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A Bicicleta Azul 2 / Régine Deforges
A Bicicleta Azul 2 / Régine Deforges

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Bicicleta Azul / Régine Deforges

 

Capítulo 11

- Albertine. . . Estelie. . . Léa! Os alemães estão chegando! Os alemães estão chegando!

Estelie foi a primeira a surgir da cozinha, com os dedos brancos de farinha. Depois apareceu Albertine, de caneta em punho, metida em seu roupão de lã branca, e, por fim, Léa, com o cabelo em desalinho e o casaco de raposa atirado por cima da camisola.

- O que você tem para gritar assim? - perguntou Albertine com severidade.

- Os alemães. . . - soluçou Lisa, figura digna de lástima no seu penteador cor-de-rosa. - Invadiram a Bélgica. Noticiaram no rádio.

- Deus do céu! - exclamou Estelie.

Benzeu-se, e seus dedos enfarinhados deixaram-lhe marcas brancas no rosto.

- Então não foi sonho - murmurou Léa.

Albertine levou a mão ao pescoço, mas nada disse.

Nesse instante, o telefone retiniu demoradamente. Por fim Estelie foi atender.

- Aló? Não desligue, minha senhora. para você, Léa.

A moça pegou o fone.

- Sim, sou eu. . Chame o médico. . . Não está em casa?. Muito bem, de acordo. Acalme-se. Vou já para aí.

Léa explicou às tias o que se passava: Camille sentira-se indisposta ao ouvir as notícias transmitidas pelo rádio. A criada entrara em pânico e não tinham conseguido achar o médico. Iria para a casa de Camille.

- Quer que a acompanhe? - ofereceu-se Albertine.

- Obrigada, tia, mas não é preciso. Pode arranjar-me uma xícara de café, por favor, Esteile?

Ao chegar à casa de Camille, esta já recobrara os sentidos. Tive tanto medo, srta. Léa! - choramingou a criada. - Pensei que a senhora tivesse morrido.

- Certo, Josette, cale-se. Deixou recado para o médico?

- Deixei, sim, senhorita. Ele virá quando regressar do hospital.

O quarto de Camille estava mergulhado em penumbra; apenas uma lampadazinha iluminava fracamente parte do leito. Com cuidado para não esbarrar nos móveis, Léa aproximou-se. No rosto de Camille estampava-se uma expressão de tamanho sofrimento que Léa se apiedou dela. Inclinou-se sobre a doente e, com suavidade, pousou a mão sobre sua fronte gelada. Camilie abriu as pálpebras sem reconhecê-la.

- Não fale. O médico vem aí. Eu fico com você. Durma.

A jovem sorriu levemente e fechou os olhos outra vez.

Léa permaneceu no mesmo lugar até a chegada do médico, no começo da tarde. Ele parecia preocupado ao sair do quarto.

- A senhorita é o único membro da família presente neste momento junto da sra. d'Argilat? - perguntou ele.

Léa ia esclarecê-lo quanto aos laços de parentesco que as uniam, mas não quis entrar em explicações demoradas.

- Sim - respondeu.

- Não lhe escondo a minha inquietação. A doente terá de permanecer em absoluto repouso. E conto com sua ajuda para pouparlhe contrariedades.

- Isso me parece bastante difícil hoje em dia - ironizou Léa.

- Bem sei - suspirou o médico, redigindo a receita. - Mas é necessário, na medida do possível, garantir-lhe a máxima tranqüilidade.

- Tentarei, doutor - asseverou Léa.

- Quero alguém junto dela permanentemente. Aqui tem o endereço de uma pessoa com excelentes qualificações. Telefone-lhe e diga que fui eu que a recomendei. Espero que ela esteja livre. Voltarei amanhã. Até lá, siga à risca as prescrições da receita.

A enfermeira, a sra. Lebreton, viúva da Guerra de 14, chegou pelas seis horas da tarde e assumiu o posto com uma autoridade que logo desagradou a Léa mas que igualmente a aliviou. A idéia de passar a noite em casa de Laurent era-lhe tão insuportável como as lágrimas de Camille. Após anotar o número do telefone de Léa, a sra. Lebreton afirmou-lhe que poderia partir sem se preocupar.

Reinava a maior desordem em casa das senhoras de Montpleynet. Lisa queria seguir de imediato para Montillac, enquanto a irmã achava que deveriam aguardar os acontecimentos.

Léa riu ao ver tia Lisa em traje de viagem, com o chapéu torto na cabeça e apertando contra o corpo a máscara antigás, sentada numa das malas que atulhavam a entrada.

- Não saio daqui à noite - asseverou a tia com modos agastados.

Albertine conduziu a sobrinha à saleta.

- Não creio que consigamos fazê-la ouvir a voz da razão disse ela. - Seremos obrigadas a partir. Aliás, seus pais telefonaram, pedindo que volte o mais rapidamente possível.

- Não posso. Camilie está doente e não tem ninguém que cuide dela.

- Nesse caso, nós a levaremos conosco.

- O médico proibiu-a terminantemente de viajar.

- Mas eu não posso deixá-la sozinha em Paris, nem permitir que a cabeça-de-vento da Lisa vá sem mim!

- Tudo isso é absurdo, tia. Os alemães estão longe, e o nosso exército irá impedi-los de avançar.

- Tem razão. Acho que nos preocupamos sem motivo. Vou tentar convencer Lisa.

François Tavernier ajudou-a nessa tarefa. Viera à casa das senhoras de Montpleynet saber notícias de Camille por intermédio de

Léa, pois a enfermeira recusara-se a deixá-lo entrar no quarto da doente.

Garantiu à trêmula Lisa que nada teria a recear enquanto ele próprio permanecesse em Paris. Ela concordou então em ficar ali até segunda-feira de Pentecostes, não duvidando de que o Espírito Santo inspiraria os chefes militares.

- E, além disso, minhas senhoras, não estamos sob a proteção de Santa Genoveva, padroeira de Paris? - disse François Tavernier.

- Esta tarde, havia uma enorme multidão em Saint-Etiennedu-Mont, bem como em Notre-Dame, onde o sr. Paul Raynaud, rodeado por bispos e ministros radicais, implorou a proteção da Virgem para a França. No Sacré-Cceur, os órgãos tocaram a

Marselhesa. Deus está conosco, não tenham dúvidas.

Tavernier pronunciou a última frase com uma expressão tão sisuda que Léa ter-se-ia deixado convencer dessa seriedade se uma piscadela sua não lhe desse a entender o que ele pensava de sua própria tirada.

- Tem razão - concordou Lisa, mais tranqüila. - Deus está conosco.

No dia seguinte, Camille reencontrara a calma perdida e seu rosto adquirira alguma cor. A seu pedido, Léa comprou um mapa a fim de lhe permitir - segundo disse - saber exatamente onde Laurent se achava e acompanhar o progresso das tropas francesas em território belga. Foi retirada da parede uma grande tela de Max Ernst e substituída pelo mapa. Utilizando pequenas bandeiras multi coloridas

Léa assinalou as posições do exército francês e do exército alemão.

- Laurent não pertence ao exército de Giraud, felizmente. Está nas Ardennes, não muito longe da linha Maginot - disse Camille.

- No entanto, François Tavernier afirma ser este ponto fraco da defesa francesa.

- Não é verdade. Se assim fosse, não teriam concedido tantas licenças nestes últimos tempos! - objetou Camille com veemência.

- Está na hora da injeção, sra. d'Argilat - anunciou a sra. Lebreton, entrando no quarto sem bater à porta. - A senhora deve repousar. O médico vem daqui a pouco e com certeza não ficará satisfeito vendo-a agitar-se desse modo.

Como criança apanhada em falta, Camilie corou, e balbuciou:

- Tem razão.

- Bem, vou ver se minha tia Lisa fez mais alguma das suas. Anda de tal modo atarantada que é capaz de tudo - observou Léa, erguendo-se.

- Quando penso que é por minha causa que vocês não podem ir...

- Não creia nisso. Não tenho o mínimo desejo de ir-me embora nesta altura. É muito mais divertido estar aqui do que em Langon ou mesmo em Bordeaux.

- Divertido. . . divertido. . . - proferiu a enfermeira entre dentes.

Léa e Camilie dissimularam um princípio de gargalhada. Amanhã, não se esqueça de me trazer os jornais - recomendou Camille.

- Amanhã não haverá jornais. É Pentecostes - recordou Léa, ajeitando o chapéu.

- Ah, é verdade! Rezarei para que esses boches nojentos sejam expulsos. Não chegue muito tarde.

- Está bem. Então, até amanhã. E descanse.

Ao atravessar a Rue de Grenelie, Léa, distraída com seus pensamentos, resvalou num transeunte. Desculpou-se, reconhecendo de imediato o indivíduo que a aconselhara a adquirir a obra de Céline.

O homem também a reconheceu e tirou o chapéu, cumprimentando-a.

- A sua amiga gostou do livro? - inquiriu.

- Não sei. Mas tenho a impressão de que o senhor zombou de mim ao recomendá-lo.

- Acha que sim?

- Acho. Mas não tem importância.

- De fato, não tem. Perdoe-me por ainda não ter me apresentado. Raphaél Mahl.

- Eu sei.

O homem fitou-a com espanto, aliado a uma certa inquietação.

- Será que temos amigos comuns?

- Não creio. Bem. . tenho de ir andando. Até depois, sr.

Mahl.

- Não vá embora assim. Gostaria de voltar a vê-la. Como se chama?

- Léa Delmas - respondeu a moça, sem saber verdadeiramente por que o fazia.

- Por volta da uma hora, estou todos os dias na esplanada do Deux-Magots. Terei imenso prazer em oferecer-lhe uma bebida.

Léa despediu-se com uma inclinação de cabeça e afastou-se sem responder.

Reinava a maior calma na Rue de l'Université - a casa achava- se vazia. Inquieta, Léa pensou se a fúria de partir não teria assaltado Lisa novamente, e se ela não teria conseguido arrastar Albertine e Estelie com seu terror. Mas não teve de se interrogar durante muito tempo, pois as tias apareceram, seguidas da criada.

- Se visse toda aquela gente, aquele fervor! Deus não pode nos abandonar! exclamou Lisa, sem fôlego, desembaraçando-se do ridículo chapéu cor-de-rosa, enfeitado com um grande ramo de violetas.

- Foi comovente - interveio Albertine com calma, despindo o casaco do conjunto cinzento.

- Tenho certeza de que, com todas estas preces e procissões, os boches não têm a mínima chance - assegurou Esteile, encaminhando-se para a cozinha.

- De onde estão vindo? quis saber Léa.

- Estivemos em Notre-Dame. Os parisienses foram convidados para se reunir ali para orar - esclareceu Lisa, arrumando o cabelo diante de um dos espelhos venezianos da entrada.

Léa entrou na saleta, onde imperava um enorme aparelho de rádio tinindo de novo.

- Uma aquisição de sua tia Lisa - esclareceu Albertine, em resposta ao olhar da sobrinha.

- O outro quebrou?

- Não. Mas Lisa faz questão de ter um no quarto, perto da cama e sempre ligado. Quer estar a par das notícias o tempo todo, de dia e de noite. Ouve até a emissora londrina.

Léa girou um dos botões do aparelho. Após alguns instantes de silêncio, seguidos de alguns estalidos, ouviu-se a voz do locutor:

- ". . . Depois de amanhã, chegarão à Gare du Nord os priineiros comboios de refugiados belgas e holandeses. Que todas as pessoas que desejam manifestar-lhes simpatia venham acolher esses infelizes e entregar donativos à Cruz Vermelha francesa"- Nós iremos - decidiu Albertine em tom firme. - Telefone ao motorista, Léa, e diga-lhe para estar aqui com o automóvel amanhã de manhã. Eu e Estelie vamos ver como estamos de mantimentos e de roupa.

Ao chegar à casa de Camilie, Léa encontrou-a desfeita em lágrimas e ajoelhada em frente do aparelho de rádio, apesar das súplicas de Sarah Muistein, que viera visitá-la, e das censuras da sra. Lebreton.

- Deixem-me e calem-se! Quero ouvir as notícias! - gritou Camilie, à beira de uma crise de nervos. - Ah, é você, Léa? Diga- lhes que me deixem em paz.

- Volto daqui a pouco - disse Sarah, retirando-se.

Após sua saída, Léa, com decisão, expulsou a enfermeira do quarto.

- Escute! Estão transmitindo o comunicado do quartel-general francês.

- "De Namur a Mézières, o inimigo conseguiu ocupar duas cabeceiras de ponte, uma delas em Houx, ao norte de Dinant, a outra em Monthermé. Uma terceira, mais importante, localiza-se no bosque de Marfée, próximo de Sedan..

- Veja no mapa onde fica o bosque de Marfée - pediu Camille. - É muito perto do local onde Laurent está.

Léa obedeceu e foi postar-se em frente ao mapa. Aproximou o indicador de Sedan e depois de Moiry, onde Laurent d'Argilat se encontrava.

- Não é assim tão perto. Fica a uns vinte quilômetros.

- Uns vinte quilômetros! Que é isso para um exército que dispõe de carros de assalto e de aviões, capazes de lançar bombas por toda parte? Já não se lembra do que aconteceu na Polônia, quando a cavalaria enfrentou os tanques alemães? Massacrados, foram todos massacrados! Não quero que isso aconteça a Laurent!

gritou Camille, atirando-se ao tapete, com o corpo sacudido pelos soluços.

Léa nada disse. Ficou olhando o mapa. A bandeirinha vermelha que assinalava o local onde estava sediado o 18 Regimento de

Caçadores de Cavalaria pareceu-lhe uma mancha de sangue sobre o verde que indicava a floresta.

Camille tinha razão: vinte, trinta ou mesmo cinqüenta quilômetros representavam uma distância insignificante para os tanques.

Por onde passariam para ir matar o homem que ambas amavam? Seria por Mouzon? Por Carignan? Para ela, existia apenas a pequena aldeia de Moiry, subitamente transformada no centro do universo, na área de maior importância daquela guerra. Tinha de saber ao certo o que acontecia ali. Quem podia informá-la? François Tavernier? Ele devia estar a par dos acontecimentos.

- Sabe onde poderemos encontrar François Tavernier? - perguntou Léa.

Camilie ergueu para ela o rosto molhado de lágrimas.

- François Tavernier?. . . Boa idéia! Esteve aqui ontem e disse uma porção de coisas tranqüilizadoras. Está no serviço de informações, no Hotel Continental. Escreveu na minha agenda o número do telefone. Está ao lado da jarra de flores.

A agenda se abriu de imediato na página escolhida, inteiramente ocupada por um nome e por um número de telefone, redigidos em caligrafia grande e elegante. Léa marcou o número. Atendeu-a uma voz de mulher, que se identificou; depois surgiu na linha uma outra, desta vez masculina.

- É o sr. Tavernier? - perguntou Léa.

- Não. Aqui fala Loriot. Conhecemo-nos há dias. Desculpe-me, não me recordo.

- Na boate russa - esclareceu Loriot.

- Ah, sim! Já me lembrei.

- Em que lhe posso ser útil, srta. Delmas? O sr. Tavernier não está.

- Quando volta?

- Não sei. Partiu para a frente de combate a pedido do ministro.

- Para onde?

- Lamento muito, mas não posso informar. Segredo militar. Assim que o sr. Tavernier regressar, porém, comunico-lhe o seu telefonema. Pode ficar sossegada.

- Muito obrigada. Até logo.

Léa encarou Camille com um gesto de impotência. "Como ela o ama!", pensou, ao ver o rosto da mulher recurvada no chão.

Levante-se - ordenou com aspereza.

Um pouco de cor apareceu nas faces pálidas.

- Está bem. Desculpeme. Estou me portando de maneira ridícula. Laurent teria vergonha de mim, se me visse agora.

Ergueu-se a custo, apoiando-se na cadeira. Oscilou ao pôr-se em pé, conseguiu restabelecer o equilíbrio e, sob o olhar frio e desdenhoso de Léa, encaminhou-se para a cama, onde se esforçou para sentar-se com dignidade, cerrando os dentes como para abafar um grito de dor. Depois, as mãos de dedos violáceos ergueram-se à altura do coração, enquanto a boca se abria num apelo mudo. O médico entrou no quarto nesse preciso instante.

- Santo Deus! - exclamou o recém-chegado.

Precipitou-se para a doente e deitou-a na cama com suavidade.

- Chame a enfermeira - ordenou a Léa, ao mesmo tempo que abria a maleta.

Quando Léa regressou, seguida da sra. Lebreton, o médico acabara de aplicar uma injeção no braço de Camilie.

- Recomendei-lhe que não saísse do lado da doente, sra. Lebreton. A sra. d'Argilat quase morreu e esta aqui olhava para ela sem fazer nada - disse o médico, designando Léa.

A jovem preparava-se para responder, encolerizada, quando Josetie entrou no quarto, informando que a sra. Muistein voltara e desejava saber notícias da doente.

- Vou recebê-la - decidiu.

Quando Léa entrou na sala, Sarah Muistein encontrava-se reclinada no divã. Ergueu o peito, mas, reconhecendo a jovem, reassumiu a postura lânguida.

- Desculpe não me levantar, Léa, mas estou esgotada. Como vai Camille?

- Mal.

- Que podemos fazer?

- Nada - interveio o médico, aparecendo no salão. - A doente tem necessidade de repouso absoluto. Srra. Delmas, poderia encontrar o marido dela?

Mas, doutor, ele está na frente de combate!

- É verdade, é verdade. . . A guerra nos faz perder a cabeça. Não consigo deixar de pensar nos horrores da última e em todas aquelas mortes inúteis, agora que tudo isso está prestes a recomeçar.

- Fez uma pausa e depois prosseguiu, limpando os óculos embaçados no lenço amarrotado: - A doente agora está dormindo e a crise passou. É absolutamente necessário que ela tome consciência de que porá em risco a vida do filho se não se dominar.

Proibi-a de ler jornais e de escutar noticiários. Mas ponho em dúvida a sua obediência total a esta ordem. Deixei instruções à sra.

Lebreton. Agora tenho de ir embora, mas voltarei amanhã. Até logo, minhas senhoras.

As duas mulheres ficaram em silêncio por instantes.

- Pobre Camille! - suspirou Léa. - Escolheu uma péssima hora para trazer ao mundo uma criança.

- Acha mesmo? - disse Sarah, erguendo-se. - O que vai fazer hoje à noite? Quer jantar comigo?

- Com muito prazer. Mas tenho de ir para casa mudar de roupa e avisar minhas tias.

- Está muito bem vestida assim - objetou Sarah. - E pode tomar um banho em minha casa. Telefone a suas tias e diga-lhes que estará de volta antes das dez horas.

Léa concordou. Telefonou às tias, mas apenas Esteile se encontrava em casa; as senhoras de Montpleynet ainda não tinham voltado. A criada insistiu em que ela não deixasse de chegar na hora combinada.

A pequena sala do L'Ami Louis estava lotada, O dono, "já que elas eram amigas do sr. François Tavernier", mandou colocar uma mesa redonda de tampo de mármore em frente da entrada. Retirou a luz da porta. Um criado pendurou nela o cartaz onde se lia "lotado" e correu a cortina de veludo suja, isolando o restaurante dos olhares dos transeuntes.

Léa olhou em volta com curiosidade. Era a primeira vez que freqüentava esse gênero de estabelecimento, muito diferente do que ela imaginava ser um restaurante elegante.

- Vou levá-la a um bar da moda - prometera Sarah, momentos antes.

As paredes amareladas projetavam sobre os clientes uma luz que lhes conferia um tom bilioso. A serragem espalhada sobre os ladrilhos formava uma pasta úmida e imunda sob os pés. Os assentos de madeira eram duros e desconfortáveis, o ruído e o fumo, desagradáveis.

O criado pôs a mesa com desembaraço. A alvura impecável da toalha, o brilho dos copos e dos metais contribuíram para tranqüilizar Léa um pouco. Virou-se para a companheira para dizer alguma coisa:

- Vem aqui muitas vezes?

- Bastante. Como lhe disse, foi François Tavernier quem me indicou este restaurante. O patê de fígado, a carne, as aves e o vinho são excelentes. O ambiente não é muito atraente, mas diante da qualidade da cozinha e da gentileza do pessoal a gente logo esquece esse detalhe.

- Que vinho deseja, minha senhora? - perguntou o garçom.

- Como se chama aquele que o sr. Tavernier acha muito bom?

- É de fato muito bom, minha senhora, Château la Lagune.

- Muito bem. Vamos beber à sua saúde.

Como conhecedora e perita em vinhos, Léa saboreou a bebida.

Quando chegou a Paris, Sarah instalou-se no Hotel Lutécia para não se preocupar - segundo dizia - com problemas domésticos.

Ao entrar no quarto, duas horas antes, acompanhada de Léa, desembaraçara dos sapatos atirando-os para o extremo oposto da sala, e lançara o casaco de tecido leve sobre uma das camas gêmeas, cobertas por colchas de algodão florido.

- Fique à vontade. Vou abrir a água do banho.

Depois Sarah saiu do banheiro, envergando um penhoar azul.

- A banheira enche muito depressa - avisou. - Os sais estão no armário. Quer beber alguma coisa? Vou encomendar um

Alexander. O barman o prepara muito bem.

- De acordo quanto ao Alexander - disse Léa, um tanto intimidada pela naturalidade daquela mulher que mal conhecia.

Quinze minutos depois, Léa saiu do banheiro, com as faces rosadas, os cabelos presos no alto e envolta num penteador malva.

- Como você é jovem - exclamou Sarah. - Nunca vi tez como a sua nem uns olhos e boca tão bonitos! Não é à toa que se apaixonam por você.

Léa corou sob a avalancha de elogios, sentindo-se pouco à vontade.

- Tome a sua bebida. Reservei mesa num restaurante de que gosto muito. Espero que lhe agrade.

Enquanto falava, Sarah revolvia o interior de várias malas abertas no meio do quarto, retirando delas algumas peças de roupa íntima azul-clara e meias cinzenta-escuras. De outra mala, tirou um vestido de lã um pouco amarrotado.

- Não demoro muito - comunicou, desaparecendo novamente no banheiro.

"Mas que desordem!", pensou Léa. "E mamãe me acha desordeira!" Que diria se a filha fosse como Sarah? Com espanto, apercebeu-se de que havia diversos dias não pensava na mãe. Prometeu a si mesma escrever-lhe uma longa carta.

- Ligue o rádio! - gritou Sarah do outro lado da parede.

Léa olhou em volta, removeu vestidos, casacos e jornais, sem encontrar qualquer aparelho que se assemelhasse a um rádio. Sarah reapareceu de combinação curta, secando os cabelos com uma toalha.

- Por que não ligou o rádio? Está na hora do noticiário.

- Não consegui encontrar o aparelho.

- Ah, é verdade! Tinha me esquecido! Vieram buscá-lo para consertar. Mas. . . ainda não está vestida?

Com um gesto, Léa indicou ter deixado a roupa no banheiro.

- Não sei onde estou com a cabeça esta noite! Na verdade, estou muito cansada.

De volta ao quarto, Léa foi encontrar Sarah meio escondida debaixo de uma das camas à procura dos sapatos, que foram achados, por fim, dentro do cesto dos papéis. .

O garçom trouxe um recipiente com patê de fígado e grossas fatias de presunto de Bayonne, ao mesmo tempo que outro servia o vinho.

- A seguir, há costeletas de vaca, estufado à provençal, quarto de carneiro e pombos com ervilhas.

- Escolha os pombos, são excelentes - aconselhou Sarah Mulstein.

Sorrindo, Léa concordou com um aceno de cabeça.

- E agora bebamos à saúde do nosso amigo François - disse Sarah, erguendo o copo.

- Eis uma proposta que vai direto ao coração! - proferiu atrás delas a voz alegre de Tavernier. Parecia mais jovem com os cabelos ligeiramente desalinhados, camisa de gola rulê e paletó de tweed.

- François! - exclamou Sarah. - Que bela surpresa! Julgava-o sepultado sob as bombas alemãs.

- Por pouco não aconteceu isso - respondeu ele, inclinando- se para beijar a mão estendida, em que cintilava um magnífico diamante. - Boa noite, Léa. Sua tia já se refez do susto?

- Boa noite. Por enquanto vai bem.

- Disseram-me que tinha telefonado. Nada de grave, espero.

- Camille queria falar com o senhor. Mas pensei que estivesse na frente de combate.

- De fato, estive. Regressei ao fim da tarde. Como meu aspecto indica, nem sequer tive tempo para mudar de roupa. Estou desculpado? Embora a mesa seja pequena, posso juntar-me a vocês?

- Nem é preciso perguntar. Nós lhe arranjamos espaço - respondeu Sarah.

- Traga uma cadeira - pediu Tavernier ao garçom.

- Não vai ficar bem instalado, sr. Tavernier - objetou ele.

- Não tem importância.

- O que deseja comer, sr. Tavernier?

- Uma costeleta de vaca bem malpassada.

O garçom dos vinhos apareceu de novo, enchendo os copos. Em silêncio, com ar sonhador, François Tavernier bebeu o seu. Léa morria de vontade de lhe perguntar o que vira, mas não se atrevia.

- Não nos atormente! - exclamou Sarah. - Que acontece por lá?

Um lampejo de contrariedade perpassou pelos olhos sombrios de Tavernier. Fitou uma após outra aquelas duas mulheres tão diferentes entre si e tão diversamente belas - a morena de grandes olhos negros, pele clara, embaciada, nariz grande e arqueado, boca larga desvendando duas fileiras de dentes admiráveis; e a selvagem de cabeleira indisciplinada e reflexos flamejantes, cabeça obstinada, boca sensual e estranho olhar dentro do qual os homens gostariam de perder-se. E aquele movimento de cabeça quando prestava atenção a alguma coisa!.

- Vamos mudar de assunto - disse Tavernier. - Não quero perturbar-lhes os pensamentos agradáveis. Conversaremos sobre o caso amanhã.

- Amanhã, não! Agora! - replicou Sarah Mulstein impetuosamente, apertando o braço do amigo. - Tenho o direito de saber

- prosseguiu ela em tom mais surdo. - Se os názis ganharem a guerra, nunca mais verei meu pai nem meu marido.

- Eu sei, Sarah, eu sei.

- Não, não sabe. Não sabe do que eles são capazes.

- Acalme-se, Sarah. Sei tão bem quanto você. Embora os acontecimentos tenham se precipitado, não perdi os meus contatos na

Alemanha, e as notícias que me chegam não são más. No entanto.

- No entanto?

- . . . tenho dúvidas se ficarão mais seguros na França.

- Como pode ter dúvidas? A França é um país livre, uma terra acolhedora, a pátria da Declaração dos Direitos do Homem. A

França nunca prenderá judeus sob o simples pretexto de serem judeus.

- Admiro sua confiança na justiça do meu país. Faço votos para que esteja certa.

- Mas nós ganharemos a guerra - interveio Léa, silenciosa até esse momento.

François Tavernier não teve que responder-lhe, pois chegaram os pratos encomendados.

Os três eram gulosos e começaram a saborear a comida em silêncio. Depois, pouco a pouco, graças ao vinho e à qualidade dos alimentos, fizeram o possível para conversar sobre tudo e sobre nada. O jantar terminou em meio a risos e com um início de embriaguez por parte das duas mulheres, sobretudo de Léa, que bebera muito.

- Oh, já são dez e meia! - exclamou, erguendo-se. - Minhas tias devem estar preocupadas.

- Venha. Vou acompanhá-la - propôs François Tavernier. Depois, dirigindo-se ao garçom e deixando a gorjeta sobre a mesa, disse:

- Ponha a despesa na minha conta.

Quando Léa chegou em casa, as tias estavam cansadas demais para lhe fazerem qualquer observação quanto ao atraso. Distraídas, cumprimentaram Sarah Muistein e François Tavernier e pensaram apenas no Instante de irem para a cama.

 - De-me notícias de Camille - recomendou Sarah, despedino-se de Lea com um beijo em cada face.

Amanhã - disse Tavernier, afastando-se para dei

 

Capítulo 12

Tudo correu depressa demais para Léa depois desse dia 14 de maio, data em que François Tavernier lhe comunicou a derrota da França.

Ela e Camilie acompanharam no mapa a impetuosa invasão alemã, sem conseguirem acreditar que isso fosse possível. Receavam por Laurent, de quem a mulher não recebia notícias desde a ofensiva de 10 de maio e que se encontrava diante das divisões blíndadas de Guderian. Apesar da censura nos jornais e no rádio, adivinhavam, de coração apertado, que milhares de soldados franceses iam se deixando matar a troco de nada nos caminhos do Meuse e do Some. Circulavam as informações mais alarmantes, transmitidas pelas hordas dos fugitivos: pilhagem de cidades e de aldeias, bombardeios contínuos, derrota do Exército comandado por Corap e depois por Giraud, que procurava em vão reunír os destroços, colapso do 2 Exército, o de

Laurent, chefiado pelo general Huntzinger, presença de espiões fervilhando por toda parte, crianças perdidas, velhos e doentes ao abandono...

François Tavernier insistira em que Léa e Sarah deixassem Paris. Sarah recusara-se, dizendo que, se o pai e o marido conseguissem fugir da Alemanha, seria ali que teriam possibilidade de encontrá-la. Quanto a Léa, não podia deixar a cidade, pois o estado de saúde de Camille, após ligeiras melhoras, agravara-se nos últimos tempos.

Lisa conseguira sua vitória. Por momentos tranqüilizada pela destituição do general Gamelin e, sobretudo, pela nomeação do marechal Pétain para vice-presidente do conselho, o pânico sentido fora mais forte depois passados dois dias, as irmãs Montpleynet, na companhia de Estelle, abandonavam a casa da Rue de l'Universi té confiando Léa a Sarah Mulstein e a François Tavernier.

Até o último instante, tiveram esperança de que a sobrinha as acompanhasse receosas de enfrentar as reprovações de Isabeile e de Pierre Deirnas.

A contragosto, ele autorizara a filha a permanecer em Paris, em casa de Camilie, sobretudo para sossegar o seu velho amigo D'Argilat, o qual, doente, se desesperava ao saber que a nora estava sozinha.

Finalmente, no dia 30 de maio, chegaram duas cartas de Laurent. Triunfante, Josette levou-as ao salão onde Camille e Léa estavam sentadas, perto da janela.

- Minha senhora, minha senhora, cartas do senhor! - gritou a criada.

As duas mulheres ergueram-se de um salto, com o coração palpitando, incapazes de dizer qualquer coisa. Josette ficou olhando-as de braço estendido, segurando na mão duas volumosas mensagens cobertas de carimbos militares, espantada pelo fato de a boa nova não ter sido mais bem recebida. Camilie tornou a sentar-se devagar.

- Não tenho coragem. Quer abri-las, Léa?

Sem responder, mais as tomou do que as recebeu nas mãos. Rasgou os envelopes, servindo-se do indicador que tremia, e, desajeitadamente, desdobrou as folhas de papel de má qualidade, cobertas por uma caligrafia densa. Uma das cartas vinha datada de 17 de maio, a outra de 28.

- Léa, por favor - insistiu Camilie em voz sumida.

- "Minha querida mulher - começou Léa.

A frase oscilou diante de seus olhos. "Minha querida mulher - palavras que não lhe eram dirigidas. Para ocultar a perturbação, aproximouse da janela.

- Continue.

À custa de um esforço que Camille não podia adivinhar, Léa recomeçou a leitura em tom monocórdio:

"Minha querida mulher.

Como pensei em você no decurso destes dias, sozinha, no estado em que se encontra e sem receber notícias! Em Paris, é provável que esteja mais bem informada daquilo que acontece aqui. É tudo tão incrível! Procuro em vão entender o que se passou desde que os alemães invadiram a Bélgica e Luxemburgo. Deixei Paris para cumprir o meu dever. Mas, em vez disso, foi necessária a retirada; de soldados transformamo-nos em fugitivos, ao lado de colunas de refugiados. Por toda parte se vêem veículos transbordando de gente, motocicletas, bicicletas, pilhas de malas e de sacos. Homens e mulheres em prantos, crianças gritando, arrastando-se a pé pelas estradas, vagueando sob um calor terrível.

Os bombardeios inimigos multiplicam-se a cada dia. São saqueadas aldeias desertas. Só os animais ficaram: porcos, bezerros errantes, potros amedrontados e vacas mugindo, que nos seguem espera da ordenha.

Apenas o pensamento de sabê-la em segurança me anima, minha querida; não gostaria que presenciasse o espetáculo dos refugiados nas valetas e pelos campos como se fossem cadáveres, gritando de terror às rajadas dos aviões.

Odeio a guerra, como você sabe. Mas sinto vergonha da debandada das nossas tropas, da derrota dos nossos chefes militares.

Pensei em você todos estes dias, pensei no nosso filho, no nosso pai, em Roches-Bianches, em tudo aquilo que representa a minha razão de existir. Pensei também na honra. Por vezes me desespero por não estar na linha de frente, por não repelir o inimigo de armas na mão. Senti náuseas e vontade de chorar vendo pirâmides de cavalos feridos, empalados, esmagados. Dormi nas matas todos estes dias ou em celeiros, comendo aquilo que conseguia encontrar. Estou esgotado, sinto-me enganado e humilhado. Mas que posso fazer?"

Léa entregou a Camilie as folhas da primeira carta, deixando- lhe o cuidado de inteirar-se por si mesma das palavras ternas que a rematavam e que tanto mal lhe faziam.

Leia a outra, querida. Ambas amamos Laurent, e quero que em conjunto saibamos o que faz, o que lhe acontece.

Léa sobressaltou-se, perguntando a si própria o que quereria Camilie significar com aquele "ambas amamos Laurent". Teria adivinhado a natureza dos sentimentos que ela dedicava a Laurent? Ou seria apenas tola e confiante?

A segunda carta tinha a data do dia 28 de maio de 1940:

"Minha doce amiga:

Depois da carta anterior, já percorri uma grande distância; estou apenas a cinqüenta quilômetros de Paris. E enche-me de raiva o fato de sabê-la tão próxima sem poder vê-la. Suas cartas chegaram todas a' mesmo tempo. Sinto-me feliz e tranqüilizado por

Léa estar com você. Comunique-lhe a minha gratidão e o meu afeto.

Recebi também notícias de meu pai, não muito boas, infelizmente. Receio que a guerra que ele considerava tão funesta para a

França e os reveses que experimentamos acabem por agravar-lhe o estado de saúde.

O moral de todos nós é bastante sombrio, e a leitura dos jornais

- que há muito não recebíamos - não veio contribuir para melhorá-lo; bombardeios na Holanda e na Bélgica, ocupação de

Amiens, de Abbeville, de Bolonha e de Calais, as divisões aliadas praticamente cercadas em Flandres, a destituição de Gamelin e sua substituição pelo jovem Weygand. . . Talvez a esperança e a honra da França se salvem com a nomeação do marechal Pétain para a vice-presidência do conselho.

Estou enviando o meu diário de todo este período de guerra. Leia-o, se tiver coragem. Através dele, talvez consiga ver as coisas com maior clareza. Perdoe-me por aborrecê-la com a narrativa dos problemas de reabastecimento e das correrias através das matas. São peripécias bem insignificantes, mas fazem parte do meu cotidiano desde o dia 10 de maio. Tal como lhe disse, estou satisfeito por não ser obrigado a combater, não por covardia, pode crer, mas sim por horror ao derramamento de sangue.

Contudo, as vitórias alemãs, a nossa manifesta inferioridade - pelo menos no meu setor - dão-me um permanente sentimento de dor e de vergonha.

Tenho de deixá-la, Camilie, pois o coronel mandou me chamar. Cuide-se. Amo-a".

Léa entregou a Camilie as folhas do diário referido por Laurent. E Camilie deixou-as no colo, tentando concentrar a atenção nas primeiras páginas e repetindo a si mesma:

- Ele está vivo e bem. . . ele está vivo e bem.

- Claro que está vivo, senão não teria escrito! - disse Léa fora de si.

Sem responder, Camilie percorreu as páginas do diário, redigido entre os dias 10  e 27 de maio de 1940. Com uma expressão de assombro estampada no rosto, leu o relato do cotidiano da derrota, proferindo, de vez em quando, algumas frases em voz alta:

"La Ferté-sur-Chiers, Beaufort. . . Volto a partir, procurando saber notícias. . . O coronel ausentou-se, e muita gente supõe que tenha desaparecido. . . Encontrar víveres, encontrar forragem. . . Um dos meus homens acaba de morrer devido à explosão de uma mina... Um brigadeiro foi assassinado por um soldado bêbado... A minha obsessão - e também a de Wiazemsky - é organizar o reabastecimento. Conseguimos ordenhar algumas vacas errantes, dando leite às crianças. . . Os aviões voltaram à noite, fazendo-se acompanhar dos silvos terríveis, seguidos de explosões. Deitados de bruços no chão, tivemos a primeira experiência das bombas assobiadoras... Junto à valeta, um ajudante chorando sozinho... Dormimos no celeiro. .

- Pobre Laurent! - murmurou Camille. - Ele que só consegue dormir na cama!

Léa lançou-lhe um olhar de raiva.

- Ouça isto, Léa -. disse Camille, encantada. - No dia 24 de maio, Laurent fez uma pausa em Châlon:

A inesquecível sensação de ver outra vez uma grande cidade, lojas e cafés, de estar entre civis. Um bom jantar, aguardente de boa qualidade e charutos. A guerra tem coisas boas, por vezes. O prodigioso deleite de dormir entre lençóis lavados após um banho demorado

Léa, no auge da raiva, viu Camilie terminar a leitura.

- Tenho inveja dele - comentou a primeira. - Não é forçado a ficar preso.

- Como pode dizer tal coisa! - gritou Camille. - Laurent está arriscando a vida, tal como os seus camaradas.

- Talvez. Mas não tem tempo para se aborrecer.

Camilie fitou a amiga com tristeza e lamentou:

- Você se aborrece tanto assim ao meu lado? Bem sei que não é nada divertido cuidar de doentes. Se não fosse eu, você teria voltado para junto de seus pais. Oh, como você deve me detestar

- terminou Camilie, soluçando.

- Pare de chorar! - exclamou Léa. - Vai ficar doente, e a sra. Lebreton dirá outra vez que foi por minha causa.

- Desculpe-me. Você tem razão. Por que não sai mais vezes? Sarah Mulstein e François Tavernier a convidam com freqüência.

Por que recusa?

- Basta-me vê-los aqui todas as tardes.

- Mas eles não vêm todas as tardes!

- É possível. Mas as vezes que o fazem são mais do que suficientes.

Camilie baixou a cabeça, acabrunhada, assegurando:

- Gosto muito deles. François é tão bom, tão alegre.

- Pergunto a mim mesma o que você vê nesse inútil...

- Sabe bem que isso não é verdade, Léa - interrompeu-a Camille, - François exerce aqui funções de grande responsabilidade, e o governo o consulta freqüentemente.

- É o que ele diz... Você é muito ingênua, minha querida amiga. Quanto a Sarah, tenho também as minhas dúvidas. Não me espantaria que fosse espiã.

- Que exagero! Você lê muitos romancecos e vê muitas fitas de má qualidade.

- Mato o tempo como me é possível.

- Não vamos discutir, Léa. É preferível alegrarmo-nos por saber que Laurent está bem de saúde.

- Neste instante, é a sua saúde que conta. Acha que o médico vai autorizá-la a viajar?

- Não sei - suspirou. - Gostaria tanto de estar em RochesBianches, junto do pai de Laurent! Tenho tanto receio pelo meu filho!

Bateram à porta e Josette apareceu.

- A sra. Muistein e o sr. Tavernier chegaram - anunciou a criada.

- Mande-os entrar - ordenou Camille, cujo rosto pálido enrubesceu de prazer.

- Outra vez eles! - exclamou Léa de mau humor.

Sarah Muistein, empunhando um ramo de rosas, atravessou a sala para beijar Camilie. Sorriu ao avistar as folhas das cartas de

Laurent, espalhadas sobre as cobertas de cetim creme.

- Vejo que recebeu notícias do nosso soldado. Devem ser boas a avaliar pelo seu aspecto, bem melhor hoje, e pelos seus olhos, quase alegres.

- Ah, sim, sinto-me tão aliviada! Como são bonitas as rosas! É tão boa para mim, Sarah! Obrigada.

- Bom dia, Léa. Mas que ar sombrio! Que lhe aconteceu?

- Nada. Estou aborrecida, só isso - replicou Léa, deixando- se beijar pela visitante.

- Mostre-me essa carta - disse Tavernier, inclinando-se para beijar a mão que Camilie lhe estendia. -. Oh, é verdade. Você está • quase tão rosada como as suas flores.

- Acho que exagera um pouco - objetou a jovem, rindo.

- E você, Sarah, soube alguma coisa de seu marido?

Antes de responder, Sarah Mulstein tirou o elegante chapéu de feltro preto, atravessado por uma longa pena vermelha. Instalouse num sofá baixo, perto da cama, puxando a saia plissada num gesto maquinal.

- Sim, recebi notícias ontem.

- Estou muito feliz por você interveio Camilie.

- . . . enviaram-no para um campo de concentração na Polônia - rematou Sarah.

- Oh, não! exclamou Camilie.

Léa, que se mantivera à parte, aproximou-se de François Tavernier e disse em tom de desprezo:

- Pensei que estivesse providenciando para tirá-lo da Alemanha.

- A tentativa não foi bem sucedida.

- François fez todo o possível - interveio Sarah com voz cansada.

- Como pode estar certa disso? - perguntou Léa com veemência.

- Léa!...

Deixe, Camille. Como bem sabe, a sua bonita amiga toma- me por um canalha e espião. Mas não importa - disse Tavernier com aparente desenvoltura.

- Deixe que eu responda a Léa, François -.- interveio Sarah.

- Meu pai telefonou-me de Lyon e inteirei-me das circunstâncias da detenção de meu marido por seu intermédio. Os názis vingaram- se nele por não conseguirem reter um artista mundialmente conhecido. E, sem a interferência de François, meu marido não seria o único a ser deportado. . . Meu pai chega amanhã a Paris.

Caiu sobre o grupo um silêncio penoso. Foi Léa a primeira a quebrá-lo:

- Desculpe-me, François. E você também, Sarah.

- Como já observei, Léa, você é ainda muito nova. Tem muita pressa em falar e fala sem saber o que diz. Nos tempos de hoje terá de habituar-se a ser mais prudente. Você vê espiões por toda parte e desconfia da quinta-coluna - advertiu-a Sarah.

Léa afastou-se, escondendo seu desagrado. Depois consultou o relógio.

- Esqueci por completo que tinha um encontro. Até logo à noite, Camilie. Deixo-a em boa companhia.

François Tavernier saiu atrás dela e alcançou-a na entrada, onde a jovem colocava o chapéu em frente do espelho.

- Esse chapéu não lhe fica bem; torna-a mais velha observou. - Se não fosse a cor, ficaria perfeito em sua tia Lisa.

Léa encarou-o com raiva.

- Que sabe você de chapéus? É um chapéu de Agnès, o que existe de mais elegante.

- Não se faça de parisiense, minha amiga. Fica muito mais sedutora como uma selvagenzinha de Montillac, sobretudo quando está vermelha como neste instante.

- Não estou vermelha, e sua opinião não me interessa. Deixe- me em paz!

- Não, preciso falar com você. Vamos até seu quarto.

- Nem pense nisso!

- Deixe de ser pretensiosa. Também não lhe fica bem. Vamos, venha.

Pegando-a pelo braço, François Tavernier arrastou-a em direção a uma das portas.

- Ou me larga ou grito - protestou.

- Grite se quiser. Ah, não quer andar? Então vou carregá-la.

Juntando o gesto à palavra, Tavernier ergueu-a nos braços. Apesar da ameaça feita, Léa não gritou, tentando libertar-se, porém, e cobrindo-o de socos.

- É este aqui, não é verdade, o seu antro virginal? - disse ele, empurrando com o ombro a porta entreaberta.

- Largue-me! Quer largar-me?

- Às suas ordens, minha cara amiga - concordou Tavernier. E, num gesto displicente, atirou-a sobre a cama.

Léa caiu sobre as molas do colchão com um grunhido de raiva impotente. Depois, com o cabelo em desalinho tapando-lhe os olhos, sentou-se e encolheu o corpo, preparando o pulo. Mas

Tavernier foi mais rápido - lançou-se sobre ela, imobilizando-a pelos pulsos.

- Bruto! Canalha!

- Como já lhe disse por diversas vezes, o seu vocabulário injurioso é bastante escasso. Faz-lhe falta a leitura. Vamos, acabou a brincadeira. Tenho de conversar com você. Quer ou não escutar-me?

- Vá...

- Chega! Beijo-a se não ficar quieta.

Léa parou instantaneamente de debater-se.

- Queria então falar comigo? De que se trata? - perguntou a jovem com uma expressão séria.

- É sobre você e Camilie. Têm de partir; não estão em segurança aqui.

- Sei disso muito bem - replicou Léa, esfregando os pulsos.

- Não tenho culpa se o médico acha que ela não pode viajar.

- Falarei com ele a esse respeito. Os alemães estarão em Paris dentro de dias. Eu próprio seguirei para a frente.

- Ora! Que idéia absurda! Pensei que não gostasse de causas perdidas.

- Com efeito, não gosto. Mas trata-se de uma outra coisa.

- Talvez de honra - opinou Léa, no tom mais contundente que pôde conseguir.

Mas, perante o olhar que François Tavernier lhe lançou, encolheu-se sobre a cama, à espera de ser agredida. Como tal não sucedesse, ergueu os olhos para ele, sentindo-se corar de vergonha ao ver-lhe o rosto transtornado. Assaltou-a o súbito desejo de atirar-se a seu pescoço e pedir-lhe perdão. Talvez o tivesse feito, se, nesse preciso instante, Tavernier não desatasse a rir.

- A honra! - exclamou ele. - Talvez sim. Mas eu sou indigno de tal sentimento. Seria preciso que me chamasse Laurent d'Argilat para saber o que é isso.

- Deixe Laurent e a sua honra em paz Voltemos ao assunto da nossa eventual partida.

- Sabe guiar?

- Tirei carta em Bordeaux pouco antes de vir para cá.

- Nesse caso, vou tentar requisitar, alugar, comprar ou roubar uma ambulância ou outro tipo de veículo confortável, no qual

Camille possa fazer a viagem deitada. Levará Josette e a sra. Lebreton com você.

- O quê? Deixa-nos partir sós?

- E acha que poderá ser de outro modo? Todos os homens válidos estão na frente de combate. Além disso, você pode se desincumbir disso sozinha.

Sem responder, Léa baixou a cabeça. François Tavernier sentiuse comovido perante aquele sinal de impotência. Tomou-lhe com ambas as mãos os fartos caracóis, obrigando-a a erguer o rosto. Grandes lágrimas rolavam pelas faces da jovem, ainda desenhadas em traços infantis. Beijou-lhe suavemente os olhos e, em seguida, os lábios, que receberam, passivos, o beijo. Depois sentou-se na cama, soltou os cabelos de Léa e deitou-a a seu lado.

- Chore, minha filha, se isso a alivia - disse.

À voz grave e doce que lhe fazia lembrar a do pai, Léa começou a soluçar, aninhando-se contra o companheiro.

- Gostaria tanto de voltar para casa! Tenho medo que Camille perca a criança. . . Que diria Laurent? Por que motivo meu pai não vem me buscar? É verdade que os alemães violam todas as mulheres?

- Vai voltar, minha querida, não se preocupe. Tratarei de tudo.

- Mas você disse que ia embora - Tratarei de tudo antes disso.

François sentia-se mal consigo mesmo por se aproveitar da situação - os seus lábios tornaram-se mais imperiosos, as mãos adquiriram maior audácia. Mas isso teve por efeito acalmar Léa, que, pouco a pouco, lhe retribuiu as carícias.

O ruído de vozes na entrada arrancou-os daquele instante de prazer. Com um gesto suave, Léa afastou de si o companheiro, ergueu-se e compôs o vestido amarrotado.

- Não fique aí plantado me olhando. Limpe a boca, está toda suja de batom. E penteie o cabelo - disse Léa, indicando as escovas, colocadas em cima do toucador.

Com um sorriso, Tavernier obedeceu.

- Parecem o médico e a sra. Lebreton discutindo - observou Léa, apurando o ouvido.

Nesse instante, bateram à porta.

- É Josette, srta. Léa. O doutor quer lhe falar.

- Está bem. Diga-lhe que já vou. Que quererá ele de mim?

concluiu ela, virando-se para Tavernier.

Este abriu os braços em sinal de ignorância.

- Vou deixá-la. Tenho de me ocupar dos preparativos do encontro de amanhã aqui, em Paris, com Churchili e os seus três mais próximos colaboradores.

Que espera dessa reunião?

- Pouca coisa. Raynaud tem esperança de obter da RAF mais aviões. Mas não vai conseguir e tampouco conseguirá que as tropas francesas bloqueadas em Dunquerque sejam evacuadas simultaneamente com as britânicas.

- Nesse caso, para que o encontro?

- Para não se perder o contato, para tentarmos saber a posição exata dos nossos aliados e qual a atitude deles em caso de um armistício em separado.

- Armistício em separado?

- Fala-se nessa hipótese. Mas pense em outra coisa. O assunto não deve ser objeto de preocupação para uma mulher bonita. Isso é problema para homens - rematou Tavernier com ênfase, atraindo para si a jovem.

Léa não lhe resistiu, fitando-o como nunca fizera antes.

- Não quero que lhe aconteça nada de mau, minha menina. Léa pareceu desapontada por ele não a beijar, e Tavernier sorriu vendo o seu trejeito amuado.

- Chega por hoje. Vou tratar de obter o veículo. Dir-lhe-ei qualquer coisa dentro de dois dias. Vá ver o que quer o dr. Dubois.

Sem responder, Léa abandonou o quarto.

- Ah, já não era sem tempo! Acha que não tenho mais o que fazer do que ficar à sua espera, srta. Delmas? - gritou o médico quando Léa entrou na sala.

- Desculpe, doutor, pensei que estivesse com a sra. d'Argilat.

- A sra. d'Argilat está muito bem. Não se trata dela.

- Então, podemos partir! - exclamou Léa, contente, interrompendo o médico.

- Isso teria sido possível se a sra. Lebreton não tivesse se despedido, apresentando pretextos fúteis.

- Pretextos fúteis. . . - repetiu a enfermeira, cuja presença Léa ainda não notara. - Acabo de saber que o meu genro, gravemente ferido, se encontra na Bretanha. Minha filha quer a qualquer custo ir ter com ele na companhia dos dois filhos. E o senhor chama a isso futilidades!

- A sua filha é suficientemente crescida para viajar sem a mãe - retrucou o médico perfidamente.

- Com duas crianças de três e cinco anos. . . Bem se vê, doutor, que nunca teve filhos.

- Nos tempos de hoje, muito me congratulo por isso.

- Não pode me deixar sozinha com Camilie, sra. Lebreton

- interveio Léa. - Não sei tratar dela, dar-lhe injeções.

- Sinto muito, mas vejo-me forçada a pensar na minha família. Leve-a para o hospital.

- Sabe perfeitamente, sra. Lebreton, que não há nenhuma vaga nos hospitais hoje em dia e que alguns deles estão sendo evacuados - contrapôs o médico.

- Nada posso fazer - concluiu a enfermeira com secura. - Vou tomar o trem noturno para Rennes. Está na hora de aplicar a injeção na sra. d'Argilat, srta. Delmas. Se quiser, mostro-lhe como se faz. Não é muito difícil.

Sarah Mulstein estava ainda no quarto de Camille quando as duas mulheres entraram, seguidas do dr. Dubois, que assumiu um tom de falsa despreocupação ao anunciar à doente:

- A sra. Lebreton será obrigada a deixar-nos por motivos de família. Vai mostrar à srta. Delmas como se aplica uma injeção.

Camille empalideceu e disse com um sorriso forçado:

- Espero, minha senhora, que não se trate de nada grave. Agradeço-lhe os seus bons serviços.

Depois, virando-se para Léa, lamentou:

- Eu lhe causo imensas preocupações, minha querida.

- Vire-se - ordenou a enfermeira, resmungando, depois de preparar a seringa.

Sarah e o médico afastaram-se um pouco.

- Veja. Não é muito difícil - explicou a sra. Lebreton. - Enterre a agulha com um golpe seco... depois comprima o êmbolo lentamente.

 

Capítulo 13

Paris estava vazia.

O bombardeio, no dia 3 de junho, dos aeroportos de Orly, de Bourget e de Villacoublay, das fábricas Citroën e de prédios no 15 e no 16 Arrondissements, provocara cerca de trezentas mortes. De manhã cedo, as primeiras viaturas começaram a partir para o sul do país; mas a grande massa dos parisienses precipitou-se para as estações de Lyon e de Austerljtz, misturando-se à vaga de refugiados provenientes do norte e do leste.

Um torpor e um silêncio dignos do mês de agosto caíam sobre a Place Saint-Sulpice quando Léa a atravessou para dirigir-se à Câmara Municipal, a fim de receber as senhas de racionamento das três moradoras do Boulevard Raspail. Não disporiam de açúcar sem aqueles cupões amarelos colados no interior da senha, O leite, o café e a manteiga já escasseavam. De que se comporiam os cafés da manhã dentro em breve?

Quando deixou a prefeitura, após duas horas de espera, Léa estava de muito mau humor. Cansada por ter permanecido em pé durante tanto tempo, em corredores que cheiravam a lixívia, a papéis velhos e a suor, foi sentar-se num dos bancos diante da fonte, aconchegando-se ao impermeável bege emprestado por Camilie. O calor não era intenso e nuvens ameaçadoras percorriam o espaço, de onde a morte podia surgir a cada instante. Recordou com raiva a calma de Camille face ao apito das sirenes de alarme, seguidas do ruído ensurdecedor dos aviões que sobrevoavam Paris e, por fim, dos estampidos das bombas.

Insistira com ela para que descesse ao porão do edifício, transformado em abrigo antiaéreo. Obstinada, Camille recusara-se a fazê-lo, dizendo preferir ver a morte chegar a ser sepultada viva. Com raiva no coração e o medo nas entranhas, Léa vira-se forçada a permanecer junto dela, com a cabeça enfiada nas almofadas de seda.

E François Tavernier que não dava sinais de vida! Não era possível ter partido para a frente sem procurá-la de novo e, sobretudo, sem cumprir a promessa de proporcionar-lhes meios para sair de Paris. E já estavam a 6 de junho!

- Eis uma testa franzida que não prenuncia nada de bom! - observou um indivíduo, sentando-se junto dela.

Léa preparava-se para responder com aspereza quando reconheceu Raphael Mahl.

- Bom dia. Então não foi embora? - perguntou Léa.

- Embora para onde?

- Para o diabo, se quiser.

- Para lá, minha querida, iremos todos nós, o que não me desagrada. Sempre gostei de diabos loiros, sobretudo uniformizados. E você, não? Sempre é uma variante a todos estes franceses gorduchos, da frente popular e a esses mestiços de nariz adunco.

- Cale-se! É ignóbil o que está dizendo.

- Por que ignóbil? Não é por causa deles que vamos perder a guerra, por causa desses "Bium" e companhia? Conheço-os bem, pois sou meio judeu.

- Tenho uma amiga judia cujo marido foi preso apenas por ser judeu.

- E isso não lhe parece motivo suficiente?

- Que horror! - exclamou Léa, erguendo-se de um salto.

- Então, minha querida, acalme-se. Estava brincando - disse Mahl, levantando-se por sua vez e tomando-lhe o braço.

Léa libertou-se com impaciência.

- Desculpe-me, mas tenho de voltar para casa.

- Espere. Também tenho uma amiga, e ela incumbiu-me de vender uma das suas peles, uma magnífica raposa prateada. Faço- lhe um preço muito em conta. É um excelente negócio.

- Não sabia que as peles lhe interessavam.

- Neste caso, trata-se apenas de prestar um serviço a uma amiga que precisa de dinheiro para deixar Paris. Que quer? Ela também é judia e os názis a assustam. A mim assusta-me muito mais o tédio. Se acaso não lhe interessa a raposa, tenho também tapeçarias, encantadores tapetes antigos de rara beleza.

- Deu agora para negociante de tapetes? Julguei que fosse escritor.

O rosto de grande fronte desguarnecida perdeu instantaneamente a sua expressão de zombeteira bonomia. Um sorriso lasso e triste conferiu à sua fisionomia, onde era notória a frouxidão de caráter, uma beleza melancólica, sublinhada pelo olhar de insustentável inteligência.

- Sim, sou escritor. Escritor antes de mais nada. Você é apenas uma mulher e por isso não pode entender a existência de um escritor, a luta cotidiana entre o desejo de viver e a ânsia de escrever. São duas coisas incompatíveis. Sou como Oscar Wilde: quero o gênio tanto nas minhas obras como na minha vida. E isso é impossível de conseguir. Atormento-me, mas vejo-me obrigado a optar entre viver e escrever. Tenho dentro de mim um grande livro, eu o sei; mas oprime-me de tal maneira o desejo de participar dos movimentos do mundo e das suas paixões que o meu trabalho se ressente com isso. São necessários, como diziam os Goncourt no seu Diário, "dias regulares, calmos, quietos, a condição burguesa de todo ser, um recolhimento com capuz de dormir, para se escrever algo de grande, de atormentado, de dramático. As pessoas que se dispersam muito na paixão ou nos sobressaltos de uma existência febril serão incapazes de realizar qualquer obra e esgotarão a própria existência vivendo". Mahl fez uma pausa e depois prosseguiu: - Esgotar a existência vivendo. . . eis o que acontece comigo. Vocês, mulheres, estão protegidas pela falta de imaginação, e seu único ato criador é o da maternidade. Há entre vocês alguns monstros sublimes, é certo, tal como a sra. de Noailles ou Colette, essa admirável artífice das letras. Mas existe pouca inteligência verdadeira entre as do seu sexo, a qual é apanágio masculino.

- A inteligência é apanágio masculino?! Como se atreve a dizer tal coisa agora que o país, nas mãos dos homens que detêm o poder, das criaturas que, segundo o senhor, são dotadas de verdadeira inteligência, está prestes a ruir tão lamentavelmente?

- Mas vencem-nos uma inteligência e uma força superiores, perante as quais teremos de nos curvar.

- Curvar-nos perante selvagens?

- Tem uma cabecinha muito bem-feita, minha querida, mas está vazia. Você apenas repete as idéias de seu porteiro. Esta guerra que lhe parece tão selvagem será benéfica para a França. Já em 187, os Goncourt - citando-os de novo - escreviam: "A selvageria é necessária de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos para revigorar o mundo, O mundo morre de civilização.

Antigamente, na Europa, quando a velha população de um ameno país estava convenientemente anêmica, caíam-lhe em cima, vindos do norte, heréticos de quase dois metros de altura que remodelavam a raça".

- Mahl fez nova pausa, para logo continuar: - Os alemães são esses hereges que restituirão à nossa raça enfraquecida o sangue novo da ressurreição. Acredite, minha filha, acredite num pederasta vigarista que observou com atenção - por exigências literárias e, por vezes, também por necessidades corporais - esse animal pensarne ao qual se dá o nome de homem; esse homem que um dia Deus expulsou da sua presença, fato com o qual ele - pobre estúpido! - nunca se conformou. Lembre-se dos belos versos de Lamartine: "O homem é um anjo caído com saudades do céu".

- Tenho a impressão de estar ouvindo meu tio Adrien, que é dominicano - asseverou Léa, em tom de zombaria.

- O seu tio fez uma boa escolha. "Para um homem como ele só existe o hábito." Eu também já quis ser padre. Eu, o judeu, converti-me

Alguns amigos, católicos fervorosos, apoiaram-me em tal pretensão. Nas vésperas de ser ordenado, fugi do seminário e passei três dias num bordel de rapazes. Foi maravilhoso! Depois do cheiro azedo das axilas dos eclesiásticos, depois das faces roídas pelo acne dos camaradas de dormitório, cujo cio obsessivo poluía calções e iençóis, após as manhãs ensombrecidas por aquela carne rígida que despontava sob a sotaina, que alegria em acariciar e em beijar os corpos macios e perfumados dos prostitutozinhos masculinos! Mas como pode você entender tal coisa, você, uma mocinha virgem, sem dúvida, desconhecedora até mesmo, por certo, dos insípidos apertos sáficos!

- Efetivamente, não entendo. O senhor causa-me nojo!

- É verdade que sou um ignóbil nojento! - exclamou Mahl, rindo muito. - O, senhora, não querer comprar uma tapete ou uma bela pele? Faço-lhe um preço camarada; você é bonita - continuou Mahl, seguindo Léa com mímicas grotescas. Compôs um rosto simultaneamente astucioso e tão ordinário que a moça não pôde conter o riso.

- O senhor está louco, meu pobre Raphaél. Não sei por que motivo consinto que me dirija a palavra.

- Porque a divirto, minha querida, e as minhas idéias desordenadas a fazem sair do seu torpor de adolescente. Tem de crescer, minha bela! A época em que vivemos já não está na infância.

Caminharam em silêncio durante alguns metros. Na esquina da Rue de Greneile com a des Saints-Pères, Raphaël Mahl parou.

- Quer vir a minha casa tomar uma xícara de chá? - sugeriu. - Um amigo emprestou-me um belo apartamento na Rue de Rivoli. A vista para as Tuileries é magnífica.

- Agradeço, mas não é possível. A amiga em cuja casa moro encontra-se doente e já deve estar preocupada com a minha ausência. Há mais de três horas que saí.

- E amanhã? Prometa-me que vem. Gostaria de oferecer-lhe alguns livros que aprecio muito. Se desejamos a amizade de alguém é muito importante termos os mesmos gostos literários.

Léa mirou-o com uma simpatia à qual não podia furtar-se e que não compreendia.

- Se puder, virei. Prometo.

Mahl rabiscou o endereço e o número do telefone num envelope com o timbre da NRF.

- Fico à sua espera a partir das quatro. Se não puder vir, telefone-me. Conto com você. Até amanhã.

- Até amanhã - despediu-se a jovem, guardando no bolso o papel que ele lhe estendera.

Correu pela Rue de Grenelie, deserta, até o Boulevard Raspail.

Não teve tempo de pôr a chave na fechadura, pois a porta se abriu e Camilie surgiu à sua frente, vestida às pressas com um tailleur azul-marinho que lhe fazia sobressair o contorno do ventre, pondo igualmente em destaque a palidez do rosto emagrecido.

- Até que enfim voltou! - exclamou ela, encostando-se à parede para não cair.

- É mesmo doida! Que faz em pé?

- Ia procurá-la - murmurou Camilie, escorregando ao longo da parede, desmaiada.

- Josette! Josette! Venha depressa!

A jovem camareira surgiu na porta da copa e deixou escapar um grito ao ver a patroa caída por terra, inconsciente.

- Ajude-me, em vez de ficar aí plantada como uma idiota.

Despenteada, com o rosto afogueado, Josette auxiliou Léa a transportar a doente para o quarto e a colocá-la na cama.

- Dispa-a - ordenou Léa. - Vou dar-lhe uma injeção.

Quando regressou ao quarto munida da seringa, Josette cobria Camille, que ficara apenas com a leve combinação cor-de-rosa.

Depois da injeção, Léa, cheia de angústia, perscrutou o pobre rosto de narinas afiladas. Camile nunca demorara tanto tempo a recobrar os sentidos.

- Por que motivo permitiu que a senhora se levantasse da cama?

Agachada junto ao leito, Josette soluçava.

- Não tive culpa, senhorita. Estava preparando o chá na cozinha. Deixei a senhora muito calma ouvindo rádio quando, de repente, quase me fez quebrar o bule, tal o susto que me pregou; apareceu atrás de mim, descalça, de olhar enlouquecido, repetindo sem cessar: "Tenho que procurar Léa. . . Tenho que procurar Léa Tentei reconduzi-la ao quarto, mas ela não deixou, dizendo:

"Faça as malas, Josette. Os alemães estão chegando". Então tive medo, pois pensei que a senhora tivesse ouvido a notícia pelo rádio. Comecei a preparar a bagagem, correndo, enquanto a senhora se vestia. A senhorita chegou nesse momento. Diga-me, é verdade que os boches vêm aí?

- Telefone ao dr. Dubois e diga-lhe que venha com urgência.

- Muito bem, senhorita.

Debruçada sobre Camifle, Léa procurava fazê-la aspirar um frasco de sais. "E se os alemães tiverem chegado, de fato?", pensou, sentindo um princípio de pânico apoderar-se dela.

- O médico não está em casa, senhorita, e não sabem quando voltará.

- Léa... - pronunciou Camille, abrindo as pálpebras devagar. - Léa, está aqui. . . receei que tivesse partido. . . o rádio.

noticiaram que o governo se prepara para deixar Paris - balbuciou ela, agarrando-se com força ao braço de Léa.

- Então - . . vamos, acalme-se. Acabo de chegar, e não há alemães nas ruas. Tudo está tranqüilo. Só você se agita inutilmente.

Laurent não ficaria satisfeito se a visse tão pouco razoável. Descanse e procure dormir um pouco. O dr. Dubois está chegando - mentiu a jovem

- Perdoe-me, mas tenho tanto medo quando você não está aqui comigo!

Era já quase noite quando Camilie por fim adormeceu. O médico não aparecera ainda.

Léa sentiu fome. Foi à cozinha em busca de algo para comer. Não havia nada, exceto alguns pães secos. Furiosa, procurou

Josette para censurar-lhe a falta de mantimentos. Encontrou-a sentada na penumbra do salão, vestida e pronta para partir, com a mala colocada aos pés.

- Que faz aqui às escuras? Por que motivo está de casaco e de chapéu dentro de casa?

- Quero ir embora, senhorita - choramingou Josette. Quero voltar à Norrnandia, para a casa de meus pais.

Léa fitou-a, apavorada.

- Pretende deixar-me sozinha com uma doente?!

- Tenho medo, senhorita, muito medo. Quero voltar para casa.

- Pare de choramingar! Os alemães já ocuparam a Normandia. Se não foi hoje, será amanhã. Será melhor que vá deitar-se.

- Mas, senho...

- Cale-se! E amanhã trate de fazer as compras. Boa noite.

Léa saiu, deixando a infeliz moça chorando, desamparada.

No dia seguinte, às seis da manhã, Léa despertou de um sono perturbado, acordada pela campainha da porta. Supôs que fosse o dr. Dubois. Apanhou o quimono e ergueu-Se do canapé do quarto de Camilie, onde passara a noite. Bocejando, foi abrir a porta.

Na sua frente surgiu um indivíduo envergando uma farda manchada de lama, de rosto sujo e meio oculto por uma barba de vários dias.

- Laurent...

- Não, não é Laurent. Você não me parece ainda muito bem acordada, minha amiga. Posso entrar?

Léa afastou-se, deixando passar François Tavernier.

- Não faça essa cara. Por quem me toma? Por uma aparição?

- Quase. Onde se meteu durante todos esses dias? Telefoneilhe por diversas vezes, mas nunca estava.

- Pelo meu aspecto pode ver que não estive no Maxim's.

- Acabe com as suas graças! Ficou de procurar-me, e estive todo este tempo à espera.

Qie gentileza de sua parte! Deixe-me dar-lhe um beijo de gratidão pela fidelidade demonstrada.

- Afaste-se! Está tão sujo que dá medo.

- Que quer, minha amiga? A guerra não é coisa limpa. Mas os soldados têm sempre direito aos beijos das garotas.

François Tavernier atraiu Léa e a beijou, apesar de sua resistência. Largou-a, porém, sentindo que ela continuava sem corresponder.

- Dê-me notícias da sra. d'Argilat. Como está ela?

- Mal.

- E o médico?

- Espero-o desde ontem. Conseguiu arranjar algum carro confortável?

- Consegui. Tive de batalhar durante todos esses dias, mas desencantei um Vivastella em perfeito estado de funcionamento. Será que vai conseguir guiá-lo?

- É necessário que o faça.

- Mandei um homem de confiança buscá-lo. Estará aqui dentro de dois dias.

Dois dias?

- O veículo encontra-se em Marselha.

- Devia ter seguido o conselho de meu pai e tomado um trem.

- Também pensei nisso. Mas Camille não poderia viajar deitada.

A campainha retiniu novamente.

- Oh, doutor! - exclamou Léa, abrindo a porta.

O dr. Dubois estava pouco mais apresentável do que François Tavernier. O terno amarrotado, o queixo mal barbeado, as pálpebras avermelhadas evidenciavam cansaço e falta de sono.

- Não pude vir mais cedo - disse ele. - Quer ter a bondade de fazer-me um café?

- Também tomaria um de bom grado - afirmou Tavernier.

- Vou ver se encontro café. Josette está de tal maneira apavorada que não se atreve a sair para fazer compras.

Na cozinha, com efeito, não havia café, leite nem pão.

- Eu me encarrego disso - disse Tavernier, que seguira a jovem. - Há um bar não muito longe daqui, onde costumava ir às vezes. O dono vai me livrar deste apuro. Estarei de volta enquanto ferve a água. Entretanto, prepare-me um banho. Não tenho tempo para passar em casa.

Na volta, François Tavernier sobraçava um grande saco de papel onde havia café recém-moído, uma garrafa de leite fresco, uma lata de chocolate, um quilo de açúcar e - maravilha das maravilhas! - vinte pãezinhos ainda quentes.

Tavernier fez questão de levar a Camilie a bandeja do desjejum. Para agradar-lhe, a doente esforçou-se por engolir um dos pãezinhos. Ele mesmo comeu cinco, tantos quanto Léa; o médico, três. Reconfortados, todos se mantiveram em silêncio durante alguns momentos. Léa foi a primeira a falar, dirigindo-se a François:

Se quer tomar o seu banho quente é melhor apressar-se.

- Já não tenho tempo. Vou apresentar meu relatório ao general Weygand e encontrar-me também com o marechal Pétain.

- Nesses trajes! - não pôde impedir-se de comentar o dr. Dubois.

- E por que não? . o traje de todos aqueles que se deixam massacrar devido à negligência do estado-maior e das tropas em debandada que vagueiam à procura de quem as comande, e que os dirigentes procuram afastar de Paris.

- E depois disso, que fará? - perguntou Camilie.

- Depois, minha senhora, irei morrer pela França - replicou Tavernier em tom teatral.

- Não brinque, François. Vou ficar tão desgostosa se algo lhe acontecer!

- Muito obrigado por essas palavras, sra. d'Argilat. Prometo- lhe tentar manter-me vivo.

Depois, dirigindo-se ao médico, Tavernier perguntou:

- Acha que poderemos transportar a nossa amiga?

- Considero isso uma loucura e uma imprudência, tanto pelo seu coração como pela criança. No entanto, se os bombardeios recomeçarem. . . Bem, entreguemo-nos à misericórdia de Deus. Vou receitar-lhe medicamentos mais fortes. Procurarei passar por aqui amanhã de novo.

- Minha senhora. . . senhorita! Os alemães ocuparam Dieppe, Compiègne, Rouen e mesmo Forges-les-Eaux, onde vive a minha madrinha! - gritou Josette, surgindo de chofre no quarto, com um naco de pão com manteiga na mão.

François Tavernier pegou-a pelo braço e a fez sair mais rapidamente do que entrara.

- Sua pateta, quer matar a patroa?

- Claro que não, sr. Tavernier - soluçou a infeliz. - Mas penso no meu pai, na minha mãe, nos meus irmãozinhos...

- Eu sei, menina, eu sei. Dentro de dois dias poderá deixar Paris com a sra. d'Argilat e a srta. Delmas. Irá para a Gironda, para o campo, onde estará a salvo - assegurou ele, adoçando a voz e acariciando-lhe os cabelos.

- Sim, senhor. Mas. . . e a minha família? Quando tornarei a vê-la?

- Não sei. Talvez em breve. Prometa-me cuidar da sra. d'Argilat, Josette.

- Prometo, sim, senhor.

- Obrigado, Josette. Você é uma boa moça. Tem dois dias para comprar mantimentos para a viagem. Ao mesmo tempo, compre também um vestido bonito para você.

- Oh, muito obrigada, sr. Tavernier! - agradeceu Josette, quase confortada, guardando o dinheiro.

Léa e o médico saíam do quarto de Camille.

- Apresse-se se quer falar com o marechal Pétain e com os membros do governo. Acabam de noticiar pelo rádio a sua partida iminente para Touraine - anunciou o dr. Dubois em voz sumida, limpando os óculos embaçados. - Até amanhã.

A porta do patamar da escada fechou-se sobre o seu vulto tepentinamente curvado.

- Por que motivo permitiram que Camilie ouvisse tais notícias? - perguntou Tavernier.

- Nada pude fazer - replicou Léa, apertando contra si o quimono, num gesto friorento.

- Seja corajosa. O mais difícil ainda está por vir. E dê-me um beijo.

Num gesto espontâneo, Léa lançou-se para ele, rodeando-lhe o pescoço com os braços. Os lábios de ambos encontraram-se com tal violência que se feriram. As lágrimas que escorriam dos olhos de Léa conferiam ao beijo um sabor salgado. Tavernier desenlaçou as mãos apertadas atrás da sua nuca e, sem largá-la, afastou-a um pouco de si. Como estava linda, assim, triste, com o peito arfando!

- Gosta um pouco de mim? - não pôde impedir-se de perguntar num murmúrio.

Léa fez um sinal negativo com a cabeça.

Uma repentina expressão de dor contraiu o rosto malbarbeado de Taverníer. Aliás, que lhe importava se ela gostasse ou não?

Bastavam-lhe os beijos. Atraiu-a de novo junto ao peito e as mãos tatearam um instante por debaixo do quimono. Quando a largou, as lágrimas de Léa haviam secado.

- Tenho de deixá-la, minha querida amiga - disse ele com um sorriso. - Obrigado por tão amável acolhida. Até breve. Cuide de você e de Camille.

Sem palavras, a jovem o viu afastar-se. Com o indicador, num gesto inconsciente, percorreu o contorno dos lábios úmidos.

Léa e Josette tinham se esquecido por completo de que era domingo; quase todos os estabelecimentos de venda de gêneros alimentícios estavam fechados. Foram até o mercado de Saint-Germain, onde, após longa espera, conseguiram obter uma dúzia de ovos, um frango, um coelho, um grande salsichão, queijo, dois quilos de maçãs e, depois de regatearem o preço, um enorme presunto.

Esgotadas mas orgulhosas das aquisições feitas, e de bolsa vazia (tudo encarecera terrivelmente), subiram a Rue du Four carregando, cada uma, uma alça da sacola pesada.

Estava um dia magnífico, e havia pouca gente na rua; apenas algumas velhinhas transportando sacolas pobremente abastecidas, mendigos, porteiras que não tinham perdido o hábito de varrer o passeio em frente dos prédios, dois agentes de polícia deslocando-se em suas bicicletas rangentes e um carro tão carregado com um colchão, um armário com espelho e uma leva de crianças irrequietas que era surpreendente que conseguisse mover-se. A Rue de Rennes assemelhava-se a um longo rio de chumbo com margens desertas. De repente, alguns caminhões desembocaram de Saint-Germain; sob os toldos mal ajustados, Léa notou pilhas de documentos atadas às pressas.

Léa cobriu os móveis com suas capas e começou a fazer as malas. Ao arrumar o impermeável de Camille, encontrou num dos bolsos o papel em que Raphael Mahl escrevera o seu endereço e o número de seu telefone. Contrariada, lembrou-se da promessa de visitá-lo ou de lhe telefonar caso não pudesse comparecer.

O sol entrava pela janela aberta que dava para as árvores da avenida, um sol que convidava ao passeio. Tudo parecia tão calmo, tão estival que apenas se ouviam os pios dos pardais e os arrulhos dos pombos.

Numa súbita decisão, Lea fechou a mala e pegou uma capa de lã negra, que atirou sobre o vestido de seda negra com bolinhas vermelhas. Pôs o chapéu de palha preta e olhou-se no espelho veneziano da entrada. Depois entreabriu devagar a porta do quarto de Camille. Adormecera, graças a Deus! Na cozinha, Josette preparava os cestos dos mantimentos destinados à viagem.

- Vou fazer uma visita, mas não me demoro.

- uma imprudência sair sozinha, senhorita.

Léa saiu sem lhe dar resposta.

Exceto por alguns veículos e camionetas carregadas de volumes extravagantes, Paris parecia deserta. Ao atravessar o PontRoyal, distinguiu, para os lados do Grand-Palais, pesadas nuvens negras que aumentavam. Preocupada, prosseguiu, apressando o passo. O jardim das Tuileries estava tão vazio quanto as ruas.

Sob o fundo obscurecido do céu, destacava-se a cruz formada pelo Obelisco, tão branca quando banhada pelo sol, e o cimo do Arco do Triunfo. Com o coração batendo forte, a jovem parou: veio-lhe à memória o refúgio de Verdelais sob a claridade dos relâmpagos. Foi tão forte o súbito desejo de se achar aos pés da cruz que assistira às suas preces de criança e aos seus prantos de adolescentes, que Léa se sentiu vacilar.

- Meu Deus! - murmurou.

Assomou-lhe uma prece ao Deus da infância que, pouco a pouco, se transformou em ação de graças pela dádiva de tanta beleza.

A contragosto renunciou à contemplação do espetáculo. Sem cruzar com ninguém, atingiu a Rue de Rivoli e a fachada do prédio onde morava Raphaél Mahl.

O inquilino veio abrir-lhe a porta, vestindo uma espécie de gandura de lã branca. Olhou a moça, surpreso.

- Esqueceu-se de que me fez prometer vir visitá-lo hoje? - perguntou Léa.

- Ai, que cabeça a minha! Desculpe, querida amiga, mas apanhou-me em plenos preparativos de partida.

- Vai embora?

- Amanhã ou depois de amanhã. O avanço alemão fez-me perder o emprego. O diretor da Rádio Mundial espera ordem de evacuação de um dia para outro, ou melhor, de uma hora para outra.

- Para onde vai?

- Sem dúvida para Tours, para onde foi o governo. Posso levá-la, se o desejar.

- Não seja bobo. Eu também vou partir dentro de dois dias.

- Ah, onde estaremos nós dentro de dois dias! Venha sentar-se. Não ligue à desarrumação. Quer um chá?

- Preferia alguma coisa fria.

- Acho que não posso lhe oferecer, a menos que se contente com uísque, O dono da casa deixou duas caixas. Só gastei uma.

- Pode ser. Nunca provei.

- Fique à vontade.

Léa olhou em volta. A sala estava abarrotada de adornos chineses de todo tipo, alguns muito bonitos, como o comprido cofre de laca cor de asas de escaravelho; havia outros, porém - algumas figurinhas de tons gritantes -, de uma fealdade aflitiva. Léa encaminhou-se para a porta aberta da varanda que dava para as Tuileries. Raphaél juntou-se a ela momentos depois, trazendo dois copos cheios de um líquido cor de âmbar.

- Bebo à sua beleza - brindou ele.

Sorrindo, Léa inclinou a cabeça e ergueu o copo. Provou a bebida e fez uma careta.

- Não gosta?

- Tem um paladar esquisito.

- Beba mais um trago. Verá que depressa se habitua.

Tomaram a bebida devagar, encostados à balaustrada da varanda. Chegou até eles um odor pestilento de fumaça gordurosa, que os obrigou a franzir o nariz.

- Que será este cheiro? - perguntou Léa.

- Desde esta manhã que há qualquer coisa queimando para os lados de Boulogne. Vamos entrar.

Instalaram-se no canapé baixo, atulhado de almofadas.

- Ainda tem espaço nas suas malas? - perguntou Raphaél.

- Sim. Mas depende para o que for.

- Ontem, prometi emprestar-lhe alguns livros que considero o que de melhor nos deu a literatura.

Mahl pegou três volumes que estavam no canapé e estendeu-os a Léa, não sem certa hesitação.

- Não, não os estou emprestando, eu os estou dando. Talvez esta seja a última vez que nos vemos; guarde-os como lembrança minha. O crepúsculo dos deuses, de Elémir Bourges, pelo qual trocaria de bom grado toda a obra de Flaubert; A vida de Rancé - talvez você seja ainda muito nova para tal leitura. Trata-se de uma prosa amadurecida, que todos deveriam ler na velhice. Vai lê-lo mais tarde, na hora adequada. E Chéri, da grande Colette. A heroína, uma admirável figura de mulher, tem o seu nome.

Neste romance estão toda a grandeza e toda a miséria da mulher. Oxalá você venha a assemelhar-se à protagonista. Gosta de poesia?

- Sim, um pouco.

- Um pouco só não chega. Leia Nerval, o mais profundamente desesperado.

Como nesse instante Raphael Mahlse mostrava diferente do homem frívolo, do vendedor ocasional de peles ou de tapetes, do cronista de Marianne ou do pederasta parisiense! Léa compreendeu que, com a dádiva daqueles livros, Mahl lhe entregava um pouco de seu próprio íntimo.

- Obrigada - disse simplesmente, dando-lhe um beijo no rosto.

Ele ergueu-se para esconder a emoção.

- Se eu tivesse de amar uma mulher, minha querida, gostaria que fosse como você - disse Mahl em tom reverente.

Léa consultou o relógio.

- Agora tenho de ir. Já passa das seis.

- Vou acompanhá-la. Hoje em dia, não é prudente uma mulher jovem e bonita andar sozinha pelas ruas.

- Mas está tudo deserto!

- Precisamente por isso as ruas são mais perigosas. Acredite neste amante de recantos sombrios; é sempre nos locais sossegados que se escondem os maus rapazes. É preferível evitar tais encontros a quem não os aprecia. Dê-me os livros; vou embrulhá-los.

Retirou de um móvel alto de laca preta com incrustações de marfim um magnífico xale de seda vermelha, bordado com flores e aves coloridas, em que envolveu os três volumes.

- Aqui está! Uma embalagem em perfeita harmonia com o seu vestido - disse ele, estendendo-lhe o embrulho e abrindo a porta.

- Vai sair assim? Não vai trocar de roupa? - admirou-se Léa.

- Você não disse que Paris está vazia? E mesmo que houvesse multidões na rua, não sou bonito assim mesmo? Não estou elegante? Os trajes africanos me parecem o máximo da elegância. Só me falta o kalliyeh, infelizmente.

Na rua, a atmosfera suave estava mudada pelo cheiro de fumaça. Raphaél pegou a moça pelo braço.

- Vamos pelo cais, se não se importa. Talvez seja a última vez que damos este passeio, você e eu.

Em frente do Instituto, estavam abertas duas barracas de livros antigos. A vendedora de uma delas era uma mulher gorda e sem idade; na outra, havia um velho de olhos cansados. Cumprimentaram

Raphael como a um freguês habitual, nem um pouco admirados com seu traje.

- Então abriram hoje! Mas não devem ter tido muitos clientes.

- Infelizmente, não, sr. Mahl! Até mesmo os mais corajosos fugiram. Não é uma lástima ter de deixar uma cidade tão bonita?

- Vocês deviam fazer o mesmo.

- Eu, sr. Mahl? Nunca! Cresci aqui, nasci num pátio da Rue des Grands-Augustins, estudei no Quai Saint-Michel, perdi a virtude à sombra de Saint-Julien-le-Pauvre e casei em Saint-Séverin. Minha falecida mulher, filha de um antiquário de Believilie, foi enterrada no Pere-Lachaise. Minha filha tem um bar em Montmartre, o mais velho, uma boa casa em frente de Notre-Dame e o último, quando regressar da puta desta guerra, será o meu continuador. Fora de Paris, o corpo e a mente definham. Por isso, ficamos aqui. Não é verdade, Germaine?

A gorda mulher, de pele curtida como a de um marinheiro, opinou ruidosamente:

- Você acertou em cheio.

Com estas palavras definitivas, Raphael e Léa despediram-se dos vendedores.

Os raios oblíquos do sol tingiam de cor-de-rosa as figuras grotescas do Pont-Neuf. Veículos lotados passavam em direção a SaintMichel. Na Rue Guénégaud, através de uma janela aberta, chegou até eles o som de um relógio dando as sete horas.

- Apressemo-nos. Já estou atrasada - disse Léa.

Até o Boulevard Raspail, trocaram apenas algumas palavras.

Como dois amigos, beijaram-se em frente da porta do prédio, desejando-se mutuamente boa sorte.

No dia seguinte, Camille recebeu carta de Laurent; encontrava- se perto de Beauvais, que descrevia como uma cidade muito bonita, com soberba e imponente catedral.

- De quando é a carta? - perguntou Léa.

- De 2 de junho. Por quê? Oh, meu Deus! Beauvais foi destruída depois desse dia - balbuciou Camille, deixando-se cair por terra.

Muito perturbada, Léa nem sequer pensou em socorrer a doente.

- Léa! - implorou a moça.

Era tão grande o entorpecimento da jovem que não ouviu o apelo de Camille. Por fim, suplantando o torpor, prestou-lhe os cuidados necessários. Quando a crise passou, as duas mulheres caíram nos braços uma da outra, chorando durante muito tempo. Assim as encontrou o dr. Dubois, que parecia ter envelhecido dez anos desde a véspera. Apesar da fadiga, conseguiu dizer as palavras adequadas para minorar-lhes a angústia.

Na terça-feira, dia 11 de junho, as moradoras do Boulevard Raspail encontravam-se prontas para a partida. Faltava apenas o veículo. Começou, então, uma longa noite de espera.

A manhã de quarta-feira decorreu em tal clima de tensão que Léa preferiu sair de casa, dizendo que iria à estação de Austerlitz verificar se os trens estavam circulando. Tinha calçado sandálias e percorreu Saint-Germain a passos largos, ultrapassando grupos de aspecto digno de lástima, que empurravam carrinhos de bebê, carroças e carros de mão, levando seus poucos pertences: relógios de parede, aspiradores, máquinas de costura, barômetros, aquários com peixes vermelhos, colchões enrolados, fotografias de família, ampliações de fotos de casamento, bonecas de louça, tapetes de cores desbotadas e ainda duas gaiolas onde saltitavam, enlouquecidos, um canário e um casal de rolas. Havia muitas crianças de tez pálida, mulheres de rosto cansado, velhos extenuados. De onde viriam? Dos arredores do norte ou da Bélgica? Em Saint-Michel, parte deles reuniu-se à vaga humana que subia para o Luxemburgo; outra parte continuou na mesma direção em que Léa seguia, rumo à estação de Austerlitz. Uma multidão compacta impedia o acesso à estação.

Circulavam os mais fantásticos boatos entre as pessoas ali bloqueadas:

- Os boches chegaram a Enghien.

- Não. Estão na Antuérpia.

- Explodiram os depósitos de petróleo dos arredores de Paris.

- Bombardearam Versaijles.

- Os trens já não circulam.

- Fecharam as cancelas da estação.

Era verdade.

Por detrás das grades do átrio, empoleirado no teto de um veículo, um funcionário da estrada de ferro falava à multidão utilizando um alto-falante. Após insistentes pedidos, conseguiu relativo silêncio.

- Como medida de segurança - principiou ele -, manteremos a estação fechada até as cinco da tarde.

De todos os lados se elevaram gritos de protesto.

- Silêncio! Deixem-me falar. . . Silêncio!

As exclamações interromperam-se- isto, a fim de permitir o embarque dos passageiros que já se encontram na plataforma.

- E nós? - perguntaram algumas vozes entre os assistentes.

- Todos poderão partir. Prevêem-se duzentos e trinta e oito vagões extraordinários nas estações de Austerlitz e de

Montparnasse. Nesse momento, um trem sairá de Paris de cinco em cinco minutos. Todos seguirão. Tenham paciência..

Léa conseguiu infiltrar-se por entre os que tinham se deixado cair na calçada, rodeados de bagagens. Nas imediações do Jardim des Plantes, os canteiros haviam sido tomados de assalto por grupos que aí faziam os seus piqueniques improvisados. Atravessou o jardim, em direção à Rue Linné, na esperança de encontrar no local menor número de pessoas. Foi abordada por um indivíduo que a seguiu até a Rue des Écoles, mimoseandoa com baboseiras que em breve se transformaram em obscenidades. Naquele lugar, porém, por razões desconhecidas, o homem abandonou a perseguição.

Ao passar em frente da Dupont-Latin, um cheiro de batata frita lembrou-a de que não tinha almoçado. Havia poucos clientes na grande cervejaria. Deliciada, Léa saboreou as batatas e bebeu uma cerveja, seguida de café. De estômago reconfortado, encaminhou-se para o Odeon, cortando a custo a multidão que subia o Boulevard Saint-Michel

Eram já quatro da tarde.

 

Capítulo 14

O automóvel chegou às cinco da madrugada, conduzido por um jovem completamente esgotado, que adormeceu debruçado sobre a mesa da cozinha, diante da xícara de café que não tivera ânimo para levar aos lábios.

Léa, ajudada por Josette, aproveitou a ocasião para descer as bagagens e instalar Camille, que declarou sentir-se bem. Deixando o automóvel sob os cuidados da criada, voltou a subir para acordar o motorista, que emergiu apalermado de uma escassa hora de repouso. O café requentado restituiu-lhe a lucidez.

Em obediência às instruções de Camilie, Léa desligou os registros do gás e da eletricidade e girou a chave na fechadura, pensando se alguma vez voltaria ali.

Na rua, o motorista acabava de prender as malas e um malão ao teto do automóvel.

- Ainda não me apresentei - disse ele. - Meu nome é Antoine Durand. Vou levá-las até Etampes, onde devo me encontrar com alguns camaradas. Graças ao sr. Tavernier, dispomos de cinqüenta litros de gasolina e temos um salvo-conduto que nos permite sair pela Porte-d'Orléans.

- Por que motivo é preciso salvo-conduto para passar por lá?

- perguntou Léa.

- Não sei, senhorita. Mas todos os civis que pretendem abandonar Paris são desviados para a Porte d'Italie.

Foram necessárias três horas para que atingissem a saída de Orléans, guardadas por militares que encaminhavam a multidão para a Porte d'Italie. Graças aos documentos de que vinham munidos, um oficial deixou-os passar. Tomaram então alguns desvios até um entroncamento na Rodovia 20, e tiveram de submeter-se a nova fiscalização antes de entrarem na estrada de Orléans.

Exceto pela presença de viaturas militares, não havia trânsito na estrada. A partir de Montihéry, porém, começaram a ultrapassar os primeiros grupos de viajantes a pé - algumas mulheres de chinelos ou com sapatos de saltos muito altos, arrastando atrás de si crianças, vesti das às pressas, ou empurrando caroças de onde, por entre fardos, emergiam, por vezes, cabeças de crianças. Adolescentes puxavam carros de mão excessivamente carregados para as suas forças. Em alguns desses transportes improvisados, seguiam sentados velhos e enfermos. Havia entre os civis inúmeros soldados em fuga, de cabeça descoberta e olhar espantado. Alguns deles levavam consigo malas, outros, de cabeça baixa, as respectivas espingardas, subtraídas à vigilância militar.

O automóvel experimentava cada vez maior dificuldade em esgueirar-se por entre a onda humana que crescia sem cessar, arrastando velocípedes, motocicletas, veículos puxados por cavalos ou por bois, camionetas, triciclos com bagageiro, viaturas de bombeiros, até mesmo carros funerários, e automóveis que pareciam prosseguir como que por milagre, de tão antigos. Saíram de Arpajon em passo de tartaruga. Um soldado arvorado em agente de trânsito informou-os ser proibido ultrapassar. Léa exibiu o salvo-conduto e o militar ergueu os braços, como se dissesse: "Se é esse o caso".

Nas encruzilhadas, um marinheiro aqui, um aviador ou um soldado de infantaria acolá tentavam, com a sua presença, conferir um simulacro de ordem àquela mísera migração. Tomando pelos campos que marginavam a via, o motorista conseguiu ultrapassar uns vinte ônibus repletos de prisioneiros e dos respectivos guardas. De que prisão viriam? Antoine, no entanto, depressa se viu forçado a retomar a estrada. E logo recomeçou o lento passeio sob o sol escaldante que queimava as faces e molhava de suor ciclistas e pedestres.

Na beira da estrada, diante de seu jardim, um homem munido de uma vasilha de alumínio amassada e com alguns baldes de água colocados a seus pés, onde batia para chamar a atenção dos caminhantes, interpelava os refugiados:

- Vamos, deixem ver a cor de seu dinheiro! Dez soldos o copo! Dois francos a garrafa!

A mulher do vendedor estendia aos sedentos um copo ou uma garrafa e recolhia o dinheiro.

- Que vergonha! - exclamou Camilie.

- Terá oportunidade de observar muito mais até o fim da viagem - comentou Antoine com ar desiludido.

Por fim, chegaram a Etampes. Tinham levado seis horas para percorrer quarenta e seis quilômetros.

A pequena cidade assistira ao êxodo de seus habitantes, misturados aos outros fugitivos que por ali passavam. Apenas um hotel permanecia em funcionamento; vendia café, pão e queijo, que os retirantes disputavam entre si. Foram necessárias mais duas horas para atravessar a localidade, O jovem motorista atingira o limite das forças, dirigindo como autômato. Por vezes, a cabeça descaía-lhe para o peito. De súbito, deu-se conta de ter deixado para trás a povoação, o que o fez despertar por completo. Parou o veículo.

- Não posso prosseguir - informou. - Aconselho-as a irem por estradas secundárias.

- Não vai deixar-nos! - gritou Josette.

- Tenho de cumprir ordens. Não posso continuar.

Nesse instante, superando o ronco dos motores dos carros, os gritos das crianças e o arrastar de pés de milhares de pessoas, ouviram-se os zumbidos que todos temiam.

- Depressa! Desçam do carro! - gritou Antoine, saltando do automóvel. - Deitem-se na valeta!

Camilie saiu do veículo amparada por Léa. As mãos crispavam-se-lhe no ventre num irrisório gesto de proteção. Correu, rolou na erva poeirenta da vala e foi parar junto da criada, que tremia como vara verde, e de um casal de velhos, aninhados um nos braços do outro.

Os aviões sobrevoaram bem baixo, tão próximos que se distinguiam nitidamente os pilotos. A opressão do medo desvanecia-se pouco a pouco e algumas cabeças já começavam a erguer-se. Mas, de repente, em súbita reviravolta, os aviadores alemães começaram a metralhar a longa e imóvel coluna de fugitivos estirados no chão.

Léa sentiu sobre ela a poeira das balas que crepitavam na estrada. Os aparelhos efetuaram três passagens por cima deles. Quando a tempestade mortífera cessou, houve um longo silêncio, logo seguido dos primeiros gemidos, dos primeiros gritos, dos primeiros uivos de dor, enquanto uma fumaça negra e nauseabunda, feita de carne humana, de borracha e de gasolina queimada, se elevava no meio da catástrofe. Josette foi a primeira a levantar-se, bestificada e coberta de sangue. Gritou, rodopiando sobre si mesma.

Camilie ergueu-se devagar, ilesa. Perto dela, o casal de velhinhos permanecia imóvel. A jovem sacudiu o ombro do homem. Esse movimento obrigou-o a deslocar-se e constataram então que a mesma bala atingira marido e mulher. De punhos cerrados,

Camilie abafou um grito. Dominando a repugnância, debruçou-se sobre os corpos e fechou-lhes os olhos. Antoine saíra ileso.

Quando Léa se pôs de pé, tudo girou à sua volta; teria caído sem a ajuda de Camille.

- Mas. . . você está ferida! - exclamou.

Levando a mão à testa, Léa retirou-a cheia de sangue. Aquilo produziu-lhe uma sensação esquisita, mas ela não se mostrou preocupada.

- Deixe-me ver - interveio um homem de uns sessenta anos, de opulenta cabeleira branca. - Sou médico - esclareceu.

Do estojo, retirou compressas e curativos.

- Foi no arco da sobrancelha. Nada de grave - constatou.

- Vou pôr-lhe uma atadura bem apertada que estancará a hemoragia.

Um pouco tonta, Léa deixou-se tratar.

Sentada no declive, a atadura conferindo-lhe o aspecto de um trepanado da Grande Guerra, observou com olhos frios o espetáculo que a rodeava: vários carros ardiam, mas, como por milagre, o deles não fora atingido. Corpos sem vida jaziam por toda parte. Os feridos gemiam, gritando por socorro. Foram necessárias várias horas para que a caravana retomasse a caminhada. Ninguém pensara em comer. Eram oito da noite quando Léa se instalou ao volante; o motorista desaparecera.

Diante da insistência de Camilie, Léa concordou em transportar uma velha que não conseguira encontrar a família.

Durante quilômetros seguiu-se o mesmo espetáculo de morte e de destruição. Ao cair da noite, Léa, fatigada, com o sangue do ferimento a escorrer-lhe pela face, deixou a Rodovia 20, em Angervilie, na esperança de achar um café ou um restaurante aberto. Mas nada. Tudo estava fechado perto da aldeia, atulhada de refugiados que dormiam nos portais das casas, na igreja, na escola, na praça e mesmo no cemitério. Léa parou o carro à beira de um campo. As quatro mulheres saíram. A noite era suave, o céu estava cheio de estrelas, e pairava no ar um agradável perfume de feno. Josette abriu então o cesto das provisões, às quais se atiraram, esfomeadas.

Ao acordar, pela manhã, constataram que o automóvel estava com um pneu vazio. Incapaz de retirar a roda, Léa partiu em busca de uma oficina. Mas, tal como todos os outros estabelecimentos da aldeia, a garagem encontrava-se fechada. Na praça, algumas religiosas distribuíam leite às crianças. Léa perguntou onde poderia conseguir socorro.

- Não ficou ninguém aqui, minha pobre menina - esclareceu uma delas. - Todos os homens válidos estão na guerra ou fugidos. O presidente da Câmara, o notário, o médico, os bombeiros, o professor, o padeiros, todos foram embora. Só resta o vigário, já muito idoso, aliás. Até mesmo Deus nos abandonou, minha filha.

- Irmã Jeanne, cale-se. Como se atreve a duvidar da bondade de Deus? - admoestou uma das religiosas, de rosto fino e cansado.

- Perdoe-me, madre, mas, depois de ter visto tanta miséria desde que partimos, duvido cada vez mais dessa bondade.

- A fadiga a faz blasfemar, irmã Jeanne. Vá descansar.

Depois, virando-se para Léa, a religiosa disse:

- Venha, minha filha. Vou trocar seu curativo.

Com mãos hábeis, retirou a tira suja e limpou o ferimento que seguia a linha da sobrancelha. Depois, colocou sobre ele uma grande compressa, fixando-a por meio de um esparadrapo.

Não está com mau aspecto. Mas seria conveniente levar dois ou três pontos de sutura.

- Ficarei desfigurada? - inquiriu Léa.

- Não se preocupe - respondeu a religiosa com um riso juvenil. - Isso não a impedirá de encontrar marido.

Agradecendo, Léa regressou ao local onde ficara o automóvel. Por três vezes, pediu ajuda a homens que transportavam pesadas cargas. Mas, empurrando-a, estes nem sequer se dignaram a responder-lhe, seguindo em frente. Desencorajada, ela sentou-se num marco à beira do caminho.

- Léa!

Esgotada demais para surpreender-se com o chamado num lugar para ela desconhecido ainda no dia anterior, a jovem ergueu a vista. Na sua frente estava um militar sujo, de rosto oculto pela barba por fazer, sen boné, com os cabelos compridos, um capote cinzento devido à poeira, tal como as botas e as faixas que lhe cobriam as pernas, capacete pendurado no bornal, uma sacola em cada ombro e a espingarda na mão.

Léa levantou-se. Quem seria aquele homem? Como sabia o seu nome? No entanto. . . aquele olhar. . . os olhos azuis.

- Mathias!

Com um grito, atirou-se em seus braços, e o rapaz deixou cair a arma para receber neles a amiga reencontrada.

- Mathias. . . Mathias.

- É... você... - balbuciava o jovem, cobrindo-a de beijos.

- Que alegria em encontrar você! Que faz aqui?

Antes de responder, o soldado voltou a pegar a espingarda. Depois respondeu:

- Ando à procura do meu regimento. Fui informado de que se encontrava perto de Orléans. E você? Que faz pelas estradas?

Julguei que estava em segurança, em Montillac.

- Estou com Camille d'Argilat, que está grávida e doente. Não pudemos deixar Paris mais cedo. É uma sorte tê-lo encontrado;

nosso carro está com problemas.

Com que alívio Camilie, Josette e a velha senhora os viram chegar!

- Receei muito que tivesse acontecido alguma coisa, Léa - suspirou Camille.

Na aldeia não achei ninguém que me ajudasse. Felizmente encontrei Mathias. Lembra-se de Mathias Fayard, filho do administrador das adegas?

- Claro que me lembro! Como está, Mathias?

- Tão bem quanto possível.

Depois de beber um café ainda morno no copo da garrafa térmica, o jovem trocou o pneu do carro.

Soavam nove horas na torre da igreja.

Mathias instalara-se ao volante e, seguindo por estradas secundárias, procurava aproximar-se de Orléans. As mulheres sentiamse mais tranqüilas com aquela presença masculina. Camille, a criada e a passageira apanhada pelo caminho tinham adormecido.

A máo de Léa repousava, confiante, na coxa do amigo.

Ao longo da via estreita e branca estendia-se uma coluna de pedestres e de veículos que caminhavam em passo de procissão. Nos acostamentos, havia carros abandonados, alguns calcinados, cadáveres de cavalos e de cães. Pelos campos marginais, sepulturas recém-abertas, mobiliário diverso, utensílios de cozinha, carrinhos de bebê e malas rasgadas atestavam os recentes bombardeios.

À frente do veículo em que seguiam, um velho automóvel sobrecarregado, transportando no teto dois colchões enrolados, enguiçou. Mathias deixou o volante e ajudou a empurrá-lo para desobstruir a rodovia. Uma mulher com um bebê nos braços e duas outras crianças agarradas à saia observava a cena chorando. Mathias voltou a subir no carro e retomaram a marcha.

Quando pararam para comer, cerca de uma hora, haviam percorrido apenas uns trinta quilômetros.

No lavatório público de uma vilazinha, fizeram uma toalete sumária que, assim mesmo, contribuiu para restituir-lhes um pouco de ânimo. Camille estava com má aparência e tinha o rosto muito vincado. Mas nenhuma queixa lhe aflorava aos lábios, embora, de tempos em tempos, sua fonte se cobrisse de suor. A velha senhora, cujo nome desconheciam, balançava a cabeça coberta pelo seu chapéu de viúva, repetindo com obsessiva regularidade:

- Michéle, cuidado com as crianças! Georges, Lolc, voltem aqui!

- Façam-na calar! - explodiu Léa. - Façam-na calar!

Camille rodeou com o braço os ombros curvados da mulher sem nome e disse:

- Não se preocupe, minha senhora. Georges e Loíc nada têm a recear. Estão com a mãe.

- Michéle, cuidado com as crianças!.

Num gesto de cansaço, Camille tapou os olhos com a mão; estava de tal forma emagrecida que retirara do dedo a aliança, receando perdê-la.

- A senhora não sabe lidar com doentes mentais - observou Josette, levando o indicador à testa.

Pegando no braço da velha, sacudiu-a sem cerimônia.

- Cale-se, senão vamos deixá-la à beira do caminho. Vai ver o seu Georges e o seu Loíc no inferno.

- Não tem vergonha de falar nesses termos à pobre mulher?

- admoestou-a Camille. - Deixe-a!

A criada, de rosto vermelho, despenteada e com a roupa em desalinho, obedeceu de má vontade. Durante momentos, todos comeram em silêncio os ovos cozidos e as rodelas de salsichão, enquanto na estrada continuava o mísero desfile, sob o céu branco de calor. A velha calara-se, entorpecida.

- Temos de seguir viagem - aconselhou Mathias.

Era noite quando atingiram os arredores de Orléans. Nenhuma loja ou residência aberta! Também os habitantes da cidade tinham fugido. O Boulevard de Chateaudun e o Faubourg Bannier haviam sido bombardeados. De repente, desabou sobre eles violenta tempestade, reduzindo ainda mais a marcha - não se sabia para onde - de toda aquela gente atirada para a estrada por incontrolável pavor. Cada um se abrigava como podia, e alguns refugiados não hesitaram mesmo em arrombar portas e janelas de residências abandonadas. Depois, a tempestade cessou tão subitamente como viera. Das casas violadas, sem procurar esconder-se, saíam vultos trazendo consigo relógios de parede, quadros, jarras e cofres. Os pilhantes iniciavam a sua sinistra tarefa.

- Receio que tenhamos de passar a noite no carro - disse Mathias, que não conseguira avançar um milímetro sequer no espaço de uma hora.

- Senhorita. . . senhorita. . . a senhora desmaiou!

- Que quer que eu faça? Procure fazê-la engolir as gotas.

Josette pegou o frasco que Léa lhe estendia e pingou o remédio no copo da garrafa térmica. Lentamente, Camille recobrou os sentidos.

O automóvel avançou mais alguns metros.

Como um rebanho entontecido, a multidão escoava-se pelo Faubourg Bannier, movendo-se de ambos os lados do carro e à sua frente, com a cabeça vergada ao peso das cargas e do cansaço. Sem o ruído dos motores, das rodas das carroças e do estrépito arrastado dos passos de milhares de indivíduos, era como um desfile silencioso de um grupo fantasmagórico caminhando rumo a um destino ignorado, através da noite negra cortada pela claridade dos relâmpagos.

À direita, surgiu uma rua quase vazia; o embrutecimento da massa humana, provocado pelo medo e pelo sofrimento, contribuía para ,conservá-la compacta. Quanto aos condutores dos veículos motorizados e das carroças, esses guiavam adormecidos.

Mathias virou num cruzamento e avançou com prudência na obscuridade, mantendo os faróis apagados com receio dos aviões.

Chegaram assim a um quarteirão destruído pelos recentes bombardeios. Das ruínas enegrecidas, desprendia-se um cheiro de cinza molhada e de porões úmidos. Apesar da atmosfera pesada e quente, Léa tremia de frio. Pararam numa pracinha plantada de tílias, poupadas pelas bombas. Saíram do automóvel para estirar os membros entorpecidos por tantas horas de imobilidade. Foram fazer as suas necessidades atrás das árvores,

Josette ajudou a patroa a deitar-se em cima de uma nesga de relva.

- Estou com frio - queixou-se a doente.

A criada regressou ao carro, de onde retirou uma manta de viagem com qu cobriu Camilie; esta agradeceu com um sorriso triste, de mãos crispadas sobre o ventre.

- Precisa de mais alguma coisa, minha senhora? - perguntou Josette.

Camille fez um gesto negativo com a cabeça e fechou os olhos.

A velha sem nome afastou-se pela rua obstruída por escombros, repetindo:

- Michéle, cuidado com as crianças!.

Mathias e Léa deram uma volta pela praça, enlaçados e muito apertados um contra o outro.

Junto de um jardinzinho, espalhava-se pelo ar um inebriante perfume de rosas. O rapaz empurrou a cancela de madeira e os dois jovens acharam-se sob um caramanchão coberto de rosas, provavelmente brancas. Instalaram-se no banco, onde algumas almofadas haviam sido esquecidas, aspirando com volúpia o ar perfumado. Como parecia longínqua a guerra nesse instante!

Bastava-lhes fechar os olhos para estarem de volta a Montillac, sentados no banco de pedra ainda quente sob o sol da tarde, em frente dos vinhedos, com as costas apoiadas na parede pela qual serpenteava a velha roseira carregada de rosas brancas, pendentes e cheirosas. Era a pausa obrigatória nas longas noites de verão, quando o poente tingia de ouro as velhas pedras, as telhas das adegas e as pranchas escuras do alpendre. Aquele era o momento em que subia da terra uma paz à qual todos os habitantes de Montillac eram sensíveis.

Mathias apertou a companheira contra si com mais força. Léa sentiu-se segura pela primeira vez em muito tempo, ao ver-se envolvida pelos braços do amigo de infância. Vieram-lhe à memória, fazendo-a estremecer, as brincadeiras de ambos no meio do feno, as perseguições por entre o mato crescido dos prados, a embriaguez na época das vindimas, as corridas de bicicleta na encosta de SaintMaixant, os encontros à luz da lua, quando exploravam as grutas de Saint-Macaire ou procuravam as "masmorras" do castelo dos duques de Epernon, em Cadillac.

Os lábios de ambos encontraram-se com violência, os dentes entrechocaram-se, os hálitos misturaram-se; puseram nesse beijo toda a fúria de viver. As mãos fortes, maltratadas e de unhas sujas de Mathias quase arrancaram o leve corpete do vestido de Léa. A combinação rendada de seda branca colava-se à sua pele. As alças corregam descobrindo os seios, cujos bicos roçaram a camisa cáqui de Mathias, ensopada de suor. O tecido grosseiro tornou-os ainda mais eretos, enquanto a boca do rapaz os sugava com uma espécie de grunhido. Mas Léa afastou sua cabeça com doçura.

- Pare, Mathias!

- Por quê? - é uma coisa tão intensa.

- Não quer?

- Sim. Mas espere um pouco.

Como tinham certeza de ter a vida pela frente nesse instante, ali estendidos no banco de madeira, em suas roupas amarrotadas, a mente transtornada, embriagados pelo perfume das rosas!

Longe, soaram duas horas.

- Devia dormir um pouco, Léa.

Sem se dar ao trabalho de arrumar a combinação, a moça estendeu-se no banco, apoiando a nuca nas coxas do amigo, e adormeceu. Com ternura, Mathias ficou a contemplá-la assim adormecida, durante muito tempo. Estava escuro nas imediações e apenas os seios brancos de Léa se destacavam levemente na escuridão. Para não ser tentado a agarrá-los e beijá-los uma vez mais, o rapaz ajeitou-lhe a combinação e abotoou-lhe o vestido. Depois, acendeu um cigarro.

Camille acordou sobressaltada, depois de um sono agitado, perguntando-se, por instantes, onde estaria.

O lugar desaparecia nas sombras, e as próprias tílias, tranqüilas, pareciam erguer-se, negras e ameaçadoras, acima dela. A criança mexeu-se em seu ventre, provocando-lhe dor e alegria ao mesmo tempo. Soergueu-se no tronco de uma das árvores. "Está tudo muito calmo", pensou, segurando o abdômen.

Notou, de início, um estrondo longínquo; talvez ainda fosse a trovoada. Escutou com mais atenção. A tempestade aproximava-se. . trovejava. . . Nessa altura, um vulto lançou-se por terra, junto dela, gritando:

- Os aviões, minha senhora. . . os aviões!.

O pavor recomeçou quase antes mesmo de a criada ter tempo de terminar a frase: um rosário de bombas caiu tão próximo da pracinha que o chão tremeu e os escombros ruíram. As explosões sucediam-se, e logo as chamas se elevavam, iluminando de repente as tílias.

Mathias obrigou as mulheres a se afastarem do carro para o qual tinham se precipitado, arrastando-as para o lado mais vazio da praça.

- A gasolina - soprou ele ao ouvido de Léa, que se debatia.

- Acho que as bombas caíram na estrada por onde viemos - gaguejou a criada.

O bombardeio prosseguia, agora mais distanciado. Ouvia-se o crepitar das metralhadoras.

- Deus do céu! Que fará a OCA? - rosnou Mathias.

Desconhecia nessa altura que a bateria da DCA deixara de existir em Orléans. O rugido dos aviões afastou-se e depois aproximou-se de novo. Voando a baixa altitude, a esquadrilha sobrevoou outra vez a cidade. Caiu uma potente bomba acompanhada de um barulho ensurdecedor, derrubando os últimos edifícios que ainda se mantinham de pé, uma garagem e o

Hotel Saint-Aignan. Uma chuva de pedras, ferros e fogo foi abater-se sobre a longa coluna de refugiados.

Pela pracinha, antes tão calma, passavam correndo, com os rostos deformados pelo terror, pessoas de vestes rasgadas, mulheres alucinadas transportando no colo pequenos corpos desconjuntados e criaturas sem mãos, sem braços ou sem rosto. Um ser que parecia ter saído de um pesadelo, desnudado pela explosão, saltitava com espantosa rapidez no pé que lhe restava, ridiculamente calçado com um sapato raso, enquanto o coto sangrento deixava atrás de si um rastro escuro. Com os olhos esbugalhados, siderados, Léa e os companheiros assistiam à fuga dos infelizes. Surgiu um carro de bombeiros com todas as sirenes ligadas, varrendo-os à sua passagem com os faróis. Uma camioneta parou. Dela desceu um homem de idade, com a cabeça protegida por um capacete do modelo usado durante a Grande Guerra.

- Há alguém ferido? - perguntou.

- Não. Estamos bem, obrigado - disse Mathias.

- Mas... você é soldado... é novo. Venha conosco. Nós somos velhos e não muito fortes - disse o homem, indicando os companheiros em cima das viaturas.

- Não vá, Mathias! - gritou Léa, agarrando-se a ele.

- Não é muito bonito o que está fazendo, senhorita - censurou-a o velho. - Há centenas de desgraçados sepultados sob os escombros e é necessário socorrê-los.

- E nós? Que será de nós sozinhas?

- Vocês também são novas. Venham ajudar-nos.

- Não podemos. Nossa amiga está doente.

- Bem, vamos indo! Chega de conversa. Enquanto isso há gente morrendo.

Mathias chamou Léa à parte.

- São soldados da defesa passiva, e devo obedecer-les. Vão para o carro e tentem chegar até as pontes.

- Mas nós não podemos abandoná-lo aqui! - protestou ela.

- Tenho de cumprir o meu dever, Ou na frente ou aqui.

- Mas a guerra está perdida! - gritou Léa com violência.

- E daí? Isso é motivo para esquivar-me? Vamos, não chore. Havemos de tornar a ver-nos. Pegue a minha arma. Nunca se sabe...

Tenha cuidado. Amo-a.

Sob os olhares desolados das três mulheres, Mathias retirou do automóvel o seu equipamento militar e subiu para a camioneta, que logo se afastou em direção ao incêndio.

Com a cabeça apoiada no braço, sobre o capô do carro, Léa soluçava.

- É preciso partir - advertiu-a Josette, amparando a patroa, cujas feições se encontravam ainda mais abatidas.

- Tem razão. De nada adianta choramingar - concordou Léa, arrancando o curativo solto pelo calor.

As duas instalaram Camille no banco traseiro do veículo.

- Obrigada - murmurou a doente. - Onde está a velhinha?

- Foi-se embora há muito tempo - esclareceu a criada, estendendo o braço na direção do fogo.

Camille gemia, mergulhada em semi-inconsciência. Josette, com a cabeça para fora da janela, orientava Léa em meio a detritos de todos os gêneros, dos jatos de água das canalizações rebentadas, dos pedaços de madeira em chamas que caíam dos edifícios.

- Atenção à direita! Um grande buraco.

Léa conseguiu evitá-lo em parte e o safanão arrancou um grito de Camille e uma praga de Josette. Atrás delas, ruiu um prédio e algumas pedras atingiram a lataria, que ficou coberta de poeira.

- Não consigo ver nada - lamentou-se Léa.

Imobilizada em meio ao assobiar das chamas que pareciam rodeá-las por todos os lados, tentou fazer funcionar o limpador do pára-brisa, mas sem êxito.

- Saia e limpe o vidro da frente - ordenou ela à criada.

- Não quero, senhorita! Tenho medo! - recusou-se a moça, desfazendo-se em pranto.

Léa estendeu o braço e agarrou-a pelos cabelos.

- Desça, vamos! Estou mandando!

Os tapas desabavam sobre Josette, sem que ela procurasse defender-se.

- Pare com isso, Léa! Por favor! - interveio Camille.

Com as mãos sem força, tentava deter a amiga.

- Dê-me o lenço. Eu vou - ofereceu-se a doente.

- Está louca! Você nem sequer se sustenta de pé! Se deseja ser útil, me dê uma manta.

Fora do carro, Léa sentiu-se envolvida pelo calor do incêndio. Com o auxílio da manta, conseguiu remover do vidro a poeira mais grossa. De súbito, alguém gritou atrás dela. Depois, apesar do ambiente ensurdecedor, ela ouviu o baque de um corpo caindo muito próximo. Virou-se bruscamente, pronta para defender-se com a manta, mas suspendeu o gesto.

Sob a claridade das chamas, distinguiu Camilie de pé, apertando entre os dedos o cano da espingarda e fitando o chão com o olhar fixo. A seus pés, jazia um homem com o rosto coberto de sangue. Junto dele, brilhava a comprida lâmina de uma faca de açougueiro. Tomada de espanto, Léa inclinou-se e sacudiu o indivíduo, que continuou imóvel. Endireitou-se devagar e encarou a mulher que acabava de salvar-lhe a vida, como se a visse pela primeira vez. A doce Camilie não hesitara em matar! Em sua fraqueza, como conseguira arranjar forças para tanto? Suavemente, Léa retirou-lhe a arma das mãos. Nesse instante, como se apenas aguardasse tal gesto, Camilie tombou de joelhos, junto ao cadáver.

- Deus do céu! Está morto! Não pude evitá-lo, compreende? Vi-o avançar. . . com a faca erguida. . . prestes a matá-la. Depois.

bem... depois não sei mais o que aconteceu.

- Obrigada - disse Léa com um calor que a deixou surpresa por instantes. - Venha. Entre no carro. Não fique aqui mais tempo.

- Mas eu matei um homem! - gritou Camille, mordendo os punhos.

- Você não teve escolha. Venha.

Com gestos de uma doçura pouco habitual nela, Léa ajudou Camilie a se instalar.

Josette, que assistira a toda a cena, permanecia sentada no automóvel, de boca escancarada, sem conseguir mover-se.

- Venha ajudar-me ou mato-a também! - disse-lhe a jovem.

A criada saiu do veículo como um autômato.

- Apresse-se!

Assim que as duas mulheres acabaram de instalar a doente no banco traseiro do automóvel, esta desmaiou.

- Cuide dela - ordenou Léa à criada. - Ora, ora. . O que há com você? Suba!

De olhos arregalados, Josette fitava o chão.

- O homem não está morto, senhorita - sussurrou.

De fato, o indivíduo erguia-se brandindo a faca e resmungando:

- Malditas. . . Fazerem isso comigo. . . Putas. . Vou furá-las.

- Suba, depressa!

Enquanto Josette se atirava para dentro do carro, Léa recuou com calma e engatilhou a arma, tal como Mathias lhe ensinara quando pararam para o almoço. Depois, sempre recuando, levou a espingarda ao ombro e disparou, sentindo o recuo da arma ferir-lhe a carne. À sua frente, apenas a alguns passos, o desconhecido, com um buraco em pleno rosto, permaneceu um instante perplexo, de braço erguido, antes de cair para trás num só movimento.

Apertando a arma, Léa, imóvel, observava-o.

Sentiu pousar em si uma mão escaldante: Camilie! Que fazia ela ali fora de novo? Não podia ficar quieta dentro do carro? Tinha já complicações suficientes mesmo sem aquele encargo de zelar constantemente pela mulher de Laurent d'Argilat. Laurent. . . a essa hora, estaria morto, por certo; na frente de combate, as coisas eram bem piores do que ali. Sim, mas ele era homem, era soldado, dispunha de uma arma. Ela também a tinha, porém. Não acabara de matar um homem? Pum! De um só tiro. O pai sentir-se-ia orgulhoso da sua façanha de atiradora. Não fora ele quem a ensinara, nas quermesses das aldeias? Teria orgulho da filha, sem dúvida.

- Léa...

A filha de Pierre Delmas não se deixava intimidar! Que o dissesse aquele patife com o rosto estourado! Tinha agora um aspecto bem pouco agradável.

- Vamos, Léa, acalme-se. Acabou-se. Temos de partir.

Que chata! Com aquela Camilie sempre atrás dela, ninguém podia se divertir um pouco. Partir? Sabia que era necessário, mas.

para onde? Em volta, tudo ardia; o calor era terrível. Com a mão suja de poeira, limpou o suor que lhe escorria para os olhos e vomitou, sustentada por Camilie e amparada à arma.

- Está melhor?

Léa resmungou. Sim, estava melhor, mas precisava sair dali rapidamente.

- Desta vez, está bem morto - comentou Josette, quando as duas jovens se instalaram no carro.

E foi essa apenas a oração fúnebre daquele pobre-diabo.

O dia surpreendeu-as na Place Dunois. Ali as casas não haviam sofrido danos. Havia um posto de primeiros socorros. No chão, jaziam dezenas de pessoas, a maior parte delas com queimaduras graves. Religiosas de hábitos manchados de sangue agitavam-se no meio dos feridos. Léa saltou do veículo.

- Onde posso encontrar um médico, irmã? perguntou a uma das freiras.

A religiosa endireitou-se a custo; uma madeixa de cabelos grisalhos surgiu por debaixo de sua touca.

- Não há nenhum, minha filha. Estamos aqui sozinhas com a nossa superiora. Esperamos a chegada de ambulâncias para o transporte dos feridos para o Hospital Sonis ou para outro qualquer.

- Onde ficam os hospitais?

- Não sei. Não somos daqui. Viemos de Etampes.

Desesperada, Léa olhou em volta. Felizmente Camille desmaiara de novo e não podia ver nem ouvir nada. Léa abordou um jovem bombeiro, quase uma criança, que passava correndo.

- Qual é o caminho para se chegar à ponte, por favor?

- As pontes. . as pontes vão ser dinamitadas. De qualquer modo, não conseguirá chegar lá. São necessárias horas para se ir de

Martroi à Avenue Dauphine, que fica do outro lado da Ponte Royal. Do lugar onde está, é preferível tentar a Ponte Marechal Joffre.

- E por onde devo seguir?

- Em tempos normais, seria pela Rue de Coulmiers ou pela Marechal Foch, para depois pegar o Boulevard Rocheplatte, atravessá-lo e cortar por uma das ruas que descem.

Sem mais informes, o bombeiro afastou-se, correndo.

Quanto tempo levaram para percorrer aquele bairro de Orléans, avançando, recuando, contornando, detidas pelos escombros, por vezes, ou por barragens de arame farpado erguidas pelo exército? Camilie continuava desmaiada. Léa sentia dores na nuca, nos ombros e nos braços; o ferimento na testa incomodava-a. E o calor, santo Deus!

Depois da morte do desconhecido armado de faca, Josette se acalmara como por encanto, lançando olhadelas de admiração e de receio para a jovem ao volante, ajudando-a o melhor que podia, já não hesitando em sair do automóvel para desviar com energia alguma trave, uma peça de mobiliário ou qualquer outro obstáculo do caminho, O gesto de Léa lhe dera confiança.

- Estou com fome, senhorita - lamentou-se.

Na verdade, havia muitas horas que não comiam; mas como era possível sentir fome em semelhantes circunstâncias?

Chegaram à rua da Porte Saint-Jean, abarrotada de gente desvairada. Depois de atravessar o Boulevard Rocheplatte, haviam encontrado os fugitivos no meio de incrível balbúrdia de cavalos, carrinhos de bebê, ambulâncias, militares de uniforme em desalinho, homens com cara de condenados, muitas vezes bêbados, velhos carregados aos ombros por gente caridosa, crianças empurradas, perdidas e gritando pelas mães. Caso Léa desligasse o motor, o carro delas teria prosseguido do mesmo modo, arrastado pela multidão. Camilie abriu os olhos, por fim, para logo os fechar de novo.

- Ah, não! Chega! - gritou Léa, receosa de outro desmaio.

À custa de enorme esforço, Camilie abriu os olhos.

- Josette, dê-me as minhas gotas e um pouco de água, por favor - pediu ela.

A água da garrafa, agora tépida, pareceu-lhe deliciosa.

- Mais um pouco - insistiu, com a voz alterada.

Quando se preparava para beber, o olhar dela captou o de um rapazinho que seguia ao lado do veículo; pálido, de traços vincados, passava sem cessar a língua pelos lábios rachados.

- Tome - ofereceu Camille, entregando-lhe o copo pela janela aberta.

O garoto pegou-o sem sequer agradecer e bebeu avidamente.

Em seguida, passou o recipiente a uma mulher ainda jovem, vestida com um tailleur preto que devia ter sido elegante. Mas ela não tocou na água, dando-a de beber a uma menina de uns quatro ou cinco anos, de rosto lindo.

- Muito obrigada, minha senhora - disse a mãe.

Camille abriu a porta do carro e as convidou:

- Subam.

Depois de breve hesitação, a mulher empurrou os filhos à sua frente, assim como uma senhora de idade, de aspecto muito digno e admiráveis cabelos brancos, cobertos por um chapéu de palha preto.

- Minha mãe - apresentou a mulher, e instalou-se no carro.

- Está louca, Camilie? Faça essa gente descer! - gritou Léa.

- Cale-se, minha querida, eu lhe peço. Pense bem: o carro está quase vazio, e é um milagre que ainda não o tenham tirado de nós.

Assim, deixamos de ter lugares vagos e foi-nos dada a possibilidade de escolher os companheiros de viagem.

Compreendendo a sensatez desse raciocínio, Léa deixou de fazer objeção.

- Muito obrigada, minhas senhoras, muito obrigada. Chamo- me Le Ménestrel. O nosso carro quebrou em Pithiviers. Umas pessoas bondosas apiedaram-se de minha mãe, de idade tão avançada, e ofereceram-lhe lugar no deles, que já estava bastante cheio. Eu e as crianças continuamos a pé, ao lado do veículo. Infelizmente, porém, ele também quebrou.

- Mas como é que estão nesta zona de Orléans se vêm de Pithiviers? - perguntou Josette, desconfiada, consultando o mapa das estradas aberto sobre os joelhos.

- Na verdade, desconheço como. Alguns soldados franceses encaminharam-nos para Les Aubrais. Depois disso, não sei mais nada. Houve um terrível bombardeio noturno, durante o qual perdemos os nossos amigos.

Camille ordenou à criada que distribuísse víveres, e os pedaços de pão duro foram devorados com apetite. As crianças dividiram entre si as poucas maçãs restantes. A senhora idosa e a menina adormeceram.

Em frente do automóvel parou um grande caminhão atulhado de documentos, em cuja capota seguiam garotos empoleirados.

Soltava fumaça por todos os lados, recusando-se a prosseguir. Soaram gritos e imprecações. Por felicidade, o prédio vizinho dispunha de um largo portão, para o qual o veículo pesado logo foi empurrado por voluntários. Nesse exato momento, reapareceram os aviões, voando a baixa altitude. Ululando, a multidão procurava escapar à armadilha formada pela rua estreita.

- Avancem. . . empurrem. . . deixem-me passar . . sai daí, canalha. . . traste. . . cuidado com as crianças. . . papai. . . mamãe.

Acima deles, os pilotos divertiam-se. Efetuavam mergulhos, vôos rasantes e regressavam, deixando a cada passagem a sua parcela de morte. As balas choviam compactas sobre a Rue Royal, a Rue de Bourgogne, a Place Saint-Croix e o Loire. A dois passos dali, na Rue du Cheval-Rouge, fora esmagada uma coluna de artilharia. Os assassinos do céu realizavam um bom trabalho.

Uma adolescente com o braço decepado tombou sobre a tampa do motor do automóvel em que seguiam, tingindo de sangue o pára- brisa. Depois ergueu-se e correu em frente, gritando pela mãe. Cinco ou seis pessoas caíram, ceifadas pelas balas das metralhadoras. Uma delas, de ventre rasgado, olhava perplexa os intestinos espalhados pelas coxas. A sra. Le Ménestrei apertava contra o corpo o rosto dos filhos, para ocultar deles as cenas de horror. A avó rezava, de pálpebras cerradas.

Muito além do medo, Camille e Léa experimentavam idêntico sentimento de cólera perante o massacre. Não muito longe, um veículo incendiou-se de repente. Os ocupantes, com as roupas e os cabelos em chamas, saltaram aos gritos. Um dos passageiros foi derrubado e espezinhado por um cavalo enlouquecido, que arrastava atrás de si uma carroça, esmagando tudo à sua passagem.

O infeliz soltou um uivo quando a carroça lhe triturou as pernas. Tentou erguer-se, mas as chamas foram mais rápidas e logo ele deixou de gritar, transformando-se rapidamente numa massa informe.

- Não quero morrer assim! guinchou Josette, abrindo a porta do automóvel.

- Não faça isso! - gritaram Léa e Camille ao mesmo tempo.

Mas a criada não as ouvia. Desvairada, correu por entre os corpos derrubados, pisando no sangue, caindo, erguendo-se, procurando escapar àquele amálgama de homens e veículos.

A rua era em declive; pareceu a Léa que o avião subia por ela, precedido, à medida que avançava, pelo crepitar das balas que ricocheteavam no asfalto. Solitária, de pé no centro da carnificina, num instante em que tudo quanto vivia se atirara por terra,

Josette olhava o rosário de morte aproximando-se dela.

Um grito mudo deformou o rosto de Camille, que se deixou cair sobre o ombro da sra. Le Ménestrel.

O impacto das balas projetou Josette para trás com violência. Caiu de braços estendidos em cruz, com a saia erguida. Léa deixou então o automóvel e correu para ela. De olhos muito abertos, a moça sorria como se no instante da morte o medo a tivesse abandonado. O sangue brotava-lhe às golfadas da garganta aberta. Léa procurou um lenço nos bolsos, tentando estancar a hemorragia. Não o achando, tirou o corpete e colocou-o sobre a chaga horrível como um tampão. Mas isso de nada servia, pois Josette estava morta.

"A culpa é minha", pensava Léa. Se a tivesse deixado voltar para junto da família, talvez ainda estivesse viva. Pobre moça! Era da minha idade." Com ternura, acariciou-lhe os cabelos loiros, embebidos em sangue, dirigindo-se à vítima tal como antigamente a mãe fazia com ela quando a via sofrer:

- Não tenha medo... acabou... vamos, durma...

Fechou-lhe os olhos docemente. Depois, arrastando o corpo para que não fosse atingido de novo ou esmagado, sentou-o encostado a um portão.

As sirenes não tocaram para anunciar o fim do alerta, pois não havia ninguém para acioná-las. Os sobreviventes iam-se erguendo aos poucos. Observavam, bestificados, o medonho espetáculo: por toda parte havia carcaças de veículos, carroças e velocípedes retorcidos ou calcinados, corpos mutilados e queimados, crianças errantes e emudecidas sob o império do terror, mães rasgando as faces e soltando uivos, homens abraçados às respectivas esposas ou às mães mortas, mulheres rodopiando sobre si mesmas como peões, com as roupas em tiras, as mãos cobertas de sangue, feridos gritando por socorro.

- Depressa! Temos de desobstruir a via para chegarmos à ponte - ordenou um homem gordo que ostentava no casaco a roseta da Legião de Honra.

Léa, esquecida do seu traje sumário, começou a ajudar nos trabalhos de limpeza da rua. A sra. Le Ménestrel quis juntar-se a ela, mas Léa ordenou:

- Não. Volte para o carro. Pegue a arma e não deixe que nos roubem o veículo.

- Conte comigo - respondeu ela em tom feroz.

Durante horas, cobrindo-se cada vez mais de sangue e de sujeira, Léa arrastou cadáveres e detritos de toda espécie. Soldados sobreviventes do 7 Exército forneceram reforços ao grupo de desobstrução da via.

- Mas. . . será que estou vendo bem? A srta. Delmas em pessoa!

Um único homem no mundo seria capaz de gracejar em semelhantes circunstâncias.

- François! - exclamou Léa, atirando.se ao pescoço de um Tavernier uniformizado, sujo e barbudo. - Oh, François, você! Tire-me daqui depressa. . . se souber como fazê-lo.

- Sei, minha filha, sei. Onde ficou a sra. d'Argilat?

- Ali. No automóvel.

- Como vai ela?

- Não muito bem. Josette morreu.

Quando se aproximavam do carro, a sra. Le Ménestrel, não reconhecendo Léa de imediato, apontou a arma na direção deles.

- Não se aproximem! - avisou.

- Sou eu, sra. Le Ménestrel. Com um amigo que irá ajudar-nos.

- Desculpem. Mas, ainda há pouco, dois homens horrorosos quiseram apoderar-se do automóvel. Só desistiram quando perceberam que eu não hesitaria em atirar. Mas ameaçaram voltar com reforços. É medonho o que fazem: roubam as jóias e o dinheiro dos mortos.

Caíra já a noite quando Tavernier conseguiu forçar um pesado portão. Léa, ao volante, entrou com o veículo no pátio, onde crescia um plátano gigantesco. François fechou a porta com uma tranca de ferro. Exceto pelas vidraças quebradas, o prédio mantinha-se intacto.

- Vou ver se é possível entrar na casa - decidiu a sra. Le Ménestrel, depois de ajudar a mãe a sair do automóvel. - Meninos, fiquem perto da vovó.

François e Léa retiraram Camilie, ainda desmaiada, do interior do veículo. Estava com a respiração fraca e intermitente.

- Consegui abrir a porta - avisou a sra. Le Ménestrel. - Podemos deitar sua amiga numa cama. Vão ver se encontram velas, meninos.

As duas crianças subiram a escada correndo. Acomodaram a doente num quarto do andar térreo.

Não havia água na cozinha nem no banheiro. Num canto do quintal, porém, Tavernier descobriu um poço. O som do balde vazio batendo na parede de pedra fez Léa recordar-se do poço do quintal de Montillac. Como aquele tempo lhe parecia distante! Ainda voltaria para casa? Como se respondendo a tal pergunta, o bombardeio recomeçou nesse instante, felizmente em outra zona da cidade.

François transportou para casa diversos baldes de água. Sentada num dos degraus, com o queixo apoiado nas mãos, Léa observava seus movimentos.

- Ufa! As senhoras já poderão lavar-se - disse ele. - Agora chegou a nossa vez.

Depois de carregar mais alguns baldes, Tavernier pousou o recipiente na beirada do poço e começou a despir-se. Em breve estava completamente nu.

Léa não conseguia desviar os olhos dele; com admiração, contemplava o largo dorso muito moreno reluzindo de suor na noite clara, os quadris estreitos, as coxas compridas e peludas e o sexo de tom pálido sob o fundo mais escuro dos pêlos púbicos.

- Por que espera para tirar esses andrajos? Você está tão suja que mete medo.

Léa obedeceu, desembaraçando-se da saia manchada, da combinação em tiras e da calcinha.

- Vai sentir um pouco de frio no começo, mas depois verá como é agradável. Encontrei toalhas e um pedaço de sabonete com perfume de alfazema.

Despejou-lhe parte da água na cabeça e nos ombros. Léa soltou um grito, de tão gelada que estava a ducha. François ensaboou-a da cabeça aos pés, esfregando-a depois com energia, como se quisesse remover-lhe do corpo a lembrança do sangue que o maculara. Léa via-o agir, comovida com aquelas mãos que lhe brutalizavam os seios e lhe afloravam o sexo e os quadris.

Deixando-a por instantes coberta de espuma, Tavernier molhou-se com a água que restava no balde e estendeu-lhe o sabão.

- Agora é a sua vez - disse.

Léa nunca imaginara que fosse tão vasta a superfície de um corpo masculino, que os músculos pudessem ser tão rijos. François resfolegava de prazer, ao toque das pequenas mãos desajeitadas. A jovem sentiu-se corar quando lhe tocou no pênis erguido.

Depois agachou-se para ensaboar-lhe as pernas.

- Foi assim que sempre sonhei vê-la um dia - comentou François Tavernier.

Léa não respondeu, ocupada em esfregar-lhe as coxas e depois a barriga das pernas. Ele segurou-a então pelas axilas, obrigando-a a erguer-se.

- Não é verdade o que eu disse! - exclamou ele. - Não gosto de vê-la a meus pés. Aprecio-a altiva e obstinada.

Atraiu-a para si e os corpos ensaboados deslizaram um sobre o outro. Os lábios se procuraram. Léa esticou o corpo, enquanto o sexo dele se tornava ainda mais rígido.

Nesse instante, recomeçaram os bombardeios, suspensos há algum tempo. Mas os dois não se mexeram, com se o desejo os protegesse, nem mesmo quando uma bomba caiu não muito longe do prédio, provocando um incêndio cujo clarão lhes iluminou os corpos.

- Faça amor comigo - murmurou Léa. - Não quero morrer sem ter feito amor.

François embrulhou-a na toalha de banho, ergueu-a e entrou na casa com ela nos braços. Subiu a escada que conduzia ao primeiro andar, encaminhou-se para um dos quartos e colocou-a numa grande cama, de cuja cabeceira pendia um crucifixo.

- Abençoada seja a guerra que a entrega a mim - sussurroulhe ao ouvido enquanto a penetrava suavemente.

Era tão grande o desejo de Léa que ela não experimentou a mínima sensação de dor, mas sim a ânsia progressiva de abrir-se ainda mais para que o companheiro a penetrasse profundamente. O orgasmo surpreendeu-a com uma intensidade que a fez gritar.

François via-a contorcer-se debaixo dele e abafou-lhe os gritos com a mão. Gemeu demoradamente quando ele se retirou e atingiu o clímax sobre seu ventre. Ainda trêmula, Léa adormeceu logo.

François Tavernier não conseguia ocultar por mais tempo a realidade: amava aquela jovem. Mas ela. - . o amaria também? Não podia levar em consideração o que acabara de acontecer. Adivinhava nela um corpo fácil: nas mesmas circunstâncias, teria feito amor com qualquer homem, mesmo que não lhe agradasse totalmente. Bastava- lhe o seu conhecimento das mulheres para ter a certeza de tal coisa. Léa se lançara em seus braços impelida apenas pelos acontecimen tos e pelo apetite de viver. E essa convicção provocava-lhe uma tristeza insuportável. Léa agitou-se no sono, aninhando-se contra ele. Desejou-a de novo.

Tomou-a com suavidade, deslizando para dentro do seu ventre úmido, que o sorveu como uma boca voraz. A jovem despertou, então, gemendo. E o prazer cresceu nela, aumentou, invadindo cada célula de seu corpo.

O sol já estava alto quando Léa acordou com um ruído de colher batendo numa tigela. François, recém-barbeado, com os cabelos ainda molhados e envergando as calças sujas do uniforme, inclinava-se para ela.

- Já é tarde, sua preguiçosa. Tem de levantar-se. Descobri chá e biscoitos e preparei-lhe um verdadeiro desjejum.

Que fazia ali naquela cama, nua, com um homem que não era Laurent? De repente recordou-se, corando.

- Não core - disse Tavernier. - Foi maravilhoso. Trouxe- lhe a mala; suponho que seja a sua. Vou deixá-la vestir-se e tomar o café.

Que fizera ela, santo Deus! Enganara Laurent, portando-se como uma cadela no cio. Ainda se não tivesse sentido tanto prazer naquele ato! A essa lembrança, todo o seu corpo estremeceu. Era então aquilo o amor, a maravilhosa sensação experimentada em cada fibra de carne, o milagre que nos fazia esquecer tudo, até mesmo a guerra? Reviu os horrores presenciados na véspera.

Josette morta. E Camille, como estaria? Camilie, que Laurent lhe confiara.

Ergueu-se de um pulo e corou de novo ao ver a roupa de cama amarrotada e manchada de sangue. Puxou os lençóis e atirou-os para o fundo de um armário. Uma contração no estômago a fez lembrar-se de que não comia há várias horas. Sem perder tempo em se vestir, lançou-se sobre os biscoitos e o chá preparado pelo amante. Depois foi olhar o quintal pela janela aberta. François

Tavernier derramava no tanque do automóvel o conteúdo das latas de gasolina que o motorista tivera o cuidado de trazer no porta-malas. As duas crianças perseguiam-se, rindo, sob o olhar enternecido da avó, que muito digna, com os cabelos bem esticados sobre a nuca, se instalara numa cadeira de vime. Ao seu lado, também sentada, Camilie os observava, sorridente. A sra. Le Ménestrel ia e vinha da casa para o carro, transportando embrulhos. Fazia um dia bonito. Nesse domingo, 16 de junho de 1940, reinava no pátio daquela residência de Qrléans um clima de partida de férias.

Ouviu-se então ao longe o uivo de uma sirene, sem dúvida na outra margem do Loire. Logo depois, chegaram os aviões.

- Apresse-se. Estão bombardeando as pontes. Se forem atingidas, não poderemos atravessar o rio - disse François, entrando no quarto de Léa.

Sem se incomodar com a sua própria nudez, a jovem abriu sua mala, retirando uma calcinha, um vestido chemisier de algodão azul e sandálias brancas de couro.

- Leve-a - ordenou a Tavernier, apontando a mala.

Vestiu-se, sem se importar com sua presença. Siderado e pálido de cólera, François observava-lhe os movimentos. De repente, agarrou-a por um braço, puxando-a para si.

- Não gosto que me falem nesse tom - advertiu.

- Largue-me!

- Não a largo enquanto não lhe disser uma coisa, sua burra:

um dia há de implorar o meu amor.

- Nunca!

Teriam avançado desde o começo da viagem? À volta deles, a balbúrdia era total.

Apressem-se! Os alemães estão chegando! As pontes vão ser dinamitadas! - gritavam as pessoas por todo lado.

Tal como na véspera, fazia um calor terrível. Ao fim de muito tempo, atingiram o Quai Barentin. Soldados da engenharia, de guarda na Ponte Joffre, procuravam canalizar a confusão, prestes a proibir o acesso à ponte minada caso fosse dada a ordem de começar as explosões. Mas eram tão poucos que não tinham a mínima esperança de conter a vaga humana. Era necessária uma meia hora para completar a travessia.

Os aviões surgiram novamente, fazendo com que algumas pessoas se precipitassem por terra, enquanto outras, pelo contrário, empurravam, davam encontrões e derrubavam aquelas que as precediam, a fim de ganharem alguns metros de percurso. Diversas bombas caíram na água, respingando lama nos doze arcos da ponte e naqueles que aí se apinhavam. Uma granada caiu na plataforma, e parte da calçada mergulhou nas águas do Loire. Veículos, velocípedes e pedestres foram arrastados num dilúvio de pedras e de terra. Era a queda dos infernos. Os aviões sobrevoaram o local por três vezes, sem conseguirem atingir a Ponte Royal e a Ponte Joffre, metralhando, no entanto, os que se encontravam sobre elas.

Para escapar às balas, uma mulher escalou o parapeito, precipitando-se no vácuo num local onde quase não existia água... Um chofer morto instantaneamente ao volante de um veículo fez com que este se imobilizasse no centro da avalancha. Então, cerca de quinze possessos, ritmando a manobra com gritos de incitamento, ergueram o carro e atiraram-no ao rio, sem se importarem com os passageiros restantes. Feridos morriam, espezinhados por centenas de pés. Patinava-se num caldo repugnante. Por fim, os aviões afastaram-se.

- Prossiga - ordenou Tavernier a Léa. - Vou tentar falar com o comandante.

- Não nos deixe sozinhas!

Sem replicar, François Tavernier desceu do automóvel e abriu passagem até os militares de guarda.

- Marchand!

- Tavernier! O que faz aqui neste inferno?

- Leva muito tempo para explicar e é muito deprimente. É verdade que vão dinamitar as pontes?

- Há muito que isso devia ter sido feito. Os alemães estavam ontem em Pithiviers e em Etampes e, neste momento, não devem estar muito longe de Orléans. Nem sequer recebi a quantidade de explosivos necessária e tive ainda de distribuí-los pelas duas pontes. Se pudesse prever tal coisa, não teria minado o viaduto da estrada de ferro com setecentos e cinqüenta quilos de dinamite.

- Meu tenente! Meu tenente! - gritou um jovem soldado postado em cima de uma autometralhadora, de binóculo em punho.

- Pareceu-me ver tanques alemães no Quai du Châtelet. - Deus do céu! - exclamou Marchand, saltando para a viatura e arrancando o binóculo das mãos do soldado.

- Merda! Avançam pela Ponte Jorge V. Dê ordem para dinamitar. Depressa, em nome de Deus! Os boches já estão na ponte.

Servindo-se do binóculo, Albert Marchand, com a testa coberta de suor, seguia o avanço de três autometralhadoras, retardado pelos fugitivos. Os alemães disparavam sobre a dúzia de militares em guarda na ponte. Atingiam o meio da plataforma quando se ouviu uma série de explosões, seguidas de enorme estrondo: um dos arcos da ponte norte precipitara-se no rio, arrastando consigo todos os que nela se encontravam. Durante instantes, não foi possível distinguir nada. Eram quinze horas e trinta minutos.

Quando a poeira se desvaneceu, Marchand, sempre de olhos colados ao binoclo, gritou:

- Atravessaram, santo Deus! Dirigem-se para Sully.

De olhar desvairado, deixou-se escorregar ao longo do veículo sobre o qual se empoleirava.

- Proíba a multidão de se aproximar. A Ponte Joffre tem de ir pelos ares.

- Mas. . . meu tenente, as pessoas que já estão na plataforma não conseguirão atravessá-la.

- Eu sei, meu velho. Mas não temos escolha. Tomem posição e não hesitem em disparar.

Os dezesseis militares avançaram, empurrando os pedestres.

- Recuem! Recuem! A ponte vai explodir.

A multidão, que presenciara a derrocada da Ponte Royal, estacou, enquanto alguns passavam as instruções.

- Se assim é, mais uma razão para nos apressarmos - gritou um energúmeno, investindo contra a barreira formada pelos soldados.

Soou um tiro e o homem caiu.

Uma nuvem de perplexidade envolveu os espectadores - militares franceses disparando sobre compatriotas! Por detrás da linha da frente, a multidão continuava, porém, a pressionar. E, em breve, as primeiras filas cederam. Um pequeno automóvel saltou e derrubou dois velhos, que caíram entre os soldados e a ponte; depois o veículo avançou, esmagando um deles. O acontecimento funcionou, então, como uma espécie de sinal; a multidão pôs-se de novo em marcha. Um, dois, três tiros ecoaram sem atingir ninguém. Em seguida, os soldados desapareceram, engolidos pela torrente humana.

Logo após a explosão da Ponte Royal, François Tavernier precipitara-se à procura do veículo, em que seguia a pessoa que lhe era mais cara na vida. Mas não o encontrou no Quai Barentin. Avançou pela ponte, servindo-se dos punhos e dos cotovelos, dando com ele, por fim; seguia como quem dispunha da vida inteira à sua frente. O contentamento invadiu Léa ao descobrir

Tavernier.

- Graças a Deus, chegou! Pensei que tivesse nos abandonado.

O recém-chegado substituiu Léa ao volante.

- A ponte vai explodir - informou em voz baixa.

- Ah...

- Cale-se - ordenou. - É inútil assustar os outros. Vamos tentar escapar.

Um soldado caminhava ao lado do automóvel.

- Passe a mensagem aos indivíduos que lhe pareçam seguros

- disse-lhe Taverriier. - A ponte vai ser dinamitada. Procurem apressar as pessoas sem que elas entrem em pânico.

O militar fitou-o sem compreender. O rosto sujo e marcado pelo cansaço não exprimia a mínima emoção. Embrutecido, porém, principiou a gritar, empurrando aqueles que seguiam adiante:

- A ponte vai explodir! A ponte vai explodir!

Como se recebesse uma chicotada, a multidão avançou. Separava-a da margem esquerda do Loire apenas umas dezenas de metros.

Tal como animais à aproximação de um tremor de terra, os refugiados batiam-se, repelindo os mais fracos, esquecidos de toda dignidade humana. Infelizes daqueles que caíam, pois ,logo morriam esmagados.

Nesse momento, ecoaram diversas explosões. Depois, no meio de um barulho ensurdecedor, a segunda ponte abateu-se nas águas do rio.

Decorrera apenas meia hora desde a destruição da Ponte Royal. Em pé junto do veículo, Léa e François contemplavam a catástrofe, sem conseguirem despregar os olhos daquele horror. Quantas pessoas estariam sobre a plataforma? Trezentas?

Quinhentas? Oitocentas? Ou mais? Embaixo, no leito do rio, os raros sobreviventes tentavam escalar montanhas de cadáveres, pilhas de ferragens e de pedregulhos. Alguns feridos, tombados sobre os pilares da ponte, chamavam por socorro, enquanto outros se afogavam nas partes mais profundas do Loire. Na capota de um veículo em chamas, um corpo de bebê assava lentamente.

- Vamos sair daqui - disse Tavernier, arrastando Léa para o automóvel.

Do leito do rio subia uma poeira escura.

Transitando por entre escombros, o carro rodou pela Avenue de Candaile. Em Saint-Marceau, metralhadoras francesas disparavam na direção do Quai de Prague e no dos Grands-Augustins. Perto de Notre-Dame-du-Val, Camille pediu para descer.

- Não é hora - resmungou Léa.

- Por favor.., tenho de vomitar.

François Tavernier brecou. Camille saiu do automóvel e afastou- se, vacilante.

- Deixe-me ajudá-la - ofereceu-se a sra. Le Ménestrel, descendo do carro.

Obrigada - murmurou Camille, limpando a boca no lenço sujo que ela lhe estendia.

Apoiada no braço da outra mulher, Camilie voltou.

- Mamãe, queremos fazer xixi - disse o menino.

- Está bem, meus filhos, venham depressa.

Afastaram-se alguns passos. A menina agachou-se, enquanto o irmão escarafunchava na braguilha. De repente, assobiando, um obus foi cair a uma dezena de metros do grupo. Com a lentidão de movimentos própria dos instantes inelutáveis, os ocupantes do automóvel viram a mãe e os dois filhos serem projetados para o ar, enquanto estilhaços se espalhavam por toda parte; e, depois, caírem por terra devagar, graciosos mesmo na morte.

Com um uivo de dor, a velha senhora saltou do assento, precipitando e para a filha, depois para a neta e logo para o neto, o mais querido ao seu coração. De braços afastados e mãos abertas, não cessava de ir de uns para outros.

François Tavernier inclinou-se sobre o corpo da sra. Le Ménestrel e ergueu-lhe a cabeça. Empalideceu ao tatear a ferida mortal.

Mesmo morta, conservava uma elegância infinita. Atravessada sobre as suas pernas jazia a filha, com a boneca nas mãos!

Parecia adormecida. Uma flor rubra de sangue alastrava-se sobre o vestido de algodão cor-de-rosa. O irmão caíra a certa distância de ambos, com a cabeça quase separada do corpo, o sexo despontando no calção.

Camille ia de um cadáver para outro, repetindo incansavelmente:

- Por minha culpa... por minha culpa...

Deixou-se cair no chão, debatendo-se numa crise nervosa, Léa agarrou-a pelos ombros, sacudindo-a, falou-lhe e, por fim, deu-lhe um par de tapas que a fizeram interromper os gritos.

- Não. A culpa não é sua. Não tem nada a ver com isso. Volte para o carro.

- Venha. Não devemos permanecer aqui - interveio Tavernier, dirigindo-se à velha senhora.

- Deixe-me, sr. Tavernier. Eles não podem ficar sozinhos. Ao tirá-los de mim, Deus tirou-me tudo.

- Não posso deixá-la só, minha senhora - insistiu ele.

- preciso, sr. Tavernier. Pense nas duas jovens que estão com o senhor e na criança que uma delas traz no ventre. Elas precisam do senhor. Eu não.

- Peço-lhe, minha senhora.

- Não insista.

A contragosto, François encaminhou-se para Léa e para Camille, que pegou no colo. "Como é leve", pensou. Depositou-a com suavidade no banco traseiro do automóvel e foi instalar-se ao volante.

- Não vem? - perguntou a Léa, que permanecia imóvel, com os olhos presos nos três corpos sem vida.

Passaram alguns aviões, mas não soltaram bombas.

Os soldados franceses tinham deixado de disparar em SaintMarceau. Atingindo Orleans pelo Faubourg de Bourgogne, os alemães não encontraram resistência. Derrubaram uma árvore na MotteSanguin para restabelecer a passagem sobre a ponte da estrada de ferro, que não fora destruída. Cerca das quatro da tarde, os primeiros tanques atravessaram o Loire por sobre os trilhos, reunindo-se aos que haviam conseguido atravessar a Ponte Jorge V antes que fosse pelos ares. Apesar da corajosa resistência oferecida pelas tropas da guarnição de Orléans, que, para defesa da ponte, dispunha apenas de uma velha peça de noventa milímetros calçada com tijolos, os assaltantes, superiores em número e mais bem armados, forçaram-nas a recuar para a Avenue Dauphine, abandonando no local muitos mortos, e colocaram três pequenos canhões na cabeceira da ponte.

Por volta de cinco horas, começaram a chegar a Croix-SaintMarceau os primeiros destacamentos inimigos, instalando metralhadoras em todos os cruzamentos. Apalermados, os raros habitantes que haviam permanecido na região saíram de seus porões, observando com espanto esses soldados vencedores. Tinham-lhes afirmado durante meses serem um bando esfaimado, descalço e sem vestuário. Uma mulher de certa idade, não conseguindo conter-se, foi apalpar o tecido do dólmã de um jovem oficial, que lhe sorriu, cumprimentando-a com delicadeza:

- Bom dia, minha senhora.

Estupefata, a mulher começou a soluçar, fugindo, ao mesmo tempo que dizia:

- Fomos enganados.

Durante esse tempo, soldados franceses entravam em Orléans através do Faubourg Bannier.

- Tenham cuidado! Os alemães já se encontram lá - preveniram-nos.

- Mas não é possível - admirou-se um tenente. - Os alemães estão em nossa retaguarda.

Teve apenas tempo para ordenar aos homens que tomassem posições de defesa e logo, pelo Boulevard Saint-Euverte, chegavam tropas inimigas motorizadas. Após breve troca de tiros, os franceses viram-se forçados a se render. O tenente foi morto juntamente com dois dos seus homens. Os alemães concentraram então os prisioneiros na Morte-Sanguin, num campo provisório, guardado por metralhadoras. À noite, novas levas de prisioneiros juntaram-se a eles.

Por toda parte se ouviam gritos de feridos e chamados dos grupos de socorro. Os canhões troavam, o fogo se alastrava.

Silenciara o crepitar das últimas metralhadoras francesas. Os dois fugidos do manicômio de Fleury esgueiravam-se por entre os escombros, soltando gargalhadas que gelavam a espinha dos sobreviventes. Malfeitores, evadidos das cadeias, pilhavam as raras lojas poupadas à fúria das chamas. Não havia água, eletricidade, nem pão. Tinha deixado de existir o presidente da Câmara e

Conselho Municipal. Só restava uma cidade abandonada e destruída.

Assim começava a primeira noite da longa ocupação alemã em Orléans.

 

Capítuto 15

Tarde da noite, depois de percorrer estradas secundárias, chegaram a La Trimouille, pequena aldeia da Vienne. No assento traseiro, de rosto alagado, em suores frios, Camille delirava. Ao léu, perto do rio, refugiados dormiam deitados no chão. Abriu-se a porta do café de uma das ruas, filtrando para o exterior uma tênue claridade amarelada. O estabelecimento estava lotado de gente. François Tavernier parou o automóvel e desceu. O cheiro da cerveja, do fumo e da sujeira o sufocou.

- Dê-me meio litro de cerveja - pediu ao dono, um bigodudo, encostando-se ao balcão molhado.

- Não há.

- Nesse caso, quero um conhaque.

- Também não há. Vendi tudo.

E rum?

- Nada. Não tenho mais nada. Nem mesmo laranjada. Beberam tudo o que tinha.

- Assim sendo, que me aconselha?

- Posso servir-lhe um anis.

Seja. Um anis.

François nunca bebera anis com tanto prazer. Encomendou outro e foi levá-lo a Léa, que se sentara nos degraus do café, diante da porta aberta do automóvel. Sem sequer agradecer, a jovem pegou o copo e bebeu com avidez.

- Perguntou onde poderemos encontrar um médico?

- Ainda não, Como está Camílle?

Léa encolheu os ombros sem responder.

François voltou ao café e perguntou ao dono do estabelecimento:

- Poderá indicar-me um médico?

- Não há médicos. Vignaud morreu e o substituto quebrou uma perna. Tem de ir a Montmorillofl ou a Blanc, que dispõem de hospitais.

- Qual é a cidade mais próxima?

- Montmorillofl. A doze quilômetros.

- Há algum hotel?

O homem riu com gosto.

Hotel!. . . Ele quer um hotel, vejam só! Há vários, de fato, mas não encontrará nem sequer um tapete onde deitar-se. Está tudo cheio até a boca, tanto mais que uma ordem, vinda ninguém sabe de onde, proíbe os civis de seguirem além de Montmorillon.

Deve haver aí umas cinqüenta mil pessoas andando a esmo pelas ruas.

- E em Blanc?

- Em Blanc é a mesma coisa. Além disso, a povoação foi bomhardeada e o comandante da guarnição mandou dinamitar a ponte.

- Venha depressa, François - chamou Léa nesse instante. - Acho que Camilie vai morrer.

O aparecimento intempestivo da jovem e o seu grito interromperam de chofre as conversas.

- Trazem um doente? - inquiriu a dona do estabelecimento, mulher gorda e de rosto azedo, encaminhando-se para eles e continuando a limpar um copo.

- Sim. Uma mulher grávida.

Talvez eu possa ajudar - sugeriu a mulher. - Quando chegarem a Montmorillon, atravessem a ponte velha e virem logo à direita na Rue du Puits-Cornet. A quarta casa à esquerda é de uma prima irmã minha, a sra. Trillaud. Digam-lhe que fui eu, Lucienne, quem os mandou procurá-la. Irá ajudá-los, se puder.

François Tavernier apertou-lhe a mão calorosamente.

- Obrigado, minha senhora, obrigado.

- De nada, de nada - resmungou a mulher.

A travessia de Montmorillon ficou-lhes para sempre na memória. Veículos de todos os tipos atulhavam ruas e praças. As igrejas haviam sido transformadas em dormitórios, tal como as escolas e os salões de festa.

Após vaguearem durante muito tempo sem que ninguém soubesse informá-los, acharam, por fim, a ponte velha e logo a estreita

Rue du Puits-Cornet.

Léa preparava-se para desistir de bater de novo, quando a porta por fim se entreabriu.

- Que deseja? - perguntou uma velhinha. Não são horas de incomodar ninguém.

- É a sra. Trillaud? Venho da parte de sua prima Lucienne.

A porta abriu-se.

- De Lucienne? Que quer ela?

- Ela não quer nada. Mas disse-nos que talvez a senhora pudesse nos auxiliar. Trago comigo uma amiga doente.

Que tem ela?

- Está grávida; desmaiou há horas e ainda não acordou.

Pobre moça! Entrem, entrem.

Tavernier entrou na cozinha transportando Camille, inanimada.

- O espaço não é lá muito grande - disse a mulher. - Tanto mais que tenho aqui uns primos de Paris, que chegaram ontem. Só disponho do meu próprio quarto.

- Mas... minha senhora...

- Não façam cerimônia. Não encontrarão mais nada, aliás. Nós, as mulheres, temos obrigação de nos ampararmos umas às outras. Ajude-me a mudar os lençóis.

Dentro de pouco tempo, Camille achava-se estendida na cama da sra. Trillaud, vestindo uma de suas camisolas, igual à que a boa mulher usava.

- Isto só não chega. Temos de encontrar um médico - decidiu ela. - pior é que os pobrezinhos não param atualmente. Vou primeiro à casa do dr. Soulard. Se ele ainda não tiver chegado, procurarei o dr. Rouland. Esse tem um gênio péssimo, mas é bom médico - comentou a anfitriã, pondo sobre os ombros uma velha capa. Depois prosseguiu: - Não demoro muito. Há café na cozinha, em cima do fogão, e pão dentro do cesto. Não tenho mais manteiga. Mas, em cima do guarda-louças, sobre a tina de barrela, há ainda alguns frascos de compota. Sirva-se de um.

Sentado à mesa da cozinha coberta por um oleado de xadrez azul, François Tavernier observava Léa, vendo-a molhar na tigela do café a sua terceira fatia de pão com compota de morango. Rodeavam seus olhos dois grandes círculos violáceos, e ela estava pálida e cansada.

- Não vai comer? - perguntou ela, de boca cheia, cobiçando a fatia em que o companheiro não tocara.

Sorrindo, este empurrou-a em sua direção.

- Obrigada - agradeceu Léa, apoderando-se do alimento com rapidez, como se temesse que François mudasse de idéia. Depois de engolir a última gota de café, a jovem encostou-se para trás, satisfeita. - Estava com tanta fome! - confessou.

- Eu vi. Você é uma comilona.

Soaram duas horas da manhã. Com os cotovelos apoiados ao tampo da mesa e a cabeça encostada nas mãos em concha, Léa divagava. Que diabo fazia nessa casa desconhecida, perdida nesse fim de mundo, na companhia de uma moribunda e longe das pessoas que amava? Seus pais deviam estar loucos de inquietação.

- Pare de me olhar desse modo! - exclamou Léa.

- Não será possível fazermos as pazes por momentos?

Agastada, a moça ergueu-se e começou a tirar a mesa; colocou as tigelas sobre a pedra da pia. François reteve-a quando ela lhe passou ao alcance.

- Por que motivo resiste, sua cabecinha de mula? Você não me ama, certo, mas gosta de fazer amor! Não sabe que é o melhor remédio para se evitar o medo? Ontem, menina, você teve bastante sorte, sem querer gabar-me; mas muitas mulheres levam anos, por vezes, para descobrir o prazer. Você foi feita para o amor, Léa. Não o rejeite.

Enquanto falava, as mãos de Tavernier vagueavam por sob a saia da jovem; seus dedos encontraram a fenda úmida e apertaram.

na docemente.

Com os olhos vagos e a respiração entrecortada, Léa deixava-o tocá-la, atenta ao prazer que lhe subia em vagas. Sem retirar a mão, ele deitou-a sobre a mesa, abriu as calças, ergueu as pernas da amiga e penetrou-a. Tal como na véspera, Léa gozou longamente. Permaneceram alguns minutos imóveis, fora do tempo, sentindo o coração bater com violência. Quando ele se retirou, experimentaram ambos um último espasmo de prazer. François compôs então a roupa desalinhada, ajudou a companheira a erguer-se e manteve-a durante muito tempo contra ele, murmurando-lhe palavras ternas, com os lábios mergulhados em seus cabelos.

- Minha bela namorada.., minha filha...

De corpo apaziguado, ela deixava-se embalar pela doçura da voz do amante.

Léa ajeitava o vestido quando a sra. Trillaud apareceu, acompanhada do médico.

- O dr. Rouland - apresentou a dona da casa.

- Onde está a doente?

A sra. Trillaud guiou-o até o quarto e Léa seguiu-os. A fadiga que marcava as feições do médico, encovando-lhe as faces, desapareceu como por encanto mal ele se achou diante da enferma. Retirou as cobertas e auscultou-a cuidadosamente.

- Há muito tempo está neste estado? - perguntou, desembaraçando-se do estetoscópio.

- Não sei bem - respondeu Léa. - Suponho que desde as seis horas da tarde.

- Já teve algum outro desmaio assim tão prolongado?

- Tão prolongado, não. Mas aconteceu-lhe muitas vezes, a intervalos maiores ou menores. O médico que a assistia em Paris recomendou que permanecesse deitada, tanto por causa do coração como por causa da criança.

- Mostre-me os medicamentos que a doente está tomando.

Léa saiu e foi ao carro em busca da bolsa de Camille. Estendeu ao médico a receita e as embalagens dos remédios.

- Sim. . . está bem. Mas esses remédios não são fortes o bastante. Vou aplicar-lhe uma injeção para fortalecer seu coração. Não me responsabilizo por nada, no entanto. Seria necessário hospitalizála, mas não existe nenhuma vaga.

Minutos depois da injeção, Camille abriu as pálpebras, embora estivesse cansada demais para olhar em volta. François sentou-se na beira do leito e tomou entre as suas as mãos frágeis da doente.

- Tudo correrá bem agora, Camille. Só precisa de repouso.

- As crianças, meu Deus. . . as crianças. . . - gemeu ela.

O dr. Rouland levou Léa para um canto.

- É parente dela? - perguntou.

- Sim - mentiu a jovem.

- Estou bastante preocupado. O coração dela pode parar de um momento para outro. É necessário prevenir o marido, os pais.

Ora, é tolice o que eu estou dizendo. O marido está na frente de combate, por certo, e os pais. . . os pais, sabe Deus onde!

Ia levá-la para a casa do sogro, na Gironde.

- Ela não pode viajar. Se conseguir vencer a crise, terá de manter-se imobilizada até o parto.

- Quer dizer que teremos de ficar aqui?

O médico não respondeu. Retirou da maleta os apetrechos necessários para outra injeção. Logo Camille fechou os olhos. O pulso, embora rápido, tornara-se regular. O médico arrumou os instrumentos, e seu rosto tornou-se novamente sombrio, devido ao cansaço.

- Alguém terá de ficar permanentemente junto dela. Assim que ela acordar, dê-lhe três gotas disto num copo com água. Em caso de crise, aumente a dose para dez. Voltarei no decorrer do dia.

- Não se preocupe, doutor - interveio a sra. Trillaud. - Eu cuidarei dela. De doentes eu entendo.

- Até logo, sra. Trillaud. É uma boa mulher. Vá descansar - acrescentou, dirigindo-se a Léa. - Não está com boa aparência.

François Tavernier acompanhou o médico até a ponte velha. Na volta, encontrou Léa já adormecida no assento traseiro do automóvel. Assim adormecida, ela se assemelhava a uma garotinha amuada; ele ficou a contemplá-la, emocionado, durante muito tempo.

Com cuidado para não despertá-la, ele instalou-se no banco da frente, enfiando as pernas compridas pela janela aberta.

Léa acordou com os gritos e o ruído das pás de bater roupa das mulheres que lavavam roupa à beira do rio; eram cerca de doze, ajoelhadas em bancos forrados de palha. Não muito longe delas, François Tavernier, sentado em cima de um bote emborcado, observava o Gartempe deslizar; naquele ponto, ele borbulhava em cima das pedras do leito. Um pouco mais adiante, plantas aquáticas floridas balançavam-se ao sabor da corrente. Nesse instante, a sra. Trillaud apareceu no limiar da porta e bateu as palmas, avisando:

O desjejum está pronto!

Na cozinha cheia de sol, sobre o oleado de xadrez azul, dentro de grandes tigelas de faiança grossa pintadas de branco e orladas a vermelho, fumegava o café; seu aroma, misturado ao cheiro apetitoso do pão torrado, fez as narinas de Léa estremecerem.

Venham comer, o café vai esfriar. Hoje não temos manteiga, mas vocês vão adorar a geléia de marmelo.

- Como dormiu a nossa amiga? - perguntou François.

Muito bem. Dei-lhe as gotas há pouco, quando acordou. Sorriu-me gentilmente e voltou a adormecer.

- Como poderemos agradecer-lhe tudo quanto tem feito por nós, sra. Trillaud?

- Ora, ora, isso não é nada! Contudo, se ficarem aqui por alguns dias, serei obrigada a pedir-lhes uma contribuição para as despesas. Infelizmente, não sou rica.

- Isso nem é preciso dizer, sra. Trillaud - disse Léa, devorando a torrada.

- Ouviu as notícias? - perguntou François Tavernier, indicando o bojudo aparelho de rádio que imperava sobre o aparador, entre fotografias de família, um ramo de rosas numa jarra azul e grandes cartuchos de obuses cinzelados da Guerra de 1914-1918.

Não. Tive receio de acordar a gente da casa, porque é difícil sintonizar o rádio.

- Verei se posso consertá-lo.

- Ah, o senhor entende de rádios!

- Um pouco.

Onde posso fazer minha toalete? - perguntou Léa.

- Em cima, perto do meu quarto. Não é muito confortável, há apenas uma cabine. Pus toalhas limpas. Leve esta chaleira de água quente. Não temos água encanada. O seu marido já subiu com as malas.

Ele não é meu marido! gritou Léa com uma violência que espantou a boa mulher.

Desculpe-me. julguei que fosse.

O dr. Rouland voltou cerca de onze horas, e ficou agradavelmente surpreso com o estado da paciente. Camille, lavada e penteada por Léa, estava reclinada na cama com a ajuda de algumas almofadas, já sem as faces cavadas da véspera. Apenas as olheiras e o cansaço do olhar lhe traíam o sofrimento.

- Estou muito contente com a senhora - declarou o médico, depois de auscultá-la. - Seu estado é menos grave do que julguei a princípio. Mas não deve mexer-se de forma alguma. Vou mandar- lhe uma irmã que cuida de doentes. Vai lhe aplicar as injeções que eu lhe receitar. Deixe que a tratem e em breve estará curada.

Quando poderemos retomar a viagem?

- Por agora, é bom nem pensar nisso!

- Mas, doutor...

- Não há mas nem meio mas. Tem de ser assim. Do contrário, porá em risco a vida de seu filho e talvez mesmo a sua. Já é milagre o fato de não tê-lo perdido ainda. Seja paciente. São apenas mais dois meses de espera.

O dr. Rouland desceu as escadas e passou para a cozinha, onde aviou a receita. A grande peça estava abarrotada de primos de

Paris. Ajudavam a parente a fazer o almoço, relatando pela milésima vez as peripécias da viagem movimentada ou observando as manobras de François Tavernier, que consertava o aparelho de rádio.

- Acho que já está funcionando - disse ele.

Após alguns estalidos, ouviu-se uma voz.

Na sala, todos se calaram. Era meio-dia e meia de 17 de junho de 1940.

Franceses:

Respondendo ao apelo do senhor presidente da República, assumo, a partir de hoje, a direção do governo da França. Seguro do afeto do nosso admirável exército, o qual se bate com um heroísmo digno das suas velhas tradições militares contra o inimigo superior em número e armamentos, seguro de que, através da sua magnífica resistência, esse exército cumpriu o dever face aos nossos aliados, seguro do apoio dos antigos combatentes que tive a honra de chefiar, seguro da confiança de todo o povo, faço entrega da minha pessoa à França, a fim de minorar a sua infelicidade.

Nestas horas dolorosas, penso nos infelizes refugiados que, na mais extrema penúria, vagueiam pelas nossas estradas. Exprimolhes a minha piedade e solicitude. É de coração apertado que hoje vos comunico ser preciso depor armas. Na noite passada, dirigi-me ao adversário para saber se ele estaria disposto a procurarmos em conjunto, com camaradas de armas, finda a luta e em condições honrosas, os meios necessários para que cessem as hostilidades. Que todos os franceses se reúnam ao governo ao qual presido durante tão duras provações e ponham de lado a angústia, obedecendo apenas à sua fé nos destinos da pátria."

Todos estavam de cabeça baixa quando a voz trêmula e cansada se calou. As lágrimas corriam pelas faces de muitos deles, lágrimas de vergonha na maioria, embora, pouco a pouco, os dominasse um sentimento covarde de alívio.

Pálido, de olhar duro e seco, Tavernier desligou o aparelho e saiu de casa sem dizer nada.

De todo o discurso, Léa retivera apenas uma frase: . . . ser preciso depor armas A guerra terminava e Laurent ia regressar. Subiu os degraus de quatro em quatro para dar a notícia a Camilie, que desatou a chorar.

Mas. . . por que está chorando? A guerra acabou! O marechal Pétain disse! Laurent vai voltar para casa.

- Sim, talvez. Mas perdemos a guerra.

- Estava perdida há muito tempo.

- Sem dúvida. Mas rezei tanto.

- . . . que pensou que Deus iria ouvi-la. Orações. . . orações.

Não é com preces que se ganham guerras, mas sim com aviões, carros de assalto e chefes à altura. E você viu no céu alguns aviões franceses? Viu carros de assalto nossos pelas estradas? E os nossos chefes militares? Viu-os à frente das tropas? Todos aqueles por quem passamos estavam fugindo. Já se esqueceu daquele coronel verde de pavor, em sua limusine atulhada de bagagem, que dizia: "Abram caminho! Abram caminho! Vou ocupar o meu posto"? Ah, o seu posto! Talvez na Espanha! E os soldados franceses? Não viu os nossos belos militares com os seus uniformes desguarnecidos, as armas fora de moda, sujos, com os pés ensangüentados, pensando apenas numa coisa, fugir?

- Você está exagerando, Léa. Estou certa de que a maior parte deles lutou valorosamente. Lembra-se dos que defendiam a ponte em Orléans? Por todo lado, na França, houve homens que lutaram e lutaram bem, e muitos deles morreram.

- Morreram inutilmente.

- Inutilmente, não. Pela honra.

- Ora, pela honra! Não me faça rir. A honra é um conceito aristocrático, e nem toda a gente dispõe de meios para ter honra. O operário, o camponês e o lojista, que patinam no lodo e recebem bombas na cabeça ou balas no corpo, esses querem lá saber da honra! O que querem é não morrer como cães e que os conflitos cessem seja como for, não importa a que preço. Não entendem essa guerra, nem a desejaram.

- Não a desejaram, é certo, mas não é verdade que pretendam vê-la terminada seja a que preço for.

- Minha pobre Camilie! Vejo que você se ilude muito acerca da natureza humana. Vai ver como todos vão aceitar o fim das hostilidades.

- Não acredito nisso. Deixe-me. Estou cansada.

Léa encolheu os ombros e desceu ao térreo.

- . . . com ele estamos salvos.

- . . . já imaginou, ele entrega sua pessoa à França.

- . . . um verdadeiro patriota.

- . . . com o marechal no governo, nada temos a temer...

- . . . poderemos voltar para casa.

- . . . já é tempo de retomar os negócios.

- Receio que os alemães se mostrem muito duros conosco.

A frase do dr. Rouland provocou um silêncio de perplexidade entre os presentes.

- Por que diz isso, doutor?

- Porque os alemães venceram em todas as frentes e ainda não esqueceram, por certo, as duras condições impostas pelo tratado de paz de 1918.

- Era natural, pois tinham perdido a guerra.

- Como nós, agora.

À noite, já bem tarde, François Tavernier voltou embriagado para a casa da sra. Trillaud, que o aguardava na cozinha, fazendo tricô.

- Acho que "reguei" demais a nossa derrota, sra. Trillaud. Mas não é todos os dias que se tem a oportunidade de testemunhar uma derrota como esta. Quer que lhe diga? A Alemanha. . . a Ale. manha é um grande país e Hitler, um grande homem. Viva a Alemanha!

Viva Hitier!

- Cale-se! Do contrário, porá em alvoroço todo o quarteirão

- disse a mulher, obrigando-o a sentar-se. - Aposto que ainda não comeu nada. Vou dar-lhe um prato de sopa de couve. Nada melhor para transformar um homem.

- A senhora é muito boa. Mas a Alemanha. . . creia em mim...

- Sim, já sei: é um grande país. Vamos, tome sua sopa, senão esfria.

Depois de engolir a última colherada, Tavernier desabou sobre a mesa, deitando a cabeça dentro do prato vazio. Com suavidade, a anfitriã o retirou dali.

- Pobre homem! - murmurou, apagando a luz da cozinha.

No dia seguinte pela manhã, ao descer, a sra. Trillaud foi encontrar François já barbeado e penteado fazendo café.

- Bom dia, sra. Trillaud. Chegou cedo demais. Queria fazer- lhe a surpresa de encontrar o seu desjejum pronto quando descesse.

Agora de manhã, arranjei leite, manteiga e pão fresco.

Bom dia, sr. Tavernier. Como conseguiu isso?

- Ontem, durante a ronda pelos cafés de Montmorilixrn, fiz algumas amizades. Lamento muito o que aconteceu a noite passada.

Pode me desculpar?

- Não falemos no assunto; já está esquecido. Tenho a certeza de que o meu defunto marido também teria se embriagado.

- Obrigado, minha senhora. Como vai a doente?

- Muito bem. Precisa apenas de calma e de repouso.

- Vamos comer. O café está pronto. Hoje vou à Câmara saber onde está o meu regimento. Se não conseguir, voltarei a Paris.

- E vai deixar as duas senhoras sozinhas?

- A srta. Delmas pode muito bem se arranjar sem mim. ontem, a linha telefônica estava cortada, mas talvez hoje já funcione. Se assim for, telefonarei aos pais dela para dar notícias. Conhece alguma loja onde eu possa comprar roupas de baixo, camisas e um terno?

- Aqui não há grande coisa. Mas tente na Rochon ou na Guyonneau. A primeira fica no largo do mercado coberto e a segunda, na esquina da rua principal com a avenida.

- Outra coisa - prosseguiu Tavernier -, sabe de algumapartamento ou casa para alugar destinada às senhoras?

- Neste momento, não há nada. Os primeiros refugiados a chegar instalaram-se nas raras casas de aluguel existentes. Mas daqui a dias a situação ficará mais clara. As pessoas falam em voltar para casa. Entretanto, as senhoras poderão continuar aqui.

- É muita amabilidade sua, sra. Trillaud, mas até o seu quarto lhe roubamos.

- Ora! Na minha idade não é preciso dormir muito. Basta-me um colchão em qualquer canto.

- É reconfortante encontrar pessoas como a senhora.

- Bom dia - saudou Léa, surgindo na cozinha ainda de quimono, com os cabelos desalinhados e o rosto sonado.

- Bom dia, senhorita. Dormiu bem?

- Não muito bem. Camilie agitou-se a noite toda.

- Como está ela esta manhã? - quis saber François.

- Acho que bem, pois disse ter fome.

- Bom sinal. Vou levar-lhe a bandeja do desjejum - disse a sra. Trillaud, erguendo-se.

Deixe, sra. Trillaud. Eu trato disso - ofereceu-se François Tavernier.

Com destreza, dispôs sobre a bandeja rústica de madeira uma bela xícara de porcelana, o cesto cheio de fatias de pão cortadas fino, um pedaço de manteiga, açúcar e compota. Para completar essa refeição apetitosa, acrescentou-lhe uma tigela transbordante de cerejas e uma rosa subtraída à jarra azul. Contente com a obra, François exibiu a bandeja para as duas mulheres.

- Nada mal, não é verdade? - perguntou.

- Maravilhoso - afirmou a sra. Trillaud.

- Acha que Camille vai comer tudo isso? - ironizou a jovem.

- Esqueceu-se do café e do leite - observou a anfitriã, colocando na bandeja um jarrinho com leite e outro maior com café.

- Como camareiro, tenho ainda muito que aprender - confessou Tavernier.

Na cozinha, com ar negligente, Léa debulhava ervilhas sob o olhar malicioso da dona da casa e a expressão admirada de um primo de rosto bexiguento.

- Não me esperem para o almoço - avisou François, entrando na cozinha. - Eu me arranjarei.

- Aonde vai? - perguntou Léa.

- À procura de uma garagem para o carro, à Câmara, comprar algumas roupas e telefonar a seus pais e ao sr. d'Argilat.

- Vou com você - decidiu Léa, abandonando as ervilhas.

- Mas você ainda não está pronta. Venha me encontrar no correio, se quiser.

- Mas...

François já deixara a cozinha, porém. Léa voltou a sentar-se e, com raiva, retomou a sua tarefa de debulhar ervilhas.

Quando Tavernier voltou, cerca das cinco da tarde, envergando um terno azul-marinho de corte incerto, Léa passava a ferro um vestido, escutando o rádio.

- Onde se meteu? Procurei-o por toda parte.

- Procurou mal, com certeza. A cidade não é assim tão grande. Passei três horas no correio tentando telefonar para Paris e depois para seus pais. Por fim, consegui falar com eles, mas a ligação logo foi interrompida.

- Como estão meus pais? - gritou Léa, largando o ferro de passar.

- Acho que bem. Estavam preocupados com você, mas os tranqüilizei.

- Teria gostado tanto de falar com minha mãe!

- Tentaremos de novo amanhã em casa do dr. Rouland. Encontrei-o na saída do correio e ele pôs o telefone ao meu dispor. Não está sentindo um cheiro esquisito?

- Ai, o meu vestido! Por sua culpa...

Tavernier desatou a rir diante de tal injustiça.

- Que disseram no rádio? - perguntou, girando os botões do aparelho.

- Nada. É uma chatice só. Nem transmitem música de boa qualidade. Veja o meu vestido! E agora, o que vou fazer?

- No lugar em que o pano queimou poderá colocar um bolso - sugeriu Tavernier.

- Boa idéia! - exclamou Léa, satisfeita. - Mas não tenho tecido igual - acrescentou, de novo aborrecida.

- Como o vestido é branco, ponha bolsos coloridos e botões da mesma cor. Ficaria muito bem.

Léa fitou-o com espanto.

- Não é nenhum absurdo, não, senhor. Não sabia que se interessava por moda.

- Tudo me interessa. Não sou como você.

- Que quer dizer?

- Que você nem sequer notou que eu estou vestido segundo a última moda de Montmorillon.

- Que, aliás, lhe fica muito bem - comentou Léa, após uma olhada rápida e indiferente.

- Agradeço o cumprimento. Vindo de você, fico comovido.

- Pare de mexer nos botões do rádio!

- Estou procurando a emissora londrina. Quero saber em que pé está a guerra. Talvez os ingleses estejam mais bem informados do que nós.

"Esta é a Rádio Londres. . . E o general de Gaulie quem lhes fala.

- Quem é o general de Gaulle? - quis saber Léa.

- Cale-se! Digo depois.

"Os chefes militares, que há vários dias se encontram à testa dos exércitos franceses, formaram um governo. Esse governo, alegando a derrota das nossas tropas, entrou em contato com o inimigo para que cessem as hostilidades.

É certo que fomos e estamos subjugados pela força mecânica, terrestre e aérea do inimigo. Muito mais que seu contingente, foram os carros de assalto, os aviões e a tática empregada pelos alemães que surpreenderam os nossos chefes, a ponto de os conduzirem à situação em que hoje se encontram.

Mas será que foi dita a última palavra? Teremos de perder a esperança? Será a derrota definitiva? Não!

Acreditem em mim, em mim que lhes falo com conhecimento de causa, quando digo que nada está perdido para a França. Os mesmos meios que nos venceram poderão dar-nos um dia a vitória. Pois a França não está sozinha! Não está só! Tem atrás de si um vasto império.

Poderá reunir-se ao império britânico, que detém os mares e prossegue na luta. Tal como acontece com a Inglaterra, a França poderá utilizar sem limites a indústria dos Estados Unidos.

Esta guerra não se confinou ao infeliz território do nosso país. Esta guerra não se decidiu com a batalha da França. Esta guerra é um conflito mundial. Todos os erros, todos os atrasos, todos os sofrimentos não impedem que existam no mundo os meios necessários para um dia esmagarmos os nossos inimigos. Hoje avassalados pela força mecânica, poderemos vencer futuramente por meio de uma força mecânica superior. E estará aí o destino do mundo.

Eu, general de Gaulie, atualmente em Londres, convido os oficiais e os soldados franceses que estão em território britânico ou que aqui estarão com as suas armas, convido os engenheiros e os operários especializados das indústrias de armamento que estão em território britânico ou que aqui estarão, a entrarem em contato comigo. Aconteça o que acontecer, a chama da resistência francesa não deve extinguir-se e não se extinguirá.

Tal como hoje, falarei amanhã através da Rádio Londres."

Pensativo, François Tavernier desligou o aparelho e começou a andar de um lado para outro. Sentada a um canto, a sra. Trillaud, que chegara à cozinha no início do discurso sem que tivessem notado, enxugava os olhos na ponta do avental.

- O que tem, minha senhora? - inquiriu Léa.

- Nada. . . é de alegria.

- Alegria?! - estranhou Léa.

- Sim. . . este general . . . como se chama ele?

- De Gaulie.

- Sim, é isso, De Gaulie. . . disse que a chama da resistência francesa não se extinguirá.

- Ora, que significa isso? Ele está em Londres, não na França. E não é na Inglaterra que se encontram os alemães, mas sim aqui. Se pretende continuar a combater, então que volte em vez de abandonar covardemente o posto.

- Não diga asneiras, Léa - interveio Tavernier. - Não sabe o que está dizendo. De Gaulle é um homem sincero e corajoso. Conheci-o quando ele era secretário de Estado da Defesa Nacional. Deve ter refletido durante muito tempo antes de lançar um apelo' que o coloca fora da lei, ele que, por tradição militar, é um homem acostumado à obediência.

- O senhor vai encontrar-se com ele? - perguntou a dona da casa.

- Não sei. Tudo depende do desenrolar dos acontecimentos. Mas, primeiro, tenho de encontrar o meu regimento. Não vou ficar para o jantar; vou jantar com o presidente da Câmara.

- E eu? Que faço?

- Você? Como amiga dedicada, cuide de Camille - replicou Tavernier, despedindo-se com uma saudação irônica.

No dia seguinte, Léa conseguiu falar com os pais pelo telefone. Chorou ao ouvir a voz doce de Isabelle e a do pai, embargada pela emoção. Que alegria escutar de novo, também, o sotaque de Ruth! Mesmo as escassas palavras trocadas com Françoise e com Laure lhe deram prazer. Não se cansou de fazer perguntas sobre a propriedade, acerca dos tios, das tias e dos primos. Descobria, de repente, que amava a todos. Gostaria de ter descrito à mãe os horrores dos bombardeios, a morte de Josette, a morte do assaltante que quisera roubá-las a expressão da velha perante os cadáveres da filha e dos netos, a doença de Camille, a sua própria aventura com François, etc. Mas conseguira repetir apenas:

- Ah, mamãe, se você soubesse se soubesse.

- Logo que seja possível, eu e seu pai iremos buscá-la, minha querida.

- Isso, Isso, mamãe, venha. Sinto muito a sua falta. Tenho tanto que contar! E senti tanto medo! Pensava em você muitas vezes, me perguntando o que faria em meu lugar. Mas nem sempre fiz o que você faria. Portei-me egoisticamente como uma criança mimada. Mas logo a verei e poderei dormir na minha caminha no quarto das crianças, E, como antes, você virá conversar comigo antes de se deitar e carregar-me no colo como quando eu era pequena. E então vou sentir o seu perfume e acariciar os seus lindos cabelos. Como gosto de você, mamãe! Tive tanto medo de não voltar a vê-la quando tudo queimava à nossa volta! Os bombardeios são horríveis, matam crianças, aquela pobre gente. . . mamãe.

Os soluços impediram Léa de prosseguir. Com doçura, François tirou-lhe o fone das mãos e forneceu a Pierre Delmas o endereço da filha e o número do telefone do dr. Rouland,

Depois de agradecer ao médico, acompanhou Léa até em casa.

Caía a noite e nenhuma luz brilhava nas ruas atulhadas de veículos. O clima estava suave. Ao atravessarem a ponte velha, Léa observou:

- Sente-se cheiro de água.

Gostava daquele odor de rio, mistura de ervas, de peixe e de lodo. Chegaram em frente à casa da sra. Trillaud

- Não quero entrar ainda. E se fôssemos passear no campo? Não é muito longe. Fica no final do caminho.

- Como quiser - concordou Tavernier.

A jovem tomou-lhe o braço.

Caminharam devagar por entre dois muros baixos, atrás dos quais se estendiam as hortas. No fim do caminho, passaram por algumas casas muito danificadas, O limiar das portas estava repleto de detritos. Um forte cheiro de pocilga os fez acelerar o passo

Agora, os muros davam lugar a sebes. Algumas delas, floridas, perfumavam o ar. O caminho se fazia cada vez mais estreito. Em dado momento, Léa arrastou o companheiro na direção de um pequeno prado, no meio do qual se erguia uma cabana sob um enorme carvalho.

Quando a jovem empurrou a porta, envolveu-os um forte aroma de feno.

- É a minha casa: descobri-a ontem. Senti-me tão bem, havia aqui tanta tranqüilidade e um cheiro tão bom, tal como em Montillac, que voltei hoje com os meus livros - esclareceu Léa, deixando-se cair sobre a palha cheirosa.

François permaneceu em pé, imóvel, procurando adivinhar o que pretendia dele aquela garota caprichosa e temendo cometer qualquer deslize que a levasse a assumir de novo as suas atitudes duras e distantes. Surpreendera-o agradavelmente a disposição de Léa após saírem do consultório do dr. Rouland. O seu único desejo eta tomá-la nos braços. Não no propósito de fazerem amor, mas sim pela mera felicidade de senti-la contra si, mesmo sabendo que pensava em outro homem.

Não fique aí plantado! Venha para perto de mim. Parece que tem medo de mim. "Tenho motivos para isso", pensou Tavernier, indo deitar-se sobre o feno, ao lado dela.

Ficaram silenciosos durante um longo momento.

- Por que não me beija? - disse Léa, por fim.

- Pensei que isso lhe desagradasse.

- Não sei. Abrace-me.

Os beijos dele eram suaves, de início, os gestos, ternos.

- Com mais força - incitou Léa. - Beije-me com mais força.

Amaram-se durante toda a noite, até quase a dor. Por fim, adormeceram enlaçados; em seus corpos nus viam-se as marcas dos dentes e dos arranhões, às quais aderiam ervas secas, coladas ao suor.

Despertou-os o tamborilar dos pingos de chuva. Estava frio. François cobriu os ombros de Léa com seu casaco azul. Chegaram encharcados na casa da sra. Trillaud.

- Já estava preocupada. Por onde andaram? Não deviam pregar-me tais sustos. Vejam em que estado ficaram! Vão ficar doentes. Não tem juízo, sr. Tavernier? Essa moça está tremendo de frio. Como se já não bastasse uma doente resmungou a boa mulher.

Retirou do armário um cobertor, no qual envolveu Léa, que batia o queixo. Preparou-lhes vinho quente. O casaco de François fumegava em frente do fogão aceso, pendurado no espaldar de uma cadeira.

- Tome - disse a dona da casa. - Aqui tem umas calças e uma camisa do meu falecido marido. Vá trocar de roupa.

Sem responder, Tavernier pegou a roupa que a sra. Trillaud lhe estendia.

No final da tarde, Tavenier anunciou a Camilie e a Léa o seu propósito de partir.

- E para onde vai? - perguntou Léa em tom brusco.

- Para Paris.

- Então vai nos deixar sós?

- Estão em segurança aqui. A sra. Trillaud prometeu cuidar de vocês e procurar um alojamento conveniente onde possam se instalar enquanto o dr. Rouland achar que Camilie não deve deslocar-se. Têm dinheiro?

- Sim. Dinheiro não é problema. Obrigada por ter pensado nisso, François.

- Sr. Tavernier, sr. Tavernier, venha depressa! O general de Gaulle vai falar de novo - gritou a sra. Trillaud do fundo da escada.

- Gostaria de ouvir o que ele diz - suspirou Camilie.

François debruçou-se sobre a cama, ergueu Camille num gesto vigoroso e desceu os degraus com precaução. Instalou-a na cozinha,

- na cadeira de vime da dona da casa. Na sala, uma dezena de pessoas atentas escutava aquela voz vinda de um país livre, a voz portadora da esperança:

"A esta hora, todos os franceses já perceberam que as formas habituais do poder desapareceram. Face à perplexidade do espírito de todos os franceses, face à liqüefação do governo caído sob o jugo inimigo, face à possibilidade de fazer funcionar as nossas instituições, eu, general de Gaulle, soldado e chefe francês, estou consciente de me exprimir em nome de toda a França.

E é em nome da França que declaro formalmente o que se segue: todo francês ainda na posse de armas tem o estrito dever de prosseguir a resistência. Depor armas, evacuar posições militares, concordar em submeter ao domínio inimigo a mais ínfima parcela de território francês serão considerados crime de lesa-pátria.

A esta hora, falo sobretudo para o norte da África francês, o norte da África intacto.

O armistício italiano não passa de uma armadilha grosseira. Na África de Clauzel, de Bugeaud, de Lyautey ou de Noguès, todo aquele que tiver honra tem o dever absoluto de recusar-se a cumprir os termos impostos pelo inimigo. Não se pode tolerar que o pânico de

Bordeaux transponha o mar.

Soldados da França, onde quer que estejais, erguei-vos!"

Durante a noite, François Tavernier deixou a pequena cidade.

 

Capítulo 16

A assinatura do Armistício, na noite de 24 de junho de 1940, lançou Camilie e Léa nos braços uma da outra. "A guerra terminou e

Laurent vai regressar", foi o primeiro pensamento de ambas. Em seguida, porém, a dúvida, o receio, a vergonha substituíram pouco a pouco o impulso inicial. Na verdade, somente Camille se sentia envergonhada; Léa encarava o Armistício apenas como a volta à existência rotineira. Ávida de viver, recusava-se a analisar a situação. A guerra acabara, ponto final. Tudo recomeçaria como antes. Como antes?. . . Sabia estar mentindo a si própria, pois tudo seria diferente daí para a frente. Tinham acontecido todas aquelas mortes inúteis e horríveis, havia o caso do homem morto por suas próprias mãos e cuja lembrança a fazia erguer-se na cama, gritando. Nesses momentos, só se acalmava diante da doçura maternal de Camille, que, sem o saber, empregava as mesmas palavras de Isabeile

Delmas:

- Não é nada, minha querida. Estou aqui. Não tenha medo. Acabou. Vamos, durma.

E Léa voltava a dormir, aninhada contra Camilie, murmurando:

- Mamãe!.

Não, nada seria como antes. Além de tudo, um homem a transformara em mulher em meio aos horrores vividos. E isso ela não se perdoava com facilidade, Desde o dia 19 de junho não conseguia ligar para Montillac. Finalmente, no dia 30, ouviu a voz do pai no outro extremo do fio. Talvez devido à distância ou à comunicação deficiente, a voz de Pierre Delmas pareceu-lhe a de um velho hesitante, abafada; ele repetia as mesmas palavras sem cessar:

- Tudo vai bem... tudo vai bem...

Houve um longo silêncio quando Léa pediu para falar com a mãe.

- Alô! Alô! Não desligue.

- Alô! Léa?

- Que alegria em ouvi-la, Ruth! Como vai? Passe o telefone para a mamãe. Receio que cortem a ligação. Alô! Está me ouvindo?

- Sim, estou.

- Passe para a mamãe.

- Sua mãe não está. Foi a Bordeaux.

- Ah, que pena! Gostaria tanto de ouvi-la! Isso me faz tão bem! Dê-lhe um grande beijo por mim. Não se esqueça de lhe dizer que penso muito nela e que a amo com muita ternura. Tentarei telefonar de novo durante esta semana. Alô! Alô! Ah. . cortaram a ligação!

Ao desligar, Léa experimentou tamanha sensação de angústia que o suor lhe cobriu a fronte e as têmporas, provocando-lhe coceira na cicatriz da sobrancelha.

- Tenho de voltar para casa - murmurou, erguendo-se da cadeira do consultório do dr. Rouland.

O médico entrou no gabinete nesse instante.

- Conseguiu falar com seus pais?

- Consegui, sim, muito obrigada. Quando é que Camille poderá viajar, doutor?

- Não antes do parto. Seria perigoso demais.

Quero voltar para casa. É muito importante.

A saúde da sua amiga e do filho são ainda mais importantes, sem dúvida.

- Como sabe? Tenho certeza de que meus pais precisam de mim. Tenho de ir.

- Há alguém doente?

- Não sei. Mas sinto que devo ir. Sinto-o, está ouvindo?

- Sim, estou ouvindo. Acalme-se. Sabe muito bem que não pode partir.

- Mas o senhor está aqui! E também a sra. Trillaud. Além disso, Camille está melhor, já que a autorizou a levantar-se da cama.

- Isso não basta. Só a sua presença a impede de entregar-se ao pânico. Ela gosta tanto de você que lhe oculta suas inquietações e seus males físicos Não é pelo fato de ter-lhe permitido dar alguns passos que o seu estado deixa de ser crítico. Além do mais, devido à fadiga, arrisca-se a ter um parto prematuro. Seja paciente, peço-lhe. Há semanas e semanas que sou paciente. Não agüento mais.

Quero ir ver minha mãe.

Deixou-se cair na cadeira, com a cabeça entre as mãos, e chorou como uma criança.

- Quero partir. Deixe-me partir, doutor, peço-lhe.

O médico era tão hábil para cuidar de doentes como desajeitado diante de uma cena de lágrimas, sobretudo da parte de uma jovem bonita.

Depois de várias tentativas infrutíferas, preparou-lhe um calmante e conseguiu que ela o tomasse. E, sentindo-se ele mesmo com os nervos esgotados, engoliu também uma boa porção.

- Vamos, não chore mais. . . de nada adianta chorar. . . vai ficar doente.

Quando Léa voltou para a casa de sua anfitriã, a boa mulher. diante de seu ar desfigurado e de suas mãos escaldantes, obrigou-a a deitarse. Durante a noite, a febre chegou a quarenta graus. A sra. Trillaud correu para chamar o médico, que se revelou impotente para diagnosticar-lhe o mal.

Léa delirou durante três dias, chamando pela mãe, por Laurent e por François Tavernier. Depois, tão subitamente como viera, a febre desapareceu, deixando-a fraca e emagrecida. Nesse tempo, Camilie nem por um instante deixou a cabeceira da amiga, apesar das admoestações do médico e da sra. Trillaud.

Uma semana mais tarde, Léa, totalmente restabelecida, foi nadar no Gartempe, num lugar chamado Ilettes. E, naquela mesma noite, Camille lhe disse:

- O dr. Rouland acha que já posso partir para RochesBlanches.

De verdade!? - gritou Léa.

- Sim, se viajarmos com cuidado. Um primo da sra. Trillaud incumbiu-se de mandar fazer a revisão do automóvel e de ver se arranjava gasolina. Partiremos quando você quiser.

- Que maravilha! Vou ver minha mãe de novo.

Camilie pousou na amiga o olhar bondoso.

Ela parece gostar mesmo de mim", pensou. "Que pateta!"

- Vamos partir, sra. Trillaud! Camilie já pode viajar - exclamou, precipitando-se para a anfitriã, que entrava na cozinha com um enorme cesto de legumes no braço.

Surpresa, a boa mulher virou-se para Camille:

- Mas, minha filha.

Interrompeu-se, vendo a jovem fazer-lhe sinal para que se calasse.

- Partiremos amanhã, sra. Trillaud. O médico está de acordo - acrescentou Léa, com precipitação, ao perceber a preocupação da mulher, que cuidara dela como se fosse sua mãe durante os três dias da doença.

- Mas por que motivo ele não me falou antes de partir? - disse ela, desconfiada.

- Talvez tenha se esquecido. Tem tanto que fazer! - interveio Camille.

- Não sabia que o dr. Rouland tinha ido embora! - admirou-se Léa. - Aonde foi?

- À Bretanha; buscar a mãe que ficou só depois da morte do filho mais novo, em Dunquerque.

- Não sabia que ele tinha perdido um irmão na guerra - disse Camilie.

- O doutor não gosta de falar no caso, mas teve um grande desgosto. O rapaz era como um filho para ele.

- Quando ele voltar, diga-lhe que eu e Léa sentimos muito pelo que aconteceu.

- Seria melhor aguardarem a sua vinda e dizerem isso a ele pessoalmente.

- Não. Temos de regressar. Quero que meu filho nasça na casa dos seus antepassados.

- As estradas não são seguras.

- Não se preocupe, sra. Trillaud. Tudo correrá bem - asseverou Camilie, pegando-lhe nas mãos. - Prometa-me que irá passar alguns dias comigo em minha casa. Será sempre bem recebida.

- Sentirei muito a sua falta, sra. d'Argilat. Tinha-lhes arranjado já uma boa casinha com jardim, à beira do Gartempe. Está vendo? E aquela com postigos vermelhos e brancos, do outro lado do rio. Pertence a uma negociante de cereais que vem aqui só alguns dias por mês. Aluga metade da casa. Esteve ocupada por uns banqueiros de Paris, mas eles já regressaram à capital.

- Tal como todos os outros refugiados, aliás. A cidade agora está deserta, sinistra. Não se vê ninguém nas ruas - comentou Léa. - Vou fazer as malas.

No dia seguinte, apesar das lágrimas da sra. Trillaud, Camille e Léa puseram-se a caminho, levando consigo cestos cheios de provisões de todos os gêneros. Até mesmo Léa sentiu a garganta apertada ao deixar a mulher que, com tanta generosidade, lhe abrira a porta e o coração.

- Depois da guerra, voltarei aqui com Laurent e com o nosso filho - afirmou Camille, confortavelmente deitada no banco traseiro do automóvel.

- Espero nunca mais ver essa hipócrita - comentou Léa, no momento em que atravessavam o rio sobre a Ponte Velha.

No começo da tarde, chegaram sem incidentes a Nontron, pequena subprefeitura de Limousin. Tinham encontrado pouco transito pelas estradas mas, aqui e ali, nas valetas, à beira dos caminhos, havia veículos abandonados ou parcialmente destruídos, fazendo lembrar que refugiados tinham passado por ali.

Léa ajudou Camille a descer do automóvel e a instalar-se no terraço de um café.

- Peça uma limonada bem gelada para mim - solicitou Léa.

- Vou ao hotel em frente perguntar se têm quartos.

- Mas para quê?

- Para que você repouse. Deve estar cansada.

- Não, não. Não é preciso. Continuemos. Vamos parar um pouco mais longe.

- Tem certeza de que está bem?

O aparecimento da garçonete poupou Camilie de responder à pergunta.

- Duas limonadas bem geladas, por favor. Quer comer alguma coisa? - perguntou Léa.

- Não, obrigada. Não estou com fome.

- Eu também não. Este calor me deixa indisposta.

Depois de refrescarem o rosto e os braços com água de poço no quintal do café, puseram-se de novo a caminho.

Em Périgueux, foram paradas por policiais franceses, desconfiados ao verem duas jovens sozinhas dentro de um carro tão grande e com tão pouca bagagem. Como se fosse suspeito todo veículo sem um colchão em cima da capota! Só depois de verificarem o estado de fraqueza de Camilie, consentiram em deixá-las prosseguir viagem, recomendando:

- É preferível dirigir-se ao hospital mais próximo se não quer ter a criança no caminho.

Camilie agradeceu o aviso e entrou no automóvel cerrando os dentes.

Rodaram em silêncio durante alguns momentos. Um solavanco arrancou um grito de Camille. Léa virou-se para trás.

- Não está bem? - perguntou.

Com um sorriso forçado, a doente sacudiu a cabeça num gesto negativo. Léa parou o carro junto do acostamento.

- Onde dói? - perguntou, indo para junto de Camilie.

- Por todo lado - murmurou.

- Ah, não! Que fiz eu a Deus para encontrar-me em semelhante situação?

"Calma, calma!", dizia ao mesmo tempo a si mesma. "Arranjarei um médico na aldeia mais próxima."

Mas, entre Périgueux e Bergerac, não havia médicos nas aldeias. Na última das duas cidades, os três médicos que Léa procurou estavam ausentes. Só restava o hospital. Ao chegarem, informaram-nas que a hora de admissão de doentes já passara; teriam de voltar no dia seguinte ou, então, munirem-se de uma ordem de internação urgente redigida pelo médico assistente. As súplicas e ameaças de Léa de nada valeram.

Quando a jovem regressou ao carro, Camilie continuava a sentir-se mal. Por sorte, depressa encontraram quarto num hotel. Não era muito confortável, na verdade, mas dava para passarem a noite. Léa mandou servir o jantar no quarto e obrigou Camille a engolir algumas colheradas de caldo.

Léa deitou-se na cama incômoda e com um colchão de molas deformado, mas adormeceu instantaneamente. Camilie, porém, não conseguiu pregar o olho durante toda a noite. Só pegou no sono de manhã, um sono tão agitado, no entanto, que despertou a companheira. Agastada, a moça levantou-se. Eram seis horas, e o dia estava encoberto.

Depois de fazer uma pequena toalete, Léa saiu e deu uma volta pela cidade, aguardando que o café do hotel abrisse as portas para tomar o desjejum. Passando em frente do correio, lembrou-se de telefonar aos pais, para anunciar sua chegada. Não pudera fazê-lo antes da partida, pois as linhas estavam interceptadas mais uma vez. Apesar da hora matinal, várias pessoas esperavam para telefonar. Por fim, chegou a sua vez. Depois de diversas tentativas infrutíferas por parte da telefonista, informaram a Léa:

- Não consigo linha. Venha mais tarde.

Eram quase onze horas quando, desanimada, ela deixou a estação do correio. Diante da vitrina de uma loja, distinguiu o próprio reflexo, levando alguns instantes para se reconhecer. Que diriam a mãe e Ruth se a vissem assim de cabelo em desalinho e com o vestido todo amarrotado? Riu, ao imaginar as repreensões de ambas. Em breve as veria. E com que contentamento suportaria então as lições de boas maneiras de Ruth e as ternas admoestações da mãe! Dentro de pouco tempo, dentro de duas horas, dentro de um dia, no máximo, poderia abraçá-las.

Camille vestira-se e a aguardava estendida na cama. Passara ruge para ocultar a palidez. Como não estava acostumada a fazê-lo, porém, carregara muito na pintura e isso lhe dava o aspecto de uma boneca de rosto mal desenhado. No entanto, aquela cor de saúde contribuiu para iludir Léa:

- Vejo que você está com melhor aparência esta manhã. Sente-se em forma para viajar?

- Sim, estou bem assegurou-lhe Camille, mordendo os lábios ao levantar-se.

Apoiando-se ao corrimão e ao braço de Léa, desceu as escadas e, à custa de um esforço que a cobria de suores, conseguiu atravessar o saguão do hotel e instalar-se no automóvel estacionado em frente à porta. Deitou-se no banco traseiro. Léa voltou ao quarto em busca da bagagem e aproveitou a oportunidade para mudar de vestido e escovar os cabelos.

Chegavam agora a locais conhecidos e os nomes das povoações soavam como música aos ouvidos de Léa: Sainte-Foy-la-Grand,

Castillon-la-Bataille, Sauveterre-en-Guyenne, La Réole. Nesse ponto,

Léa hesitou entre conduzir Camilie para a casa do sogro ou a Montillac. Virou-se para trás, a fim de perguntar-lhe a opinião. O assento estava vazio.

- Camille! Camilie! - gritou Léa, ao mesmo tempo que parava o carro.

Saltou, abriu a porta de trás e recuou diante do espetáculo de uma mulher de olhos fora das órbitas, caída no chão do veículo, de dentes cravados na manta de viagem.

- Santo Deus, Camille!

Que mais teria ela agora?

- O bebê...

O bebê! O que havia com o bebê? O que ela queria dizer com aquilo?

- O bebê... - voltou Camilie a dizer num sopro, erguendo a cabeça.

Ah, não! Naquela altura, não! Por acaso aquele bebê não poderia esperar mais um pouco? Sem saber o que fazer, Léa olhou em volta:

apenas o campo, sob um céu ameaçador. Calma, calma! Quanto tempo seria necessário para dar à luz? Léa teve de confessar a si própria que não fazia a mínima idéia. Isabelie nunca conversara com as filhas a respeito de tais assuntos.

- Começou há muito tempo?

- Ontem. Mas parou de manhã. Há pouco, senti que algo se rasgava no meu ventre. Foi nessa altura que caí. Estava encharcada.

Uma contração a obrigou a arquear o corpo magro e deformado. Camille não conseguiu conter um grito que lhe desfigurou o rosto, onde a pintura escorria como suor.

Passada a dor, Léa procurou erguê-la para voltar a deitá-la no assento, mas não teve forças para tanto.

- Não consigo. . . desculpe - disse Camilie.

- Cale-se, deixe-me pensar. A próxima localidade é Peliegure; lá pediremos ajuda a alguém.

- Não, não. Quero ir para a casa de Laurent ou para a de seus pais.

- E acha que agüentará cinqüenta quilômetros? - inquiriu Léa, esperançosa.

- Sim... vamos embora.

Léa recordaria esses cinqüenta quilômetros durante toda a vida. Em Saint-Maixaflt viu os primeiros uniformes alemães. Foi tamanha a surpresa que quase atirou o veículo na valeta. Fora colocada uma barragem no sopé da colina de Verdelais. Um soldado fez-lhe sinal para parar.

- Es ist verboten weiter geben - comunicou ele.

'É proibido seguir adiante."

No seu espanto, Léa esquecera o alemão que Ruth tão laboriosamente lhe ensinara.

- Não compreendo

Apareceu um oficial, que explicou num francês penoso:

- É proibido passar. Tem ausweis?

- Auswejs?

Sim. Salvo-conduto.

Não. Estamos voltando para casa. Fica no topo da encosta esclareceu Léa, apontando na direção de Montillac.

- Nem. Não ausweis, não passar.

- Peço-lhe. . . olhe, veja. . . a minha amiga está em trabalho de parto - . . bebê - disse Léa, designando o banco traseiro do automóvel.

O oficial inclinou-se para ver.

- Mejn Goti! Wie heissen Sie?

- Léa Delmas.

- Gebõren Sie zur Familje- der Montillac?

 

Fez sinal ao soldado para que desviasse a barreira e saltou para a motocicleta encostada a uma árvore.

- Venha. Vou acompanhá-las.

Léa imaginara chegar em casa de modo totalmente diferente daquele: todos estariam lá para recebê-la, festejar seu regresso, mimá-la. Nada disso acontecia, porém. O local parecia deserto, a propriedade, as adegas, a casa, os celeiros. Parecia que até os animais tinham se ausentado. Era tudo calma, uma calma excessiva.

Mamãe! Papai! Ruth! - gritou Léa, entrando em casa pela cozinha espaçosa. Correu, abriu a porta de comunicação com a escada dos quartos e chamou de novo:

Mamãe! Papai! Sou eu.

Na sala de jantar, na sala de visitas e no escritório do pai os reposteiros encontravam-se fechados como nos dias de sol escaldante. Teve então de render-se à evidência: não havia ninguém em casa. Lá fora, o tempo estava cada vez mais sombrio. Na cozinha, o oficial alemão esperava, amparando Camille,

Wo sol! ich Sie hinlegen?

- Para o meu quarto - decidiu Léa.

Subiu na frente deles, O ar no interior do quarto indicava que estava fechado havia muito. Foi à rouparia buscar lençóis e fez a cama, auxiliada pelo alemão. Camilie gemia sobre o sofá onde a tinham colocado. Com cuidado, estenderam-na entre os lençóis lavados, de onde se despencava um perfume de alfazema.

"Meu Deus! Como se chama?"

"Pertence à atnulja dos Montjflac?"

"Para onde devo levá-la?"

- Ist denn niernand da?

Vou chamar o médico - disse Léa, sem responder à pergunta do oficial.

Desceu de dois em dois os degraus da escada. Reinava enorme desordem no escritório do pai; teve dificuldade em encontrar a agenda de endereços. Ninguém respondeu na casa do dr. Blanchard. Tentou, em vão, os números telefônicos dos médicos de Cadillac, SaintMacaire e Langon, todos eles amigos da família. De repente, um grito atravessou as paredes da velha casa. Onde se teriam metido todos, santo Deus? Novo grito precipitou Léa para fora do escritório. À passagem, notou uma carta tarjada de luto, interrogando-se sobre quem teria morrido.

O oficial estava atarefado na cozinha. Acendera o fogo, pondo para aquecer diversas chaleiras com água.

- Kommt der Arzt?

 

Léa fez um aceno negativo com a cabeça e foi ter com Camille. Conseguiu despi-la, deixando-a apenas de combinação. Depois sentou-se junto dela, segurando-lhe as mãos e enxugando-lhe a fronte. Entre uma contração e outra, Carnilie agradecia-lhe, esforçando-se o màis que podia para não gritar.

O alemão entrou no quarto com uma bacia de água quente. Tirara o quepe, a jaqueta e arregaçara as mangas da camisa. Só então Léa notou o quanto ele era jovem e bonito. Caía-lhe sobre a testa uma longa mecha de cabelos loiros, acentuando-lhe a juventude.

- Beruhigen Sie sich. Es wird schon gul gehen - assegurou ele, debruçando-se sobre Camille.

Recuou diante da expressão de terror que surgiu no rosto da jovem. Camille soergueu-se, apontando as insígnias názis que enfeitavam a camisa do militar.

- Não tenha medo - tranqüilizou-a Léa, obrigando-a a deitar-se de novo. - Ele ajudou-me a trazê-la até aqui.

- Mas é um alemão! Não quero que um alemão me toque... que toque no meu filho... Prefiro morrer.

- É o que acontecerá se não ficar quieta - observou Léa.

- Não sei o que aconteceu, mas não há ninguém em casa.

Uma contração mais forte impediu Camilie de responder. Seguiu-se outra, e outra ainda,

- Holen Sie mal Wiischeo - ordenou o alemão.

Léa. obedeceu.

"Não tem ninguém em casa?"

"O médico vem?"

"Não se preocupe. Tudo correrá bem." "Vá buscar toalhas."

- Sabe como fazer? - balbuciou ela, regressando com uma pilha de toalhas e dois grandes aventais.

- Mein Vater ist Arzt, ich babe em paar Bücher aus seiner Bibliothek geselen 1,

O alemão pôs um dos aventais e Léa lavou as mãos. "Deus queira que mamãe chegue depressa", pensou ela, suspirando. "Creio que vou me sentir mal."

- Na, wie sagen Sie es aus Franzõsisch : coragem!

Depois, dirigindo-se a Camilie:

- Minha senhora, coragem! O bebê está chegando!

Quando Ruth, toda vestida de preto, empurrou a porta do quarto, teve de apoiar-se ao batente para não cair: um alemão - reconheceu-o pelas botas e pelas calças do uniforme - segurava nos braços, envolta em uma toalha, uma criança minúscula que lançava no ar gritos estridentes.

- Das ist em Junge  - declarou ele com orgulho.

Léa atirou-se nos braços da governanta.

- Ah, Ruth, só agora você chega! E mamãe, onde está? Precisei tanto de vocês!

- Bom dia, minha senhora - cumprimentou o oficial, inclinando-se, com o rosto vermelho, coberto de suor, mas sorrindo radiante. - Tudo vai bem. O bebê é pequeno mas forte.

Sem responder, Ruth debruçou-se sobre Camilie. Em seguida, com ar preocupado, precipitou-se para fora do quarto.

Minutos depois, surgiu o dr. Blanchard, de terno preto, seguido de Bernadette Bouchardeau, de luto fechado.

- Doutor, doutor, venha depressa!

- O que está acontecendo. ..? - perguntou o médico. Mas logo compreendeu.

- Trate da criança, Bernadette - ordenou. .- Ruth, vá buscar minha maleta. Está no automóvel.

- Acha que ela vai morrer, doutor?

- Não sei, O coração está muito fraco. Que faz este alemão aqui?

- Foi ele que me auxiliou a trazer Camilie para cá e ajudou também a criança a nascer.

Depois de Bernadette Bouchardeau lhe ter tirado dos braços o menino, o oficial fora postar-se no meio do quarto com ar constrangido, limpando as mãos no avental. Ruth voltou com a maleta e dirigiu-se a ele em sua própria língua:

"Meu pai é médico e eu li alguns livros de sua biblioteca."

"Vamos, como dizem vocês em francês!"

- "É um menino."

Wir bedanken uns, mein Herr. ..'

- Leutnant Frederic Hanke.

- Léa, acompanhe o tenente à porta. Au! Wiedersen, mcm Herr "Estamos muito gratos, senhor.

"Adeus, senhor."

O alemão tirou o avental, fez uma saudação rápida e seguiu a jovem ainda vestindo a jaqueta. No corredor, encontraram Françoise e

Laure, as irmãs de Léa, também vestidas de preto. As três se abraçaram.

- Laure, minha Laurette, como estou contente em ver você! E você também, Françoise, sua safada!

- Oh, Léa, é horrível!

- Mas... o que é horrível? Estamos de novo juntas, o bebê de Camilie está bem, a guerra acabou, enfim. . . quase acabou - acrescentou Léa, deitando um olhar de viés ao alemão.

- Que faz ele aqui? - murmurou Laure a seu ouvido.

- Depois explico. Onde estão papai e mamãe?

- Mamãe?!...

Na cozinha, Raymond d'Argilat, Jules Fayard, o encarregado das adegas, Amélie Lefèvre e Auguste Martin, seu administrador, Albertine e Lise de Montpleynet, Luc e Pierre Delmas e diversos vizinhos bebiam em grandes copos o vinho doce e amarelado da propriedade.

Todos eles envergavam roupas de cor escura. As mulheres tinham erguido os véus de luto.

Léa teve o impulso de correr para o pai, mas estancou ao avistar o grupo. Sentiu-se gelar de repente. Atrás dela, Françoise e Laure choravam. O alemão acabou de abotoar a jaqueta e de afivelar o cinturão de onde pendia o estojo com a arma. Pôs o quepe, avançou para

Pierre Delmas, em frente de quem se inclinou batendo os calcanhares. Depois saiu sem dizer nada.

O motor da motocicleta no pátio pareceu, por momentos, pro duzir um estrondo enorme. Ninguém se moveu até o som se perder na distância.

Um raio de sol penetrara na cozinha e o negro dos trajes sobressaía diante da brancura das paredes. Em cima da mesa enorme coberta pelo oleado azul, um tanto gasto em certos pontos, as moscas embriagavam-se com o vinho escorrido das garrafas. O grande relógio de parede deu cinco horas. Ruth e o médico apareceram sem que ninguém se movesse. Léa apurava o ouvido. Por que razão ela demorava tanto? Não sabia ainda que a filha a esperava?

- Mamãe!... - ouviu-se chamando-a. - Mamãe! - e a palavra pareceu ecoar dentro de seu cérebro. Não, isso não! Que morressem todos, menos ela!

Papai, onde está mamãe? Diga-me. . . não é verdade não?

Foi outra pessoa...

Léa olhava em redor, procurando quem faltava ali. Mas faltavam muitos: tio Adrien, os primos.

As irmãs começaram a soluçar com mais força. Todos baixaram a cabeça. Pelas faces do pai -. como envelhecera! - deslizavam lagrimas. Ruth atraiu Léa contra o peito.

 

Capítulo 17

Durante mais de uma semana, Léa permaneceu em estado de choque, sem lágrimas, sem palavras, comendo o que lhe punham na frente, dormindo enroscada na sua antiga caminha do quarto das crianças, engolindo os medicamentos que o dr. Blanchard receitara e ficando horas a fio no terraço olhando a distância. Nem o pai nem Ruth ou as irmãs conseguiam fazê-la sair do mutismo em que mergulhara. O coração da governanta apertava-se ao ver sua elegante silhueta imóvel, voltada para o caminho dos Verdelais, como se esperasse a chegada de alguém.

A descoberta, dentro de um malão do quarto das crianças, de um velho colete de crepe cor-de-rosa pertencente à mãe, veio provocar, por fim, o pranto libertador. Ouvindo-a chorar, Camilie arrastou-se para fora do quarto de camisola e, no mesmo tom de voz de Isabelie, encontrou as palavras certas para minorar-lhe um pouco o sofrimento.

Esgotada pelas lágrimas e pelos soluços, Léa adormeceu nos braços da amiga.

Muitas horas depois, Léa despertou sozinha. Lavou o rosto, prendeu os cabelos para trás e dirigiu-se ao quarto da mãe. O perfume de Isabeile flutuava ainda no aposento de janelas fechadas.

Perto da cama, arrumada com esmero, um ramo de rosas perdia lentamente as pétalas. Léa ajoelhou-se, apoiada ao leito materno, e encostou a face à coberta de piquê branco. Deixou então que as lágrimas corressem com suavidade.

- Mamãe... mãezinha. .. -.- murmurou.

O pai entrou no quarto e foi ajoelhar-se perto da filha.

- Amanhã de manhã, iremos os dois ao cemitério - disse Léa. - Agora, conte-me o que aconteceu.

- Você quer... mesmo?

- Sim.

- Então vamos para o escritório. Aqui, não tenho coragem.

Em seu gabinete, Pierre Delmas engoliu dois cálices de vinho do Porto. Sentada no velho canapé de couro, cada vez mais deformado, Léa aguardou que ele começasse a falar.

- Aconteceu na noite de 19 para 20 de junho - começou

Pierre Delmas. - Sua mãe foi a Bordeaux, à sede da Liga Feminina para a Ação Católica, de que era membro, a fim de participar das tarefas de reabastecimento e alojamento de refugiados. Passaria a noite em casa de seu tio Luc. Houve um alerta pouco depois da meianoite. Houve bombardeios em vários pontos da cidade: junto às docas, no bairro de Bastide, nas alamedas de Luze e no bairro de SaintSeurin. Caíram algumas bombas entre as ruas DavidJohnston e Camille-Godard, na Rue des Remparts, perto da estação do sul, na Alameda Alsace-Lorraine, na trincheira-abrigo das alamedas Damours, onde morreram diversas pessoas. Uma das bombas caiu perto do edifício do comando militar da região, onde estavam instalados os gabinetes do marechal Pétain e do general Weygand.

Léa continha a impaciência com dificuldade. Que lhe importavam os lugares onde haviam caído as bombas? Queria apenas saber como morrera sua mãe.

Pierre Delmas serviu-se novamente de uma bebida e prosseguiu:

- Comoutras mulheres, sua mãe saiu do edifício da Ação Católica para refugiar-se no abrigo mais próximo. Deve ter demorado demais, sem dúvida. Uma bomba caiu na Rue Ségalier, ferindo-a na cabeça e nas pernas. Uma das primeiras pessoas a aparecer no local foi um jornalista de Paris, que a transportou ao hospital e me avisou. Estava em estado de coma quando cheguei e só saiu desse estado na véspera de morrer, no dia 10 de julho.

- Disse alguma palavra para mim?

Pierre Delmas acabou de engolir a bebida antes de responder, em voz um tanto pastosa:

- A última palavra que disse foi o seu nome.

Um clarão de pura alegria iluminou o espírito de Léa. Assim, andes de morrer, a mãe pensara nela!

- Obrigada, meu Deus - murmurou, lançando-se nos braços do pai.

Não devemos chorar, minha querida. Durante a noite, ela volta para conversar comigo.

Léa fitou-o com espanto.

- Sim, papai. Para mim também é como se ela continuasse conosco.

Deixou o pai no escritório, sem reparar no. sorriso de absoluta convicção de Pierre Delmas.

- No dia seguinte, de volta do cemitério, Léa e o pai encontraram Frederic Hanke com outro oficial, que discutia com Ruth; a discussão estava acalorada, a avaliar pelo ar furioso da governanta.

- Bom dia, meus senhores - cumprimentou Pierre Delmas, com secura. - Que se passa, Ruth?

- Estes senhores pretendem instalar-se aqui. Segundo parece, trazem uma ordem de requisição.

- Mas não é possível! - exclamou Léa.

infelizmente era verdade, parecia dizer Frederic Hanke, apontando para o papel que Ruth tinha na mão.

- Mas não dispomos de espaço! Estão aqui familiares nossos vindos de Paris e de Bordeaux.

- Lastimo muito, sr. Delmas, mas vemo-nos forçados a cumprir ordens. Sou o tenente Otto Kramer. Necessito de dois quartos decentes e local onde alojar três dos meus homens. Procuraremos incomodá-los o menos possível - prosseguiu o oficial, num francês perfeito.

- Será difícil - murmurou Léa.

- Mas não podem aboletar-se aqui. Estamos de luto - opôs- se Ruth, com dificuldade em conter a cólera.

- Apresento-lhes as minhas sinceras condolências. Podemos ver a casa?

Pierre Delmas cedeu o quarto ao tenente e foi instalar-se no que pertencera à mulher.

- Fique com o meu - disse Léa a Hanke. - Já o conhece.

Não quero expulsá-la dos seus domínios, "Senhorita.' "Já o fez"

lrãulein

- Es ist schon gemacht - respondeu, esvaziando as gavetas da cômoda.

- Nada pude fazer para impedi-lo - assegurou o alemão.

- Recebemos ordens de Bordeaux.

Começou, então, uma convivência difícil. Os alemães desciam à cozinha logo pela manhã, onde o ordenança do tenente Kramer preparava os desjejuns. Françoise, enfermeira no hospital de Langon, tinha de levantar-se cedo e muitas vezes ia encontrá-los em frente ao fogão onde se aquecia a água. Pouco a pouco, foram trocando algumas palavras e, certa vez, aceitou mesmo compartilhar da refeição dos ocupantes, mais copiosa, na verdade, do que a sua. Os alemães não apareciam em casa durante o resto do dia; ficavam em Langon ou em Bordeaux. À noite, procuravam chegar tarde em casa. Albertine e Lisa de Montpleynet apreciavam muito esse gesto de delicadeza.

Era Camille quem suportava com maior dificuldade a presença dos alemães. Ela se restabelecia do parto lentamente. O fato de saber que havia intrusos vivendo debaixo do mesmo teto.

Punha-a numa irritação que a esgotava. O dr. Blanchard, seu médico, proibira que partisse para Roches-Bianches, argumentando que lhe ficaria muito fora de mão para a visita cotidiana. Também a criança, um lindo menino a quem a mãe dera o nome de Charles, embora gozasse de saúde e se desenvolvesse de maneira normal, necessitava de cuidados constantes devido ao pouco peso com que nascera.

Camilie tivera de resignar-se a permanecer ali. Raymond d'Argilat, o sogro, passava todos os sábados e domingos junto da nora e do neto, cuja presença o ajudava a suportar o afastamento do filho e a falta de notícias.

Graças ao tenente Kramer, todos os membros da família tinham obtido salvo-condutos com facilidade, documentos que lhes permitiam deslocar-se até a zona livre. A morte de Isabelie desorganizara a vida do lar. Bem depressa Ruth se apercebeu de que a despensa se esvaziara rapidamente. Não havia azeite, sabão, chocolate e café; escasseavam o açúcar, as compotas e conservas. Assim, de bicicleta, ela, Léa e Françoise deslocaram-se até Langon para fazer compras. Na cidade, esmagada pelo calor, as ruas estavam quase desertas e os cafés praticamente vazios ou ocupados por militares alemães, que bebiam canecas de cerveja com ar de profundo aborrecimento. Todas as lojas pareciam ter sido objeto de pilhagem: não existia nenhuma espécie de gênero nas mercearias, sapatarias ou lojas de roupas. Também estavam às moscas as vitrinas das padarias e dos açougues. Nas lojas de bebidas restavam apenas algumas garrafas poeirentas, pois os alemães tinham passado por lá e comprado todas para si ou para enviar às suas famílias, na Alemanha.

- Até o negociante de quinquilharias fez uma fortuna - explicou a merceeira, a sra. Vollard, dona da loja onde a família Delmas se abastecia há muitos anos. O livreiro, que sempre lastimou a falta de interesse dos habitantes da cidade pela leitura, já não dispõe de um só livro ou de um único lápis. Durante dois dias, o comércio funcionou normalmente, mas agora há restrições para todos.

- Que vamos fazer, então? Não temos nada em casa - queixou-se Léa.

- isso não teria acontecido no tempo de sua pobre mãe. Olhe, ainda na véspera do bombardeio falei com ela! Apesar das senhas de racionamento, consegui encher suas sacolas. Mas hoje.

- Então não tem nada para nos vender?

- Pouquíssima coisa. De que precisam?

- De café, sabão, azeite, açúcar.

- Café não tenho. Só de chicória; com leite é bastante bom. Recebi manteiga esta manhã. E posso vender-lhes dois litros de azeite e três quilos de açúcar. Ainda me resta um pouco de chocolate, de massa e de sardinhas.

- Dê-nos tudo quanto puder. E sabão... Vamos dar um jeito. Tem as senhas?

De regresso a Montillac, Françoise e Léa, de comum acordo, reuniram a família na sala de visitas.

Temos de tomar algumas providências se não quisermos morrer de fome - começou Léa. - É necessário prepararmos o pequeno prado, junto do lavadouro, para fazer uma horta. Comprar frangos, coelhos, leitões.

Isso não - interrompeu Laure. - Cheiram muito mal.

- Mas ficará contente quando comer presunto ou carne salgada, não é?

- E uma vaca para termos leite - acrescentou Lise de Montpleynet.

- Sim, sim! - exclamou Laure. - Fará companhia à Caoubet e à Laouret.

- Tudo isso está muito certo, mas que faremos com respeito a carnes e mantimentos? - interveio Françoise.

- Falaremos com o açougueiro de Saint-Macaire; o filho dele é afilhado de sua mãe. Quanto aos mantimentos, Françoise, que vai ao hospital de Langon três vezes por semana, pode passar pela loja da sra. Vollard. Mas vamos ter muita dificuldade enquanto esperamos que a horta de Léa produza alguns legumes.

- Até lá o marechal Pétain já terá solucionado as coisas - garantiu a tia Bernadette.

Bernadette Bouchardeau não regressara a Bordeaux. Aceitara, reconhecida, a hospitalidade de Pierre Delmas. Lucien, o filho, fugira de casa para juntar-se ao general de Gaulie, conforme explicara na carta deixada à mãe. Bernadette estava sem notícia dele desde aquele momento, e tinha um ódio implacável do "desertor de Londres", como o chamava. Encheu-a de contentamento a notícia, em 2 de agosto, da sua condenação à morte por contumácia.

Uma carta vinda da Alemanha em fins do mês de agosto informou Raymond d'Argilat que o filho, após ter sido ferido, se encontrava prisioneiro em Westphalenhof, na Pomerânia. Vivo! Estava vivo! Idêntica alegria se acendeu no olhar de Camille e de Léa.

- Nunca mais verei meu filho - asseverou Raymond d'Argilat.

- Ora, vamos, meu amigo, não estrague a nossa alegria. Isso é tolice. Laurent estará de volta dentro em breve - disse Pierre Delmas.

- Para mim será tarde.

Uma tal convicção perturbou Pierre Delmas, que observou o amigo atentamente. Na verdade, envelhecera e emagrecera muito nos últimos tempos.

A 2 de setembro, um ciclista apresentou-se em Roches-Blan ches, pedindo para falar com a sra. d'Argilat.

- Que quer dela? - perguntou o velho encarregado das adegas.

- Trago notícias do marido dela.

- Do sr. Laurent?! Como está ele? Conheço-o desde pequeno, sabe? - explicou o velhinho, emocionado.

- Espero que esteja bem - respondeu o desconhecido. - Fomos feitos prisioneiros ao mesmo tempo. Ele confiou-me certos papéis para entregar à esposa. Mas nunca mais o vi.

- A sra. d'Argilat não está aqui, está em Montillac, perto de Langon. O pai do sr. Laurent d'Argilat também está lá.

- Fica muito longe?

- A uns quarenta quilômetros.

- Ora! Uns quilômetros a mais ou a menos.., tanto faz.

- Tenha cuidado! A propriedade fica na zona ocupada. Meu filho irá acompanhá-lo, pois conhece bem os caminhos.

Sem incidentes, os dois jovens chegaram a Montillac ao fim da tarde. O viajante foi levado imediatamente à presença de Camilie.

Bom dia, minha senhora. Sou o alferes Valéry - apresentou-se ele. - Fui prisioneiro na mesma época que o tenente d'Argilat. Como foi ferido nas pernas, não pôde fugir. Deu-me estes papéis para entregar à senhora. Perdoe-me por ter levado tanto tempo para me desincumbir da missão. Teve notícias dele?

- Não. . . enfim. . . sim. Sei que foi ferido e está prisioneiro na Pomerânja.

- Graças a Deus não morreu!

Gosta muito dele?

É um homem bom e corajoso. Todos os subordinados gostavam dele.

- - E o senhor, fugiu?

- Fugi.

- Que pensa fazer?

- Chegar à Espanha e, daí, passar para o norte da África.

- Como?

Existe uma organização em Bordeaux, dirigida por um dominicano.

- Um dominicano?! - interveio Léa, que assistia ao encontro entre os dois. - Sabe o nome dele?

- Não sei. Mas o local das reuniões é um botequim das docas - replicou o alferes.

- Léa. . . está pensando em. .

Claro que não! O alferes Valéry não pode ficar em Montillac. É perigoso demais.

- Temos dois oficiais alemães e'n casa. - esclareceu Camille.

- Como pretende chegar a Bordeaux? - prosseguiu Léa.

- De trem.

- As estações estão submetidas a vigilância cerrada. E esta noite já não há trem. O senhor dormirá no meu quarto.

- Não, no meu - contrapôs Camilie. - Ninguém irá incomodar-me devido à criança.

- Tem razão - concordou Léa. Amanhã de manhã vou acompanhá-lo à estação. Até lá, é preferível não falar do caso a ninguém; não vale a pena preocupá-los.

- Deve estar com fome, sr. Valéry - disse Camille. De fato, comeria qualquer coisa.

Léa foi à cozinha e apareceu com uma bandeja contendo carne fria, queijo, pão e uma garrafa de vinho. O jovem atirou-se à comida com uma voracidade que fez sorrir as duas mulheres.

- Desculpe-me - disse ele de boca cheia -, mas há dois dias que não como.

- Agora, descanse. Vamos deixá-lo. Muito obrigada por ter me trazido as cartas de meu marido - agradeceu Camilie, saindo do quarto com Léa. - E se fôssemos até o terraço? - sugeriu à amiga.

- Sente-se com forças para ir até lá?

- O dr. Blanchard recomendou-me que fizesse um pouco de exercício. Estou melhor desde que recebi notícias de Laurent. E, com as cartas trazidas pelo alferes, algo me diz que o verei dentro em breve.

Já no terraço, Camilie foi ocupar o banco de ferro sob o caramanchão onde morriam os últimos cachos de glicínia. Abriu o grosso envelope e começou a ler:

"Minha adorada mulher:

Se Deus quiser, o alferes Valéry irá lhe entregar estas páginas, escritas durante os raros momentos de calma. Talvez a sua leitura lhe pareça cansativa mas, no estado de fadiga e de depressão em que me acho, é difícil alhear-me deste cotidiano absurdo. Quero que saiba, no entanto, que penso constantemente em você e em nosso filho. São vocês que me dão forças para continuar esperando.

Desculpe, minha bem-amada, esta prosa demasiado breve, demasiado seca, mas vi tantos dos meus amigos e camaradas morrerem junto de mim! É preciso que se saiba que todos eles se bateram com valor. Não esqueça isso, pois talvez haja muita gente disposta a dizer que os soldados franceses fugiram diante do inimigo. Infelizmente, isso é verdade em relação a alguns deles. Eu os vi; vi aqueies que pilharam Reims e abandonaram as armas nas valetas a fim de correrem mais depressa. Vi-os e não esquecerei jamais tal coisa. Mas também vi heróis obscuros que preferiram deixar-se matar a recuar. É desses que devemos lembrar-nos.

Cuide-se bem. Que Deus a abençoe, assim como a Léa.

Perto de Veules-les-Roses, 15 de junho de 1940.

P.S.: Junto a esta algumas páginas do meu diário."

"Pobre Laurent!", pensou Camille. Tirou o cordão que prendia o maço de folhas cobertas por uma caligrafia miúda, feita a lápis. Instalou-se melhor para proceder à demorada leitura. Depois, como era habitual nela, leu em voz alta diversas páginas, para a amiga ouvir.

"Terça-feira, 28 de maio de 1940

 

Encontro Houdoy no botequim da povoação. Está estafado; fez duzentos e quarenta e cinco quilômetros a cavalo em quatro dias. Há muitos cavalos feridos. Passo o resto do dia a vasculhar as propriedades dos arredores em busca de provisões."

"Quarta-feira, 29 de maio de 1940

 

Cavalgo juntamente com Houdoy e com Wiazemsky. Tagarelamos a noite inteira. Atravessamos Congis, Puisieux,

Sennesvières, Nanteuil e Baron. Acampamos numa propriedade até as seis da manhã. Depois de algumas horas de repouso, procedemos à revisão do material e do armamento, visto que nos aproximávamos da frente de combate, O coronel vem visitar-nos. Partida às vinte e três e trinta.'' "Quinta-feira, 30 de maio de 1940

 

Atravessamos Senlis cerca de uma da madrugada. Chegada às sete e trinta, após quarenta e cinco quilômetros de marcha,

O esquadrão acampa num prado. É difícil encontrar água."

"Sexta-feira, 31 de maio de 1940

 

Toque de reunir à uma da madrugada, partida à uma e trinta. Pequeno percurso de vinte e cinco quilômetros até Bois-duParc, onde acampamos. Durante o dia, com o caminhão, vou a Beauvais para reabastecimento. Tudo está calmo na cidade;

as lojas mantêmse abertas. Compro um jornal local. Regresso às dezesseis horas, tendo a meu cargo os preparativos do próximo acampamento, em

Equennes. Às vinte e duas horas fica pronto o acantonamento, quando uma mensagem do coronel me informa que não podemos utilizálo. Voltamos a partir sem destino certo."

"Segunda-feira, 3 de junho de 1940

 

Enquanto faço o desjejum com Wiazemsky, vemos um avião despencar nas matas situadas por detrás do 3,0 Esquadrão. Corrida generalizada. Por sorte, o piloto está vivo, É inglês, um rapaz de um metro e noventa de altura, O coronel dá ordens para reconduzi-lo à base, que fica a oito quilômetros de Rouen. No regresso, paro em Gournay-en-Bray para comprar sanduíches e chocolate, As lojas estão abarrotadas de coisas e tudo inspira tranqüilidade. Jantar no pc. Fala-se que seremos mandados para Forges-les-Eaux. Passeio nos bosques na companhia de Yvan Wiazemsky, com quem troco idéias cada vez com mais agrado. Não conheço no regimento personalidade mais atraente, nem quem tanto me subjugue como ele. É um belo rapaz, bem-constituído, de aspecto sedutor apesar das enormes orelhas, com passos lentos e olhar distante, dotado de bondade e de grande inteligência. Adotou-me, de certo modo, guiou-me no regimento, começou logo a tratar-me com intimidade e me impôs uma camaradagem preciosa. Além de Houdoy, é ele o meu melhor amigo."

"Terça-feira, 4 de junho de 1940

 

Dia calmo e sem história. Temos dificuldade em encontrar feno."

"Quarta-feira, 3 de junho de 1940

 

Escrevo sob a luz de vela, colada ao fundo de um caixote. Após a entrega das provisões, bem cedo, como sempre, fui cortar o cabelo e fazer a barba no barbeiro da aldeia. Tinha ainda o queixo cheio de sabão quando Wiazemsky chegou, brandindo a mensagem da brigada:

'O inimigo atacou esta manhã no Somme, empregando meios bastante poderosos, e conseguiu romper as linhas em diversos pontos do setor da divisão'. Sabemos o que isso significa. Faz um calor terrível. Sobre nós, passam muitos aviões. Ouvem- se disparos de obuses muito perto. Obtenho autorização do comandante para retomar minhas funções de oficial de ligação e de seguir o pc com a cantina e o meu motorista. Partimos cerca das catorze horas e ultrapassamos o regimento por entre nuvens de poeira. Por diversas vezes, asseguro a ligação com a vanguarda. Às dezesseis horas, paramos em Hornoy, ainda habitada, e tomo de assalto os botequins para dar de beber a todo o Pc. Voltamos a partir e, em Belloy, deparamos com um incrível engarrafamento; os moradores fogem. Os esquadrões ficam bloqueados. Procura-me um oficial, comunicando que o general Maillard quer falar urgentemente com o coronel. Vamos os quatro - o coronel, Creskens, Wiazemsky e eu. Com o mapa aberto sobre a asa de um Panhard, o general explica-nos que os alemães se encontram muito perto e que tencionam atacar o 4° de Hussardos em Walrus, com os carros de assalto.

O Somme foi transposto hoje de manhã. Trata-se de conter o inimigo, que desce sobre Beauvais. O coronel dá ordens para a instalação dos esquadrões e interrompe-se para dizer-me que vá buscar as munições deixadas em Aguières. Parto imediatamente. São cerca de dezoito horas. Quando regresso, os carros alemães estão já muito próximos, circulando entre as linhas, nas imediações da aldeia.

Comunicam-me que o caminhão de Chevalier saltou sobre uma mina, à saída de Hornoy. É quase noite e dispara-se por toda parte.

Encontro Chevalier errando pela escuridão, gravemente ferido nas costas. É corajoso e não se queixa. Junto dele, aguardo a chegada do médico. Informam-me da gravidade do ferimento. Aperto a mão de Chevalier, que é retirado para a retaguarda.

Volto a encontrar o i'c em Bromesnil, onde Houdoy se acha com os seus homens e cavalos. Comunica-me que fomos colocados à disposição do general Contenson. São vinte e três horas e durmo um pouco."

"Quinta-feira, 6 de junho de 1940

 

Às duas da madrugada, o pc desloca-se para Fresnevilie, enquanto os esquadrões tomam posição em linha. De madrugada, faço a ligação com Navarre no Castelo de Avesnes. Somos surpreendidos por um grupo de bombardeiros voando baixo. Fugimos à velocidade máxima do veículo para nos abrigarmos atrás de um muro. Os aparelhos metralham-nos à passagem. As balas rasgam o toldo. Depois, os aparelhos acabam por afastar-se. Tornamos a partir direto para Arguel.

São oito horas. Tudo está calmo no s'c, apesar da pressão dos carros de assalto alemães. O regimento mudou de local durante a noite.

Pouco depois, volto a partir para Hornoy. Encontro um tenente de engenharia meio desesperado que informa ser inútil prosseguir na colocação de minas. A aldeia está cercada. A fuzilaria aproxima-se. Pergunto-lhe se pensa abandonar o local e ele responde:

"Claro que não'. Ofereço-lhe ajuda. Apanho três atiradores senegaleses que fugiam. Uma hora mais tarde, horrorizado, verei cair os três, ceifados por uma rajada de metralhadora. A náusea faz-me dobrar em dois. Sem o meu zelo, os infelizes seriam desertores, mas talvez estivessem vivos. As balas assobiam por todos os lados. Apanho uma espingarda tombada junto de um corpo sem vida e disparo - ouço um grito vindo do mato e vejo erguer-se um homem sem capacete. Menos de dez metros nos separam. Impressionam-me a sua juventude e seus cabelos bem loiros. Da garganta aberta, jorra uma torrente de sangue. Os olhos estão esbugalhados e ele cai, fitando-me.

Um aviso salva-me a vida: "Meu tenente! Cuidado, meu tenente! Não fique aí'. Mais por instinto do que por reflexo, lançome por terra a tempo. Sinto as pedras baterem-me nas costas. Na estrada, há duas motocicletas caídas. Junto delas, jazem os condutores, desfeitos pela rajada. Um dos veículos ficou intacto. Apodero- me dele na esperança de chegar ao i'c. Às quatro da tarde, apresento o meu relatório.

Não me deixam respirar, ordenando-me que vá reabastecer meu caminhão em Sénarpont. Distribuo dois dias de ração aos esquadrões.

São nove horas da noite. Estou esgotado."

- Leia - disse Camilie, estendendo as folhas do diário a Léa. - Vou tratar de Charles, ele está chorando.

Léa pegou as folhas e prosseguiu a leitura:

"Sexta-feira, 7 de junho de 1940

 

Estou no r'c de Rohan-Chabot quando o ataque alemão se desencadeia ao longo de toda a frente. O bombardeio redobra de intensidade, a investida inimiga torna-se mais feroz. Rumo de novo ao 2.", onde Colomb acaba de ser morto. Depois Kéraujat e RohanChabot são feridos.

Às vinte e trinta, o coronel, após ter perdido a ligação com Sèze, envia-me para confirmar a ordem de retirada. Volta rápida no meio dos bombardeios.

De madrugada, encontramo-nos em Campneuville (vinte e cinco quilômetros). O percurso foi duro: território devastado, muitas casas destruídas. Às cinco horas, o coronel nos reúne. Achamo-nos definitivamente isolados. Tentaremos abrir caminho em direção ao Sena, protegendo a retirada da Divisão Alpina, com a 3." DIC. O regimento reagrupara-se com dificuldade. O coronel informa-me que não há reabastecimento há quarenta e oito horas. Proponho que se abatam alguns animais, se requisite a padaria e se faça uma provisão de cidra.

Eu e Wiazemsky arranjamos quinhentos quilos de pão e mil e seiscentos litros de cidra. Quanto ao resto, os esquadrões terão de se desvencilhar por si próprios."

"Domingo, 9 de junho de 1940; segunda-feira, 10 de junho; terça-feira, 11 de junho

O regimento organiza um foco de resistência sobre a Linha Auvilliers-Mortjrner. São assinaladas infiltrações alemãs em todas as direções. Às dezessete horas, recebemos ordem de retirar. Operação bem difícil; Saint-Germain, que representa a única porta de saída utilizável, já está ocupada quando chega o 30 Esquadrão. Seguem-se combates de rua, em que Dauchez é morto. Os alemães recuam e passamos com o 2 e o 4." esquadrão.

Tenho tempo para mandar abater três animais, que são distribuídos. Voltamos a partir para o castelo de (?), onde se acha instalado o i'c.

Nova organização defensiva. Ficamos sabendo que o cerco se tornou definitivo.

Conduzo o 4." GM, o único intacto, para reforço do 3." Esquadrão, e instalo o meu Pc no abrigo de Stern. Tenho ainda tempo para inteirar-me de que Sèze foi apanhado em Bellencombre com três pelotões e logo a seguir desencadeia-se o inferno. É morto Cazenove, que tentara organizar um ponto de apoio à minha esquerda. Depois, é a vez de Chambon, tombado junto de Audoux, com um estilhaço de obus enterrado na garganta. Em seguida, Stern é ferido com gravidade. Os tanques alemães esmagam o 4Y GM. Echenbrenner morre também. Luirot, Branchu, Novat e Sartin são feridos.

Reúno os sobreviventes junto do i'c, na pedreira existente na base da falésia. Os carros alemães avançam até duzentos metros de distância e metralham-nos durante três horas com canhões de trinta e sete milímetros e projéteis incendiários. Os nossos transportes de munições, concentrados à entrada de Veules-les-Roses, vão pelos ares uns após os outros. O céu parece de fogo. Os cavalos estão magnificamente calmos.

Noite de espera febril. Acalmo a impaciência redigindo estas notas ao abrigo da falésia, iluminado pela luz de uma vela, resguardada por um capote estendido entre duas espingardas sustentadas por seixos. Há instantes em que tudo está tranqüilo. Ouve-se distintamente o barulho da maré subindo. Do lado de lá da água fica a liberdade e talvez a vida. Penso em minha querida Camille, em nosso filho que se arrisca a não conhecer o pai, nesta terra de França invadida pelo inimigo, em todos os amigos mortos para que ela permaneça livre e cujo sacrifício de nada terá servido, no soldado alemão que matei, eu que tanto odeio a violência. Apodera-se então de mim uma estranha paz.

A noite é bela e calma. O cheiro de maresia mistura-se ao odor quente dos cavalos."

Camille, com o filho ao colo, aproximou-se da janela aberta sobre o parque, esforçando-se por fazer Charles rir, para melhor disfarçar as lágrimas.

Léa, entusiasmada pela narrativa, prosseguiu a leitura:

"Quarta-feira, 12 de junho, ao amanhecer

Fomos informados de que apenas três barcos de transporte ingleses puderam partir (um deles encalhou na praia e outro foi afundado à saída do porto).

Wiazetnsky foi feito prisioneiro durante a noite e Mesnil desapareceu. Restam apenas alguns elementos do 4 Esquadrão sob as ordens de Dumas, de Pontbriand e minhas, e uns cinqüenta homens dos duzentos e vinte e seis que constituíam os efetivos à partida. O comandante designou-me para o setor nordeste da falésia de Veules, de costas para o mar. Disponho os homens e subo o morro. A três ou quatro quilômetros a leste, sul e oeste, movimentam-se colunas de tanques alemães.

Cerca do meio-dia, somos atacados sem interrupção com disparos de 37 e de projéteis cortantes. Ravier e alguns soldados ficam feridos.

O comandante Augère comunica-me que será inútil insistir e dirigirmo-nos à aldeia para organizar a resistência nas propriedades. Até as dezesseis horas, faço fogo com os meus homens. Ferido nas pernas, caio de joelhos. Depois, esgotadas as munições, escondemo-nos num celeiro, esperando a chegada da noite. Mas, às dezessete horas, soldados alemães irrompem pelo abrigo de metralhadoras em punho. Jogo meu revólver sem balas e saio, amparado por dois dos meus homens. Levam-nos para um caminho no fundo de um barranco, onde encontramos os sobreviventes do regimento.

Somos enviados para o hospital de campanha, onde ainda hoje me encontro.

O alferes Valéry comunica-me sua intenção de se evadir. Imobilizado pelos ferimentos nas pernas, confio-lhe estas notas e uma carta para minha mulher. Que Deus o proteja"

As últimas linhas dançaram em frente dos olhos de Léa. Sentia no próprio corpo os sofrimentos de Laurent. Sob aquele breve relato, adivinhava as privações experimentadas por ele. Onde estaria Laurent nesse instante? Seriam graves os ferimentos? Ele nada dizia a esse respeito.

Camille voltava com o pequeno Charles nos braços. Via-se que chorara.

- Não chore desse modo. Vai ficar doente - disse Léa, restituindo-lhe os papéis. - Ruth vem aí. Suba com ela.

Camilie escondeu as folhas no bolso do vestido.

- Você voltou a chorar, Camilie! - censurou-a Ruth. - Não está sendo razoável. Pense no seu filho. Vamos, venha.

A jovem deixou-se levar sem nada dizer, e Léa ficou sozinha com a criança.

Os campos diante do terraço em nada traíam a infelicidade que sobre eles se abatera. Com um sentimento de ansiosa ternura, Léa contemplava-os tal como se contempla o rosto amado de uma mãe atingida por uma doença incurável. Tudo parecia igual ao que sempre fora. As vinhas estremeciam à brisa da tarde. Um cão ladrava ao longe e crianças gritavam na estrada.

 

Capítulo 18

Antes de Françoise e os alemães se levantarem, na manhã seguinte, Léa acompanhou o alferes Valéry à estação de Langon, onde tiveram de esperar até as sete horas pela chegada do primeiro trem para Bordeaux. O militar registrou a bicicleta, passou pela alfândega e pela fiscalização sem dificuldade - seus documentos falsos valiam como verdadeiros. No entanto, não fora sem inquietação que Léa assistira ao minucioso exame dos documentos dos passageiros por parte dos soldados alemães e de policiais franceses. Obedecendo a um impulso, Léa confiou a bicicleta à guarda do chefe da estação, que a conhecia desde a infância, e comprou bilhete de ida e volta para Bordeaux.

- Não tem bagagem? - inquiriu um dos policiais.

- Não. Vou a Bordeaux apenas por um dia, visitar uma tia doente.

Subiu no trem no instante em que o chefe da estação apitou.

A viagem parecia não ter mais fim. O trem parava durante muito tempo em todas as estações. Eram quase dez horas quando a composição entrou em Saint-Jean. Ao descer, Léa tentou localizar o alferes Valéry. Na plataforma, porém, a multidão era tão compacta que se achou no saguão sem ter conseguido descobri-lo.

- Léa!

A moça sobressaltou-se. Perto dela, muito elegante, estava

Raphaël Mahl.

- Que alegria em vê-lo, Raphaél!

- E eu. . . nem se fala! De todas as minhas belas amigas ausentes de Paris nestes tempos absurdos, foi você quem me fez mais falta.

- Exagerado, com sempre!

Deixe-me admirá-la. Parece-me ainda mais linda do que antes da nossa lamentável derrota.

Algumas cabeças voltaram-se para eles.

Tenha cuidado! Estão nos olhando.

E então? Não é verdade? Não levamos uma surra monumental? - retorquiu Raphaël.

- Cale-se - implorou a jovem.

Mas. . . parece que isso a faz sofrer, menina. Vamos.

vamos.., estava brincando. Vamos sair daqui. Aonde vai?

- Não sei.

- Magnífico! Assim sendo, convido-a para almoçar. Um almoço como os de antigamente. Depois me dirá.

- Como queira.

- Não diga isso com ar tão triste! Assim, vestida de preto, parece ter perdido pai e mãe.

- Minha mãe morreu.

- Oh, lamento muito, Léa! Não direi mais bobagens.

Um automóvel e seu motorista aguardavam em frei'ite da estação. Mahl abriu a porta de trás e deu passagem a Léa.

- Para o jornal - ordenou ele, subindo.

Rodaram em silêncio durante alguns momentos.

- Conte-me como isso aconteceu - pediu ele, por fim.

- Minha mãe foi morta durante o bombardeio de 19 de junho.

- Eu estava em Bordeaux nessa altura. Acompanhei o governo desde Tours. Após esse bombardeio imbecil, que custou a vida de umas sessenta pessoas, quis deixar a França no dia seguinte. Tinha passagem a bordo do Massilia. Depois encontrei uma amiga - Sarah

Mulstein, que você conhece, aliás -, que procurava tirar o pai da França. Dispunham dos vistos necessários, mas não tinham passagens.

Cedi-lhes a minha.

- É muita generosidade de sua parte.

- Não se trata de generosidade. Simplesmente, não podia permitir que os alemães pusessem a mão num maestro tão excepcional como

Israel Lazare.

- Que aconteceu a Sarah Mulstein?

- Não sei. A 20 de junho, Bordeaux foi declarada cidade aberta; a 21 de junho foi assinado o Armistício; a 25, Pétain de cretou um dia de luto nacional; a 27, os alemães entravam jubilosa- mente em Bordeaux e, a 30, o governo deixava a cidade. Você não imagina a desordem que foi. Quanto a mim, regressei a Paris no dia 29. Na Rádio Mundial, ocupada pelos alemães, deram-me a entender que a minha presença era indesejável. Por sorte, graças a certos amigos, arranjei emprego como jornalista no Paris-Sair. É por isso que estou aqui de novo, fazendo uma reportagem.

O veículo parou diante do edifício do La Petite Gironde, onde Raphaël tinha o seu quartel-general. Instalou a jovem num gabinete sombrio, atulhado de pilhas de jornais.

- Sente-se. Não demoro. Tem muito que ler; cultive-se disse ele, designando os jornais.

Regressou cerca de meia hora mais tarde e levou-a a almoçar no Chapon Fin.

- Bom dia, sr. Mahl. A sua mesa está pronta - disse o inaitre, com uma saudação.

- Obrigado, Jean. Alguma coisa boa hoje?

- Não há grande coisa, sr. Mahl - respondeu ele, empurrando a cadeira para Léa. - Posso arranjar-lhe patê de fígado com um ChâteauYquem, carneiro com legumes, galinha recheada ou linguadinhos.

- Muito bem. E de sobremesa?

- Charloite de morangos com suco de framboesa ou então pro/iterolies de chocolate.

Devo estar sonhando - comentou Léa. - Pensei que os pratos nos restaurantes estivessem regulamentados.

- Não em todos, senhorita. Não em todos.

- Traga-nos então patê de fígado e vinho branco de Bordeaux. Que diz do carneiro, cara amiga? É uma delícia - disse ele para Léa. E depois, dirigindo-se de novo ao chefe dos garçons: - Traga- nos em seguida um Haut-Brion. Escolha uma boa safra.

- Vou lhe mandar o encarregado dos vinhos.

- Não é necessário. Diga-lhe que pode servir-nos já o branco de Bordeaux.

- Muito bem, sr. Mahl.

- Vem aqui com freqüência? - perguntou Léa, olhando à sua volta.

- Às vezes, pois é muito caro. Agora, porém, todos os restaurantes o são. Quando o governo estava sediado aqui, ia jantar muitas vezes no

Chez Catherine, um excelente restaurante, dirigido pelo sr. Dieu, grande cozinheiro e bibliófilo, com quem costumava discutir o problema do ano de edição do livro Voyage d'Egypte ei de Nubie, de' Norden. Dieu teimava ser de 1755 e eu, de 1757. Ele tinha razão.

Olhe aqueles oficiais alemães que se instalaram ali.

- Por que se admira? Nem todos os alemães comem apenas salsichas e repolho. Sei de muitos que são grandes entendidos em boas safras de vinho.

- Sem dúvida. Mas não deixa de ser muito desagradável.

- Terá de habituar-se, minha querida, ou, então, reunir-se ao general de Gaulle, em Londres. Eles vão ficar por aqui durante um bom tempo, pode crer.

Surgiu o encarregado dos vinhos, trazendo com precaução a garrafa de Château-Yquem, safra de 1918.

- O vinho da vitória - comentou ela em voz baixa para Mahl, apresentando-lhe a bebida.

- Cale-se - disse ele, dando uma rápida olhadela em redor.

- Depressa. Dê-me desse vinho - pediu Léa, estendendo o copo. - Vou beber pela vitória.

Um sorriso divertido distendeu os lábios de Mahl.

- E por que não? À vitória! - disse ele.

- À vitória! - exclamou Léa, elevando a voz e erguendo a taça.

Os copos tocaram-se em meio a um silêncio que tornava ainda mais incisivo o riso da jovem.

- Sr. Mahl. . . senhorita. . . por favor - sussurrou o gerente, que acorrera, olhando a mesa ocupada pelos oficiais alemães.

Um destes levantou-se da cadeira e fez uma saudação a Léa, com a taça de champanha na mão:

- E eu bebo à beleza das mulheres francesas.

- À beleza das mulheres francesas! - secundararu-no os companheiros, pondo-se em pé, por sua vez.

Léa enrubesceu de cólera e quis erguer-se, mas Raphaél a reteve.

- Fique quieta - ordenou.

- Não quero ficar no mesmo local onde está essa gente.

- Não seja ridícula e não chame a atenção. É uma imprudência. Pense em sua família.

- Por que diz isso?

Mahl baixou a voz para retorquir:

- Como lhe disse, estou aqui como repórter. Na realidade, investigo a rede clandestina encarregada de fazer passar para a Espanha certos indivíduos que pretendem reunir-se a De Gaulie ou atingir o norte da Africa.

- E então? Que tenho eu a ver com isso?

- Você, nada. Mas certas verificações efetuadas por mim levam a supor que um dominicano esteja à testa dessa rede - respondeu Raphaël

Mahl.

- Um domini.

- Um dominicano tal como seu tio Adrien Delmas, o célebre pregador.

- Que absurdo! Meu tio não se interessa por política.

- Não é isso que consta nos meios da alta sociedade de Bordeaux - contrapôs o companheiro.

- Como assim?

- As pessoas não esqueceram o apoio que ele prestou à revolução espanhola. Como bom francês, deveria denunciá-lo ao governo de

Vichy.

- E vai fazê-lo?

- Não sei. Coma o patê de fígado. É excelente.

- Não estou com fome.

- Vamos, Léa, como pode levar a sério o que eu digo? Sabe muito bem que estou sempre gracejando.

- Escolheu um tema muito estranho -.

- Vamos, coma.

Mahl.

A gulodice de Léa suplantou-lhe a inquietação.

- Eu não lhe disse que o patê era excelente? - observou

- Hum... - fez Léa.

- Sabe que estamos sentados à mesa onde se encontrava Mandel ao ser preso?

- Não. Nem sequer sabia que ele tivesse sido preso. Julguei que partira a bordo do Massilia.

- De fato, partiu. Mas, antes, foi detido por ordem do marechal Pétain. Eu ocupava a mesa ao lado da dele. Mandei acabava de almoçar em companhia de Béatrice Bretty, uma atriz, quando um coronel da polícia francesa se aproximou, pedindo para lhe falar. Mandei fitouo, continuando a saborear as suas cerejas. Depois de um tempo que me pareceu infinito, ergueu-se e seguiu-o. Comer cerejas em 17 de junho de 1940, vejam só! As cerejas se transformariam depois no símbolo de todas as depravações do regime. O coronel conduziu-o a seu gabinete, dando-lhe ordem de prisão, bem como ao antigo colaborador de Mandei, o general Bürher, chefe do estado-maior das tropas coloniais.

- Por que o prenderam? - quis saber Léa.

- Convenceram Pétain de que ele conspirava "com o propósito de impedir o Armistício".

- E como terminou o caso?

- Da melhor forma para Mandei. Pomaret, seu sucessor no Ministério do Interior, foi até a casa do marechal Pétain, que o recebeu na presença do ministro da Justiça, Aiibert, que por sua vez só tratava Mandei pela alcunha de "o Judeu". Antes, Pornaret mostrara-se bastante severo com o marechal, acusando-o de ter cometido um grave erro ao deixar o caso prosseguir. Pétain pediu então que lhe fossem buscar Mandei e Bürher. Este chorou, lastimando-se de haver sido preso diante de seus oficiais, apesar das cinco estrelas que ostentava. Quanto a Mandei, disse simplesmente:

"Não me humilharei apresentando-lhe explicações. É o senhor quem deve fornecê-las a mim". Para grande espanto de todos, Pétain retirou-se para seu gabinete. Pouco depois, regressava com um texto, que leu em' voz alta: "Senhor ministro, após as explicações que me deu.."" Mas eu não lhe dei qualquer explicação", objetou Mandei. "Tem de suprimir essa passagem." E o marechal refez a carta, transformando-a em mero pedido de desculpas; à noite, Mandei leu-o a Lebrun e a mais alguns indivíduos. Bem cômico, não acha?

- Incrível! - comentou Léa, sacudindo a cabeça. - Mas como conhece todos esses fatos?

- Ouvi-os da boca de Pomaret.

- E quem lançou a idéia da conjura?

- Um certo Georges Roux, escritor, advogado e colaborador do La Petite Gironde. Prenderam-no, mas logo o soltaram.

- Bordeaux deve ter sido uma cidade bastante curiosa durante essa época - disse Léa com expressão sonhadora, girando diante dos olhos o copo de Haut-Brion.

- Nunca vi nada que se lhe pudesse comparar - garantiu o companheiro. Imagine: dois milhões de refugiados dentro da cidade, nem um só quarto vago. No Hotel Bordeaux e no Hotel Splendide os próprios sofás do saguão foram alugados. Paris inteira emigrou para

Bordeaux. Por toda parte se encontravam amigos e conhecidos, e as pessoas quase esqueciam o êxodo devido ao prazer proporcionado pelos encontros. Nos terraços dos cafés, fazia-se e desfazia-se o governo. As filas alongavam-se à porta dos consulados para a obtenção de passaportes. Os ministros aconselhavam os Rothschild a partir, embora ninguém pensasse que os alemães avançassem até Bordeaux.

Os restaurantes abriam as portas às dez da manhã. À tarde, eu me atrasava conversando com uns e outros: com Julien Green, com Audiberti ou com Jean Hugo. À noite, vagava por sob as árvores à procura de uma alma gêmea. Nada é melhor para fomentar a devassidão do que os momentos graves - não se sabe de que será feito o amanhã; assim, é conveniente aproveitar rápido.

Além disso, quando se é um espectador impotente da debandada de uma nação, deve-se procurar o esquecimento no estupro e no álcool.

Nunca pensei testemunhar tanta covardia! Não passamos de velhos débeis de um velho país, o qual, desde há duzentos anos, vem se desagregando a partir do interior. É preciso se conformar.

- Eu não posso me conformar - contrariou Léa -, pois não pertenço à categoria desses velhos de que falou.

- Você, talvez, não. Mas onde estão os vigorosos jovens que deveriam defendê-la? Eu os vi derrubando em seu caminho civis aterrorizados, desfazendo-se das espingardas para correrem mais depressa, gordos, barrigudos, calvos antes do tempo, sonhando apenas com férias remuneradas, segurança e reforma.

- Cale-se! E você, o que fez? Onde está sua farda? E sua arma?

- Quanto a mim, minha querida, tal como todos os outros da minha espécie, tenho horror a armas de fogo - garantiu Raphaél, fazendo trejeitos. - Nós, os invertidos, só apreciamos fardas como condimentos para o amor. Veja nossos graciosos ocupantes, loiros, bronzeados, ao mesmo tempo viris e meigos, semelhantes a jovens deuses romanos! Dão-me água na boca.

- Você é ignóbil!

- Não sou, não; realista, quando muito. Já que a fina flor da juventude francesa foi morta ou aprisionada, sou obrigado a virar-me para o lado alemão. Acredite em mim, minha boa amiga: devia fazer o mesmo. Do contrário, ficará velha antes do fim da guerra. "Colhei, se em mim acreditais, as flores da vida.

- Deixe Ronsard em paz e fale-me, antes, de seu trabalho.

- Quer que lhe diga mais coisas sobre esse dominicano, sua curiosa!, não é verdade? Mas é segredo, minha linda, um segredo que não foi feito para tão bonitas orelhas. Olhe para esta charlotte de morangos! Não lhe dá água na boca? E estas prolzieroiles? Sou capaz de comê-las até ficar doente. Olá, bom dia, meu amigo! - disse Mahl, dirigindo-se a um homem que se aproximara da mesa.

- Bom dia, Mahl. Vejo que está em encantadora companhia. Não me apresenta?

Desculpe-me. Onde estou com a cabeça? Léa, apresento-lhe o meu amigo Richard Chapon. diretor do La Petite Gironde. Richard, a srta. Delmas.

- Bom dia, srta. Delmas. Tenho muito prazer em conhecê-la. mesmo em má companhia - disse o recém-chegado, piscando o olho. - Se alguma vez precisar de mim, não hesite em procurarme. Sentir-me-ei feliz podendo ser-lhe útil.

Muito obrigada, sr. Chapon.

Até logo, Mahl.

- Até logo.

Terminaram a refeição em silêncio. A sala esvaziava-se lentamente. Léa não estava habituada a beber tanto e sentia-se um pouco tonta.

- Venha. Vamos andar um pouco.

Um calor pesado os envolveu.

- Quando tornarei a vê-la, Léa?

- Não sei. Você está em Paris e eu aqui. E parece-me à vontade e feliz; eu, não.

- Não se iluda, menina. Sou feliz. Mas nunca completamente feliz. Habita em mim um sofrimento agudo, confuso e profundo que nunca me abandona. Aos vinte anos, desejei escrever um livro sublime; hoje, contento-me com um bom livro, apenas. Porque esse livro, Léa, trago-o aqui dentro. O trabalho do escritor é o único que amo verdadeiramente e é também o único que não conseguirei realizar. Tudo me distrai, tudo me atrai; disperso-me. Ambiciono a glória futura mas não tenho ambições cotidianas. As coisas me cansam bem depressa.

Gosto de todos e não gosto de ninguém, amo a chuva e o bom tempo, a cidade e o campo. Conservo no fundo da alma a nostalgia do Bem, da honra e das leis com as quais nunca me importei. Embora aborrecido com minha má reputação, tenho a fraqueza de extrair vaidade dela, O que me incomoda é o fato de não ser totalmente vicioso, de ser generoso até a extravagância, aliás por covardia a maior parte das vezes, de nunca ter fingido ser semivirtuoso, isto é, ser como toda a gente, no fundo, de preferir maus rapazes a hipócritas que simulam ser honestos quando apenas o são um pouco mais do que eu. Não me amo, mas me quero bem.

A última frase fez Léa rir,

- Tenho a certeza de que se tornará um grande escritor - garantiu ela.

- É isso o que importa! Veremos. . . Talvez me leiam depois de morto. Mas só falo de mim quando, afinal, é você que interessa, Vamos para Paris. Não fique aqui.

- Meu pai precisa de mim.

- Que coisa bonita! - exclamou ele, em tom de zombaria.

- Que boa menina! É maravilhoso o espírito de família. E por falar em família, recomende a seu tio dominicano que seja prudente. Não divulgarei no meu artigo aquilo que descobri, mas outros poderão fazê-lo,

Caminhavam de braços dados. Léa o fez parar e ergueu para ele os olhos brilhantes, dizendo:

- Obrigada, Raphaél. Não me esquecerei.

- Obrigada por quê? Eu não lhe disse nada. Separamo-nos ali - Mahl apontava a Igreja de Saint-Eulalie. - Se é crente, acenda uma vela por mim, Até logo, minha bela amiga. Não se esqueça de mim. Se precisar de mim, escreva para a Livraria Gallimard, no Boulevard

Raspail. Eles se ncarregarão de entregar-me a carta.

Beijou Léa com uma emoção que não procurou dissimular.

- A Rue Saint-Genès fica a dois passos daqui.

Com um último aceno, Mahl afastou-se.

Léa entrou na igreja. Depois da temperatura de fornalha experimentada lá fora, estremeceu devido ao frescor do lugar. Pegou uma vela num gesto mecânico, colocou algumas moedas na caixa das esmolas e acendeu o pavio. De círio na mão, encaminhou-se para a imagem de Santa Teresa do Menino Jesus, à qual a mãe dedicara particular devoção. A mãe, . . Léa sentou-se diante do altar e deixou correr as lágrimas. "A Rue Saint-Genès fica a dois passos daqui." Por que Raphaël lhe dissera aquilo? Que haveria na Rue Saint-Genès? O nome dizia-lhe algo. Mas o quê? Era exasperante não conseguir recordar-se. Um padre e um monge caminhavam pela nave. Tio Adrien. . . Rue Saint-Genès. . . Ah, o tio morava nessa rua! Ou melhor, essa era a rua do convento dos dominicanos. Entendia agora o motivo pelo qual Raphaël a acompanhara até ali. Precisava avisar o tio rapidamente.

Sob aquele calor, a Rue Saint-Genès estava deserta. A porta do mosteiro abriu-se de imediato.

- Em que posso ser-lhe útil, minha filha? - perguntou um frade de idade avançada.

Desejava falar com meu tio, o padre Delmas. Sou Léa Dei- mas - apresentou-se a jovem.

O padre Adrien encontra-se ausente há já alguns dias.

Que foi, irmão Georges? - perguntou um monge, surgindo no parlatório. Era de estatura elevada e uma bela cabeleira branca amenizavalhe o rosto severo.

- A srta. Delmas quer falar com o padre Adrien.

- Bom dia, minha filha. É uma das filhas de Pierre Delmas, sem dúvida. Conheci muito bem sua mãe, mulher admirável. Que Deus lhe dê coragem para suportar o desgosto.

- Obrigada, padre.

- Seu tio não está - prosseguiu ele com secura, - Tem algo de importante para comunicar-lhe?

- Ele deve. . . - principiou Léa. Interrompeu-se, porém, sem saber por quê.

- Deve o quê?

Por que não lhe dizia o motivo de sua visita? Apoderara-se dela uma inexplicável desconfiança.

- Sou o superior de seu tio - informou o monge. - Deve dizer-me a razão de sua visita.

Meu pai precisa lhe falar com urgência - mentiu Léa precipitadamente.

- Por que motivo?

- Não sei.

O superior fitou a jovem com frieza. Ela sustentou seu olhar.

- Assim que ele voltar, direi que esteve aqui e que seu pai deseja vê-lo. Até logo, minha filha. Que Deus a abençoe.

Lá fora, levantara-se uma brisa suave que não refrescava. Léa sentia o vestido preto colado ao corpo.

Como encontrar o tio Adrien? E onde estaria o alferes Valéry? Não se referira ele às docas? Mas que docas? Desencorajada, Léa parou.

Só Raphaël poderia dizer-lhe. Com alguma dificuldade, encontrou a Rue de Cheverus e as magníficas instalações do La Petite Gironde. Foi informada, porém, da partida de Mahl para Paris.

- Quem pergunta por aquele traste? - perguntou uma voz vinda de um dos gabinetes.

- Uma senhorita, senhor diretor.

- Uma senhorita procurando Mahl!? Não me digam! Mande entrar.

Contrariada, Léa entrou no gabinete, mas não viu ninguém.

- Estou aqui. Derrubei uma pilha de livros.

A voz saía de baixo de uma mesa cujo tampo desaparecia sob uma montanha de jornais, cartas, livros e processos. Léa inclinou-se.

- Ah, srta. Delmas! Espere só um instante e já a atendo. Richard Chapon ergueu-se com uma braçada de livros. Ia colocá-los sobre a escrivaninha, mas desistiu; e, à falta de outro lugar disponível em toda a sala, depositou-os sobre a sua cadeira.

- Procura Mahl? Foi-se embora. Admiro-me que uma moça tão bonita e de tão boa família conviva com alguém como ele. Os costumes da época assim o exigem, sem dúvida. Posso substituir Mahl em alguma coisa?

Léa hesitou. Como fazer a pergunta sem intrigar o jornalista? Poderia confiar nele?

- Como será possível encontrar um modo de sair da França? perguntou.

No rosto de Richard Chapon surgiu uma expressão de profundo espanto, seguida de breve angústia. Em passos lentos, foi fechar a porta.

- E queria perguntar isso a Mahl?

Léa sentiu que era necessário responder com prudência e arvorou seu ar mais cândido.

- Como Raphaél é jornalista, pensei que soubesse se isso é ou não possível.

- Tudo é possível. Mas admira-me tal pergunta feita por uma jovem. Quem é a pessoa que pretende sair da França?

- Ninguém. Simples curiosidade de minha parte.

- Você é muito nova e inexperiente. Mas não devia ignorar que, nas atuais circunstâncias, não se fazem certas perguntas apenas por uma questão de curiosidade.

- Muito bem. Não falemos mais no assunto - decidiu Léa em tom falsamente jovial. - Lamento muito tê-lo incomodado.

- Nunca me incomodará, minha cara - retorquiu ele jocosa- mente. - É importante? - sussurrou-lhe, retendo sua mão, que já tocava a maçaneta da porta.

Não - respondeu Léa, também num sussurro. Depois, reconsiderando, prosseguiu: - Poderá dizer a meu tio Adrien Delmas que seja prudente?

- O dominicano?

- Sim.

- Não se preocupe. Será dito.

- Muito obrigada. Até logo.

Léa tomou o trem no momento em que partia. Não havia lugares para sentar. Ficou no corredor, vendo desfilar perante os olhos os arredores de Bordeaux, as fábricas, as hortas dos ferroviários, os campos, as aldeias, as pequenas estações. Tentou refletir sobre aquele dia incoerente. Censurou-se por ter sido imprudente. Com tal atitude, não iria provocar uma série de catástrofes? A quem dirigir- se? Em quem confiar? O trem chegou à estação de Langon às nove horas.

- Ficamos tão assustados, minha querida! Onde esteve? - perguntou Pierre Delmas, apertando a filha contra si.

A família reunira-se na sala de visitas para ouvir Françoise tocar piano e todos se ergueram à chegada de Léa. Camilie, de olhos brilhantes, fitava-a intensamente. Ruth assoou-se com estrondo. Lisa agitou as mãos pequenas e rechonchudas. Albertine pigarreou e Françoise franziu as sobrancelhas. Só Laure continuava a folhear o livro que tinha entre as mãos.

Quis ir a Bordeaux, visitar o tio Adrien - mentiu a jovem.

- A Bordeaux, com todos esses boches por aí! - exclamou Bernadette Bouchardeau.

- Pare de chamar os alemães de boches, tia! Eles não gostam disso - observou Françoise com um desagrado que Léa achou excessivo.

São boches, e eu os chamos de boches, senhorita! Françoise encolheu os ombros.

- Por que não me disse que queria ver seu tio? Teria ido com você. Sua mãe também ficaria satisfeita se o visse.

Abateu-se sobre todos um silêncio constrangedor. Léa encarou o pai com espanto e mágoa. Pobre papai, como mudara! Parecia mais frágil agora. Suas expressões, às vezes, ficavam quase infantis. Parecia necessitar de proteção, ele, o protetor nato.

- Desculpe-me, papai - disse Léa.

Não faça isso outra vez, minha querida, eu lhe peço. Fiquei muito preocupado. Viu seu tio?

- Não. Não estava.

- Também não compareceu ao enterro de Isabelie. - - - censurou Bernadette.

- Você não jantou e deve estar com fome - interveio Camille. - Vou preparar alguma coisa. Quer vir à cozinha?

Léa seguiu Camille, que abriu a geladeira e pegou alguns ovos.

- Quer uma omelete?

- Quero - concordou Léa, instalando-se à mesa.

- E então? - quis saber Camille, quebrando os ovos na tigela.

- O alferes não teve nenhum problema em Langon. E acho que em Bordeaux também não. Encontrei Raphaél Mahl na estação de SaintJean. Almoçamos juntos. Pelo que me disse, concluí que tio Adrien é o dominicano em questão.

- Isso não me espanta da parte dele comentou Camilie, pondo na frigideira um pedacinho de manteiga.

- Não entendo. Não devemos obedecer às diretivas do marechal Pétain? Não é ele o salvador da França, o pai de todos os franceses? E o que dizem tia Lisa e tia Bernadette.

- Não sei. Mas acho que o dever de todos os franceses é combater o inimigo.

Mas como? Que quer que façamos?

- Também não sei, mas hei de saber. Coma - disse ela, pondo a omelete à frente de Léa.

- Obrigada.

- As vindimas estão próximas - lembrou Camille. E seu pai ainda não tocou no assunto.

- É verdade. Tinha-me esquecido. Amanhã vou lhe perguntar o que tenciona fazer. Por instantes, Léa ficou comendo em silêncio.

- Não acha que papai anda esquisito já há alguns dias? - perguntou ela, por fim.

Perdeu-se uma parte das colheitas por falta de braços para o trabalho, embora toda a gente de Montillac tivesse participado da tarefa. As mulheres, porém, pouco habituadas a trabalhos agrícolas, mostravam-se lentas e desajeitadas, apesar da boa vontade. Camille, cujo estado de saúde era incompatível com a tarefa da vindima, ajudou a velha Sidonie e a sra. Fayard a conduzir o carro puxado por dois bois e a preparar as refeições.

Léa viu-se forçada a organizar os trabalhos, pois o pai manifestara a mais completa indiferença pelo assunto. Até mesmo Fayard, o encarregado das adegas, sem notícias do filho, não dera mostras da sua antiga competência. O sr. d'Argilat apenas pôde dispensar alguns conselhos, visto que ele mesmo vivia uma situação dramática em Roches-Bianches.

Léa recusara com altivez o auxílio proposto pelos "pensionistas" alemães, apesar das instâncias de Françoise, e assistiu com raiva impotente ao apodrecimento dos cachos nas parreiras.

Tudo corria mal nesse outono de 1940. Na companhia de Ruth, Léa vasculhara os campos vizinhos com o propósito de comprar leitões, frangos, coelhos e patos. Conseguira trazer para casa apenas alguns frangos magros, metade dos quais morreu, e um porquinho, cuja alimentação se revelou muito cara.

Léa desconhecia por completo a situação financeira da família. Sempre julgara seus pais ricos. Mas Pierre Delmas informou-lhe que o grosso da fortuna se achava nas ilhas. Haviam sido desastrosos, também, certos investimentos feitos antes da guerra.

- Então não temos dinheiro? - perguntou Léa, incrédula.

- Não - confirmou o pai, sorrindo. Exceto as rendas dos prédios de Bordeaux.

- E a quanto montam por mês?

- Não sei. Pergunte à sua mãe. É ela quem trata do assunto.

"Pergunte à sua mãe Quantas vezes o ouvira dizer aquilo? Várias vezes ao dia, segundo julgava. A princípio, só lhe prestara atenção pela mágoa que lhe provocava. No entanto, com o decorrer do tempo, frases como aquela davam-lhe um receio de algo que não se atrevia a confessar. Em sua casa, aliás, todas as outras pessoas experimentavam o mesmo sentimento. Certo dia, enchendo-se de coragem, Léa abordou o assunto com o dr. Blanchard, durante uma de suas visitas a Camille.

- Eu sei - disse ele. - Prescrevi-lhe um tratamento, há tempos. Tem de ter paciência, Léa. Seu pai está ainda sob o efeito do choque.

- Mas tenho a impressão de que o seu estado se agrava a cada dia. Está cada vez mais ausente - contrapôs a jovem. Tenho medo.

- Vamos, vamos, não se deixe abater! Você e Ruth são os únicos esteios desta casa. Não incluo neste número a sra. d'Argilat, pois dentro em breve regressará a Roches-Blanches.

- Já?

- Não está satisfeita com isso? julguei que suportasse a sua presença com dificuldade.

Léa deu de ombros, agastada.

De forma alguma - disse ela. - Camille é muito útil aqui, e prometi a Laurent olhar por ela.

- Receberam mais notícias dele?

- Recebemos, Uma carta de vinte e cinco linhas. Diz que vai bem e pede sapatos, roupa-branca e tabaco. Mandamos ontem um pacote.

Quanto aos sapatos, foi o mais difícil. Françoise desencantou um par, mas nunca disse como; uns magníficos sapatos de sola de borracha.

 

Capítulo 19

O Natal de 1940 foi um dos mais tristes para os moradores de Montillac.

Três semanas antes, tinham enterrado o sr. d'Argilar. Morrera durante o sono, após uma doença de cuja gravidade ninguém suspeitara, nem mesmo as pessoas mais chegadas. Tal como ele próprio dissera, morreu sem tornar a ver o filho. À notícia da morte de seu melhor amigo, Pierre Delmas permaneceu como que estupidificado durante vários dias. Desse modo, foi Léa quem se encarregou das formalidades necessárias. Escreveu também a Laurent, comunicando-lhe a triste notícia; perguntava igualmente quais as medidas que deveria tomar referentes à propriedade. Teve nessa altura uma violenta altercação com Françoise. Reprovou-lhe o fato de não dar o mínimo apoio aos problemas domésticos, pensando apenas no hospital no momento em que a família necessitava da sua colaboração.

- Mas faço tanto quanto você! - contestou Françoise. - Quem é que traz carne para casa, por exemplo, quando não conseguem encontrá-la em parte alguma? E azeite? E o açúcar e os dois sacos de carvão? Você, talvez? Se tivesse ficado em casa trabalhando, como você, não teríamos grande coisa para comer.

Era verdade; Françoise tinha razão. Sem ela, a família seria obrigada a alimentar-se de nabo-sueco, da batata e das castanhas que Léa,

Ruth e Laure apanhavam pelas matas perto de La Réole. Mas como se arranjaria Françoise para aparecer em casa com todas aquelas coisas? Tanto mais que nunca pedia dinheiro, afirmando bastar-lhe o salário de enfermeira. Léa suspeitava de algo, pois, além dos gêneros de primeira necessidade, a irmã comprava ainda com certa freqüência saias, vestidos, lenços de seda e até mesmo sapatos.

Prometera tentar obter para Léa, na cooperativa do hospital, alguns desses artigos.

Por diversas vezes, ela procurara interessar Françoise no destino de Montillac, pedindo-lhe opiniões quanto ao modo de gerir a propriedade, esperando que o pai superasse o desgosto. Mas obtivera apenas a mesma resposta indiferente:

Tudo o que você fizer estará bem feito, irmãzinha.

- O assunto também lhe diz respeito insistia Léa.

Trata-se da nossa terra, da nossa casa, da casa onde nascemos e que mamãe amou e embelezou.

- Nunca entendi o que todos vocês vêem nesta casinha velha e muito menos nestes campos de um tédio mortal.

Léa ficara sem palavras perante tal saída e, tal como na infância, atirara-se à irmã para lhe bater. Françoise escapara da bofetada, refugiando-se no quarto. Desde então, as relações entre as duas irmãs se tornaram mais tensas.

Não obstante chegar até ali o som do bombardeio que ecoava para os lados de Bordeaux, Ruth, tal como todos os anos acontecia, colocou na sala de visitas o tradicional pinheiro, ornamentando-o com as grinaldas e as bolas de vidro que Isabelle Delmas conservara religiosamente dentro de caixas de sapato desde o nascimento da filha mais velha. Era a primeira vez que Isabelie não punha no presépio o Menino Jesus de cera. Coube a Camilie executar o gesto simbólico.

Estelle e a sra. Fayart excederam-se na preparação do jantar, fazendo com que os comensais esquecessem os acepipes da cozinheira, despedida por medida de economia. Havia um enorme peru, oferta de Françoise, como é óbvio, couves recheadas, cozidas lentamente no molho da própria ave, purê de castanhas e uma barra de chocolate, obra-prima de Estelle. Completavam a refeição festiva algumas garrafas do bom vinho da propriedade.

Estava um frio tão intenso que renunciaram à missa da meia- noite e cearam cedo. Apesar do luto, todos eles tinham feito um esforço para melhorar o aspecto pessoal, exibindo uma echarpe, um colar ou uma flor, detalhes que davam um toque mais alegre ao negrume dos trajes. O pequeno Charles ensaiava seus primeiros sorrisos.

Depois da refeição, a família passou à sala, que estava quente e profusamente iluminada devido às velas da árvore de Natal e ao fogo que ardia na lareira. Camille ofereceu a Léa um magnífico colar de pérolas, que pertencera à sua mãe.

Oh, Camille, que maravilha! - exclamou Léa. - Mas não posso aceitar.

- Aceite, eu lhe peço, minha querida. Vai me fazer multo feliz!

Léa envergonhou-se da modéstia do seu próprio presente: um retrato do bebê feito a caneta, que Camille apertou contra o peito.

- Nada me teria dado maior prazer - assegurou. - Não se importa que o mande a Laurent?

- É seu. Faça dele o que quiser.

Françoise e Laure receberam ambas belas pulseiras de ouro;

Ruth, um pregador com uma safira; Lisa, uma gola de renda; Albertine, uma edição antiga dos Pensamentos de Pascal; Bernadette Bou.

chardeau e Estelle, lenços de seda. Quanto a Pierre Delmas, Carnille presenteou-o com uma caixa de charutos, os seus preferidos.

Ruth e Bernadette ofereceram luvas, echarpes, meias e blusas de malha, feitas por elas próprias durante os serões. Todos haviam encontrado um modo engenhoso de agradar aos outros segundo os próprios recursos. As senhoras de Montpleynet ofereceram às sobrinhas cortes de fazenda para casacos de inverno. No meio da euforia um tanto lassa que acompanha geralmente a entrega de presentes de Natal, todos esqueceram, por momentos, os próprios desgostos, os receios e a guerra, enquanto Françoise tocava uma fuga de Bach.

Pela primeira vez Léa pensou na mãe sem revolta nem mágoas. A mão de alguém apertou a sua mas ela não a retirou, embora reconhecesse os dedos magros de Camille. Quando Françoise terminou a execução, soaram aplausos no vestíbulo, adiantando-se aos da platéia na sala. Ao se voltar, todos viram Otto Kramer e Frederic Hanke. Françoise ergueu-se e encaminhou-se para os alemães. Instantes depois, os três entravam no salão.

- Sua filha insistiu em que eu e o meu camarada entrássemos - disse o tenente Kramer, dirigindo-se a Pierre Delmas. - Tomamos a liberdade de descer para ouvir Bach. Minha mãe é excelente pianista e aprecia muito esse compositor. Apesar da guerra, permitam-me desejar-lhes um feliz Natal.

Bateu os calcanhares, encaminhando-se para a saída. Contra todas as expectativas, Camille propôs:

- Neste dia de Natal, esqueçamos o fato de sermos inimigos. Venham tomar uma bebida conosco.

- Muito obrigado, minha senhora - agradeceu Hanke.

- Heilige Weinacht! - saudou ela.

- Feliz Natal! - replicaram os oficiais, em francês.

- Disse que sua mãe era pianista, tenente. Você também é?

- inquiriu Lisa, com afetação.

- É um dos melhores pianistas da Alemanha - antecipou-se o camarada.

- Não acredite. Ele está exagerando - contrapôs o rapaz.

- Mas, tenente.

- Cale-se, Frederic.

- Toque alguma coisa, tenente, peço-lhe - solicitou Françoise.

Todos os olhares convergiram para a jovem. Esta baixou a cabeça, corando. Era conhecida a sua paixão pela música. Não faltava a um concerto realizado em Bordeaux. Não fora Françoise assistir ao Sansão e Dalila e ao Bolero de Ravel, na inauguração da temporada lírica, apesar da oposição de Ruth e das tias? Mas daí a pedir a uru oficial alemão que tocasse.

- Se seu pai autorizar, terei prazer em ser-lhe agradável.

- Faça o favor, senhor oficial. Minha mulher aprecia imensamente a música - replicou Pierre Delmas, puxando uma tragada do charuto, com o rosto congestionado e o olhar ausente.

Otto Kramer instalou-se ao piano.

- Vai ver que vai nos tocar Wagner - segredou Léa a Camilie. Por uma questão de delicadeza que a todos sensibilizou, Kramer executou com virtuosismo diversas peças para piano de Debussy. Quando a última nota se perdeu no ar e após alguns segundos de silêncio, soaram os aplausos. Mas só Camille notou a alegria e o orgulho que iluminavam o rosto de Françoise.

Foi no dia seguinte ao desse Natal que Laurent d'Argilat, na companhia de um amigo, fugiu do campo de Westphalenhof, onde fora internado. Os dois homens aproveitaram um trabalho no bosque fora do campo e a cumplicidade de dois outros camaradas. Estes, fingindo-se doentes, baixaram à enfermaria, deixando-a depois clandestinamente para se misturar ao pequeno grupo de prisioneiros, após a chamada feita pelos guardas. Ao chegarem à mata, Laurent e o amigo esconderam-se sob as ramagens. O tempo estava sombrio, nevava e fazia um frio cortante. Os guardas abreviaram a tarefa, reuniram e contaram os detidos - o número estava certo. O destacamento regressou ao campo de concentração.

Loucos de alegria, Laurent e o companheiro ergueram-se e caminharam para a liberdade. O manto de neve tinha vários centímetros de espessura. Depois de meia hora, viram-se forçados a interromper a marcha para recobrar alento e livrarem-se dos uniformes da prisão. No decorrer das longas horas de cativeiro, Laurent conseguira confeccionar um paletó jaquetão, utilizando a jaqueta de um policial holandês.

Sob o casaco, vestia as duas camisas de lã enviadas por Camille. Completavam-lhe o traje um par de luvas de couro, forradas, os sapatos dados por Françoise e um boné de carvoeiro. Levavam víveres e sacos de dormir dentro das mochilas. Retomaram a marcha rumo à estação de Jastrov, a quarenta quilômetros de distancia.

Pernoitaram à beira da estrada numa cabana de cantoneiro. Na noite seguinte, atravessaram a aldeia de Jastrov. As ruas ostentavam ainda enfeites natalinos. Pares enlaçados dirigiam-se para o baile. A porta aberta de uma taberna lançava tépidas lufadas de tabaco e de álcool, misturadas à melodia de um acordeão. . . Apressaram-se em busca de um trem providencial. Mas todos os que passavam seguiam em direção oposta. Gelados, refugiaram-se num vagão estacionado na linha de reserva. Apesar dos sacos de dormir, o frio atormentou-os até de madrugada.

Depois dessa noite interminável, sem passagens, tomaram o trem que seguia para Scheindemühl. Viajaram clandestinamente durante seis dias em vagões de batata, de transporte de gado ou pedra. Por vezes, também sem passagens, apanhavam composições de passageiros, procurando esgueirar-se entre a multidão de viajantes.

O fato de Laurent saber alemão evitou que fossem presos por diversas vezes. Passaram sucessivamente por Frankfurt-sur-l'Oder, Cottbus,

Leipzig, Halie, Cassel e Frankfurt-sur-le-Main. Atravessaram o Reno em Mayence, escondidos na guarita do guarda-freios.

A fuga terminou em Bingerbrück, em frente do painel dos horários da estação, onde o companheiro de Laurent, interpelado por um policial, não conseguiu responder porque não falava alemão. Mas não foi preso de imediato, na suposição de que tivesse um cúmplice.

Ao vê-lo de longe, calmamente sentado, Laurent preparava-se para juntar-se a ele quando, de chofre, o rapaz se ergueu, precipitando-se para o trem de carga que passava. Conseguiram içar-se para um vagão plano, enquanto policiais corriam ao longo da plataforma, gritando. Por desgraça, a composição parou e os alemães, de pistola em punho, apanharam-nos. Sem contemplação, foram conduzidos ao posto de polícia da estação. O clima mudou quando Laurent respondeu às primeiras perguntas num alemão perfeito. Deram-lhes sopa quente e carne, exprimindo-lhes admiração pela proeza realizada. Em seguida, encerraram-nos na cadeia municipal. No dia seguinte, solidamente vigiados por três guardas, foram reconduzidos ao campo de Westphalenhof.

Interrogou-os um oficial do serviço de informações que concordou em que mereciam ter sido bem sucedidos. Foram condenados a trinta dias de cárcere. Haviam decorrido nove dias após a fuga.

À saída do gabinete do oficial, tiveram direito ao "sermão" de um certo coronel Malgron, capelão dos prisioneiros do Oflag sermão que versou sobre o caráter egoísta de semelhante aventura e sobre as desagradáveis conseqüências que poderia ter- lhes acarretado, não fora a generosidade do comandante do campo. Aconselhou-os também a meditar sobre o verdadeiro sentido dos seus deveres atuais - mostrarem-se prisioneiros exemplares era a contribuição mais eficaz que poderiam dar à política do marechal Pétain, penhor do advento próximo de uma "França européia".

Cumprida a pena, regressaram ao acampamento. Não por muito tempo, porém; como medida de segurança, foram transferidos para outro campo.

Tinham decorrido mais de sete meses desde sua captura numa praia francesa, no verão.

 

Capítulo 20

O inverno parecia interminável. Devido à escassez de combustível, a temperatura no interior da casa enorme era apenas de dez graus.

Tomavam-se as refeições na cozinha, aquecida pelo velho fogão a lenha, em que Estelie e Ruth cozinhavam. Toda a família passava fome, não obstante os víveres que Françoise, por vezes, trazia de Langon.

Naquela região vinícola, quase todos os habitantes passaram fome e frio durante o rigoroso inverno de 1940-41. Enraivecidos, os ferroviários viam partir para a Alemanha composições inteiras abarrotadas de carne, farinha, legumes e lenha.

Em Montillac, entretanto, todos se submetiam a privações para enviarem coisas a Laurent. Em fevereiro, uma carta comunicava lhes a sua transferência para a Fortaleza de Colditz.

No mês de março, Albertine e Lise de Montpleynet anunciaram a sua decisão de regressar a Paris. As duas senhoras, habituadas à vida da cidade, não conseguiam suportar o campo por mais tempo.

A família tentou demovê-las desse propósito, mas só Isabelle Delmas o teria conseguido. A primavera trouxe consigo algum conforto. Tinham sido semeados ou plantados legumes na área do prado cultivada por Ruth e por Léa. Esta vigiava com paixão o crescimento do mais insignificant caule verde. A seus olhos, revestia-se de capital importância o sucesso da iniciativa, pois representava a compensação da fadiga.

das mãos calejadas, das frieiras e daquela fome que jurara a si próprio nunca mais experimentar de novo. A vinha, permanentemente sob os cuidados dos habitantes da região, transformou-se em fator menos preocupante quando Fayard, agora no cargo de administrador da propriedade, recebeu notícias do filho - era prisioneiro na Alemanha mas regressaria dentro em breve, conforme assegurara o marechal Pétain.

O amor e o reconhecimento de Fayard pelo marechal não conheceram então limites. Ali estava um dirigente que se preocupava com o destino dos infelizes militares prisioneiros! A França achavase em boas mãos. Trabalho, Família e Pátria - esse era o futuro.

Com que renovado ardor o antigo combatente da Guerra de 1914 retomou o trabalho! Uma única nuvem lhe toldava a alegria: era lhe difícil acostumar-se à presença dos alemães em Montillac. Para ele, a vista de um uniforme germânico sempre era uma surpresa desagradável.

Mathias Fayard foi libertado no mês de maio. Ao vê-lo, Léa reencontrou o sorriso que a abandonara desde a morte da mãe. Quando o jovem a apertou nos braços, um arrepio violento veio despertar-lhe o corpo adormecido. Indiferente ao olhar desaprovador de Ruth e à expressão alegre de Camille, Léa prolongou o abraço.

Mathias observava-a, incrédulo e satisfeito. Achava-a mudada, amadurecida, bela, de uma beleza ainda mais violenta e com uma nova dureza no olhar.

- Está tão magro e sujo que dá medo - comentou a amiga.

- Venha. Vou lhe preparar o banho.

Mas, srta. Léa - interveio o pai do rapaz, mordiscando o bigode. - Mathias pode muito bem lavar-se em nossa casa.

- Deixe, Fayard. O que minha filha fizer estará bem feito. A mãe dela ainda hoje de manhã me dizia.

- Ora, papai.

Sem dar tempo aos pais de Mathias para reagir, Léa arrastou-o pelas escadas acima, até o quarto das crianças. Enlaçados, rolaram sobre as almofadas.

- Você está vivo. . . está vivo. . . - dizia Léa sem cessar.

- Não podia morrer, pois pensava em você.

Tocavam-se, impregnando-se um do outro como para se assegurar de sua recíproca existência. Léa, com o rosto escondido no pescoço do companheiro, mordiscava-o.

Deixe-me - disse ele. - Estou sujo de fazer medo, e é mesmo possível que esteja com piolhos.

À palavra "piolhos", Léa repeliu-o. Mathias sabia qual seria a reação da amiga quando ele dissesse isso. Desde a infância, Léa não suportava a idéia de ficar com piolhos. À sua mera evocação, experimentava uma sensação de nojo. Mathias riu de seu ar de repugnância.

- Tem razão. Espere aqui. Vou abrir as torneiras.

O banheiro do quarto das crianças era o maior e o mais antigo da casa. Era pouco usado, porém, pois para se encher a enorme banheira era preciso usar toda a água do aquecedor. Aquela peça tinha para Léa o encanto das lembranças infantis; possuía dois lavatórios de válvula basculante, toucador com forração de pano florido em cores suaves, canapé de junco e uma janela alta voltada para o sul, com cortinado de cretone branco. Todas as tardes, naquela mesma banheira, Isabelle Delmas dava banho nas filhas, em meio a risos, gritos e muita água esparramada. Às vezes, atraído por tanto barulho, Pierre Delmas aparecia, simulando ares de reprovação. A algazarra das crianças atingia o auge nesse momento, para ver qual delas teria o privilégio de ser enxugada pelo pai. Laure, a mais nova, recebia esta atenção com mais freqüência, diante do descontentamento de Léa; só ela queria ser embrulhada no grande lenol de banho e transportada para o quarto pelo pai.

Sob o jato de água das torneiras, Léa despejou os últimos sais de banho com perfume de alfazema pertencentes à mãe. Emocionou-a de tal forma o vapor quente e cheiroso exalado pela água da banheira, evocação de tempos passados, que rompeu em soluços. Escorregou para o chão e se ajoelhou no tapete de banho; e, com a testa encostada ao rebordo de esmalte, deu livre curso à sua tristeza.

- Léa! - exclamou Camille, ajoelhando junto da amiga e afagando-lhe os cabelos. - O que você tem, minha querida?

- Mamãe.

Diante de um desgosto tão profundo e infantil, Camille também não conseguiu reter as lágrimas.

Foi assim que Ruth as encontrou momentos depois.

- O que aconteceu? - perguntou. - Algum acidente?

- Não, não. Não se preocupe, Ruth. Apenas uma crise de choro - esclareceu Camilie, erguendo-se.

Com cuidados maternais, passou um pouco de água fresca no rosto de Léa.

- O tenente Kramer está lá embaixo, sra. d'Argilat, e deseja lhe falar - comunicou Ruth.

- Que faz ele aqui durante o dia? Por que motivo quer falar comigo?

- Não sei. Mas está com um ar um tanto sombrio.

- Deus do céu! Contanto que nada tenha acontecido a Laurent!

- Mas o que poderia lhe acontecer? Como prisioneiro, não corre riscos - garantiu Léa, enxugando o rosto.

- Venha comigo -. pediu Camilie. - Não tenho coragem de enfrentar o tenente sozinha.

- Primeiro, vamos ajeitar os cabelos. Olhe para nossas caras! Se o tenente descobrir que choramos, vai começar a imaginar coisas.

Tem razão - concordou Camille.

As duas mulheres procuraram então apagar os vestígios de sua tristeza.

- Por favor, Ruth, diga a Mathias que o banho está pronto

- pediu Léa, ajeitando a saia. - Ele ficou no quarto.

De pé, o oficial aguardava na sala de visitas. Inclinou-se à entrada das moças.

- Pediu para falar comigo? - perguntou Camille.

- Sim, minha senhora. Devo comunicar-lhe uma notícia bastante desagradável: seu marido fugiu.

Camille ficou impassível.

- Não sabia disso, não é? - prosseguiu o tenente Kramer.

Ela acenou negativamente com a cabeça.

- Quando isso aconteceu? - perguntou Léa.

- Durante a Páscoa.

E só agora o soube?

- Não, não foi só agora. Fomos informados há já três semanas - respondeu o oficial.

- E por que motivo só hoje me avisa?

- Colocamos sob vigilância esta casa e a propriedade de Roches-Bianches, para o caso de seu marido vir encontrá-los,

- E o senhor o teria prendido...

- Seria meu dever, minha senhora. A contragosto, sim, mas o faria. Como seu hóspede e dedicando-lhes simpatia e estima, quis ser eu mesmo a comunicar-lhes a fuga.

- O que acontecerá se ele for capturado?

- Esta já é a sua segunda tentativa de fuga. Assim sendo, arrisca-se a ser tratado com muito mais severidade a partir de agora.

- Mas não é natural que um prisioneiro procure fugir? - interveio Léa, encolerizada.

- Sou da mesma opinião, srta. Delmas. Se eu próprio estivesse detido, tentaria fugir a qualquer preço. Mas não é esse o caso. Ganhamos a guerra e.

- Por agora - cortou Léa.

- Claro. A glória é bastante caprichosa. Atualmente, porém, nenhum país possui capacidade para derrotar o Grande Reich.

- Nem mesmo os americanos?

- Nem mesmo eles. Permita-me um conselho, sra. d'Argilat:

se, por milagre, seu marido conseguir furtar-se à nossa vigilância, convença-o a entregar-se.

- Nunca farei semelhante coisa!

Falo-lhe no interesse dele e no seu, minha senhora. Pense também em seu filho.

- É precisamente pensando nele que jamais instigarei meu marido a agir desse modo.

O tenente Kramer fitou com uma espécie de ternura a mulher frágil que o enfrentava, comentando:

- Ah, se todos os franceses tivessem pensado como a senhora'

- Tenho a certeza de que, no íntimo, todos pensam como eu.

- Se é esse o caso, então tal sentimento de honra está bem escondido.

Batendo os calcanhares, o oficial cumprimentou-as e saiu.

Camilie e Léa permaneceram silenciosas durante muito tempo. "Queira Deus que Laurent não venha para cá", diziam ambas, intimamente.

- Temos de prevenir tio Adrien - disse Léa, por fim.

- Mas como? Nunca mais tivemos notícias dele desde sua rápida aparição no início de fevereiro.

- Antes de partir, disse-me que, em caso de urgência, poderíamos deixar recado a Richard Chapon; ele o transmitiria. Vou a Bordeaux.

- Vou com você.

- Não. Se formos as duas, o tenente desconfiará de qualquer coisa e talvez mande seguir-nos. Espere. . . tenho uma idéia. Papai e Ruth vão amanhã visitar Laure no colégio. Direi a eles que estou com saudade dela.

Léa deixou a sala e, no vestíbulo, esbarrou com um rapaz alto, cheirando a alfazema, que a tomou nos braços.

- Que é isso? - protestou Léa. - Ah, é você? Tinha-me esquecido.

- Tão cedo? Mal acabo de chegar e já saí da sua vida! É muito pouco lisonjeiro de sua parte.

- Não, não é isso, Mathias. É que. . . desculpe-me, mas não posso dizer. Encontramo-nos no refúgio dentro de uma hora.

Léa acabara de reunir-se a Mathias quando começou a chover. Refugiaram-se numa das capelas e, aninhados um contra o outro para se aquecerem, ambos relataram tudo o que havia lhes acontecido após a separação em Orléans.

Léa informou Mathias de todos os episódios desse período, mesmo o incidente da morte do assaltante. Omitiu, porém, as relações com

François Tavernier.

Quanto a Mathias, depois de ter ajudado no socorro aos feridos de Orléans, em vão procurara a amiga no meio dos escombros e da multidão de refugiados. Juntara-se, em seguida, a uru pequeno grupo de militares sob as ordens de um alferes e combatera perto da catedral. Todos os companheiros foram mortos, à exceção do cabo, que foi feito prisioneiro junto com ele. Tinham sido postos em campos provisórios rodeados de arame farpado, perto da Igreja de Saint-Euverte e depois em Motte-Sanguin. No dia seguinte, ele ajudou no combate ao incêndio que devastara Orléans durante cinco dias, na remoção de escombros, no transporte de feridos e no enterro dos mortos. A pé, como carneiro de mísero rebanho, incorporara-se aos dezoito mil prisioneiros do campo de concentração de Pithiviers.

Dormiam deitados no chão, em cima da lama, famintos, sujos, cobertos de parasitas, sem sequer notar o cheiro pestilento que se desprendia dos corpos de todos aqueles homens, muitos dos quais não mudavam de camisa e de meias havia um mês. Lutava-se por um pedaço de pão bolorento, por uma sopa de cevada de aspecto duvidoso, recolhida numa gamela improvisada, numa velha tigela ou numa lata de conserva.

De cabeça baixa, Mathias relatou tudo. . . os trinta gramas de carne de cavalo a que tinham direito de tempos em tempos; a alegria sentida quando a Associação das Mulheres Francesas distribuiu alguns cobertores; os sanduíches de patê de fígado oferecidos pela Legião

Americana; o sabonete com perfume de cravo dado por uma moça; a esperança, sempre adiada, da libertação próxima; a generalizada confiança no marechal Pétain; o maço de cigarros no valor de um franco e que lhes custava cem; o progressivo desencorajamento; as missas, às quais assistia um número cada vez maior de internados: cem dos dezoito mil em princípios de junho, outros dois mil e quinhentos no início de agosto. Mathias fizera parte desses dois mil, pedindo a Deus que lhe concedesse a graça de ver Léa de novo. Num tom de voz enraivecido, o rapaz falou ainda da covardia de todos eles face à idéia da fuga, bastante fácil, aliás; do contentamento diante da notícia do Armistício e da decepção perante as cláusulas que poriam fim às hostilidades, sobretudo o Parágrafo 20, onde se especificava que "todos os prisioneiros de guerra franceses permanecerão em campos de concentração alemães até a assinatura da paz".

Contou também a Léa as horas infindáveis de inatividade, quando relembravam o passado, imaginavam, com fome roendo-lhes as entranhas, cardápios pantagruélicos ou sonhavam com mulheres. Felizmente para ele, o tempo das colheitas chegara; fora incorporado ao grupo de jovens agricultores enviados por toda a França, para substituir os homens que faltavam no trabalho dos campos.

- Nunca pensei tirar tanto prazer do ato de apanhar aqueles feixes de trigo, com o dorso nu, sob o sol escaldante - afirmou Mathias. Pudemos, por fim, matar a fome.

Escrevera a Léa e ao pai de uma propriedade de Beauce. As duas cartas, porém, nunca lhes chegaram às mãos. Sem resposta, Mathias tentara fugir, "pedindo emprestada" a roupa do dono da quinta. Capturado ao fim de trinta quilômetros de marcha, embarcara para a

Alemanha num vagão de transporte de gado. Ficara apenas quinze dias num Stalag próximo a Frankfurt, sendo depois enviado para uma exploração florestal, onde permaneceu até ser solto. Mathias não entendia por que motivo o tinham libertado, visto não ter encargos de família. A única explicação plausível era a circunstância de, terminados os trabalhos, o proprietário já não necessitar de mão-de-obra e de os campos de concentração daquela área estarem superlotados. Isso coincidira também com o fato de governo de Vichy se mostrar empenhado, nessa altura, na libertação dos prisioneiros de guerra. Tivera sorte, e mais sorte ainda ao encontrar Léa sã e salva.

E agora, que vai fazer? - perguntou ela.

Trabalhar. Meu pai precisa muito de mim.

Claro, evidentemente. Mas. . . e a guerra?

- O que tem a guerra?

- Há pessoas que continuam a lutar.

- Você se refere ao norte da África?

- Sim. E ao general de Gaulie.

- Falaram-me dele há dois dias, no trem. Muita gente pensa que o assunto não é sério e que devemos confiar no marechal Pétain observou Mathias.

- E você? O que pensa?

- Por agora, sei apenas de uma coisa: voltei para casa e tenho nos braços a mulher que amo. De Gaulie que espere disse o rapaz, cobrindo-a de beijos.

Léa repeliu-o, mal-humorada.

- Não gosto que fale desse modo.

- Vamos, minha querida, não vai me dizer que se interessa por política e é partidária de De Gaulie!

- Você não compreende? É algo mais do que um problema político; está em causa a liberdade.

O jovem deu grandes gargalhadas e comentou:

- Esperava por tudo, menos por isso: a bela e frívola Léa Delmas discursando sobre liberdade e namoriscando o general de Gaulie, esquecida de seduzir os rapazes! Que aconteceu para que você tenha mudado assim?

Léa ergueu-se, com raiva, e gritou:

- Que aconteceu? Vi milhares de mulheres e crianças morrerem de maneira atroz, matei um homem, minha mãe, que julgava em segurança aqui, morreu num bombardeio em Bordeaux. Laurent vagueia sem se saber onde, estamos sem dinheiro, quase não temos o que comer, os alemães ocupam-nos a casa e meu pai. . . meu pai está enlouquecendo.

À medida que falava, Léa martelava com os punhos a parede cheia de salitre.

- Desculpe, sou tão desajeitado! Mas agora estou aqui e vou ajudá-la - disse Mathias.

Beijava-a no rosto, na cabeça, procurando nos cabelos dela a lembrança do antigo cheiro de feno de quando rolavam no meio da palha, e descobrindo-lhe na pele um perfume de baunilha. Apertou-a com violência contra si. Impacientes, seus dedos procuravam desabotoar-lhe o vestido e seus dentes mordiam-lhe os lábios.

Imóvel e atenta, Léa sentia o eco das carícias brutais do companheiro. Mas dizia a si mesma que não devia prosseguir; amava Laurent e mostrava-se louca e imprudente. Toda a resistência, porém, estava antecipadamente vencida, tanto era o desejo de sentir um corpo contra o seu, de sentir um sexo penetrar-lhe o ventre. Ouvia-se gemendo e balbuciando palavras sem nexo. Depressa.

Depressa. . . que ele a tomasse. . . mas por que não o fazia? Agastada, Léa arrancou a calcinha, oferecendo-se a ele, impudica e magnífica.

- Venha.

O rapaz contemplava os pêlos púbicos de reflexos ruivos, enquadrados pelos elásticos que sustinham as meias pretas e destacavam a brancura do interior das coxas. Escondeu então o rosto naquela umidade cheirosa. Sob sua língua, Léa gemia, sem resistência.

Por instantes, seus olhos abriram-se, captando o rosto do Cristo esmagado sob o peso da cruz. E pareceu-lhe que a imagem se animara e que o Filho do Homem lançava-lhe um olhar cúmplice. Deixou escapar um grito e atingiu o orgasmo sob as carícias de Mathias. Sentia uma dor deliciosa nos seios. Retirou a cabeça de seu ventre e beijou com gula a boca que tanto prazer acabara de lhe proporcionar, embriagando-se com seu sabor.

- Venha - disse ela, afastando as pernas.

E novamente gemeu de prazer quando o sexo do homem forçou o seu, ainda intumescido.

Lá fora, a chuva redobrara. O dia estava sombrio, como se fosse inverno. Na capela aberta para as árvores do refúgio, um rapaz e uma moça seminus dormiam aos pés de um grupo de figuras de pedra, cujos vultos pálidos pareciam proteger-lhes o sono.

No dia seguinte ao da chegada de Mathias a Montillac, Léa acompanhou o pai, tia Bernadette e Ruth a Bordeaux, a pretexto de visitar

Laure e de adquirir sementes para a horta. O almoço em casa de tio Luc decorreu num ambiente de constrangimento. Não se falou de outra coisa senão da sorte do país em ter encontrado um herói como o marechal Pétain. Terminada a refeição, Léa pôde cuidar dos seus assuntos.

Vou com você - decidiu Laure, erguendo-se.

- Não, não é preciso. Não vou me demorar - opôs-se Léa. contrariada.

- Posso ir com você? - pediu a prima Corinne

Léa lançou a Ruth um olhar de súplica.

Ruth sempre desconfiara do que designava por "idéias loucas da sua menina", embora afirmasse constantemente que Léa seria bem sucedida em tudo e que ela necessitava de maior liberdade de ação que as irmãs.

Léa possui uma vitalidade e um instinto de sobrevivência capazes de superar tudo - comentara Ruth para Adrien Delmas, na última vez que o vira. - Infelizes aqueles que pretenderem se opor a ela.

Apesar da suspeita que sentia, Ruth foi em socorro de Léa:

- Mas você não vai à Livraria Mollat, Laure? Então, podemos ir com Corinne, enquanto Léa compra as sementes. Na volta, irá nos encontrar lá.

Ruth mal terminara a frase e Léa já se achava na rua. Felizmente, a casa do advogado Delmas não ficava muito longe da sede do La

Petite Gironde, na Rue de Cheverus. Quanto à Livraria Mollat, ficava na Rue Vital-Charles, bem próxima do jornal.

Durante sua rápida visita a Montillac, no mês de fevereiro, Adrien dissera à sobrinha que, caso necessitasse dele, poderia procurá-lo por intermédio de Richard Chapon. No jornal, recebeu-a o mesmo empregado da vez anterior. Informou-a que Chapon achava-se ausente; desconhecia quando regressaria.

- Mas é muito importante - insistiu Léa.

- Neste momento, srta. Delmas, ele também está se ocupando de coisas importantes, provavelmente.

Diante da expressão perplexa de Léa, o funcionário acrescentou:

- Fale com o amigo dele, o padre de Saint-Eulalie. Talvez possa ajudá-la.

Saint-Eulalie? Ficava bem perto do convento dos dominicanos. no local onde Raphaël Mahl a deixara. Decidiu seguir o conselho.

- Muito obrigada - disse Léa, retirando-se.

O dia nublara-se e estava frio. Léa levantou a gola do velho impermeável que pertencera à mãe e ajustou na cabeça o chapéu de feltro.

Depois começou a correr, prendendo debaixo do braço a bolsa a tiracolo.

Sem fôlego, parou junto aos degraus do templo. A chuva começava a cair quando empurrou a porta.

Algumas mulheres rezavam em frente ao altar onde brilhava uma pequena lâmpada vermelha. Tentando disfarçar a indecisão, Léa ajoelhou-se não muito longe da sacristia, refletindo no que deveria fazer e dizer.

- Léa, o que faz aqui?

Ela sobressaltou-se e quase deu um grito ao sentir a mão que lhe pousava no ombro. Um homem de terno marrom, com o chapéu na mão e ostentando um espesso bigode, a olhava.

- Tio Adrien

- Silêncio! Venha comigo - disse ele, encaminhando-se para a saída.

Chovia. Adrien Delmas pôs o chapéu e, pegando no braço da sobrinha, começou a andar rapidamente.

- Mas por que razão você está vestido assim, tio? perguntou Léa.

- O hábito de dominicano é um pouco vistoso para certos passeios. Dou graças ao Senhor por tê-la encontrado. A igreja está sendo vigiada pela Gestapo há alguns dias. Se não tivesse visto você entrar, só Deus sabe o que aconteceria.

- Andava à sua procura.

- Desconfiei disso. Mas não volte aqui. O que aconteceu?

- Laurent fugiu da Alemanha.

- Como soube?

- O tenente Kramer disse a Camilie.

- Há quanto tempo?

- Na Páscoa.

A chuva aumentou. Recolheram-se no limiar de uma porta, em frente da catedral.

- Camilie teve notícias diretas de Laurent?

- Não.

- Nesse caso, que querem que eu faça?

- Tenho. . . Camilie tem receio de que Laurent vá procurá-la. A casa está sob vigilância. Que faremos se ele for para lá?

Rindo, dois soldados alemães abrigaram-se da chuva, perto deles.

- Maus tempos na França! - exclamou um deles, com um trejeito de desgosto.

- Sim, mas bons vinhos.- acrescentou o segundo.

Sem terem tomado qualquer decisão, tio e sobrinha deixaram o abrigo. Andaram em silêncio durante algum tempo

- Na semana que vem, iriei a Langon visitar um dos nossos irmãos que está no hospital. Aproveitarei a oportunidade para dar uma chegada a Montillac. Farei contatos na região.

- Não posso ir em seu lugar? - sugeriu Léa.

Sempre caminhando, o tio estreitou a sobrinha.

- Não, minha querida, é muito perigoso. Já sabe demais, tanto para a minha como para a sua própria segurança.

- Mas eu quero ajudar Laurent.

- Não duvido. Mas a melhor maneira de ajudá-lo é ficar quieta.

Havia certa irritação na voz de Adrien Delmas.

- Como vai seu pai?

Léa deixou escapar um profundo suspiro.

- Estou preocupada com ele, tio. Mudou muito; já nada lhe interessa. Ficou ainda pior desde a morte do sr. d'Argilat. Fala constantemente em mamãe como se ela ainda fosse viva. Fecha-se no escritório ou vai sozinho para o terraço, onde fica monologando.

E parece ficar contrariado quando queremos fazer-lhe companhia. "Deixe-me, não vê que estou conversando com mamãe?", diz. É terrível, tio. Estou muito preocupada com ele.

- Eu sei, eu sei, menina. E que diz o dr. Blanchard?

- Ele não gosta de falar a respeito disso. Receitou alguns medicamentos, que Ruth ministra ao papai regularmente.

- Parte do seu ser morreu e não serão medicamentos que a farão ressuscitar. Resta-nos pedir a Deus.

- Deus? Ainda acredita nisso? Você? Cale-se, Léa. Não blasfeme.

- já não creio em Deus, tio. E temo que mais ninguém em Montillac acredite, exceto, talvez, a pobre Camille.

- Não diga semelhante coisa. Se isso fosse verdade, seria para mim um golpe terrível.

Passaram em frente dos escombros de um prédio bombardeado, na Rue des Remparts. Essa imagem trouxe à memória de Léa a lembrança da mãe.

- Por que não foi ao enterro de mamãe? - perguntou.

- Não me foi possível. Não estava em Bordeaux. Aonde vai agora?

- Vou encontrar Ruth e Laure na Livraria Mollat.

- É perto. Deixo-a aqui, então. Não quero que me vejam vestido assim. Siga meus conselhos e não me procure no convento ou no La

Petite Gironde. O jornal também está sob vigilância. Depois lhe darei notícias. Seja como for, estarei em Montillac no começo da próxima semana. Até lá, seja prudente. Se, por desgraça, Laurent chegar antes disso, diga-lhe para ir a Saint-Macaire, à casa do afilhado de sua mãe; ele sabe o que tem a fazer. Laurent deve dizer-lhe: "Os dominós foram devolvidos"; ele entenderá.

- Os dominós foram devolvidos - repetiu Léa.

- Isso mesmo.

Separaram-se na Porte Dijeaux. A chuva parara.

Na livraria, Léa foi informada por um dos empregados de que as senhoras Delmas tinham acabado de sair. Por acaso, a loja de sementes na praça do mercado estava aberta. Restavam-lhe ainda algumas sementes e até - o cúmulo do luxo! - mudas de tomateiro e de alface.

Ao chegar à casa de tio Luc, Laure preparava-se para voltar ao colégio e a acolheu com frieza.

- Tinha uma coisa importante para lhe dizer - murmurou ela -, mas fica para outra vez.

- Não seja boba e diga-me o que é - pediu Léa

- Agora não. Pior para você.

- Vou com você.

- Não é preciso. Pergunte a Françoise se ela se divertiu no concerto, na outra noite. Adeus.

                                                                                           

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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