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À ESPERA DE UM MILAGRE 4 / Stephen King
À ESPERA DE UM MILAGRE 4 / Stephen King

 

 

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À ESPERA DE UM MILAGRE

 

Parte VI

O COFFEY PERCORRE A MILHA

Encontrava-me eu sentado no solário de Georgia Pines, com a caneta de tinta permanente do meu pai em riste, e o tempo perdeu todo o sentido para mim, quando me recordei da noite em que o Harry, o Brutal e eu levámos o John Coffey para fora da Milha, até junto da Melinda Moores, para tentar salvar-lhe a vida. Já escrevi acerca da forma como drogámos o William Wharton, o qual se julgava a reencarnação do Billy the Kid; também já descrevi como é que pusemos o Percy no colete-de-forças, tendo-o enclausurado na cela do isolamento situada ao fundo da Milha Verde; da mesma maneira, narrei a nossa estranha jornada a coberto da noite - que tanto teve de aterrador como de empolgante - e o milagre que nos envolveu a todos quando esta chegou ao fim. Vimos o John Coffey arrancar uma mulher, não só da beira da sua sepultura, mas também daquilo que dava a impressão de ser o seu fundo.

Também escrevi sobre a minha percepção da vida que existia à minha volta em Georgia Pines. As pessoas de idade desciam para o jantar, depois dirigiam-se todas para o Centro Recreativo (sim, pode esboçar um sorriso de troça), para a sua dose de programas de comédia do serão apresentados pelas grandes cadeias televisivas. Acho que me recordo de a minha amiga Elaine me trazer uma sanduíche, e de eu lhe ter agradecido, tê-la comido, mas não posso dizer-vos a que horas da noite é que ela ma ofereceu, nem tão-pouco de que é que era. A maior parte de mim encontrava-se em 1932, ano ~ que as nossas sanduíches eram habitualmente transportadas no carrinho de merendas, coberto com as inscrições dos Evangelhos do velho Pouca Terra, carne de porco a cinco centimos e'carne em conserva a dez cêntimos.

Lembro-me da altura em que o lar começava a ficar sossegado à medida que as relíquias que ali residiam se preparavam para outra noite de sono agitado e pouco prolongado ouvi o Mickey - que talvez não fosse o melhor auxiliar daquele lugar, mas que sem dúvida alguma era o mais simpático ,, a cantar Red River Valley na sua voz de tenor, enquanto distribuía os medicamentos que as pessoas tinham de tomar à noite: apeste vale, dizem que vais partir... Teremos saudades dos teus olhos brilhantes e do teu doce sorriso..." Uma vez mais, aquela canção trouxe-me a Melinda à memória, assim como o que ela dissera ao John depois do milagre ter ocorrido. Sonhei contigo. Sonhei que andavas perdido na escuri_ dão, tal como eu. Encontrámo-nos.

O silêncio apoderou-se do lar Georgia Pines; a meia-noite chegou e passou, e eu continuei a escrever. Cheguei à altura em que o Harry nos chamou a atenção para o facto de que, embora houvéssemos conseguido levar o John de regresso à prisão sem termos sido apanhados, continuávamos a ter o Percy à nossa espera. "A madrugada só terminará depois de termos tratado dele", foi mais ou menos o que ele disse na altura.

Foi nesse ponto que aquele longo dia passado a escrever com a caneta do meu pai me levou a melhor. Pousei-a - pensei que só por alguns segundos, de forma a poder impri mir um pouco mais de energia aos meus dedos tensos - e então apoiei a cabeça sobre o braço, cerrando os olhos para lhes dar algum descanso. Quando voltei a abri-los e ergui a cabeça, o sol da manhã banhava-me entrando através das ~anelas. Olhei para o relógio, verificando que já passava das oito horas. Tinha dormido, com a cabeça sobre os braços, qual bêbedo envelhecido, durante o que deveriam ter sido seis horas. Levantei-me da cadeira, entorpecido, e espreguicei-me, tentando injectar um pouco de vigor nas minhas costas. Pensei em descer até à cozinha, para arranjar algumas torradas antes de iniciar o meu passeio matinal. Mas foi então que olhei para a grande quantidade de folhas de papel já escritas e espalhadas pela mesa. Sem qualquer hesitação, decidi adiar o passeio por algum tempo. Sim, de facto eu tinha uma tarefa a cumprir, mas esta poderia esperar, para além de que naquela manhã não me apetecia brincar às escondidas com ° Brad Dolan.

Em vez de ir passear, estava decidido a terminar a minha história. Em certas circunstâncias é preferível darmos cumprimento ao que temos pela frente, apesar de a nossa mente e o corpo poderem protestar. Por vezes, essa é a única maneira de atingir um objectivo. Aquilo que mais fortemente ficou gravado no meu pensamento quanto a essa manhã foi a forma desesperada como eu queria libertar-me do fantasma persistente do John Coffey.

. Muito bem - disse eu para comigo mesmo. - Uma milha mais. Mas primeiro...

Fui à casa de banho situada ao fundo do .corredor do segundo andar. Enquanto urinava, lancei, por acaso um olhar ao detector de fumos instalado no tecto. Isso fez-me pensar na Elaine, na maneira que ela arranjara para distrair o Dolan, para eu poder dar o meu passeio e cumprir a minha pequena tarefa no dia anterior. Acabei de urinar com um sorriso arreganhado.

Regressei ao solário, sentindo-me melhor (e muito mais confortável nas minhas partes baixas). Alguém - a Elaine, não me restava a mais pequena dúvida - colocara sobre a mesa um bule cheio de chá, perto das minhas folhas. Bebi com avidez, primeiro uma chávena e logo outra, mesmo antes de me sentar. Retomei o meu lugar, tirei a tampa à caneta de tinta permanente e, uma vez mais, recomecei a escrever.

Estava eu prestes a embrenhar-me de corpo e alma na minha história quando se projectou uma sombra sobre mim. Ergui o olhar e senti uma reviravolta nas entranhas. Era o Dolan, que se colocara entre mim e as janelas. Exibia um grande sorriso arreganhado.

- Senti a falta do teu passeio matinal, Paulie - comentou ele, mordaz. - Por isso, pensei em vir até aqui para ver o que andavas a fazer. Para me assegurar de que não estavas doente.

- Tens um coração imenso - repliquei. A minha voz era firme, pelo menos até ao momento, mas o meu coração batia descontroladamente. Eu tinha medo dele e não me parece que isso fosse novidade. Embora ele me lembrasse o Percy Wetmore, eu nunca sentira receio deste... Mas, quando conheci o Percy, eu ainda era novo.

O sorriso do Brad alargou-se, embora não se tenha tornado menos desagradável.

- Algumas pessoas disseram-me que passaste toda a noite aqui, Paulie, a escrever o teu pequeno relatório. Vamos lá a ver, isso não é muito bom. Os velhos jarretas como tu necessitam do seu sono de beleza.

- Percy... - comecei a dizer, mas então avistei um jeito no seu sorriso arreganhado e apercebi-me do meu erro. Respirei fundo e recomecei. - Brad, o que é que tem contra mim?

Por breves momentos, ele mostrou uma expressão intrigada, talvez até mesmo de insegurança. Mas pouco depois a careta risonha regressou.

- Meu velho - redarguiu ele -, é possível que seja apenas o facto de eu não gostar da tua cara. Seja como for, que é que estás para aí a escrevinhar? O último testamento quanto aos teus testículos?

Aproximou-se, elevando-se acima de mim. Coloquei vigorosamente a mão sobre a folha em que estivera a escrever e comecei a reunir as outras com a mão livre, amachucando algumas com a pressa de as colocar debaixo do braço, em segurança.

- Ora vamos lá a ver - continuou ele como se falasse para uma criança -,isso não vai resultar, minha velha doçura. Se o Brad quiser ver, o Brad vai ver. E até podes levar essa merda para o cofre de um banco.

A sua mão, jovem e hediondamente forte, cerrou-se em redor do meu pulso e começou a apertar. As dores apoderaram-se da minha mão como se fossem dentes; soltei um gemido.

- Larga-me o pulso - disse eu a custo.

- Quando me deixares ver isso - replicou ele. Deixara de sorrir. No entanto, a expressão no seu rosto era de jovialidade; a espécie de júbilo que se vê apenas nos rostos dos indivíduos que gostam de infligir mal aos outros. - Deixa-me ver, Paulie. Quero saber o que é que andas a escrever. A minha mão começou a afastar-se da página do topo. Era nessa em que eu narrava a nossa jornada de regresso com o John, através do túnel sob a estrada. - Quero ver se tem alguma coisa a ver com o sítio onde tu...

- Deixe esse homem em paz.

Aquela voz era como o vergastar de um chicote num dia quente e seco... e, pela forma como o Brad Dolan saltou, poder-se-ia pensar que o alvo da zurzidela fora o seu traseiro. Largou imediatamente a minha mão e esta tombou contra as folhas de papel; ambos olhámos para a porta.

A Elaine Connelly estava junto à ombreira, mostrando um aspecto mais fresco e vigoroso do que aquele que eu vira em muitos dias. Usava umas calças de ganga que deixavam ver os contornos das suas ancas magras e pernas alongadas; tinha os cabelos presos por uma fita azul. Nas suas mãos atacadas pela artrite havia um tabuleiro - continha sumo, um ovo mexido, uma torrada e mais chá. Os seus olhos chamejavam. - O que é que você pensa que está a fazer? - perguntou o Brad. - Ele não pode comer aqui.

. Pode e é isso mesmo o que vai fazer - respondeu ela no mesmo timbre de voz seco e cheio de autoridade. Eu nunca lhe tinha ouvido aquela entoação de voz, mas naquele momento foi muito bem-vinda. Procurei detectar algum vestígio de receio nos seus olhos, mas não vi nada... Neles só adivinhava raiva. - E o que você vai fazer é pôr-se a andar daqui para fora antes que passe da fase de uma simples barata incomodativa à de um verme ligeiramente maior... digamos, de Ratos americanus.

O Brad deu um passo na direcção da Elaine, parecendo simultaneamente inseguro e furioso. Aquela combinação era perigosa; todavia, a Elaine não vacilou por um segundo quando ele se aproximou.

- Aposto que sei quem é que accionou o raio daquele detector de fumos - acrescentou o Dolan. - O mais certo é ter sido uma determinada cabra velha que tem garras em lugar de mãos. Agora ponha-se a andar daqui para fora. O Paulie e eu ainda não concluímos a nossa pequena conversa.

- O nome dele é Mister Edgecombe -ripostou ela -, e se eu voltar a ouvi-lo tratá-lo por Paulie mais alguma vez, tenho a impressão de que posso garantir-lhe que os seus dias de trabalho em Georgia Pines terão chegado ao fim, Mister Dolan.

- Mas quem é que você julga que é? - perguntou ele à Elaine. Naquele momento, a sua figura corpulenta sobrepunha-se à dela, e tentava rir-se, mas sem grande êxito.

- Julgo , começou ela a dizer com muita calma - que sou a avó do homem que presentemente é o porta-voz da Câmara de Deputados da Jórgia. Um homem que adora os seus familiares, Mister Dolan. Muito em especial, os seus familiares mais idosos.

O sorriso desenhado a muito custo sumiu dos lábios do homem, da mesma forma que o giz desaparece de uma ardósia. Vi incerteza, a possibilidade de estar a ser enganado receio de que não fosse esse o caso, e o nascer de uma su~ sição lógica: seria bastante fácil verificar a veracidade da afirmação, porque, ela deveria sabê-lo bem, logo, estava a dizer a verdade.

Subitamente, desatei a rir e, embora o meu riso estivesse bastante emperrado, não deixava de ser adequado. Recordo-me das inúmeras vezes em que o Percy Wetmore nos ameaçara, invocando os seus conhecimentos. Agora, pela primeira vez ao longo da minha extensa vida, ouvia essa ameaça ser proferida uma vez mais... mas, daquela feita, em meu beneficio.

O Brad Dolan olhou para mim com uma expressão coroscante e depois voltou a concentrar a sua atenção na Elaine. - Estou a falar a sério - disse ela. - De início, ainda pensei em não interferir... já estou velha e essa atitude pareceu-me ser a mais fácil. Mas quando vejo os meus amigos a serem maltratados e ameaçados, não deixo ficar as coisas como estão. Agora, saia daqui sem proferir uma só palavra que seja.

Os lábios do Dolan movimentavam-se como os de um peixe... Oh, como ele desejava proferir só mais uma palavra (talvez aquela que rima com macabra). No entanto, não se atreveu. Lançou-me um último olhar, passou pela Elaine com brusquidão e saiu para o corredor.

Soltei a respiração num suspiro longo e entrecortado, enquanto ela colocava o tabuleiro à minha frente e se sentava no lugar oposto ao meu.

- O teu neto é realmente o porta-voz da Câmara de Deputados? - perguntei.

- É - respondeu-me ela.

- Nesse caso, o que é que estás a fazer aqui?

- O facto de o meu neto ser o porta-voz de um organismo estatal dessa importância dá-lhe poder suficiente para lidar com um verme como o Brad Dolan mas não o torna rico' explicou ela com uma gargalhada. - Além do mais, gosto de viver aqui. A companhia agrada-me bastante.

- Vou aceitar as tuas palavras à guisa de um cumprimento - disse eu, o que era verdade.

- Paul, estás bem? Pareces tão cansado. - A Elaine estendeu a mão e afastou-me os cabelos da testa e das sobrancelhas. Os seus dedos estavam contorcidos, embora o seu toque fosse maravilhoso, e de uma grande frescura. Por breves momentos, cerrei os olhos. Quando voltei a abri-los já tinha tomad° uma decisão.

. Estou óptimo - repliquei. - Estou quase a chegar ao fim da minha escrita. Elaine, gostarias de ler uma coisa? Ofereci-lhe as páginas que tinha reunido desajeitadamente. O mais provável era terem perdido a sequência certa - de facto, o Dolan conseguira assustar-me bastante - mas uma vez que haviam sido numeradas, a Elaine poderia voltar a colocá-las facilmente na devida ordem.

Ela observou-me com ar pensativo, sem contudo aceitar o que eu lhe oferecia. Pelo menos, de momento.

- Já acabaste?

- Vais precisar da tarde toda para ler tudo o que já escrevi - disse-lhe eu. - Isto é, se fores capaz de decifrar a minha letra.

Naquele momento, ela aceitou as folhas, olhando para as páginas manuscritas.

- Tens uma letra muito cuidada, ainda que as tuas mãos estejam obviamente fatigadas - observou ela. - Não terei qualquer problema em ler o que escreveste.

- Quando tiveres acabado, já eu terei passado para o papel a parte que ainda me falta - acrescentei. - Poderás ler o resto dentro de mais ou menos trinta minutos. E então... se continuares interessada e quiseres... gostaria de te mostrar uma coisa.

- Isso terá alguma relação com o lugar onde costumas ir na maior parte das manhãs e tardes?

Acenei afirmativamente.

Elaine meditou naquilo durante o que me pareceu ser uma eternidade e depois fez um acenar de cabeça e levantou-se da cadeira com as páginas escritas na mão.

- Vou sentar-me nas traseiras - disse ela. - Esta manhã o sol está muito quente.

- E o dragão foi derrotado - retorqui. - Desta vez pela gentil dama.

A Elaine sorriu debruçou-se sobre mim e beijou-me naquele ponto sensível que me provoca sempre um arrepio de prazer.

- Esperemos que sim - redarguiu ela -, mas a minha experiência diz-me que os dragões como o Brad Dolan são muito difíceis de desaparecer. - Teve um momento de hesitação. - Boa sorte, Paul. Só espero que consigas derrotar o que quer que seja que te tem vindo a atormentar. - Também eu espero que sim - declarei eu, pensando no John Coffey. Eu não consegui impedir o mal, dissera ele. Tentei, mas já era demasiado tarde.

Comi os ovos mexidos que a Elaine me trouxera, bebi o sumo e deixei a torrada para mais tarde. Em seguida, agarre¡ de novo na caneta e recomecei a escrever, pelo que esperava viesse a ser a última vez. Uma última milha. Uma milha verde.

E se isso não resultar, agacha-te no sítio onde calculas que ele vai cair, para lhe amortecer a queda - acrescentou o Brutal.

- Credo! - exclamou o Harry numa voz murcha. - Devias.estar no mundo do espectáculo, Brute, pois consegues ter muita graça:

- Sem dúvida que tenho sentido de humor - admitiu o

Bruto e no fim, lá conseguimos levar o John pelas escadas acima. A minha maior preocupação era a probabilidade de ele vir a desmaiar,. mas tal não se verificou.

- Vai até à sala da arrecadação e vê se não está lá ninguém -disse eu ao Harry, respirando com dificuldade.

- E se não estiver, o que é que devo dizer? - perguntou o Harry, agachando-se para poder passar por baixo do meu braço. - "Ninguém à vista!" e depois dou um salto até aqui?

- Não te armes em chico-esperto - disse-lhe o Brutal. O Harry entreabriu um pouco a porta e espreitou. Fiquei com a sensação de que esteve naquela posição durante muito tempo. Por fim, afastou a cabeça para trás, apresentando uma expressão quase jovial.

-Ninguém à vista. Está tudo tranquilo.

- Esperemos que as coisas se mantenham assim - retorquiu o Brutal. - Vamos lá, John Coffey, já estás quase em casa.

Conseguiu atravessar a arrecadação pelo seu próprio pé, embora tivéssemos de o ajudar a subir os três degraus até ao meu gabinete, e depois quase o empurrássemos para que transpusesse a porta baixa. Quando voltou a pôr-se de pé, a sua respiração era estertorosa e os seus olhos tinham uma expressão vitrificada. E - reparei eu com verdadeiro horror - a parte direita da sua boca arrepanhara-se para baixo, assemelhando-se à deformidade de que a Melinda sofrera.

O Dean deu pela nossa chegada e aproximou-se vindo da mesa no outro extremo da Milha Verde.

- Graças a Deus! Pensei que nunca mais voltavam; quase julguei que tinham sido apanhados, ou que o director se havia virado contra vocês ou ainda que.. - interrompeu-se reparando no John pela primeira vez desde que se aproximara de nós. - Deus nos valha, o que é que ele tem? Parece que está a morrer!

Ele não está a morrer... pois não, John? - perguntou o Brutal. O seu olhar transmitiu uma advertência ao Dean.

Nessa madrugada, quando levámos o John Coffey de volta ao Bloco E, a maca foi uma necessidade em vez de um luxo. Duvido muito que ele houvesse sido capaz de percorrer o túnel pelo seu próprio pé; exige mais energia caminhar agachado do que a direito, e aquele tecto era diabolicamente baixo para qualquer pessoa da altura do John Coffey. Não me agradava nada a ideia de ele poder ir-se abaixo naquele lugar. Como justificaríamos nós a sua presença ali e a razão por que havíamos metido o Percy na casaca de cerimónia dos loucos, para depois o enclausurarmos na cela do isolamento?

No entanto, tínhamos a maca - graças a Deus - e o John Coffey deitou-se nela como se fosse uma baleia acabada de dar à costa, enquanto o empurrávamos pelos degraus que davam para a arrecadação. Saiu da maca a cambalear e ficou de cabeça baixa, a respirar com dificuldade. A sua pele tinha uma tonalidade tão acinzentada que dava a impressão que ele se havia rebolado por um monte de farinha. Eu estava convencido de que por volta do meio-dia já ele teria dado entrada na enfermaria... isto é, se não tivesse morrido já a essa hora.

O Brutal lançou-me um olhar acabrunhado e desesperado. Retribuí-lhe com outro parecido.

- Não somos capazes de carregar com ele para cima mas podemos ajudá-lo - disse eu. - Tu colocas-te debaixo do braço direito dele e eu do esquerdo.

- E eu? - perguntou o Harry.

- Tu vens atrás de nós e, se te parecer que ele vai tom' bar para trás, dás-lhe um empurrão para a frente.

- Claro que não, eu não quis dizer que ele estivesse realmente a morrer - corrigiu o Dean com um pequeno sorriso de nervosismo. - Mas que coisa...

- Acaba com isso - intervim eu. - Ajuda-nos a levá_lo para a cela.

Uma vez mais, não passávamos de pequenas colinas que circundavam uma montanha, só que naquele momento a montanha tinha sofrido alguns milhões de anos de erosão e estava bastante curvada e fraca. O John Coffey caminhava com lentidão, respirando através da boca como um homem de idade que fumasse em demasia, mas, pelo menos, deslocava-se pelo seu próprio pé.

- E quanto ao Percy? - perguntei. - Ele tem estado aos pinotes?

.           - Ao principio, sim - respondeu o Dean. - Tentava gritar através da fita-cola com que lhe tapaste a boca. E praguejou.

- Que Deus nos valha! - atalhou o Brutal. - Ainda foi uma boa coisa os nossos ouvidos sensíveis terem estado algures que não aqui.

- Desde então, tem-se limitado a dar um coice de mula, de vez em quando, contra a porta. - O Dean parecia tão aliviado por nos ver que quase balbuciava incoerentemente. Os óculos escorregaram-lhe para a ponta do nariz, que brilhava devido ao suor, e ele empurrou-os para cima. Passámos pela cela do Wharton. Aquele jovem sem préstimo algum encontrava-se deitado de costas, a ressonar como uma tuba. Naquela ocasião, não restava a mínima dúvida de que os seus olhos estavam fechados.

O Dean reparou em mim a olhar para o interior daquela cela e riu-se.

- Esse tipo não arranjou problemas! Desde que se deitou na tarimba que não voltou a mexer-se. Tem estado como morto para o mundo. Quanto ao Percy ter dado alguns pontapés à porta de quando em vez, isso nunca chegou a incomodar-me muito. Para vos dizer a verdade, até me senti satisfeito com isso. Se ele não fizesse barulho nenhum, teria começado a perguntar a mim mesmo se ele não teria sufocado com a mordaça. Mas isso não foi o melhor. Sabem o que é que foi o melhor? Isto por aqui tem estado tão tranquilo como uma manhã de Quarta-Feira de Cinzas em Nova Orleães! Durante a noite ninguém veio cá abaixo! - O Dean disse as últimas palavras numa voz de triunfo cheia de regozijo. - Conseguimos executar o nosso plano, rapazes! Missão cumprida! Aquilo fê-lo lembrar-se do motivo por que havíamos decidido levar a cabo toda aquela comédia, e perguntou pela Melinda.

Está óptima - respondi. Entretanto, chegáramos à cela do John. Aquilo que o Dean dissera tinha começado a penetrar nos nossos pensamentos: Conseguimos executar o nosso plano, rapazes". Missão cumprida.

- Foi como... Vocês sabem o que quero dizer... Como com o rato? - inquiriu o Dean. Lançou um "rápido olhar para a cela vazia onde o Delacroix vivera com o Mister Jingles e em seguida olhou para a cela do isolamento, a qual parecera ter sido o ponto de proveniência do rato. Baixou a voz, da mesma maneira que as pessoas costumam fazer ao entrar numa igreja espaçosa, onde até mesmo o silêncio dá a impressão de sussurrar. - Foi um... - O Dean interrompeu-se, engolindo em seco. - Uma coisa repentina. Vocês percebem o que quero dizer... assim como um milagre?

Nós os três, os que haviam estado presentes, entreolhámo-nos por breves instantes.

- O que ele fez foi arrancá-la ao raio da sepultura - disse o Harry. - Sim, podes ter a certeza de que se tratou de um autêntico milagre.

O Brutal abriu a fechadura dupla da porta da cela e deu ao John um empurrão suave para que este avançasse.

- Vamos lá a entrar, matulão. Descansa um pouco. Nós só vamos tratar do Percy...

- Ele é um homem mau - atalhou o John em voz baixa com uma entoação monocórdica.

- Isso é uma grande verdade, sem dúvida, é mau como ~ bruxo - concordou o Brutal no seu tom de voz mais tranquilizador - mas não tens de te preocupar com ele, pois não permitiremos sequer que ele se aproxime de ti. Só tens de te deitar confortavelmente na tua tarimba, e eu vou preparar num instante aquela caneca com café que te prometi. Bem quente e forte. Vais sentir-te um novo homem.

O John sentou-se pesadamente sobre a tarimba. Pensei que ele se estenderia ao comprido e se voltaria para a parede, como era hábito; contudo, limitou-se a ficar sentado, com os dedos entrelaçados de forma lassa entre os joelhos, de cabeça baixa e a respirar pela boca com dificuldade. A medalha do São Cristóvão, que a Melinda lhe oferecera, saíra da abertura do pescoço da camisa e oscilava, suspensa no ar, de um lado para o outro. "Manter-te-á em segurança", dissera-lhe ela mas o certo é que o John Coffey não parecia estar nada em segurança. Pelo contrário, dava a impressão de ter tomado o lugar da Melinda à beira da sepultura de que o Harry falara,

Todavia, naquela altura, eu não podia dedicar a minha atenção ao John Coffey. Virei-me para os outros.

- Dean, vai buscar a pistola e o bastão do Percy.

- De acordo. - Dirigiu-se para a secretária e abriu a gaveta fechada à chave onde aqueles objectos haviam sido guardados, trazendo-os para onde nos encontrávamos.

- Estão prontos? - perguntei. Os meus homens... bons homens, e eu nunca me tinha sentido tão orgulhoso deles como naquela noite... acenaram afirmativamente. O Harry e o Dean mostravam um certo nervosismo; o Brutal mantinha-se firme como sempre. - Muito bem, serei eu a conduzir a conversa. Quanto menos vocês abrirem a boca melhor, e muito mais depressa daremos este assunto por encerrado... para o melhor ou para o pior. De acordo?

Voltaram a acenar afirmativamente. Respirei fundo e encaminhei-me para o fundo da Milha, em direcção à cela do isolamento.

Quando abria porta, o Percy soergueu o olhar, piscando os olhos quando a luz incidiu sobre ele. Encontrava-se sentado no chão a lamber a fita-cola com que eu lhe tapara a boca.

A parte que eu tinha enrolado na região posterior do pescoço já se deslocara (provavelmente a transpiração e a brilhantina que ele aplicara tinham contribuído para que isso acontecesse), estando ele prestes a conseguir descolar também o resto que ainda faltava. Mais uma hora e teria começado a berrar por socorro com toda a força dos seus pulmões.

Quando entrámos, ele serviu-se dos pés para se impulsionar um pouco às arrecuas, mas deteve-se, sem dúvida ao dar-se conta de que não podia ir para lado nenhum, a não ser para o canto sudeste daquele espaço.

Retirei das mãos do Dean o seu revólver e o bastão, apontando-os na direcção do Percy.

- Queres voltar a ficar com isto? - perguntei. Ele olhou para mim com uma expressão desconfiada e assentiu com a cabeça.

- Brutal - chamei. - Harry. Ponham-no de pé. - Ambos se debruçaram agarrando-o pela lona do colete-de-forças abaixo do sovacos e levantando-o do chão. Aproximei-me dele até termos ficado quase nariz contra nariz. Às minhas narinas chegou o cheiro acre do suor que o encharcava. Este devia ter tido origem nos esforços que ele fizera para se libertar do colete-de-forças e nos ocasionais pontapés à porta que o Dean tinha ouvido; no entanto, concluí que a maior parte da sua transpiração se devia pura e simplesmente ao medo; medo daquilo que poderíamos fazer-lhe quando regressássemos.

"Não me acontecerá nada, eles não são assassinos", teria pensado o Percy... mas talvez se tivesse lembrado da Velha Faísca e que sim, de certa forma, éramos assassinos. Eu próprio tinha tratado da execução de setenta e sete, mais do que qualquer dos homens cujo peito tinha prendido com a correia, mais do que os que foram creditados ao próprio sargento York durante a Primeira Guerra Mundial. Matar o Percy não teria tido qualquer lógica, mas o certo é que já nos comportáramos de maneira ilógica, teria ele pensado enquanto estivera sentado ali, com os braços presos nas costas, a trabalhar activamente com a língua a fim de conseguir libertar a boca da fita-cola. Além do mais, o mais provável seria a lógica não ter qualquer poder sobre os pensamentos de uma pessoa, quando esta se encontra quase imobilizada no chão de uma sala com paredes almofadadas, tão bem embrulhada como uma aranha imobilizava qualquer mosca.

O que significava que, se eu não conseguisse fazer com ele o que quisesse naquele momento, jamais o conseguiria. - Agora vou tirar a fita da boca se me prometeres que não começas a berrar - disse-lhe eu. - Quero ter uma conversa contigo e não um concurso de gritos. O que é que tens a dizer a isto? Prometes ficar calado?

Vi o alívio no seu olhar quando ele compreendeu que, se eu desejava realmente conversar, ainda lhe restavam algumas hipóteses de sair daquela situação com o coiro intacto. Acenou que sim com a cabeça.

- Se começares a fazer barulho, a fita regressa à tua boca - adverti-o eu. - Estás a compreender?

Um outro acenar de cabeça, desta feita bastante impaciente. Estendia mão agarrei no extremo da fita que ele já tinha soltado e dei-lhe um vigoroso puxão, o que provocou um som estr¡dente. O Brutal retraiu-se todo. O Percy ganiu de dor e começou a esfregar os lábios. Tentou falar, mas apercebeu-se, de que era impossível fazê-lo com a mão a cobrir a boca, afastou-a.

- Tira-me deste casaco de doidos, imbecil - disse ele desabridamente.

- Num minuto - afirmei. - Agora! Agora! Já...

Dei-lhe uma bofetada em cheio na face antes mesmo de me aperceber que estava prestes a fazê-lo... mas é claro que me encontrava bem ciente de que as coisas poderiam chegar àquilo. Até mesmo durante a primeira conversa que eu tivera com o director Moores acerca do Percy, aquela em que ele me aconselhara a delegar a responsabilidade da execução do Delacroix no Percy eu soubera que a situação poderia chegar àquele ponto. A mão de um homem é como um animal que só está meio domesticado; a maior parte das vezes é boa, mas por vezes descontrola-se e morde a primeira coisa que lhe surge à frente.

O som foi o de um estrépito agudo, como o estalar de um galho ressequido. O Dean arquejou. O Percy ficou a olhar para mim profundamente chocado, com os olhos arregalados quase a saltarem-lhe das órbitas. A sua boca abriu-se e fechou-se como a de um peixe a nadar dentro de um aquário. - Cala a boca e ouve o que tenho para te dizer - ordenei eu. - Merecias ser castigado pelo que fizeste ao Del, e demos-te o que merecias. Esta foi a única forma. Todos concordámos, com excepção do Dean, mas ele está pronto a alinhar connosco, caso contrário virá a arrepender-se. Não é verdade, Dean?

- Sim - respondeu este num murmúrio. Estava pálido como a cal. - Acho que sim.

- E faremos com que te arrependas de ter nascido - acrescentei. - Iremos conseguir que as pessoas tenham conhecimento da maneira como sabotaste a execução do Delacroix...

- Sabotei!...

- ... e de como quase fizeste com que o Dean morresse. Daremos tanto à língua que te impediremos de conseguir manter qualquer emprego que o teu tio te arranje.

Entretanto, o Percy começara a sacudir violentamente a cabeça. Ele não acreditava naquilo, talvez não fosse capaz de acreditar naquilo. A marca da minha mão ficara na sua face empalidecida.

Independentemente do que possa vir a acontecer, assegurar-me-ei de que sejas espancado quase até à morte. Não é necessário sermos nós a fazê-lo. Também temos alguns conhecimentos, Percy, ou serás tão idiota que ainda não tenhas compreendido isso. Eles não se encontram sediados na capital do estado, mas isso não impede essas pessoas de saberem como legislar a respeito de determinados assuntos. São pessoas que têm amigos aqui dentro, pessoas que têm irmãos aqui, que têm pais cá dentro. Teriam todo o gosto em amputar o nariz ou o pénis de um monte de merda como tu. Estavam dispostos a fazê-lo apenas para que alguém por quem se interessam pudesse ter mais três horas por semana no pátio.

O Percy deixara de abanar a cabeça. Naquele momento, limitava-se a olhar com fixidez. Tinha os olhos marejados de lágrimas, apesar de estas não caírem. Na minha opinião eram lágrimas de raiva e de frustração. Ou talvez eu esperasse que assim fosse.

- Muito bem... Agora olha para o lado bom das coisas; Percy. Os teus lábios ardem-te um pouco por eu ter arrancado a fita adesiva, calculo eu, mas além disso não tens mais nada lesionado, se excluirmos o teu orgulho... e mais ninguém tem necessidade de saber aquilo que se passou, excepto os que se encontram presentes nesta sala neste momento. E nós nunca falaremos disto, não é verdade, rapazes?

Todos eles anuíram.

- Claro que não - asseverou o Brutal. - Os assuntos da Milha Verde permanecem na Milha Verde. Sempre assim aconteceu.

- Tu vais ser transferido para o Briar Ridge e nós deixar-te-emos em paz e sossego até que isso aconteça - acrescentei. - Tencionas deixar as coisas como estão, Percy, ou pretendes armar-te em duro connosco?

Fez-se um longo silêncio, muito longo, enquanto ele ponderava a questão... Eu quase conseguia ver as cremalheiras a engrenarem na sua cabeça, enquanto ele considerava e rejeitava possíveis contra-ofensivas. Por fim, deve ter havido uma verdade mais básica que se sobrepôs ao resto: a fita adesiva fora retirada da sua boca, mas ele continuava imobilizado no interior do colete-de-forças, e o mais certo seria ter muita vontade de mijar.

- Muito bem - anuiu ele finalmente. - Vamos considerar o assunto encerrado. Agora tirem-me de dentro desta cela. Nem sinto os ombros...

O Brutal deu alguns passos em frente, afastando-me ao passar por mim e agarrando no rosto do Percy com as suas mãos enormes - os dedos fizeram pressão sobre a bo-

checha direita do homem e o polegar deixou uma marca profunda na esquerda.

- Daqui a pouco - disse ele. - Primeiro tens de ouvir o que quero dizer-te. Aqui o Paul é o grande chefe, o que por vezes; o força a exprimir-se com uma certa elegância,

Tentei recordar-me de qualquer coisa elegante que pudesse ter dito ao Percy, mas não me recordei de nada. Ainda assim, concluí que talvez fosse preferível manter a boca fechada. O Percy parecia adequadamente aterrorizado e eu não queria estragar isso.

- As pessoas nem sempre compreendem que ser-se elegante não é o mesmo que ser-se frouxo, e é aí que eu costumo entrar em acção - continuou o Brutus. - Não me

preocupo em agir de forma elegante, limito-me a dizer directamente o que tem de ser dito. Portanto aqui vai: caso decidas faltar à tua promessa, nós vamos ser lixados. Mas depois havemos de te encontrar... nem que tenhamos de ir à Rússia, havemos de te encontrar... e seremos nós quem vai lixar-te. Vamos lixar-te até que desejes estar morto e, em seguida, esfregaremos vinagre nas partes que estiverem a sangrar. Estás a compreender?

O Percy acenou que sim. Com os dedos do Brutal a enterrarem-se-lhe nas faces macias, o Percy assemelhava-se estranhamente ao velho Pouca Terra.

Então, o Brutal largou-o e recuou. Acenei para o Harry, ele aproximou-se do Percy por trás e começou a desapertar fivelas e a desabotoar.

- Não te esqueças daquilo que acabámos de dizer, Percy - disse o Harry. - Não te esqueças e deixa que águas passadas sejam águas passadas.

Tudo aquilo era adequadamente assustador, três papões de uniformes azuis... Todavia, eu senti-me invadido por um grande desespero. Ele podia ficar calado por um dia ou uma semana, considerando as várias hipóteses, mas no fim haveria dois factores que se conjugariam: a crença nos seus conhecimentos e a incapacidade que tinha de se afastar de uma situação de onde sairia a perder. Quando isso se concretizasse deitaria tudo da boca para fora. Talvez tivéssemos ajudado a salvar a vida da Melly Moores ao levarmos o John Coffey até junto dela; e eu não teria voltado atrás ("nem por todo o chá da China", como se costumava dizer nesses tempos), mas no fim haveriamos de ir parar ao banco dos suplentes e o árbitro iria expulsar-nos do jogo. A menos que o assassinássemos, não existia maneira nenhuma de podermos obrigar o Percy a manter a sua parte da combinação, sobretudo depois de estar longe de nós e de começar a rememorar aquilo por que tinha passado. Olhei de esguelha para o Brutal e verifiquei que ele estava a pensar na mesma coisa que eu. Isso não me surpreendeu. A estupidez era coisa que não caracterizava o filho de Mrs. Howell, Brutus. Encolheu ligeiramente os ombros, mas foi o suficiente para eu compreender. E então?, dizia aquele encolher de ombros. O que mais podemos fazer, Paul? Fizemos o que tínhamos a fazer, e fizemo-lo da melhor maneira possível.

Sim. E os resultados também não tinham sido tão maus como isso.

O Harry desapertou a última fivela do colete-de-forças. Com uma expressão de desdém e raiva, o Percy deixou-o cair pelos braços indo tombar aos seus pés. Não olhava para nenhum de nós, pelo menos de frente.

- Devolvam-me a minha arma e o meu bastão - pediu ele. Entreguei-lhos. Meteu o revólver dentro do coldre, e o bastão no suporte habitual.

- Percy, se pensares sobre o assunto...

- Oh, mas isso é o que tenciono fazer - interrompeu ele, passando de raspão por mim. - Tenciono pensar muito no assunto. E vou já começar. A caminho de casa. Um de vocês poderá picar o meu cartão de ponto à hora a que o turno terminar. - Alcançou a porta da cela do isolamento e voltou-se para nos observar com uma expressão desdenhosa, onde se adivinhava constrangimento e cólera... uma combinação letal para o segredo que ainda tínhamos esperanças de conseguir manter. - A menos que, como é evidente, queiram explicar por que motivo larguei o serviço mais cedo.

Abandonou a cela e começou a percorrer a Milha Verde num passo largo, esquecendo-se, no meio de toda a agitação que o invadia, qual a razão por que o corredor central de linóleo verde era tão largo. Já cometera o mesmo erro numa ocasião anterior e safara-se sem problemas de maior. Mas, desta feita, não ia ser capaz de se desenvencilhar com tanta facilidade.

Segui-o até à porta, tentando pensar em algo que o

acalmasse - não queria que ele saísse do Bloco E daquela maneira todo suado e desalinhado, com a marca avermelhada da minha mão na sua bochecha. Os outros três seguiram os meus passos.

O que aconteceu em seguida, aconteceu com muita rapidez - e não durou mais de um minuto, talvez até menos. No' entanto, recordo-me vividamente de tudo até hoje - em grande parte porque, acho eu, contei o que sucedeu à Janice' quando cheguei a casa. Aquilo que aconteceu em seguida _ a reunião com o Curtis Anderson ao alvorecer, o inquérito, o encontro com a imprensa que o Hal Moores organizou para . nós (como é óbvio, nessa altura já ele havia reassumido as suas funções), e a comissão de inquérito que foi instituída temporariamente na capital do estado - essas coisas foram-se apagando da minha memória com a passagem dos anos, à semelhança de tantas das minhas recordações. Mas no que diz respeito ao que realmente aconteceu logo em seguida na Milha Verde, sim, disso recordo-me perfeitamente.

O Percy caminhava pelo lado direito da Milha com a cabeça baixa, e sou forçado a dizer isto: nenhum prisioneiro vulgar lhe poderia ter chegado. No entanto, o John Coffey não era um prisioneiro vulgar. O John Coffey era um homem gigantesco, pelo que o seu braço tinha um alcance de gigante. Vi os seus longos braços de pele castanha saírem disparados por entre as grades.

-Atenção, Percy atenção! - gritei-lhe. O Percy começou a voltar-se, levando a mão esquerda ao punho do bastão. Mas foi puxado com violência contra a frente da cela do John Coffey, com o lado direito do rosto a esmagar-se contra as barras de ferro.

Soltou um grunhido e voltou-se na direcção do Coffey, erguendo o bastão de nogueira. Sem dúvida que a posição do John era vulnerável em relação ao bastão o seu próprio rosto encontrava-se tão fortemente pressionado entre o espaço existente nas duas barras centrais que dava a impressão de pretender fazer passar toda a sua cabeça por aquela abertura. Claro que isso teria sido impossível, mas de facto era o que parecia estar a acontecer. A sua mão direita sondou e encontrou a nu~ ca do Percy, fechou-se à volta do pescoço deste e puxou a cabeça violentamente para a frente. O Percy desferiu um golpe com o bastão na fronte do John. O sangue começou a jorrar.

Apesar de o Coffey não ter prestado a mínima atenção a isso. A sua boca

pressionou-se contra a do Percy. Comecei a ouvir um som sussurrante - o ruído de algo a ser libertado, como o exalar de respiração há muito contida. O corpo do Percy deu um solavanco como o de um peixe preso no anzol tentando libertar-se,.mas nunca chegou a ter a mínima hipótese de fuga; a mão direita do John mantinha-se firmemente agarrada à região posterior do pescoço do Percy. Os rostos dos dois pareciam querer fundir-se como as faces de duas pessoas enamoradas que já tive a oportunidade de ver, enquanto se beijavam apaixonadamente por entre barras.

O Percy gritou, um som abafado como se houvesse sido solto através de uma mordaça, e fez outro esforço para conseguir recuar. Durante breves instantes, os lábios dos dois apartaram-se um pouco, o que me permitiu avistar o turbilhão negro que saía da boca do John Coffey e entrava na do Percy Wetmore. O que não entrava na deste através de lábios frementes, entrava pelas suas narinas. Pouco depois, a mão que apertava a nuca do Percy soltou-se um pouco, e o rosto deste foi de novo puxado na direcção da boca do John; era como se houvesse sido trespassado pelos lábios dele.

Os dedos da mão esquerda do Percy abriram-se. O seu precioso bastão de nogueira tombou sobre o linóleo verde. Ele não voltou a ter oportunidade de o apanhar do chão.

Tentei lançar-me para a frente, imagino que me lancei para a frente, mas senti os movimentos tolhidos, como teria acontecido a uma pessoa idosa. Levei a mão à arma, mas a correia continuava atravessada na posição de segurança, e inicialmente não fui capaz de a sacar do coldre. Abaixo de mim, tive a sensação de que o solo estremecia, à semelhança do que tinha acontecido no quarto da casa dos Moores. Não tenho bem a certeza mas parece-me que uma das lâmpadas do tecto se estilhaçou. Os fragmentos de vidro começaram a tombar para o chão. O Harry soltou um grito de surpresa.

Por fim, consegui soltar com o polegar a correia de segurança que atravessava a coronha da minha pistola de calibre trinta e oito, mas, antes de poder retirá-la do coldre, o John já tinha empurrado o Percy, afastando-o de si e recuando para o interior da sua cela. O John exibia um arreganho sorridente, esfregando os lábios, como se houvesse provado algo de desagradável.

O que é que ele fez? - perguntou o Brutal aos gritos. O que é que ele fez, Paul?

- Aquilo que ele extraiu do corpo da Melly encontra-se neste momento dentro do Percy - respondi.

O Percy fora arremessado contra as barras da antiga cela do Delacroix. Os seus olhos estavam arregalados e sem qualquer expressão. Aproximei-me dele com cautela, esperando que ele começasse a tossir a qualquer momento e a sufocar tal como o John fizera depois de largar a Melinda, mas isso não aconteceu. Limitou-se a ficar de pé no mesmo lugar. Fiz estalar os meus dedos em frente dos seus olhos

- Percy! Eh, Percy! Acorda!

Nada. O Brutal juntou-se a mim e aproximou as mãos do rosto apático do Percy.

- Isso não vai resultar - disse eu.

Ignorando as minhas palavras, o Brutal bateu palmas com todo o vigor, duas vezes, exactamente em frente do nariz do Percy. E de facto resultou, ou pelo menos pareceu resultar. As pálpebras do Percy estremeceram e ele olhou em volta, atordoado, como alguém que houvesse sido atingido na cabeça e que se esforçasse por recuperar a consciência. Olhou para o Brutal, e depois olhou para mim. Decorridos todos estes anos, tenho a certeza de que ele não viu nenhum de nós, mas nessa altura achei que sim; convenci-me de que ele estava prestes a despertar daquela espécie de transe.

Afastou-se das barras da cela e cambaleou um pouco. O Brutal ajudou-o a recuperar o equilíbrio.

- Calma, rapaz; estás bem? - O Percy não respondeu, passou pelo Brutal e virou-se para a secretária no corredor, o posto do guarda de serviço. Na altura não cambaleava, não se poderia dizer que o fizesse; contudo, adernava um pouco para bombordo.

O Brutal estendeu a mão para o equilibrar. Afastei-lhe o braço.

- Deixa-o sozinho. - Teria eu dito a mesma coisa se soubesse o que iria acontecer a seguir? Tenho feito essa pergunta a mim mesmo num milhar de ocasiões desde o Outono de 1932. Nunca consegui obter a resposta.

O Percy deu doze ou catorze passos e voltou a parar, sempre de cabeça baixa. Nesta altura encontrava-se do lado de fora da cela do Bill "Selvagem" Wharton. Este continuava a emitir aqueles ruídos que pareciam saídos de uma tuba de bocal largo. Tinha estado adormecido durante todos estes acontecimentos. Agora que penso no assunto, tenho de conclui que ele esteve a dormir ao longo de toda a sua morte, o que o fez ter muito mais sorte do que a maioria dos homens que acabava os seus dias ali. Certamente que foi mais afortunado do que aquilo que merecia.

Antes de compreendermos o que estava a suceder, o Percy sacou da arma, deteve-se junto das barras da cela do Wharton e disparou os seis tiros para o corpo do homem adormecido. Os disparos foram consecutivos, à velocidade a que o gatilho da arma o permitia. O som que se ouviu naquele espaço confinado foi ensurdecedor; quando narrei o ocorrido à Janice na manhã seguinte continuava a mal conseguir ouvir o som da minha própria voz, devido ao zumbido que sentia nos ouvidos.

Corremos para ele, os quatro em simultâneo. O Dean foi o primeiro a chegar - não percebo bem como, uma vez que ele se encontrava atrás do Brutal e de mim na altura em que o Coffey agarrara no Percy - mas o certo é que foi. Agarrou no pulso do Percy, preparado para retirar a arma da mão deste, mas não foi necessário fazê-lo. O Percy soltou o revólver, que foi cair no chão. Os seus olhos percorreram-nos como se fossem patins e nós fôssemos o gelo. Ouviu-se um som sibilado acompanhado de um cheiro acentuado a amoníaco quando a bexiga do Percy não se conteve, seguido de outro ruído e de um fedor ainda mais desagradável quando ele encheu também o outro lado das calças. Os seus olhos haviam-se prendido a um canto afastado do corredor. Eram uns olhos que, tanto quanto sei, nunca mais voltaram a ver nada neste mundo verdadeiro onde vivemos. Logo no início desta narrativa, eu escrevi que o Percy se encontrava no Briar Ridge, na altura em que o Brutal descobriu as lascas coloridas do carretel do Mister Jingles, o que aconteceu dois meses mais tarde, e não menti quanto a isso. No entanto, nunca chegou a tomar posse do gabinete com a ventoinha ao canto; tão-pouco teve ao seu dispor um grupo de doentes loucos, com quem pudesse fazer o que muito bem lhe apetecesse. Mas imagino que, no mínimo dos mínimos conseguiu ter um quarto só para si.

Ao fim e ao cabo o homem sempre tinha alguns conhecimentos.

O Wharton encontrava-se deitado de lado com as costas contra a parede da cela. Eu não conseguia avistar muita coisa nesse momento, para além de uma grande quantidade de sangue a empapar o lençol e a espalhar-se pelo chão de cimento; todavia, o médico legista afirmou que o Percy tinha disparado como a Annie Oakleyi. Ao recordar-me da história do Dean sobre a maneira como o Percy lançara o bastão de nogueira contra o rato, não lhe acertando por um triz, não me senti muito surpreendido. Desta vez a distância a que o alvo se encontrava tinha sido muito menor, e ele estava imóvel. Um tiro nas virilhas, um nas entranhas, um no peito e três na cabeça.

O Brutal tossia e agitava as mãos, tentando dissipar a nuvem de fumo provocada pelos disparos. Eu próprio também tossia, apesar de só então me aperceber disso.

- Fim da linha - disse o Brutal. A sua voz era calma, embora fosse impossível ignorar a expressão de pânico que se espelhava no seu olhar.

Olhei para o corredor e vi o John Coffey sentado na beira da sua tarimba. Uma vez mais, entrelaçara os dedos entre os joelhos, mas tinha a cabeça erguida e já não apresentava quaisquer vestígios do aspecto doentio que tivera antes. Acenou ligeiramente na minha direcção, tendo-me eu surpreendido a mim mesmo - tal como acontecera no dia em que lhe estendera a mão - ao retribuir-lhe aquela espécie de saudação.

- O que é que vamos fazer? - perguntou o Harry numa voz titubeaste. - Oh, meu Deus, o que é que nós vamos fazer?

- Não podemos fazer nada - retorquiu o Brutal no mesmo timbre de voz muito calmo. - Estamos fritos. Não é verdade, Paul?

Entretanto, a minha mente começara a raciocinar a toda a velocidade. Olhei para o Harry e o Dean, que me fitavam como miúdos assustados. Em seguida, olhei para o Percy, que continuava de pé com os braços flácidos e o queixo descaído. Por último, olhei para o meu velho amigo, o Brutus Howell. - Não vamos ter muitos problemas - disse eu.

Finalmente, o Percy começou a tossir. Dobrou-se sobre si mesmo com as mãos apoiadas nos joelhos, quase sem respiração. O seu rosto começou a adquirir uma tonalidade avermelhada. Abria boca, com a intenção de dizer aos outros que se mantivessem afastados, mas não cheguei a ter oportunidade de falar. O Percy emitiu um som que era um cruzamento entre o coaxar de uma rã-gigante e um vómito seco, abriu a boca e cuspiu uma nuvem negra formada por coisas rodopiastes. Era tão densa que durante alguns instantes não conseguimos destrinçar a sua cabeça.

- Que Deus nos salve - disse o Harry numa voz lacriinosa e enfraquecida.

Em seguida, aquela coisa transformou-se num branco tão radiante que se assemelhava ao sol de Janeiro a incidir sobre neve acabada de cair. Um momento mais tarde, a nuvem tinha-se dissipado. O Percy endireitou-se em movimentos lentos e voltou a exibir aquele olhar apático.

- Nós não vimos aquilo - disse o Brutal. - Pois não, Paul?

- Não. Eu não vi e tu também não. E tu, Harry, viste alguma coisa?

- Não - respondeu ele. - Dean?

- Vi o quê? - O Dean tirou os óculos do nariz e começou a limpar as lentes. Pensei que ele iria deixá-los cair das mãos, que não paravam de tremer, mas conseguiu impedir que isso acontecesse.

- "Vi o quê?", essa é boa. É o máximo. Agora prestem atenção ao vosso chefe dos escuteiros, rapazes, e vejam lá se compreendem tudo à primeira, dado que o tempo é escasso. Trata-se de uma história deveras simples. Portanto, não compliquemos as coisas.

 

Contei tudo isto à Jan por volta das onze horas dessa manhã - a manhã seguinte, estive eu prestes a escrever, mas é claro que se tratava do mesmo dia. O mais longo de toda a aninha vida sem dúvida alguma. Contei-lhe os acontecimentos nos mesmos moldes em que os descrevi aqui, terminando na maneira como o William Wharton tinha acabado os seus dias, estendido em cima da sua tarimba, com o corpo perfurado pelo chumbo do revólver do Percy Wetmore.

Não, isso não corresponde exactamente à verdade. Onde eu realmente terminei foi na substância que saiu da boca do Percy, os insectos ou o que quer que tenha sido. Era uma coisa difícil de descrever, até mesmo à nossa mulher, mas, apesar disso, lá consegui.

Enquanto eu falava, ela trouxe-me uma caneca meio cheia de café - inicialmente, as minhas mãos tremiam tanto que teria sido difícil agarrar numa caneca cheia, sem a entornar logo em seguida. Quando terminei, os tremores tinham_se acalmado um pouco, o que me levou a pensar que talvez fosse capaz de ingerir alguma comida - um ovo, talvez, ou mesmo um pouco de sopa.

- O que nos salvou foi o facto de não sermos obrigados a mentir, nenhum de nós.

- Tiveram apenas de omitir algumas coisas - comentou ela com um acenar de cabeça. - Na maior parte, coisas de somenos importância, tal como de que maneira fizeram sair da prisão um assassino e como ele curou uma mulher à beira da morte, e como enlouqueceu o Percy Wetmore só por ter... o quê? Cuspido um puré de tumor cerebral pela garganta dele abaixo?

- Não sei, Jan - disse eu. - Só sei que se continuares a falar assim, das duas uma: ou acabarás por ser tu a comer esta sopa ou terás de a dar ao cão.

- Desculpa. Mas tenho razão, não é verdade?

- Sim - admiti. - Só que conseguimos safar-nos com... - Com o quê? Não se lhe poderia chamar fuga. - Com a viagem ao campo. Nem sequer o Percy pode dizer-lhes... não teve conhecimento disso... se alguma vez conseguir recuperar.

- Se conseguir recuperar - ecoou a Janice. - Que hipóteses há de isso vir a acontecer?

Sacudi a cabeça, indicando que não fazia a mais pequena ideia. Mas isso não correspondia exactamente à verdade. Não me parecia que ele conseguisse vir a recuperar, pelo menos em 1932, nem em 1942, nem tão-pouco em 1952. Nisso eu estava absolutamente certo. O Percy Wetmore esteve internado no Briar Ridge até o hospício ter sido arrasado por um incêndio em 1944. Haviam perecido no fogo dezassete dos doentes internados, embora o Percy não se encontrasse entre eles. Em silêncio e apático - a palavra que aprendi para descrever o seu estado é catatónico - foi levado para fora por um dos gu~das antes de o fogo ter começado a lavrar na ala onde se encontrava internado. Foi transferido para outro estabelecimento hospitalar - não me recordo do nome e calculo que, seja como for, isso não tenha interesse - tendo vindo a morrer em 1965. Tanto quanto me é dado saber, a última vez que falou foi quando nos disse que poderíamos marcar o seu cartão de ponto à hora em que o turno terminaria... A menos que pertendêssemos explicar por que motivo é que ele teria largado o serviço mais cedo.

A ironia daquela situação foi nunca termos sido obrigados a dar grandes explicações. O Percy tinha enlouquecido e alvejara o William Wharton até à morte. Foi a versão que contámos, e cada palavra correspondeu à verdade. Quando o Anderson perguntou ao Brutal qual havia sido o comportamento do Percy antes do tiroteio e o Brutus respondeu com uma palavra - "Tranquilo" -, passei por um momento agonizante ao pensar que poderia desatar às gargalhadas. Porque na realidade isso era a verdade, o Percy tinha estado muito sossegado, uma vez que durante a maior parte do seu turno de trabalho tivera a boca tapada com fita adesiva, e apenas pudera articular um "huummm, huummm, huummm".

O Curtis manteve o Percy no bloco até às oito horas, e o Percy esteve calado que nem uma múmia, embora a sua atitude metesse medo. Por essa altura já o Hal Moores tinha chegado à prisão, mostrando uma expressão soturna mas competente, pronto para voltar a assumir as rédeas da situação. O Curtis Anderson não levantou qualquer objecção, soltando um suspiro de alívio que nós, presentes na altura, quase conseguimos ouvir. O homem envelhecido e assustado, completamente desnorteado, desaparecera; foi o director da penitenciária quem se aproximou do Percy, quem o agarrou pelos ombros com as suas mãos enormes e o sacudiu com todo o vigor.

- Rapaz! - gritou ele para a expressão vazia do rosto do Percy.., um rosto que já tinha começado a desfazer-se como se fosse de cera, pensei eu na altura. - Rapaz! Estás a ouvir-me? Se ouves o que te digo, fala comigo! Quero saber o que aconteceu!

Da parte do Percy não houve qualquer reacção, como é evidente. O Anderson pretendia falar com o director a sós, a fim de discutir a melhor maneira de tratar aquele assunto -  assunto deveras sensível em termos políticos - mas o Moores afastou-o pelo menos de momento, e puxou-me para a Milha. O John Coffey encontrava-se deitado sobre a tarimba, com o rosto voltado para a parede, as pernas chocantemente suspensas tal como era seu hábito. Dava a impressão de estar a dormir, o que provavelmente era verdade... mas o certo é que ele nem sempre era o que aparentava ser, tal como já havíamos descoberto.

- Aquilo que aconteceu em minha casa teve alguma coisa a ver com o que se passou aqui, depois de vocês terem re_ gressado? - perguntou o Moores em voz baixa. - Estou disposto a dar-vos toda a cobertura que me for possível, ainda que isso signifique perder o meu emprego, mas tenho de saber o que aconteceu.

Abanei a cabeça. Quando comecei a falar, também mantive a voz baixa. Nesta altura já por ali andavam cerca de uma dúzia de guardas bastante atarefados no extremo do corredor.

Um fotografava o Wharton na sua cela. O Curtis Anderson observava-o, pelo que, momentaneamente, o Brutal era o único cuja atenção se concentrava em nós dois.

- Não. Levámos o John de volta para a sua cela, tal como podes ver, e tirámos o Percy da cela do isolamento, onde o fechámos para maior segurança. Pensei que ele devia estar furioso por o termos encerrado ali, mas não, limitou-se a pedir a arma e o bastão. Não acrescentou mais nada, encaminhou-se apenas para o corredor. Então, quando se aproximou da cela do Wharton, sacou da arma e começou a disparar.

- Parece-te que o facto de ter estado fechado na cela do isolamento... teve algum efeito na sua mente?

- Não.

- Vocês colocaram-no dentro do colete-de-forças? Não. Não havia necessidade disso.

- Ele esteve tranquilo? Não se debateu? Não, não se debateu.

- Mesmo quando verificou que a vossa intenção era fechá-lo na cela do isolamento, ele não se debateu e ficou sossegado.

- Foi exactamente isso que aconteceu. - Senti uma súbita vontade de dizer mais qualquer coisa... meter na boca do Percy uma ou duas frases, mas decidi ficar calado. Quanto mais simples melhor, sabia eu. - Não houve nenhuma complicação: ele limitou-se a ir para um dos cantos e sentou-se.

- Nessa altura não trocou qualquer palavra com o Wharton?

- Não.

- Também não falou no Coffey? - Confirmei com  abanar de cabeça. - Teria o Percy planeado qualquer coisa contra o Wharton? Achas que teria qualquer agravo contra o homem?

_ É possível - respondi, baixando ainda mais o tom de voz. _ O Percy era muito descuidado em relação aos sítios por onde caminhava, Hal. Houve uma ocasião em que o arton estendeu as mãos e o agarrou contra as barras da cela, tendo-o maltratado um pouco. - Fiz uma pausa. - Pode-se mesmo dizer que não o tratou com muita suavidade.

- E nada mais? Apenas... "não o tratou com muita suavidade"?Sim, mas mesmo assim a situação não foi muito agradável para o Percy. O Wharton disse qualquer coisa em como preferiria comer o Percy em vez da irmã deste.

- Hum... - fez o Moores, olhando de esguelha para o John Coffey, como se sentisse necessidade de se certificar constantemente de que este era uma pessoa, e não fruto da sua imaginação. - Isso não explica o que lhe aconteceu, mas até certo ponto justifica, porque foi contra o Wharton que ele se voltou, e não contra o Coffey ou um dos teus homens. E, falando dos teus homens, Paul, será que eles contarão a mesma história?

- Sim - asseverei. - E vão contar - disse eu à Jan, começando a comer a sopa que ela trouxera para a mesa. - Certificar-me-ei de que assim seja.

- Mas é inegável que mentiste - retorquiu ela. - Mentiste ao Hal.

Ora bem, o que é que se esperaria da nossa mulher, não é verdade? Sempre à procura das nossas facetas mais fracas e encontrando sempre uma.

- Calculo que sim, se virmos o assunto por essa perspectiva. No entanto, não lhe contei nada com que ambos não possamos viver. Está tudo às claras, acho eu. Ao fim e ao cabo, ele nem sequer se encontrava presente. Estava em casa a tratar da mulher até que o Curtis lhe telefonou.

- Ele disse alguma coisa quanto ao estado de saúde da Melinda?

- Nessa altura, não. Não havia tempo, mas voltámos a falar quando o Brutal e eu nos preparávamos para sair. A Melinda não se recorda de grande coisa, mas sente-se óptima. Já não está na cama e anda por todo o lado. Já fala das flores que vai plantar nos canteiros no ano que vem.

A minha mulher ficou a olhar para mim durante algum tempo.

- O Hal sabe que se tratou de um milagre, Paul? - perbuntou. - Ele compreende isso?

- Sim. Todos nós compreendemos. Todos os que estivemos presentes.

- Parte de mim deseja poder ter estado lá - acrescentou a Janice. - No entanto, a outra parte sente-se satisfeita por não ter assistido. Se eu tivesse visto aquelas escamas a saírem dos olhos de Saul, na estrada para Damasco, provavelmente teria morrido de um ataque cardíaco.

- Não - contradisse eu, inclinando a tigela para meter na colher o que ainda restava da sopa -, o mais certo teria sido preparares-lhe uma sopa. Esta está óptima, minha querida.

- Ainda bem. - Mas na realidade não era na sopa que ela pensava, nem em cozinhar nem tão-pouco na conversão de Saul na estrada para Damasco. A Janice olhava pela janela na direcção das cumeeiras, com o queixo apoiado na palma da mão e os olhos tão toldados como aqueles cumes costumavam estar nas manhãs de Verão, nos dias em que fazia calor. Nas manhãs de Verão como aquela em que as garotas dos Detterick haviam sido encontradas, pensei eu sem qualquer razão aparente. Perguntei a mim mesmo por que motivo é que elas não teriam gritado.

O assassino tinha-as magoado; havia sangue nos degraus e no chão do alpendre. Por conseguinte, porque é que elas não teriam começado a gritar?

- Pensas que foi o John Coffey quem matou esse homem, o Wharton, não é verdade? - perguntou a Janice, desviando finalmente o olhar da janela. - Não estás convencido de que foi um acidente ou algo semelhante; acreditas que ele se serviu do Percy Wetmore para aniquilar o Wharton.

- Sim - concordei. Porquê?

- Não sei.

- Conta-me outra vez o que sucedeu quando tiraste o John Coffey da Milha, de acordo? Só essa parte.

Acedi ao seu pedido. Descrevi-lhe como é que o braço magro que saiu disparado por entre as barras de ferro, para pousar no bícepe do John, me dera a impressão de ser uma serpente - daquelas de água de que todos tínhamos medo quando éramos miúdos e íamos nadar para o rio - e a forma como o Coffey dissera que o Wharton era um homem mau.

Falei quase num murmúrio.

- E o Wharton disse o quê? - A minha mulher voltara a olhar através da janela, embora estivesse a prestar-me atenção: O Wharton disse: "É verdade, negro, tão mau quanto possas imaginar.

E foi tudo?

- Sim. Tive a sensação de que estava prestes a acontecer qualquer coisa, mas tal não sucedeu. O Brutal tirou a mão do Wharton do braço do John, e mandou-o deitar-se. Ele tinha-se levantado da tarimba. Acrescentou qualquer coisa acerca de como os negros deveriam ter a sua própria cadeira eléctrica, e mais nada. E nós continuámos o que estávamos a fazer.

- O John Coffey chamou-lhe um homem mau.

- Sim. Também já tinha dito o mesmo numa ocasião, referindo-se ao Percy. Talvez o tenha dito mais de uma vez. Não consigo recordar-me com exactidão quando é que isso foi, mas sei que o disse.

- No entanto, o Wharton nunca fizera nada ao John Coffey, pois não? Quero dizer, tal como fez ao Percy.

- Não. A localização das celas dos dois... A do Wharton ficava próximo da secretária do corredor, de um lado, enquanto a do John se situava bastante mais abaixo, no lado oposto. Mal conseguiam ver-se.

- Descreve-me outra vez o aspecto do John Coffey quando o Wharton lhe agarrou no braço.

- Janice, esta conversa não está a levar-nos a lado nenhum - disse eu à minha mulher.

- Talvez não, mas por outro lado é possível que sim. Descreve-me outra vez qual era o aspecto dele.

- Acho que posso dizer que ficou chocado - repliquei depois de suspirar. - Ficou ofegante. Tal como aconteceria se tu estivesses estendida na praia ao sol, e eu me aproximasse sorrateiramente e deitasse água fria nas tuas costas. Ou como se tivesse sido esbofeteado.

- Bem com certeza - retorquiu a Janice. - O facto de ter sido agarrado dessa maneira, sem estar a contar com isso, sobressaltou-o, despertou-o por alguns segundos.

- Sim - concordei, para logo depois me contradizer. - Não.

- Em que é que ficamos? Sim ou não?

-Não. Não se pode dizer que tenha ficado sobressaltado foi mais como quando ele quis que eu fosse à sua cela, ~ poder curar a minha infecção. Ou como quando me pediu para lhe entregar o rato. Ele sentiu-se surpreendido, mas não por alguém lhe ter tocado inesperadamente... não foi isso exactamente o que sucedeu... oh, bolas. Jan, não sei.

- De acordo, ponhamos o assunto de parte - disse ela. _ Mas não sou capaz de imaginar o que é que teria levado o John a fazer isso. Não se pode dizer que ele seja, por natureza, um homem violento. O que nos leva a outra questão. paul: como é que poderás executá-lo se tiveres razão quanto à morte das garotas? Como é que terás coragem de o sentar na cadeira eléctrica se foi outra pessoa que...

Agitei-me na cadeira, sentindo um certo mal-estar. O meu cotovelo bateu na tigela e esta tombou para o chão, onde se estilhaçou. Tivera uma ideia. Naquela fase, era mais uma in tuição do que um pensamento lógico e não deixava de ter uma certa elegância sombria.

- Paul? - perguntou a Janice, alarmada. - O que é que se passa?

- Ainda não sei - respondi. - Não tenho a certeza de nada, mas, se possível, tenciono vir a ter.

 

O rescaldo do tiroteio transformou-se num circo de três arenas, com o governador numa delas, a penitenciária na outra, e o pobre Percy Wetmore, com o juízo avariado, na terceira. E quem era o apresentador do circo? Pois bem, os diversos cavalheiros da imprensa ocuparam-se dessa função, à vez. Não eram tão maus como os seus colegas de hoje - não se permitiam comportar-se de forma tão má - mas até mesmo nessa época, antes do advento dos grandes apresentadores da televisão, eram capazes de galopar bastante bem, sempre que sentiam realmente o freio nos dentes. Foi isso que aconteceu naquela ocasião e, enquanto durou, o espectáculo foi bastante bom.

No entanto, até mesmo o circo mais animado, aquele com as aberrações mais aterradoras, com os palhaços mais divertidos ou os animais mais selvagens, é forçado a abandonar a cidade. Este desmontou a tenda depois da comissão de inquérito, que parece muito especial e assustadora, mas que na realidade veio a provar ser bastante inofensiva e negligente. Sem dúvida que noutras circunstâncias o governador teria exigido a cabeça de alguém numa bandeja, mas não daquela vez. O seu sobrinho por afinidade - do mesmo sangue da mulher - ficara desarranjado do juízo e decidira matar um homem. Havia pois um assassino - do mal o menos, podia-se dar graças a Deus por isso - mas tal não invalidava o facto de o Percy ter abatido um homem quando este se encontrava a dormir na cela, o que não era um gesto muito bonito. Quando se acrescentava o facto de o jovem em questão ter continuado tão demente como uma cadela com cio, poderia compreender-se a razão por que o governador desejava pôr uma pedra sobre aquele assunto, o mais rapidamente possível.

A nossa jornada até casa do director Moores, na pequena camioneta do Harry Terwilliger, nunca chegou a vir à baila. O facto de o Percy ter sido metido no colete-de-forças e encarcerado na cela do isolamento, durante o período de tempo em que estivemos ausentes, também nunca veio a lume. O pormenor de o William Wharton estar drogado até à inconsciência, na altura em que o Percy o abateu, também nunca chegou a ser mencionado. E porque haveria de ser? As autoridades não tinham a mais pequena suspeita da existência de qualquer coisa no organismo do Wharton, para além de meia dúzia de balázios. O médico legista procedeu à extracção destas, o cangalheiro instalou-o dentro de um caixão de pinho, e aquele foi o fim de um homem que tinha uma tatuagem num antebraço onde se lia "Billy the Kid". Poder-se-ia dizer: "Que bons ventos o levem!"

No cômputo geral, aquela confusão durou cerca de duas semanas. Durante esse período, eu nem me atrevi a dar um peido quanto mais tirar um dia de licença para poder investigar a ideia que me ocorrera à mesa da minha cozinha, na manhã seguinte a toda aquela confusão. Tinha a certeza de que o circo já havia abandonado a cidade quando fui trabalhar um dia antes da segunda quinzena de Novembro - parece-me que foi a doze mas não estou muito seguro quanto a essa data. Foi nesse dia que encontrei a folha de papel, que tanto receava, sobre a minha secretária: a ordem de execução do John Coffey. Fora o Curtis Anderson quem a tinha assinado, e não o Hal Moores, mas, como é evidente, isso não a tornava menos oficial, e devia ter passado pelas mãos do Hal antes de me ser entregue. Eu imaginava-o sentado à sua secretária nos serviços administrativos, com aquela folha de papel na mão, a pensar na mulher, a qual se transformara na última das sete maravilhas para os médicos do Hospital Geral de Indianola, A Melinda já tinha recebido os documentos relativos à sua própria execução das mãos desses mesmos médicos; todavia, o John Coffey tinha-os rasgado. Mas agora, ironicamente chegara a vez do próprio John Coffey percorrer a Milha Verde, e quem de entre nós poderia impedir que isso viesse a acontecer?

A data inscrita na sentença de morte era o dia 20 de Novembro. Três dias depois de eu a ter recebido - estou em crer que foi no dia 15 - pedi à Janice que telefonasse a informar que eu me encontrava doente. Uma caneca de café mais tarde, rolava .eu pela estrada que seguia para norte, ao volante do meu Ford com a suspensão em mau estado, mas que nos outros pormenores era de toda a confiança. A Janice despedira-se de mim com um beijo, desejando-me boa sorte; eu tinha-lhe agradecido, embora já não formasse uma ideia clara daquilo que poderia ser considerado boa sorte - descobrir ou não o que me propusera encontrar. Tudo o que eu sabia era que não me apetecia muito cantar enquanto conduzia. Sobretudo naquele dia.

Por volta das três dessa mesma tarde, já eu me encontrava em terras montanhosas. Cheguei ao tribunal de Purdom exactamente antes do encerramento das suas portas, examinei alguns registos, e depois recebia visita do xerife, que entretanto fora informado pelo funcionário do tribunal de que havia um estranho a bisbilhotar os segredos locais. O xerife Catlet pretendia saber o que é que eu pensava que estava a fazer. Eu expliquei-lhe. O Catlet pensou no assunto por alguns momentos e então disse-me uma coisa interessante. Disse que negaria ter dito uma só palavra se eu repetisse alguma coisa a alguém. Não foi uma informação conclusiva, mas sem dúvida era alguma coisa. Durante todo o caminho até casa fui a pensar naquilo; naquela noite tive muito em que pensar, e as preciosas horas de sono no meu lado da cama foram bastante escassas.

Na manhã seguinte, levantei-me ainda o Sol não passava de uma ameaça a oriente, e fui de carro até ao município de Trapingus. Passei ao largo do Homer Cribus, aquela enorme saca de entranhas e fluidos preferindo falar com o assistente do xerife, o Rob McGee. O McGee não quis ouvir o que eu lhe dizia. Com toda a veemência, o homem deu-me a entender que não queria ouvir o que eu tinha para lhe dizer. A certa altura fiquei quase com a certeza de que ele me esmurraria em cheio na boca, para que pudesse parar de me ouvir, mas no fim acabou por concordar em ir até casa do Klaus Detterick a fim de lhe fazer umas perguntas. Na minha opinião, fê-lo para ter a certeza de que não seria eu a tomar aquela iniciativa.

- Ele só tem trinta e nove anos, mas parece um velho - comentou o McGee -, e não precisa que um guarda de prisão armado em checo esperto e em detective o venha arreliar, agora que algum do desgosto que sofreu já começou a abrandar. Você vai deixar-se ficar aqui, na cidade. Não o quero ver à distância de um grito da quinta dos Detterick, mas quero ter a certeza de que poderei encontrá-lo quando acabar de conversar com o Klaus. Se por acaso começar a sentir-se desassossegado, vá até ao restaurante e coma uma fatia de parte de maçã. Isso há-de acalmá-lo. - Acabei por comer duas fatias e o resultado foi sentir o estômago bastante pesado.

Quando o McGee chegou ao restaurante e se sentou ao balcão junto de mim, tentei ler alguma coisa na sua expressão, mas não consegui.

- Então?... - perguntei.

- Venha comigo até minha casa. É melhor falarmos lá - replicou ele. - Este lugar é demasiado público para o meu gosto.

Encetámos a nossa conversa no alpendre da casa do Rob McGee. Ambos estávamos bem agasalhados, embora sentíssemos frio, mas acontece que Mrs. McGee não permitia que se fumasse em parte alguma no interior da casa. Era uma mulher muito progressiva para a sua época. O McGee falou durante algum tempo com a atitude de um homem a quem não agradava nada o que ouvia da sua própria boca.

- Você compreende que isto não vem provar absolutamente nada não é verdade? - perguntou ele quando já me dissera quase tudo o que tivera a dizer. Na sua voz adivinhava-se uma certa beligerância, e enquanto falava espetou o cigarro enrolado à mão na minha direcção com agressividade, apesar de o seu rosto deixar transparecer náusea. Nem todas as provas apresentadas num tribunal são aquilo que se ouve e vê, ambos sabíamos isso. Fiquei com a sensação de que aquela fora a única vez em toda a sua vida que o assistente de xerife, McGee, desejara ser tão imbecil quanto o seu próprio chefe.

- Eu sei - repliquei.

- E se está a pensar em conseguir arranjar-lhe um novo julgamento, só com base nesta única coisa, é melhor reconsiderar, senor. O John Coffey é um negro e no município de Trapingus nós somos muito esquisitos quanto a concedermos novos julgamentos à gente de raça negra.

- Também estou a par desse aspecto.

- Por conseguinte, o que é que tenciona fazer? Lancei o meu cigarro para a rua por cima do corrimão do alpendre. Em seguida, levantei-me da cadeira. Era um longo percurso de regresso a casa, e quanto mais cedo eu partisse, mais cedo chegaria ao fim da minha viagem.

- Quem me dera saber, assistente McGee - retorqui -, mas o certo é que não sei. A única coisa de que tenho a certeza esta noite é que a segunda fatia de tarde foi um erro.

- Deixe-me dizer-lhe uma coisa, seu vivaço... - Continuava a expressar-se num tom de beligerância. - Não me parece que, em primeiro lugar, você devesse ter aberto a caixa de Pandora.

- Não fui eu quem a abriu - redargui, e iniciei a viagem de regresso a casa.

Quando cheguei já era tarde - passava da meia-noite. Contudo, a minha mulher esperava por mim a pé. Tinha desconfiado de que ela o faria, mas mesmo assim o facto de a ver a pé fez-me bem ao coração, assim como os seus braços à volta do meu pescoço, o corpo suave e firme contra o meu.

- Olá, forasteiro - saudou ela, tocando-me nas partes baixas. - Não há nada de errado com este fulano, pois não? Está tão saudável quanto possível.

- Sim, minha senhora - respondi-lhe, erguendo-a nos meus braços. Levei-a para o quarto e fizemos amor, tão doce como o açúcar, e quando eu estava prestes a atingir o meu clímax, esse sentimento delicioso de álgo que me abandonava e que eu deixava ir, pensei nos olhos infinitamente lacrimejantes do John Coffey. E na Melinda Moores a dizer: Sonhei que andavas perdido na escuridão, tal como eu.

Continuando estendido em cima da minha mulher, com os braços dela em redor do meu pescoço e com as nossas coxas entrelaçadas, comecei a chorar.

- Paul! - exclamou ela, chocada e assustada. Não me parece que tenha visto lágrimas nos meus olhos em mais do que meia dúzia de ocasiões ao longo de todo o nosso casamento. Nunca fui, em circunstâncias normais, um homem dado a grandes choros. - Paul, o que é que se passa?

. Já sei tudo o que havia a saber - repliquei por entre as lágrimas. - Se queres saber a verdade, sei de mais. Devo electrocutar o John Coffey em menos de uma semana, embora tenha sido o William Wharton quem assassinou as garotas dos Detterick. Foi o Bill Selvagem.

 

No dia seguinte, o mesmo grupo de guardas prisionais que havia almoçado na minha cozinha, depois da execução do Delacroix que tão mal tinha corrido, voltou a almoçar em minha casa. Desta vez encontrava-se presente um quinto no nosso conselho de guerra: a minha mulher. Foi ela quem me convenceu a contar aos outros; o meu primeiro impulso tinha sido não lhes dizer nada. Não era já suficientemente mau, perguntei à Janice, nós sabermos?

- Não estás a pensar com clareza - respondera-me ela. - Provavelmente, porque continuas bastante perturbado. Eles já têm conhecimento do aspecto mais grave: que o John Coffey foi acusado de um crime que não cometeu. Pelo menos, este esclarecimento servirá para melhorar um pouco a situação.

Eu não estava bem seguro disso; no entanto, cedi. Esperava uma grande agitação quando contasse ao Brutal, ao Harry e ao Dean aquilo que descobrira (não podia prová-lo, mas tinha a certeza); porém, inicialmente fez-se apenas um silêncio, durante o qual todos estiveram pensativos. Pouco depois, servindo-se de um dos pãezinhos feitos pela Janice, e começando a barrá-lo com uma ultrajante quantidade de manteiga, o Dean tomou a palavra.

- Achas que o John o viu a cometer o crime? Que viu o Wharton a deixar cair as garotas, se calhar até a violá-las? - Calculo que, se ele tivesse presenciado isso, teria tentado impedi-lo - respondi. - Quanto a ter visto o Wharton, suponho que isso seja possível, talvez quando ele começou a fugir.., Mas se foi esse o caso, mais tarde acabou por se esquecer.

- Claro - aquiesceu o Dean. - Ele é um homem muito especial, mas esse factor não o torna particularmente inteligente. Só veio a descobrir que tinha sido o Wharton, quando este estendeu o braço por entre as barras da sua cela para lhe tocar.

O Brutal concordou com um acenar de cabeça.

- Foi por isso que o John se mostrou tão surpreendido", tão chocado. Recordam-se da forma como os seus olhos se arregalaram?

- Ele serviu-se do Percy para abater o Wharton - intervim com um acenar de cabeça -, como se este fosse uma arma, como disse a Janice, e foi isso que não lhe saiu da cabeça. Por que motivo é que o John Coffey havia de querer matar o Bill Selvagem? O Percy, sim... foi ele quem espezinhou o rato do Delacroix mesmo à nossa frente, foi o Percy quem queimou o Delacroix ainda em vida, como o John sabia, mas o Wharton? Este causou problemas a todos nós, de uma maneira ou de outra, mas nunca se meteu pessoalmente com o John. Tanto quanto sei, disse-lhe uma dezena de palavras durante o tempo em que estiveram na Milha, e metade delas foram ditas nessa última noite. Porque é que ele haveria de querer fazer uma coisa dessas? Era oriundo do município de Purdom e nessa região os brancos não dão pela presença de um negro, a menos que este, por mero acaso, apareça na rua deles. Portanto, o que é que o levou a fazer aquilo? O que é que ele poderia ter sentido ou visto de tão grave quando o Wharton lhe tocou que guardou em si o veneno que extraiu do corpo da Melinda?

- E quase se matou devido a essa atitude - atalhou o Brutal.

- É verdade. As gémeas Detterick foram a única justificação que me ocorreu para explicar o seu acto. Disse a mim mesmo que essa ideia era um autêntico disparate, uma coincidência demasiado grande, que era impossível. Mas foi então que me recordei de algo que o Curtis Anderson tinha escrito no primeiro memorando que recebi sobre o Wharton... Que este era completamente louco, e que tinha vagueado por todo o estado antes do assalto em que matou toda aquela gente. "Tinha vagueado por todo o estado." Isso ficou-me gravado na mente. Além do mais, havia ainda a maneira como ele tentara sufocar o Dean quando chegou ao bloco. Foi isso que me levou a pensar no...

- No cão - completou o Dean. Esfregava o pescoço na região onde o Wharton tinha enrolado a corrente. Não me parece que ele tivesse consciência do que estava a fazer.

A forma como o pescoço do cão foi fracturado.

- Seja como for, decidi ir até ao município de Purdom examinar os registos do tribunal referentes ao Wharton... Tudo o que tínhamos aqui eram os relatórios sobre os assassínios que o trouxeram para a Milha Verde. Por outras palavras, fim da sua carreira criminal. O que eu desejava era o princípio de muitos problemas? - perguntou o Brutal.

- Efectivamente. Vandalismo e pequenos furtos; lançou fogo a montes de feno e até o furto de um explosivo... Ele e um amigo roubaram uma barra de dinamite e fizeram-na explodir na margem de um riacho. Não há dúvida de que ele começou cedo, apenas com dez anos de idade; contudo, o que eu queria saber não se encontrava nessa documentação. Foi então que apareceu o xerife, para saber o que é que eu estava a fazer ali, e isso foi uma sorte. Contei-lhe uma aldrabice, dizendo-lhe que uma busca revelara uma grande quantidade de fotografias escondidas debaixo do colchão do Wharton... fotografias de garotinhas nuas. Acrescentei que pretendia saber se o Wharton tinha algum historial como pederasta, porque ouvira falar de uns dois casos por resolver no Tennessee. Tive o cuidado de não mencionar as gémeas Detterick. Tenho a impressão de que esse assunto também nunca lhe ocorreu.

- É claro que não - corroborou o Harry. - Porque é que ele se haveria de ter lembrado desse caso? Ao fim e ao cabo, acabou por ser resolvido.

- Eu disse-lhe que calculava que não faria qualquer sentido ir atrás dessa ideia, uma vez que não existia nada a esse respeito no cadastro do Wharton. Quero dizer, havia muita coisa nos registos, mas nada que se relacionasse com esse género de coisa. Então o xerife... Catlet, é como ele se chama... riu-se e disse que nem toda a gente era tão má rês como o "Bill" Wharton e que tudo o que ele fizera estava registado na documentação do tribunal. Perguntou-me que interesse é que isso poderia ter agora? Ele estava morto, não era?

"Justifiquei-me, dizendo-lhe que procedia àquelas investigações apenas com o propósito de satisfazer a minha curiosidade e nada mais, e isso descontraiu-o um pouco. Levou-me para o seu gabinete, convidou-me a sentar, ofereceu-me uma caneca de café e um donut, e contou-me que havia dezasseis meses, quando o Wharton acabara de fazer os dezoito anos, fora apanhado por um homem a oeste do condado no celeiro com a filha. Não se tratou exactamente de um caso de violação; o tipo descreveu o acontecimento ao Catlet como "não muito mais do que um dedo enfiado na coisa". Descul pa a vulgaridade, querida.

- Não tem importância - disse Janice. No entanto, tinhas faces empalidecidas.

- Que idade tinha a rapariga? - inquiriu o Brutal. - Nove anos - respondi.

Ele retraiu-se.

- O próprio homem poderia ter-se encarregado do Whar_ ton, se tivesse irmãos mais velhos ou primos que lhe dessem uma ajuda, mas não era esse o caso. Por isso, decidiu ir falar com o Catlet e deixou bem claro que só pretendia que o Wharton fosse advertido. Ninguém deseja que um assunto de uma natureza tão desagradável como aquela viesse a ser do domínio público. Seja como for, há muito que o xerife Catlet tratava das travessuras do Wharton... Mandara-o para uma instituição correccional durante mais ou menos oito meses quando tinha quinze anos... e decidira que aquilo já estava a passar das marcas. Reuniu três assistentes, foram até casa do Wharton, afastaram Mrs. Wharton quando esta começou a choramingar e a lamentar-se, e disseram ao William Billy "the Kid" Wharton o que costumava acontecer aos matulões desastrados, com borbulhas na cara, que tinham por hábito subir até ao sótão com feno dos celeiros com rapariguinhas que ainda não tinham idade suficiente para terem ouvido falar das suas regras mensais, quanto mais terem idade para ser menstruadas. "Demos um bom aviso a esse pequeno arruaceiro", disse-me o Catlet. "Advertimo-lo até ele ter começado a sangrar da cabeça, deslocado uma omoplata e ficado com o traseiro quase em carne viva."

Embora houvesse tentado conter-se, o Brutal desatou às gargalhadas.

- Isso é mesmo típico do município de Purdom - disse ele. - Sem tirar nem pôr.

- Foi mais ou menos três meses depois disso que ° Wharton deu início às suas escapadelas violentas que culminaram no assalto - acrescentei. - Nisso e nos assassínios que o trouxeram até nós.

- Portanto, isso significa que ele já se tinha metido com uma menor, pelo menos numa ocasião - interveio o Harry. Tirou os óculos do nariz, lançou bafo para as lentes e come' çou a limpá-las. - De muito menor idade. Mas uma vez não pode ser considerado um padrão de comportamento, não é verdade?

Um homem não se limita a fazer uma coisa dessas apenas numa ocasião - atalhou a minha mulher, cerrando os lábios com tanta força que dava a impressão que estes lhe tinham desaparecido do rosto.

Em seguida, descrevi-lhes a minha visita ao município de Trapingus. Eu fora bastante mais franco com o Rob McGee... Com efeito,. não me restara alternativa. Até hoje não faço a mínima ideia da espécie de história que ele magicou para contar a Mister Detterick, mas a realidade é que o McGee que se sentou ao meu lado ao balcão do restaurante parecia ter envelhecido uns sete anos.

Em meados de Maio, aproximadamente um mês antes do assalto e dos homicídios que puseram cobro à curta carreira criminal do Wharton, o Klaus Detterick pintou o celeiro (e, diga-se a título de curiosidade, também a casota do Bowser, que lhe ficava adjacente). Não quisera que o filho trepasse para os andaimes e, em qualquer dos casos, o rapaz frequentava a escola nessa altura, pelo que decidiu contratar um sujeito que lhe fizesse esse trabalho. Um fulano simpático. Muito sossegado. A tarefa levara três dias a completar. Não, o sujeito não pernoitara na casa, o Detterick não era irresponsável ao ponto de acreditar que um sujeito simpático e sossegado significasse ser de confiança, especialmente nesses tempos em que havia tanta escumalha desempregada a vaguear por todas as estradas do estado. Um homem que tivesse família deveria ter todos os cuidados. Em qualquer dos casos, o homem não necessitara de alojamento; disse ao Detterick que alugara um quarto na cidade, no estabelecimento da Eva Price. De facto, havia uma senhora de nome Eva Price em Tefton, e efectivamente ela alugava quartos; contudo, nesse mês de Maio não teve um hóspede que se ajustasse à descrição que o Detterick fez do homem que contratara; em sua casa encontravam-se alojados apenas os indivíduos habituais de chapéus moles e fatos aos quadrados, acompanhados das suas malas de amostras... por outras palavras, os caixeiros-viajantes. O McGee pôde contar-me isso porque fora até casa de Mrs. Price ao voltar da quinta do Detterick, a fim de confirmar o que~este lhe dissera, o que mostra até que ponto é que ficara perturbado.

- Ainda assim - acrescentou ele -, não existe qualquer lei que impeça um homem de dormir ao relento no bosque, Mister Edgecombe. Eu próprio já fiz isso numa ou duas ocasiões.

O homem contratado não tinha pernoitado em casa dos Detterick, embora houvesse jantado duas vezes com a família. Teria tido oportunidade de conhecer o Howie e as duas garotas, a Cora e a Kathe. Teria tido ocasião de ouvir as suas tagarelices, o quanto ambas se sentiam ansiosas pela chegada do Verão, porque caso se portassem bem e as noites estivessem quentes, a mãe por vezes deixava-as dormir no alpendre onde poderiam fingir que eram mulheres dos colonizadores a atravessar as grandes planícies em carroças Conestoga,

- Eu estou a imaginá-lo sentado à mesa, a comer galinha assada com o pão de centeio feito por Mistress Detterick, ouvindo atentamente com os seus olhos de lobo bem velados, acenando com a cabeça e sorrindo um pouco, enquanto ia armazenando todas aquelas informações.

- Essa descrição não se ajusta nada ao homem selvático de que me falaste, quando ele chegou à Milha, Paul - interveio a Janice com uma expressão de dúvida. - Nem um pouco.

- Está a dizer isso porque não teve oportunidade de o ver no hospital de Indianola, minha senhora - atalhou o Harry. - Ali de pé com a boca aberta e o traseiro a ver-se pela abertura da bata do hospital. Permitindo que o vestíssemos. Pensámos que ou ele estava drogrado ou era apatetado. Não éverdade, Dean?

Este acenou afirmativamente.

- No dia em que acabou de pintar o celeiro e deixou a quinta, um homem com o rosto coberto por um lenço assaltou os escritórios dos Transportes Hampey, situados em Jarvis - continuei. - Conseguiu fugir com setenta dólares. Também se apoderou de um dólar de prata de mil oitocentos e noventa e dois, que a empresa de transportes guardava como uma espécie de amuleto da sorte. Esse dólar de prata foi encontrado na posse do Wharton quando ele foi capturado, e Jarvis fica apenas a quarenta e oito quilómetros de Teflon.

- Por conseguinte, este assaltante... este homem selvático... achas que ele esteve três dias na quinta do Klaus Deste• rick para o ajudar a pintar o celeiro - disse a minha mulher.

Jantou na companhia da família e disse "por favor, passem-me as ervilhas", como qualquer pessoa normal.

- O mais assustador nos homens da laia dele é a maneira de ser absolutamente imprevisível - comentou o Brutal.

É possível que ele tivesse planeado atacar a casa dos Detterick para os chacinar, e depois mudar de ideias, porque uma nuvem ocultou o Sol na altura inoportuna, ou algo de semelhante. Talvez pretendesse apenas manter-se um pouco fora das vistas. Contudo, o mais plausível seria ele já ter as duas garotas debaixo de olho e tencionar regressar à quinta. Não te parece que tenha sido assim, Paul?

Acenei que sim. Claro que era essa a minha opinião. - E temos ainda o nome com que ele se identificou perante o Detterick.

- De que nome é que estás a falar? - pergumtou a Janice. ,_.-- Willy Bonney.

Bonney?... Não estou a...

Era o nome verdadeiro do Billy the Kid.

- Oh! - Os olhos dela arregalaram-se ao ouvir aquilo. - Oh! Portanto, isso quer dizer que poderás salvar o John Coffey! Graças a Deus! Só precisas de mostrar a Mister Detterick uma fotografia do William Wharton... Isso deve ser o suficiente...

O Brutal e eu trocámos um olhar constrangido. O Dean mostrava uma expressão um tanto esperançosa, mas o Harry não despregava o olhar das mãos que tinha no colo, como se, de repente, tivesse desenvolvido um enormíssimo fascínio pelas suas próprias unhas.

- O que é que se passa? - perguntou a Janice. - Porque é que estão a olhar uns para os outros dessa maneira? Com certeza que esse homem, o McGee terá de...

- O Rob McGee pareceu-me ser um homem de bem, e estou em crer que é um excelente polícia - disse eu. - No entanto, não tem qualquer peso no município de Trapingus. Quem detém o poder por aquelas paragens é o xerife Cribus, e o dia em que ele decidir reabrir o caso do Detterick com base naquilo que eu descobri será o dia em que começará a nevar no inferno.

- Mas... se o Wharton esteve lá... se o Detterick tem possibilidades de o identificar por uma fotografia, e se eles souberem que ele esteve presente...

- O facto de ele poder lá ter estado em Maio não significa, necessariamente, que tenha regressado em Junho para matar as duas garotinhas - argumentou o Brutal. Falava num timbre de voz baixo e suave, tal como quando se costuma anunciar a morte de um familiar. - Por um lado, temos esse fulano que ajudou o Klaus Detterick a pintar o celeiro e que depois se foi embora. Veio a descobrir-se que andava a cometer crimes por tudo quanto era lugar. Todavia, não existe nada contra o homem que durante os três dias, em Maio, andou pelos arrabaldes de Tefton. Por outro lado, temos esse negro enorme, de facto, esse negro gigantesco que foi encontrado na margem do rio, tendo nos braços duas meninas mortas completamente nuas.

Brutus abanou a cabeça.

- O Paul tem toda a razão, Jan. O McGee poderá ter as suas dúvidas, mas o que ele pensa não é importante. O Cribus é o único com poderes para reabrir o caso, mas não deseja interferir com aquilo que está convencido ter sido um fim feliz... "Foi um negro", pensará ele, "e não, seja como for, um dos nossos. Esplêndido. Irei até Cold Mountain, como um bom bife acompanhado de uma bela cerveja à pressão num restaurante qualquer, depois vejo-o ser frito e será o fim de todo este assunto."

A Janice ouviu tudo aquilo com uma expressão de horror crescente espelhada no rosto, e voltou-se para mim.

- Mas o McGee acredita no que tu descobriste, não é verdade, Paul? Eu vi isso no teu rosto. O assistente do xerife, o McGee, sabe que prendeu o homem errado. Não estará ele disposto a fazer frente ao xerife?

- O que ele pode conseguir ao enfrentar o xerife é perder o emprego - redargui. - Sim, acredito que bem no fundo do seu coração ele sabe que os crimes foram cometidos

pelo William Wharton. Mas aquilo que diz a si próprio é que se mantiver a boca fechada e alinhar no jogo até o Cribus se aposentar, ou este se empanturrar até à morte, é que será ele quem virá a ocupar o seu lugar. E nessa altura as coisas serão diferentes. É isto o que ele repete a si mesmo todas as noites antes de conciliar o sono, imagino eu. E muito provavelmente, nisso não difere muito do Homer. Dirá a si mesmo: "Ao fim e ao cabo, o homem não passa de um negro. Não se pode dizer que vão electrocutar um branco por um crime que ele não cometeu."

- Nesse caso, tens de ir falar com eles - insistiu a Janice de uma forma que me fez gelar o coração, devido à profunda determinação que adivinhei na sua voz. - Vais ter de os pôr ao corrente daquilo que descobriste.

- E vamos dizer-lhes que descobrimos como, Jan? - perguntouu o Brutal no mesmo timbre de voz. - Achas que devemos descrever a maneira como o Wharton agarrou

o John quando íamos a tirá-lo da prisão para ele poder efectuar um milagre na mulher do director?

- Não... claro que não, mas... - Ela compreendeu até que ponto o gelo estava fino naquela direcção, e começou a patinar numa outra. - Nesse caso, serão obrigados a mentir - continuou ela. Lançou um olhar de desafio ao Brutal, depois fitou-me. O olhar dela era tão quente, que quase seria capaz de queimar um buraco num jornal.  _

- Mentir - repeti. - Mentir acerca de quê?

- Sobre o motivo que te levou a tomar a iniciativa de ires até ao município de Purdom e depois ao de Trapingus. Vai até lá falar com esse xerife gordo, o Cribus, e diz-lhe que o Wharton te contou que tinha assassinado as gémeas Detterick. Diz-lhe que ele confessou. - Por breves momentos, a Janice concentrou o seu olhar acalorado no Brutal. - Tu podes confirmar o que ele disser, Brutus. Podes dizer que estavas presente quanto ele confessou e que ouviste tudo. Pois bem, provavelmente também o Percy testemunhou tudo, e talvez tenha sido precisamente isso que o fez perder as estribeiras. Alvejou o Wharton porque não foi capaz de suportar a ideia daquilo que este fizera àquelas crianças. Afectou-lhe a mente. Aconteceu que... O quê? O que foi agora, em nome de Deus?

Não era só eu e o Brutal; o Harry e o Dean também a fitavam com uma espécie de horror.

Nunca dissemos nada desse género, minha senhora - declarou o Harry. Expressava-se como se falasse a uma criança. - A primeira pergunta que as pessoas fariam seria porque motivo não o tínhamos feito já. É nosso dever participar tudo o que os nossos bebés de cela dizem a respeito dos seus crimes anteriores. Dos seus e dos de outros prisioneiros.

- Não que tivéssemos acreditado nele - atalhou o Brutal. - Um homem como o Bill "Selvagem" Wharton é capaz de mentir sobre tudo e mais alguma coisa, Jan. Sobre os crimes por ele cometidos, gente importante que conheceu, mulheres com quem foi para a cama, os jogos em que participou na escola secundária, até mesmo sobre o raio do tempo.

- Mas... mas... - O semblante da Janice era de grande agonia. Aproximei-me dela, colocando o meu braço à volta dos seus ombros mas ela afastou-o violentamente. – Mas ele esteve lá! Foi ele quem pintou o maldito do celeiro da quinta! ELE JANTOU NA COMPANHIA DELES!

- Mais uma razão para chamar a si todo o crédito pelo crime - interpôs o Brutal. - Ao fim e ao cabo, que mal é que poderia advir daí? Por que razão é que ele não se vangloriou? Afinal de contas, não se pode fritar um homem duas vezes.

- Deixem-me ver se estou a compreender correctamente esta situação. Nós sabemos que o John Coffey não só não matou essas garotas, como também tentou salvar as suas vidas. O assistente do xerife, o McGee, não se encontra ao corrente de tudo isto, como é evidente; no entanto, não deixa de calcular que o homem condenado à morte por causa desses crimes não é aquele que os cometeu. E ainda assim... mesmo assim... vocês não conseguem fazer com que ele seja julgado de novo. Nem sequer são capazes de reabrir o caso.

- É isso mesmo - afirmou o Dean, que limpava furiosamente as lentes dos óculos. - Isso resume mais ou menos a situação.

A Janice ficou sentada de cabeça baixa, embrenhada nos seus pensamentos. O Brutal começou a dizer qualquer coisa, mas eu ergui a mão para o calar. Não acreditava que a Janice fosse capaz de engendrar uma maneira de safar o John Coffey da cadeira eléctrica, da qual ele já se encontrava bastante próximo, apesar de, ao mesmo tempo, estar em crer que isso não seria completamente impossível. A minha mulher era uma senhora inteligente e destemida. E muito determinada. Essa combinação tinha por vezes o poder de transformar montanhas em vales.

- Muito bem - disse ela ao fim de algum tempo. - Nesse caso, terão de ser vocês a fazê-lo sair da prisão. - Minha senhora?! - exclamou o Dean, absolutamente atordoado. E assustado, também.

- Vocês podem fazê-lo. Já o fizeram uma vez, não é verdade? Podem muito bem voltar a fazé-lo. Só que desta vez não o levam de regresso à penitenciária.

- Gostaria a senhora de explicar aos meus filhos a razão por que o pai deles foi para a prisão, Mistress Edgecombe? - perguntou o Dean. - Acusado de ter ajudado um assassino a fugir da penitenciária?

- As coisas não se passarão assim Deam havemos de estabelecer um plano. Fazer com que pareça ter sido uma verdadeira fuga.

Nesse caso, convém que se trate de um plano que possa ter sido concebido por um sujeito que nem sequer se recorda como é que se atam os atacadores - observou o Harry.

Terá de ser suficientemente verosímil para as pessoas poderem acreditar nele.

A Janice olhou para ele, insegura.

- Isso não serviria de nada - interpôs o Brutal. - Ainda que conseguíssemos pensar numa maneira, não serviria para nada.

- E porque não? Ela parecia prestes a desatar a chorar. - Por que raio é que não?

- Porque ele mede mais de dois metros, é careca, preto e o seu cérebro mal lhe permite alimentar-se pela sua própria mão - repliquei. - Quanto tempo pensas que ele demorará a ser capturado? Duas horas? Talvez seis?

- Ele conseguiu sobreviver anteriormente sem despertar grandes atenções - argumentou ela. Por uma das faces correu-lhe uma lágrima. Com a palma da mão limpou-a num gesto de fúria.

Até certo ponto aquilo era verdade. Eu escrevera umas cartas a alguns amigos e familiares que tinha no Sul, perguntando-lhes se haviam lido alguma coisa nos jornais sobre um homem que se ajustasse à descrição do Coffey. Qualquer coisa. A Janice também fizera o mesmo. Até à data, só tivéramos conhecimento de uma ocasião em que ele, possivelmente, interviera com os seus poderes na localidade de Muscle Shoals, no Alabama. Um tornado atingira a igreja local enquanto o coro ensaiava - o que sucedera em 1929 - e um homem negro, de grande corpulência, conseguira retirar dois homens dos escombros. Inicialmente, ambos pareciam estar mortos, de acordo com a opinião dos presentes, tendo no entanto vindo a verificar-se que nenhum deles sofrera lesões graves. Foi como se se tratasse de um milagre, dissera uma das testemunhas. O homem de raça negra, um vagabundo, o qual fora contratado pelo pastor da igreja para executar algumas tarefas por um dia desaparecera no meio de toda a excitação que se seguiu.

- Tens razão, ele conseguiu safar-se - admitiu o Brutal. - Mas convém não esquecer que ele foi capaz de passar despercebido antes de ter sido julgado e condenado pelo homicício de duas garotinhas.

A Janice permaneceu sentada sem dar qualquer resposta. Deixou-se ficar assim durante quase um minuto, e depois fez algo que me chocou tanto como o meu súbito ataque de lágrimas a deveria ter chocado. Estendeu o braço para a frente e com um gesto amplo, atirou para o chão tudo o que se encontrava em cima da mesa - os pratos, os copos, as canecas, os talheres, a terrina com a salada de couve, a tigela com a polpa de abóbora, a travessa com a perna de porco trinchada, o leite e o jarro que continha chá frio. Tudo aquilo acabou por tombar da mesa, tendo-se espalhado no meio do chão.

- Ora esta! ! ! - exclamou o Dean, fazendo recuar a cadeira com tanta força que quase caiu de costas.

A Janice não lhe prestou a mínima atenção. Olhava ora para o Brutal ora para mim, mais acentuadamente para mim. - Estão a dizer-me que tencionam matá-lo, grandes cobardes? - perguntou ela com desdém. - Estão dispostos a matar o homem que salvou a vida da Melinda Moores e que tentou salvar a vida dessas duas garotinhas! Ora bem, pelo menos haverá um negro a menos neste mundo, não é verdade? Vocês podem consolar-se com essa justificação. Um negro a menos!

Com aquelas palavras, a Janice levantou-se da mesa, olhou para a cadeira onde estivera sentada e deu-lhe um pontapé, arremessando-a contra a parede. A cadeira fez ricochete, tendo ido cair em cima da polpa de abóbora derramada no chão. Agarrei-a pelo pulso, mas ela libertou-se com um violento puxão.

- Não te atrevas a tocar-me - ripostou ela. - Por esta altura na próxima semana ter-te-ás transformado num assassino; não serás melhor do que esse homem, o Wharton. Portanto, não quero que me toques.

Dirigiu-se para o alpendre das traseiras, ergueu o avental, cobrindo o rosto e começou a chorar convulsivamente. Nós os quatro ficámos a olhar uns para os outros. Ao fim de algum tempo, levantei-me da mesa e comecei a limpar toda aquela porcaria. O Brutal foi o primeiro a ajudar-me, seguido do Harry e do Dean. Quando a cozinha voltou a ter de novo um aspecto mais ou menos arrumado foram-se embora. Nenhum de nós trocou uma única palavra. Na realidade, não havia mais nada a dizer.

 

Era a minha noite de folga. Sentei-me na sala de estar da nossa casa pequena, a fumar cigarro após cigarro, ouvindo o rádio e observando a escuridão a emergir do solo para tragar o céu. A televisão é um bom entretenimento, não tenho nada contra ela, mas não me agrada a maneira como nos afasta do resto do mundo, fazendo com que nos concentremos apenas no seu próprio ecrã de vidro. Pelo menos nesse aspecto, o rádio era muito melhor.

A Janice regressou ao interior de casa, ajoelhou-se ao lado do braço da minha poltrona e agarrou-me na mão. Durante algum tempo, nenhum de nós disse nada, ficámos assim a ouvir no rádio o Kay Kyser's Kollege of Musical Knowledge e observámos as estrelas que começavam a .pontilhar o firmamento. Por mim estava muito bem assim.

- Desculpa ter-te chamado cobarde - disse ela ao fim de algum tempo. - Sinto-me pior por ter afirmado isso do que por qualquer outra coisa que possa ter dito ao longo de todos os anos do nosso casamento.

- Isso também inclui a ocasião em que fomos acampar e me chamaste Velho Sam Fedorento? - perguntei eu. Desatámos a rir e trocámos um beijo ou dois, o que fez com que a situação se desanuviasse um pouco entre nós. Ela era tão bonita, a minha Janice, e eu continuo a sonhar com ela. Sentindo-me velho e cansado de viver da maneira como vivo, sonho com ela a entrar no meu quarto neste lugar solitário e esquecido por todos, onde os corredores têm um fedor a mijo e a couve cozida retardada, e sonho que ela é maravilhosa e jovem, com os seus olhos azuis, seios firmes e direitos, dos quais eu mal conseguia manter as mãos afastadas, e ela dirá: Bem vês, querido, eu não estava naquele acidente de autocarro. Enganaste-te, mais nada. Até mesmo agora costumo sonhar com isso e, por vezes, quando desperto e compreendo que não passou de um sonho, começo a chorar. Eu que quando era novo só muito raramente é que chorava.

- O Hal já sabe? - perguntou ela por fim. - Que o John está inocente? Não vejo como possa saber.

- Achas que ele pode fazer alguma coisa? Tem alguma influência junto do Cribus?

- Nem um bocadinho, minha querida.

A Janice fez um acenar de cabeça como se já esperasse aquela resposta.

- Sendo assim não lhe digas nada. Se ele não puder auxiliar em nada, por amor de Deus não lhe contes.

- Não – respondi - é que ele

Olhou para mim com olhos de expressão firme.

- E nessa noite não vais dar parte de doente. Nenhum de vós o fará. Não podem fazer uma coisa dessas.

- Não, não podemos. Se estivermos presentes, pelo menos poderemos acelerar o processo, facilitando-lhe as coisas. Isso estará ao nosso alcance. Não vai acontecer o que aconteceu ao Delacroix. - Por uns momentos, misericordiosamente breves, vi a máscara de seda negra a queimar-se sobre o rosto do Del, revelando as pequenas massas de gelatina cozinhada que haviam sido os seus olhos.

- Não tens maneira nenhuma de te livrares, pois não? . A Janice agarrou-me na mão e levou-a à pele aveludada da sua face. - Pobre Paul. Pobre homem.

Eu não lhe disse nada. Nunca antes, nem tão-pouco em qualquer outra altura da minha vida, me apeteceu tanto fugir de qualquer coisa. Levar apenas a Jan comigo, os dois sozi nhos com um saco de tecido grosseiro contendo os nossos haveres, fugindo para qualquer lugar.

- Meu pobre homem - repetiu ela, acrescentando logo em seguida: - Fala com ele.

- Com quem? Com o John?

- Sim. Fala com ele. Descobre o que é que ele quer. Pensei no assunto, e acenei com a cabeça. Ela tinha razão. Costumava ter.

 

Dois dias mais tarde, a 18, o Bill Dodge, o Hank Bitterman e mais alguém - não me recordo de quem, um temporário qualquer - levaram o John Coffey até ao Bloco D para tomar um duche, o que nos permitiu ensaiar a sua execução. Não deixámos que o Pouca Terra ocupasse o lugar do John; todos nos dávamos conta de que, ainda que não houvéssemos mencionado o assunto, isso teria sido uma obscenidade.

Fui eu quem ocupou o seu lugar.

- John Coffey - começou o Brutal a dizer numa voz que não primava pela firmeza, enquanto eu me sentava desajeitadamente em cima da Velha Faísca -, o senhor foi condenado a morrer na cadeira eléctrica, tendo a sentença sido lavrada por um júri formado por seus pares.

Pares do John Coffey? Mas que grande piada. Tanto quanto me era dado saber, não existia em todo o planeta outra pessoa como ele. Então pensei no que o John dissera naquela ocasião em que ficara a olhar para a Velha Faísca, imobilizado ao fundo das escadas que saíam do meu gabinete: Eles continuam ali. Consigo ouvi-los gritar.

- Deixem-me sair daqui - disse eu numa voz enrouquecida. - Desapertem estas braçadeiras e deixem-me levantar. Eles assim fizeram, mas durante uns instantes senti-me imobilizado na cadeira, como se a Velha Faísca não desejasse que eu me levantasse.

Enquanto regressávamos ao bloco, o Brutal começou a falar comigo em voz baixa, de forma a que tanto o Dean como o Harry, os quais colocavam as últimas cadeiras atrás de nós, não pudessem ouvir-nos.

- Já fiz algumas coisas ao longo da minha vida das quais não me sinto muito orgulhoso, mas esta é efectivamente a primeira vez que sinto que estou a correr o risco de ir parar ao inferno.

Olhei para ele a fim de me certificar de que não estava a brincar. Não me pareceu que estivesse.

- O que é que pretendes dizer com isso? - perguntei. - Estamos a preparar-nos para matar uma bênção de Deus - continuou ele. - Uma bênção que nunca nos fez o mínimo mal nem a qualquer outra pessoa. O que é que eu vou dizer no caso de me ver em frente de Deus, o Pai Todo-Poderoso, e Ele me pedir para Lhe explicar por que motivo fiz isto? Que fazia parte do meu trabalho? Do meu trabalho?

 

Quando o John regressou do seu duche e os temporários nos deixaram a sós, abri a fechadura da sua cela e entrei, sentando-me na tarimba ao seu lado. O Brutal encontrava-se sentado à secretária do guarda de serviço. Ergueu o olhar, viu que eu estava sentado na cela sem qualquer colega, mas não fez comentários. Voltou a concentrar a sua atenção na papelada em que trabalhava, enquanto lambia constantemente a ponta do lápis.

O John fitou-me com os seus olhos estranhos - raiados de sangue, distantes, à beira das lágrimas... e contudo, com uma expressão serena, como se o choro não fosse uma forma de vida assim tão má, sobretudo depois de nos termos acostumado. Conseguiu mesmo esboçar um pequeno sorriso. Cheirava a sabonete, recordo-me bem, tão limpo e com tanta frescura como um bebé depois do seu banho ao fim do dia.

- Olá, chefe - saudou-me ele, estendendo o braço e tomando as minhas mãos nas suas. Aquilo foi feito com uma naturalidade perfeita, sem nada de premeditado.

- Olá, John. - Eu sentia um pequeno embargo na garganta e tentei afastá-lo ao engolir em seco. - Suponho que já saibas que a data está a aproximar-se. Só faltam dois dias.

Ele não me deu réplica, limitando-se a continuar sentado com as minhas mãos nas suas. Estou convencido de que, agora que penso nisso, já começara a acontecer-me algo, mas eu encontrava-me demasiado concentrado - quer psicológica quer emocionalmente - em cumprir as minhas obrigações para poder ter reparado nisso.

- Há alguma coisa em especial que queiras para o jantar dessa noite, John? Podemos arranjar-te quase qualquer coisa que queiras. Até podemos trazer-te uma cerveja. Só temos de a despejar para dentro de uma caneca de café, mais nada. - Nunca gostei do sabor - disse ele.

- Então qualquer coisa especial para comer? - sugeri. A sua testa enrugou-se abaixo daquela grande extensão de pele castanha sem cabelos. Pouco depois, as rugas suavizaram-se e ele sorriu.

- Rolo de carne seria bom.

- Nesse caso, será mesmo rolo de carne. Com molho e puré de batata. - Senti um entorpecimento no braço, como quando adormecemos sobre ele, só que esta sensação percorria-me o corpo todo. O interior do meu corpo. - Que mais queres como acompanhamento?

- Não sei, chefe. O que houver. Talvez um pouco de quiabo.

- De acordo - anuí, pensando que ele também haveria de comer à sobremesa a torta de pêssego de Mrs. Janice Edgecombe. - E agora a respeito de um padre? Alguém com quem possas rezar uma pequena oração, na noite de depois de amanhã? Serve para confortar um homem; já vi isso muitas vezes. Eu poderia entrar em contacto com o Reverendo Schuster, ele é o homem que veio ao bloco quando o Del.

- Não quero nenhum pregador - disse o John. - O senhor tem sido bom para mim, chefe. Se quiser, pode rezar uma oração. Isso há-de chegar. Acho que podia ajoelhar-me um pouco consigo.

- Eu! John, eu não seria capaz de...

Fez um pouco de pressão sobre as minhas mãos e aquela sensação tornou-se mais forte.

- Seria, sim - continuou o John. - Não acha, chefe? - Suponho que sim - ouvi-me a mim próprio dizer. Tinha a impressão de que a minha voz adquirira um eco. - Acho que seria, caso fosse necessário.

Naquela altura, a sensação dentro de mim era ainda mais forte; era a mesma que eu sentira anteriormente, quando ele tratara a minha canalização, mas também era diferente. Não apenas porque desta feita não havia nada de mal comigo. Era diferente porque desta vez ele não tinha consciência do que estava a fazer. Subitamente, senti-me aterrorizado, prestes a sufocar, tanta era a necessidade que me invadia de sair dali. Havia luzes acesas dentro de mim onde nunca tinham existido luzes anteriormente. Não só no meu cérebro, mas também por todo o meu corpo.

- O senhor e Mister Howell e os outros chefes têm sido bons para comigo - disse o John Coffey. - Eu sei que tem andado preocupado, mas agora deve parar com isso. Porque eu quero ir, chefe.

Tentei falar mas não consegui. Mas ele conseguia. O que o John disse a seguir foi a frase mais comprida que alguma vez ouvi da sua boca.

- Estou farto do sofrimento que vejo e ouço, chefe. Estou farto de andar pelas estradas, sozinho como um tordo à chuva, sem nunca ter um amigo para me acompanhar, ou para me dizer de onde é que viemos e para onde é que vamos, ou mesmo porquê. Estou farto que as pessoas sejam más umas para com as outras. É o mesmo que sentir bocados de vidro dentro da minha cabeça. Estou farto de todas as vezes em que quis evitar o mal e não fui capaz. Estou farto de estar sempre na escuridão. Por causa da dor. Existe muita no mundo. Se eu pudesse acabar com ela, acabava. Mas não posso.

"Pára com isso", tentei dizer-lhe. "Pára com isso, larga as minhas mãos eu afogo-me, se o não fizeres. Afogo-me ou expludo."

- Não vai explodir - disse ele, esboçando um pequeno ~rriso perante aquela ideia... Contudo, largou-me as mãos. Com a respiração arquejante, inclinei-me para a frente.

Através do espaço entre os joelhos podia ver todas as fissuras existentes no chão de cimento, todos os sulcos, todas as partículas de mica. Ergui o olhar até à parede e vi os nomes que ali haviam sido inscritos em 1924, 1926 e em 1931. Aqueles nomes começavam a dissipar-se, tal como, para usar a mesma expressão, se haviam dissipado os homens que os tinham inscrito, mas imagino que nunca se consegue apagar por completo qualquer coisa, sobretudo deste mundo de vidro escurecido; naquele momento, via-os de novo, um emaranhado de nomes, uns por cima dos outros, e olhar para eles era o mesmo que ouvir os mortos a falar, a cantar e a implorar misericórdia. Senti os globos oculares a pulsarem dentro das órbitas, ouvi o bater do meu próprio coração, senti o fluxo do sangue a fluir através das artérias do meu corpo, quais cartas a serem remetidas para todos os lugares.

Ouvi o apito de um comboio à distância - o comboio das três e cinquenta com destino a Priceford, calculei, mas não estava inteiramente seguro de que fosse, porque nunca tinha dado por ele antes. Pelo menos, tal nunca acontecera estando eu dentro de Cold Mountain, uma vez que a distância mais próxima a que passava da penitenciária estadual era a dezasseis quilómetros a oriente. Eu não poderia tê-lo ouvido do interior da prisão, poder-se-ia dizer, e até Novembro de 1932 era o que eu teria julgado, mas o certo é que o ouvi nesse dia.

Algures no bloco, uma lâmpada estilhaçou-se com um estrépito semelhante ao de uma bomba.

- O que é que me fizeste? - perguntei ao Coffey num sussurro. - Oh, John, o que é que me fizeste?

- Lamento muito, chefe - replicou ele na sua maneira calma. - Eu não estava a pensar. Mas acho que não foi muito. Dentro de pouco tempo voltará a sentir-se óptimo.

Levantei-me da tarimba e encaminhei-me para a porta da cela. Sentia-me como se caminhasse num sonho. Quando cheguei ao fundo, ele retomou a palavra.

- O senhor continua a perguntar a si mesmo porque é que elas não gritaram. É a única coisa para que ainda não descobriu a resposta, não é verdade? Por que razão é que essas duas meninas não começaram a gritar, quando ainda se encontravam no alpendre.

Dei meia volta e fiquei a olhar para ele. Conseguia distinguir todas as linhas vermelhas nos seus olhos, via todos os poros nas suas faces... e também sentia o seu sofrimento, dores que extraía às outras pessoas, como uma esponja que absorvesse água. Também era capaz de ver as trevas de que ele falara. Abatiam-se sobre todos os espaços do mundo tal como ele o avistava e, naquele momento, senti por ele um misto de piedade e de grande alívio. Sim, seria uma coisa terrível o que nos propúnhamos fazer, nada conseguiria alguma vez alterar esse facto... e, contudo, estaríamos a prestar-lhe um favor.

- Eu compreendi quando aquele tipo mau me agarrou - continuou o John. - Foi nessa altura que fiquei a saber que fora ele. Eu tinha-o visto nesse dia, estava no meio das árvores e vi-o quando as deixou cair e começou a fugir, mas... - Esqueceste-te - adiantei.

-- Foi isso mesmo, chefe. Até ele me tocar, esqueci-me. - Porque é que elas não gritaram, John? Ele feriu-as o suficiente para terem sangrado, os pais encontravam-se mesmo no andar de cima, portanto, por que motivo é que elas não gritaram?

John fitou-me através dos seus olhos assombrados.

- Ele disse a uma delas: "Se fizeres barulho, mato a tua irmã e não a ti", e depois disse a mesma coisa à outra. Está a compreender?

- Sim - respondi num murmúrio, enquanto visionava a cena. O alpendre da casa dos Detterick mergulhado na escuridão. O Wharton debruçado sobre as duas crianças como se fosse um ser maléfico. Provavelmente uma delas teria começado a gritar, pelo que o Wharton a agredira, fazendo-a sangrar do nariz. Fora daí que se derramara a maior parte do sangue.

- Ele matou-as com o amor delas - acrescentou o John. - O amor que sentiam uma pela outra. Está a ver como é que aconteceu?

Acenei que sim, incapaz de proferir uma única palavra. Ele sorriu-me. As lágrimas escorriam-lhe de novo pelas faces abaixo, mas ele continuava a sorrir.

- É assim que as coisas se passam todos os dias - prosseguiu o John - por todo o mundo. - Em seguida, estendeu-se sobre a tarimba e voltou o rosto para a parede.

Saí para a Milha, fechei a cela à chave e dirigi-me para a mesa no corredor. Continuava a sentir-me como um homem no meio de um sonho. Apercebi-me de que era capaz de ouvir os pensamentos do Brutal - um sussurro muito vago, a forma como soletrava uma palavra, tenho a impressão que era "receber". Ele perguntava a si mesmo se seria com dois ss ou com um c. Mas então soergueu o olhar e sorriu, mas o sorriso desapareceu quando olhou bem para mim.

- Paul? - perguntou. - Estás bem? - Sim.

Comecei a contar-lhe o que o John me dissera, omitindo alguns aspectos e sem mencionar a sensação que o seu toque me tinha provocado (nunca contei essa parte a ninguém, nem sequer à Janice; a Elaine Connelly será a primeira pessoa a inteirar-se disso - isto é, se desejar ler estas últimas páginas, depois de ter lido todas as outras); todavia, repeti o que o John dissera acerca de desejar partir. Aquela informação deu a impressão de ter provocado alívio no Brutal - pelo menos, um pouco - mas pressenti (teria ouvido?) que se interrogava se eu não teria inventado tudo aquilo para lhe tranquilizar a consciência. Pouco depois, senti que ele optara por acreditar, simplesmente porque isso tornaria a situação um tudo-nada mais fácil quando chegasse a altura.

- Paul, essa tua infecção está a começar a afligir-te de novo? - perguntou ele. - Estás com um aspecto muito congestionado.

- Não. Acho que estou bem - repliquei. As minhas palavras não correspondiam à verdade, mas naquele momento fiquei com a certeza de que o John tinha razão, e que dentro em pouco me voltaria a sentir bem. A sensação de entorpecimento já começara a dissipar-se.

- Seja como for, não me parece que te fizesse mal ires para o teu gabinete deitar-te um bocado.

Deitar-me era a última coisa que me apetecia fazer naquele momento - a ideia parecia-me tão ridícula que quase me fez rir. Aquilo que me apetecia era talvez construir uma pequena casa para mim, pôr as telhas no telhado, lavrar a terra para, num jardim nas traseiras, plantar as flores. Tudo isto antes da hora de jantar.

É assim que as coisas são, pensei, todos os dias. Por todo o mundo. Essa escuridão. Por todo o mundo.

- Em vez de ir para o meu gabinete, vou até à administração. Tenho alguns assuntos a tratar.

- Se assim o dizes - replicou o Brutal.

Dirigi-me para a porta, abri-a e depois olhei para trás. - Escreveste bem a palavra - disse eu - r-e-c-e-b-e-r com c e não com dois ss, tal como diz a regra; mas imagino que haja excepções a todas as regras.

Continuei o meu caminho sem necessitar de olhar para ele para saber que me fitava com fixidez e de boca aberta. Durante o resto daquele turno, levei a cabo uma série de outras tarefas, incapaz de me sentar por mais de cinco minutos seguidos, antes de ser forçado a levantar-me de novo. Fui à administração e depois comecei a andar desassossegadamente pelo pátio de recreio, na altura sem ninguém, num passo alargado, de um lado para o outro, até que os guardas de vigia nas torres devem ter pensado que eu estava louco. Quando chegou a hora de o meu turno acabar, já me sentia mais calmo, e a torrente de pensamentos que me havia invadido a mente - como se fosse uma fiada de contas que se entrechocavam - já se tinha acalmado bastante.

Todavia, nessa mesma madrugada, a meio caminho de casa, voltou a acontecer a mesma coisa e com bastante intensidade, à semelhança do que sucedera com a minha infecção urinária. Fui obrigado a estacionar o Ford na berma da estrada, a sair do carro e andar durante quase oitocentos metros, de cabeça baixa, braços em movimentos rítmicos acompanhando o corpo, com a respiração arquejante tão quente como algo que se tivesse transportado debaixo do sovaco. Então, finalmente, comecei a sentir-me realmente normal. Num passo apressado, dirigi-me para o local onde estacionara o Ford, tendo percorrido metade desse caminho num passo mais regular, com a respiração a condensar-se no ar frio. Quando cheguei a casa, contei à Janice que o John Coffey me dissera que se encontrava preparado, que desejava ser executado. Ela acenou com a cabeça, mostrando uma expressão de alívio. Corresponderia a sua atitude à verdade? Não consegui dizer. Nas seis horas precedentes, até mesmo três, eu teria sabido com segurança, mas naquela altura era incapaz de ter a certeza. O que era uma coisa boa. O John dissera vezes sem conta que se sentia cansado, e agora eu era capaz de compreender porquê. Aquilo que ele possuía teria deixado qualquer pessoa exaurida. Seria o suficiente para que alguém ansiasse por descanso e tranquilidade.

Quando a Janice me perguntou por que motivo é que eu tinha um aspecto tão congestionado, cheirando tanto a transpiração, disse-lhe que tinha parado o carro a caminho de casa e que correra durante algum tempo. Contei-lhe essa parte - como talvez eu já tenha dito aqui (neste momento já acumulei demasiadas páginas para que me apeteça voltar atrás, a fim de me certificar se fiz ou não essa afirmação), a mentira não era um elemento preponderante no nosso casamento - embora não lhe tivesse dito porque o fizera.

E ela não me perguntou.

Na noite em que chegou a vez de o John Coffey percorrer a Milha Verde, não houve tempestades. Fazia o frio adequado para a época, diria eu, e havia um milhão de estrelas que pontilhavam o firmamento acima dos campos lavrados e cultivados, onde a geada que caíra sobre as vedações e sobre a palha seca do milho de Julho cintilava como diamantes.

O responsável destacado para aquela execução fora o Brutus Howell - seria ele quem ajustaria o capacete e diria ao Van Hay que accionasse a alavanca, quando chegasse a altura apropriada. O Bill Dodge encontrava-se junto deste último. E por volta das onze e vinte do dia 20 de Novembro, o Dean, o Harry e eu dirigimo-nos para a única cela ocupada, onde o John Coffey se encontrava sentado no extremo da tarimba, com os dedos entrelaçados entre os joelhos. Via-se uma pequena nódoa de molho de rolo de carne no colarinho da sua camisa azul. Fitou-nos através das barras da cela, dando a impressão de se sentir bastante mais calmo do que nós próprios. As minhas mãos estavam frias e as têmporas pulsavam. Saber que ele desejava que aquilo acontecesse era uma coisa - pelo menos tornava possível que levássemos a nossa tarefa a bom termo - mas outra era saber que nos encontrávamos prestes a electrocutá-lo pelo crime cometido por outrem.

A última vez que eu tinha visto o Hal Moores fora às sete horas dessa tarde. Na altura, ele encontrava-se no gabinete, a abotoar o seu sobretudo. Tinha as faces empalidecidas e as mãos tremiam-lhe tanto que abotoar aqueles botões era uma tarefa deveras difícil. Eu quase senti vontade de lhe afastar as mãos, para ser eu próprio a abotoar-lhe o sobretudo, como faria a uma criança. A ironia daquela situação era que a Melimda estava com melhor aspecto quando a Jan e eu fôramos visitá-la no fim-de-semana anterior do que o Hal no fim do dia em que o John Coffey seria executado.

- Não vou assistir a esta - dissera ele. - O Curtis estará presente, e sei que o Coffey vai estar em boas mãos, contigo e com o Brutus.

. Sim, faremos o nosso melhor - repliquei. - Há alguma novidade em relação ao Percy? - Como é evidente, o que eu perguntava era se ele teria dado algum sinal de estar a recuperar o juízo. Encontrar-se-ia ele naquele momento sentado num quarto algures, narrando a alguém, algum médico, muito provavelmente, a forma como nós o havíamos manietado no colete dos malucos e atirado para dentro da cela do isolamento, como qualquer outra criança problemática... qualquer outro mentecapto, utilizando a linguagem do Percy? E caso fosse isso o que estivesse a acontecer, os que o ouvissem acreditariam no que ele dizia?

Todavia, de acordo com o que o Hal dissera, o Percy continuava na mesma. Não falava e, tanto quanto qualquer pessoa pudesse saber, tão-pouco se encontrava neste mundo. Continuava internado em Indianola - "para ser submetido a avaliação", acrescentou o Hal, exibindo uma expressão mistificada perante aquela expressão - contudo, caso não se verificassem quaisquer melhorias, dentro em pouco seria transferido.

- Como é que o Coffey está a aguentar-se? - perguntara o Hal nessa altura. Finalmente, e ao cabo de porfiados esforços, conseguira abotoar o último botão do sobretudo.

- Tudo correrá da melhor maneira - respondi com um acenar de cabeça.

Ele retribuiu-me com outro aceno e dirigiu-se para a porta, parecendo envelhecido e adoentado.

- Como é que no interior do mesmo homem poderão coabitar tanto bem e tanto mal? Como é que o homem que curou a minha mulher pode ser o mesmo homem que matou essas duas garotas? Consegues compreender uma coisa dessas?

Disse-lhe que não conseguia compreender, que os caminhos de Deus eram misteriosos, acrescentando que havia bom e mau em todos nós, que não nos cabia tentar descobrir a razão daquilo, e mais algumas patranhas do mesmo teor. A maior parte daquilo que lhe disse na ocasião aprendera na Igreja de Jesus Seja Louvado, O Senhor É Todo-Poderoso; o Hal acenara com a cabeça durante todo o tempo, exibindo uma expressão parecida com enlevo. Ele podia dar-se ao luxo de acenar com a cabeça, não é verdade? Sim. E também de mostrar-se enlevado. No seu semblante, adivinhava-se uma profunda tristeza - sem dúvida que ele se sentia abalado, nunca duvidei disso - mas desta vez não lhe assomaram lágrimas aos olhos, porque ele tinha uma mulher em casa à sua espera, a sua companheira que o aguardava, e ela estava bem de saúde. Graças ao John Coffey, ela encontrava-se completamente curada e o homem que tinha assinado a sentença de morte do John poderia ir-se embora para junto dela. Não era obrigado a presenciar aquilo que aconteceria a seguir. Teria possibilidades de dormir nessa noite no calor do corpo da mulher, enquanto o John Coffey estaria estendido sobre um bloco de mármore na cave do hospital do município, com o corpo a arrefecer à medida que as horas silenciosas e desprovidas de calor humano se aproximavam da alvorada. Odiei o Hal por todos aqueles motivos. Só um pouco, e claro que eu acabaria por ultrapassar esse sentimento, mas o que era inegável é que se tratava de ódio. Do mais genuíno que pudesse existir.

Pouco depois entrei na cela, seguido pelo Dean Harry; ambos estavam cabisbaixos e pálidos.

- Estás preparado, John? - perguntei.

- Sim, chefe. Acho que sim - respondeu-me ele.

- Muito bem, então. Tenho uma coisa a dizer antes de sairmos da cela.

- Diga tudo o que tem a dizer, chefe.

- John Coffey, na minha qualidade de funcionário autorizado pelo tribunal...

Fiz o discurso da praxe até ao fim e, quando terminei, o Harry Terwilliger aproximou-se e estendeu a mão. Por escassos momentos, o John mostrou-se surpreendido, mas depois sorriu e apertou-a. Em seguida, foi a vez do Dean, mais pálido do que nunca, fazer o mesmo.

- Tu merecias melhor sorte do que esta, Johnny - afirmou ele numa voz enrouquecida. - Lamento muito.

- Eu ficarei bem - replicou o John. - Esta é a parte mais difícil; daqui a pouco estou bem. - Com aquelas palavras, levantou-se da tarimba; a medalha de São Cristóvão que a Melly lhe oferecera soltou-se de dentro da camisa.

- John, tens de me entregar isso - disse eu. - Eu posso voltar a pôr-ta ao pescoço depois de... depois, se o desejares, mas agora não podes usá-la. - Era de prata e, se estivesse junto à pele quando o Jack Van Hay accionasse a corrente eléctrica, poderia fundir-se com a pele. Ainda que isso não viesse a suceder, talvez lhe deixasse a imagem carbonizada do santo na pele do peito. Eu já presenciara isso. Durante os anos que passara na Milha já tinha visto quase tudo. Mais do que aquilo que era bom para mim próprio. Agora compreendo isso.

O John tirou o fio pela cabeça e pousou-o na minha mão. Coloquei o medalhão na algibeira e disse-lhe para sair da cela. Não havia necessidade de verificar a cabeça para me certificar de que o contacto se faria de forma" adequada, permitindo uma boa passagem de corrente; eu sabia que estava tão macia como a palma da minha mão.

- Sabe, chefe, esta tarde adormeci e tive um sonho - disse ele. - Sonhei com o rato do Del.

- A sério, John? - Coloquei-me à sua esquerda e o Harry à sua direita. O Dean fechava a retaguarda; começámos a percorrer a Milha Verde. Foi a última vez que a atravessei na companhia de um prisioneiro.

- Sim - continuou o John. - Sonhei que ele tinha conseguido ir para aquele lugar de que o chefe Howell falou, aquela Vila dos Ratos. Sonhei que havia miúdos e que eles se riam ao ver as habilidades! Extraordinário! - Começou a rir-se ao pensar naquilo, mas pouco depois o seu rosto adquiriu uma expressão de maior seriedade. - Sonhei que aquelas duas meninas louras também lá estavam. Elas também se riam. Coloquei os braços à volta delas e o sangue parou de sair dos seus cabelos, e elas ficaram curadas. Todos nós ficámos a ver o Mister Jingles a rolar o carretel e fartámo-nos de rir. Quase explodimos de tanto rir.

- De verdade? - perguntei, embora pensasse que não seria capaz de prosseguir com aquilo, era absolutamente impossível. Ia começar a chorar ou a gritar, ou então o meu coração rebentaria de tanto desgosto, pondo fim a tudo.

Dirigimo-nos para o meu gabinete. O John olhou em redor por um momento ou dois, e deixou-se cair de joelhos, sem que houvesse necessidade de se lhe dizer que o fizesse. Por detrás dele, o Harry olhava para mim com uma expressão acossada. O Dean estava branco que nem uma folha de papel.

Ajoelhei-me ao lado do John, pensando que estava a verificar-se uma estranha inversão de circunstâncias: depois de todos os condenados que eu tivera de ajudar a terminar aquela jornada, desta feita o mais provável era que eu próprio viesse a precisar de ajuda. Pelo menos, foi isso que senti.

- O que é que devemos pedir, chefe? - perguntou-me John.

- Forças - repliquei sem sequer pensar. Cerrei os olhos e acrescentei: - Senhor, por favor ajudai-nos a concluir o que começámos, e, por favor, abri os braços a este homem, John Coffey... como o nome da bebida, mas escrito de maneira diferente, dando-lhe as boas-vindas ao paraíso e concedendo-lhe paz. Por favor, ajudai-nos a enviá-lo da maneira que ele merece e não permitais que alguma coisa corra mal. Ámen. - Abri os olhos e olhei para o Dean e o Harry. Estavam com melhor aspecto, o que provavelmente se devia ao facto de poderem ter recuperado o fôlego. Duvido que tenha sido a minha oração.

Comecei a erguer-me do chão, mas o John agarrou-me pelo braço. Lançou-me um olhar que era uma mescla de esperança e timidez.

- Lembrei-me de uma oração que me ensinaram quando eu era pequeno - disse ele. - Pelo menos, acho que me lembrei. Posso rezá-la?

- Não hesites, diz a tua oração - retorquiu o Dean. - Ainda temos muito tempo, John.

O Coffey fechou os olhos e franziu o sobrolho, tanta era a sua concentração. Eu estava à espera de uma oração que as crianças costumassem rezar antes de adormecerem, ou uma versão atabalhoada do padre-nosso, mas não obtive nem uma nem outra; nunca tinha ouvido o que lhe saiu da boca e nunca voltei a ouvir, apesar de as expressões e os sentimentos nas suas palavras não terem nada de particularmente invulgar. De mãos unidas em frente dos olhos fechados, o John Coffey começou a rezar.

- Menino Jesus, humilde e bom, reza por mim que soú uma criança órfã. Sê a minha força, sê meu amigo, fica comigo até ao fim. Ámen. - Abriu os olhos e começou a erguer-se, olhando atentamente para mim.

Passei o braço pelos olhos humedecidos. Enquanto ouvia as suas palavras, tinha pensado no Del; no fim, ele também desejara rezar mais uma oração. Santa Maria, Mãe de Deus,

rezai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. - Lamento muito, John.

- Não lamente - redarguiu ele, apertando-me o braço e esboçando um sorriso. E então tal como eu pensei que viria a suceder, ele ajudou-me a levantar do chão.

 

Não estavam presentes muitas testemunhas - ao todo, talvez fossem umas catorze, metade do número que tinha estado na arrecadação aquando da execução do Delacroix. O Homer Cribus viera assistir, com as carnes gordas a transbordar da cadeira como era costume; contudo, não vi o seu ajudante, o McGee. À semelhança do director Moores, aparentemente, ele decidira manter-se ausente daquela.

Na fila da frente encontrava-se um casal de idade, que inicialmente não reconheci, embora houvesse visto as suas fotografias numa grande quantidade de artigos de jornal até àquele dia, na terceira semana de Novembro. Então, à medida que nos aproximávamos do estrado onde a Velha Faísca aguardava, a mulher deu largas à sua fúria.

- Morre devagar, grande filho da puta! - Foi então que compreendi que eles eram os Detterick, Klaus e Marjorie. Eu não os reconhecera, uma vez que não é normal ver-se velhos com pouco mais de trinta anos.

O John curvou os ombros ao ouvir a voz da mulher e o xerife Cribus grunhiu de aprovação. O Hank Bitterman, que se encontrava de guarda na frente daquele escasso grupo de espectadores, nunca desprendeu os olhos do Klaus Detterick. Estava a cumprir as minhas ordens; no entanto, nessa noite, o Detterick não fez o mais pequeno gesto na direcção do John. O homem dava a impressão de se encontrar noutro planeta.

O Brutal, que estava junto da Velha Faísca, fez-me um pequeno gesto com um dedo quando subimos ao estrado. Meteu a arma no coldre e agarrou no John pelo pulso, escoltando-o com tanta suavidade em direcção à cadeira eléctrica como se fosse um rapaz a conduzir a namorada para a pista de dança no primeiro baile a que iam juntos.

- Está tudo bem, John? - perguntou ele em voz baixa. - Sim, chefe, mas... - Os seus olhos deslocavam-se de um lado para o outro dentro das órbitas e, pela primeira vez, mostrava-se assustado; a sua voz também deixando adivinhar isso. - Mas está aqui muita gente que me odeia. Muita. Eu sinto isso. Faz-me mal. Sinto picadas como se fossem o ferrão de abelhas, e dói.

- Nesse caso, deves pensar apenas no que nós sentimos - disse-lhe o Brutal no mesmo tom de voz baixa. - Nós não te odiamos..: Consegues sentir isso?

- Sim, chefe. - Mas a sua voz agora tremia ainda mais, enquanto dos olhos haviam começado a correr de novo, lentamente, lágrimas.

- Matem-no duas vezes, rapazes! - vociferou de súbito a Marjorie Detterick. A sua voz, áspera e estridente, era como uma bofetada. O John encolheu-se todo junto de mim, a gemer. - Yá lá, matem duas vezes esse violador, assassino de crianças, matem-no! - O Klaus, que continuava com a mesma expressão de quem sonhava acordado, puxou a mulher para junto do seu ombro. Ela começou a chorar convulsivamente.

Foi com grande estupefacção que reparei que o Harry Terwilliger também chorava. Até ao momento, ainda nenhum dos espectadores tinha dado conta das suas lágrimas - ele estava de costas voltadas para a assistência - mas o inegável é que ele chorava. O que é que qualquer de nós poderia fazer, para além de dar seguimento ao assunto?

O Brutal e eu forçámos o Coffey a dar meia volta. O Brutal fez pressão sobre um dos ombros do homem gigantesco, e este sentou-se. Agarrou-se com força aos amplos braços de carvalho da Velha Faísca, com os olhos a rolarem dentro das órbitas e deitando a língua de fora, primeiro para humedecer um dos cantos da boca e depois o outro.

O Harry e eu ajoelhámo-nos. No dia anterior, tínhamos dado instruções a um dos presos de confiança que trabalhava na oficina para que este soldasse umas extensões flexíveis, mas temporárias, às braçadeiras das pernas da cadeira, uma vez que as canelas do John Coffey não eram do tamanho das de um tipo normal. Mesmo assim, atravessei uns momentos de pesadelo quando pensei que ainda seriam pequenas e que teríamos de levá-lo de regresso à cela, enquanto o Sam Broderick, o encarregado da oficina nessa época, procederia às alterações necessárias. Com a palma da mão, dei uma pancada especialmente forte contra a braçadeira do meu lado, que se fechou. A perna do John retraiu-se e ele ofegou. Eu tinha-lhe beliscado a pele.

- Desculpa, John - murmurei, olhando para o Harry. Ele conseguira ajustar a sua braçadeira com maior facilidade (ou a extensão do seu lado era um pouco maior, ou a canela da perna direita do John era um tudo-nada menos espessa); no entanto, olhava para o resultado com uma expressão de dúvida. Acho que compreendi por que motivo; as braçadeiras que haviam sido alteradas tinham um aspecto esfomeado, parecendo maxilas a abrirem-se como a boca de crocodilos.

- Vai correr tudo bem - disse eu, esperando que a minha voz fosse convincente... e que estivesse a dizer a verdade. - Limpa as faces, Harry.

Ele passou o braço pelo rosto, limpando as lágrimas das bochechas e as gotas de suor que lhe perlavam a testa. Demos meia volta. O Homer Cribus, que entretanto tinha estado a conversar em voz alta com o homem sentado ao seu lado (o promotor de justiça, a julgar pela gravata fina e fato negro com lustro), ficou em silêncio. Estava quase na hora.

O Brutal já prendera um dos pulsos do John e o Dean fizera o mesmo ao outro. Por cima do ombro do Dean, avistei o médico que, como sempre, tentava passar despercebido, de pé encostado à parede, com a sua maleta negra entre os pés. Nos dias que correm, imagino que eles tratem deste género de assunto com mais facilidade, principalmente com soluções intravenosas, mas naquela época era quase necessário arrastar os médicos, isto é, caso se desejasse a sua presença. Talvez nesses tempos eles tivessem uma noção mais precisa daquilo que era correcto no comportamento de um médico, e daquilo que era uma perversão do juramento que haviam feito, aquele em que juram acima de tudo não provocar mal.

O Dean acenou na direcção do Brutal. Este girou a cabeça, parecendo olhar para o telefone, cuja campainha jamais tocaria para os da igualha do John Coffey.

- Prosseguir com a fase um! - gritou ele, dirigindo-se ao Jack Van Hay.

Ouviu-se o zunido da corrente eléctrica, como se fosse o barulho do motor de um velho frigorífico a arrancar, enquanto a luminosidade das luzes se intensificava um pouco mais. As nossas sombras projectaram-se um tudo-nada mais acentuadamente, sombras negras que se recortavam na parede e que pareciam pairar em redor da sombra da cadeira, quais abutres a rondar a presa. O John respirou fundo. Tinha os nós dos dedos brancos.

- Já começou a doer? - guinchou Mrs. Detterick numa voz entrecortada com a boca contra o ombro do marido. - Espero que sim! Espero que te faça doer como o inferno! - O marido apertou-a mais contra si. De uma das suas narinas escorria sangue, reparei eu, um fio vermelho estreito que corria até ao bigode. Quando abri o jornal em Março seguinte e li que ele morrera de uma trombose, senti-me o homem menos surpreendido do mundo.

Entretanto, o Brutal colocou-se no campo de visãp do John. Enquanto falava, manteve a mão sobre o seu ombro. Aquilo ia contra os regulamentos, mas de todos os presentes só o Curtis Anderson é que tinha conhecimento disso, e ele não pareceu ter dado por nada. Pensei que o seu aspecto era o de um homem que desejava terminar, o mais depressa possível, com a tarefa que tinha em mãos. Queria desesperadamente ver tudo aquilo terminado. Veio a alistar-se no exército depois do ataque a Pearl Harbor, mas nunca chegou a ser enviado para o estrangeiro; morreu em Fort Bragg num acidente com um camião.

Entretanto, o John tinha-se descontraído um pouco sob os dedos do Brutal. Não me parece que ele compreendesse ~nuito daquilo que o Brutal lhe dizia, mas isso não o impediu de se sentir confortado pela mão dele sobre o seu ombro. O Brutal, que veio a falecer de um ataque do coração vinte e cinco anos mais tarde (na altura comia ele uma sanduíche de peixe e assistia a um combate de luta livre na televisão de acordo com o que a irmã relatou), era um homem bom: Meu amigo. Talvez o melhor de todos nós. Não sentia a mínima dificuldade em compreender como é que um homem poderia desejar, simultaneamente, partir e sentir-se aterrorizado perante a perspectiva da viagem.

- John Coffey, o senhor foi condenado a morrer na cadeira eléctrica, tendo a sentença sido lavrada por um júri formado pelos seus pares, e imposta por um juiz deste estado, Deus abençoe as pessoas deste estado. Tem alguma coisa a dizer antes de se dar cumprimento à sentença?

O John humedeceu os lábios uma vez mais, após o que falou com toda a clareza. Cinco palavras.

- Lamento muito aquilo que sou.

-Deves lamentar! - gritou a mãe das duas garotas assassinadas. - Oh, grande monstro, deves lamentar! TENS OBRIGAÇÃO DE LAMENTAR E MUITO!

Os olhos do John voltaram-se para mim. Na sua expressão não vi qualquer sinal de resignação, nem esperança do paraíso, nem tão-pouco o nascer de um sentimento de Paz.

Como eu gostaria de poder dizer que ele via essas coisas. Como eu gostaria de o poder dizer a mim próprio. Aquilo que vi foi medo, infelicidade e incompréensão. Eram os olhos de um animal encurralado que se sentia aterrorizado. Pensei no que ele dissera sobre a forma como o Wharton conseguira fazer com que a Cora e a Kathe tivessem saído do alpendre sem levantar as suspeitas de ninguém no interior da casa: Ele matou-as com o amor que elas sentiam. É o que acontece todos os dias. Em todas as partes do mundo.

O Brutal retirou a nova máscara do seu gancho de bronze nas costas da cadeira, mas assim que o John a avistou e compreendeu do que se tratava, os seus olhos arregalaram-se de horror. Olhou para mim e naquele momento eu via grossas gotas de suor sobre a curva do seu crânio desnudado. Pareciam tão grandes como ovos de tordos.

- Por favor, chefe, não ponha essa coisa em cima da minha cara - pediu ele num gemido sussurrante. - Por favor, não me faça ficar às escuras, não me obrigue a ficar às escuras, eu tenho medo do escuro.

O Brutal olhava para mim com os sobrolhos soerguidos, sem fazer o mais pequeno movimento, mantendo a máscara nas mãos. A expressão dos seus olhos dizia-me que a decisão era minha, fosse ela qual fosse, o destino do John já estava traçado. Pensei com toda a rapidez que me era possível e tão acertadamente quanto estava ao meu alcance - o que foi difícil, com a cabeça a latejar. A máscara era da tradição e não da lei. Na realidade, era uma medida que se destinava mais a poupar as testemunhas. Mas, subitamente, decidi que elas não precisavam de ser poupadas, sobretudo daquela vez. Ao fim e ao cabo, o John não tinha cometido crime nenhum em toda a sua vida que o fizesse ser merecedor de morrer com uma máscara a cobrir-lhe o rosto. Os presentes não estavam a par dessa circunstância, mas nós encontrávamo-nos cientes disso, o que me levou a decidir que lhe concederia aquele último pedido. Quanto à Marjorie Detterick, o mais provável seria ela enviar-me uma carta de agradecimento.

- De acordo, John - murmurei eu.

O Brutal voltou a colocar a máscara no seu lugar. Atrás de nós, o Homer Cribus gritou a sua indignação numa voz de cana rachada.

- Vamos lá a ver, rapaz! Põe essa máscara na cara dele! Pensas que queremos ver os seus olhos a saltarem das órbitas?

- Faça o favor de se manter calado - disse eu sem me voltar para o homem. - Isto é uma execução e o senhor não é o responsável por ela. Nem foste o responsável pela sua captura, meu grande monte de tripas - sussurrou o Harry. O Harry morreu em 1982, muito próximo dos oitenta anos de idade. Um homem já bastante idoso. Não fazia parte da minha liga, como é evidente, mas poucos fazem. Veio a falecer de uma espécie qualquer de cancro intestinal.

O Brutal inclinou-se para baixo e retirou o círculo de esponja do interior do balde. Com um dedo fez pressão sobre a superfície e lambeu a ponta deste, embora não houvesse ne cessidade de o ter feito. Eu conseguia ver o líquido de um horrível tom acastanhado a pingar da esponja. Ajustou-a no interior do capacete e colocou este sobre a cabeça do John. Pela primeira vez reparei que o Brutal também estava branco - de um branco pastoso, parecendo prestes a perder a consciência. Ocorreu-me o facto de ele ter dito que sentia, pela primeira vez em toda a sua vida, estar à beira do inferno, porque estávamos a preparar-nos para matar uma bênção de Deus. De súbito, senti uma vontade irresistível de vomitar. Consegui controlá-la, mas só com muito esforço. A água gotejava da esponja por ambos os lados do rosto de John.

O Dean Stanton estendeu a correia - que deixou o mais larga que lhe foi possível - a toda a largura do peito do John, e entregou-ma. Tivéramos tanto cuidado a tentar proteger o Dean na noite em que fizemos a nossa viagem, por causa dos seus filhos, desconhecendo que lhe restavam menos de quatro meses de vida. Depois da morte do John Coffey, pediu transferência para o Bloco C, afastando-se da Velha Faísca, e foi lá que um prisioneiro o apunhalou na garganta com o cabo de uma colher, acabando o Dean por deixar o sangue da sua vida derramado sobre o soalho conspurcado. Nunca cheguei a saber por que motivo. Não me parece que alguém tenha vindo a descobrir a razão daquele acto. A Velha Faísca é uma coisa de onde emana uma grande perversidade, concluo eu sempre que me recordo desses dias. Todos nós somos frágeis que nem vidro a ser soprado, até mesmo sob as melhores condições imagináveis. Matarmo-nos uns aos outros com gás e electricidade, a sangue-frio? Que loucura. Que horror.

O Brutal verificou a correia e retrocedeu. Esperei que ele começasse a falar, mas não o fez. Enquanto cruzava as mãos atrás das costas, mantendo-se numa posição de à-vontade em formação militar, eu soube que ele não diria nada. Talvez não fosse capaz. Não me pareceu que eu próprio estivesse capaz de proferir uma única palavra, mas então olhei para os olhos lacrimosos e atemorizados do John e concluí que não poderia evitar. Ainda que fosse amaldiçoado para todo o sempre, não me restava outra alternativa.

- Prosseguir com a fase dois - ordenei numa voz pouco firme e enrouquecida, que mal reconheci como sendo a minha.

O capacete começou a zunir. Dez grandes dedos ergueram-se das extremidades dos amplos braços de carvalho da cadeira, abrindo-se tensamente em dez direcções diversas, com as pontas a tremerem espasmódicamente. Os joelhos enormes agitavam-se como pistões cujos êmbolos não tinham espaço suficiente; contudo, as braçadeiras que lhe prendiam os artelhos mantiveram-se firmes. No tecto, três das lâmpadas suspensas estilhaçaram-se - com o ruído característico do vidro a desfazer-se em fragmentos. A Marjorie Detterick soltou um grito ao ouvir aquele som, desmaiando nos braços do marido. Decorridos dezoito anos, ela veio a morrer em Memphis. Foi o Harry quem me enviou a notícia do óbito. Faleceu num acidente com um eléctrico.

O corpo do John sofreu um violento impulso contra a correia do peito. Por breves momentos, os seus olhos cruzaram-se com os meus. Estavam bem alerta; eu fui a última imagem que ele viu enquanto o empurrávamos pelo precipício do mundo. Em seguida, descaiu contra as costas da cadeira, com o capacete ligeiramente inclinado em cima da cabeça, o fumo - uma espécie de nuvem enegrecida - a evolar-se de debaixo dele. Mas sabem, de uma maneira geral, tudo aquilo se processou com rapidez. Duvido que ele não tenha sofrido dores, tal como os defensores da cadeira eléctrica afirmam (é uma noção que nem sequer os mais acérrimos de entre eles mostrou alguma vez vontade de investigar), mas foi célere. As mãos voltaram a ficar inertes, com as meias-luas na base das unhas anteriormente branco-azuladas agora de uma tonalidade carregada de beringela, enquanto se evolava um anel de fumo das faces ainda molhadas com a solução salina da esponja... e das lágrimas.

As derradeiras lágrimas do John Coffey.

Eu estava bem até chegar a casa. Por essa altura já era de madrugada e os pássaros já tinham começado a fazer ouvir os seus trinados. Estacionei o calhambeque, saí, dirigi-me para os degraus das traseiras, e foi então que me senti invadido pelo segundo maior desgosto de toda a minha vida. Foi o facto de ter pensado no quanto ele receava a escuridão que fez com que aquela sensação me assolasse. Recordei-me da primeira vez em que nos víramos, como ele me tinha perguntado se costumávamos deixar as luzes ligadas durante a noite, e senti as pernas enfraquecidas. Sentei-me nos degraus, verguei a cabeça para cima dos joelhos e comecei a chorar. Não me pareceu que chorasse apenas pelo John, mas sim por todos nós.

Entretanto, a Janice saiu de casa e sentou-se ao meu lado. Colocou um braço em redor dos meus ombros.

- Não o magoaste mais do que o indispensável, não é verdade? - Abanei a cabeça num gesto de negação. - E ele desejava ir. - Acenei que sim. - Vem para dentro - disse

ela, ajudando-me a levantar. Fez-me recordar a forma como o John me tinha ajudado a levantar quando ambos estivéramos a rezar. - Vem para dentro e bebe uma caneca de café.

Fiz o que ela aconselhou. Decorreu a primeira manhã, e depois a primeira tarde; em seguida, veio o primeiro turno de regresso ao trabalho. O tempo encarrega-se de tudo, quer isso nos agrade ou não. O tempo apaga tudo, a passagem do tempo dilui as recordações na nossa memória, e no fim só nos resta a escuridão. Por vezes, encontramos outros nessa escuridão e noutras ocasiões perdemo-los nesse mesmo espaço do tempo. E isso é tudo o que sei, excepto que isto teve lugar em 1932, quando a penitenciária estatal ainda era em Cold Mountain.

Assim como a cadeira eléctrica, claro.

Por volta das duas e um quarto, a minha amiga Elaine Connelly veio até junto de mim, quando eu ainda me encontrava sentado no solário com as últimas páginas da narrativa

bem organizadas à minha frente. As suas faces mostravam-se bastante empalidecidas e na pele abaixo dos olhos havia um certo brilho. Fiquei 'com a impressão de que tinha estado a chorar.

Por mim, limitara-me a olhar. Precisamente isso. A olhar pela janela em direcção às colinas situadas a oriente, sentindo a mão direita a latejar no extremo do seu pulso. Mas de certa forma, aquele latejar era tranquilizante. Sentia-me vazio, como se houvesse sido despojado da minha pele. Um sentimento que era, simultaneamente, maravilhoso e aterrorizador.

Foi-me difícil enfrentar o olhar da Elaine - receava o ódio e o desprezo que talvez pudesse vislumbrar nos seus olhos - mas tal não aconteceu. A sua expressão era triste e interrogadora, mas não me causava qualquer intranquilidade. Nela não lia ódio nem tão-pouco desdém, apenas descrença.

- Queres ler o resto da história? - perguntei. Com a minha mão dorida, dei uma pancadinha sobre a pequena pilha de folhas manuscritas à minha frente. - Está aqui, mas compreendo se preferires não...

- Não se trata de uma questão daquilo que quero - atalhou ela. - Tenho de saber como é que tudo veio a desenrolar-se, embora calcule que não possa haver a mais pequena dúvida quanto ao facto de o teres executado. A intervenção da Providência, com um "pê" maiúsculo, é exageradamente sobrestimada na vida do comum dos mortais, penso eu. Mas antes de agarrar nessas páginas... Paul...

A Elaine deteve-se, como que insegura quanto à forma como deveria prosseguir. Esperei. Por vezes, é-nos impossível ajudar as pessoas. Por vezes, é preferível nem sequer tentar.

- Paul, a julgar pela maneira como escreves, dá a impressão de que em mil novecentos e trinta e dois já tinhas dois filhos crescidos... não só um, mas sim dois. Ora, se não te casaste com a tua Janice quando tinhas apenas doze anos e ela onze, qualquer coisa mais ou menos assim...

- Éramos muito jovens quando casámos... - comecei a dizer, esboçando um sorriso. - Muitas das pessoas das regiões montanhosas casam cedo, a minha mãe também... bom, mas também não era assim tão jovem.

- Sendo assim, quantos anos tens? Sempre parti do princípio que andarias pelos oitenta e pouco, que talvez fosses da minha idade, possivelmente até mesmo um pouco mais novo, mas a fazer fé nos teus escritos...

- No ano em que o John percorreu pela última vez a Milha Verde, eu tinha quarenta anos - continuei. - Nasci em mil oitocentos e noventa e dois. O que significa que tenho cento e quatro anos, se os meus cálculos não me enganam. A Elaine ficou a olhar para mim incapaz de falar.

Agarrei nas últimas folhas do manuscrito, recordando-me uma vez mais de como o John me tinha tocado no interior da sua cela. Não vai explodir, dissera ele, esboçando um pequeno sorriso perante aquela ideia, e realmente eu não explodira... embora algo me tivesse acontecido. Algo duradouro. - Lê o resto da história - aconselhei. - Todas as respostas que eu possa ter encontram-se aí.

- De acordo - respondeu a Elaine numa voz que não era mais do que um murmúrio. - Devo confessar que me sinto um tudo-nada receosa, não posso negar, mas... muito bem. Para onde é que tencionas ir quando saíres daqui?

Levantei-me da cadeira, espreguicei-me e ouvi os estalos da minha espinha. Uma coisa que eu sabia era que estava mais que farto do solário.

- Vou para o campo de jogos. Ainda há uma coisa que gostaria de te mostrar e que fica nessa mesma direcção. - É alguma coisa... assustadora? - perguntou a Elaine a medo, e na sua expressão tímida adivinhei a rapariguinha que ela outrora fora, quando os homens costumavam usar chapéus de palhinha no Verão e casacos de pele de guaxinim no Inverno.

- Não - repliquei com um sorriso. - Não é assustador. - De acordo. - Agarrou nas folhas que eu lhe estendia. - Vou levar isto para o meu quarto. Encontramo-nos mais tarde no campo de jogos, por volta das... - Folheou o manuscrito, calculando o tempo de que necessitaria para o ler. - Quatro? Essa hora está bem para ti?

- Perfeitamente - respondi, pensando no curioso Brad Dolan. A essa hora já ele teria largado o serviço.

A Elaine estendeu a mão e deu-me um pequeno aperto no braço num gesto caloroso, afastando-se em direcção ao seu quarto. Deixei-me ficar no mesmo lugar por breves momentos, baixando o olhar até à mesa, como se só então compreendesse que se encontrava de novo vazia, com excepção do tabuleiro com o pequeno-almoço que a Elaine me trouxera nessa manhã. Não sei porquê, mas era-me difícil acreditar que já estivesse despachado.., e uma vez que tudo o que eu escrevera tinha sido depois de ter registado a execução do John Coffey e entregue o último conjunto de páginas à Elaine, é claro que ainda não estava despachado. E até mesmo então, parte de mim sabia por que razão.

Alabama.

Agarrei no último pedaço de torrada já fria que se encontrava no tabuleiro e desci as escadas, dirigindo-me ao campo de jogos. Ali chegado, sentei-me ao sol, vi meia dúzia de casais e depois um quarteto que caminhava num passo lento mas animado, acenando com os maços de croquet, e embrenhei-me nos meus pensamentos de homem idoso, deixando que os raios solares aquecessem os meus ossos já velhos.

Por volta das duas e quarenta e cinco, as pessoas que trabalhariam no turno das três às onze começaram a chegar, vindas do parque de estacionamento; às três da tarde, os que trabalhavam no turno da manhã começaram a sair. A maioria saía em grupos; todavia, o Brad Dolan, reparei eu, caminhava sozinho. Para mim, aquela foi uma visão que me deixou satisfeito; ao fim e ao cabo, talvez o mundo ainda não se encontrasse completamente à beira do inferno. Um dos seus livros de piadas saía-lhe pela parte de cima do bolso de trás das calças. O caminho que leva ao parque de estacionamento atravessa o campo de Jogos, pelo que ele me viu ali, mas não me mimoseou nem com uma expressão de repreensão nem com um acenar da mão, o que não me incomodou minimamente. Entrou no seu velho Chevrolet, com o autocolante no pára-choques que dizia: "Eu vi DEUS E O SEU NOME É NEWT." Pouco depois já ele tinha partido para onde quer que costumava ir quando não estava a trabalhar ali, deixando atrás de si um rasto fino de óleo.

Por volta das quatro horas, a Elaine veio ter comigo, tal e qual como havia prometido. A julgar pela expressão do seu olhar, havia chorado um pouco mais. Colocou os braços à minha volta e deu-me um abraço apertado.

- Pobre John Coffey - disse ela. - E, também, pobre Paul Edgecombe.

Pobre Paul, ouvi a voz de Jan a dizer. Pobre homem. A Elaine recomeçou a chorar uma vez mais. Tomei-a nos meus braços, ali, no campo de jogos banhado pelos últimos raios de sol daquele fim de tarde. As nossas sombras pareciam dançar. Talvez no Salão de Baile das Ilusões, o programa que costumávamos ouvir no rádio nesses tempos de outrora.

Ao fim de algum tempo, ela conseguiu recompor-se,. afastando-se de mim. Encontrou um lenço de papel na algibeira da blusa com que limpou os olhos marejados de lágrimas.

- O que é que aconteceu à mulher do director da prisão, Paul? O que é que sucedeu à Melly?

- Foi considerada a maravilha da sua era, pelo menos no que dizia respeito aos médicos do hospital de Indianola . respondi. Dei-lhe o braço e começámos a andar na direcção da vereda que saía do parque de estacionamento, entrando no bosque. A caminho do barracão próximo do muro existente entre Georgia Pines e o mundo da gente mais jovem. - Ela morreu... de um ataque cardíaco e não de um tumor no cérebro, dez ou onze anos mais tarde. Parece-me que foi em quarenta e três. O Hal faleceu de uma trombose por alturas do ataque a Pearl Harbor... é possível que tenha sido mesmo no dia de Pearl Harbor, tanto quanto me é dado recordar, o que significa que ela lhe sobreviveu por dois anos. O que até certo ponto é uma ironia.

- E quanto à Janice?

- Hoje não estou muito preparado para abordar esse assunto - disse eu. - Falar-te-ei disso noutra ocasião.

- Prometes? - perguntou a Elaine.

- Prometo. - Mas foi uma promessa que eu nunca cheguei a cumprir. Três meses depois do dia em que caminhámos juntos até ao arvoredo (eu ter-lhe-ia dado a mão, não fora o receio que sentia em lhe magoar os dedos enodados e inchados), a Elaine Connelly morreu tranquilamente na sua cama. Tal como acontecera à Melinda Moores, a sua morte foi provocada por um ataque cardíaco. O auxiliar de enfermagem que a encontrou morta disse que ela tinha uma expressão serena, como se a morte houvesse chegado inesperadamente, sem lhe ter causado grande sofrimento. Espero que ele tenha tido razão quanto a isso. Eu amava a Elaine. Sinto muito a falta dela. Dela, da Janice e do Brutal, assim como de quase todos eles.

Chegámos ao segundo barracão à beira do caminho, o que se encontrava mais próximo do muro. Situava-se por detrás de uma espécie de abrigo formado por uns pinheiros enfezados; o tecto, que tinha cedido, e as janelas entaipadas estavam mosqueados de sombras. Dirigi-me para o barracão. A Elaine ficou para trás por um momento, mostrando-se receosa.

- Não tenhas medo - disse-lhe eu. - A sério. Podes vir à vontade.

A porta não tinha trinco - este existira em tempos, mas entretanto fora arrancado - pelo que eu usava um bocado de cartão dobrado para poder mantê-la fechada. Abri-a e entrei no barracão. Deixei a porta toda aberta para trás, uma vez que no interior fazia escuro.

- Paul, o que é que?... Oh! Oh! - Aquele segundo "oh" tinha sido quase um grito.

Uma mesa fora afastada para um dos lados. Sobre o seu tampo estava uma lanterna e um saco de papel castanho. No chão de terra batida encontrava-se uma caixa de charutos Hav-A-Tampa, que eu obtivera do empregado da empresa que tem a concessão das máquinas de refrigerantes e de doces do lar. Tinha-lhe pedido aquela caixa muito em especial, uma vez que a empresa em que ele trabalhava também comercializava produtos tabaqueiros, pelo que ele não teve qualquer dificuldade em satisfazer o meu pedido. Ôfereci-me para lha pagar - na altura em que eu trabalhara em Cold Mountain aquele género de artigo tinha muito valor, tal como possivelmente já vos disse - mas ele limitou-se a rir perante a minha oferta.

A espreitar pela berma da caixa, viam-se dois olhinhos vivos, negros como contas.

-Mister Jingles - chamei~em voz baixa. - Vem até aqui. Vem cá, meu velho, vem ver esta senhora. Agachei-me - as articulações doeram-me, mas com algum esforço consegui baixar-me - e estendi a mão. De início não pensei que desta vez ele fosse capaz de sair do bordo da caixa, mas, com um impulso final, foi bem sucedido. Tombou no chão de lado, e lá se pôs de pé, aproximando-se. Corria com um ligeiro coxear numa das patas traseiras; a lesão que o Percy lhe infligira tinha-se acentuado nos anos de velhice do Mister Jingles. Os seus anos de velhice, velhice. Com a excepção da região superior da cabeça e a ponta da cauda, todos os seus pêlos haviam ficado completamente grisalhos.

Deu um salto para a palma da minha mão. Ergui-o e ele começou a esticar o pescoço, a farejar o meu bafo com as orelhas inclinadas para trás, mostrando uma expressão ávida nos seus pequeníssimos olhos negros e cintilantes. Estendi a mão na direcção da Elaine, que olhava, estupefacta, para o rato, e os lábios entreabertos.

- Não pode ser! - exclamou ela, erguendo os olhos para mim. - Oh, Paul, não é... não pode ser!

- Observa - disse-lhe eu -, e depois diz-me isso. Do saco que se encontrava sobre a mesa retirei um carretel que eu próprio havia colorido - não com lápis de cera, mas sim com canetas de feltro, uma invenção com que nem sequer se sonhava em 1932. No entanto, o resultado final era rigorosamente o mesmo. As cores eram tão garridas como tinham sido as do Del, talvez mesmo mais vivas. Messieurs et mesdames, pensei. Bienvenue au cirque du mousie!

Agachei-me de novo e o Mister Jingles correu para fora da palma da minha mão. Estava velho, apesar de se mostrar tão obcecadamente empenhado como sempre. Desde o momento em que eu tirara o carretel do interior do saco, deixara de ter olhos para mais o que quer que fosse. Fi-lo rolar pelo chão irregular do barracão e, de imediato, ele correu atrás do carretel. A sua corrida não tinha a mesma velocidade de antigamente, e o seu coxear era, até certo ponto, doloroso de observar, mas por que motivo é que naquela altura ele deveria ter sido veloz ou firme na sua corrida? Tal como eu já disse, ele era velho, um verdadeiro Matusalém dos ratos. Tinha, no mínimo dos mínimos, sessenta e quatro anos de idade.

Alcançou o carretel que batera contra a parede mais afastada, fazendo ricochete. Contornou-o e ficou deitado sobre um dos flancos. A Elaine fez menção de avançar, mas eu contive-lhe o movimento. Momentos depois, o Mister Jingles conseguiu pôr-se de pé uma vez mais. Devagar, muito devagar começou a empurrar o carretel na minha direcção, servindo-se do focinho. Quando ele tinha chegado - eu encontrara-o caído nos degraus que dão para a cozinha exàctamente dessa mesma maneira, como se houvesse viajado durante uma longa distância e se sentisse exausto - ainda era capaz de conduzir o carretel com as patas, à semelhança do que fizera havia tantos anos pela Milha Verde. No entanto, agora isso encontrava-se para lá das suas forças; as suas patas posteriores já não conseguiam suportá-lo. No entanto, o seu focinho continuava tão experiente e capaz como sempre o fora. Tinha apenas de ir de um extremo ao outro do carretel, a fim de o manter em movimento pela rota certa. Quando chegou junto de mim, peguei-lhe com uma mão - o seu peso não era maior do que o de uma pena - e com a outra peguei no carretel. Os seus olhos negros e cintilantes nunca o largaram.

- Não faças isso outra vez, Paul - pediu-me a Elaine numa voz embargada. - Não consigo suportar vê-lo a correr. Compreendi o que ela sentia, mas pensei que estava enganada ao pedir-me aquilo. O rato adorava correr para ir buscar o carretel; decorridos tantos anos, continuava a gostar tanto de fazer aquilo como sempre. Todos nós deveríamos ser tão afortunados em relação às nossas paixões.

No saco também há rebuçados de hortelã-pimenta - acrescentei. - Imagino que ele continue a gostar deles... não pára de farejar se eu lhe chegar um deles ao focinho, mas o seu aparelho digestivo deteriorou-se demasiado para conseguir comê-los. Em vez disso, costumo trazer-lhe pedaços de torrada.

Agachei-me de novo, parti um bocado pequeno da que trouxera comigo do solário, colocando-o no chão. O Mister Jingles farejou o pão e em seguida agarrou-o com as patas, começando a comer a torrada. Tinha a cauda em espiral enrolada à volta do corpo. Acabou de comer e soergueu o olhar numa expressão de expectativa.

- Por vezes, nós os velhos podemos surpreender os outros com o nosso apetite - disse eu à Elaine, entregando-lhe o que restava da torrada. - Experimenta tu.

Ela partiu outro bocadinho, deixando-o cair no chão. O Mister Jingles aproximou-se e começou a farejá-lo, olhou para a Elaine... em seguida agarrou no pão e começou a comê-lo.

- Estás a ver? - perguntei. - Ele sabe que tu não és uma temporária.

- De onde é que ele veio, Paul?

- Não faço a mais pequena ideia. Um dia, quando saí para dar o meu passeio matinal, dei com ele estendido nos degraus da cozinha. Não tive a mínima dúvida de quem ele era, mas para ter a certeza absoluta fui buscar um carretel à caixa de costura da lavandaria. Em seguida, arranjei a caixa de charutos. Forrei-a com o material mais macio que consegui encontrar. Estou convencido de que ele é exactamente como nós, Ellie... tem dias em que é um completo sofrimento. Ainda assim, não perdeu a vontade de viver. Continua a gostar do carretel e de receber a visita do seu velho companheiro de bloco. Ao longo de sessenta anos guardei a história do John Coffey dentro de mim, mais de sessenta, e agora finalmente passei-a a papel. Fiquei com a ideia de que foi por isso que ele regressou. Para que eu soubesse que deveria apressar-me a contá-la enquanto ainda me restava tempo para o fazer. Porque eu sou como ele... estou cada vez mais a chegar lá. - Achegar onde? - perguntou a Elaine.

- Oh, sabes bem o que quero dizer - repliquei, ficando a olhar em silêncio para o Mister Jingles por alguns momentos. Em seguida, por qualquer razão que não sei definir, voltei a lançar o carretel pelo chão, embora a Elaine me houvesse pedido que não voltasse a fazê-lo. Talvez somente porque, de certa forma, o facto de ele continuar a ir atrás do carretel era como as pessoas de idade levarem a cabo a sua versão lenta e cautelosa da actividade sexual - é possível que você não queira observar, você que é jovem e está convencido de que, quando chegar a velho, será aberta uma excepção no seu caso, mas o certo é que elas continuam a querer ter essa actividade.

O Mister Jingles foi de novo a correr atrás do carretel em movimento, e era evidente que sofria, mas também era evidente (pelo menos, na minha opinião) que sentia a mesma satisfação obsessiva de outros tempos.

- Janelas de folha de mica - murmurou a Elaine, observando o rato na sua corrida.

- Janelas de folha de mica - concordei, esboçando um sorriso.

- O John Coffey tocou no rato da mesma maneira que te tocou a ti. Não se limitou a fazer com que ficasses melhor da doença que te afligia então, ele tornou-te... o quê, será resistente?

- Essa é uma palavra tão boa como qualquer outra, acho eu. - Resistente aos factores que acabam por derrubar o resto de nós, abatendo-nos como árvores infiltradas por térmitas. Tu... e ele. O Mister Jingles. Quando agarrou nele com as suas mãos.

- Foi isso exactamente. O poder que se manifestava através do John teve esse efeito, pelo menos, é essa a minha opinião, e agora, ele está finalmente a dissipar-se. As térmitas abriram caminho através da casca do nosso tronco. Foi necessário um pouco mais de tempo do que o habitual, mas ainda assim chegaram lá. É possível que ainda me restem mais alguns anos, os homens ainda vivem mais tempo do que os ratos, calculo eu, mas o tempo do Mister Jingles está rapidamente a apróximar-se do fim.

Entretanto, o rato chegou junto do carretel, coxeou à volta dele, caiu de lado com a respiração acelerada (conseguíamos ver o ritmo da sua respiração através dos pêlos acinzentados, em movimentos que se assemelhavam a uma ondulação suave) e em seguida levantou-se e começou a empurrá-lo corajosamente com o focinho. Os seus pêlos estavam quase todos grisalhos e a sua postura era pouco firme, mas as contas negras e cintilantes que eram os~seus olhos continuavam tão brilhantes como sempre.

- Achas que ele desejava que tu escrevesses o que escreveste - disse a Elaine. - Não é verdade, Paul?

- Não o Mister Jingles - retorqui. - Não foi ele, mas sim a força que...

- Mas o que é isto, Paulie! E a Elaine Connelly também!!! - gritou uma voz vinda da porta aberta. Estava trespassada de uma espécie de horror satírico. - Mal posso acreditar no que os meus olhos estão a ver! Em nome de Deus, o que é que vocês dois poderão estar a fazer num lugar destes?

Voltei-me, sem me sentir minimamente surpreendido por deparar com o Brad Dolan à entrada do barracão. Exibia um esgar sorridente, daqueles que só é exibido por alguém que sabe que nos enganou muito bem enganados. Que distância é que ele teria percorrido no automóvel, depois de o turno ter terminado? Possivelmente, só até ao The Wrangler, onde tomou uma ou duas cervejas antes de regressar ao lar.

- Ponha-se na rua - disse-lhe a Elaine com grande frieza. - Ponha-se na rua imediatamente.

- Não me diga para me pôr na rua, sua velha cabra engelhada - redarguiu ele, continuando a sorrir. - Talvez possa dizer-me isso lá em cima, na colina, mas acontece que agora não é lá que se encontra. Também não é aqui que devia estar. Isto fica fora dos limites do lar. Um pequeno ninho de amor, Paulie? É para isso que vens até aqui? Uma espécie de antro da Playboy para os da terceira idade... - Os seus olhos arregalaram-se quando finalmente viram o ocupante do barracão. - Mas que merda vem a ser esta?

Não me voltei para ver. Por um lado, sabia o que estava ali; por outro, o passado havia-se subitamente sobreposto ao presente, produzindo uma imagem terrível que, em toda a sua realidade, adquirira proporções tridimensionais. Não era o Brad Dolan quem se encontrava ali na ombreira da porta, mas sim o Percy Wetmore. Dali a um momento, entraria no barracão num passo apressado para espezinhar o Mister Jingles (que já não tinha a mínima esperança de conseguir fugir-lhe) sob o seu sapato de sola dura. E desta feita não havia nenhum John Coffey que o fizesse reviver, arrancando-o das vascas da morte. Da mesma maneira que não houvera nenhum John Coffey quando eu precisei dele naquele dia chuvoso em Alabama.

Pus-me de pé e desta vez não senti qualquer dor nas articulações nem tão-pouco nos músculos; apressadamente, dirigi-me para o Dolan.

- Deixa-o em paz e sossego! - gritei-lhe. - Vais deixá-lo em paz, Percy, ou eu...

- A quem é que estás a chamar Percy? - perguntou ele empurrando-me para trás com tamanha violência que estive prestes a cair. A Elaine agarrou-me, embora lhe devesse ter doído fazer isso, conseguindo evitar que eu perdesse o equilíbrio. - E também não é a primeira vez que me chamas esse nome. E pára de mijar nas calças. Não tenciono tocar-lhe. Não há necessidade. Esse roedor já está morto.

Virei-me para trás, convencido de que o Mister Jingles só estava deitado de lado para recuperar o fôlego, tal como costumava fazer. Não havia dúvida de que estava realmente deitado de lado; todavia, aquela ondulação que se vira sob a pelagem deixara de se ver. Tentei convencer-me de que ainda conseguia detectá-la, mas foi então que a Elaine desatou a chorar num pranto desabalado. Baixou-se, sendo evidente que o movimento a fazia sofrer, e pegou no rato que eu tinha visto pela primeira vez na Milha Verde a dirigir-se para a mesa do guarda de serviço todo destemido, como um homem que se aproximasse dos seus pares... ou dos seus amigos. O rato estava inerte na sua mão. Os seus olhos eram opacos e sem expressão. Tinha morrido.

O Dolan fez uma careta desagradável, revelando uns dentes que nunca haviam sido observados por um dentista. - Cruzes, canhoto! O que é que temos aqui? - perguntou ele. - Será que acabámos de perder o animal de estimação da família? Devemos organizar um pequeno funeral, com flores de papel e...

- CALE A BOCA! - vociferou a Elaine, numa voz tão elevada e vigorosa que ele retrocedeu um passo, com o esgar sorridente a abandonar-lhe os lábios. - PONHA-SE DAQUI PARA

FORA! SAIA IMEDIATAMENTE OU GARANTO-LHE QUE NUNCA MAIS TRABALHARÁ UM SÓ DIA AQUI! NEM SEQUER UMA HORA! JURO-LHE QUE ISSO ACONTECERÁ!

- Nem sequer te darão uma fatia de pão na fila para a sopa dos pobres - disse eu, mas numa voz tão baixa que nenhum dos dois me ouviu. Não conseguia desviar os olhos do

corpo do Mister Jingles, deitado em cima da palma da mão da Elaine, como se fosse o mais ínfimo tapete do mundo feito de pele de animal.

O Brad pensou em responder-lhe na mesma moeda, pondo a descoberto o seu bluff - ele tinha razão, não se podia dizer que o barracão fosse território aprovado para os residentes de Georgia Pines, até eu mesmo estava a par disso - mas optou por não o fazer. Bem lá no fundo, o homem não passava de um cobarde, tal como o Percy. E o mais provável era ele já ter investigado se o neto da Elaine era ou não uma Pessoa Importante. Mas, possivelmente, mais do que tudo, a sua curiosidade fora satisfeita, o que mitigara a sua sede de descobrir algo que desconhecia. E depois de tantas interrogações da sua parte, verificara que o mistério não tinha nada de especial. Aparentemente, era apenas o animal de estimação de um homem idoso, que estivera a viver no barracão. Agora havia ido desta para melhor, sofrera um ataque de coração ou qualquer coisa do género enquanto empurrava um carretel colorido.

- Não compreendo por que razão é que está tão triste - disse o Brad Dolan. - Nem tu, Paulie. Estão a reagir como se fosse um cão ou qualquer animal assim.

- Vá-se embora - ripostou a Elaine com desdém. - Ponha-se na rua, seu ignorante. O pouco cérebro com que foi dotado é sinistro e tortuoso.

O Dolan, com uma expressão obtusa, corou; as marcas das suas borbulhas dos tempos de liceu encheram-se de um avermelhado mais acentuado. Pela aparência da sua pele, tinha havido uma grande quantidade de borbulhas...

- Eu vou - disse ele -, mas quando amanhã cá vieres... Paulie... encontrarás um cadeado nesta porta. Este lugar encontra-se fora da zona permitida aos residentes, independentemente daquilo que a senhora "A Minha Merda não Fede" tenha a dizer a meu respeito. Olhem para o chão! As tábuas estão todas podres e soltas! Se enfiar a sua velha perna escanzelada num desses buracos, ela quebrar-se-á como um galho ressequido. Portanto, agarrem no vosso rato morto, isto é, se desejarem levá-lo convosco, e ponham-se a andar daqui para fora. A partir deste momento, o Barracão do Amor vai ficar encerrado.

Depois daquelas palavras, deu meia volta e saiu porta fora com a expressão de um homem que acredita ter ganho, pelo menos, uma vaza. Esperei que ele tivesse desaparecido e depois, com toda a suavidade, agarrei no Mister Jingles que continuava na mão da Elaine. O meu olhar foi por acaso para o saco com os rebuçados de hortelã-pimenta, e isso bastou - senti os olhos alagados de lágrimas. Não sei porquê, mas nos dias que correm choro com muito mais facilidade.

- Estás disposta a ajudar-me a enterrar um velho amigo? - perguntei à Elaine, quando os passos pesados do Brad Dolan já só se ouviam muito vagamente à distância.

- Sim, Paul. - Passou um braço em redor da minha cintura e encostou a cabeça ao meu ombro. Com um dedo envelhecido e contorcido acariciou o flanco inerte do Mister Jingles. - Com todo o gosto.

E assim fomos buscar um ancinho ao barracão onde guardavam os utensílios de jardinagem e enterrámos o animal de estimação do Del, enquanto as sombras se projectavam alongadas por entre as árvores. Depois de terminarmos aquela tarefa, regressámos para jantar e dar seguimento ao que restava das nossas vidas. E foi no Delacroix que dei comigo a pensar, no Del ajoelhado sobre a carpete esverdeada do meu gabinete, com as mãos unidas e a parte de cima da cabeça calva a brilhar sob a luz do candeeiro de tecto, no Del que nos pedira que olhássemos pelo Mister Jingles, para que nos assegurássemos de que o "homem mau não lhe fazia mais mal". Só que o homem mau acaba sempre por nos fazer mal, não é verdade?

- Paul? - chamou a Elaine. A sua voz tinha tanto de ternura como de cansaço. Imagino que até mesmo cavar uma sepultura com um ancinho, e colocar um rato no seu interior, é muita excitação para um par de velhotes como nós. - Estás bem?

Eu colocara o meu braço em redor da sua cintura. Apertei. - Estou óptimo - repliquei.

- Olha - disse ela. - Vai ser um pôr do Sol maravilhoso. Queres ficar cá fora para podermos vê-lo?

- De acordo - anuí, e ali ficámos no relvado durante algum tempo, com os braços à volta da cintura um do outro, a observar as cores vivas a surgirem no céu, para depois as vermos esbaterem-se em matizes de cinzento.

Sainte Marie, Mère de Dieu, priez pour nous, pauvres pécheurs, maintenant et à 1'heure de notre mort.

Ámen.

 

Alabama sob a chuva.

O nosso terceiro neto, uma menina maravilhosa de nome Tessa, estava prestes a licenciar-se na Universidade da Florida. Fizemos a viagem numa das camionetas da Greyhound. Ë Nessa altura eu tinha sessenta e quatro anos, era um mero rapazinho. A Jan tinha cinquenta e nove e era tão bela como sempre fora. Pelo menos aos meus olhos. Seguíamos sentados no último banco, e ela não se calava porque eu não lhe tinha comprado uma máquina fotográfica nova para registar aquele acontecimento de tão grande importância. Eu ia abrir a boca para lhe dizer que teríamos um dia inteiro para ir às compras e que ela poderia comprar a máquina nova se lhe apetecesse, uma vez que a despesa não iria afectar o nosso orçamento. Estava convencido de que ela continuava a implicar porque já se sentia aborrecida com a viagem e não gostava do livro que trouxera. Era um Perry Mason. Foi nessa altura que tudo na minha mente ficou em branco por algum tempo, como a película de um filme que fica exposta ao Sol.

Recordam-se desse acidente? Imagino que alguns de vós que estão a ler isto talvez se lembrem, embora a maior parte não tenha qualquer recordação. E, contudo, foi publicado em grandes parangonas na primeira página de todos os jornais de costa a costa, na altura em que ocorreu. Encontrávamo-nos nas redondezas de Birmingham, o dia estava chuvoso, e a Janice reclamava da máquina fotográfica antiga, quando rebentou um pneu. A camioneta começou a ziguezaguear de lado sobre o pavimento escorregadio e foi colidir lateralmente contra um camião carregado de fertilizante. O camião atirou com a camioneta contra um dos pilares de uma ponte a mais de noventa e cinco quilómetros por hora, tendo-se esta esmagado contra o cimento e partido ao meio. Duas partes de metal que brilhava sob a chuva derraparam em direcções opostas, a que tinha o depósito de gasóleo projectando uma bola de fogo preta e vermelha para o firmamento pardacento e chuvoso. Num determinado momento, a Janice queixava-se da sua velha Kodak e logo no seguinte dei comigo esparramado, à chuva a olhar para um par de cuecas de nylon azul que saíra da mala de viagem de alguém. Tinham um bordado em linha preta que dizia QUARTA-FEIRA. Por toda a parte viam-se malas abertas devido ao choque. E corpos. E membros. Dentro daquela camioneta seguiam setenta e três pessoas e só quatro conseguiram sobreviver à colisão. Eu fui uma delas, e a única que não ficou gravemente ferida.

Levantei-me do solo e cambaleei por entre as malas abertas e os corpos destroçados das pessoas enquanto gritava pelo nome da minha mulher. Dei um pontapé num despertador, recordo-me bem de ter feito isso, tal como me recordo de ter visto o cadáver de um rapazinho de treze anos estendido sobre um monte de vidros estilhaçados e com metade do rosto completamente desfeita. Sentia a chuva a açoitar-me as faces; passei por baixo da ponte e durante algum tempo deixei de a sentir. Quando saí pelo outro lado, lá estava ela outra vez a bater-me contra a testa e faces. Vi a Jan estendida junto da cabina capotada e em destroços do camião que transportara fertilizantes. Reconheci-a pelo vestido vermelho - era o segundo melhor que possuía. O melhor, como é evidente, ficara reservado para o dia da licenciatura.

Ela ainda não estava completamente morta. Tenho pensado com bastante frequência que teria sido preferível - se não para ela, pelo menos para mim - que ela tivesse morrido imediatamente. Assim, teria saído da minha vida um pouco mais cedo, mas de uma maneira um pouco mais natural. Ou talvez eu esteja a enganar-me a mim próprio ao pensar assim. Tudo o que sei de certeza absoluta é que nunca a deixei partir realmente.

Todo o seu corpo era percorrido por estremecimentos. Um dos sapatos descalçara-se, o que me permitia ver o pé em convulsão. Os seus olhos mantinham-se abertos mas sem expressão, com o esquerdo alagado de sangue. Quando me ajoelhei junto dela sob aquela chuva que atravessava o ar que cheirava a fumo, a única coisa que conseguia pensar era que aquelas convulsões no pé significavam que ela estava a ser electrocutada; a Janice estava a ser electrocutada e eu tinha de mandar parar o accionamento da alavanca, antes que fosse demasiado tarde.

- Ajudem-me! - gritei eu. - Alguém que me ajude! Socorro!

Ninguém correu em meu auxílio, ninguém se aproximou. A chuva continuava a cair cada vez mais forte - em bátegas, uma chuva que encharcava tudo e todos e que me colava os cabelos ainda negros ao crânio - enquanto eu a mantinha nos meus braços, esperando em vão por alguém que nunca chegou. Os seus olhos sem expressão pareciam erguer-se para mim com uma espécie de aturdimento cheio de intensidade, ao mesmo tempo que o sangue jorrava em torrente da região posterior da cabeça esmagada. Ao lado de uma mão tremente, percorrida por espasmos, encontrava-se um bocado de aço cromado onde se via inscrita a palavra cnEY. Junto disso havia mais ou menos um quarto daquilo que em tempos fora um homem de negócios com um fato castanho de lã.

- Socorro! - gritei de novo, voltando-me na direcção da ponte, e vi o John Coffey no meio das sombras, ele próprio uma mera sombra, um homem corpulento e calvo. -

John! - gritei, - Oh, John, por favor ajuda-me! Por favor, ajuda a Janice!

A chuva continuava a cair-me sobre os olhos. Pestanejei para a afastar e ele desapareceu. Via as sombras que tinha confundido com a imagem do John... mas eu sabia que não haviam sido somente sombras. Tenho a certeza disso. Ele estivera ali. Talvez apenas sob a forma de fantasma, mas o certo é que tinha estado ali, com a chuva a bater-lhe nas faces e misturando-se com as suas lágrimas infindáveis.

Ela morreu nos meus braços, ali, à chuva, próximo daquele camião de fertilizante, com o cheiro de gasóleo queimado a entrar-me pelas narinas. Não houve um único momento de consciência - de olhos que mostrassem qualquer expressão de percepção, de lábios a moverem-se para murmurar uma derradeira declaração de amor. Senti uma espécie de estremecimento a apoderar-se da carne sob as minhas mãos, e então ela apagou-se. Pela primeira vez em muitos anos, ocorreu-me a imagem da Melinda Moores, a Melinda sentada na cama onde todos os médicos do Hospital Geral de Indianola tinham acreditado que ela se encontrava prestes a morrer; a Melinda Moores com um aspecto cheio de frescura e descansado, olhando para o John Coffey com uns olhos vivos e interrogadores. A Melinda a dizer: Sonhei que andavas perdido na escuridão, tal como eu. Encontrámo-nos.

Pousei a cabeça destroçada da minha pobre mulher no pavimento molhado da auto-estrada interestadual, levantei-me (o que não exigiu grande esforço; tinha apenas um pequeno lanho na mão esquerda, não tendo sofrido mais ferimento nenhum), e comecei a gritar pelo nome dele, dirigindo-me às trevas existentes debaixo do viaduto.

JOhn! JOHN COFFEY! ONDE É QUE ESTÁS, MATULÃO Caminhei para as sombras, dando um pontapé a um urso de peluche ensanguentado para o afastar do meu caminho, fazendo o mesmo a uns óculos com armação de metal com uma das lentes estilhaçada, a uma mão decepada que tinha um anel com uma granada no dedo mindinho.

- Salvaste a vida da mulher do Hal, porque não fazes o mesmo à minha mulher? Porque não a Janice? PORQUE NÃO À MINHA JANICE?

Não obtive qualquer resposta; apenas o cheiro a gasóleo queimado e a corpos que ardiam, apenas o ruído da chuva que caía incessantemente vinda de um céu pardacento, tamborilando no asfalto enquanto a minha mulher se encontrava morta, estendida ao meu lado na estrada. Não houve resposta então, tal como não há agora. Mas é claro que não foi apenas a Melly Moores que o John Coffey salvou em 1932, nem o rato do Del, aquele que sabia fazer aquela habilidade tão engraçada com o carretel, e que parecera ter andado à procura do Del muito antes de este ter aparecido... de facto, muito antes de o John Coffey também ter aparecido.

O John também me salvou e, anos mais tarde, de pé sob a chuva que caía em bátegas sobre Alabama, enquanto procurava um homem que não se encontrava presente entre as sombras debaixo da ponte, no meio da bagagem espalhada por todo o lado e dos corpos sem vida, fiquei ciente de uma coisa terrível: por vezes não existe diferença absolutamente nenhuma entre a salvação e a danação.

Em simultâneo, sentira uma e outra a invadirem-me quando estivéramos sentados lado a lado na sua tarimba - a 18 de Novembro de 1932. A jorrar do corpo dele para penetrar no meu, fosse qual fosse a estranha força que ele possuía, a passar através das nossas mãos unidas, de uma maneira que o amor e a esperança que albergamos, assim como as boas intenções, nunca conseguem; uma sensação que começou por um formigueiro e que depois veio a transformar-se em algo imenso, com as proporções de uma maré, uma força muito além de qualquer outra coisa que eu tenha sentido anteriormente ou de então para cá. Desde esse dia, nunca mais sofri de pneumonias ou gripes, ou mesmo de qualquer infecção na garganta. Nunca mais voltei a ter uma infecção urinária e nem sequer um corte que tenha infectado. Tive algumas constipações, apesar de estas terem sido muito pouco frequentes - intercaladas por períodos de seis ou sete anos - e, embora as pessoas que não sofrem de constipações sejam frequentemente consideradas atreitas a outros males maiores, esse nunca foi o meu caso. Numa ocasião, no início daquele ano horroroso de 1956, expulsei um cálculo biliar. Embora possa parecer estranho a alguns dos que estão a ler esta narrativa apesar de tudo o que eu já disse, parte de mim regozijou-se com a dor que acompanhou a passagem do cálculo biliar. Foi a única dor séria que senti desde o problema com a minha canalização, que a antecedeu vinte e quatro anos. Os males que têm ceifado a vida dos meus amigos, assim como as dos entes queridos da mesma geração, até não me restar ninguém - as tromboses, os cancros, os ataques cardíacos, as doenças do fígado, as doenças do sangue - todos esses males nunca me afectaram, desviaram-se, evitando-me, da mesma maneira que um homem que conduz um automóvel se desvia para evitar colidir com um veado ou um guaxinim que se atravessem na estrada. O único acidente grave em que estive envolvido deixou-me incólume, exceptuando um corte numa das mãos. Em 1932, o John Coffey inoculou-me com a vida. Electrocutou-me com a vida, poder-se-ia dizer. Em última análise, acabarei por vir a falecer - como é evidente, tal será inevitável; quaisquer ilusões que eu possa ter acalentado sobre a imortalidade morreram com o Mister Jingles - mas o certo é que já terei desejado a morte muitas vezes antes de ela se decidir a vir buscar-me. Verdade seja dita que tenho vindo a desejá-la desde o falecimento da Elaine Connelly. Era necessário dizer-vos isto?

Passo em revista estas páginas, folheando-as com as minhas mãos trementes de pele manchada pela velhice, perguntando a mim mesmo se estas palavras terão algum significado, à semelhança daquilo que se passa com esses livros que, supostamente, servem para nos enobrecer e levantar o moral. Recuo no tempo e penso nos sermões da minha infáncia, afirmações troantes na Igreja do Jesus Seja Louvado, o Senhor É Todo-Poderoso, e recordo-me de como os pregadores costumavam dizer que ao olho de Deus não escapa nada, que Ele vê e assinala até a mais ínfima das Suas criações. Sempre que penso no Mister Jingles, e nas pequenas lascas de madeira que encontrámos no orifício da trave, convenço-me de que de facto as coisas são assim mesmo. E todavia, este mesmo Deus sacrificou a vida do John Coffey, o qual só tentou fazer o bem, conquanto o fizesse à sua maneira um tanto ignorante, com a mesma ferocidade com que qualquer profeta do Antigo Testamento alguma vez sacrificou um cordeiro indefeso... Tal como Abraão teria sacrificado o seu próprio filho, se realmente tal lhe tivesse sido exigido. Penso no John a dizer que o Wharton matou as gémeas Detterick com o amor que estas nutriam uma pela outra, e que isso acontecia todos os dias, em todas as partes do mundo. Se tal acontece de facto, é Deus que permite que isso suceda, e quando nós dizemos: "Não compreendo", Deus responde: "Não Me interessa."

Penso no Mister Jingles a morrer, numa altura em que eu estava de costas voltadas para ele, concentrado num homem de mau carácter, cuja emoção mais exaltada parecia traduzir-se numa espécie de curiosidade vingativa. Penso na Janice, com o corpo percorrido por espasmos durante os seus últimos segundos de vida, enquanto eu me ajoelhava ao seu lado sob a chuva que caía.

Pára com isso, tentei eu dizer ao John nesse dia na sua cela. Larga as minhas mãos, eu afogo-me se o não fizeres. Afogo-me ou expludo.

- Não vai explodir - respondera-me ele, ouvindo o meu pensamento e sorrindo perante aquela ideia. E a coisa mais terrível é que isso não aconteceu. Não explodi.

Pelo menos sofro de um mal característico da velhice: tenho insónias. Já noite adentro costumo ficar deitado na minha cama, escutando os sons mortiços e desesperados dos homens e mulheres enfermos que, sentindo-se acossados, vão penetrando cada vez mais nas suas velhices. Por vezes ouço o som de uma campainha a chamar, ou o ranger de um sapato no corredor, ou ainda o pequeno televisor de Mrs. Javits sintonizado nas últimas notícias. Permaneço deitado e, se a Lua puder ser vista da minha janela, fico a observá-la. Ali fico a pensar no Brutal e no Dean, por vezes até mesmo no William Wharton a dizer: É isso mesmo, negro, tão mau quanto possas imaginar. Penso no Delacroix a dizer: Veja isto, chefe Edgecombe, ensinei ao Mister Jingles uma nova habilidade. Penso na Elaine à porta do solário, dizendo ao Brad Dalon que me deixe em paz e sossego. Por vezes passo pelas brasas e vejo a ponte sob a chuva, onde o John Coffey se encontra envolto em sombras. Nunca se trata apenas de uma partida que a visão me prega nestes pequenos sonhos; sem dúvida que ele está sempre presente, o matulão, que está ali a observar. Fico deitado e aguardo. Penso na Janice, na forma como a perdi, de como ela fugiu ensanguentada através dos meus dedos, ali, à chuva... e espero. Todos nós temos uma morte, não existem excepções, eu sei que assim é, mas, por vezes, meu Deus, a Milha Verde é tão longa.

 

                                                                                            Stephen King

 

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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