imagens - o Del a assar, o rato a morrer, o Pouca Terra a sacolejar no regaço da Velha Faísca, enquanto gritava que era um peru assado - revolteavam dentro da minha cabeça como areia apanhada num turbilhão de restolho seco. Acredito que no mundo exista o bem, toda essa força a fluir omnipresente de um Deus generoso. Mas também estou em crer que existe uma outra força, uma força tão presente como o Deus a quem tenho rezado ao longo de toda a minha vida que trabalha conscientemente com a finalidade de não arrasar todos os nossos impulsos mais decentes. o Diabo, não estou a referir-me ao Diabo (embora acredite firm

emente que ele também existe), mas sim uma espécie de ser demoníaco da discórdia uma coisa estúpida e aberrantemente brincalhona, que se ri cheia de gáudio quando um velhote se

vê envolto em chamas ao chegar lume ao seu cachimbo ou quando uma criança muito amada coloca na boca o seu primeiro brinquedo do Natal e morre asfixiada. Tive muitos anos para pensar neste assunto, desde os tempos de Cold Mountain até à época de Georgia Pines, e estou em crer que essa força se encontrava a trabalhar activamente entre nós nessa madrugada, a revoltear por todo o lado como se fosse um manto de nevoeiro, tentando manter o John Coffey afastado da Melinda Moores.

- Director... Hal... eu... - Nada do que eu tentasse dizer tinha o mínimo de coerência.

Uma vez mais, ele começou a erguer a pistola, apontando-a para o espaço entre o Brutal e eu, sem ouvir fosse o que fosse. Os seus olhos raiados de vermelho tinham-se arregalado. E ali vinha o Harry Terwilliger mais ou menos empurrado pelo nosso matulão, o qual exibia o seu rasgado sorriso atoleimado e encantador.

- O Coffey! - exclamou o Moores entre dentes. - O John Coffey. - Susteve a respiração e gritou numa voz um tanto esganiçada mas portentosa. - Pára! Pára imediatamente, senão disparo!

Vinda de algures por detrás dele, ouviu-se uma voz feminina enfraquecida e trémula.

- Hal - chamou ela. - O que é que estás a fazer aí fora? Com quem é que estás a falar, meu caralho?

O Hal voltou-se na direcção da voz por breves momentos, mostrando uma expressão confusa e desesperada. Por breves momentos, tal como eu disse, mas que teriam sido o suficien te para eu poder apoderar-me da arma de cano comprido que ele empunhava. Só que fui incapaz de erguer as mãos. Tinha a impressão de que alguém as amarrara a pesos. A minha cabeça parecia estar cheia de estática, qual estação de rádio que tentasse efectuar as suas transmissões durante uma tempestade eléctrica. As únicas emoções que me recordo de ter sentido foram o medo e uma espécie de constrangimento por causa do Hal.

Entretanto, o Harry e o John chegaram ao fundo dos degraus. O Moores desviou a atenção do som da voz da mulher, erguendo a arma de novo. Mais tarde confirmou que sim, que tivera intenção de alvejar o Coffey; suspeitara que todos nós éramos seus prisioneiros, e que o cérebro por detrás do que estava a acontecer se encontrava oculto na camioneta, emboscado a coberto da noite. Não compreendia por que motivo é que havíamos sido levados a sua casa, embora a vingança lhe parecesse ser a probabilidade mais plausível.

Antes de ele poder disparar, o Harry Terwilliger avançou alguns passos, colocando-se em frente do Coffey, escudando-se quase completamente com o seu corpo.

- Não, director Moores! - disse ele. - Está tudo bem! Ninguém veio armado, ninguém vai ficar ferido, estamos aqui para ajudar! - Os espessos sobrolhos eriçados do Moores uniram-se. Os seus olhos coruscavam de fúria. Eu não conseguia afastar o olhar do revólver que ele continuava a manter engatilhado. - Ajudar o quê? Ajudar quem?"

Em resposta àquela pergunta, a voz da mulher de idade fez-se ouvir de novo, quezilenta, determinada e profundamente perdida.

- Vem já para dentro ver se a minha rata continua no lugar, meu filho da puta! Traz também os caras de cu dos teus amigos. Eles que façam fila!

Olhei para o Brutal, sentindo-me abalado até à alma. Eu já sabia que ela começara a dizer palavrões - que o tumor a fazia utilizar uma linguagem obscena - mas aquilo era mais do que isso. Muito mais.

- O que é que vocês vieram fazer aqui? - perguntou-nos o Moores de novo. A determinação que ele mostrara anteriormente tinha abandonado a sua voz.... os gritos trémulos da mulher eram os responsáveis por isso. - Não estou a compreender. Isto é uma fuga...

O John afastou o Harry para o lado - limitou-se a içá-lo do chão e a colocá-lo noutro lugar - e começou a subir os degraus do alpendre. Posicionou-se entre o Brutal e eu, tão gigantesco que quase nos empurrou para os lados, fazendo-nos ir contra as sebes de arbustos que eram sagradas para a Melly. O Moores soergueu os olhos para lhe seguir os movimentos, da mesma maneira que uma pessoa faria ao tentar ver a copa de uma árvore de grande porte. E subitamente, na minha mente o mundo ajustou-se com tudo no seu lugar. Aquele espírito de discórdia, que tinha perturbado os meus pensamentos como dedos poderosos a remexerem areia ou grãos de arroz desaparecera. Também pensei que compreendia por que motivo o Harry fora capaz de tomar a iniciativa, enquanto eu e o Brutal nos limitáramos a ficar ali, impotentes e indecisos em frente do nosso chefe. O Harry estivera junto do Coffey" e qualquer que fosse esse espírito que se opõe ao  demoníaco, naquela noite esteve ao lado do John

Coffey. E quando este avançou para enfrentar o director Moores, foi esse outro espírito - qualquer coisa branca, é a imagem que eu guardei disso, qualquer coisa branca  que se assenhoreou da situação, passando a dominá-la por com pleto. A outra coisa não se retirou, mas eu pude vê-la a refroceder como uma sombra envolta numa súbita luz cheia de intensidade.

- Eu quero ajudar - declarou o John Coffey. O Moores ficou a olhar para ele, olhar fascinado, a boca aberta. Quando o Coffey retirou da sua mão o revólver de cano comprido e mo entregou, não me parece que o Hal se tenha dado conta de que já não o empunhava. Cuidadosamente, desengatilhei a arma. Mais tarde, quando examinei o carregador verifiquei que estivera sempre vazio. Às vezes pergunto a mim mesmo se o Hal teria estado ciente disso. Entretanto, o John continuava a murmurar: - Vim para a ajudar. Apenas para ajudar. É só o que eu quero.

- Hal! - gritou a Melinda da sala das traseiras. Naquele momento, a sua voz soava um pouco mais forte, como se a coisa que tanto nos havia confundido e desarmado se houvesse retirado para o interior do corpo dela. - Manda-os embora, quem quer que seja! Não precisamos de vendedores a meio da noite! Nada de Electrolux! Nada de Hoover! Nada de cuequinhas francesas! Corre com eles! Diz-lhes que se vão foder para... - Ouviu-se o som de algo a partir. Talvez um copo com água, e depois ela começou a chorar convulsivamente.

- Apenas para ajudar - repetiu o John Coffey num tom de voz que pouco mais era que um sussurro. Ignorou igualmente tanto o choro como a linguagem obscena da mulher. - Só para ajudar, chefe, mais nada.

- Não podes - replicou o Moores. - Ninguém pode ajudá-la. - Eu já ouvira anteriormente aquela voz e, momentos depois, compreendi que era igual à minha quando entrei na cela do Coffey, na noite em que ele curou a minha infecção urinária. Como que hipnotizado. Preocupa-te com os teus assuntos, que eu preocupo-me com os meus, fora o que eu dissera ao Delacroix... Só que tinha sido o Coffey quem se preocupara com os meus assuntos, tal como naquela altura se preocupava com os do Hal Moores.

- Nós pensamos que pode - interveio o Brutal. - E não arriscámos os nossos empregos... Só para virmos até cá e darmos meia volta, Sem sequer termos tentado.

O que nós não lhe dissemos foi que tanto ele como eu próprio estivéramos prontos a fazer isso mesmo, três minutos antes.  Entretanto, o John Coffe apoderara-se do espectáculo retirando-o das nossas mãos. Avançou até à entrada num passo determinado, passando pelo Moores, que ergueu uma mão flácida a fim de tentar detê-lo (roçou pela anca do Coffey e ficou descaída; tenho a certeza que aquele homem corpulento nem sequer sentiu o seu toque), e avançou pelo corredor em direcção à sala de estar e da cozinha, que se situava atrás desta, seguindo para o quarto das traseiras mais ao fundo, onde aquela voz esganiçada e irreconhecível se elevou de novo.

-Põe-te já daqui para fora! Quem quer que sejas, sai daqui para fora! Não estou vestida e tenho as tetas de fora e a minha rata está a apanhar ar!

O John não lhe prestou a mínima atenção, avançando imperturbável e de cabeça baixa para não quebrar qualquer das luzes do tecto; a pele do seu crânio castanho e de formas arredondadas brilhava, enquanto as mãos oscilavam ao longo do corpo. Após alguns momentos de hesitação, fomos atrás dele; eu seguia à frente, o Brutal atrás de mim e ao lado do Hal, e o Harry em último. Uma coisa eu compreendia perfeitamente: a partir daquela altura, a situação deixara de estar nas nossas mãos e passara para as do John.

 

A mulher no quarto das traseiras, recostada contra a cabeceira da cama fitando de olhos esbugalhados o gigante que surgira no seu campo de visão pouco nítido, tinha poucas semelhanças com a Melly Moores que eu conhecia há vinte anos; nem com a Melly Moores que a Janice e eu havíamos visitado pouco antes da execução de Delacroix. A mulher que se encontrava sentada naquela cama parecia uma criança doente mascarada de bruxa. A sua pele lívida transformara-se numa massa pastosa e flácida cheia de rugas; tinha um tique na parte superior do olho direito, como se tentasse piscá-lo, enquanto esse mesmo lado da sua boca se mantinha descaído. Por cima do lábio inferior de uma tonalidade cirrosa havia um dente amarelado. Os seus cabelos eram uma nuvem desordenada e pouco espessa à volta do crânio. O quarto estava empestado com o fedor das matérias de que o nosso corpo se descarta com decoro quando as coisas correm bem. O penico , , que se encontrava ao lado da cama, estava meio cheio de uma substância amarelada e pastosa de aspecto nauseabundo. Havíamos chegado demasiado tarde, pensei eu, horrorizado. Tinham decorrido apenas alguns dias desde a altura em que ela ainda era uma mulher reconhecível - enferma, mas sem ter ~ perdido a sua identidade. Desde essa altura, a coisa no interior da sua cabeça deveria ter começado a disseminar-se a uma velocidade inacreditável, a fim de consolidar firmemente a sua posição. Não me parecia que o John Coffey tivesse poderes para a ajudar naquela situação.

A expressão da Melinda quando o Coffey entrou no quarto traduzia medo e horror - como se algo no seu íntimo houvesse reconhecido um médico que podia chegar-lhe e arrancá-la... polvilhá-la com sal, da mesma forma que se faz a a uma sanguessuga para que esta solte a sua presa. Prestem bastante atenção ao que vos digo: eu não estou a afirmar que a Melly Moores estivesse possessa, e apercebo-me de que, perturbado como estava nessa noite, todas as minhas percepções devem parecer um tanto ou quanto suspeitas. Mas nunca pus inteiramente de parte a probabilidade da existência de uma possessão demoníaca. Havia algo nos seus olhos, deixem-me que vos diga, algo que se assemelhava ao medo. Quanto a isso, penso que vocês podem confiar em mim; é uma emoção com que estou por de mais familiarizado para poder enganar-me.

Fosse o que fosse, desapareceu num ápice, tendo sido substituído por uma expressão de interesse vivaz e irracional. Aquela boca hedionda estremeceu no que poderia ter sido considerado o arremedo de um sorriso.

- Oh, tão grande! - gritou ela. O som da sua voz era u de uma garota com uma infecção grave na garganta. Retirou as mãos, cuja pele era de um branco tão esponjoso como a do seu rosto, de debaixo da coberta da cama e começou a bater palmas. - Puxa as calças para baixo! Durante toda a minha vida ouvi falar do caralho dos negros, mas nunca vi um.

Atrás de mim, o Moores emitiu um gemido abafado de desespero.

John Coffey não prestava a mínima atenção ao que se passava em seu redor. Depois de se ter imobilizado por breves instantes, como se pretendesse observá-la de uma certa distância, aproximou-se da cama que se encontrava iluminada por um único candeeiro em cima da mesa-de-cabeceira. Projectava um círculo de luz bastante intensa sobre a colcha branca que estava puxada até à renda do decote da camisa

de noite da Melinda. Reparei na otomana que pertencia à sala de estar, e que se encontrava oculta pela sombra atrás da cama. Sobre esta havia um agasalho que a Melly havia tricotado com as suas próprias mãos, em dias mais felizes, meio descaído até ao chão. Era ali que o Hal tinha estado a dormir - pelo menos a passar pelas brasas - quando chegámos a sua casa.

À medida que o John se aproximava, a expressão da Melinda sofreu uma terceira transformação. Bruscamente, vi a Melly, cuja bondade tanto significado tivera para mim ao longo dos anos, e ainda mais para a Janice quando as crianças haviam abandonado o ninho e ela se sentira tão sozinha, triste e inútil. A Melly continuava interessada, mas agora o seu interesse parecia saudável e alerta.

- Quem és tu? - perguntou numa voz clara e coerente. - E porque é que tens tantas cicatrizes nas mãos e nos braços? Quem é que te fez tanto mal?

- Já nem me lembro como é que elas foram feitas, minha senhora - respondeu o John Coffey numa voz cheia de humildade, sentando-se junto dela à beira da cama.

A Melinda sorriu tão bem quanto lhe era possível - o canto arreganhado do lado direito da boca estremeceu, recusando-se no entanto a erguer-se. Pouco depois, tocou numa cicatriz esbranquiçada de formato curvo semelhante a uma cimitarra, que o Coffey tinha nas costas da mão esquerda.

- Mas que bênção isso é. Compreendes porquê? - perguntou ela.

- Acho que quando não sabemos quem nos fez mal, ou qual o cão que nos abocanhou, não ficamos acordados à noite - replicou o John Coffey no seu sotaque quase à maneira do Sul.

Ela riu-se ao ouvir aquilo, emitindo um som tão puro com° um fio de prata naquele quarto de doente de onde exalava um fedor tão intenso. O Hal estava ao meu lado; a sua respiração processava-se com alguma dificuldade mas ele não fazia qualquer menção de intervir. Quando a Melly se riu, a respiração acelerada do Moores susteve-se por breves instantes, respirou fundo e uma das suas mãos enormes fincou-se no meu ombro. Apertou-o com a força suficiente para deixar uma nódoa negra - dei por ela no dia seguinte - mas naquele momento mal senti o seu aperto.

- Como é que te chamas? - inquiriu ela. - John Coffey, minha senhora.

- Coffey, como a bebida.

- Sim, minha senhora, só que se escreve de maneira diferente.

Ela recostou-se contra as almofadas, o corpo semiergu¡do e sem despregar os olhos do Coffey. Este continuava sentado à sua beira, retribuindo-lhe o olhar; a luz projectada pelo candeeiro incidia sobre ambos, formando um círculo, como se eles fossem actores no palco de um teatro - o corpulento homem de raça negra, com o fato-macaco da prisão, e a mulher de estatura pequena às portas da morte. Esta fitava os olhos do John com um enorme fascínio.

- Minha senhora?

- Sim, John Coffey? - Aquelas palavras mal haviam sido articuladas, chegando-nos aos ouvidos a muito custo na atmosfera nauseante. Senti os músculos a contraírem-se nos meus braços, pernas e costas. Algures, a uma grande distância, senti o director da prisão a apertar-me o braço e, pelo canto do olho, vi que o Harry e o Brutal tinham os braços à volta um do outro, quais crianças perdidas nas trevas da noite. Algo estava prestes a acontecer. Qualquer coisa grandiosa. Cada um de nós sentia aquilo à sua própria maneira.

O John Coffey debruçou-se mais para ela. As molas do colchão rangeram, a roupa da cama fez ruge-ruge e a Lua fria e sorridente filtrou os seus raios através da vidraça superior da janela do quarto. Os olhos congestionados do Coffey observavam a face desfigurada que a Melinda soerguera. - Eu estou a vê-lo - disse ele. Não se dirigia a ela... pelo menos não me parece que o fizesse, falando consigo mesmo. - Estou a vê-lo, e sou capaz de impedir o mal. Esteja quieta... esteja muito quieta...

Debruçou-se ainda mais para a Melinda, cada vez mais próximo dela. Por um momento, o seu rosto deteve-se a menos de cinco centímetros do dela. Ergueu uma mão para o lado, com os dedos abertos, como se dissesse a algo que aguardasse... que esperasse... e depois baixou de novo o rosto.

Os seus lábios macios e carnudos fizeram pressão sobre os dela, forçando-os a entreabrirem-se. Por breves instantes, consegui ver um dos olhos da Melinda, fitando um ponto para lá do John Coffey, pleno de uma expressão do que me parecia ser surpresa. Em seguida, a cabeça lisa e calva do Coffey deslocou-se, impedindo-me a visão daquela cena.

Ouviu-se um sibilar suave quando ele inspirou o ar que estava no fundo dos pulmões dela. Isso foi tudo o que sucedeu durante um ou dois segundos, e em seguida o soalho deslocou-se abaixo de nós, enquanto toda a casa se agitava à nossa volta. Aquilo não fora fruto da minha imaginação; todos os outros sentiram a mesma coisa, como me disseram posteriormente. Era uma espécie de ruído abafado semelhante ao marulhar das águas. Depois, ouviu-se um estrondo quando tombou qualquer coisa pesada na sala de estar - mais tarde chegou-se à conclusão de que tinha sido o relógio de pêndulo. O Hal Moores tentou mandá-lo reparar, mas nunca mais voltou a dar horas por mais de quinze minutos de cada vez.

Mais próximo, ouviu-se um estalar seguido de um tinir, quando a vidraça da janela por onde tinham entrado os raios de luar se quebrou. Um dos quadros na parede - um navio de cruzeiro que atravessava um dos sete mares - caiu, tendo-se partido no chão; o vidro da moldura estilhaçou-se em mil fragmentos.

Chegou-me o cheiro de algo quente e vi fumo a evolar-se do fundo da coberta branca da cama que cobria a Melinda. Uma porção desta tinha enegrecido na saliência formada pelo seu pé direito. Sentindo-me como um homem no meio de um sonho, desprendi-me da mão do Moores e aproximei-me da mesa-de-cabeceira. Sobre esta havia um copo cheio de água, rodeado por três ou quatro frascos de comprimidos, os quais tinham tombado durante o estremeção que a casa sofrera. Agarrei no copo de água e despejei-a em cima do lugar de onde saía fumo. Ouviu-se um silvar.

O John Coffey continuava a beijá-la de uma forma envolvente e cheia de intimidade inspirando e voltando a inspirar, uma mão erguida para o lado, a outra sobre a cama, suportando todo o peso do seu corpo. Os dedos continuavam abertos; aquela mão fazia-me lembrar uma estrela-do-mar castanha.

Bruscamente as costas da Melinda arquearam-se. Uma das suas mãos agitou-se no ar com os dedos enclavinhados, os quais se abriam e fechavam numa série de espasmos. Os seus pés batiam contra a cama. Então algo soltou um grito. Uma vez mais, não fui o único a ouvir aquilo; os outros homens presentes também ouviram. Ao Brutal pareceu ser um lobo ou um coiote cuja pata tivesse ficado presa numa armadilha. A mim, deu-me a sensação de ser o grito de uma águia, ~ forma como nessa época elas por vezes se faziam ouvir nas manhãs remansosas, a voar por entre as brumas dos cumes com as asas rigidamente abertas.

Lá fora, o vento fazia ouvir as suas rajadas com força suficiente para agitar de novo a casa, o que, devo dizer-vos, era bastante estranho, uma vez que até então não se fizera sentir a mínima brisa.

O John Coffey afastou-se da Melinda e vi que as feições dela se tinham suavizado. O lado direito do seu rosto já não estava descaído. Os olhos haviam readquirido o seu formato natural; parecia ter rejuvenescido dez anos. Durante um ou dois momentos, o Coffey olhou-a com enlevo e depois começou a tossir. Virou a cabeça de forma a não tossir mesmo em frente do rosto da Melinda, perdeu o equilíbrio (o que não foi difícil; para começar, corpulento como ele era, tinha estado sentado durante o tempo todo com o traseiro meio fora da cama) e caiu no chão. O seu peso foi o suficiente para fazer estremecer a casa uma terceira vez. Caiu sobre os joelhos e deixou descair a cabeça sobre o peito, acometido por um ataque de tosse como se fosse um homem na última fase de uma tuberculose terminal.

Pensei: Agora é a vez dos insectos. Ele vai expeli-los da boca e desta feita terão de ser bastantes.

Apesar da minha expectativa, o Coffey não os deitou fora. Continuou a tossir em grandes arrancos, mal tendo tempo de conseguir respirar. A sua tez escura, da cor do chocolate, começara a adquirir uma tonalidade acinzentada. Alarmado com aquilo, o Brutal dirigiu-se para junto do Coffey, deixando-se cair sobre um joelho ao seu lado e colocando um braço em redor das suas costas robustas atravessadas por espasmos.

Como se os movimentos do Brutal houvessem quebrado um encantamento, o Moores aproximou-se da cama da mulher, sentando-se no mesmo lugar onde o Coffey estivera sentado. Parecia não dar pela presença daquele gigante que continuava a tossir, meio sufocado. Embora o Coffey se encontrasse ajoelhado mesmo aos seus pés, o Moores só tinha olhos para a mulher e mais ninguém; esta fitava-o com uma expressão de perplexidade. Olhar para ela era o mesmo que olhar para um espelho que houvesse sido limpo.

~.John! - gritou o Brutal. - Vomita isso! Vomita isso como fizeste das outras vezes!

O John continuou com aqueles arrancos de tosse que quase o sufocavam. Tinha os olhos lacrimosos, não devido às lágrimas, mas sim ao esforço. Da boca começou a sair-lhe cuspo num jacto fino, apesar de não ter expelido mais nada.

O Brutal assentou-lhe duas palmadas nas costas e olhou para mim.

- Ele está a sufocar! Seja o que for que ele sugou dela, está a asfixiá-lo!

Avancei mas, antes de ter dado dois passos, o John afastou-se de mim, ajoelhado, e dirigiu-se para um canto do quarto, continuando a tossir violentamente e sentindo grandes dificuldades em respirar. Encostou a testa contra o papel de parede - rosas bravas vermelhas que pendiam do muro de um jardim - emitindo um som cavo hompilante, como se pretendesse vomitar o tecido que revestia o interior da sua própria garganta. "Se há alguma coisa que expulse os insectos, só poderá ser isto", recordo-me eu de ter pensado na altura, mas continuou a não haver quaisquer vestígios destes. Mesmo assim, aquele ataque de tosse deu a impressão de estar a abrandar um pouco.

- Eu estou bem, chefe - disse o John, continuando com a cabeça apoiada contra as rosas bravas. Tinha os olhos cerrados. Não sei bem como é que ele percebeu que eu me encontrava junto de si, mas não há dúvida que sabia. - A sério que estou. Vá ver se a senhora precisa de alguma coisa.

Com uma expressão duvidosa olhei para ele e virei-me para a cama. O Hal acariciava a testa da Melly, e acima dela avistei algo deveras surpreendente; alguns dos seus cabelos - não uma grande quantidade, mas somente uns quantos - tinham ficado negros.

- O que é que aconteceu? - perguntou ela ao marido. Enquanto eu a observava, as cores começaram a regressar-lhe às faces. Era como se houvesse roubado um par de rosas ao Papel de parede. - Como é que eu vim parar aqui? Nós íamos

a caminho do hospital em Indianola, não é verdade? Há um médico de lá que vai tirar radiografias à minha cabeça,

Para fotografar o meu cérebro.

- Chhüuuu - fez o Hal. - Chhüuuu, minha querida, nada disso interessa neste momento.

- Mas eu não estou a compreender! - redarguiu e quase num gemido. - Nós parámos numa banca à beira da estrada... tu compraste-me um ramo de flores que custou

cêntimos... e depois... aqui estou eu. Já está escuro! Já jantaste, Hal. Porque é que eu estou deitada no quarto de hóspedes? Já me fizeram as radiografias? - Os olhos dela pousaram no Harry quase sem darem pela sua presença... imagino que aquilo se devesse ao choque... e depois fixaram-se em mim. - Paul? Já me fizeram a radiografia.

- Sim - disse-lhe eu. - Não encontraram nada ~ anormal.

- Não descobriram um tumor?

- Não - repliquei. - Os médicos disseram que o mais provável é as dores de cabeça começarem a desaparecer. Ao lado da mulher, o Hal explodiu num ataque de choro' A Melinda inclinou-se para a frente e beijou-lhe a fronte: Em seguida, o seu olhar focou-se no canto.

- Quem é aquele homem negro? Por que motivo é que ele está ali ao canto?

Voltei-me para trás e vi o John Coffey a tentar pôr-se de pé. O Brutal ajudou-o; com um último impulso do corpo para a frente, o John conseguiu erguer-se do chão. No entanto, deixou-se ficar de rosto virado para a parede como se fosse um rapazinho que se tivesse portado mal. Continuava a tossir em espasmos, embora estes parecessem querer abrandar.

- John - chamei. - Vira-te para nós, matulão, e olha para esta senhora.

Lentamente, ele começou a virar-se. O seu rosto continuava da cor de cinza, aparentando ter envelhecido dez anos, como se fosse um homem que em tempos estivera cheio de forças e que por fim perdera uma longa batalha contra a doença que acabara por consumi-lo. Os seus olhos baixos olhavam para as pantufas da prisão. A sua atitude era a de alguém que desejava desaparecer por artes mágicas.

- Quem és tu? - perguntou-lhe a Melinda de novo. - Como é que te chamas?

- John Coffey, minha senhora - respondeu ele, ao que ela respondeu imediatamente:

- Mas que não se escreve como a bebida.

O Hal, que continuava ao lado da mulher, ficou estupefacto. A Melinda sentiu a reacção do marido e bateu-lhe na mão num gesto tranquilizador, sem despregar o olhar do homem de raça negra.

- Sonhei contigo - continuou ela numa voz suave e sonhadora. - Sonhei que andavas perdido na escuridão, tal como eu. Encontrámo-nos.

O John Coffey continuou calado.

. Encontrámo-nos no meio da trevas - acrescentou a Melinda. - Levanta-te, Hal, estás a tolher-me os movimentos. O marido levantou-se, olhando com um olhar descrente enquanto ela afastava para trás a coberta da cama.

- Melly, tu não podes...

-Não digas disparates - retorquiu ela, descrevendo um movimento circular com as pernas por cima da cama. - Claro que posso. - Alisou a camisa de dormir, espreguiçou-se e levantou-se da cama.

- Meu Deus - murmurou o Hal. - Meu bom Deus que estais no céu, olhem bem para ela!

A Melinda dirigiu-se para o John Coffey. O Brutal manteve-se afastado dela, exibindo no rosto uma expressão de perplexidade. Ela vacilou um pouco ao dar o primeiro passo, um pouco menos ao dar o segundo e, em seguida, até essa hesitação desapareceu do seu andar. Naquele momento, ocorreu-me a imagem do Brutal a entregar o carretel colorido ao Delacroix dizendo: "Lança-o... quero ver como é que ele corre." O Mister Jingles tinha coxeado um pouco nessa altura, mas na noite seguinte, na noite em que o Del percorrera a Milha, o rato já estava óptimo.

A Melly colocou os seus braços em redor do John, abraçando-o. Este deixou-se ficar imobilizado por um momento, permitindo que o abraçassem e, pouco depois, ergueu uma mão, acariciando o topo da cabeça da Melinda. E fê-lo com uma suavidade infinita. A tez do seu rosto continuava acinzentada. Achei que ele tinha um aspecto terrivelmente adoentado.

Ela afastou-se mantendo o rosto erguido na direcção do dele.

- Muito obrigada.

- Não tem de quê, minha senhora.

A Melinda voltou-se para o Hal, regressando para junto dele. Este colocou-lhe um braço por cima dos ombros.

- Paul... - era a voz do Harry. Estendia o pulso direito na minha direcção, batendo no mostrador do relógio. Eram quase três da manhã. Por volta das quatro e meia a luz do dia começaria a despontar. Se pretendíamos que o Coffey regressasse a Cold Mountain antes do nascer do dia, teríamos de partir dentro em pouco. E eu queria que ele regressasse. Em parte porque, quanto mais aquela situação se prolongasse, menores seriam as hipóteses de conseguirmos que não dessem pela nossa falta, como era evidente. Mas para além disso, também queria que o John estivesse num lugar onde eu poderia, com toda a legitimidade, chamar um médico que o observasse, se necessário. Olhando para ele, achei muito provável que isso viesse a acontecer.

O casal Moores encontrava-se sentado na beira da cama com os braços à volta um do outro. Ainda pensei em pedir ao Hal que fôssemos até à sala de estar, para poder dar-lhe uma palavrinha em particular, mas apercebi-me de que poderia esperar até as galinhas terem dentes e que naquele momento ele não se mexeria de onde estava. Talvez conseguisse afastar os olhos da Melinda - no mínimo, durante alguns segundos - quando o Sol começasse a despontar, mas não naquela altura. - Hal, temos de nos ir embora.

Ele acenou com a cabeça sem olhar para mim. Observava a cor nas faces da mulher, a curva natural e descontraída que os seus lábios formavam, os seus novos cabelos negros.

Bati-lhe no ombro com a força suficiente para lhe despertar a atenção, ainda que só por uns escassos momentos. - Hal, nós nunca estivemos em tua casa.

O quê?...

-- Nunca viemos aqui - continuei. - Mais tarde havemos de conversar, mas por agora é só o que necessitas de saber. Nunca viemos a tua casa.

- Sim, de acordo... - Fez um esforço para se concentrar em mim por alguns instantes, o que, nitidamente, foi bastante difícil. - Tiraste-o de lá, achas que conseguirás voltar a metê-lo lá dentro?

- Acho que sim. Talvez. Mas agora temos de nos pôr a andar.

- Como é que soubeste que ele podia fazer isto? - Então, abanou a cabeça, como se compreendesse que aquela não era a altura mais oportuna para uma conversa daquele teor. Paul... muito obrigado.

- Não é a mim que tens de agradecer - repliquei. Agradece ao John.

O Hal olhou para o John Coffey e estendeu-lhe a mão, tal como eu tinha feito no dia em que o Harry e o Percy o escoltaram até ao bloco.

- Obrigado. Muitíssimo obrigado - agradeceu o Moores. O John ficou a olhar para aquela mão. O Brutal acotovelou-lhe o flanco de uma maneira pouco despercebida. O John mostrou-se sobressaltado e depois agarrou na mão, dando-lhe um aperto. Para cima, para baixo, de regresso ao centro e soltar.

-Não tem de quê -.disse o John ao homem que, no decorrer normal dos acontecimentos, agarraria numa caneta com aquela mesma mão, a fim de assinar a ordem de execução do John Coffey.

O Harry bateu uma vez mais no mostrador do seu relógio de pulso, desta feita com um gesto de maior urgência.

- Brute`? - chamei. - Estás pronto?

- Olá, Brutus - saudou a Melinda numa voz cheia de jovialidade, como se houvesse reparado na sua presença pela primeira vez. - É um prazer ver-te. Os cavalheiros gostavam de tomar uma chávena de chá? E tu, Hal? Eu posso prepará-lo. - Levantou-se outra vez. - Tenho andado um pouco adoentada, mas agora estou a sentir-me lindamente. Muito melhor do que há muitos anos a esta parte.

- Muito agradecido, Mistress Moores, mas temos de nos ir embora - retorquiu o Brutal. - Já passa da hora de o John ir para a cama. - Sorriu a indicar que se tratava de uma brincadeira, mas o olhar que lançou ao John expressava tanta ansiedade como a que eu próprio sentia.

- Bem... se têm a certeza...

- Sim, minha senhora. Vamos embora, Coffey. - Deu um pequeno empurrão no braço do John para que ele começasse a andar, o que este fez obedientemente.

- Esperem só um minuto! - exclamou a Melinda, soltando-se da mão do Hal correndo num passo ligeiro como o de uma rapariguinha em direcção ao John. Colocou os seus braços à volta dele e deu-lhe outro abraço. Em seguida, levou

a mão à nuca e desapertou um fio fino que retirou do interior do corpete. Na extremidade havia um medalhão de prata. Estendeu-o ao John, que olhou para a jóia com uma expressão de incompreensão.

- É a imagem de São Cristóvão - informou ela. - Quero que fiques com ela Coffey, e que a uses ao pescoço. Manter-te-á em segurança. Por favor, coloca-a ao pescoço, fá'lo por mim.

Visivelmente perturbado, o John olhou para mim; por mi nha vez, olhei para o Hal, que primeiro abriu as mãos num gesto de impotência e depois assentiu com a cabeça.

- Aceita, John - disse eu. - É um presente para ti. O John aceitou o fio, enfiou-o pelo pescoço forte que nem o de um touro e colocou a medalha de São Cristóvão no interior da sua camisa. Naquele momento já tinha parado completamente de tossir, mas fiquei com a impressão de que parecia mais doente, com a pele mais lívida, do que em qualquer outra altura.

- Muito obrigado, minha senhora - agradeceu ele. - Não - replicou Melinda -, eu é que tenho de te agradecer. Muito obrigada, John Coffey.

 

No caminho de regresso, fui sentado na cabina da camioneta, enquanto Harry ia atrás; sentia-me muito satisfeito por ir ali. O sistema de aquecimento estava avariado, mas pelo menos não nos encontrávamos em terrenos descampados. Já havíamos percorrido pouco mais de quinze quilómetros quando o Harry avistou um pequeno desvio, por onde entrámos.

- O que é que se passa? - perguntei. - É algum rolamento? - Na minha mente, o problema tanto poderia ser esse como qualquer outro componente do motor da Farmall, uma vez que o som que vinha da transmissão indicava que esta se encontrava à beira de ficar irremediavelmente avariada.

- Não - respondeu o Harry num tom de voz de quem se desculpava. - Só preciso de verter águas, mais nada. Tenho a bexiga quase a rebentar.

Acabámos todos por lhe seguir o exemplo, com a excepção do John. Quando o Brutal lhe perguntou se não gostaria de descer da camioneta para nos ajudar a regar o matagal, ele limitou-se a sacudir a cabeça sem erguer o olhar para nós. Permanecia encostado à parte de trás da cabina, enrolado num dos cobertores do exército como se este fosse um poncho mexicano. Eu não conseguia deduzir nada pela cara dele; todavia, ouvia a sua respiração - seca e entrecortada, como vento a soprar através de um canudo. Aquilo não me agradou nada.

Caminhei até um maciço de salgueiros, desapertei a breguilha e deixei correr. Ainda não me encontrava suficientemente distanciado da minha infecção urinária para que a amnésia se tivesse assenhoreado inteiramente do meu corpo, e senti-me grato por conseguir apenas urinar sem ter vontade de gritar. Ali fiquei a esvaziar a bexiga enquanto olhava para a Lua; mal me tinha dado conta de que o Brutal se encontrava junto de mim, a fazer a mesma coisa que eu, até que ele começou a falar.

- Ele nunca se sentará na Velha Faísca.

Voltei-me na sua direcção, surpreendido e um pouco assustado pela certeza inexorável daquilo que a sua voz me transmitia.

- O que é que queres dizer com isso?

- Quero dizer que ele engoliu aquela coisa em vez de a ter cuspido, tal como das outras vezes, por qualquer razão que desconhecemos. É possível que leve uma semana... ele é muito corpulento e forte, mas aposto que será rápido. Um de nós fará a ronda habitual e lá estará ele, morto que nem uma pedra em cima da sua tarimba.

Pensei que tinha acabado de urinar, mas ao ouvir aquilo senti um arrepio a percorrer-me a espinha e urinei um pouco mais. Enquanto voltava a abotoar a breguilha, pensei que aquilo que o Brutal acabara de dizer era de uma racionalidade perfeita. E esperava, depois de tudo considerado, que ele tivesse razão. O John Coffey não merecia morrer de maneira nenhuma, caso eu estivesse certo nas conclusões a que chegara quanto à morte das garotas Detterick, mas, se ele viesse a morrer, não desejava que fosse pela minha mão. Não tinha a certeza de ser capaz de a erguer para o fazer, caso se chegasse a essa situação.

- Vamos embora - murmurou o Harry da escuridão. - Está a fazer-se tarde. Despachemo-nos com isto.

Enquanto caminhávamos para a camioneta, apercebi-me  que tínhamos deixado o John completamente sozinho - uma estupidez bem ao nível do Percy Wetmore. Pensei que talvez ele já houvesse desaparecido; que tivesse cuspido os insectos e, assim que se tivesse dado conta de que ninguém o vigiava, se fizesse aos vastos territórios, qual aventureiro do antigamente. Tudo o que encontraríamos seria o cobertor com que ele se havia agasalhado.

Contudo, ele continuava no mesmo lugar, sentado com as costas apoiadas contra a traseira da cabina e os antebraços pousados sobre os joelhos. Ao som dos nossos passos, o John soergueu o olhar, tentando esboçar um sorriso. Aquele trejeito manteve-se suspenso por breves instantes no seu rosto acabrunhado, para logo depois desaparecer.

- Como é que te sentes, grande John? - perguntou o' Brutal, subindo para a traseira da pequena camioneta e enrolando-se no seu próprio cobertor.

- Estou óptimo, chefe - respondeu o John distraidamente. - Sinto-me muito bem.

- Dentro em pouco estaremos de regresso - acrescentou o Brutal, dando-lhe uma pequena palmada no joelho. _ E depois de termos tratado de tudo, sabes que mais? Vou certificar-me de que te arranjo uma grande caneca de café bem quente com natas e açúcar.

"Podes apostar que sim", pensei para comigo, dando a volta até à porta do lado do passageiro e entrando para a cabina. Isto é, se antes disso nós não formos apanhados e lançados para dentro de uma cela.

No entanto, como desde o momento em que fecháramos o Percy na cela do isolamento aquele pensamento não me largava, tal não me preocupou o suficiente para me manter acordado. Passei pelas brasas e sonhei com o Calvário. Com trovoada a oeste acompanhada de um cheiro que poderia ter sido de bagas de zimbro. O Brutal, o Harry, o Dean e eu próprio vestíamos roupas e chapéus de lata como se participássemos num filme do Cecil B. Demille. Éramos centuriões, imagino eu. Havia três cruzes; o Percy Wetmore e o Eduard Delacroix ~ flanqueavam o John Coffey. Baixei o olhar até à minha mão e verifiquei que segurava num martelo ensanguentado.

Temos de o tirar dali, Paul!, gritava o Brutal. Temos de o tirar dali!

Só que isso não era possível; alguém tinha levado a estada de mão. Comecei a explicar isto mesmo ao Brutal, mas foi então que um sacolejo mais violento da camioneta me despertou. Estávamos a fazer marcha atrás no mesmo lugar onde ó Harry ocultara o veículo algumas horas antes, num dia que me dava a impressão de se ter distanciado até aos primórdios do tempo.

Saímos da cabina e demos a volta até à parte de trás. O Brutal desceu sem qualquer problema, mas os joelhos do John Coffey foram-se abaixo e ele esteve prestes a cair no chão. Foi preciso que nós três o tivéssemos amparado, e, mal se encontrava de novo de pé, foi acometido por outro dos seus ataques de tosse, sendo este o mais grave de todos. Dobrou-se sobre si mesmo, levando a mão à boca e premindo com força, a fím de abafar a tosse.

Quando a tosse lhe passou um pouco, cobrimos uma vez mais a dianteira da Farmall com ramadas de pinheiro, tendo começado a percorrer o caminho por onde viéramos horas antes. A pior parte de toda aquela escapadela surrealista foi constituída - pelo menos para mim - pelos últimos duzentos metros, em que quase corremos em direcção a sul, ao longo da berma da estrada. Conseguia ver (ou imaginei que via) no céu os primeiros clarões do amanhecer e tive a certeza de que qualquer lavrador mais madrugador, já nas suas terras para colher as abóboras, ou para apanhar as últimas batatas-doces deixadas nos sulcos onde as semeara, nos surgiria pela frente não podendo deixar de dar pela nossa presença. E ainda que isso não viesse a acontecer, iríamos ouvir alguém (na minha imaginação era a voz do Curtis Anderson) a gritar: "Parem imediatamente!" no momento em que eu usava a chave Aladino para abrir o portão da cerca que dava acesso ao túnel. Em seguida, apareceriam duas dúzias de guardas, empunhando carabinas, que entrariam pelo arvoredo, dando a nossa pequena aventura por terminada.

Na altura em que realmente chegámos à vedação, o meu coração pulsava com tal violência que eu conseguia ver pequenos pontos de luz a explodir em frente dos meus olhos, acompanhando cada uma das suas pulsações. Sentia as mãos geladas e entorpecidas, dando-me a sensação de que não me pertenciam, e, durante um período de tempo que me pareceu ser infinito, não fui capaz de inserir a chave na fechadura.

- Oh, Jesus Cristo, luzes de faróis! - exclamou o Harry num gemido.

Ergui o olhar e avistei feixes de luz intensa na estrada. O molho de chaves esteve quase a cair-me das mãos; consegui agarrá-lo no último instante.

- Dá-me as chaves - disse o Brutal. - Eu abro o portão. -Não é necessário, já consegui - retorqui. Finalmente, a chave entrou na ranhura e eu fi-la girar. Momentos depois já nos encontrávamos do lado de dentro. Agachámo-nos por trás do portão levadiço, observando um camião de transporte do pão a passar pela penitenciária. Mesmo ao meu lado ouvia a respiração torturada do John Coffey. Soava como fosse um motor que estivesse prestes a acabar-se-lhe o óleo Quando saímos da prisão, ele tinha segurado o portão para nós passarmos, sem ter demonstrado o mínimo esforço, mas daquela vez nem sequer nos passou pela cabeça pedir-lhe que nos ajudasse; isso estava completamente fora de questão, O Brutal e eu conseguimos abrir o portão enquanto o Harry conduzia o John pelas escadas abaixo. O homem corpulento caminhava num passo hesitante, mas ainda assim conseguiu descer os degraus. O Brutal e eu passámos pelo portão depois dele tão rapidamente quanto possível, depois baixámo-lo e fechámo-lo de novo à chave.

- Bolas, tenho a impressão de que vamos... - começou o Brutal a dizer, mas eu interrompi-o com uma violenta cotovelada nas costelas.

- Não te atrevas a dizê-lo - proferi eu. - Nem sequer penses nisso até ele se encontrar em segurança dentro da sua cela.

- E ainda temos de nos preocupar com o Percy - acrescentou o Harry. As nossas vozes ressoavam com uma vibração cava no túnel de tijolos. - A madrugada só terminará depois de termos tratado dele.

Pela forma como os acontecimentos vieram a desenrolar-se, verificámos que a nossa madrugada estava muito longe de ter chegado ao fim.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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