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A CONFRARIA 3 / John Grisham
A CONFRARIA 3 / John Grisham

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CONFRARIA

 

XXI

O caso do telemóvel roubado fascinara os reclusos de Trumble no mês anterior. Mr. T-Bone, um miúdo rebelde das ruas de Miami, que cumpria uma pena de vinte anos por droga, apoderara-se do telefone por meios ainda não esclarecidos. Os telemóveis eram estritamente proibidos em Trumble, e o método pelo qual o rapaz conseguira um gerara mais boatos do que a vida sexual de T. Karl. Os poucos que o tinham visto afirmaram, não em tribunal, mas no recreio, que o aparelho não era maior do que um cronometro. Mr. T-Bone fora visto a esconder-se nas sombras, todo curvado, com o queixo encostado ao peito, a falar ao telefone em voz baixa. Não havia dúvida de que continuava a dirigir operações de rua em Miami.

Depois, o telefone desapareceu. Mr. T-Bone fez constar que seria capaz de matar quem o roubara e, como as ameaças de violência não resultaram, ofereceu uma recompensa de mil dólares em dinheiro. Pouco depois, as suspeitas recaíram sobre outro jovem traficante, Zorro, de uma zona de Atlanta quase tão problemática como a de Mr. T-Bone. A ocorrência de uma morte parecia provável, e por isso os guardas e os responsáveis intervieram e convenceram os dois de que seriam expulsos se a situação se descontrolasse. A violência não era tolerada em Trumble. O castigo era a transferência para uma prisão de segurança média com reclusos que sabiam o que era a violência.

Alguém falou a Mr. T-Bone das sessões semanais conduzidas pelos Confrades e, a seu tempo, ele procurou T-Karl e moveu um processo. Queria que lhe devolvessem o seu telefone, além de um milhão de dólares de indemnização.

Quando o caso foi levado a tribunal, um director-adjunto apareceu no refeitório para observar o que se passava e o assunto foi adiado à pressa pelos Confrades. O mesmo aconteceu antes do segundo julgamento.
As alegações de quem estava ou não na posse de um telefone ilegal não podiam ser ouvidas por ninguém da administração. Os guardas que assistiam às sessões semanais não podiam repetir uma palavra.

Por fim, o juiz Spicer convenceu um conselheiro da prisão de que os rapazes tinham um assunto particular a resolver sem interferência da direcção.

- Vamos tentar resolver uma pequena questão - disse ele em voz baixa. - E precisamos de o fazer em privado.

O pedido seguiu a sua tramitação até às cúpulas e, no dia do terceiro julgamento, o refeitório estava a abarrotar de espectadores, a maior parte dos quais esperavam que houvesse derramamento de sangue. O único funcionário da prisão que se encontrava na sala era um guarda solitário, sentado lá atrás, quase a dormir.

Nenhum dos litigantes era estranho às salas de audiências, e por isso não foi surpresa para ninguém que Mr. T-Bone e Zorro fizessem de advogados de si próprios. O juiz Beech passou quase toda a primeira hora a tentar refrear a linguagem da rua. Por fim, desistiu. O queixoso lançou acusações terríveis, que não poderiam ser provadas nem com a ajuda de uma centena de agentes do FBI. As negações da defesa foram igualmente ruidosas e absurdas. Mr. T-Bone atacou com dois depoimentos juramentados assinados por reclusos cujos nomes só foram revelados aos Confrades e que incluíam descrições de Zorro a falar a um telefone minúsculo que procurava esconder.

Furioso, Zorro referiu-se aos depoimentos em termos com os quais os Confrades nunca tinham sido confrontados.

O golpe final surgiu inesperadamente. Mr. T-Bone, num gesto que até o advogado mais hábil admiraria, apresentou documentos. O registo dos seus telefonemas entrara clandestinamente na prisão, e mostrou ao tribunal, preto no branco, que tinham sido efectuadas cinquenta e quatro chamadas para vários números para a zona sueste de Atlanta. Os seus apoiantes, que eram a maioria, mas cuja lealdade podia desvanecer-se num instante, ulularam até que T. Karl fez ouvir o seu martelo de plástico e os mandou calar.

- Zorro teve dificuldade em reorganizar-se e a hesitação matou-o. Ordenaram-lhe que devolvesse o telefone aos Confrades no prazo de vinte e quatro horas e que reembolsasse Mr. T-Bone por telefonemas no valor de quatrocentos e cinquenta dólares. Se ao fim de vinte e quatro horas o telefone não aparecesse, o assunto seria levado ao conhecimento do director, a par do testemunho dos Confrades, segundo o qual Zorro possuía de facto um telemóvel ilegal.

Os Confrades ordenaram igualmente aos dois jovens que se mantivessem a uma distância de quinze metros, pelo menos, em todas as circunstâncias, mesmo quando estivessem a comer.

T. Karl fez soar o martelo e a multidão começou a sair no meio de uma grande vozearia. O homem chamou o caso seguinte, outra disputa de jogo insignificante, e o barulho aumentou. Os Confrades voltaram aos seus jornais e revistas.

- Silêncio! - berrou T. Karl outra vez, batendo com o martelo.

- Cala-te - gritou-lhe Spicer. - Ainda fazes mais barulho do que eles.

- É a minha obrigação - ripostou T. Karl, com os caracóis da cabeleira a saltarem em todas as direcções.

Quando o refeitório se esvaziou, ficou apenas um recluso. T. Karl olhou à volta e por fim perguntou-lhe:

- Você é Mr. Hooten?

- Não, senhor - respondeu o jovem.

- Então é Mr. Jenkins?

- Não, senhor.

- Bem me parecia. O caso de Hooten contra Jenkins fica adiado por falta de comparência-disse T. Karl, e, com um gesto dramático, escreveu qualquer coisa no seu livro de autos.

- Quem é você? - perguntou Spicer ao jovem, que estava sentado sozinho e a olhar à sua volta como se não tivesse a certeza de ser bem-vindo. Os três homens de togas verdes-claras estavam agora a olhar para ele, assim como o palhaço de cabeleira grisalha, pijama castanho e sapatos cinzentos, sem meias. Quem seria aquela gente?

Levantou-se devagar e avançou, muito apreensivo, até se encontrar à frente dos três.

- Procuro ajuda - disse ele, quase com medo de falar.

- Tem algum caso em tribunal? - rosnou T. Karl, ao lado.

- Não, senhor.

- Então terá de...

- Cala-te! - disse Spicer. - Está terminada a sessão. Saiam.

T. Karl fechou o livro dos autos com força, afastou a cadeira para trás com um pontapé e saiu da sala, furioso, com os chinelos a escorregarem nos ladrilhos e a cabeleira a balouçar atrás de si.

O jovem parecia estar quase a chorar.

- Em que te posso ajudar? - perguntou Yarber.

O jovem segurava uma pequena caixa de cartão e os Confrades sabiam por experiência própria que ela estava cheia com os documentos que o tinham levado para Trumble.

- Preciso de ajuda - disse ele outra vez. - Entrei aqui na semana passada e o meu colega de quarto disse que vocês me podiam ajudar nos meus recursos.

- Não tens advogado? - perguntou Beech.

- Eu tinha. Ele não era grande coisa. É uma das razões por que estou aqui.

- Por que é que estás aqui? - perguntou Spicer. - Não sei. Não sei mesmo.

- Foste levado a julgamento?

- Sim. A um bem longo.

- E o júri declarou-te culpado?

- Sim. A mim e a muitos outros. Disseram que fazíamos parte de uma associação criminosa.

- Uma associação criminosa para fazer o quê?

- Para importar cocaína.

Mais um drogado. De repente, os Confrades ficaram ansiosos por voltar às suas cartas.

- De quanto tempo é a tua sentença? - perguntou Yarber.

- Quarenta e oito anos.

- Quarenta e oito anos! Que idade tens?

- Vinte e três.

As cartas foram momentaneamente esquecidas. Os três homens olharam para o rosto triste do jovem e tentaram imaginá-lo daí a cinquenta anos. Libertado aos setenta e um anos; era impensável. Todos os Confrades sairiam de Trumble com uma idade inferior à daquele jovem.

- Puxa uma cadeira - disse Yarber.

O jovem pegou naquela que estava mais perto e colocou-a diante da mesa deles. Até Spicer teve pena dele.

- Como te chamas? - perguntou Yarber.

- Chamam-me Buster.

- Está bem, Buster, o que fizeste para apanhar quarenta e oito anos? A história saiu em catadupas. Agitando a caixa em cima dos joelhos e

olhando fixamente para o chão, começou por dizer que nunca tivera
problemas com a lei, nem com o pai. Tinham um pequeno ancoradouro em Pensacola. Iam à pesca, andavam de barco à vela e adoravam o mar, e o trabalho no ancoradouro era o ideal para eles. Venderam um barco de pesca usado, de quinze metros, a um homem de Fort Lauderdale, um americano que lhes pagou em dinheiro noventa e cinco mil dólares. O dinheiro foi para o banco, ou pelo menos foi o que Buster julgou. Daí a uns meses, o homem voltou para comprar outro barco, de doze metros, e pagou oitenta mil dólares. Na Florida, não era invulgar pagar barcos a dinheiro. Seguiram-se um terceiro e um quarto barcos. Buster e o pai sabiam onde encontrar barcos de pesca usados em bom estado, que inspeccionavam e renovavam. Gostavam de ser eles a fazer o trabalho. Depois do quinto barco, os homens dos Narcóticos começaram a aparecer. Fizeram perguntas, deixaram ameaças vagas e quiseram ver os barcos e os registos. A princípio, o pai de Buster recusou-se, e depois contrataram um advogado que os aconselhou a não colaborar. Durante alguns meses, nada aconteceu.

Buster e o pai foram presos às três horas da madrugada de um domingo por dois matulões com coletes antibala e armas suficientes para prender o refém de Pensacola. Foram arrastados, semi-nus, da sua casinha na baía, com as luzes ainda acesas em toda a parte. O auto de acusação tinha dois centímetros e meio de espessura, cento e sessenta páginas e oitenta e uma acusações de associação criminosa destinada ao tráfico de cocaína. O jovem tinha uma cópia na sua caixa. Buster e o pai quase não eram mencionados nas cento e sessenta páginas, mas eram considerados arguidos e associados ao homem a quem tinham vendido os barcos, a par de mais vinte e cinco pessoas de quem nunca tinham ouvido falar. Onze eram colombianos. Três eram advogados. Todos os restantes do Sul da Florida.

O delegado do Ministério Público propôs-lhes um acordo-dois anos cada um em troca de depoimentos culposos e de cooperação contra os outros arguidos. Depoimentos culposos para quê? Eles não tinham feito nada de mal. Conheciam apenas um dos outros vinte e seis arguidos. Nunca tinham visto cocaína.

O pai de Buster voltou a hipotecar a casa para conseguir vinte mil dólares destinados a contratar um advogado, mas fez uma má escolha. No julgamento, os dois homens ficaram assustados quando se viram sentados à mesma mesa com os colombianos e os verdadeiros narcotraficantes. Todos os arguidos se encontravam do mesmo lado da sala de
audiências, sentados ao lado uns dos outros como se em tempos tivessem sido uma máquina de droga bem lubrificada. Do outro lado, perto do jurados, encontravam-se advogados do governo, grupos de patifes pomposos, de fato escuro, a tirar apontamentos, a olhar para eles como se fossem pedófilos. Também os jurados os fitavam.

Ao longo de sete semanas de julgamento, Buster e o pai foram praticamente ignorados. Os seus nomes foram mencionados três vezes. A principal acusação do governo contra eles foi que tinham participado numa associação criminosa, comprando e reconstruindo barcos de pesca com motores superpotentes para transportar drogas do México para vários terminais ao longo da estreita faixa de terra da Florida. O advogado deles, que se queixou de não estar a ser convenientemente pago para acompanhar um julgamento de sete semanas, mostrou-se incapaz de rebater aquelas acusações vagas. Mesmo assim, os advogados do governo não os atacaram muito e mostraram-se bem mais preocupados em apanhar os colombianos.

Mas não tiveram de provar muita coisa. Tinham feito o trabalho superior de escolher os membros do júri. Após oito dias de deliberação, os jurados, obviamente exaustos e frustrados, consideraram que todos os elementos eram culpados. Um mês depois da leitura da sentença, o pai de Buster matou-se.

À medida que a narrativa se aproximava do fim, o jovem parecia estar prestes a chorar. Mas empinou o queixo, cerrou os dentes e disse:

- Eu não fiz nada de mal.

Ele não era, evidentemente, o primeiro recluso de Trumble a declarar a sua inocência. Beech observou, escutou e lembrou-se de um jovem que condenara a quarenta anos por tráfico de drogas, no Texas. O arguido tivera uma infância miserável, sem educação, um longo cadastro de transgressões e poucas oportunidades na vida. Beech condenara-o do alto da sua bancada, e sentira-se bem consigo próprio por ter sido ele próprio a ditar uma sentença tão brutal. Era preciso tirar das ruas aqueles malditos traficantes de droga!

Um liberal é um conservador que foi preso. Depois de três anos dentro de uma prisão, Hatlee Beech sentia remorsos em relação a muitas das pessoas que condenara. Pessoas muito mais culpadas do que Buster. Miúdos que só precisavam de uma oportunidade.

Finn Yarber observou, escutou e sentiu uma pena enorme do jovem. Todos os que se encontravam em Trumble tinham uma história triste, e ao fim de um mês de os ouvir Yarber aprendera a não acreditar quase em
nada. Mas Buster era credível. Durante os quarenta e oito anos seguintes, iria definhar e cair, tudo às expensas dos contribuintes. Três refeições por dia. Uma cama quente à noite, trinta e um mil dólares por ano era o cálculo mais recente daquilo que um preso federal custava ao governo. Que desperdício! Metade dos reclusos de Trumble não tinham vantagem em estar ali. Eram homens não violentos que deviam ter sido castigados com multas severas e prestação de serviços à comunidade.

Joe Roy Spicer ouviu a história constrangedora de Buster e avaliou o rapaz com vista a uma utilização futura. Havia duas hipóteses. Primeiro, na opinião de Spicer, os telefones não estavam a ser devidamente utilizados na fraude de Angola. Os Confrades eram velhos que escreviam cartas como se fossem novos. Seria demasiado arriscado um deles telefonar a Quince Garbe, no lowa, por exemplo, e fingir que era Ricky, um jovem robusto de vinte e oito anos. Mas com um miúdo como Buster a trabalhar para eles, conseguiriam convencer qualquer potencial vítima. Havia muitos jovens em Trumble, e Spicer pensara em alguns. Mas eram criminosos e não lhe mereciam confiança. Buster acabara de chegar, parecia inocente e fora pedir-lhes ajuda. O rapaz podia ser manipulado.

A segunda hipótese era uma consequência da primeira. Se Buster se juntasse ao plano deles, estaria na prisão quando Joe Roy fosse libertado. A fraude estava a revelar-se demasiado rentável para ser abandonada. Beech e Yarber eram soberbos a escrever cartas, mas não tinham jeito para o negócio. Talvez Spicer pudesse ensinar o jovem Buster a ocupar o seu lugar e a enviar a sua parte para o exterior.

Era só uma ideia.

- Tens dinheiro? -- perguntou Spicer.

- Não, senhor. Perdemos tudo.

- Nem família, nem tios, primos, amigos que te ajudem a pagar honorários?

- Não, senhor. Que tipo de honorários?

- Em geral, cobramos uma quantia por revermos os casos e darmos uma ajuda nos recursos.

- Estou completamente sem dinheiro.

- Acho que podemos ajudar-te - disse Beech.

Spicer não trabalhava nos recursos. O homem nunca terminara o liceu.

- Referes-te a uma espécie de caso oficioso? - perguntou Yarber a Beech.

- Oficioso como? - perguntou Spicer.

- Oficioso. - O que é isso?

- Apoio jurídico gratuito - respondeu Beech.

- Apoio jurídico gratuito. Prestado por quem?

- Por advogados - explicou Yarber. - É de esperar que todos os advogados cedam algumas horas do seu tempo para ajudar as pessoas que não podem contratá-los.

- Faz parte da antiga lei ordinária inglesa - acrescentou Beech, tornando a situação ainda mais nebulosa.

- Nunca foi aplicada aqui, pois não? - disse Spicer.

- Vamos reapreciar o teu caso - disse Yarber a Buster. - Mas, por favor, não sejas optimista.

- Obrigado.

Saíram do refeitório em grupo, três ex-juízes de toga verde seguidos por um jovem recluso assustado. Atemorizado, mas também muito curioso.


XXII

A resposta de Brant, vinda de Upper Darby,  Pa., tinha um tom urgente:

Caro Ricky,

Uau! Mas que fotografia! vou para baixo ainda mais cedo. Chego no dia 20 de Abril. Estás disponível? Se estiveres, teremos a casa só para nós porque a minha mulher fica aqui mais duas semanas. Pobre mulher! Estamos casados há vinte e dois anos e ela não desconfia de nada.

Aqui vai uma fotografia minha. É o meu Learjet em segundo plano, um dos meus brinquedos favoritos. Andaremos nele, se quiseres.

Escreve-me imediatamente, por favor.

Cumprimentos, Brant

Continuava a não haver apelido, embora isso não fosse problema. Não tardariam a descobrir.

Spicer inspeccionou o carimbo e, por instantes, pensou que o correio era muito rápido entre Jacksonville e Filadélfia. Mas foi a fotografia que lhe chamou a atenção. Era um instantâneo cândido, de dez por quinze, muito semelhante a um anúncio para enriquecer depressa, em que o publicitário era retratado com um sorriso orgulhoso, ladeado pelo seu avião a jacto, pelo seu Rolls e talvez pela sua última mulher. Brant encontrava-se ao lado de um avião, a sorrir, de calções de ténis e blusão, sem nenhum Rolls à vista mas com uma mulher atraente, de meia idade, a seu lado.

Era a primeira fotografia da colecção cada vez maior dos Confrades em que um dos parceiros incluía a mulher. Estranho, pensou Spicer, mas Brant falara-lhe dela nas duas cartas. Nada o deixara mais admirado. A fraude iria durar para sempre porque havia uma quantidade infindável de potenciais vítimas dispostas a ignorar os riscos.

Brant estava bronzeado e em boa forma. Tinha o cabelo curto, preto, com manchas grisalhas e usava bigode. Não era particularmente atraente, mas o que interessava isso a Spicer?

Porque havia um homem com tanto dinheiro de ser tão descuidado? Porque sempre se arriscara e nunca fora apanhado. Porque era um modo de vida. E depois de eles o espremerem e lhe extorquirem o dinheiro, Brant abrandaria durante uns tempos. Evitaria os anúncios pessoais e os amantes anónimos. Mas um tipo agressivo como ele não levaria muito tempo a regressar aos seus velhos hábitos.

Spicer pensou como era emocionante descobrir parceiros ao acaso que subestimavam os riscos. Continuava a preocupá-lo o facto de, no meio de toda a gente, pensar como um homossexual.

Beech e Yarber leram a carta e examinaram a fotografia. A pequena sala atulhada estava mergulhada num silêncio total. Seria este o peixe graúdo?

- Imaginem quanto custa este jacto - disse Spicer, e riram-se os três. Foi um riso nervoso, como se não soubessem ao certo se acreditavam naquilo.

- Dois milhões - disse Beech. Como era do Texas e fora casado com uma mulher rica, os outros dois partiram do princípio de que ele percebia mais de aviões a jacto do que eles. - É um pequeno Lear.

Spicer já se contentava com um pequeno Cessna, qualquer coisa que o levantasse do solo e o levasse dali para fora. Yarber não queria um avião. Queria bilhetes, de primeira classe, onde servissem champanhe, onde houvesse duas ementas e se pudessem escolher os filmes. Primeira classe sobre o oceano, longe daquele país.

- Vamos espremê-lo - disse Yarber.

- Com quanto? - perguntou Beech, ainda a olhar para a fotografia. >^    - Pelo menos meio milhão - disse Spicer. - E se conseguirmos essa soma, iremos buscar mais.

Ficaram sentados em silêncio, cada um a brincar com a sua parte dos quinhentos mil dólares. O terço que cabia a Trevor estava de súbito a meter-se no caminho. O advogado arrecadava cento e sessenta e sete mil dólares à cabeça, deixando cada um deles com cento e onze mil. Nada mau para prisioneiros, mas podia ser muito mais. Porque estava o advogado a fazer tanto dinheiro?

- Vamos reduzir os honorários do Trevor - anunciou Spicer. - Há algum tempo que ando a pensar nisto. com eleitos imediatos, o dinheiro passa a ser dividido em quatro partes. Ele recebe uma parte igual.

- Ele não vai aceitar - disse Yarber.

- Não tem alternativa.

- É apenas uma questão de justiça - disse Beech. - Nós fazemos o trabalho e ele recebe mais do que cada um de nós. Repito que devemos reduzir a parte dele.

- Vou tratar disso na quinta-feira.

Daí a dois dias, Trevor chegou a Trumble pouco depois das quatro horas com uma ressaca particularmente difícil, uma das que não fora amortecida nem por duas horas de almoço nem por uma hora de sono.

Joe Roy mostrou-se particularmente irascível. Entregou-lhe a correspondência a expedir, mas reteve um envelope vermelho, muito grande.

- Estamos prontos para espremer este tipo - disse ele, tamborilando na mesa.

- Quem é ele?

- Brant qualquer coisa, perto de Filadélfia. Anda a esconder-se atrás dos correios, e portanto você tem de o obrigar a aparecer.

- Quanto?

- Meio milhão de dólares.

Os olhos vermelhos de Trevor semicerraram-se, e o homem ficou de boca aberta. Fez as contas, cento e sessenta e sete mil dólares no seu bolso. De repente, a sua carreira de velejador parecia mais próxima. Talvez não precisasse de um milhão de dólares para fechar a porta do escritório e partir para as Caraíbas. Talvez meio milhão chegasse. E estava tão perto.

- Está a brincar-respondeu, sabendo que Spicer não estava. Spicer não tinha sentido de humor e levava o seu dinheiro muito a sério.

- Não estou. E vamos alterar a sua percentagem.

- Uma ova é que vão. Um acordo é um acordo.

- Os acordos podem ser alterados. Daqui em diante, você recebe o mesmo que nós. Um quarto.

- Nem pensar nisso.

- Então está despedido.

- Não me podem despedir.   

-Acabei de o fazer. Julga que não conseguimos arranjar outro advogado que nos trate da correspondência? - Eu sei de mais - disse Trevor, corando de súbito com a boca seca.

- Não se sobrestime. Não é assim tão valioso.

- Sou sim. Sei tudo o que se está a passar aqui.

-E nós também, espertalhão. A diferença é que nós estamos na cadeia. Você é quem tem mais a perder. Arme-se em duro comigo e acabará sentado deste lado da mesa.

Trevor sentiu dores agudas na testa e fechou os olhos. Não estava em condições de discutir. Porque ficara até tão tarde no Pete’s na noite anterior? Tinha de estar bem acordado quando se ia ao encontro de Spicer. Em vez disso, estava exausto e semi-embriagado.

Tinha a cabeça a andar à roda e admitiu que pudesse vomitar outra vez. Fez as contas. Discutiam a diferença entre cento e setenta e sete e cento e vinte e cinco mil dólares. Francamente, ambas as quantias lhe pareciam boas. Não podia arriscar-se a ser despedido, porque conseguira afastar os poucos clientes que tinha. Passava menos tempo no escritório; não respondia aos telefonemas deles. Encontrara uma fonte de rendimento muito maior, por isso que fosse para diabo o movimento insignificante ao longo das praias.

E não era pessoa para medir forças com Spicer. O homem não tinha consciência. Era mau, falso e estava desesperado para extorquir todo o dinheiro que pudesse.

- O Beech e o Yarber concordam com isso? - perguntou ele, sabendo que estavam e que, mesmo que não estivessem, nunca o saberia.

- Claro. Eles é que estão a fazer o trabalho todo. Porque havia você de receber mais do que eles?

Parecia um pouco injusto.

- Está bem, está bem - disse Trevor, ainda com dores. - Há uma boa razão para estarem na prisão. «.«.

- Você anda a beber de mais? - Não! Porque pergunta?

- Conheci bêbados. Muitos. Está com muito mau aspecto.

- Obrigado. Cuide da sua vida, que eu cuido da minha.

- Combinado. Mas ninguém quer um advogado bêbado. Lida com o nosso dinheiro e em circunstâncias altamente ilegais. Se se descuidar a conversar num bar, alguém pode começar a fazer perguntas.
- Eu sei comportar-me.

- Ainda bem. Tenha cuidado consigo, também. Estamos a extorquir pessoas, a fazê-las sofrer. Se eu estivesse do outro lado da nossa pequena golpada, seria tentado a tentar obter algumas respostas antes de vomitar o dinheiro.

- Eles estão demasiado assustados.

- De qualquer modo, mantenha os olhos abertos. É importante que se mantenha sóbrio e alerta.

- Muito obrigado. Mais alguma coisa?

- Sim, tenho uns jogos para si.

Em cheio no que era importante. Spicer abriu um jornal e começaram a fazer apostas.

Trevor comprou uma cerveja num estabelecimento à saída de Trumble e bebeu-a enquanto se dirigia para Jacksonville. Tentou a todo o custo não pensar no dinheiro deles, mas não tinha controlo nos seus pensamentos. Entre a sua conta e a deles, havia apenas mais de duzentos e cinquenta mil dólares depositados offshore; era dinheiro a que poderia deitar a mão quando quisesse. Se lhe juntasse meio milhão de dólares - bem, não conseguia deixar de somar -, eram setecentos e cinquenta mil dólares!

Nunca seria apanhado a roubar dinheiro sujo; essa era a parte bonita. As vítimas dos Confrades não se queixavam por que se sentiam demasiado envergonhadas. Não estavam a infringir qualquer lei. Em contrapartida, os Confrades estavam a cometer crimes. Portanto, de quem iriam atrás se o dinheiro deles desaparecesse?

Trevor tinha de abandonar estes pensamentos.

Mas como podiam os Confrades apanhá-lo? Andaria num veleiro, a navegar entre ilhas de que nunca tinham ouvido falar. E quando acabassem por ser libertados, teriam energia, dinheiro e força de vontade para ir à procura dele? Evidentemente que não. Seriam velhos. Talvez Beech morresse em Trumble.

- Acaba com isso!-gritou a si próprio.

Foi a pé até Beach Java, bebeu um café triplo e regressou ao escritório para fazer qualquer coisa de produtivo. Entrou online e descobriu os nomes de vários detectives em Filadélfia. Eram quase seis horas quando começou a telefonar. Os dois primeiros telefonemas foram parar a gravadores.

O terceiro, para os escritórios de Ed Pagnozzi, foi atendido pelo próprio detective. Trevor explicou que era advogado na Florida e que precisava de um trabalho rápido em Upper Darby.

- Está bem. Que tipo de trabalho?

- Ando a tentar seguir uma correspondência aqui - disse Trevor,  loquaz. Dissera o mesmo tantas vezes que estava bem ensaiado. - Um grande caso de divórcio. Eu tenho a mulher e estou convencido que o marido anda a esconder dinheiro. De qualquer modo, preciso de alguém que descubra quem é que aluga uma certa caixa postal.

- Deve estar a brincar.

- Não. Estou a falar muito a sério. ,

- Quer que eu vá farejar uma caixa de correio?

- Trata-se de trabalho básico de detective.

- Ouça, amigo, estou muito ocupado. Telefone a outra pessoa qualquer. Pagnozzi desligou para se dedicar a assuntos mais importantes. Trevor amaldiçoou-o em surdina e ligou o número seguinte. Tentou mais dois e desligou quando lhe responderam gravadores. Voltaria a tentar no dia seguinte.

Do outro lado da rua, Klockner ouviu a conversa breve com Pagnozzi mais uma vez e depois telefonou para Langley. A última peça encaixara no puzzle e Mr. Deville havia de querer saber imediatamente.

Apesar de estar dependente de belas palavras, falinhas mansas e fotografias irresistíveis, a fraude era elementar no seu modo de funcionamento. Agarrava-se ao desejo humano e recompensava com o terror. A sua mecânica fora resolvida pelo dossier de Mr. Garbe, pela fraude simulada de Brant White e pelas outras cartas interceptadas.

Só havia uma pergunta que ficara sem resposta: se eram utilizados nomes falsos para alugar caixas postais, como é que os Confrades descobriam os verdadeiros nomes das suas vítimas? Os telefonemas para Filadélfia tinham-lhes fornecido a resposta. Trevor limitara-se a contratar um detective particular local, um menos ocupado do que Mr. Pagnozzi, evidentemente.

Eram quase dez horas quando Deville pôde finalmente ver Teddy. Os norte-coreanos tinham matado mais um soldado americano no DMZ e Teddy estava a tratar das consequências desde o meio-dia. Estava a comer queijo e bolachas de água e sal e a beber uma Diet Coke quando Deville entrou no abrigo.

Depois de um resumo rápido, Teddy disse:

- É o que eu pensava.

Os seus instintos eram estranhos, em especial quanto ao que devia ter sido feito.

- Isso significa, evidentemente, que o advogado conseguiu contratar alguém daqui para descobrir a verdadeira identidade de Al Konyers.

- Mas como?

- Podemos pensar em várias hipóteses. A primeira é a vigilância, do mesmo modo que nós apanhámos o Lake a ir à caixa postal às escondidas. É um pouco arriscado, porque é bem possível que sejamos detectados. A segunda é o suborno. Quinhentos dólares pagos a um funcionário dos correios dão resultado em muitos locais. A terceira é o registo informático. Esta matéria não é altamente confidencial. Um dos nossos conseguiu infiltrar-se na central dos correios emEvansville, Indiana, e obteve a lista de todos os alugueres de caixas postais. Foi um teste que não demorou mais de uma hora. É alta tecnologia. Baixa tecnologia é forçar a entrada na estação dos correios, durante a noite, e dar uma vista de olhos.

- Quanto é que ele paga por isso?

- Não sei, mas havemos de descobrir quando ele contratar um detective.

- Tem de ser neutralizado. -Eliminado?

- Por enquanto não. Prefiro comprá-lo primeiro. Ele é a nossa janela. Se estiver a trabalhar para nós, então ficamos a saber tudo e afastamo-lo do Konyers. Concebemos um plano.

- E quanto à eliminação dele?

- Avance e planeie-a, mas não temos pressa. Pelo menos por enquanto.


XXIII

O Sul gostava mesmo de Aaron Lake, com o seu amor por armas, l bombas, conversa dura e militares a postos. Lake inundou a Florida, Mississipi, Tennessee, Oklahoma e Texas com anúncios ainda mais ousados do que os primeiros. E a gente de Teddy inundou os mesmos estados com mais dinheiro do que alguma vez mudara de mãos na noite anterior a uma eleição.

O resultado foi outra derrota total, com Lake a conseguir 260 dos 312 delegados em jogo na pequena Super Terça-feira. Depois da contagem dos votos,em 14 de Março estavam decididos 1301 dos 2066 delegados.         l Lake levava uma vantagem considerável em relação ao governador Tarry       - 801 para 390.

A corrida terminara, impedindo uma catástrofe imprevista.

O primeiro trabalho de Buster em Trumble foi manejar um corta-relva, o que lhe rendia um salário inicial de vinte cêntimos à hora. Ou isso ou limpar o chão do refeitório. Buster escolheu o corte da relva porque gostava de Sol e não queria que a sua pele ficasse tão branca como a de alguns reclusos descorados que vira. Nem havia de engordar como eles. Isto é uma prisão. Como podem eles estar tão gordos?-repetia constantemente a si próprio.

Trabalhava arduamente ao Sol, mantinha o tom bronzeado, jurava que não havia de criar barriga e tentava corajosamente requerer uma medida judicial. Mas, dez dias depois, Buster percebeu que não iria durar quarenta e oito anos.

Quarenta e oito anos! Nem conseguia imaginar tanto tempo. Quem conseguia?

Chorou durante as primeiras quarenta e oito horas.

Há treze meses, ele e o pai tratavam do seu ancoradouro, trabalhavam nos barcos e iam à pesca no Golfo, duas vezes por semana.

Buster trabalhava lentamente à volta da vedação de cimento do campo de basquetebol em que decorria um jogo turbulento. Depois passou para a grande caixa de areia onde às vezes jogavam voleibol. Ao longe, um vulto solitário dava a volta à pista, um homem de aspecto envelhecido com os longos cabelos grisalhos apanhados num rabo-de-cavalo e sem camisa. Pareceu-lhe vagamente familiar. Buster aparou os dois lados de um passeio e foi-se aproximando da pista.

O caminhante solitário era Finn Yarber, um dos juizes que estavam a tentar ajudá-lo. Contornava o espaço oval com um passo firme, com a cabeça, as costas e os ombros direitos. Não era a imagem do atleta, mas não estava mal para um homem de sessenta anos. Ia descalço e em tronco nu e o suor escorria-lhe pela pele lustrosa.

Buster desligou o corta-relva e pousou-o no chão. Quando Yarber se aproximou, viu o rapaz e disse:

- Olá, Buster. Como vai isso?

-Ainda aqui estou! Importa-se que o acompanhe?-perguntou Buster.

- De maneira nenhuma - respondeu Finn sem alterar o ritmo da marcha.

Só depois de percorrerem duzentos metros é que Buster teve coragem de perguntar:

- Então como vão os meus recursos?

- O juiz Beech está a analisar o assunto. A sentença parece estar em ordem, o que não é uma boa notícia. Há muitos tipos aqui cujas sentenças contêm erros, e em geral conseguimos fazer uns requerimentos e reduzir alguns anos. Não é o teu caso. Lamento. - Não faz mal. Que importância têm uns anos quando estão em causa quarenta e oito? Vinte e oito, trinta e oito, quarenta e oito, o que interessa isso?

- Ainda tens os recursos. Há uma possibilidade de a decisão ser revista.

- Uma possibilidade remota.

-Não podes perder a esperança, Buster-disse Yarber, sem o mínimo vestígio de convicção. Manter uma certa esperança implicava manter uma certa fé no sistema. Yarber não tinha nenhuma. Fora apanhado e trucidado pelas mesmas leis que defendera no passado.

Mas pelo menos Yarber tinha inimigos, e quase conseguia compreender por que motivo é que eles o perseguiam.

Aquele pobre rapaz não fizera nada de mal. Yarber lera o suficiente do seu processo para acreditar que Buster estava totalmente inocente e que era mais uma vítima de um delegado do Ministério Público com excesso de zelo.

Aparentemente, a avaliar pelo processo, talvez o pai do miúdo tivesse escondido algum dinheiro, mas não fora nada de grave. Nada que justificasse uma acusação de 160 páginas por envolvimento em associação criminosa.

Esperança. Sentiu-se um hipócrita só de pensar na palavra. Os recursos estavam agora colados a conceitos de leite ordem e era raro um caso de droga ser revogado. Tinham metido na gaveta o recurso do rapaz e dito a si próprios que estavam a contribuir para aumentar a segurança nas ruas.

O maior cobarde fora o juiz. Era de esperar que os delegados do Ministério Público acusassem o mundo inteiro, mas os juizes deviam fazer a triagem dos arguidos. Buster e o pai deviam ter sido separados dos colombianos e dos seus acólitos e enviados para casa antes de o julgamento começar.

Agora um estava morto. O outro arruinado. E ninguém no sistema criminal federal se importava com isso. Era apenas mais um caso de associação criminosa aliada à droga.

Na primeira curva da pista oval, Yarber abrandou e depois parou. Olhou ao longe, para além de um prado bordejado por um renque de árvores. Buster olhou também. Há dez dias que olhava para o perímetro de Trumble e via o que lá não estava - vedações, arame farpado e torres de vigia.

- O último tipo que saiu daqui atravessou aquelas árvores - disse Yarber, de olhos em alvo. - O arvoredo estende-se por alguns quilómetros e depois chegamos a uma estrada rural.

- Quem era ele?

- Um tipo chamado Tommy Adkins. Era empregado bancário na Carolina do Norte e foi apanhado em flagrante.

- O que lhe aconteceu?

- Deu em maluco e um dia fugiu. Só seis horas depois é que deram pela falta dele. Daí a um mês, encontraram-no no quarto de um motel em Cocoa Beach, não os polícias mas as empregadas. Estava deitado no chão, em posição fetal, nu, com o dedo na boca e completamente louco. Internaram-no num manicómio qualquer.

- Seis horas, hem?

- Sim, isto acontece mais ou menos uma vez por ano. Alguém se vai embora. Eles notificam a polícia da nossa terra e introduzem o nosso nome na rede nacional de computadores, o costume.

- Quantos é que são apanhados?

- Quase todos.

- Quase.

- Sim, mas são apanhados porque fazem disparates. Embebedam-se em bares. Conduzem automóveis sem luzes traseiras. Vão ter com as namoradas.

- Então, se tivermos miolos, conseguimos?

- Claro. com um planeamento cuidadoso e algum dinheiro, seria fácil. Recomeçaram a andar, um pouco mais devagar.

- Diga-me uma coisa, Mr. Yarber - disse Buster. - Se o senhor tivesse quarenta e oito anos à sua frente, raspava-se?

- Sim.

- Mas eu não tenho um chavo.

- Tenho eu.

- Então vai ajudar-me. -

- Veremos. Espera algum tempo. Instala-te aqui. Eles andam mais de olho em ti porque és novo, mas com o tempo esquecem-te.

Buster sorriu. A sua sentença acabara de sofrer uma redução drástica.

- Sabes o que acontece se fores apanhado? - perguntou Yarber.

- Sei, eles acrescentam mais uns anos. Grande negócio. Talvez chegue aos cinquenta e oito. Não, senhor, se for apanhado, dou um tiro nos miolos.

- Era o que eu faria. Tens de estar preparado para sair do país.

- E ir para onde?

- Para qualquer lado em que te pareças com a gente da terra, e em que não te extraditem para os Estados Unidos.

- Algum sítio em especial?

- Argentina ou Chile. Sabes falar espanhol?

- Não.

- Começa a aprender. Temos aqui aulas de espanhol, sabias? São dadas por rapazes de Miami.

Durante algum tempo, caminharam em silêncio, enquanto Buster repensava o seu futuro. Sentia os pés mais leves, os ombros mais direitos e não conseguia deixar de sorrir.

- Por que me está a ajudar? - perguntou ele.

- Porque tens vinte e três anos. És muito novo e muito inocente.
 Foste lixado pelo sistema, Buster. Tens o direito de ripostar como puderes. Tens namorada?

- Mais ou menos.

- Esquece-a. Só te arranjará sarilhos. Além disso, julgas que ela vai esperar quarenta e oito anos?

- Ela disse que esperava.

- Está a mentir. Já anda a fazer planos. Esquece-a, a menos que queiras ser apanhado.

Sim, talvez ele tivesse razão, pensou Buster. Ainda não recebera uma única carta e, apesar de ela viver apenas a quatro horas de Trumble, ainda não o fora visitar. Tinham falado duas vezes ao telefone, e só parecia preocupada em saber se ele fora atacado.

- Há filhos? - perguntou Yarber.

- Não. Que eu saiba, não.

- E a tua mãe?

- Morreu quando eu era pequeno. Foi o meu pai que me criou. Éramos só nós os dois.

- És o tipo ideal para fugir.

- Eu gostava de me ir embora já.

- Tem paciência. Vamos planear a coisa com cuidado.

Mais um período de silêncio e Buster teve vontade de desatar a correr. Nada lhe escapara em Pensacola. Tivera boas notas em Espanhol no liceu e, apesar de não se lembrar de nada, não tivera dificuldades. Havia de aprender depressa. Havia de tirar o curso e de se entender com os latinos.

Quanto mais andava, mais queria afirmar a sua convicção. E quanto mais depressa, melhor. Se o seu recurso fosse aceite, seria obrigado a submeter-se a outro julgamento, e não tinha confiança no júri.

Buster tinha vontade de fugir, de atravessar o prado até chegar ao renque de árvores, de atravessar o bosque até chegar à estrada secundária, onde não saberia ao certo o que havia de fazer. Mas se um empregado bancário louco conseguira fugir e chegar a Cocoa Beach, também havia de conseguir.

- Porque não fugiu? - perguntou ele a Yarber.

-Tenho pensado nisso. Mas daqui a cinco anos deixam-me sair. Posso esperar. Terei sessenta e cinco anos, estarei de boa saúde e terei uma esperança de vida de dezasseis anos. É para isso que vivo, Buster, para os últimos dezasseis anos. Não quero olhar para trás.

- Para onde vai?

- Ainda não sei. Talvez para uma aldeola em Itália. Talvez para as montanhas do Peru. Tenho o mundo inteiro à minha disposição e todos os dias passo horas a sonhar com isso.

- Então tem muito dinheiro?

- Não, mas lá chegarei.

Isto suscitava uma série de perguntas, mas Buster não as fez. Estava a aprender que, na prisão, tinha de guardar a maior parte das perguntas para si próprio.

Quando Buster se cansou de andar, parou junto do seu corta-relva.

- Obrigado, Mr. Yarber - disse.

- Não há problema. Esta conversa não sai daqui.

- com certeza. Estou pronto sempre que o senhor quiser.

Finn afastou-se e caminhou durante mais algum tempo. Tinha os calções ensopados em suor e o rabo-de-cavalo grisalho a pingar. Buster viu-o afastar-se e em seguida deitou uma olhadela ao prado e às árvores.

Nesse momento, via o caminho até à América do Sul.

 

XXIV

Durante dois longos e árduos meses, Aaron Lake e o governador Tarry tinham andado taco a taco, de costa a costa, em vinte e seis estados com quase vinte e cinco milhões de votos na mira. Trabalhavam dezoito horas por dia, com agendas brutais, viagens constantes, a loucura típica de uma corrida à presidência.

No entanto, tinham feito igualmente um grande esforço para evitar um debate frente a frente. Tarry não queria nenhum no início das primárias porque levava vantagem. Tinha a organização, o dinheiro e as sondagens favoráveis. Para quê legitimar a oposição? Lake não queria nenhum porque era um recém-chegado à cena nacional, um aprendiz nas altas paradas da campanha, e além disso era muito mais fácil esconder-se atrás de um guião e de uma câmara simpática e fazer anúncios sempre que fosse necessário. Os riscos de um debate em directo eram pura e simplesmente demasiado altos.

Teddy também não gostava de pensar nisso.

Mas as campanhas mudam. Os candidatos que vão à frente desaparecem, as pequenas questões tornam-se grandes e a imprensa consegue criar uma crise apenas à custa do enfado.

Tarry concluiu que precisava de um debate porque estava derrotado e a perder as primárias, umas atrás das outras. «O Aaron Lake está a tentar comprar estas eleições. E eu quero defrontá-lo, de homem para homem», dizia ele vezes sem conta. Parecia uma boa ideia, e a imprensa insistira furiosamente nela.

- Ele anda a fugir de um debate - declarava Tarry, e a ideia também agradava à sua equipa.

- O governador anda a esquivar-se a um debate desde o Michigan era a resposta habitual de Lake.

E assim, durante três semanas, andaram a fugir um do outro até que as suas equipas começaram a tratar dos pormenores sem fazerem barulho.
Lake mostrava-se relutante, mas também precisava de um foro. Apesar de estar a ganhar há várias semanas, estava a trucidar um opositor que se encontrava em declínio há muito tempo. As suas sondagens e as do CAP-D mostravam que havia muitos eleitores interessados nele, mas essencialmente por ser novo, atraente e aparentemente elegível.

Desconhecidas do grande público, as sondagens também revelavam algumas áreas muito sensíveis. A primeira dizia respeito à questão da campanha monodireccionada de Lake. Os gastos com a defesa só conseguem entusiasmar os eleitores durante algum tempo, e as sondagens revelavam que o eleitorado estava muito interessado no que Lake pensava acerca de outras questões.

Segundo, Lake ainda estava cinco pontos atrás do vice-presidente no hipotético confronto de ambos em Novembro. Os eleitores estavam cansados do vice-presidente, mas pelo menos sabiam quem era. Lake continuava a ser um mistério para muita gente. Além disso, os dois iriam discutir várias vezes antes de Novembro. Lake, que tinha a nomeação na mão, tinha de passar por essa experiência.

Tarry não ajudava com as suas perguntas constantes: «Quem é Aaron Lake?» com alguns dos escassos fundos que lhe restavam, autorizou a impressão de autocolantes para os pára-choques com a agora célebre pergunta: «Quem é Aaron Lake?»

(Era uma pergunta que Teddy fazia a si próprio quase de hora a hora, mas por um motivo diferente.)

O cenário do debate foi na Pennsylvania, num pequeno colégio luterano com uma assistência acolhedora, uma boa acústica e iluminação e uma multidão controlável. As duas facções cuidaram dos mais ínfimos pormenores, mas como ambas as partes precisavam agora de um debate, foram alcançados alguns consensos. O formato exacto quase provocara confrontos físicos, mas depois de resolvidos os problemas todos ficaram com alguma coisa. Os órgãos de informação enviaram três repórteres para o palco, para fazerem perguntas directas durante uma parte do debate. Os espectadores conseguiram vinte minutos para fazerem toda a espécie de perguntas, sem reservas. Tarry, que era advogado, quis cinco minutos para comentários iniciais e uma declaração de dez minutos no final. Lake quis trinta minutos para o debate com Tarry e nada de restrições, ninguém a arbitrar, só os dois a discutirem sem regras. Isto aterrara a equipa de Tarry e ia destruindo o acordo.

O moderador era uma figura pública da rádio local e quando disse «Boa-noite e bem-vindos ao primeiro e único debate entre o governador
Wendell Tarry e o congressista Aaron Lake», cerca de dezoito milhões de pessoas estavam a ver o programa.

Tarry vestia um fato azul-escuro escolhido pela mulher, com a tradicional camisa azul e a habitual gravata vermelha e azul. Lake levava um fato castanho-claro, uma camisa branca de colarinho comprido e uma gravata castanha e vermelha e com mais meia-dúzia de cores. Todo o conjunto fora montado por um consultor de moda e concebido para complementar as cores do cenário. O cabelo de Lake levara uma pintura. Os dentes tinham sido branqueados. Lake passara quatro horas numa marquesa para se bronzear. Tinha um ar leve e fresco e estava ansioso por entrar no palco.

O governador Tarry era um homem atraente. Apesar de ter apenas mais quatro anos do que Lake, a campanha estava a exigir-lhe um elevado preço. Tinha os olhos cansados e vermelhos. Ganhara alguns quilos, sobretudo na cara. Quando começou a falar, gotas de suor escorreram-lhe pela testa e brilharam com as luzes.

De acordo com a sabedoria convencional, Tarry tinha mais a perder porque já perdera muito. No princípio de Janeiro, profetas tão prescientes como a Time tinham afirmado que a nomeação estava ao seu alcance. Há três anos que iniciara a corrida. A sua campanha contava com o apoio da população rural e do cidadão comum. Todos os presidentes dos círculos eleitorais e todos os especialistas de sondagens de lowa e New Hampshire tinham tomado café com ele. A sua organização era impecável.

Depois chegara Lake com os seus anúncios engenhosos e a sua magia unívoca.

Tarry precisava desesperamente de ter um desempenho surpreendente ou de uma enorme gaffe de Lake.

Nenhuma destas duas coisas aconteceu. Por moeda ao ar, foi o primeiro a entrar em cena. Tropeçou nos seus comentários iniciais enquanto se deslocava no placo, crispado e tentando desesperadamente mostrar-se descontraído, mas esquecendo-se do que diziam os apontamentos. É verdade que em tempos fora advogado, mas a sua especialidade eram os seguros. Quando começou a esquecer-se dos pontos, uns atrás dos outros, voltou ao seu tema habitual. «Mr. Lake está aqui a tentar comprar as eleições porque não tem nada para dizer.» Depressa criou um tom desagradável. Lake sorria com elegância, como um pato a sacudir a água das penas.

O começo frágil de Tarry encorajou Lake, deu-lhe um acréscimo de confiança e convenceu-o a ficar atrás do pódio, onde estava em segurança
e onde se encontravam os seus apontamentos. Começou por dizer que não estava ali para atacar ninguém e que respeitava o governador Tarry, mas tinham acabado de o ouvir falar durante cinco minutos e onze segundos e não dissera nada de positivo.

Depois, ignorou o seu opositor e, em poucas palavras, aflorou três assuntos que precisavam de ser discutidos. Redução dos impostos, reforma da assistência social e défice comercial. Nem uma palavra sobre a defesa.

A primeira pergunta do painel de repórteres foi dirigida a Lake, e tinha a ver com o excedente orçamental. O que devia ser feito com o dinheiro? Era um ponto suave, levantado por um repórter simpático, e Lake excedeu-se. Salvar a Segurança Social, respondeu ele, e depois, numa impressionante exibição de discurso financeiro, explicou em traços largos como é que o dinheiro devia ser gasto. Recorreu a números, percentagens e projecções, tudo de memória.

O governador Tarry respondeu apenas que se deviam reduzir os impostos. Devolver o dinheiro às pessoas que o tinham ganho.

Foram poucos os pontos aflorados durante o interrogatório. Os dois candidatos estavam bem preparados. A surpresa foi que Lake, o homem que queria dominar o Pentágono, era igualmente versado em todos os outros assuntos.

O debate centrou-se no habitual dar e tirar. As perguntas dos espectadores foram totalmente previsíveis. O furor começou quando os candidatos foram autorizados a fazer perguntas um ao outro. Tarry foi o primeiro e, como seria de esperar, perguntou a Lake se ele estava a tentar comprar as eleições.

- Você não estava preocupado com o dinheiro quando tinha mais do que todos os outros - disparou Lake, e o público vibrou.

- Eu não tinha cinquenta milhões de dólares - respondeu Tarry.

- Nem eu - disse Lake. - Estou mais perto dos sessenta milhões, e o dinheiro chega tão depressa que nem conseguimos contá-lo. Vem dos trabalhadores e de pessoas com um rendimento médio. Oitenta por cento dos nossos apoiantes são pessoas que ganham menos de quarenta mil dólares por ano. Tem alguma coisa contra essas pessoas, governador Tarry?

- Devia haver um limite para o montante dos gastos de um candidato.

- Concordo. E votei oito vezes a favor desse limite no Congresso. Em contrapartida, o senhor nunca se referiu a limites senão quando ficou sem dinheiro.
O governador Tarry fitou a câmara como se fosse Quayle, com o olhar imóvel de um veado diante dos holofotes. Ouviram-se risos de alguns dos apoiantes de Lake na assistência.

As gotas de suor voltaram à testa do governador quando consultou os seus enormes blocos de apontamentos. Não era um governador em exercício mas, mesmo assim, preferia o título. Na realidade, há nove anos que os eleitores de Indiana o tinham mandado passear, logo após o primeiro mandato. Lake não utilizou esta arma durante alguns minutos.

- Não me lembro de cinquenta e quatro impostos - disse Lake. Mas muitos deles eram sobre o tabaco, o álcool e o jogo. Também votei contra o aumento dos impostos sobre o rendimento das pessoas singulares, dos impostos sobre as empresas, dos impostos federais e das taxas da Segurança Social. Não me envergonho disso. E por falar de impostos, governador, durante os seus quatro anos em Indiana, como explica o facto de os escalões dos impostos individuais terem subido seis por cento em média?

Não surgiu qualquer resposta pronta, e Lake continuou:

- O senhor quer reduzir as despesas federais, mas durante os quatro anos que passou no estado de Indiana, as despesas aumentaram dezoito por cento. Quer reduzir os impostos das empresas, mas durante os seus quatro anos em Indiana os impostos das empresas aumentaram três por cento. Quer acabar com a assistência, mas quando era governador foram acrescentadas quarenta mil pessoas às listas da assistência em Indiana. Como explica isto?

Cada ataque vindo de Indiana fazia sangue, e Tarry estava pelos cabelos.

- Discordo dos seus números - conseguiu dizer. - Nós criámos postos de trabalho em Indiana.

- Ai sim? - disse Lake num tom sardónico.

Tirou uma folha de papel da sua estante como se fosse uma acusação formal do estado de Indiana contra o governador Tarry.

- Talvez tenha criado, mas durante o seu mandato de quatro anos houve cerca de sessenta mil trabalhadores que se inscreveram no desemprego - anunciou, sem olhar para o papel.

Era verdade que Tarry tivera uns quatro anos maus como governador, mas a economia não o ajudara. Ele explicara tudo isto antes e adorava voltar a fazê-lo, mas - bolas! - só dispunha de alguns minutos para falar na televisão nacional. Decerto não ia desperdiçá-los referindo-se a ninharias que pertenciam ao passado.

- Esta corrida não diz respeito a Indiana - disse ele, sorrindo com esforço. - Diz respeito a todos os cinquenta estados. A todo o povo trabalhador que espera pagar mais impostos para financiar os seus projectos megalómanos de defesa, Mr. Lake. O senhor não pode estar a falar a sério quando promete duplicar o orçamento do Pentágono.

Lake deitou um olhar implacável ao seu opositor.

- Estou a falar muito a sério. E se o senhor quisesse umas forças armadas fortes, também falaria a sério.

Em seguida, desfiou um rosário de estatísticas, que se encadeavam umas nas outras. Era a prova conclusiva da impreparação das forças armadas americanas, e quando terminou os militares americanos teriam sofrido grandes pressões para invadir as Bermudas.

Mas Tarry tinha um estudo de sentido contrário, um manuscrito grosso e lustroso produzido por um instituto dirigido por antigos generais. Agitou-o diante das câmaras e defendeu que tal espalhafato era desnecessário. O mundo estava em paz, com excepção de alguns conflitos cívicos e regionais, disputas em que não estavam envolvidos quaisquer interesses nacionais, e os Estados Unidos eram de longe a única superpotência que se situava à esquerda. A Guerra Fria passara à história. Os chineses estavam a décadas de alcançarem qualquer coisa que se parecesse de longe com a paridade. Para quê sobrecarregar os contribuintes com dezenas de biliões de dólares gastos em novos equipamentos?

Durante algum tempo discutiram sobre o modo de o pagarem, e Tarry focou pontos de interesse menor. Mas estavam no terreno de Lake, e à medida que o assunto se arrastava tornava-se evidente que Lake sabia muito mais do que o governador.

Lake deixou o melhor para o fim. Nos seus dez minutos finais, regressou a Indiana e continuou a enumerar a lista infeliz dos erros de Tarry durante o seu único mandato. O tema era simples e muito eficaz: se não conseguira governar Indiana, como havia de conseguir governar todo o país?

- Não estou a criticar as pessoas de Indiana - disse Lake em determinado momento. - A verdade é que elas tiveram o bom senso de devolver Mr. Tarry à vida privada logo ao fim de um mandato. Elas sabiam que ele estava a fazer um péssimo trabalho. Por isso é que só trinta e oito por cento votaram nele quando lhes foram pedidos mais quatro anos. Trinta e oito por cento! Devemos confiar nas pessoas de Indiana. Elas conhecem este homem. Elas viram-no governar. Elas cometeram um erro e livraram-se dele. Seria triste que o resto do país cometesse o mesmo erro.
As sondagens instantâneas deram uma vitória sólida a Lake. O CAP-D telefonou a um milhar de eleitores logo após o debate. Quase setenta por cento considerou que Lake era o melhor dos dois.

Num voo tardio de Pittsburgh para Wichita, foram abertas várias garrafas de champanhe na Air Lake e iniciou-se uma pequena festa. Os resultados da sondagem sobre o debate estavam a chegar, cada um melhor do que o anterior, e o ambiente era de vitória.

Lake não proibira o álcool no seu Boeing, mas desincentivara-o. Se e quando um membro da sua equipa tomava um copo, era sempre à pressa        e sempre às escondidas. Mas havia momentos que mereciam ser celebrados. Lake bebeu duas taças de champanhe. Só os seus colaboradores mais próximos é que estavam presentes. Lake agradeceu-lhes e felicitou-os, e só por graça eles viram os destaques do debate enquanto abriam outra garrafa de champanhe. Imobilizavam o vídeo sempre que o governador Tarry se mostrava particularmente confuso, e as gargalhadas eram mais sonoras.

Mas a festa foi breve; o cansaço era grande. Eram pessoas que dormiam cinco horas por noite há várias semanas. A maioria dormira ainda menos na noite anterior ao debate. O próprio Lake estava exausto. Acabou de beber a terceira taça - há muitos anos que não bebia tanto - e        l instalou-se na sua poltrona de couro reclinável com uma pesada manta por cima do corpo. Viam-se corpos espalhados por todo o lado na escuridão da cabina.

Lake não conseguiu dormir; raramente conseguia pregar olho nos aviões. Tinha demasiadas coisas em que pensar e com que se preocupar. Era impossível não saborear a vitória no debate e, enquante se mexia debaixo da manta, reviveu os pontos altos da noite. Fora brilhante, algo que nunca admitiria diante de mais ninguém.

A nomeação era sua. Seria exibido na convenção e depois, durante quatro meses, com o vice-presidente lutariam lado a lado segundo a maior das tradições americanas.

Lake acendeu a pequena luz de leitura por cima de si. Havia mais alguém a ler no corredor, junto da cabina de pilotagem. Mais alguém com insónias que acendera a única outra luz da cabina. As pessoas ressonavam        • debaixo dos cobertores, dormiam o sono próprio de jovens apressados e        sujeitos a uma pressão enorme.

Lake abriu a pasta e tirou um pequeno dossier de couro cheio de cartões destinados à sua correspondência pessoal. Eram de dez, por  quinze,  pesados, branco-sujo e com o nome de «Aaron Lake» impresso a negro em cima. Com uma caneta Mont Blanc grossa e antiga, Lake escreveu umas linhas ao seu colega de quarto da universidade, que era agora professor de Latim num pequeno colégio do Texas. Agradeceu ao moderador do debate e ao seu coordenador de Oregon. Lake adorava os romances de Clancy. Acabara de ler o último, ainda mais grosso, e escreveu um bilhete ao autor, a felicitá-lo.

Às vezes, alongava-se e era por isso que tinham cartões lisos, do mesmo tamanho e da mesma cor, mas sem o nome. Olhou à volta para se certificar de que estavam todos a dormir profundamente, e escreveu à pressa:

Caro Ricky,

Creio que é melhor pormos fim à nossa correspondência. Desejo-te felicidades na tua recuperação.

Cumprimentos,

Al

Escreveu o endereço num envelope liso. O nome de Aladdin North surgiu de memória. Em seguida, voltou aos seus cartões personalizados e escreveu uma série de bilhetes a agradecer contribuições de vulto. Escreveu vinte antes de o cansaço finalmente se instalar. com os cartões ainda à sua frente e a luz acesa, cedeu à exaustão e daí a pouco adormeceu.

Estava a dormir há menos de uma hora quando foi acordado por vozes em pânico. As luzes estavam acesas, as pessoas andavam de um lado para o outro e havia fumo na cabina. Um alarme qualquer soava na cabina do piloto e, assim que despertou por completo, Lake percebeu que o nariz do Boeing estava apontado para baixo. O pânico total instalou-se rapidamente quando as máscaras de oxigénio foram projectadas de cima. Depois de vários anos a assistir às demonstrações de rotina antes da descolagem, as malditas máscaras iam de facto ser usadas. Lake pôs a sua e inalou com força.

O piloto anunciou que iriam fazer uma aterragem de emergência em St. Louis. As luzes vacilaram e alguém gritou. Lake tinha vontade de se deslocar na cabina e de sossegar toda a gente, mas a máscara não o deixava mexer-se. Atrás dele, iam duas dúzias de repórteres e outros tantos elementos dos serviços secretos.

Talvez as máscaras de oxigénio não tivessem caído lá atrás, pensou ele, sentindo-se culpado.

O fumo tornou-se mais espesso e as luzes apagaram-se. Depois do pânico instalado, Lake conseguiu ter um ou dois pensamentos racionais, ainda que por pouco tempo. Guardou à pressa os cartões e os envelopes. O que era destinado a Ricky mereceu a sua atenção e foi enfiado num envelope dirigido a Aladdin North. Lake fechou-o e guardou o dossier  na pasta. As luzes estremeceram de novo e depois apagaram-se para sempre.

O fumo fazia-lhes arder os olhos e aquecia-lhes a cara. O avião estava a descer rapidamente. Ouviam-se campainhas de aviso e sirenes vindas da cabina de pilotagem.

Isto não pode estar a acontecer, pensou Lake, agarrando-se aos braços do assento. Estou prestes a ser eleito presidente dos Estados Unidos. Pensou em Rocky Marciano, Buddy Holly, Otis Redding, Thurman Munson, no senador Tower do Texas, em Mickey Leland de Houston, um seu amigo. E em J. K. Kennedy Júnior e em Ron Brown.

De repente, o ambiente arrefeceu e o fumo dissipou-se rapidamente. Encontravam-se abaixo dos dez mil pés, e o piloto conseguira ventilar a cabina. O avião endireitou-se e, das janelas, avistaram luzes no solo.

- Por favor, conservem as máscaras de oxigénio - disse o piloto às escuras. - Dentro de alguns minutos estaremos no solo. A aterragem deverá decorrer sem incidentes.

- Sem incidentes? Devia estar a brincar, pensou Lake. Precisava de ir urgentemente à casa de banho.

O alívio instalou-se dificilmente no avião. Precisamente antes de aterrarem, Lake avistou as luzes intermitentes de inúmeros veículos de emergência. Oscilaram um pouco, como era habitual nas aterragens, e quando o aparelho se imobilizou no fim da pista as portas de emergência abriram-se.

A saída foi precipitada mas controlada e, daí a alguns minutos, todos os passageiros foram conduzidos para ambulâncias pelo pessoal de socorro. O incêndio que deflagrara no porão do Boeing continuava a lavrar. Quando Lake saiu do avião, os bombeiros precipitaram-se para o aparelho. Via-se fumo a sair de baixo das asas.

Mais uns minutos e estaríamos mortos, pensou Lake.

- Foi mesmo à justa, senhor - disse um paramédico quando a ambulância arrancou.
Lake agarrou-se à pasta, com as cartas lá dentro, e pela primeira vez ficou rígido de horror.

Aquilo que ia sendo uma catástrofe e a barreira obrigatória aos órgãos de informação que se lhe seguiu teriam contribuído pouco para aumentar a popularidade de Lake. Mas a publicidade não foi contraproducente. Lake era uma figura omnipresente nos noticiários da manhã, ora a falar da sua vitória decisiva no debate com o governador Tarry, ora a fornecer pormenores sobre aquele que poderia ter sido o seu último voo.

- Creio que andarei de autocarro durante uns tempos - disse, soltando uma gargalhada.

Recorreu ao humor na medida do possível e optou por fazer de conta que nada se passara. Os membros da sua equipa contaram várias histórias sobre a inalação de oxigénio às escuras enquanto o fumo se tornava mais espesso e quente. E os repórteres que iam a bordo constituíram fontes de informação muito solicitadas, fazendo relatos pormenorizados do terror vivido.

Teddy Maynard assistiu a tudo do seu abrigo. Três dos seus homens iam no avião e um deles telefonou-lhe do hospital em St. Louis.

Fora um acontecimento surpreendente. Por um lado, Teddy continuava a acreditar na importância de ter Lake como presidente. A segurança da nação dependia disso.

Por outro, um desastre não teria sido propriamente uma catástrofe. Lake e a sua vida dupla teriam desaparecido. Teria sido o fim de uma grande dor de cabeça. O governador Tarry fora o primeiro a conhecer o poder do dinheiro ilimitado. Teddy podia fazer um acordo com ele a tempo de vencer a eleições em Novembro.

Mas Lake continuava a existir, mais forte do que nunca. O seu rosto bronzeado vinha nas primeiras páginas de todos os jornais e fora captado por quase todas as câmaras. A sua campanha evoluíra mais depressa do que Teddy imaginara.

Então, porque havia tanta angústia no abrigo? Porque não estava Teddy a festejar?

Porque ainda tinha o enigma dos Confrades para resolver. E não podia desatar a matar gente sem mais nem menos.

 

XXV

A equipa dos Documentos serviu-se do mesmo computador que usara para escrever a última carta a Ricky. Esta foi redigida pelo próprio Deville e aprovada por Mr. Maynard. Dizia o seguinte:

Caro Ricky,

É uma boa notícia a da tua ida para o lar, em Baltimore. Dá-me ...    alguns dias e creio que te conseguirei arranjar lá um emprego a tempo inteiro. E um trabalho de escritório, não dá muito dinheiro, mas é bom para começar.

Proponho que avancemos um pouco mais devagar do que pretendes. , Talvez um bom almoço a princípio, e depois veremos como correm as coisas. Não sou pessoa para me atirar de cabeça.

Espero que continues bem. Escrevo-te na próxima semana, quando tiver os pormenores do emprego. Aguarda.

Felicidades, Al

Só «Al» é que estava escrito à mão. Foi aplicado um carimbo de Washington, a carta seguiu de avião e foi entregue em mão a Klockner,em Neptune Beach.

Por acaso, Tre vor encontrava-se em Fort Lauderdale, curiosamente a tentar legalizar o negócio, e a carta ficou na caixa de Aladdin North durante dois dias. Quando o advogado voltou, exausto, passou pelo seu escritório e teve uma discussão desagradável com Jan. Saiu, furioso, meteu-se no automóvel e foi aos Correios. Deliciado, foi encontrar a caixa cheia. Separou a correspondência que era para deitar fora, dirigiu-se aos correios de Atlantic Beach, que ficavam a oitocentos metros, e verificou a caixa de Laurel Ridge, a suposta clínica de reabilitação de Percy.
Depois de recolher toda a correspondência, e para grande desgosto de Klockner, foi para Trumble. Fez um telefonema no caminho para o seu agente de apostas. Perdera dois mil e quinhentos dólares em três dias, no hóquei, um desporto de que Spicer não percebia nada e no qual se recusava a apostar. Trevor escolhera os seus favoritos, com resultados previsíveis.

Spicer não respondeu à mensagem enviada para o pátio de Trumble e por isso foi Beech que recebeu Trevor na sala dos advogados. Procederam à troca de correspondência habitual - oito cartas para expedir e catorze recebidas.

- E aquele Brant de Upper Darby? - perguntou Beech, procurando entre os envelopes.

- Que quer saber?

- Quem é ele? Estamos prontos para o espremer.

- Continuo a investigar. Estive uns dias fora.

- Trate disso. Talvez esse tipo seja o mais importante.

- Vou tratar disso amanhã.

Beech não tinha negócios em Las Vegas que lhe dessem que pensar e não quis jogar às cartas. Trevor saiu vinte minutos depois.

Muito depois da hora do jantar e do encerramento da biblioteca, os Confrades ficaram fechados na sua salinha, falando pouco, evitando o contacto visual uns com os outros e olhando para as paredes, embrenhados nos seus pensamentos.

Em cima da mesa estavam três cartas. Uma fora escrita no computador de Al e tinha um carimbo de há dois dias, de Washington. Outra era um bilhete manuscrito de Al a pôr fim à sua correspondência com Ricky, com carimbo de St. Louis, três dias antes. Eram contraditórias, e era óbvio que tinham sido escritas por duas pessoas diferentes. Alguém andava a violar-lhes a correspondência.

A terceira carta deixara-os gelados. Leram-na e releram-na, um por um, em conjunto, em silêncio, em uníssono. Pegaram-lhe pelos cantos, viram-na à luz e até a cheiraram. Cheirava ligeiramente a fumo, tal como o envelope e o bilhete de Al a Ricky.

Escrita à mão e a tinta, tinha data de 18 de Abril, à uma e vinte da madrugada, e era dirigida a uma mulher chamada Carol.

Querida Carol,

Mas que grande noite! O debate não podia ter corrido melhor, em parte graças a ti e aos voluntários de Pennsylvania. Muito obrigado! Vamos continuar em força e ganhar isto. Vamos à frente em Pennsylvania, e ficamos por aí. Até para a semana.

Estava assinada por Aaron Lake. O cartão tinha o nome dele impresso em cima. A letra era idêntica à do bilhete lacónico que Al enviara a Ricky.

O envelope era dirigido a Ricky em Aladdin North, e quando Beech o abriu não reparou no segundo cartão colado ao primeiro. Depois, este caiu em cima da mesa e, quando Beech lhe pegou, reparou no nome «Aaron» Lake impresso a negro.

Isto aconteceu por volta das quatro horas da tarde, não muito depois de Trevor se ter ido embora. Durante cerca de cinco horas, tinham examinado a correspondência e, nesse momento, tinham quase a certeza de que a) a carta escrita a computador era falsa, em que o nome «Al» fora assinado por algum especialista em falsificações;  a assinatura forjada de «Al» era idêntica à original, e por conseguinte o falsificador conseguira ter acesso à correspondência entre Ricky e Al; e) os bilhetes dirigidos a Ricky e a Carol tinham sido manuscritos por Aaron Lake; e aquele que era dirigido a Carol fora enviado por engano.

Acima de tudo, Al Konyers era realmente Aaron Lake.

A pequena fraude dos Confrades apanhara o político mais famoso do país.

Por outro lado, outras provas menos importantes também apontavam para Lake. A sua fachada era um serviço de caixas postais existente na zona de Washington, um local onde o congressista Lake passava uma boa parte do seu tempo. Como era um funcionário eleito e com grande visibilidade, quase sempre sujeito aos caprichos dos eleitores, escondera-se atrás de um nome falso. E servira-se de um computador com impressora para esconder a sua letra. Al não enviara nenhuma fotografia, um sinal de que tinha muito a esconder.

Os Confrades consultaram jornais recentes existentes na biblioteca para compararem as datas. Os bilhetes manuscritos tinham sido enviados de St. Louis na véspera do debate, quando Lake lá se encontrava por ter deflagrado um incêndio no seu avião.

A oportunidade parecia ideal para Lake acabar com as cartas. Iniciara a troca de correspondência antes de entrar na corrida. Em três meses,
 tomara de assalto o país e tornara-se muito famoso. Agora tinha muito a perder.

A pouco e pouco, sem se preocuparem com o tempo, os Confrades construíram uma teoria contra Aaron Lake. E quando ela lhes pareceu consistente, tentaram destruí-la. A maior oposição veio de Finn Yarber.

Suponham, disse ele, que alguém da equipa de Lake teve acesso a esta correspondência. Não era uma má hipótese, e durante cerca de uma hora pensaram nela. Al Konyers não seria capaz de tal coisa para se esconder? E se vivesse em Washington e trabalhasse para Lake? E se Lake, um homem muito ocupado, tivesse confiado no assistente para escrever bilhetes pessoais em vez dele? Yarber não se lembrava de ter dado tal confiança a um assistente quando era juiz-presidente. Beech nunca permitira que alguém escrevesse os seus bilhetes pessoais. Spicer nunca se entregara a tais disparates. Era para isso que serviam os telefones.

Mas Yarber e Beech desconheciam a tensão e o frenesi de qualquer coisa que se parecesse vagamente com uma campanha presidencial. Tinham sido homens ocupados no seu tempo, constataram com amargura, mas nada que se parecesse com Lake.

E se fosse um assistente de Lake? Até então, estava totalmente coberto porque não lhes contara quase nada. Não lhes enviara nenhuma fotografia. Os pormenores acerca da carreira e da família eram muito vagos. Gostava de filmes antigos e de comida chinesa, e isto era tudo o que lhe tinham arrancado. Konyers constava da lista de correspondentes a atacar por ser demasiado tímido. Porque havia ele de acabar com a relação naquele momento?

Não havia nenhuma resposta pronta.

E a discussão foi frustrante. Beech e Yarber concluíram que ninguém na posição de Lake, ninguém com uma hipótese de vir a ser presidente dos Estados Unidos permitiria que outra pessoa escrevesse e assinasse bilhetes pessoais. Lake tinha dezenas de elementos da sua equipa para processar cartas e memorandos que poderiam ser rapidamente assinados por si.

Spicer levantara uma questão mais grave. Porque havia Lake de arriscar-se a enviar um bilhete manuscrito? As suas cartas anteriores tinham sido dactilografadas em papel branco e enviadas num envelope sem quaisquer elementos de identificação. Eles sabiam identificar um cobarde pela escolha do papel, e Lake era tão medroso como os outros que tinham respondido ao anúncio. A campanha, rica como era, tinha
muitos computadores e máquinas de escrever, sem dúvida de tecnologia recente.

Para responder à pergunta, os Confrades concentraram-se nas poucas provas de que dispunham. A carta a Carol fora escrita à uma e vinte da madrugada. Segundo um jornal, a aterragem de emergência registara-se cerca das duas e um quarto, menos de uma hora depois,

- Ele escreveu-a no avião - disse Yarber. - Era tarde, o avião ia cheio de gente, quase sessenta pessoas, segundo o jornal, que estavam exaustas. Talvez ele não tivesse acesso a nenhum computador.

- Então porque não esperou? - perguntou Spicer. Provara que era excelente a fazer perguntas a que ninguém sabia responder, sobretudo ele.

- Cometeu um erro. Julgou que estava a ser esperto e talvez não estivesse. Misturou a correspondência.

- Olhem para o que é importante - disse Beech. - A nomeação está no papo. Ele acabou de aniquilar o seu único opositor, na presença de uma audiência nacional, e está convencido de que ganha as eleições em Novembro. Mas tem este segredo. Tem o Ricky e há várias semanas que anda a pensar no que há-de fazer com ele. O rapaz vai ter alta e quer marcar um encontro, etc. Lake sente a pressão em duas frentes, do Ricky e da consciência de que pode vir a ser presidente. Por isso resolve dar com os pés no Ricky. Escreve um bilhete que tem uma hipótese num milhão de ser interceptado e, depois, o avião incendeia-se. Comete um pequeno erro que se transforma num monstro.

- E não sabe. Por enquanto - acrescentou Yarber.

A teoria de Beech fazia sentido. Os Confrades absorveram-na no silêncio pesado da sua pequena sala. A gravidade da descoberta abateu-se sobre as suas palavras e os seus pensamentos. As horas passavam e ela ia assentando lentamente.

Quanto à segunda grande questão, foram confrontados com a realidade surpreendente de que alguém andava a intrometer-se na sua correspondência. Quem? E porque havia alguém de querer fazer tal coisa? Como tinha interceptado as cartas? O enigma parecia não ter solução.

Mais uma vez, admitiram a possibilidade de o culpado ser alguém muito próximo de Lake, talvez um assistente com acesso às cartas. E talvez tentasse proteger Lake de Ricky, apoderando-se da correspondência, com o objectivo de um dia arranjar maneira de pôr termo à relação.

Mas havia muitos elementos desconhecidos para que pudessem construir uma teoria. Coçaram a cabeça, roeram as unhas e por fim admitiram que teriam de dormir sobre o assunto. Não podiam planear o que fariam a seguir porque a situação que se lhes deparava tinha mais enigmas do que respostas.

Dormiram pouco e tinham os olhos vermelhos e a barba por fazer quando voltaram a reunir-se pouco depois das seis da manhã, à volta de chávenas descartáveis de café fumegante. Fecharam a porta à chave, pegaram nas cartas, colocaram-nas exactamente no mesmo sítio da noite anterior e começaram a pensar.

- Acho que devíamos verificar a caixa de Chevy Chase - disse Spicer. - É fácil, seguro e geralmente é rápido. O Trevor tem conseguido fazê-lo quase sempre. Se soubéssemos quem é que a aluga, teríamos resposta para muitas perguntas.

- Custa a acreditar que um homem como Aaron Lake alugasse uma caixa postal para esconder cartas como estas - disse Beech.

- Não se trata do mesmo Aaron Lake - disse Yarber. - Quando ele alugou a caixa postal e começou a escrever ao Ricky, era um simples congressista, um dos quatrocentos e trinta e cinco. Nunca tínhamos ouvido falar dele. Agora a situação alterou-se drasticamente.

- E é exactamente por isso que ele está a tentar acabar com a relação

- disse Spicer. - As coisas agora são muito diferentes. Tem muito mais a perder.

O primeiro passo seria conseguir que Trevor investigasse a caixa postal em Chevy Chase.

O segundo passo não era tão claro. Estavam preocupados que Lake - e partiam do princípio de que Lake e Al eram uma e a mesma pessoa se apercebesse do erro que cometera com as cartas. Ele tinha dezenas de milhares de dólares (um facto que decerto não tinham ignorado) e podia facilmente usar uma parte para ir no encalço de Ricky. Dada a dimensão do que estava em jogo, se se apercebesse do seu erro, faria tudo para neutralizar Ricky.

Por isso, discutiram se haviam de lhe escrever um bilhete, no qual Ricky pediria a Al que não batesse com a porta daquela maneira. Ricky precisava da sua amizade e de mais nada, etc. O objectivo seria dar a impressão de que tudo estava bem, que não havia nada de anormal.. Esperavam que Lake a lesse, coçasse a cabeça e perguntasse a si próprio para onde fora aquele maldito cartão que enviara a Carol.
Concluíram que tal bilhete era imprudente porque havia mais alguém a ler as cartas. Até saberem de quem se tratava, não podiam arriscar-se a ter mais contactos com Al.

Acabaram de tomar o café e foram para o refeitório. Comeram sozinhos, cereais, fruta e iogurte, alimentos saudáveis, porque daí em diante voltariam a viver virados para o exterior. Deram quatro voltas à pista sem fumar, juntos, em passo lento, e depois regressaram à sua sala para acabarem a manhã a pensar a fundo.

Pobre Lake! Andava a saltar de estado para estado com cinquenta pessoas atrás, sempre atrasado, com uma dúzia de adjuntos a segredarem-lhe aos ouvidos. Não tinha tempo para pensar em si próprio.

E os Confrades tinham o dia todo, horas e horas para se confrontarem com os seus pensamentos e planos. Era um confronto desigual.

 

XXVI

Havia dois tipos de telefones em Trumble, os seguros e os inseguros. Em teoria, todas as chamadas feitas de linhas inseguras eram gravadas e sujeitas a revisão por pequenos diabretes instalados algures num cubículo, que não faziam mais nada a não ser escutar um milhão de horas de conversas inúteis. Na realidade, cerca de metade dos telefonemas eram de facto gravados, ao acaso, e só cinco por cento é que eram escutados por alguém que trabalhava para a prisão. Nem sequer o governo federal conseguia contratar diabretes suficientes para proceder a todas as escutas.

Sabia-se que os traficantes de droga davam instruções aos seus grupos a partir de linhas inseguras. Sabia-se que os chefes da mafia ordenavam ataques aos seus rivais. As hipóteses de serem apanhados eram mínimas.

As linhas seguras eram poucas em número e, por lei, não podiam ser alvo de escutas. As linhas seguras destinavam-se apenas aos advogados, sempre na presença de um guarda.

Quando chegou finalmente a vez de Spicer fazer uma chamada segura, o guarda fora-se embora.

- Escritório de advogados - disse uma voz rude do mundo livre.

- Sim, fala Joe Roy Spicer. Estou a falar da prisão de Trumble e preciso de falar com o Trevor.

- Ele está a dormir. Era uma e meia da tarde.

- Então vá acordar esse filho da mãe - rosnou Spicer.

- Espere.

- Despache-se, por favor. Estou a falar ao telefone de uma prisão. Joe Roy olhou à sua volta e perguntou a si próprio, mais uma vez, que

tipo de advogado tinham eles arranjado.

- Porque está a telefonar?

Foram as primeiras palavras de Trevor.

- Não interessa. Precisamos de uma coisa com pressa.

Nesse momento, o apartamento em frente do escritório de Trevor estava em delírio. Aquele era o primeiro telefonema de Trumble.

- O que é?

- Precisamos que verifique uma caixa. Depressa. E queremos que a traga debaixo de olho. Não se vá embora senão quando acabar.

- Porquê eu?

- Faça o que lhe digo, com os diabos. Este caso pode ser o mais importante.

- Onde é?

- Chevy Chase, Maryland. Tome nota. Al Konyers, Caixa Postal 455, Mailbox America, 39380 Western Avenue, Chevy Chase. Tenha muito cuidado porque esse tipo pode ter amigos, e é bem possível que já esteja alguém a vigiar a caixa. Leve dinheiro e contrate dois bons detectives.

- Tenho muito que fazer aqui.

- Pois, desculpe tê-lo acordado. Faça isto imediatamente, Trevor. Parta hoje. E não volte enquanto não souber quem é que alugou a caixa.

- Está bem, está bem.

Spicer desligou e Trevor voltou a pôr os pés em cima da secretária e aparentemente retomou a sua sesta. Mas estava apenas a pensar no assunto. Pouco depois, gritou a Jan que soubesse como estavam os voos para Washington.

Há catorze anos que Klockner era chefe de divisão e nunca vira tanta gente a vigiar uma pessoa que fazia tão pouco. Fez um telefonema rápido a Deville, em Langley, e o apartamento entrou em acção. Chegara o momento de Wes e Chap se mostrarem.

Wes atravessou a rua e franqueou a porta gemembunda de Mr. L. Trevor Carson, Advogado e Conselheiro. Ia vestido de caqui, com uma camisola por cima e calçava mocassins sem meias. Quando Jan o contemplou com o sorriso trocista habitual, não percebeu se era um turista ou uma pessoa da terra.

- Que deseja? - perguntou ela.

- Preciso de falar com Mr. Carson - disse Wes com ar desesperado.

- Tem marcação? - perguntou ela, como se o patrão estivesse tão ocupado que ela até perdia a conta às reuniões dele.

- Bem, não, é uma espécie de emergência.

- Ele está muito ocupado - disse ela, e Wes quase ouviu as gargalhadas no apartamento em frente.

- Por favor, tenho de falar com ele.

Ela rolou os olhos nas órbitas e não se mexeu.

- De que se trata?

-Acabei de enterrar a minha mulher-disse ele, à beira das lágrimas, e Jan cedeu um pouco.

- Lamento - disse ela. Pobre tipo!

- Ela morreu num acidente de automóvel no 1-95, mesmo a norte de Jacksonville.

Nesse momento, Jan levantou-se e lamentou não ter café feito há pouco.

- Lamento profundamente. Quando foi isso? - perguntou ela.

- Há doze dias. Foi um amigo que me recomendou Mr. Carson. Não devia ser muito amigo, pensou Jan.

- Quer um café? - perguntou ela, acabando de pintar as unhas. Há doze dias, pensou. Como todas as boas secretárias de advogado, lia os jornais e mostrava-se particularmente atenta aos acidentes. Talvez aparecesse alguém à porta.

Nunca ninguém aparecera à porta de Trevor. Até aí.

- Não, obrigado - respondeu ele. - Foi um camião da Texaco que a atropelou. O motorista vinha embriagado.

- Oh, meu Deus! - exclamou ela tapando a boca com a mão. Até Trevor seria capaz de tomar conta deste caso.

bom dinheiro, honorários altos, mesmo ali na recepção, e aquele idiota estava a ressonar depois do almoço.

- Ele está a recolher um depoimento - disse ela. - Deixe-me ir ver se o posso interromper. Sente-se, por favor.

Jan teve vontade de ir fechar a porta principal à chave para o homem não fugir.

- O meu nome é Yates. Yates Newman - disse ele, tentando ajudá-la.

- Está bem - respondeu ela, correndo pelo corredor. Bateu delicadamente à porta de Trevor e depois entrou.

- Acorde, palerma! - disse ela entredentes, suficientemente alto para Wes ouvir na recepção.

- O que é? - perguntou Trevor, levantando-se, pronto para o confronto físico. Afinal, não estava a dormir. Estava a ler uma Peoplejá antiga.
 - Adivinhe! Tem um cliente.

- Quem é?

- Um homem cuja mulher foi atropelada por um camião da Texaco há doze dias. Ele quer vê-lo imediatamente.

- Está aqui?

- Está. Custa a acreditar, não é? com trezentos advogados em Jacksonville e este pobre homem vem cair aqui. Ele disse que foi um amigo que o recomendou.

- O que lhe disse você?

- Disse-lhe que tinha de arranjar novos amigos.

- Não, a sério. O que lhe disse?

- Que estava a recolher um depoimento.

- Não recolho um depoimento há oito anos. Mande-o entrar. -Tenha calma. vou fazer-lhe um café. Finja que está a terminar qualquer

coisa importante. Porque não dá uma arrumação a isto?

- Veja lá se ele não se vai embora.

- O motorista estava bêbado - disse ela. - Não dê cabo disto. Trevor ficou imóvel, boquiaberto, de olhos em alvo, e a sua mente

embotada regressou à vida. Um terço de dois milhões de dólares, de quatro milhões, bolas, de dez milhões se o homem estava mesmo bêbado e o dinheiro da indemnização viesse. Trevor teve vontade de arrumar a secretária, mas não se conseguiu mexer.

Wes espreitou pela janela da frente e olhou para o apartamento onde se encontravam os colegas. Manteve-se de costas para o rebuliço que havia ao fundo do corredor porque tentava manter-se sério. Ouviu passos e depois Jan disse:

- Mr. Carson recebe-o daqui a pouco.

- Obrigado - respondeu em voz baixa, sem se virar.

Pobre homem, continua a sofrer, pensou ela. Em seguida, dirigiu-se à cozinha imunda para fazer café.

O depoimento terminou num abrir e fechar de olhos, e os outros participantes desapareceram como que por milagre, sem deixar rasto. Wes seguiu Jan até ao gabinete atravancado de Mr. Carson. Fizeram-se as apresentações. Jan levou-lhes café acabado de fazer e, quando ela saiu, Wes fez um pedido invulgar.

- Há por aqui algum sítio onde se possa tomar um café bem forte?

- Ora essa, com certeza, sim, claro - disse Trevor, cujas palavras saíam em catadupa. - Há um sítio chamado Beach Java a uns quarteirões daqui.
- Pode mandá-la buscar um? Evidentemente. Fosse o que fosse!

- Sim, claro. Grande ou duplo?

- Grande.

Trevor saiu do gabinete a cambalear e, pouco depois, Jan saiu pela porta principal e praticamente desceu a rua a correr. Quando ela desapareceu, Chap saiu do apartamento e encaminhou-se para o escritório de Trevor. A porta principal estava fechada e ele abriu-a com uma chave sua. Lá dentro, fechou a corrente para que a pobre Jan ficasse especada no alpendre com uma chávena de café a ferver na mão.

Chap desceu o corredor e entrou de repente no gabinete do advogado.

- Desculpe - disse Trevor.

- Não faz mal. Ele veio comigo - disse Wes.

Chap fechou a porta à chave, tirou uma pistola de nove milímetros do casaco e quase a apontou ao pobre Trevor, que ficou de olhos esbugalhados e ia sofrendo uma paragem cardíaca.

- O que... - conseguiu ele dizer com uma voz aguda e penosa.

- Cale-se - disse Chap, entregando a pistola a Wes, que estava sentado.

O olhar desvairado de Trevor seguiu a pistola, que entretanto desapareceu. Que fiz eu? Quem são estes matulões? Todas as minhas dívidas de jogo estão pagas.

Tinha muito prazer em estar calado. O que eles quisessem.

Chap encostou-se à parede, muito perto de Trevor, como se ele pudesse atacá-lo a qualquer momento.

-Temos um cliente-disse ele. - Um homem rico que foi apanhado na pequena fraude montada por si e pelo Ricky.

- Oh, meu Deus - disse Trevor em voz baixa. O seu pior pesadelo.

- É uma óptima ideia - disse Wes.- Extorquir dinheiro a homossexuais ricos que ainda se escondem. Não se podem queixar. O Ricky já está na prisão e, portanto, o que tem a perder?

- Um esquema quase perfeito - disse Chap. - Até ao momento em que vocês apanharam o peixe errado, que foi exactamente o que fizeram.

- A ideia não foi minha - disse Trevor, ainda com uma voz duas oitavas acima do normal e procurando a pistola com o olhar.

- Sim, mas não funcionava sem si, pois não? - perguntou Wes. Tinha de ser um vigarista de um advogado no exterior a transportar a
correspondência. E o Ricky precisa de alguém para encaminhar o dinheiro e fazer um trabalhinho de investigação.

- Vocês não são polícias, pois não? - perguntou Trevor.

- Não. Somos detectives particulares - respondeu Chap.

- Porque se forem polícias, acho que não quero dizer mais nada.

- Não somos polícias.

Trevor recomeçou a respirar e a pensar, mas respirava muito mais depressa do que pensava.

- Acho que vou gravar isto. Não vá vocês serem polícias.

- Já disse que não somos polícias.

- Não confio em polícias, sobretudo no FBI. Os tipos seriam capazes de entrar por aqui dentro, como vocês, de mostrar uma pistola e de jurar que não eram do FBI. Não gosto de polícias, pronto. vou gravar isto.

Não te preocupes, pá, apeteceu-lhes dizer. Estava tudo a ser gravado, em directo e em cor digital de alta densidade, por uma câmara minúscula instalada no tecto, um pouco atrás do sítio em que estavam sentados. E havia microfones ligados em toda a parte na secretária atafulhada de Trevor, de tal modo que, quando ele ressonava ou arrotava, ou fazia estalar os nós dos dedos, alguém o ouvia do outro lado da rua.

A pistola reapareceu. Wes agarrou-a com as duas mãos e examinou-a com cuidado.

- Você não vai gravar coisa nenhuma - disse Chap. - Como já lhe disse, somos detectives privados. E está mesmo a pedir um tirinho.

O homem deu mais um passo encostado à parede. Trevor espreitava-o com um olho e ajudava Wes a examinar a pistola com o outro.

- Por sinal, viemos em paz - disse Chap.

- Temos algum dinheiro para si - disse Wes, afastando a maldita coisa outra vez.

- Dinheiro para quê? - perguntou Trevor.

- Queremos estar do seu lado. Queremos contratar os seus serviços.

- Para fazer o quê?

-Para nos ajudar a proteger o nosso cliente - disse Chap. - Vamos explicar como vemos a situação. Você colabora num plano de extorsão que opera a partir de uma prisão federal e que foi descoberto por nós. Nós podíamos contactar as autoridades federais, conseguir que você e o seu cliente fossem apanhados e você apanharia trinta meses, talvez em Trumble, onde ficaria muito bem. Automaticamente ficaria impedido do exercício da advocacia, o que significa que perderia tudo isto.

Chap fez um gesto com a mão direita, ignorando a desordem, a poeira e as pilhas de antigos processos em que ninguém tocava há anos. Wes interveio de imediato.

- Estamos dispostos a contactar as autoridades federais imediatamente, e é provável que consigamos impedir que a correspondência saia de Trumble. Talvez o nosso cliente fosse poupado a incómodos. Mas há um elemento de risco que o nosso cliente não pretende aceitar. E se o Ricky tem outro colega, dentro ou fora de Trumble, alguém que ainda não descobrimos e que consegue expor o nosso cliente para se vingar?

Chap já estava a abanar a cabeça.

- É demasiado arriscado. Preferimos trabalhar consigo, Trevor. Preferimos comprá-lo e acabar com a fraude a partir deste escritório.

- Não posso ser comprado - disse Trevor com pouca convicção.

- Então contratamos os seus serviços durante um tempo, o que é que acha? - disse Wes. - Afinal, os advogados não são todos contratados à hora, não é verdade?

- Suponho que sim, mas estão a pedir-me que traia um cliente.

- O seu cliente comete crimes todos os dias no interior de uma prisão. E você é tão culpado como ele. Não sejamos hipócritas.

- Quando alguém se torna criminoso, Trevor, perde o privilégio de ser farisaico - disse Chap, muito sério. - Não nos pregue sermões. Sabemos que se trata apenas de uma questão de dinheiro.

Por instantes, Trevor esqueceu-se da arma e da sua carteira profissional que estava pendurada na parede atrás de si, um pouco torta. Como fazia tantas vezes nos últimos tempos, quando era confrontado com mais um contratempo decorrente do exercício da advocacia, fechou os olhos e sonhou com o seu veleiro de doze metros, ancorado nas águas quentes e calmas de uma baía isolada, com jovens semi-nuas na praia a cem metros, e consigo próprio, quase despido, a tomar uma bebida no convés. Era como se cheirasse a água salgada, sentisse a brisa suave, saboreasse o rum e ouvisse as jovens.

Abriu os olhos e tentou concentrar-se em Wes, do outro lado da secretária.

- Quem é o vosso cliente? - perguntou ele.

- Não vamos tão depressa - disse Chap. - Façamos primeiro o acordo.

- Que acordo?

- Damos-lhe algum dinheiro e você trabalha como agente duplo. Nós temos acesso a tudo. Você telefona-nos quando falar com o Ricky.

Nós lemos toda a correspondência. Você não dá um passo até falarmos do assunto.

- Porque não se limitam a pagar o dinheiro da extorsão?-perguntou Trevor. - Seria muito mais fácil.

- Pensámos nisso - disse Wes. - Mas o Ricky não faz jogo limpo. Se lhe pagássemos, voltaria a pedir mais. E mais.

- Não, não o faria.

- A sério? E o que se passou com Quince Garbe, de lowa?

Oh, meu Deus, pensou Trevor, que quase falou em voz alta. O que sabiam eles? Só conseguiu balbuciar:

- Quem é?

- Ora, ora, Trevor - disse Chap. - Nós sabemos que o dinheiro está escondido nas Bahamas. Sabemos da Boomer Realty e da sua pequena conta, que neste momento apresenta um saldo de quase setenta mil dólares.

- Procurámos até onde pudemos, Trevor - disse Wes, cujas intervenções eram de uma oportunidade perfeita. Era como se Trevor estivesse a assistir a uma partida de ténis, a olhar de um lado para o outro, de um lado para o outro. - Mas por fim conseguimos. É por isso que precisamos de si.

Para ser franco, Trevor nunca gostara de Spicer. Era um homenzinho frio, cruel e desagradável, que cometera a imprudência de reduzir a sua percentagem. com Beech e Yarber não havia problemas, mas com os diabos! Trevor não tinha muitas hipóteses neste caso.

- Quanto? - perguntou.

- O nosso cliente está disposto a pagar cem mil dólares, em dinheiro disse Chap.

- É claro que é em dinheiro - respondeu Trevor. - Cem mil é uma ninharia. Isso seria a primeira prestação do Ricky. O respeito que tenho por mim próprio vale muito mais do que cem mil.

- Duzentos mil - disse Wes.

- Vamos fazer o seguinte - respondeu Trevor, tentando obstinadamente abrandar o ritmo cardíaco. - Quanto é que vale o facto de o vosso cliente ter o seu segredozinho enterrado?

- E você está disposto a enterrá-lo?

- Estou.

- Dê-me um segundo - disse Wes, tirando um telefone minúsculo do bolso. Marcou vários números ao mesmo tempo que abria a porta e
entrava no corredor. Em seguida, pronunciou várias frases que Trevor não conseguiu ouvir. Wes olhava para a parede, com a arma pousada tranquilamente ao lado da cadeira. Trevor não a via, apesar dos seus esforços.

Chap voltou e olhou muito sério para Wes, como se as suas sobrancelhas e rugas fossem capazes de enviar uma mensagem crucial. No meio dessa breve hesitação, Trevor atacou.

- Creio que isso vale um milhão de dólares - disse. - Podia ser o meu último caso. Estão a pedir-me que divulgue informações confidenciais de um cliente, um acto odioso para um advogado, que me custaria a exclusão do foro num instante.

O velho Trevor estava a um passo da exclusão do foro, mas Wes e Chap ignoraram o comentário dele. Nada de bom adviria de uma discussão acerca do valor da sua carteira profissional.

- O nosso cliente paga um milhão de dólares - disse Chap.

E Trevor soltou uma gargalhada. Não pôde evitá-la. Cacarejava como se tivesse acabado de ouvir a piada perfeita, e do outro lado da rua, no apartamento, os homens também se riram com a gargalhada de Trevor.

Trevor conseguiu controlar-se. Deixou de rir mas não conseguiu afastar o sorriso. Um milhão de dólares. Em dinheiro. Livre de impostos. Escondido offshore, noutro banco, evidentemente, longe das garras das Finanças e de todas as outras ramificações do governo.

Depois, conseguiu arranjar uma expressão mais consentânea com um advogado, um pouco envergonhado por ter reagido com tanta falta de profissionalismo. Ia a dizer qualquer coisa importante quando se ouviu alguém a raspar energicamente no vidro da fachada.

- Ah, devem ser os cafés - disse ele.

- Ela tem de sair daqui - disse Chap.

- vou mandá-la para casa - respondeu Trevor, levantando-se pela primeira vez, um pouco atordoado.

- Não. Para sempre. Despeça-a.

- O que sabe ela? - perguntou Wes.

- É estúpida como um pneu - respondeu Trevor, satisfeito.

- Isto faz parte do acordo - disse Chap. - Ela vai-se embora, e é já. Temos muitas coisas a discutir e não queremos que ela ande por aqui.

As pancadas aumentaram de intensidade. Jan deu a volta à chave mas deparou com a corrente de segurança.

- Trevor! Sou eu! - gritou ela através da fresta.

Trevor desceu lentamente o corredor, a coçar a cabeça e à procura das palavras. Deu de caras com ela ao postigo da porta principal e ficou muito confuso.

- Abra a porta. O café está quente - rosnou ela. -• Eu quero que vá para casa - disse ele.

- Porquê?

- Porquê?

- Sim, porquê?

-Porque, bem, hum... - As palavras faltaram-lhe momentaneamente, mas depois lembrou-se do dinheiro. A saída dela fazia parte do acordo.

- Porque está despedida - respondeu.

- O quê?

- Já disse que está despedida! - gritou, suficientemente alto para que os dois homens o ouvissem nas traseiras.

- Não me pode despedir! Deve-me muito dinheiro!

- Não lhe devo nada!

- E os mil dólares de salários atrasados?

As janelas do apartamento encheram-se de caras escondidas pelo vidro fosco de um só lado. As vozes ressoaram no silêncio da rua. -Você está doida! - gritou Trevor. - Não lhe devo nem um cêntimo!

- Mil e quarenta dólares, para ser exacta!

- Está maluca.

- Seu filho da mãe! Estou aqui a aturá-lo há oito anos, a ganhar o ordenado mínimo, e quando consegue um caso chorudo despede-me. É isso que está a fazer, Trevor?

- Mais ou menos! Agora ponha-se a andar!

- Abra a porta, seu cobarde!

- Vá-se embora, Jan!

- Só quando levar as minhas coisas!

- Volte amanhã. Estou em reunião com Mr. Newman.

Dizendo isto, Trevor recuou. Quando ela viu que ele não abria a porta, perdeu as estribeiras.

- Seu filho da mãe! - gritou ainda mais alto, atirando o café à porta. O postigo frágil abanou mas não se partiu e ficou imediatamente coberto de um líquido cremoso.

Trevor, a salvo no interior, afastou-se e fitou, horrorizado, aquela mulher que tão bem conhecia. Ela afastou-se, corada e a praguejar, e deu alguns passos até reparar numa pedra. Era o que restava de um projecto paisagístico barato e há muito esquecido que ele aceitara em tempos, por insistência dela. Jan agarrou nela, cerrou os dentes, soltou mais umas pragas e depois atirou-a à porta.

Wes e Chap tinham conseguido o feito notável de manter a compostura, mas quando a pedra atravessou o postigo não puderam deixar de rir. Trevor gritou:

- Sua doida!

Os dois homens riram-se outra vez e evitaram olhar um para outro, tentando controlar-se.

Seguiu-se um silêncio. A paz instalara-se lá dentro e na zona da recepção.

Trevor apareceu à porta do seu gabinete, incólume, sem ferimentos visíveis.

- Desculpem aquilo - disse em voz baixa, dirigindo-se para a sua cadeira.

- Está bem? - perguntou Chap.

- Claro. Não há problema. E o vosso café?

- Não pense mais nisso.

Os pormenores foram acertados durante o almoço, que decorreu no Pete’s por insistência de Trevor. Conseguiram arranjar uma mesa ao fundo da sala, junto das máquinas de jogos. Wes e Chap estavam preocupados com a privacidade, mas depressa se aperceberam de que ninguém os ouvia porque ninguém discutia negócios no Pete’s.

Trevor emborcou três cervejas com as suas batatas fritas. Wes e Chap beberam refrigerantes e comeram hamburgers.

Trevor queria todo o dinheiro na mão antes de trair o seu cliente. Concordaram em entregar-lhe cem mil dólares em dinheiro nessa tarde e em ordenar uma transferência do restante logo a seguir. Trevor exigiu outro banco, mas eles insistiram em manter o Geneva Trust, em Nassau. Garantiram que se limitavam apenas a vigiar a conta; não podiam mexer no dinheiro. Além disso, o dinheiro chegaria lá ao fim da tarde. Se mudassem de banco, a operação poderia demorar um ou dois dias. Ambas as partes estavam ansiosas por concluir o acordo. Wes e Chap queriam a protecção total e imediata do seu cliente. Trevor queria a sua fortuna. Depois de três cervejas, já estava a gastá-la.

Chap saiu rápido para ir buscar o dinheiro. Trevor pediu uma cerveja para levar e entraram no automóvel de Wes para darem uma volta pela
cidade. O plano consistia em encontrarem-se com Chap num sítio qualquer para que Trevor recebesse o dinheiro. Ao dirigirem-se para sul, para a auto-estrada  A 1 A, ao longo da praia, Trevor começou a conversar.

- Não é espantoso? - disse, com os olhos escondidos atrás de óculos escuros baratos e a cabeça encostada ao apoio.

- O que é que é espantoso?

- Os riscos que as pessoas estão dispostas a correr. O seu cliente, por exemplo. Um homem rico. Podia contratar todos os rapazes que lhe apetecesse, mas responde a um anúncio numa revista de homossexuais e começa a escrever cartas a um desconhecido.

- Não percebo - respondeu Wes, e os dois homens uniram-se por instantes. - Não me compete fazer perguntas.

- Creio que a emoção está no desconhecido - disse Trevor, bebendo um golinho.

- Sim, talvez. Quem é o Ricky?

- Digo-lhe quando receber o dinheiro. Quem é o vosso cliente?

- Quem é? com quantas vítimas é que trabalha neste momento?

- O Ricky tem andado ocupado ultimamente. Talvez com cerca de vinte.

- Quantos é que vocês já burlaram?

- Dois ou três. É um negócio sórdido.

- Como é que se meteu nisto?

-Sou o advogado do Ricky. Ele é muito inteligente, está muito aborrecido e conseguiu arquitectar este plano para espremer homossexuais ainda não assumidos. Assinei contra a minha vontade.

- Ele é homossexual? - perguntou Wes. Sabia os nomes dos netos de Beech. Sabia o grupo sanguíneo de Yarber. Sabia com quem é que a mulher de Spicer andava no Mississipi.

- Não - respondeu Trevor. ,«*»- Então é tarado.

- Não, é bom tipo. E quem é o seu cliente?

- Al Konyers.

Trevor fez um aceno de cabeça e tentou lembrar-se do número de

cartas trocadas entre Ricky e Al.

- Que coincidência. Tencionava ir a Washington para fazer algum trabalho de bastidores em relação a Mr. Konyers. Esse não é o verdadeiro nome dele, evidentemente.

- Evidentemente que não.

- E sabem o verdadeiro nome dele?

- Não. Fomos contratados por gente da sua equipa.

- Que interessante! Então nenhum de nós sabe quem é o verdadeiro AI Konyers?

- Exactamente. E tenho a certeza de que vai continuar a ser assim. Trevor apontou para uma loja de conveniência e disse:

- Pare ali. Preciso de uma cerveja.

Wes esperou junto das bombas de gasolina. Estava decidido que não falariam do seu hábito de beber senão quando o dinheiro mudasse de mãos e Trevor lhes contasse tudo. Haviam de ganhar uma certa confiança e depois, com cuidado, tentariam que ele se tornasse mais sóbrio. A última coisa de que precisavam era que Trevor se instalasse todas as noites no Pete’s, a beber e a falar de mais.

Chap estava à espera num carro alugado, em frente de uma lavandaria, oito quilómetros a sul de Ponte Vedra Beach. Entregou a Trevor uma pasta estreita e barata e disse:

- Está tudo aí. Cem mil dólares. vou ter convosco ao escritório.

Trevor nem o ouviu. Abriu a pasta e começou a contar o dinheiro. Wes virou-se e olhou para norte. Dez maços de mil dólares, tudo em notas de cem.

Trevor fechou a pasta e atravessou para o outro lado.

 

XXVII

A primeira tarefa de Chap como novo assistente de Trevor foi organizar o espaço da recepção e ver-se livre de qualquer objecto que lembrasse vagamente uma mulher. Guardou as coisas de Jan numa caixa de cartão, tudo, desde o baton ao verniz das unhas, bombons e vários romances obscenos. Havia um envelope com oitenta dólares e uns trocos. O patrão afirmou que era dele, que era dinheiro de caixa.

Chap embrulhou as fotografias dela em jornais velhos e guardou-as cuidadosamente noutra caixa, a par das bugigangas quebráveis que se encontram na maioria das secretárias de recepção. Copiou o conteúdo da agenda dela para saberem quem iria aparecer no futuro. O movimento seria reduzido, constatou Chap sem surpresa. Nem uma audiência no tribunal no horizonte. Duas reuniões no escritório nessa semana, duas na seguinte, e depois nada. À medida que Chap examinava as agendas, era óbvio que Trevor abrandara o ritmo mais ou menos quando chegara o dinheiro de Quince Garbe.

Sabiam que Trevor jogara mais nas últimas semanas e que talvez tivesse exagerado na bebida. Várias vezes Jan dissera aos amigos ao telefone que Trevor passava cada vez mais tempo no Pete’s do que no escritório.

Enquanto Chap se afadigava na recepção, a embalar as coisas de Jan, a arrumar a secretária, a limpar o pó, a aspirar e a deitar fora revistas velhas, o telefone tocava de vez em quando. Fazia parte das suas atribuições atender o telefone, e estava perto do aparelho. A maioria das chamadas eram para Jan, e ele explicou delicadamente que ela já não trabalhava ali. «Ainda bem para ela», parecia ser o sentimento geral.

Um agente vestido de carpinteiro chegou cedo para substituir a porta principal. Trevor ficou maravilhado com a eficiência de Chap.

- Como é que o encontrou tão depressa?

- É preciso procurar nas páginas amarelas - respondeu Chap.

Outro agente disfarçado de serralheiro chegou depois do carpinteiro e substituiu as fechaduras todas do prédio.

O acordo incluía a obrigatoriedade de Trevor não receber novos clientes pelo menos nos trinta dias subsequentes. O advogado argumentou fortemente contra isto, como se tivesse uma grande reputação a defender. Que pensassem em todas as pessoas que podiam precisar dele, queixou-se Trevor. Mas eles sabiam como os últimos trinta dias tinham sido mortos, e pressionaram-no até ele aceitar. Quiseram ficar sozinhos no escritório. Chap telefonou aos clientes que tinham reuniões marcadas e disse-lhes que Mr. Carson ficaria retido no tribunal no dia em que deveriam aparecer. Seria difícil marcar outra data, explicou Chap, mas ele telefonar-lhes-ia quando houvesse um intervalo na actividade do advogado.

- Julguei que ele não ia ao tribunal - disse um deles.

- Vai, sim - respondeu Chap. - É um caso muitíssimo importante. Quando a lista de clientes foi reduzida, ficou apenas um caso que exigia uma visita ao escritório. Era um caso de pensão de alimentos que estava pendente e Trevor representava a mãe da criança há três anos. Não podia mandá-la embora pura e simplesmente.

Jan passou por lá para arranjar sarilhos e levou uma espécie de namorado. Era um jovem magro, de pêra, calças de poliester, camisa branca e gravata, e, pelos cálculos de Chap, devia ser vendedor de carros usados. Não havia dúvida de que não teria dificuldade em arrumar Trevor, mas não quis nada com Chap.

- Queria falar com o Trevor-disse Jan, olhando para a sua secretária arrumada.

- Desculpe. Ele está numa reunião.

- E quem diabo é você?

- Sou um estagiário.

- Pois, recebe o seu dinheiro adiantado.

- Obrigado. As suas coisas estão naquelas duas caixas - disse Chap, apontando.

Ela reparou que as estantes das revistas tinham sido limpas e arrumadas, que o cesto dos papéis estava vazio e que os móveis tinham sido polidos. Cheirava a desinfectante, como se tivessem fumigado o local que ela ocupara. Já não era precisa.

- Diga ao Trevor que me deve mil dólares de salários atrasados disse ela.

- Direi - respondeu Chap. - Mais alguma coisa?

- Sim, aquele novo cliente de ontem, o Yates Newman... Diga ao Trevor que verifiquei os jornais. Nas duas últimas semanas, não houve acidentes mortais no 1-95. Nem morreu nenhuma mulher de apelido Newman. Passa-se qualquer coisa estranha.

- Obrigado. Eu digo-lhe.

Jan deu uma última vista de olhos e sorriu ao ver a porta nova. O namorado deitou um olhar furibundo a Chap, como se se preparasse para lhe partir o pescoço, mas o olhar dissipou-se quando se encaminhou para a porta. Saíram os dois sem fazer estragos e desceram o passeio, cada um com a sua caixa.

Chap viu-os partir e depois começou a preparar-se para o desafio do almoço.

O jantar da véspera fora ali perto, numa nova marisqueira muito concorrida, a dois quarteirões de Sea Turtle Inn. Dado o tamanho das doses, os preços eram proibitivos, e fora exactamente por isso que Trevor, o mais recente milionário de Jacksonville, insistira para que comessem ali. Evidentemente que a noite era sua, e o homem não se poupou a despesas. Ficou embriagado depois do primeiro martini e não se lembrava do que comera. Wes e Chap tinham-lhe explicado que o seu cliente não os autorizava a beber. Beberam água e deixaram os copos cheios de vinho.

- Eu tratava de arranjar outro cliente - disse Trevor, rindo-se do seu próprio humor.

- Acho que vou ser obrigado a beber pelos três - disse a meio do jantar, e depois continuou a fazer exactamente isso.

Muito aliviados, os dois agentes verificaram que ele era um bêbado dócil. Continuaram a servi-lo, tentando ver até onde é que iria. Trevor ficou cada vez mais calado, afundando-se na cadeira, e muito depois da sobremesa deu ao criado uma gorjeta de trezentos dólares. Ajudaram-no a ir para o carro e levaram-no a casa.

Trevor dormiu com a pasta em cima do peito. Quando Wes lhe apagou a luz, estava deitado na sua cama com as calças e a camisa de algodão branco amarrotadas, o lacinho desfeito, os sapatos calçados, a ressonar e agarrado à pasta com as duas mãos.

A transferência chegara antes das cinco horas. O dinheiro estava na conta. Klockner dissera-lhes que o embebedassem, que vissem como ele se comportava nesse estado e que começassem a trabalhar de manhã.
Às sete e meia da manhã, voltaram a casa dele. Abriram a porta com a chave e encontraram-no exactamente como o tinham deixado. Descalçara um sapato e estava deitado de lado, agarrado à pasta como se esta fosse uma bola de futebol.

- Vamos embora! Vamos embora! - gritara Chap, enquanto Wes acendia as luzes, abria as persianas e fazia o máximo de barulho possível.

Diga-se em abono da verdade que Trevor saltou da cama, correu para a casa de banho, tomou um duche rápido e vinte minutos depois entrou no seu gabinete com um lacinho novo e sem uma ruga. Tinha os olhos levemente inchados, mas sorria e estava determinado a passar o dia a trabalhar.

O milhão de dólares ajudava. De facto, nunca uma ressaca lhe passara tão depressa.

Comeram um pãozinho e tomaram um café forte em Beach Java. Depois atacaram o pequeno escritório com vigor. Enquanto Chap se ocupava da recepção, Wes manteve Trevor no gabinete.

Algumas peças do puzzle tinham encaixado depois do jantar. Finalmente, os nomes dos Confrades tinham sido arrancados a Trevor e Wes e Chap tinham feito um trabalho soberbo, fingindo-se admirados.

- Três juizes? - repetiram ambos, com uma aparente incredulidade. Trevor sorrira e fizera um sinal afirmativo, muito ufano, como se ele e só ele tivesse sido o arquitecto daquele plano genial. Queria que eles acreditassem que tivera inteligência e habilidade para convencer três ex-juízes a passar o tempo a escrever cartas a homossexuais solitários para que ele, Trevor, conseguisse arrecadar um terço do que extorquiam. com os diabos, era praticamente um génio.

Outras peças do puzzle permaneceram obscuras e Wes estava decidido a manter Trevor fechado até saber as respostas.

- Vamos falar de Quince Garbe - disse ele. - A caixa postal dele foi alugada a uma empresa fictícia. Como é que você soube a identidade dele?

- Foi fácil - respondeu Trevor, muito orgulhoso de si próprio. Agora, não só era um génio, como era um homem muito rico. Acordara na manhã da véspera com uma dor de cabeça e passara a primeira meia hora na cama, preocupado com o que perdera ao jogo, com o estado periclitante da sua carreira e com a dependência cada vez maior dos Confrades e da sua fraude. Vinte e quatro horas depois, acordara com uma dor de cabeça pior, mas sobre a qual o milhão de dólares tinha o efeito de um bálsamo.
O homem estava eufórico, estonteado e ansioso por concluir a tarefa que tinha em mãos para poder agarrar a vida.

- Descobri um detective particular em Dês Moines - disse ele, a beber café, com os pés em cima da secretária, como de costume. Enviei-lhe um cheque de mil dólares. Ele passou dois dias em Bakers... Já foram a Bakers?

- Já.

- Eu estava com receio de ter de lá ir. O plano funciona melhor se for possível apanhar um tipo importante e com dinheiro. Ele paga seja o que for para nos calarmos. De qualquer modo, este detective descobriu uma funcionária dos correios que precisava de dinheiro. Era mãe solteira, tinha uma casa cheia de filhos, um carro velho, uma casa pequena, estão a ver a coisa? Telefonou-lhe à noite e prometeu que lhe pagava quinhentos dólares em dinheiro se ela lhe dissesse quem é que alugara a caixa postal 788 em nome da CMT Investments. Na manhã seguinte, telefonou-lhe para a estação. Encontraram-se num parque de estacionamento, à hora de almoço. Ela deu-lhe uma folha de papel com o nome de Quince Garbe e ele entregou-lhe um envelope com cinco notas de cem dólares. Ela nunca perguntou quem ele era.

- Isso é vulgar?

- Resultou com o Garbe. Curtis Cates, o tipo de Dálias, o segundo que enganámos, foi um pouco mais complicado. O detective que contratámos lá não conseguiu descobrir nada e teve de vigiar a estação dos correios durante três dias. O trabalho custou mil e oitocentos dólares, mas por fim viu-o e tomou nota do número.

- Quem se segue?

- Talvez este tipo de Upper Darby, Pennsylvania. O nome falso dele é Brant White, e parece ser uma boa aposta.

- Alguma vez leu as cartas?

- Nunca. Não sei o que uns e outros dizem; não quero saber. Quando resolvem espoliar alguém, dizem-me que vigie a caixa e que consiga saber o verdadeiro nome. Isto no caso de o parceiro deles usar um nome falso, como o vosso cliente, Mr. Konyers. Nem imaginam quantos homens usam o nome verdadeiro! É inacreditável.

- Sabe quando é que eles mandam as cartas?

- Sei. Eles avisam-me para eu alertar o banco nas Bahamas de que vai uma transferência a caminho. Telefonam-me do banco assim que o dinheiro chega.
- Fale-me desse tal Brant White, de Upper Darby - disse Wes. Estava a tirar páginas de apontamentos, como se alguma coisa pudesse calhar. Todas as palavras eram gravadas em quatro aparelhos diferentes do outro lado da rua.

- Eles estão prontos para o espoliar, é tudo o que sei. Parece que foi canja, porque trocaram apenas duas cartas. Alguns destes tipos, é como arrancar dentes, a avaliar pelo número de cartas.

- Mas você não segue o rasto das cartas?

- Aqui não há arquivos. Eu tinha medo que a polícia federal aparecesse um dia com um mandado de busca e não quis provas do meu envolvimento.

- Esperto, muito esperto.

Trevor sorriu e saboreou a sua argúcia.

- Sim, bem, tenho muita experiência em Direito Criminal. Ao fim de pouco tempo, começamos a pensar como criminosos. De qualquer modo, não consegui encontrar o detective indicado na zona de Filadélfia. Continuo a tratar disso.

Brant White era uma invenção de Langley. Trevor podia contratar todos os detectives do Nordeste que nenhum conseguiria descobrir uma pessoa por trás da caixa postal.

- Por sinal, estava a preparar-me para ir lá eu próprio quando recebi o telefonema do Spicer a dizer-me que fosse a Washington para descobrir quem era o Al Konyers - disse ele. - Depois apareceram vocês e, bem, o resto é história.

As palavras de Trevor desvaneceram-se, como se pensasse de novo no dinheiro. com certeza que era uma coincidência o facto de Wes e Chap terem entrado na sua vida precisamente umas horas antes de ir fazer a investigação ordenada pelos seus clientes. Mas Trevor não se importava. Já ouvia os gritos das gaivotas e sentia o calor da areia. Já ouvia o reggae vindo das bandas das ilhas e sentia o vento a empurrar o seu pequeno barco.

- Há mais algum contacto no exterior? - perguntou Wes.

- Oh, não - respondeu, orgulhoso.-Não preciso de ajuda. Quanto menos pessoas estiverem envolvidas, melhor isto funciona.       

- Muito esperto - disse Wes.

Trevor reclinou-se ainda mais na cadeira. O tecto por cima de si tinha fendas e a tinta a cair. Precisava de uma nova pintura. Há dois dias, isso tê-lo-ia deixado aborrecido. Agora, Trevor sabia que o tecto nunca seria pintado, já que eles esperavam que ele falasse. Sairia dali um dia, muito
cedo, depois de Wes e Chap terem acabado com os Confrades. Passaria um ou dois dias a escolher os processos que havia de guardar não sabia bem para quê, e desfazia-se dos livros de Direito, ultrapassados e que nunca usara. Havia de encontrar algum recém-licenciado em Direito falido e à procura de migalhas no tribunal da cidade e cedia-lhe os móveis e o computador por um preço razoável. E quando estivesse tudo tratado, ele, L. Trevor Carson, Advogado e Conselheiro, sairia do escritório e nem olharia para trás.

Que dia glorioso seria esse!

Chap interrompeu o breve devaneio com uma embalagem de petiscos e de refrigerantes. O almoço não fora debatido entre os três, mas Trevor já olhara para o relógio, antecipando outra refeição prolongada no Pete’s. Contrafeito, tirou um petisco e sentiu-se agitado. Precisava de uma bebida.

- Acho que é uma boa ideia pôr de lado o álcool ao almoço - disse Chap quando se reuniram à volta da secretária de Trevor, fazendo o possível por não entornar o feijão preto e a carne picada.

-- Façam como quiserem - disse Trevor.

- Estava a referir-me a si - disse Chap. - Pelo menos nos próximos trinta dias.

- Isso não fez parte do nosso acordo.

- Mas passa a fazer. Precisa de estar sóbrio e atento.

- Por quê, exactamente?

- Porque o nosso cliente quer que seja assim. E está a pagar-lhe um milhão de dólares.

- Ele quer que eu vá à casa de banho duas vezes por dia e coma espinafres?

- vou perguntar-lhe.

- Diga-lhe que vá levar no eu.

- Não exagere, Trevor - disse Wes. - Limite-se a cortar na bebida durante uns dias. Será benéfico para si.

Se o dinheiro o libertara, estes dois começavam a sufocá-lo. Tinham passado vinte e quatro horas juntos e não davam sinais de se irem embora. Por sinal, estava a acontecer o contrário. Estavam a instalar-se.

Chap saiu cedo para ir buscar a correspondência. Tinham convencido Trevor de que era muito desordenado nos seus hábitos, e por isso é que o .tinham arrastado com tanta facilidade. E se houvesse outras vítimas escondidas lá fora? Trevor não se incomodara muito para descobrir os verdadeiros nomes das vítimas. Porque não haviam elas de fazer o mesmo
à pessoa que estava por detrás de Aladdin North e Laurel Kidjje? Daí em diante, Wes e Chap revezar-se-iam na recolha da correspondência. Misturariam as coisas, iriam à estação dos correios a horas diferentes, usariam disfarces verdadeiramente bizarros.

Trevor acabou por concordar. Aparentemente, sabiam o que estavam a fazer.

Havia quatro cartas para Ricky nos correios de Neptune Beach e duas para Percy em Atlantic Beach. Chap deu as suas voltas rapidamente, com uma equipa atrás dele, atenta a qualquer pessoa que pudesse andar a vigiá-lo. As cartas foram levadas para o apartamento, onde foram abertas à pressa, fotocopiadas e fechadas de novo nos envelopes.

As fotocópias foram lidas e analisadas por agentes ansiosos por fazer qualquer coisa. Klockner também as leu. Dos seis nomes, cinco já eram conhecidos. Eram todos homens de meia idade, solitários, que tentavam reunir coragem para dar o passo seguinte com Ricky ou com Percy. Nenhum parecia especialmente agressivo.

Uma das paredes de um quarto improvisado no apartamento fora pintada de branco e nela fora gravado a stencil um grande mapa dos cinquenta estados americanos. Os parceiros de Ricky estavam assinalados com pinos vermelhos. Os nomes e a terra natal dos correspondentes estavam gravados a negro por baixo dos pinos.

As redes estavam a alargar-se. Ricky tinha vinte e três homens que lhe escreviam; Percy, dezoito. Estavam representados trinta estados. Os Confrades refinavam a sua aventura de semana para semana. Publicavam anúncios em três revistas, tanto quanto Klockner se apercebia. Mantinham-se fiéis ao seu perfil e, de um modo geral, à terceira carta já sabiam se o novo parceiro tinha dinheiro. Ou mulher.

Era fascinante assistir àquele jogo, e agora que tinham acesso total a Trevor não podiam falhar uma carta.

A correspondência diária era resumida em duas páginas e depois entregue a um agente que a levava a Langley. Deville tinha-a na sua posse por volta das sete horas da tarde.

O primeiro telefonema da tarde chegou às três e dez, quando Chap estava a lavar as janelas. Wes ainda estava no gabinete de Trevor, a atormentá-lo com uma ou outra pergunta. Trevor estava cansado. Não dormira a sesta e precisava desesperadamente de uma bebida.

- Escritório de advogados - respondeu Chap.

- É do escritório do Trevor? - perguntaram do outro lado da linha.

- É. Quem fala? -- Quem é você?

- Sou o Chap, o novo estagiário

- O que aconteceu à rapariga?

- Já não trabalha aqui. Em que posso ajudá-lo?

-Fala Joe Roy Spicer. Sou cliente do Trevor e estou a ligar de Trumble.

- A ligar de onde?

- De Trumble. É uma prisão federal. O Trevor está?

- Não. Foi a Washington e deve voltar dentro de duas horas.

- Está bem. Diga-lhe que volto a telefonar às cinco.

- Sim, senhor.

Chap desligou e respirou fundo, tal como Klockner, do outro lado da rua. A CIA acabara de ter o seu primeiro contacto directo com um dos Confrades.

O segundo telefonema chegou às cinco horas em ponto. Chap atendeu o telefone e reconheceu a voz. Trevor estava à espera no seu gabinete.

- Trevor, fala Joe Roy Spicer.

- Olá juiz.

- O que descobriu em Washington?

- Ainda estamos a trabalhar nisso. Vai ser difícil, mas havemos de o encontrar.

Seguiu-se uma longa pausa, como se Spicer não tivesse gostado da notícia e não soubesse ao certo o que havia de dizer.

- Vem cá amanhã?

- Estarei aí às três horas.

- Traga cinco mil dólares em dinheiro.

- Cinco mil dólares?

- Foi o que eu disse. Arranje o dinheiro e traga-o. Todo em notas de vinte e de cinquenta.

- O que é que vai fazer...

- Não faça perguntas estúpidas, Trevor. Traga o maldito dinheiro. Meta-o num envelope com a outra correspondência. Já não é a primeira vez que o faz.

- Está bem.

Spicer desligou sem dizer mais nada. Em seguida, Trevor passou uma hora a falar da economia de Trumble. O dinheiro era proibido. Todos os reclusos tinham uma ocupação e o salário era creditado nas suas contas. Os gastos, como telefonemas para longe, despesas com alimentação, fotocópias e selos, eram todos debitados na conta.

Mas o dinheiro existia, apesar de raramente ser visto. Entrava à socapa e era escondido e utilizado para pagar dívidas de jogo e para subornar os guardas em troca de pequenos favores. Trevor tinha medo disso. Se, como advogado, fosse apanhado a entrar com dinheiro, os seus privilégios quanto às visitas acabariam para sempre. Já entrara duas vezes com dinheiro às escondidas, ambas com quinhentos dólares, em notas de dez e de vinte.

Não fazia ideia para que queriam eles cinco mil dólares.

 

XXVIII

Depois de tropeçar e de andar à roda de Wes e de Chap durante três dias, Trevor precisava de um intervalo. Eles queriam tomar o pequeno-almoço, almoçar e jantar juntos. Queriam levá-lo a casa e ir buscá-lo para o trabalho, de manhã muito cedo. Estavam a destruir o que restava da sua carreira - Chap como estagiário e Wes como chefe de escritório pressionavam-no com perguntas constantes porque a actividade jurídica a desenvolver era escassa.

Por isso, Trevor não se admirou quando lhe anunciaram que o levariam a Trumble. Não precisava de motorista, explicou. Fizera a viagem muitas vezes, no seu fiel carocha, e iria sozinho. Isso aborreceu-os, e os dois homens ameaçaram-no de telefonar ao seu cliente para este lhes dizer o que haviam de fazer.

- Telefonem ao maldito cliente, que não me ralo - gritou-lhes Trevor, e eles abrandaram. - Não é o vosso cliente que orienta a minha vida.

Mas era, e todos o sabiam. Naquele momento, só o dinheiro era importante. Tal como Judas, Trevor já cometera a sua traição.

Saiu de Neptune Beach no seu carocha, sozinho, seguido por Wes e Chap num carro alugado. Atrás deles, ia uma carrinha branca ocupada por gente que Trevor nunca veria. Nem queria. Por capricho, fez uma viragem repentina na direcção de uma loja de conveniência para comprar uma embalagem de seis cervejas e riu-se quando o resto da caravana travou a fundo para evitar um acidente. Já fora da localidade, conduziu muito devagar, bebendo a sua cerveja, saboreando a sua privacidade e pensando no que iria sofrer nos trinta dias seguintes. Estava disposto a sofrer fosse o que fosse por um milhão de dólares.

Ao aproximar-se de Trumble, o remorso atormentou-o pela primeira vez. Conseguiria ver-se livre dele? Estava prestes a enfrentar Spicer, um cliente que confiava nele, um prisioneiro que precisava dele, um parceiro
no crime. Conseguiria manter-se impassível e comportar-se como se tudo estivesse bem, enquanto todas as palavras estavam a ser captadas por um microfone de alta frequência instalado na sua pasta? Conseguiria trocar as cartas com Spicer como se nada tivesse mudado, sabendo que a correspondência estava a ser vigiada? Além disso, estava a deitar fora a sua carreira de advogado, para a qual muito trabalhara e de que se orgulhara no passado.

Estava a vender a sua ética, os seus princípios e até a sua moral por dinheiro. A sua alma valia um milhão de dólares? Agora era demasiado tarde. O dinheiro estava no banco. Bebeu um gole de cerveja e afastou os ténues vestígios de culpa.

Spicer era um criminoso, assim como Beech e Yarber, e ele, Trevor Carson, era igualmente culpado. Não havia honra entre ladrões, repetia em silêncio.

Link apanhou um bafo de cerveja exalado por Trevor quando ambos desceram o corredor em direcção à sala das visitas. Ao chegar à sala dos advogados, Trevor espreitou lá para dentro. Viu Spicer, parcialmente oculto por um jornal, e de repente ficou nervoso. Qual o advogado miserável que levava um aparelho electrónico de escuta para uma reunião confidencial com um cliente? O remorso atingiu Trevor como um tijolo, mas era impossível voltar atrás.

O microfone era quase do tamanho de uma bola de golfe e fora meticulosamente instalado por Wes no fundo da pasta de couro gasta de Trevor. Era extremamente potente e transmitiria com facilidade tudo o que se passasse aos jovens sem rosto que se encontravam no interior da carrinha. Wes e Chap também lá estavam, a postos com os seus auscultadores, ansiosos por ouvir tudo.

- Boa-tarde, Joe Roy - disse Trevor.

- Igualmente - respondeu Spicer.

- Deixe-me ver a pasta - disse Link.

O guarda deu uma vista de olhos apressada e depois disse:

- Parece estar tudo em ordem.

Trevor avisara Wes e Chap de que, às vezes, Link dava uma vista de olhos à pasta. O microfone estava coberto por um monte de papéis.

- Aqui está a correspondência - disse Trevor.

- Quantas são? - perguntou Link.

- Oito.

- Tem alguma? - perguntou Link a Spicer.

- Não. Hoje não - respondeu Spicer.

- Estarei lá fora - disse Link.

A porta fechou-se; seguiu-se um arrastar de pés e, de súbito, o silêncio. Um silêncio muito prolongado. Nem uma palavra entre o advogado e o cliente. No interior da carrinha, os homens esperaram uma eternidade, até ser evidente que alguma coisa correra mal.

Quando Link saiu da pequena sala, Trevor apressou-se a pôr a pasta do lado de fora da porta, no chão, onde ficou tranquilamente durante o resto da conferência advogado-cliente. Link reparou e não pensou no assunto.

- Para que fez você aquilo? - perguntou Spicer.

- A pasta está vazia - respondeu Trevor, encolhendo os ombros.

- Deixe que o circuito fechado a veja. Não temos nada a esconder.

Trevor fora acometido de um derradeiro e breve ataque de ética. Talvez gravasse a conversa seguinte com o seu cliente, mas não esta. Diria a Wes e a Chap que o guarda levara a pasta, o que acontecia de vez em quando.

- Como queira - disse Spicer, remexendo a correspondência até descobrir dois envelopes que eram um pouco mais grossos. - Isto é o dinheiro?

- É. Tive de trazer algumas notas de cem.

- Porquê? Eu disse expressamente que queria notas de vinte e de cinquenta.

- Foi o que pude arranjar. Não podia adivinhar que ia precisar de tanto dinheiro.

Joe Roy examinou os endereços das outras duas cartas. Depois perguntou, com um ar bastante cáustico:

- Então o que se passou em Washington?

- É um caso difícil. Uma daquelas empresas que alugam caixas nos subúrbios, aberta vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, sempre com alguém de serviço, e muito movimento. A segurança é apertada. Havemos de conseguir.

- Quem é que está a usar?

- Uma empresa em Chevy Chase.

- Dê-me um nome.

- O que quer dizer com isso de «dê-me um nome»?

- Dê-me o nome do detective em Chevy Chase.

Trevor teve uma ausência; faltou-lhe a imaginação. Spicer desconfiava de qualquer coisa, e os seus olhos negros e líquidos tinham um brilho intenso.

- Não me consigo lembrar - respondeu Trevor.

- Onde ficou hospedado?

- O que é isto, Joe Roy?

- Dê-me o nome do seu hotel.

- Porquê?

- Tenho o direito de saber. Sou o cliente. Estou a pagar-lhe as despesas. Onde ficou?

- No Ritz-Carlton.

- Qual deles?

- Não sei. No Ritz-Carlton.

- Há dois. Em qual deles foi?

- Não sei. Não foi no centro.

- Em que voo é que foi?

- Vamos lá, Joe Roy. O que é isto?

- Em que companhia aérea?

- Delta.

- O número do voo?

- Não me lembro.

- Regressou ontem. Há menos de vinte e quatro horas. Qual era o número do seu voo?

- Não me recordo.

- Tem a certeza de que foi a Washington?

- Claro que fui - disse Trevor, mas a sua voz cedeu um pouco por falta de sinceridade. Não planeara as mentiras e elas falhavam no momento em que ele as dizia.

- Não sabe o seu número de voo, nem em que hotel ficou, nem o nome do detective com quem passou os dois últimos dias. Deve julgar que sou estúpido.

Trevor não respondeu. Só conseguia pensar no microfone que estava na pasta e na sorte que tivera em deixá-la lá fora. Wes e Chap não podiam ouvi-lo a ser atacado desta maneira.

- Tem andado a beber, não tem? - perguntou Spicer, ao ataque.

- Tenho - respondeu Trevor, fazendo uma pausa temporária nas mentiras. - Parei e comprei uma cerveja.

- Ou duas.

- Sim, duas.

Spicer apoiou-se nos cotovelos, com a cara no meio da mesa.

- Tenho más notícias para si, Trevor. Está despedido.

- O quê?

- Acabou. Na rua. Para sempre.

- Não me pode despedir.

- Acabei de o fazer com efeitos imediatos. Por votação unânime dos Confrades. Vamos avisar o guarda para que o seu nome seja retirado da lista de advogados. Quando sair hoje, Trevor, não volte.

- Porquê?

- Mentiras, bebida em excesso, maus hábitos, uma falta de confiança generalizada da parte dos seus clientes.

Parecia verdade, mas mesmo assim Trevor aceitou mal a notícia. Nunca lhe passara pela cabeça que tivessem coragem para o despedir. Cerrou os dentes e perguntou:

- E a nossa pequena empresa?

- É uma ruptura. Fica com o seu dinheiro e nós ficamos com o nosso.

- E quem trabalhará no exterior?

- Deixe isso por nossa conta. Poderá continuar a viver honestamente, se conseguir.

- O que sabe você de uma vida honesta?

- Por que não se vai embora, Trevor? Levante-se e saia. Foi óptimo.

- com certeza - respondeu entredentes, com a mente embotada, mas na qual se destacavam dois pensamentos. Primeiro, Spicer não levara cartas, o que era a primeira vez que acontecia há muitas semanas. Segundo, o dinheiro. Para que precisavam de cinco mil dólares? Talvez para subornar o advogado seguinte. Tinham preparado bem a emboscada, o que era sempre uma vantagem porque dispunham de muito tempo. Três homens muito inteligentes, com muitas horas de ócio. Não era justo.

O orgulho obrigou Trevor a levantar-se. Estendeu a mão e disse:

- Desculpe por isto ter acontecido. Spicer correspondeu ao cumprimento com relutância. Desande daqui, apeteceu-lhe dizer.

Quando olharam um para o outro pela última vez, Trevor disse, quase em surdina:

-- Konyers é o homem. Muito rico. Muito poderoso. Ele sabe da vossa existência.
Spicer saltou como um gato. Quando o rosto de ambos ficou apenas a alguns centímetros de distância, perguntou, também em voz baixa:

- Ele anda a vigiá-lo?

Trevor fez um sinal afirmativo e piscou o olho. Depois abriu a porta. Pegou na pasta sem dar uma palavra a Link. O que havia de dizer ao guarda? Desculpa, meu velho, mas acabaram-se os mil dólares por mês que recebias por baixo da mesa. É pena, não é? Então pergunta ao juiz Spicer porque é que isso aconteceu.

Mas não disse nada. Estava a cambalear e quase tonto, e o álcool não ajudava. O que iria dizer a Wes e a Chap? Essa é que era a questão do momento. Iriam fustigá-lo com perguntas assim que o apanhassem.

Despediu-se de Link, Vince, Mackey e Rufus na portaria, como de costume, mas agora pela última vez, e saiu.

O automóvel de Wes e Chap estava estacionado mais abaixo. Os agentes queriam conversar mas tomaram precauções. Trevor ignorou-os quando atirou a pasta para o banco do pendura e entrou no carocha. A caravana afastou-se da prisão atrás dele e desceu lentamente a auto-estrada até chegar a Jacksonville.

A decisão de prescindirem de Trevor fora tomada com a máxima ponderação jurídica. Tinham passado horas escondidos na sua saleta a estudar o dossier de Konyers até saberem todas as cartas de cor. Percorreram quilómetros à volta da pista, só os três, construindo cenários uns atrás dos outros. Comiam juntos, jogavam às cartas juntos, sempre a inventar novas teorias em surdina acerca da pessoa que poderia andar a vigiar-lhes a correspondência.

Trevor era o acusado mais próximo e o único que podiam controlar. Se as vítimas se descuidassem, não podiam fazer nada por isso. Mas se o advogado se desorientasse, tinha de ser despedido. Não era pessoa para despertar grande confiança. Quantos advogados bons e atarefados estariam dispostos a arriscar a sua carreira num esquema de extorsão de homossexuais?

A única coisa que os levara a hesitar em livrarem-se de Trevor fora o medo do que o advogado poderia fazer com o dinheiro deles. Esperavam que ele o roubasse e, sinceramente, não podiam impedi-lo. Mas estavam dispostos a correr esse risco em troca de um melhor resultado com Mr. Aaron Lake. Para chegarem a Lake, sentiam que tinham de eliminar Trevor.
Spicer forneceu-lhes os pormenores da reunião, palavra a palavra. A mensagem final de Trevor, em surdina, deixou-os estupefactos. Konyers andava a vigiar Trevor. Konyers sabia da existência dos Confrades. Significava isto que Lake sabia da existência dos Confrades? Quem era realmente Konyers? Porque é que Trevor dissera aquilo e porque é que deixara a pasta do lado de fora da porta?

com a análise que só uma equipa de juizes entediados podia fazer, as perguntas sucederam-se. E depois as estratégias.

Trevor estava a fazer café na sua cozinha recém-limpa e reluzente quando Wes e Chap entraram sem fazer barulho e foram ter com ele.

- Que aconteceu? - perguntou Wes.

Os dois homens franziam o sobrolho e davam a impressão de estarem atormentados há algum tempo.

- Que querem dizer com isso?-perguntou Trevor, como se a situação fosse esplêndida.

- Que aconteceu ao microfone?

- Ah, isso! O guarda pegou na pasta e deixou-a lá fora.

Os dois homens olharam um para o outro e franziram ainda mais o sobrolho. Trevor deitou a água na máquina de café. O facto de serem quase cinco horas e de estar a fazer café foi registado pelos agentes.

- Por que é que ele fez uma coisa dessas?

- É a rotina. Mais ou menos uma vez por mês, o guarda fica com a pasta durante a visita.

- Ele revistou-a?

Trevor entreteve-se a ver o café a cair. Não havia problema nenhum.

- Fez o seu exame rápido, como de costume, o que me parece que faz de olhos fechados. Tirou as cartas que eram para entregar e depois pegou nela. O microfone não sofreu nada.

- Reparou nos envelopes grossos?

- Evidentemente que não. Descontraiam-se. - E a reunião correu bem?

- Como de costume, mas o Spicer não tinha correspondência para expedir, o que não tem sido muito vulgar ultimamente, mas acontece. Volto lá daqui a dois dias e ele tem uma pilha de cartas e o guarda nem sequer toca na mala. Vocês vão ouvir tudo. Querem café? Os agentes descontraíram-se em simultâneo.

- Obrigado, mas é melhor irmos andando - disse Chap.

Havia relatórios a fazer, perguntas a responder. Dirigiram-se para a porta, mas Trevor impediu-lhes a passagem.

- Ouçam lá, rapazes - disse, muito delicadamente. - Sou perfeitamente capaz de me vestir sozinho e de comer uma tigela de cereais sozinho. E não gosto de abrir o meu escritório antes das nove. Como o escritório é meu, abrimos às nove e nem um minuto antes. Vocês são bem-vindos aqui a essa hora, mas não às oito e cinquenta e nove. Afastem-se da minha casa e deste escritório até às nove. Entendido?

- Com certeza - respondeu um deles.

Saíram os dois. Não era uma questão importante para eles. Tinham microfones por todo o lado no escritório, em casa, no carro e até na pasta. Sabiam onde Trevor comprava a pasta de dentes.

Trevor bebeu uma cafeteira cheia de café e ficou sóbrio. Em seguida, iniciou os seus movimentos, todos cuidadosamente planeados. Começara a prepará-los assim que saíra de Trumble. Partiu do princípio de que eles estavam à espreita, junto dos rapazes da carrinha branca. Estes é que tinham os aparelhos e os brinquedos, os microfones, e com certeza que Wes e Chap sabiam usá-los. O objectivo não era o dinheiro. Trevor convenceu-se de que eles sabiam tudo, deixou a sua imaginação à solta e assumiu que ouviam todas as palavras, seguiam todos os passos e sabiam exactamente onde se encontrava a todo o momento.

Quanto mais paranóico estivesse, mais hipóteses tinha de fugir.

Meteu-se no carro e parou numa alameda a vinte e três quilómetros dali, perto de Orange Park, a sul de Jacksonville. Andou a pé sem destino, viu as montras e comeu pizza num estabelecimento quase vazio. Era difícil não desatar a correr, esconder-se atrás de uma prateleira de roupa num armazém e esperar que anoitecesse. Mas resistiu. Numa Radio Shack, comprou um pequeno telemóvel. O pacote incluía um mês de chamadas nacionais com serviço local. Era do que Trevor precisava.

Regressou a casa depois das nove, certo de que estavam a vigiá-lo. Ligou a televisão no volume máximo e fez mais café. Na casa de banho, encheu os bolsos de dinheiro.

À meia-noite, com a casa às escuras e em silêncio e Trevor a dormir, evidentemente, saiu pela porta das traseiras. A atmosfera estava fresca, a lua-cheia e Trevor tentou dar a entender que ia apenas até à praia. Vestia calças largas com bolsos que nasciam na cintura, duas camisas de ganga e um blusão enorme com dinheiro enfiado no forro. Ao todo, Trevor
escondera oitenta mil dólares no corpo e encaminhava-se para sul, sem destino, pela beira-mar, como qualquer outro vagabundo a passear à noite.

Depois dos primeiros mil e quinhentos metros, estugou o passo. Ao fim de cinco quilómetros, estava exausto, mas com muita pressa. O sono e o descanso teriam de esperar.

Saiu da praia e dirigiu-se à recepção de um motel degradado. Não havia trânsito na auto-estrada AIA; não estava nada aberto, excepto o motel e uma loja de conveniência ao longe.

A porta chiou o suficiente para o empregado acordar.

Algures nas traseiras havia um televisor a funcionar. Um jovem gordo que não tinha mais de vinte anos apareceu e disse:

- Boa-noite. Precisa de um quarto?

- Não - respondeu Trevor. Lentamente, tirou a mão de um bolso e mostrou um grande rolo de notas. Começou a contá-las e colocou-as em fila em cima do balcão. - Preciso que me faça um favor.

O empregado ficou a olhar para o dinheiro e rolou os olhos nas órbitas. A praia atraía todo o tipo de gente.

- Estes quartos não são assim tão caros - disse ele.

- Como se chama? - perguntou Trevor.

- Oh, não sei, Digamos que sou o Sammy Sosa.

- Muito bem, Sammy. Estão aqui mil dólares. São seus se me levar de automóvel a Daytona Beach. Demora hora e meia.

- Serão três horas porque tenho de voltar para trás.

- Como queira. São mais de trezentos dólares à hora. Qual foi a última vez que ganhou trezentos dólares à hora?

- Há muito tempo. Não posso fazer uma coisa dessas. Estou no turno da noite. Estou de serviço das dez às oito.

- Quem é o patrão?

- Está em Atlanta.

- Qual foi a última vez que passou por aqui?

- Nunca o vi.

- Evidentemente que não. Se tivesse um monte de esterco como este, passava por aqui?

- Não é assim tão mau. Temos TV a cores gratuita e os aparelhos de ar condicionado funcionam quase todos.

- Isto é um monte de esterco, Sammy. Pode fechar aquela porta à chave, meter-se no carro e voltar três horas depois que ninguém dará por isso.
Sammy olhou para o dinheiro outra vez.

- Anda a fugir às autoridades ou qualquer coisa assim?

- Não. E não estou armado. Estou apenas com pressa.

- Então o que se passou?

- Um divórcio que está a correr mal, Sammy. Tenho algum dinheiro. A minha mulher quere-o todo e contratou uns advogados mafiosos. Tenho de sair daqui.

- Tem dinheiro, mas não tem automóvel?

- Ouça, Sammy. Quer o acordo ou não? Se disser que não, desço a rua, entro na loja de conveniência e hei-de encontrar alguém que seja suficientemente esperto para aceitar o meu dinheiro.

- Dois mil.

- Faz isso por dois mil?

- Faço.

O automóvel era pior do que Trevor esperava. Era um velho Honda, que nunca fora limpo nem por Sammy nem pelos cinco proprietários anteriores. Mas a auto-estrada estava deserta e a viagem até Daytona Beach demorou exactamente noventa e oito minutos.

Às três e vinte da madrugada, o Honda parou em frente de um restaurante que estava aberto toda a noite e Trevor saiu. Agradeceu a Sammy, despediu-se e viu-o afastar-se. Lá dentro, tomou café e conversou com a empregada o tempo suficiente para a convencer a ir buscar uma lista telefónica da zona. Pediu panquecas e serviu-se do seu novo telemóvel para saber como havia de dar a volta à localidade.

O aeroporto mais próximo era o Daytona Beach International. Pouco depois das quatro horas, o seu táxi parou junto do terminal. Viam-se dezenas de pequenos aviões alinhados na pista. Trevor ficou a olhar para eles quando o táxi se afastou. com certeza que conseguiria alugar um deles por pouco tempo. Só precisava de um, de preferência um bimotor.


XXIX

O quarto das traseiras do apartamento fora transformado em sala de reuniões, com quatro mesas desmontáveis juntas para formarem uma grande. Estava coberta de jornais, revistas e caixas de donuts. Todas as manhãs, às sete e meia, Klockner e a sua equipa se reuniam para passar em revista a noite e planear o dia, enquanto tomavam café e comiam bolos. Wes e Chap estavam sempre presentes, além de mais seis ou sete elementos, consoante quem viera de Langley. Às vezes, os técnicos da sala da frente juntavam-se-lhes, apesar de Klockner não exigir a sua presença. Agora que Trevor estava do lado deles, precisavam de menos gente para o vigiar.

Ou assim o julgavam. A vigilância não detectou movimento em casa do advogado antes das sete e meia, o que não era totalmente invulgar para um homem que muitas vezes ia para a cama bêbado e acordava tarde. Às oito, quando Klockner ainda estava em reunião nas traseiras, um técnico telefonou para a casa da frente com o pretexto de que se enganara no número. Depois de três toques, ouviu-se o gravador e Trevor anunciou que não estava em casa e que deixassem mensagem. Isto acontecia uma vez por outra quando tentava adormecer tarde, mas em geral funcionava bem para o arrancar da cama.

Klockner foi avisado às oito e meia de que a casa estava totalmente silenciosa; nem duche, nem rádio, nem televisão, nem aparelhagem estereofónica, nem um som próprio da rotina normal.

Era muito possível que Trevor tivesse chegado a casa embriagado, sozinho, mas sabiam que ele não passara a última noite no Pete’s. Fora passear para a avenida e regressara aparentemente sóbrio.

- Pode estar a dormir - disse Klockner, despreocupado. - Onde está o carro dele?

- Na rampa.

Às nove horas, Wes e Chap bateram à porta do escritório de Trevor e, como ninguém respondeu, abriram-na. No apartamento, foi o frenesi quando anunciaram que não havia sinais do advogado e que o carro dele ainda lá estava. Sem entrar em pânico, Klocker enviou alguns elementos da sua equipa à praia, aos cafés junto da Sea Turtle e até ao Pete’s, que ainda não estava aberto. Passaram a pente fino a zona à volta da casa e do escritório de Trevor, a pé, de carro, e não viram nada.

Às dez horas, Klockner telefonou a Deville, para Langley. O advogado desaparecera, foi a mensagem.

Todos os voos para Nassau foram verificados; nada, nem sinais de Trevor Carson. Deville não conseguiu localizar o seu contacto na alfândega das Bahamas nem o supervisor do banco que andavam a subornar.

Teddy Maynard estava no meio de uma comunicação sobre movimentos de tropas norte-coreanas quando foi interrompido por uma mensagem urgente, segundo a qual Trevor Carson, o advogado bêbado de Neptune Beach, Florida, desaparecera.

- Como é que podem perder um idiota como ele? - rosnou Teddy a Deville, numa rara demonstração de fúria.

- Não sei.

- Não acredito nisto!

- Desculpe, Teddy.

Teddy mudou de posição e fez um esgar de dor.

- Encontrem-no, com os diabos! - sibilou.

O avião era um Beech Baron, um bimotor pertencente a uns médicos e fretado por Eddie, o piloto que Trevor convencera a levantar-se da cama às seis da manhã com a promessa de dinheiro a pronto e de mais algum por baixo da mesa. A quotação oficial era de dois mil e duzentos dólares por uma viagem de ida e volta entre Daytona Beach e Nassau duas horas por cada viagem, num total de quatro, a quatrocentos dólares à hora, além das despesas de aterragem, da Imigração e do tempo de espera do piloto. Trevor atirava mais dois mil e duzentos dólares para o bolso de Eddie se a viagem se fizesse imediatamente.

O Geneva Trust Bank, no centro de Nassau, abriu às nove horas locais, e Trevor estava à espera quando as portas se abriram. Irrompeu pelo gabinete de Mr. Brayhears e exigiu atendimento imediato. Tinha quase um milhão de dólares na sua conta - novecentos mil de Mr. Al Konyers,
pagos através de Wes e de Chap, e cerca de sessenta e oito mil dos seus negócios com os Confrades.

Com um olho na porta, obrigou Brayshears a ajudá-lo a transferir o dinheiro, e depressa. O dinheiro pertencia a Trevor Carson e a mais ninguém. Brayhears não teve alternativa. Havia um banco nas Bermudas cujo gerente era seu amigo e que convinha mesmo a Trevor. Este não confiava em Brayhears e tencionava continuar a transferir o dinheiro até se sentir seguro.

Por instantes, Trevor deitou um olhar guloso à conta da Boomer Realty, cujo saldo era de cento e oitenta e nove mil dólares e uns trocos. Estava na sua mão, nesse momento fugaz, levar também o dinheiro deles. Não passavam de criminosos - Beech, Yarber e o odioso Spicer, todos criminosos. E tinham sido arrogantes ao ponto de o despedir. Tinham-no obrigado a fugir. Trevor tentara odiá-los para lhes levar o dinheiro, mas desistiu e sentiu uma certa compaixão por eles. Três velhos a consumirem-se numa prisão.

Um milhão era suficiente. Além disso, Trevor estava com pressa. Se Wes e Chap aparecessem de repente, armados, não ficaria surpreendido. Agradeceu a Brayhears e saiu do edifício a correr.

Quando o Beech Baron descolou da pista do aeroporto de Nassau, Trevor não pôde deixar de se rir. Riu-se do golpe, da fuga, da sua sorte, de Wes e de Chap e do cliente rico que tinha agora um milhão a menos, do seu pequeno e miserável escritório que agora se encontrava desactivado. Riu-se do seu passado e do seu futuro glorioso.

A três mil pés de altitude, olhou lá para baixo, para as águas azuis e calmas das Caraíbas. Um veleiro solitário navegava, com o capitão ao leme e uma senhora pouco vestida ao lado. Dentro de alguns dias, seria ele que estaria ali.

Descobriu uma cerveja num frigorífico portátil. Bebeu-a e caiu a dormir. Aterraram na ilha de Eleuthera, um sítio que Trevor vira numa revista de viagens que comprara na noite da véspera. Havia praias, hotéis e toda a espécie de desportos náuticos. Pagou a Eddie em dinheiro e depois esperou uma hora por um táxi, à saída do pequeno aeroporto.

Comprou roupas numa loja para turistas em Governor’s Harbour e em seguida dirigiu-se para um hotel na praia. Divertia-o o facto de se ter livrado de embaraços tão depressa. É claro que Mr. Konyers tinha muito dinheiro, mas ninguém se podia dar ao luxo de possuir um exército secreto suficientemente numeroso para seguir alguém até às Bahamas. O seu futuro seria de deleite total. Não ia destruí-lo olhando para trás.
Bebeu rum à beira da piscina assim que a empregada do bar lha levou. com quarenta e oito anos, Trevor Carson recebeu a sua nova vida quase na mesma situação em que deixara a anterior.

O escritório do advogado Trevor Carson abriu a horas e as coisas decorreram como se nada faltasse. O proprietário fugira, mas o estagiário e o chefe do escritório estavam prontos a tomar conta de qualquer assunto que pudesse evoluir de forma inesperada. O telefone tocou duas vezes antes do meio-dia, dois pedidos de informações errados de pessoas perdidas nas páginas amarelas. Nem um único cliente precisava de Trevor. Nem um único amigo telefonava a dar sinal de vida. Wes e Chap passaram o tempo a vasculhar as poucas gavetas e os dossiers que ainda não tinham inspeccionado. Não encontraram nada de importância.

Outra equipa passou revista a todos os cantos da residência de Trevor, sobretudo à procura do dinheiro que recebera. Não o encontraram, o que não os surpreendeu. A pasta barata estava num roupeiro, vazia. Não havia vestígios do dinheiro. Trevor partira com ele.

O funcionário do banco nas Bahamas foi seguido até Nova Iorque, onde se encontrava para tratar de um assunto do governo. Mostrou-se relutante em envolver-se a uma distância tão grande, mas pouco depois fez os seus telefonemas. Por volta da uma hora da tarde, confirmou que o dinheiro fora transferido. O titular da conta levantara-o pessoalmente, e o funcionário não divulgou mais nada.

Para onde fora o dinheiro? Fora transferido por via telegráfica, e foi tudo o que disse a Deville. A reputação do banco da sua terra dependia do sigilo e não podia revelar mais nada. Era corrupto, mas tinha os seus limites.

As autoridades algandegárias dos Estados Unidos colaboraram após uma certa relutância inicial. O passaporte de Trevor fora examinado no Aeroporto Internacional de Nassau nesse dia de manhã, e até então o advogado não saíra das Bahamas, pelo menos oficialmente. O seu passaporte constava de uma lista especial. Se o utilizasse para entrar noutro país, as autoridades alfandegárias dos Estados Unidos seriam informadas daí a duas horas.

Deville fez rapidamente um ponto da situação a Teddy e a York, o quarto nesse dia, e depois ficou à espera de mais instruções.

- Ele vai cometer um erro - disse York.- Vai usar o passaporte em qualquer lado, e vamos apanhá-lo. Não sabe quem é que o anda a seguir.
Teddy espumou, mas não disse nada. A sua agência derrubara governos e matara reis, mas continuava a surpreendê-lo que as pequenas coisas muitas vezes fracassassem. Um advogado presumido e estúpido de Neptune Beach escapara à rede quando uma dúzia de pessoas deviam estar a vigiá-lo. Teddy considerava isto surpreendente.

O advogado deveria ser a ligação deles, a ponte para o interior de Trumble. Por um milhão de dólares, julgavam que podiam confiar nele. Não fora elaborado nenhum plano de contingência para a sua fuga repentina. Agora estavam a tentar desenvolver algum.

- Precisamos de alguém dentro da prisão - disse Teddy.

- Estamos perto - respondeu Deville. - Estamos a trabalhar com a Justiça e com o Gabinete das Prisões.

- Perto como?

- Bem, à luz do que aconteceu hoje, creio que teremos um homem lá, dentro de Trumble, daqui a quarenta e oito horas.

- Quem é ele?

- Chama-se Argrow, trabalhou onze anos com a agência, tem trinta e nove anos e credenciais sólidas.

- Qual é a sua história?

- Vai ser transferido para Trumble de uma prisão federal nas Ilhas Virgens. Os seus documentos vão ser levantados pelo Gabinete aqui em Washington para que o director não faça mais perguntas. É apenas mais um prisioneiro federal que pediu uma transferência.

- E está pronto a partir?

- Quase. Dentro de quarenta e oito horas.

- Trate disso já.

Deville saiu, mais uma vez com o fardo de uma tarefa difícil que, de repente, tinha de ser executada de um dia para o outro.

- Temos de apurar o que eles sabem-disse Teddy, quase em surdina.

- Sim, mas não temos motivos para acreditar que desconfiam de alguma coisa. - disse York. - Lemos toda a correspondência deles. Nada indica que estejam particularmente entusiasmados com o Konyers. Ele é apenas uma das suas potenciais vítimas. Comprámos o advogado para o impedir de andar a farejar a caixa postal do Konyers. Agora ele fugiu para as Bahamas, embriagado com o dinheiro, e portanto não constitui uma ameaça.

- Mas mesmo assim vamos livrar-nos dele - disse Teddy. Não era uma pergunta.
- Com certeza.

- Sentir-me-ei melhor quando ele desaparecer - disse Teddy.

Um guarda fardado mas desarmado entrou’na secção de Direito da biblioteca a meio da tarde. Começou por encontrar Joe Roy Spicer, que estava à porta.

- O director quer falar consigo - disse o guarda. - Consigo, com o Yarber e com o Beech.

- Acerca de quê? - perguntou Spicer.

Estava a ler um velho exemplar de Field & Stream.

- Isso não é da minha conta. Ele quer vê-los agora. Sigam.

- Diga-lhe que estamos ocupados.

- Não lhe vou dizer nada. Venham.

Os homens seguiram-no até ao edifício da administração e cruzaram-se com outros guardas no caminho. Quando saíram do elevador, encontraram-se à frente da secretária do director. A secretária, sozinha, conseguiu escoltar os Confrades até ao gabinete enorme em que Emmitt Broon os aguardava. Quando ela saiu, ele disse sem mais nem menos:

- Fui notificado pelo FBI de que o vosso advogado desapareceu. Não houve reacção visível dos três, mas todos pensaram instantaneamente no dinheiro escondido offshore.

O director continuou:

- Desapareceu esta manhã, e falta dinheiro. Não tenho pormenores. Dinheiro de quem?, apeteceu-lhes perguntar. Ninguém sabia da sua pequena fortuna escondida. Teria Trevor roubado mais alguém?

- Porque nos está a dizer isso? - perguntou Beech.

O motivo era que o Departamento de Justiça de Washington pedira a Broon que informasse os três. Mas o motivo que ele apresentou foi: «Pensei que quisessem saber, caso precisassem de lhe telefonar.»

Os Confrades tinham despedido Trevor na véspera e ainda não tinham informado a administração de que ele já não era o seu advogado.

- O que havemos de fazer para encontrar um advogado? - perguntou Spicer, como se a vida não pudesse continuar.

- O problema é vosso. Francamente, diria que os senhores já receberam apoio jurídico que dá para muitos anos.

-E se ele nos contactar? - perguntou Yarber, sabendo perfeitamente que nunca mais ouviriam falar de Trevor.

- Devem informar-me imediatamente

Eles concordaram. O que o director quisesse. Broon mandou-os embora.

A fuga de Buster foi menos complicada do que uma ida à mercearia. Esperaram pela manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, quando quase todos os reclusos estavam entretidos com os seus trabalhos humildes. Yarber e Beech estavam na pista, a duzentos metros de distância um do outro para que um estivesse sempre a olhar para a prisão enquanto o outro observava o bosque ao longe. Spicer escondeu-se junto do campo de basquetebol, não fosse aparecer algum guarda.

Sem vedações, nem torres nem grandes preocupações de segurança, os guardas não constituíam um problema em Trumble. Spicer não viu nenhum.

Buster estava perdido na chiadeira do seu corta-relva, que manejava lentamente em direcção à pista. Fez uma pausa para limpar a cara e olhar à volta. Spicer, a cinquenta metros de distância, ouviu-o desligar a máquina. Virou-se e fez um sinal rápido com o polegar, um sinal para ele se despachar. Buster entrou na pista, aproximou-se de Yarber e deram alguns passos juntos.

- Tens a certeza de que queres fazer isto? - perguntou Yarber.

- Sim. Absoluta.

O miúdo parecia calmo e preparado.

- Então, vai agora. Acalma-te. Mantém-te frio.

- Obrigado, Finn.

- Não sejas apanhado, filho.

- Nem pensar nisso.

Ao chegar à esquina, B uster continuou a andar, saiu da pista, atravessou a relva acabada de aparar, a cem metros de uns arbustos, e depois desapareceu. Beech e Yarber viram-no ir e depois viraram-se para a prisão. Spicer dirigia-se tranquilamente para eles. Não havia sinais de alarme nos pátios, nos dormitórios nem em qualquer dos outros edifícios no perímetro da prisão. Não se via um único guarda. Andaram quase cinco quilómetros, doze voltas, ao ritmo lento de quinze minutos por cada mil e quinhentos metros, e quando se fartaram retiraram-se para a frescura da sala para se descontraírem e ouvirem a notícia da fuga. Só daí a algumas horas é que ouviriam falar do assunto.

O ritmo de Buster era muito mais rápido. Já na floresta, começou a correr sem olhar para trás. Guiando-se pelo Sol, seguiu para sul durante
meia hora. A floresta não era grande; o mato era ralo e não o atrasou. Passou por um posto de observação de veados a seis metros de altura, em cima de um carvalho, e depressa descobriu um caminho que ia para sudoeste.

No bolso das calças, do lado esquerdo, levava dois mil dólares em dinheiro, que lhe tinham sido oferecidos por Fin Yarber. Na algibeira do outro lado tinha um mapa que Beech desenhara à mão. E no bolso de trás, levava um envelope amarelo dirigido a um homem chamado Al Konyers, de Chevy Chase, Maryland. Os três eram importantes, mas o envelope fora o que recebera mais atenção dos Confrades. Uma hora depois, parou para descansar e pôs-se à escuta. A auto-estrada 30 era o seu primeiro ponto de referência. Seguia para leste e para oeste e, pelos cálculos de Beech, deveria encontrá-la ao fim de duas horas. Buster não ouvia nada e desatou a correr outra vez.

Tinha de manter um ritmo uniforme. Havia uma hipótese de a sua fuga ser detectada logo depois do almoço, quando os guardas iam fazer uma pequena inspecção aos campos, de vez em quando. Se um deles desatasse a procurar Buster, poderiam seguir-se outras perguntas. Mas depois de duas semanas a observar os guardas, nem Buster nem nenhum dos Confrades admitia tal possibilidade.

Por isso, Buster dispunha pelo menos de quatro horas. E talvez de muitas mais porque o seu dia de trabalho terminava às cinco, altura em que regressava com o seu corta-relva. Se não aparecesse, começariam a procurá-lo na prisão. Duas horas depois, informariam as esquadras locais de que fugira mais um recluso de Trumble. Nunca andavam armados e não eram perigosos, e ninguém se exaltava demasiado. Não havia equipas de busca. Nem cães-polícias. Nem helicópteros a sobrevoar a floresta. O chefe da polícia da zona e os seus adjuntos patrulhariam as estradas principais e avisariam os cidadãos para trancarem as portas.

O nome do fugitivo era registado na rede nacional de computadores. Vigiavam-lhe a casa e a namorada, e esperavam que cometesse qualquer acto estúpido.

Depois de noventa minutos de liberdade, Buster parou por instantes e ouviu a buzina de um semi-reboque, não muito longe. A floresta terminava abruptamente numa vala à direita e começava a auto-estrada. De acordo com o mapa de Beech, a localidade mais próxima ficava a vários quilómetros a oeste. O plano era seguir a pé ao longo da auto-estrada, escondendo-se do trânsito em valas e pontes, até encontrar qualquer tipo de civilização.

Buster vestia as roupas da prisão, constituídas por umas calças de caqui e uma camisa de manga curta cor de azeitona, ambas manchadas de suor. A população local sabia o que os prisioneiros usavam e, se fosse visto a descer a pé a auto-estrada 30, alguém chamaria a polícia. Chega à cidade, tinham-lhe dito Beech e Spicer, e muda de roupa. Depois, compra um bilhete de autocarro e continua a fugir.

Buster levou três horas a esconder-se atrás de árvores e a saltar bermas de estrada antes de avistar os primeiros edifícios. Afastou-se da auto-estrada e atravessou um campo de feno. Um cão rosnou-lhe quando entrou numa rua ladeada de autocaravanas. Atrás de uma delas, viu uma corda com roupa a secar na atmosfera sem vento. Tirou uma camisola vermelha e branca e deitou fora a camisa cor de azeitona.

No centro, não havia mais do que dois quarteirões de apartamentos, duas bombas de gasolina, um banco, uma espécie de câmara e uma estação de correios. Buster comprou umas calças de ganga, uma t-shirt e um par de botas numa loja de desconto, e mudou de roupa no vestiário dos         • empregados. Encontrou a estação dos correios no interior da Câmara.         B •Sorriu e agradeceu aos seus amigos em Trumble quando enfiou o precioso ’envelope na ranhura de Outros Destinos.

Buster apanhou um autocarro para Gainesville, onde, por quatrocentos e oitenta dólares, adquiriu o direito de andar de autocarro nos Estados Unidos durante sessenta dias. Foi para oeste. Queria perder-se no México.


XXX

As primárias de Pennsylvania, no dia 25 de Abril, seriam o último grande esforço do governador Tarry. Sem se deixar desanimar pela sua prestação infeliz no debate de há quinze dias, conduzia a campanha com grande entusiasmo, mas com muito pouco dinheiro. «O Lake é que o tem todo», afirmava ele onde quer que parasse, fingindo-se orgulhoso por ser pobre. Não saiu do estado durante onze dias seguidos. Condenado a viajar numa grande caravana Winnebago, comia em casa de apoiantes, pernoitava em hotéis baratos e esfalfava-se a apertar mãos e a palmilhar os subúrbios.

- Falemos dos problemas - defendia ele. - Não de dinheiro.

Também Lake trabalhava arduamente na Pennsylvania. O seu jacto era dez vezes mais rápido do que o meio de transporte de Tarry. Lake distribuía mais apertos de mão, fazia mais discursos e gastava com certeza mais dinheiro.

O resultado era previsível. Lake recebeu 71 por cento dos votos, uma maioria esmagadora tão embaraçosa para Tarry que este falou abertamente em desistir. Mas prometeu manter-se pelo menos mais uma semana, até às primárias de Indiana. Os colaboradores tinham-no abandonado. Tinha onze milhões de dólares de dívidas. Fora despejado da sua sede de campanha em Arlington.

No entanto, queria que a boa gente de Indiana tivesse a oportunidade de ver o seu nome nos boletins de voto.

E, quem sabe, talvez o novo e reluzente avião a jacto de Lake se incendiasse, como o anterior.

Tarry lambeu as suas próprias feridas e no dia seguinte ao das primárias prometeu continuar a lutar.

Lake quase teve pena dele e admirou a sua determinação em continuar até à convenção. Mas, como toda a gente, Lake sabia fazer contas.

Precisava apenas de mais quarenta delegados para assegurar a convenção, e ainda havia quase quinhentos lá fora. A corrida terminara.

Depois de Pennsylvania, os jornais de todo o país confirmaram a sua nomeação. O seu rosto atraente e feliz estava em toda a parte, um milagre político. Foi elogiado por muitos como um símbolo da operacionalidade do sistema - um desconhecido com uma mensagem, que viera não se sabia de onde e que captara a atenção das pessoas. A campanha de Lake dava esperança a todos aqueles que sonhavam em concorrer à presidência. Não implicara meses a calcorrear as estradas secundárias do lowa. Saltara New Hampshire que, de qualquer modo, era um pequeno estado.

E Lake foi condenado por ter comprado a sua nomeação. Antes da Pennsylvania, calculava-se que tivesse gasto quarenta milhões de dólares. Era difícil obter um número mais preciso porque o dinheiro estava a ser queimado em muitas frentes. Tinham sido gastos mais vinte milhões pelo CAP-D e por meia-dúzia de outros grupos de pressão poderosos, todos a trabalharem para Lake.

Nunca outro candidato gastara nada que se aproximasse.

As críticas atingiram Lake e perseguiram-no de noite e de dia. Mas ele preferia ter o dinheiro e a nomeação do que sofrer a alternativa.

As grandes somas de dinheiro não eram tabu. Os empresários online estavam a fazer milhões. De todas as entidades presumidas, o governo era aquela que apresentava um excedente! Quase toda a gente tinha emprego, uma hipoteca acessível e dois automóveis. As sondagens ininterruptas de Lake levaram-no a acreditar que as grandes somas de dinheiro ainda não constituíam um problema para os eleitores. Num confronto com o vice-presidente em Novembro, Lake estava agora praticamente equilibrado.

Mais uma vez regressou a Washington, afastando-se das guerras do Oeste, como um herói triunfante. Aaron Lake, um modesto congressista do Arizona, era agora o homem do dia.

Depois de um pequeno-almoço tranquilo e muito prolongado, os Confrades leram o matutino de Jacksonville, o único jornal permitido em Trumble. Ficaram muito satisfeitos por Aaron Lake. Na realidade, estavam verdadeiramente entusiasmados com a sua nomeação. Contavam-se agora entre os seus adeptos mais fervorosos. Corre, Aaron, corre.

A notícia da caminhada de Buster para a liberdade quase não provocara agitação. Tanto melhor para ele, afirmaram os reclusos. Era apenas uma criança com uma longa sentença. Corre, Buster, corre.

A fuga não fora noticiada no jornal da manhã. Os Confrades fizeram uma leitura atenta, ignorando apenas os anúncios e os obituários. Agora estavam à espera. Não escreveriam mais cartas; mais nenhuma daria entrada em Trumble, porque eles tinham perdido o seu mensageiro. O seu pequeno golpe estava suspenso até receberem notícias de Mr. Lake.

Wilson Argrow chegou a Trumble numa carrinha verde igual a tantas outras, algemado e acompanhado por dois oficiais de polícia que lhe agarravam os cotovelos. Ele e a sua escolta voaram de Miami para Jacksonville, a expensas dos contribuintes, evidentemente.

De acordo com os seus documentos, cumprira quatro meses de uma sentença de sessenta por fraude bancária. Pedira transferência por motivos que não eram claros, mas com os quais ninguém se preocupou em Trumble. Era apenas mais um prisioneiro de baixa segurança no sistema federal. Andavam sempre de um lado para o outro.

Tinha trinta e nove anos, divorciado, frequentara a universidade e, para efeitos de registo prisional, residia em Coral Gables, Florida. O seu verdadeiro nome era Kenny Sands, um veterano com onze anos de CIA, e apesar de nunca ter visto o interior de uma prisão tivera missões muito mais duras do que Trumble. Ficaria ali um ou dois meses e depois pediria uma nova transferência.

Argrow manteve a fachada impassível de um velho prisioneiro quando foi citado, mas sentiu uma volta no estômago. Tinham-lhe garantido que a violência não era tolerada em Trumble e que poderia tomar conta de si próprio com toda a certeza. Mas uma prisão era uma prisão. Durante uma hora, ouviu as instruções de um director-adjunto, e depois levaram-no a dar uma volta rápida pelos terrenos da prisão. Começou a descontrair-se quando viu Trumble sozinho. Os guardas não andavam armados e a maioria dos reclusos pareceram-lhe inofensivos.

O seu companheiro de cela era um velho de barbas grisalhas, com um percurso criminal que conhecera muitas prisões e que adorava Trumble. Confidenciou a Argrow que tencionava morrer ali. O homem levou Argrow a almoçar e explicou-lhe as excentricidades da ementa. Mostrou-lhe a sala de jogo, onde grupos de homens corpulentos se juntavam à roda de
 mesas desmontáveis a estudar as suas cartas, todos com um cigarro colado aos lábios.

- O jogo a dinheiro é ilegal - disse o companheiro de cela. Foram até à zona de pesos e halteres ao ar livre, onde os mais jovens transpiravam ao sol, afinando o bronzeado da pele enquanto desenvolviam os músculos. O velho apontou para a pista ao longe e disse:

- És obrigado a adorar o sistema federal.

Mostrou-lhe a biblioteca, um local que não frequentava, e apontou para um canto, dizendo:

- Aqui é a secção de Direito.

- Quem é que se serve dela? - perguntou Argrow.

- Em geral, vêm aqui alguns advogados. Neste momento, também temos alguns juizes.

- Juizes?

- Três.

O velho não mostrou interesse pela biblioteca. Argrow seguiu-o até à capela, e depois deram uma nova volta pelos campos.

Argrow agradeceu-lhe o passeio. Em seguida, desculpou-se e voltou à biblioteca, que não tinha ninguém, excepto um recluso que limpava o chão. Argrow aproximou-se do canto e abriu a porta que dava acesso à secção de Direito.

Joe Roy Spicer interrompeu a leitura da sua revista e viu um homem que nunca vira.

- Procura alguma coisa? - perguntou, sem fazer qualquer esforço para ser prestável.

Argrow reconheceu o rosto que vira no dossier. Um ex-juiz de paz apanhado em flagrante a ser subornado. Mas que porca de vida!

- Sou novo aqui - disse, forçando um sorriso. - Acabei de chegar. Esta é a secção de Direito?

-É. Calculo que qualquer pessoa a possa utilizar, não é assim?

- Creio que sim - respondeu Spicer. - É advogado? - Não, sou empregado bancário.

Há uns meses, Spicer tê-lo-ia aliciado a fazer alguns trabalhos, por baixo da mesa, evidentemente. Mas não agora. Já não precisavam de explorar a arraia miúda. Argrow olhou à sua volta e não viu Beech nem Yarber. Desculpou-se e voltou para o seu quarto. O contacto estava feito.
O plano de Lake para se ver livre de quaisquer recordações de Ricky e da sua correspondência azarada dependia de mais alguém. Ele, Lake, estava demasiado assustado e era demasiado famoso para voltar a esgueirar-se de madrugada, disfarçado, no banco traseiro de um táxi, para ir a uma caixa postal dos subúrbios, acessível durante toda a noite. Os riscos eram demasiado grandes; além disso, Lake duvidava seriamente que pudesse continuar a enganar os serviços secretos. Não conseguia contar os agentes cuja missão era protegê-lo. Nem contar, nem sequer vê-los todos.

A jovem chamava-se Jayne. Juntara-se à campanha no Wisconsin e depressa conseguira penetrar no círculo mais restrito. Entrara como voluntária, mas nesse momento ganhava cinquenta e cinco mil dólares por ano como assistente pessoal de Mr. Lake, que depositava nela uma confiança total. Raramente o abandonava e já por duas vezes tinham aflorado um futuro emprego de Jayne na Casa Branca.

No momento exacto, Lake entregaria a Jayne a chave da caixa postal alugada por Mr. Al Konyers e dir-lhe-ia que fosse buscar a correspondência, mesmo à saída das instalações, e que não deixasse endereço. Dir-lhe-ia que se tratava de uma caixa postal que alugara para tentar acompanhar a venda de contratos secretos no domínio da defesa, numa época em que estava convencido de que os iranianos comprava informações que nunca chegariam a ver. Ou outra história qualquer. Ela acreditaria nele porque queria acreditar.

Se tivesse muita sorte, não haveria mais cartas de Ricky. A caixa ficaria encerrada para sempre. E se estivesse alguma carta à espera de Jayne, e se ela fosse minimamente curiosa, Lake dir-lhe-ia apenas que não fazia ideia de quem se tratava. Ela não faria mais perguntas. A obediência cega era a sua maior qualidade.

Lake esperou pelo momento certo. Esperou de mais.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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