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A Bicicleta Azul 3 / Régine Deforges
A Bicicleta Azul 3 / Régine Deforges

 

 

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A Bicicleta Azul / Régine Deforges

 

Capítulo 21

- Olhe, o tio Adrien!

Acocorada na "sua" horta, envergando uma bata preta de camponesa com florzinhas azuis e brancas, com a cabeça protegida por um enorme chapéu de palha, Léa ergueu-se; tinha um punhado de ervas daninhas na mão.

Segurando a fralda do hábito branco, o dominicano encaminhava-se para ela, acompanhado de Camilie. A sobrinha atirou-se em seus braços estendidos.

- Que alegria vê-lo, tio!

- Esteve com Laurent, ele está em Bordeaux! - disse-lhe Camilie de um jato.

Em Bordeaux?!

Estava com intenção de vir para me ver, mas seu tio não deixou.

- Por agora, tudo corre bem. Laurent está em segurança - garantiu o dominicano.

- Onde? Quero ir vê-lo! - gritou Camilie.

- Por enquanto isso não é possível; é perigoso demais. Logo lhe direi quando poderá encontrá-lo.

- Logo, espero.

- Como está ele? - perguntou Léa.

- Bem. Apenas cansado. Depois de fugir de Colditz, ref ugiou-se na Suíça, onde esteve tão doente que sequer pôde escrever para dar notícias. Dentro de alguns dias o farei passar para a Zona livre.

- De que ele precisa?

- Por enquanto, de nada. Na próxima quinta-feira voltarei a Langon para visitar o padre Dupré e virei até aqui para comunicar a Camille a maneira de ver Laurent. Até lá, fique quieta e não diga nada a ninguém, peço-lhe. Se, por infelicidade, não puder vir a Montillac, entregarei um bilhete a Françoise. Ela se ocupa da seção hospitalar onde o padre Dupré está internado - disse Adrien.

- Será prudente confiar-lhe tal missão? - perguntou Camille, baixando a cabeça. Tio e sobrinha fitaram-na com surpresa.

- Mas.. . por que você diz isso? - perguntou a moça.

- Françoise não é irmã de Léa? Não vivem sob o mesmo teto? - admirou-se o dominicano.

- Sim. . . claro. . . mas.

Adrien e Léa olharam-se sem compreender. Por que tais reticências, aquela súbita desconfiança? Semelhante atitude era completamente alheia ao caráter de Camille.

- Françoise pode perder o bilhete. . . ser presa pelos alemães... - balbuciou Camille, com o rosto em fogo.

- Está nos escondendo alguma coisa, Camille. Por que duvida de Françoise?

- Não, não.., não é nada. Receio por Laurenr, é tudo.

O padre Delmas afastou-se alguns passos. Depois regressou para junto das mulheres.

- Anotarei um endereço na capa do Caminho da perfeição, de Santa Teresa d'Ávila. Mas talvez não sejam necessárias tais preocupações, e eu venha pessoalmente entregá-lo.

Voltaram para casa conversando.

Sentado no banco de pedra voltado para Believue e para a colina de Verdelais, Pierre Delmas, de queixo apoiado às mãos postas sobre o castão da grossa bengala espiralada, olhava à distância, com um sorriso vago pairando em seus lábios.

- Então, Pierre, descansando? - perguntou Adrien, em tom jovial.

- Um pouco - respondeu Pierre Delmas. Isabelie obrigou-me a mudar os móveis do quarto dela. Estou esgotado.

- Mas, papai, a mamãe.

- Compreendo, sr. Delmas. Nada mais cansativo do que mudar os móveis! - interveio Camille, cortando a fala de Léa.

- É, não é? - disse Pierre Delmas, tendo no rosto uma expressão delicada. - Isabelle não quer admitir que estou ficando velho...

Léa deu-lhe as costas.

Sentadas no gramado que descia até o terraço, Camille e Françoise amparavam Charles, que ensaiava os primeiros passos.

- Andará dentro de um mês - prognosticou Françoise.

- Sidonie e Ruth acham a mesma coisa - respondeu Camille. - Dizem que os bebês magros começam a andar mais cedo.

- Laurent ficaria tão satisfeito se pudesse vê-lo! É estranho que você não tenha notícias dele desde que fugiu.

Camille mordeu os lábios.

- Se não fosse a fuga, ele teria sido libertado, como Mathias

- prosseguiu Françoise, erguendo nos braços a criança, que riu. Era um belo menino loiro, parecido com o pai e com a mãe.

Crescia com a rapidez de um cogumelo e nunca ficara doente. Camille dispensava-lhe uma ternura animal e inquieta. Trazia-o sempre debaixo dos olhos como se, a cada instante, temesse vê-lo desaparecer. A criança era feliz e nunca chorava. Todos o adoravam, exceto

Léa, que não podia olhá-lo sem um sentimento de ciúme, embora o menino desde cedo tivesse lhe demonstrado uma nítida preferência.

- Vai ler o livro que o tio Adrien lhe mandou? Não deve ser muito divertido esse Caminho da perfeição - comentou Françoise.

- Claro que não é divertido. Mas tem utilidade; dá-nos força para enfrentar a vida.

- Talvez você tenha razão - respondeu Françoise, com ar sombrio.

Camille notou aquela mudança de humor, mas fingiu não percebê-la. Brincava com o filho, rindo dos seus trejeitos e das suas cambalhotas.

"Faz-lhe bem a maternidade", pensou Françoise.

De fato, nesse domingo de Pentecostes, Camilie d'Argilat resplandecia a ponto de estar bela. Como não podia comprar tecido, e com a aproximação dos dias mais quentes, abandonara o luto pelo irmão e pelo sogro e envergava um dos seus antigos vestidos de algodão azulpálido, que valorizava-lhe a cor dos olhos, a pele queimada e os cabelos agora mais claros, devido ao sol. Estava tão magra que parecia uma adolescente frágil. Comparada a ela, Françoise, que era morena, parecia mais velha e mais mulher, embora fosse três anos mais jovem.

Françoise mudara muito desde que começara a trabalhar regularmente no hospital de Langon; estava mais feminina e sedutora. Penteavase muito bem, pintava o rosto - demais, na opinião de Ruth e de tia Bernadette - e andava sempre bem-vestida, apesar das dificuldades.

Usava nesse instante um vestido de seda vermelha com bolinhas azul-marinho, acinturado, que parecia ter saído das mãos de um bom costureiro, embora tivesse sido feito pela modista de Langon - conforme Françoise garantia.

"Verei Laurent amanhã", pensava Camilie.

Léa estava de péssimo humor. Encontrara-se com Mathias em Saint-Macaire, em casa de um amigo do rapaz, que estava ausente naquele dia. Mathias contava com aqueles momentos longe dos olhares inquisitivos de Ruth e das olhadelas preocupadas dos pais. Depois do encontro na capela do refúgio de Verdelais, Mathias não conseguira ficar a sós com a amiga um único instante. Chegara a desconfiar que ela o estivesse evitando. Assim, quando na quinta- feira Léa, de rosto pálido, surgira na cozinha da propriedade para chamá-lo, Mathias surpreendeu-se. Seguiu-a até o celeiro. Sem uma palavra, ela se lançou a seus braços, trêmula como um junco.

Mathias beijou-lhe os lábios gelados com doçura e deitou-a sobre o feno, procurando aquecê-la. Os braços de Léa, por detrás de sua nuca, tinham uma rigidez cadavérica. Ele separou as pernas dela com dificuldade, de tal forma as mantinha apertadas. E, apesar do desejo de

Léa, foi necessário a Mathias a maior paciência para que se deixasse penetrar. Ela chorava no orgasmo como outros choram na dor.

Aquele contato deixou no rapaz um estranho gosto de amargura.

Querendo apagar tal lembrança, Mathias preparou em casa do amigo um lanche com os petiscos que Léa tanto apreciava em outros tempos: torta de morango, vinho doce velho, cerejas maceradas em aguardente e caramelo. Para reunir essas guloseimas, foi-lhes necessário recorrer a tesouros de engenhosidade. A modesta e velha casa recendia ao perfume das rosas brancas com que Mathias a adornara em profusão. Léa sorriu diante de tais preparativos. Bem compenetrado do seu papel de anfitrião, o rapaz estendeu-lhe um copo de vinho, dizendo:

- Bebamos à nossa felicidade.

Léa engoliu a bebida de um só trago.

- Quero mais. Me fez bem.

Sorrindo, Mathias serviu-a de novo.

A jovem pôs-se a percorrer a casa de copo na mão, parando durante alguns minutos em frente da lareira, sobre a qual se via uma paisagem de Lourdes, pintada sobre um pedaço de cortiça, um furão empalhado e um tanto roído por traças, um calendário dos correios, um ramo de rosas e algumas fotografias amareladas.

- É engraçada a casa do seu amigo - observou ela. - Onde fica o quarto?

Um lampejo de contrariedade perpassou pelos olhos de Mathias. Não conseguia habituar-se à desenvoltura de Léa em sua relação amorosa. Sem ter consciência disso, gostaria que ela fosse mais tímida. Ele sempre tinha a desagradável impressão de que ela conduzia as coisas, e isso não lhe parecia natural nem adequado. Para ele estava agora claro que Léa seria sua mulher. Como poderia ser de outra maneira? Léa riu ao entrar no quarto, de tal modo se assemelhava ao de Sidonie - a mesma cama alta de nogueira, coberta por uma colcha de algodão branco e um enorme edredom de cetineta vermelha. À cabeceira do leito, havia um grande crucifixo de madeira preta, enfeitado com um ramo de buxo benzido; na parede da frente, de ambos os lados da janela, duas fotografias de camponeses endomingados e um imenso armário junto da porta.

Sem se dar ao trabalho de desabotoá-las, Léa atirou as sandálias longe. O contato com o ladrilho frio era agradável. Pousou o copo na mesa-de-cabeceira e começou a despir-se, cantarolando.

Mathias desfez a cama, que pareceu maior ainda com os lençóis brancos. Nua, Léa estirou-se sobre ela.

"Cheiram a alfazema", disse a si mesma, sentindo o coração comprimir-se por alguns instantes.

- Quero beber - pediu.

- Você bebe demais - comentou o companheiro, voltando com a garrafa.

Léa bebia lentamente, observando Mathias tirar a roupa.

- Você devia trabalhar com o dorso nu - comentou. - Com essa marca de camisa, parece que sua cabeça bronzeada está num corpo que não é seu. Isso não é bonito.

- Já vou lhe mostrar se é ou não bonito - respondeu o rapaz, estendendo-se ao lado dela e atraindo-a para si.

- Espere. Deixe-me pousar o copo.

À passagem de Léa sobre ele, a boca de Mathias apoderou-se de um seio, enquanto os dedos lhe apertavam o outro.

- Ai, você está me machucando.

- Pior para você.

Rolaram um sobre o outro, rindo e gritando, sob o olhar impassível dos retratos de família.

Sentada na cama desfeita, com olheiras, nua, os cabelos em desalinho, Léa devorava um pedaço de torta, frutas e caramelo, enquanto ia bebendo vinho; estava ficando tonta, e Mathias olhava para ela, encantado.

- Pare de me olhar desse jeito! - disse ela.

- Não me canso de vê-la. É tão bonita!

- Isso não é motivo...

- Quando for minha mulher, ficarei olhando o tempo que

Léa suspendeu o gesto de levar à boca o pedaço de bolo.

- Que disse?

- Que vou me casar com você.

- Mas eu não pretendo me casar com você! - exclamou a jovem.

- Por quê? Não sou suficientemente bom?

- Não diga bobagens. Não quero me casar, ponto final. É tudo - assegurou-lhe Léa.

- Todas as moças querem se casar - insistiu o rapaz.

- É possível. Mas eu não sou como elas. Não falemos mais nesse assunto, eu lhe peço.

- Não, não, pelo contrário. Temos de falar. Amo-a e desejo me casar com você - disse Mathias, apertando o braço de Léa.

- Largue-me! Está me machucando.

Mathias apertou com mais força.

- Está doido! - gritou Léa. - Ordeno que me largue!

- Não a largo enquanto não prometer se casar comigo - disse ele.

- Nunca, está ouvindo? Nunca!

Mathias ergueu a mão.

- Vá, bata, bata! O que está esperando?

- Mas por quê?

- Porque não amo você.

Mathias empalideceu de tal forma que, instintivamente, Léa se encolheu contra a madeira da cama.

- Que disse? - perguntou ele.

Ergueu-se de um salto e começou a se vestir.

- Não me queira mal, Mathias. Gosto muito de você, sempre gostei, mas não como sua mulher.

- Contudo, você é minha mulher.

Léa acabara de abotoar o vestido e observava o companheiro ainda nu, sentado sobre os lençóis amarrotados, com as pernas pendentes, a cabeça caída sobre o peito; uma mecha de cabelo cobria seu rosto. Teve por ele um ímpeto de ternura. Como continuava a se parecer com o rapazinho que cedia a todos os seus caprichos infantis! Sentou-se ao lado de Mathias e encostou a cabeça em seu ombro.

- Seja razoável, Mathias. Não é pelo fato de termos estado juntos na cama que somos obrigados a nos casar.

- Quem é ele? - perguntou ele.

- Que quer dizer?

- Quem é o seu amante?

- Não entendo o que quer dizer.

- Você me acha imbecil? Pensa que não notei que não é mais virgem?

Com o rosto pegando fogo, Léa ergueu-se e fingiu procurar os sapatos. Encontrou um deles aos pés da cama, o outro debaixo do armário.

Engatinhando, tentou apanhá-lo. Mathias, mais rápido, apoderou-se dele.

- Vai responder ou não vai? Quem é ele?

- Está me aborrecendo. O assunto não lhe diz respeito respondeu a jovem.

- Ordinária! Eu não quis acreditar, dizendo a mim mesmo que você era uma moça honesta. Pensei que talvez tivesse sido o seu noivo, que você quisesse lhe proporcionar esse gosto antes que ele partisse para a guerra. . . não podia levá-la a mal. Agora, porém, percebo tudo. Não foi o irmão de Camilie que a fez perder todo pudor. Porca... você.., você. . que eu desejei para minha mulher... É como sua irmã: puta de boches... puta de boches.

O infeliz deixou-se cair sobre a cama, soluçando.

De pé, petrificada, sentindo o sangue fugir-lhe do corpo, Léa olhava à sua frente sem distinguir nada.

Ficaram assim durante muito tempo, ela imóvel, ele soluçando. Mathias foi o primeiro a dominar-se. De repente, Léa lhe causou medo.

Limpando nos lençóis a face molhada, aproximou-se dela.

No rosto lívido de Léa, os olhos haviam adquirido uma fixidez anormal. Com um esforço sobre-humano, articulou em voz surda:

- Que disse há pouco?

- Nada. Foi apenas a raiva - respondeu Mathias, já arrependido das palavras que lhe haviam escapado.

Léa repetiu:

- Que disse?

- Nada, pode acreditar. Não foi nada.

- ". . . como a sua irmã. . . puta de boches" - articulou ela.

Depois, tal como a erva de um prado sob a foice, a jovem escorregou para o chão devagar. Mathias acompanhou sua queda e, no chão de ladrilhos frios, procurou atenuar o efeito provocado pelas palavras proferidas momentos antes.

- Não, não diga nada... aperte-me com força. Como pôde acreditar que.

- Perdoe-me.

- ...queeu...

- Cale-se - balbuciou Mathias, cobrindo-lhe a boca de beijos para impedi-la de falar.

Françoise. . . ah, agora percebo! Pobre papai! É preciso que ele não saiba de nada. Que devo fazer, Mathias?

- Não pense mais no caso, minha querida. Talvez eu esteja enganado.

Inconscientemente, Léa correspondia a seus beijos e seu ventre roçava o sexo ereto. Então, fizeram amor de novo.

Léa não permitiu que Mathias a acompanhasse a Montillac.

À chegada, pretextou uma terrível dor de cabeça e foi deitar-se sem jantar. Quando subia para o quatro, cruzou com os dois oficiais alemães, que a cumprimentaram, afastando-se para lhe dar passagem.

Sozinha, por fim, no meio da desordem do quarto das crianças, desordem que lhe era tão grata, Léa deixou-se cair sobre as almofadas.

Confirmava-se então aquilo de que vagamente suspeitara:

Françoise, a sua própria irmã, tornara-se amante de um dos alemães.

Mas qual deles? De Otto Kramer, claro! O mesmo amor pela música.

Bateram à porta.

- Quem é? - perguntou Léa.

- Sou eu, Camilie. Posso entrar?

- Entre.

- Você não me parece nada bem, minha querida. Tome este comprimido.

- Obrigada - agradeceu Léa, engolindo o medicamento e a água do copo que a amiga lhe estendia.

- É muito amável em querer me acompanhar amanhã - disse Camilie. - Laurent vai ficar contente. Gosta tanto de você!

- Notou algo de especial em Françoise de uns tempos para cá?

- Não. Mas que quer dizer?

Léa olhou-a, desconfiada.

- A que se deveram as suas reticências do outro dia? - perguntou.

Camille corou e não respondeu.

- Também acha que ela. . . que ela e o tenente.

- Cale-se! Seria abominável.

- Mas pensou nisso? - insistiu Léa.

- Não é possível. Devemos estar enganadas - assegurou Camilie d'Argilat.

- E se não estivermos?

- Nesse caso, seria horrível demais - disse Camilie em voz abafada, ocultando o rosto nas mãos.

- Temos de tirar o caso a limpo. Vou perguntar a Françoise

- decidiu Léa.

- Agora, não. Só depois que eu tiver ido me encontrar com Laurent.

- Quem poderia supor uma coisa dessas da parte de Françoise?

Não podemos julgá-la; não temos certeza de nada. E. caso seja verdade, é porque o ama.

- Esse não é um motivo válido.

- É o maior.

Léa fitou Camilie, surpresa. O quê? Que saberia ela, a puritana sra. d'Argilat, a imagem daquela Camille de corpo vacilante mas, assim mesmo, disposta a matar para defendê-la? Nessa altura não se mostrara tímida. E quem sabe se também no amor. . Foi-lhe insuportável a visão de Camille entregando-se, desenfreada, a Laurent.

- Não sabe o que está dizendo - garantiu Léa. - Você se esquece de que se trata de um alemão?

- Não, não me esqueço. Há semanas.

- Como?! E não me disse nada?

- Que poderia dizer? Era apenas uma impressão vaga, surpreendi algumas trocas de olhares. . enfim, não havia nada de concreto - replicou

Camilie.

- Seja como for, devia ter me contado. Ah, se mamãe estivesse aqui! Acha que os outros desconfiam?

- Não sei de nada. Vamos dormir. Amanhã partiremos muito cedo. Mandei verificar a gasolina e tudo está em ordem. Sinto-me tão contente, Léa! Verei Laurent dentro de poucas horas. Oh, querida, perdoe-me! Sou tão desastrada! Desastrada e egoísta. Encontrará logo um bom rapaz que a faça feliz como meu irmão o teria feito - disse Camille, beijando a amiga com ternura.

Léa despiu-se com gestos raivosos e enfiou a camisola demasiado curta, que lhe dava um ar de criança. Foi para o banheiro, escovou os dentes e passou a escova nos cabelos com violência. O espelho refletia um rosto obstinado e tenso. Em La Réole, no dia seguinte, se tivesse aquele mesmo aspecto, provavelmente Laurent não a acharia nada bonita. Com um sorriso, desfez a expressão mal-humorada;

seus olhos brilharam, os dentes morderam os lábios e o peito arqueou-se.

- A nós, Laurent - disse em voz alta.

A passagem da linha de demarcação fez-se sem obstáculos. O automóvel rodava a boa velocidade pela estrada, como se também ele se sentisse excitado por achar-se na zona livre.

À saída de La Réole, Léa tomou, à esquerda, uma estrada secundária. Dentro em breve, surgiu uma sebe aparada margeando o caminho.

Depois apareceu o portão de ferro, aberto. O carro o transpôs e rodou durante alguns metros por uma larga alameda debruada de roseiras.

Parou em frente da escadaria de um edifício do começo do século, uma construção de aspecto maciço e sem graça. Léa desligou o motor.

Ouviam-se apenas o canto das aves e os vagidos do pequeno Charles, que despertara no colo da mãe. Na esquina da casa, surgiu então uma silhueta alta e claudicante. Léa e Camille deixaram o veículo ao mesmo tempo. A segunda entregou o filho à amiga e correu para o homem, gritando:

- Laurent!

Léa apertou mais fortemente o bebê, que lhe rodeara o pescoço com os bracinhos. Desejou poder furtar-se ao espetáculo daqueles dois corpos enlaçados, mas foi incapaz de mexer-se. Ao fim de um tempo que lhe pareceu infindável, o casal, de mãos dadas, encaminhou-se para ela. Diante do olhar com que Laurent a envolveu, Léa, com alegria, quase deixou o menino cair, para se atirar em seus braços. Mas Camilie o pegou, entregando-o ao pai. Desajeitado, Laurent o segurou, ergueu-o no ar, contemplando-o com incredulidade.

- Meu filho... - balbuciou, enquanto uma lágrima lhe escorria pela face, perdendo-se entre os pêlos do espesso bigode, que o envelhecia.

Com precaução, depôs um beijo no rosto da criança, murmurando:

- Charles, meu filho.

- Sem Léa, nem ele nem eu estaríamos aqui - comentou Camilie.

Laurent voltou a entregar Charles à mãe e abraçou a moça.

- Tinha certeza de que poderia confiar em você - disse ele. - Obrigado.

Pousou-lhe os lábios nos cabelos, perto da orelha.

- Obrigado - sussurrou de novo com fervor.

Invadia Léa o desejo intenso de lhe gritar o seu amor, mas limitou-se a balbuciar:

- Ah, Laurent. . . Laurent. . . se soubesse!

- Eu sei. Foi muito duro. Adrien contou-me tudo. Você demonstrou imensa coragem.

- Não, não foi coragem - exaltou-se Léa. - Não tive escolha, é tudo.

- Não acredite, Laurent. Léa é maravilhosa - interveio Camilie.

- Eu sei.

Nesse momento, um homem e uma mulher de cerca de sessenta anos vieram reunir-se ao grupo.

- Camilie e Léa, apresento-lhes o sr. e a sra. Debray, meus anfitriões. Correm grande perigo ao abrigarem fugitivos como eu.

- Não diga isso, sr. d'Argilat. É uma honra para nós poder auxiliar os nossos soldados - afirmou o sr. Debray com convicção.

- Cumprimos apenas nosso dever - completou a mulher, com voz doce.

- Esta é Camilie, minha mulher, e este é o meu filho, Charles

- continuou Laurent, prosseguindo nas apresentações.

- Charles? A senhora é bastante imprudente - disse o sr. Debray em tom de ironia, dirigindo-se a Camilie. - Não sabe que Philippe é o nome próprio agora em moda?'

- A moda passa, sr. Debray. Fico imensamente feliz em poder agradecer-lhes tudo o que têm feito pelo meu marido.

- Por favor, em nosso lugar fariam o mesmo! É nossa maneira de continuar a luta e de nos aproximarmos de nosso filho.

- O filho de nossos amigos tombou como um herói em Dunquerque - esclareceu Laurent.

Camilie preparava-se para falar, mas o sr. Debray interrompeu-a:

- Não diga nada, minha senhora. As palavras não conseguem exprimir o que. . . Bem. . . Venha, entremos em casa. Quem é esta jovem encantadora?

- É Léa Delmas, amiga muito querida e a quem devemos a nossa felicidade.

- Seja bem-vinda, srta. Delmas. Permite-me que a trate por Léa?

- Certamente, sr. Debray.

Demoraram-se três dias naquela casa hospitaleira. No segundo dia, Adrien Delmas reuniu-se a eles, envergando trajes civis. A presença do tio contribuiu para atenuar os terríveis ciúmes que roíam o íntimo de Léa. Não conseguia suportar por mais tempo o rosto resplandecente de Camilie e a ternura atenciosa que Laurent lhe dispensava.

Laurent foi um dos primeiros detidos a evadir-se de Colditz, antiga cidade real, que ergue suas fortificações a quarenta metros de altura sobre um promontório escarpado, dominando a pequena cidade construída em tijolo e em arenito cor-de-rosa, na margem esquerda do Mulde.

Bem depressa Laurent se apercebeu de que a única possibilidade de fuga seria na hora do passeio. Revelou seu propósito a três camaradas, que o ajudaram a reunir víveres, roupa e algum dinheiro.

Certa tarde, ao sair para o passeio, Laurent observou que rebocavam a fachada de um edifício de três andares que dava para o caminho por onde os prisioneiros chegavam ao parque. Uma porta habitualmente fechada estava aberta.

Devido ao declive pronunciado, o rés-do-chão ficava à altura de um primeiro andar em relação à estrada. Espreitando por entre as barras corroídas pela ferrugem das exíguas aberturas ao nível do chão, viu que se tratava de adegas ou de cocheiras. Tinha de agir depressa; concluídos os trabalhos, poderiam fechar de novo a porta a qualquer momento. Assim, na volta de um dos passeios, com a magra bagagem escondida sob o capote, decidiu agir. Segredou ao companheiro de fila:

- É agora.

O camarada fez diminuir a marcha da coluna:

- Devagar. Fiquem calados e olhem em frente.

O guarda que seguia adiante dos prisioneiros não se virou para trás uma única vez. Da terceira fila, muito perto dele, Laurent distinguialhe os cabelos curtos despontando na nuca forte. Atrás de si, seguiam algumas filas de prisioneiros e outro guarda no final da coluna.

Com três passadas, atirou-se para a porta da adega, temendo, a cada instante, receber uma bala nas costas. Dentro dele, abrira-se um enorme vazio.

O som dos passos dos companheiros diminuía. Seu coração batia como se quisesse saltar-lhe do peito. Enrolou a bainha das calças azuis, enfiando-a por dentro das meias de lã branca e grossa. Despiu o velho casaco de algodão, conservando apenas o pulôver bege, de tricô, que Ruth lhe mandara. Com o colarinho da camisa azul sobre o pulôver, o boné de abas, os confortáveis sapatos de sola de borracha e uma maleta com o indispensável, parecia um viajante alemão de bom aspecto. Decorreu um minuto sem que se ouvissem gritos, chamamentos ou latidos.

Deixar a cave úmida, transpor o pequeno muro, retomar o caminho e, sobretudo, evitar a tentação de correr, tudo isso Laurent fizera em pensamento inúmeras vezes, O único verdadeiro risco eram os guardas do caminho de ronda.

Arquitetara um plano simples: regressar ao parque, atravessando, por sobre uma árvore caída, a pequena torrente que separava a floresta do local de passeio dos prisioneiros. Em seguida, escalar a paliçada de madeira que circundava o campo de jogos dos soldados alemães, e, daí, a muralha, servindo-se dos intervalos entre as pedras. O projeto foi adiado, porém, devido à presença de militares que jogavam bola. Ficou escondido na cave, onde esteve na iminência de ser descoberto por diversas vezes: dois garotos vieram jogar bola no meio da estrada, alguns soldados passaram junto à parede do edifício, um casal e um cão detiveram-se por algum tempo em frente da porta aberta.

O perigo maior era o cão. Apesar do frio úmido, Laurent estava molhado de suor quando o animal se afastou. Contra todas as expectativas, o seu desaparecimento não fora ainda assinalado pelos guardas. Dentro de duas horas, porém, seria feita a chamada. Por fim, Laurent saiu do subterrâneo e executou, então, todos os movimentos previstos. Voltou-se ao chegar à muralha: à sua frente, estava o parque deserto e, à esquerda, a cidadela enorme, à qual as sombras da tarde conferiam aspecto mais tenebroso. No caminho de ronda, os vultos das sentinelas recortavam-se contra o céu ainda claro. Estaria perdido se uma delas olhasse em sua direção. Com calma, principiou a escalada vagarosa. Não obstante o ferimento na perna, que ainda o incomodava, içou-se até o topo sem dificuldades. Deixou-se, então, cair no vácuo, amortecendo a queda nas folhas mortas. Estava fora do Castelo de Colditz! Num plano inferior, estendia-se a estrada, o caminho para a liberdade.

Rolando sob seus pés, as pedras da encosta produziam um barulho horrível. Ouviram-se vozes na estrada. Ele compôs o vestuário desalinhado e limpou a terra dos sapatos. As vozes aproximavam-se. Cruzou com dois oficiais da cidadela, acompanhados das respectivas esposas, que seguiam em conversa animada e não lhe prestaram a mínima atenção; transformara-se em alemão da classe média. Fingindo despreocupação, correspondeu a sorriso de um velho e saudou com um Heil Hitier sonoro um grupo de jovens. Chegado à estrada principal, deu-se ao luxo de se virar para trás para contemplar o vulto harmonioso da Fortaleza de Colditz. Apoderara-se dele um intenso sentimento de orgulho - vencera o sutil e formidável arsenal de vigilância que rodeava a cidadela!

Três dias depois, atravessou a fronteira -em Schaffhouse. À noite, sem um tostão no bolso, apanhou o trem para Rochlitz, chegando a Berna, onde caiu gravemente enfermo. Permaneceu hospitalizado por diversos dias e escreveu longas cartas ao pai e à mulher, cartas que nunca lhes chegaram às mãos. Apenas a carta enviada a Adrien Delmas chegou ao destinatário, tendo passado, como que por milagre, através das malhas da censura. O dominicano entrou, então, em contato com Laurent por intermédio de outro dominicano suíço, que lhe forneceu documentos e dinheiro.

Um fim de tarde doce e calmo cintilava sobre a pequena cidade de La Réole, onde Laurent e Léa tinham ido tratar de alguns assuntos. Por causa do filho, Camille não pudera acompanhá-los. Era a primeira vez que ambos se encontravam a sós. A sra. Debray mdicara-lhes a padaria da Rue des Argentiers, cujo pão era o melhor da região, e onde também se vendia farinha. Perderam-se no emaranhado de ruelas e atingiram as imediações do Castelo Quat'Sos, de onde se avistava toda a paisagem do vale do Garonne. Passaram diante da abadia dos beneditinos. As tílias embalsamavam o ar. Léa quis entrar na igreja. Seus passos ecoaram sob as abóbadas góticas. Laurent demorou-se bastante em frente da capela da Virgem. Léa aproximou-se, pegou-lhe na mão e apoiou a cabeça em seu ombro. Laurent beijou-lhe os cabelos encaracolados. A jovem sentia vibrar na palma da mão o pulso do homem amado. Quando ergueu a cabeça, os olhos de ambos prenderam-se sem conseguirem se desviar. Seus lábios tocaram-se de leve e, nesse ligeiro contato, os corpos sentiram aflorar a chama do desejo. Perto, uma porta bateu, chamando-os à realidade - o encanto quebrara-se.

Laurent repeliu a companheira com suavidade.

- Não, não me deixe - protestou ela.

- Somos loucos, Léa. Não devemos.., não devo...

- Cale-se. Amo-o.

A moça encostou-se nele novamente. Laurent pegou-a pelos quadris e a apertou contra si.

- Amo-a - murmurou.

O corpo de Léa ondulava, acariciando-lhe o sexo ereto. Laurent empurrou-a com tanta violência que ela caiu sentada num genuflexório.

- Pare com isso! - gritou o rapaz.

Esfregando as costas, magoada, Léa olhava-o com ar triunfante. Depois ergueu-se e encaminhou-se para a saída. Ele seguiu-a de cabeça baixa.

- Vamos depressa. A padaria vai fechar.

O estabelecimento ainda não fechara as portas; ao evocar o nome da sra. Debray, conseguiram obter um pão de quatro quilos e um pacote de farinha.

Foram buscar as bicicletas junto à estação. Indiferentes, perdidos nos respectivos sonhos, passaram sem olhar pela paisagem do Signal du

Mirail. Em breve atingiram a propriedade dos Debray.

Mal chegaram ao jardim, Camilie apareceu correndo.

- Onde estiveram? Estou morrendo de inquietação.

Ora, o que podia nos acontecer? Fomos visitar La Réole

- disse Léa, imperturbável.

Durante o jantar, a jovem mostrou-se alegre e jocosa, tagarelando com espírito sobre mil e um assuntos. Adrien e o sr. Debray, divertidos com os seus ditos, a incentivavam.

Enquanto tomavam um péssimo café no jardim, o dominicano anunciou a Laurent:

- Achei a pessoa que procurávamos. Trata-se de Jean Bénazet, de Varilhes, perto de Foix. Temos um encontro amanhã à tarde, no Café de Ia Poste, em Foix.

- Tão cedo! - exclamou Camille.

- Por favor, querida... Irá se juntar a mim logo que isso seja possível.

- Mas eu quero ir com você.

- Nem pense nisso! Não se esqueça de que Charles precisa de você.

A sra. Debray ergueu-se e pousou a mão no ombro de Camille.

- Não deprima o seu marido com lágrimas, minha filha. Ele cumpre seu dever, procurando continuar na luta. Mostre-se corajosa. Quer ficar aqui? Teríamos muito prazer nisso, eu e meu marido. Gostaríamos muito que ficasse conosco.

- Não vai ser possível - interveio Laurent. - Camille terá de me substituir em Roches-Blanches. Delpech, nosso administrador, informoume por carta de que não só a casa foi ocupada, como também as vinhas se encontram em mau estado devido à falta de mão-de-obra.

- Tal como acontece em Montillac - observou Léa.

- E por toda parte - rematou o dominicano.

- Que tenciona fazer? - perguntou a sra. Debray.

- Não sei. Penso constantemente em meu pobre pai e me pergunto o que ele faria em tais circunstâncias. Encheram-me de cólera e de tristeza as desgraças que se abateram sobre este país infeliz. Eu, que era a favor da aproximação dos povos, da sua fusão nos Estados

Unidos da Europa, sou agora nacionalista, coisa que me parecia ultrapassada antes da guerra. Não me julgava tão francês, nem pensei amar o país a tal ponto.

- Graças à existência de homens como o senhor, meu jovem amigo, tentaremos restituir-lhe a honra e a liberdade - afirmou Debray com energia.

- Acha realmente que isso é possível?

- Se não achasse, teríamos nos suicidado, eu e minha mulher, no dia em que ouvimos Pétain anunciar o seu pedido de paz aos alemães.

Pareceu-nos que nosso filho morria pela segunda vez. Choramos, implorando a Deus que nos iluminasse. No dia seguinte, tivemos a resposta pela voz do general de Gaulie.

Ninguém falou durante alguns momentos. Ouviam-se apenas os chamados dos pássaros e os gritos das andorinhas perseguindo-se pelo espaço. Depois, Adrien Delmas rompeu o silêncio:

- Seria necessário que fossem mais numerosos os que adotam atitude semelhante à sua, sr. Debray. Mas, por toda parte, só há falta de vigor, desordem, comprometimento, espionagem ignóbil, denúncia perversa e concordância com a servidão. Vêem-se escritores de talento, tais como Brasillach, Rebatet e Drieu, universitários, homens de negócios, militares e mesmo - que Deus, os perdoe eclesiásticos, que prostituem os respectivos talentos a serviço de uma ideologia desprezível. Como animais enfraquecidos, deitam-se de costas, oferecendo a barriga à bota do ocupante. Estou desesperado.

- Sua fé em Deus acabará por lhe restituir a crença na humanidade - afirmou a sra. Debray, interrompendo as palavras do dominicano.

- A fé em Deus, sem dúvida. . . - disse ele, erguendo-se. Léa, a quem semelhante discussão aborrecia, levantou-se também, surpresa pelo tom do tio. Julgara perceber nele um desencanto enraivecido. Teria perdido a fé? "Seria cômico", pensou, "um frade não acreditar em Deus."

- O senhor parece tão infeliz, tio Adrien - disse ela com meiguice, indo juntar-se a ele sob o enorme castanheiro.

Sem responder, Adrien Delmas acendeu um cigarro.

Léa observava-o com o canto dos olhos - não tinha uma expressão apenas triste, mas também desesperada. Uma timidez muito antiga, vinda da infância, impediu-a de consolá-lo. Para distraí-lo e expulsar a angústia que a invadia ao percebê-lo tão inabalável em suas convicções, duvidando desse Deus por quem ele tudo abandonara, a sobrinha perguntou:

- Sabe se o alferes Valéry chegou são e salvo ao Marrocos?

- Chegou, sim.

- E quanto a Laurent? Acha que tudo irá correr bem? - prosseguiu ela.

O dominicano observou-a com atenção. Não se enganara - aquela garota continuava apaixonada por Laurent d'Argilat. Resolveu tirar o caso a limpo.

- Tudo correrá bem, sim. O passador é uma pessoa de confiança, e Laurent irá se reunir aos companheiros em Argel. Camilie e o filho poderão ir ao seu encontro dentro em breve.

Léa empalideceu, mas não se deu por vencida.

- Você deve estar satisfeita, vendo que tudo corre bem com seus amigos - continuou o tio, com uma pontinha de sadismo.

- Muito satisfeita, de fato - afirmou Léa secamente, voltando-lhe as costas. - Desculpe, tio, estou cansada e vou deitar- me. Boa noite.

- Boa noite, e que Deus a proteja.

Léa entrou no quarto correndo.

Encerrada ali, não via como encontrar-se a sós com Laurent antes da partida. Nua e deitada na cama, relembrava cada um dos pormenores do passeio a La Réole, em frente ao altar da Virgem, na Igreja de São Pedro. À lembrança do contato com o corpo amado, o seu arqueouse; e, colocando a mão entre as coxas, desencadeou um prazer que a deixou furiosa consigo mesma. Adormeceu rapidamente, com o braço dobrado sobre o rosto.

O dia parecia não acabar mais.

Na véspera, muito cedo, Adrien e Laurent tomaram o trem para Toulouse, onde fariam baldeação rumo a Foix. As despedidas tinham sido tão pungentes como deveriam ser - ironizava Léa para si mesma. Conseguira deslizar uma carta entre as mãos de Laurent, cujo súbito rubor não passara despercebido nem a Adrien Delmas nem à sra. Debray. Pouco lhe importava, porém: o importante era que ele soubesse que o amava e que ela pudesse lhe dizer isso novamente.

- Mais uma vez lhe confio o que de mais caro tenho na vida

- dissera Laurent ao despedir-se de Léa com um beijo.

Depois de longa espera, soaram, por fim, passos no saibro do caminho. Eram, de fato, de tio Adrien. Léa fez um esforço para não correr em sua direção e interrogá-lo - a sra. Debray estava ali e não cessara de observá-la desde a véspera.

- Foi tudo bem? - gritou Camille, ofegante, levando a mão ao peito; seu coração batia acelerado.

- Sim, tudo bem.

Quando ele parte para a Espanha?

- Hoje à noite. Não vai só. Serão uns sete ou oito - esclareceu o dominicano.

- Se soubesse o medo que tenho, meu padre! - murmurou Camille.

- Nada receie. Tudo correrá bem.

- Espero que sim. E eu, o que farei enquanto espero? Não há nada que eu possa fazer aqui na França? O senhor, meu padre, tem uma tarefa, assim como o sr. e a sra. Debray. Eu gostaria de ajudá-los. Disponham dos meus préstimos - ofereceu-se Camille.

O dominicano envolveu num olhar comovido a mulher frágil que pretendia auxiliá-los.

- O seu dever, minha filha, é o de resistir ao desespero e demonstrar extrema prudência. São poucos os comprometidos na ação direta.

Poderá constatá-lo se olhar à sua volta. Vamos esperar que desapareça a confiança que as pessoas depositam no marechal Pétain. Esta já se desvaneceu bastante, mas muitos homens e muitas mulheres, não menos patriotas do que nós, aliás, hesitam ainda em colocar-se à margem da lei.

Adrien Delmas fez uma pausa e depois prosseguiu:

- Em Londres, certos oficiais mostram-se hostis ao general de Gaulle. Muita gente desconfia da Inglaterra. O golpe de Mers el-Kebir comprometeu gravemente as boas relações entre os dois países. Seja paciente. Assim que puder, entrarei em contato com a senhora, dando notícias de Laurent e comunicando-lhe quando poderá juntar-se a ele. Todavia, se quiser, pode prestar-me um serviço:

levar um maço de cartas a Saint-Emilion. Isso implica alguns riscos durante a passagem pela linha de demarcação entre as duas zonas.

- Onde devo entregá-lo?

- Em casa do sr. Lefranc, na ruela do Château-du-Roy. Dê-lhe também este exemplar do Guia Azul da Bretanha; ele saberá do que se trata. Em seguida, esqueça tudo o que aconteceu e vá para Roches-Bianches. Venha comigo, Léa. Quero lhe falar.

Seguindo o tio pelas aléias do jardim, Léa sentia o coração bater descompassado - temia aquela conversa.

- Tenho de partir esta tarde - começou Adrien Delmas.

- Tomarei o trem das seis para Bordeaux. Amanhã, você levará

Camilie a Saint-Emilion e depois a Roches-Bianches. Daí volte para casa o mais rapidamente possível, passando por Cadillac. Na cidade, entregue estas três cartas da parte do cônego ao sr. Fougeron, funcionário da prefeitura.

- Só isso?

- Sim. Ah, já ia me esquecendo! Laurent deixou-me isto para você - rematou o tio.

Léa ficou escarlate ao pegar o envelope de má qualidade que Adrien lhe estendia.

- Obrigada - disse.

- Não me agradeça. Não é por você que o faço, mas sim por ele, embora não aprove que lhe escreva. Se aceitei fazê-lo, foi apenas por senti-lo dilacerado.

Com a cabeça baixa, Léa não respondeu, girando maquinal- mente o envelope entre os dedos. Não estava fechado. A moça lançou ao tio um rápido olhar de viés.

- Pode ficar tranqüila, eu não li a carta.

 

Capítulo 22

Léa estava bem longe de supor que iria experimentar qualquer pena ao separar-se de Camille. No entanto, foi de coração amargurado que caiu em seus braços na despedida.

A passagem pela linha de demarcação em Saint-Pierre-d'Aurillac efetuara-se sem obstáculos. Tinha escondido as cartas na pequena mala de roupas do bebê. Em Saint-Emilion, entregaram ao sr. Lefranc o guia da Bretanha. Em RochesBianches, Delpech recebeu, comovido, a jovem esposa e o seu filho.

Léa revia a casa pela primeira vez desde aquela festa de noivado que marcara o fim de uma época feliz. Tivera então um único desejo: permanecer ali o menos tempo possível. Depois de lavar o rosto e as mãos, furtara-se à solicitude de Camille e partira.

Chegou a Cadillac pouco antes que a prefeitura fechasse. Na escadaria, cruzou com dois risonhos soldados alemães. No balcão do registro civil, um funcionário redigia à mão, meticulosamente, alguns documentos; era Fougeron. Léa entregoulhe as cartas e viu-se incumbida de postar um embrulho nos correios da zona livre. Não teve tempo de dizer uma única palavra, pois era manifesto o mau humor dos soldados alemães. Com um gesto rápido, fez desaparecer o pacote na bolsa.

A partir desse dia, efetuava regularmente o transporte de correio entre uma zona e outra. Para isso, fora obrigada a pedir ao tenente Kramer um Aasweis especial, a pretexto de vigiar a realização de trabalhos nas terras de seu pai, em Mounissens e em La Laurence, perto de Saint-Pierre-d'Aurillac. O cardápio em Montillac melhorou graças a essas viagens. Além disso, Albertine e Lisa, que, segundo afirmavam, morriam de fome lentamente em Paris, recebiam algumas encomendas de vez em quando.

Com as férias, Laure regressara do pensionato disposta a não voltar, agora que recebera o diploma. Transformara-se numa bela moça de dezesseis anos, fútil e coquete, grande admiradora de Pétain; colecionava retratos dele de todos os tipos.

Nunca perdoara Léa por ter atirado ao chão uma fotografia autografada de seu ídolo, que orgulhosamente colocara sobre o piano do salão. Queixara-se do caso ao pai, cuja resposta a abalara, apesar de tudo:

- Sua mãe faria exatamente o mesmo.

Depois disso, Laure deixava a sala de visitas ostensivamente sempre que Léa ouvia a Rádio Londres. Quanto a Françoise, ninguém sabia ao certo o que se passava. Se não estava de serviço no hospital, tocava piano o dia inteiro, exibindo a todos o rosto resplandecente, o que levava Ruth a comentar:

- Não me admiraria que essa menina estivesse apaixonada.

Mas apaixonada por quem? Léa recusava-se a responder a tal pergunta. Vigiara a irmã durante dias, sem nada notar de suspeito em seu comportamento. Contudo, certa vez, Léa desceu à cozinha mais cedo do que o habitual para preparar o café da manhã. Na escada escura, chocou-se com o tenente Hanke, que a cumprimentou em tom de voz bastante elevado:

- Bom dia, srta. Delmas.

- Bom dia - respondeu Léa bruscamente.

Ao entrar na cozinha, o tenente Kramer terminava sua refeição. Ergueu-se ao aparecimento da moça, saudando-a.

- Bom dia, srta. Delmas. Levantou cedo hoje. Vai, sem dúvida, visitar as propriedades de seu pai, na zona ocupada - observou.

Por que motivo havia três tigelas sobre a mesa, uma delas cheia?

Pouco depois do regresso de Laure a Montillac, chegaram também Philippe, Corinne e Pierrot, o caçula, filho de Luc Delmas. Na velha casa, ecoaram de novo gritos e gargalhadas. Devido à presença dos alemães, tiveram de ficar mais apertados.

Léa revia com agrado o primo Pierrot, que aos catorze anos já se considerava um homem. Tal como antes, dormia com ela no quarto das crianças.

Durante as refeições, as conversas eram tão animadas que Bernadette Bouchardeau se apressava a fechar as janelas.

- Querem que todo mundo os ouça? Que sejamos todos presos?

A mesa dividia-se nitidamente em três campos. O dos adeptos convictos de Pétain: Bernadette, Philippe, Corinne e Laure, que não encontravam palavras suficientemente duras para falar daqueles que, de modo covarde, tinham traído o marechal e, por conseqüência, a França; o dos partidários de De Gaulle ou, pelo menos, daqueles que não aceitavam a presença dos ocupantes: Léa e Pierrot; e ainda o dos "sem opinião", por motivos vários, Pierre Delmas, Françoise e Ruth.

O primeiro grupo pregava a colaboração solicitada por Pétain a 30 de outubro de 1940, única maneira - segundo garantiam de restabelecer a ordem, a dignidade e a religião no país, corrompido por judeus e por comunistas; os segundos afirmavam que a única oportunidade de a França recuperar a honra e a liberdade era seguir as diretivas do general de Gaulle.

- Um traidor!

- Não! Um herói!

Os adeptos do terceiro grupo pouco se manifestavam: Ruth por discrição, Pierre Delmas por indiferença e Françoise por. . . não se sabia por quê. Abandonava a mesa com freqüência, se o debate se tornava demasiado apaixonado.

Certo dia, sem se conter, Léa seguiu-a. No terraço, caída sobre o banco de ferro, Françoise soluçava. A irmã aproximou-se, perguntando com doçura:

- O que você tem, Françoise?

O pranto redobrou.

- Estou farta de ouvir falar de guerra, Pétain, Hitler, De Gaulie, das restrições, dos russos, da zona livre, da zona ocupada, da Inglaterra, de. . . de. . . Estou farta! Gostaria que me deixassem em paz. Quero poder amar livremente. . . quero. . . quero morrer!

A compaixão sentida pelo desgosto da irmã transformava-se aos poucos em desagrado e logo em repugnância. "As pessoas escondem-se, quando ficam assim tão feias chorando", pensou Léa.

- Cale-se! - ordenou. - Se visse a sua cara! Se algo não vai bem, diga-me. Se o seu apaixonado a põe assim, deixe-o - disse Léa.

Falara por implicância, sem pensar no que dizia. Ficou surpresa e muda face à violência da reação de Françoise.

- Que sabe você do meu apaixonado, você que rola no feno com um serviçal, embora continue a pensar no marido de outra mulher? O meu apaixonado, se quisesse, faria com que vocês todos fossem. . . Mas isso não lhe diz respeito, não diz respeito a ninguém. Detesto vocês. . . gostaria de nunca mais os ver.

Depois de cuspir no rosto da irmã a última palavra, Françoise pôs-se em fuga pela passagem entre a vegetação existente ao longo do terraço. Léa ficou olhando a silhueta vacilante afastar-se por entre os vinhedos e depois desaparecer para lá de Valenton.

Quanto tempo assim ficara, imóvel, face à paisagem familiar, enquanto lhe martelava o cérebro aquela frase: "O meu apaixonado, se quisesse, faria com que todos vocês foss Fossem presos? Sim, era isso: "O meu apaixonado, se quisesse, faria com que todos vocês fossem presos". Mas, como sempre, a beleza tranqüila dos campos, das matas, colinas, vinhas, aldeias e da linha sombria das Landes, ao fundo, contribuiu para aplacar-lhe a angústia e interromper a horrível música que lhe ressoava no cérebro.

Françoise comunicara em casa que iria a Arcachon no dia seguinte, visitar uma amiga. Léa recordou-se então daquilo que Laure lhe sugerira certa vez: perguntar a Françoise se se divertira no concerto. Naquele momento, ficara admirada com tais palavras. Depois, a irmã mais nova acrescentara vagamente que aquilo não tinha importância, que esquecesse. Mas, diante da insistência de Léa, acabara por confessar.

- Pareceu-me vê-la com o tenente Kramer. Mas não devia ser ela, pois o homem que a acompanhava vestia trajes civis.

Léa não tinha agora nenhuma dúvida: Françoise amava um alemão, de quem certamente se tornara amante.

Comentou o caso com Camille, que fora passar alguns dias em Montillac, antes das vindimas. Que devia fazer? Prevenir o pai, Ruth e tio

Adrien?

- Não faça isso - aconselhou Camilie. - É um assunto realmente muito delicado. Só Françoise e o tenente Kramer podem dizer se a sua suspeita é ou não verdadeira.

- Mais e aquelas palavras de Françoise?

- Disse-as num momento de cólera.

Durante a estada de Françoise em Aréachon, o tenente Kramer esteve ausente de Montillac a maior parte do tempo.

Com a chegada do outono, todos partiram para Bordeaux, até mesmo Laure, que achava o campo de "um tédio mortal". Léa deixara a Mathias e a Fayard a responsabilidade das vinhas e assistiu com satisfação à partida dos outros, ainda mais que alimentar toda aquela gente, embora tivesse senhas de racionamento suplementares, era um problema muito complicado. Via aproximar-se o inverno sem grande receio graças às conservas dos legumes cultivados em sua horta e ao viveiro bem provido de coelhos e de galinhas; sem contar os dois porcos na engorda. Apenas uma coisa a preocupava:

a falta de dinheiro. A venda do vinho chegara somente para pagar àqueles que se ocupavam dos vinhedos, e nem mesmo a todos; nos seis últimos meses, Fayard não recebera seu salário. Por Camilie, Léa soube que Laurent ficara em Argel apenas alguns meses. Encontrava-se agora em Londres. Notou com alegria que Camille não falava mais em ir ao encontro do marido.

Apesar do amor sentido por Laurent, prosseguira suas relações amorosas com Mathias, sempre mais violentas e mais decepcionantes.

Após cada contato, Léa se prometia que seria o último. Mas, ao fim de uma semana ou quinze dias, no máximo, ia encontrá-lo no celeiro, nas vinhas ou na velha casa de Saint-Macaire.

A 21 de outubro de 1941, houve um atentado em Bordeaux contra um oficial alemão. No dia 23 do mesmo mês, eram executados cinqüenta reféns.

Léa experimentava sentimentos de angústia e tédio cada vez mais agudos. Em vão procurava quebrar a monotonia das horas mergulhando na leitura dos livros da biblioteca do pai. Nenhum autor lhe agradava. Por falta de interesse, caíam-lhe das mãos as obras de Balzac, de Proust ou de Mauriac. Seu sono era perturbado por horríveis pesadelos. Ora a mãe se erguia soluçando no meio dos escombros, ora o homem que matara a comprimia contra si num enlace repugnante. Durante o dia, assaltavam-na bruscas crises de choro que a deixavam alquebrada. Montillac pesava-lhe sobre os ombros. Perguntava a si mesma se valeria a pena trabalhar tanto para manter tudo aquilo vivo, para conservar a terra, amada apenas por ela agora, pois nem o pai nem as irmãs lhe davam a mínima importância. Havia outra pessoa, porém, que também amava a propriedade, a ponto de ambicioná-la para si: Fayard. Readquirira a razão de viver após o regresso do filho, mudança que o tornara mais áspero. Conseguira dissimulá-la até o dia em que dissera a Léa, sem rodeios:

Tudo isto representa um peso demasiado grande para a sua juventude, senhorita. O pobre sr. Delmas já não está no seu juízo perfeito, e dentro de pouco tempo terão de interná-lo num sanatório. Só um homem conseguirá administrar uma propriedade como esta. Aconselhe seu pai a vendê-la. Fiz economias, e minha mulher acaba de receber uma herança. Como é evidente, ficarei devendo alguma coisa. Mas, por certo, o sr. Delmas não se importará de transformar essa quantia no seu dote.

Gelada, Léa foi incapaz de interromper-lhe o discurso. Só nesse momento se apercebeu de que, durante todos aqueles anos passados trabalhando a terra, Fayard tivera em mente um único objetivo: tornar-se seu proprietário. E as circunstâncias ajudavam-no às mil maravilhas. Se Isabelle Delmas fosse viva, nunca Fayard se atreveria a apresentar tal proposta. Além disso, o administrador acabava também de lhe dar a perceber que estava perfeitamente a par das relações existentes entre ela e o filho.

- Não responde? - insistiu Fayard. - Ah, compreendo! Receia ter de deixar a casa. Mas depende só da senhorita mantê-la, casando-se com meu filho.

Léa conteve com dificuldade a cólera que a invadia.

- Mathias está a par de seus belos projetos?

- Mais ou menos. Diz que são assuntos que não devem ser tratados agora.

Diante de tais palavras, Léa sentiu um pouco mais leve o peso que a oprimia.

- Engana-se, Fayard. Não tencionamos vender a propriedade. nem ao senhor nem a ninguém. Nasci nesta terra e faço questão de conservá-la. Quanto ao estado de saúde de meu pai, não é tão catastrófico como o pinta.

- Mas vocês não têm dinheiro e há seis meses que não recebo contestou Fayard.

- Os nossos problemas financeiros não são da sua conta. No que diz respeito a seu salário, receberá antes do fim do mês. Boa noite,

Fayard.

- Faz mal, srta. Léa. Faz mesmo muito mal em levar as coisas deste modo - disse o homem em tom ameaçador.

Chega! - concluiu Léa. - Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto. Boa noite.

Fayard saiu, resmungando.

No dia seguinte, Léa escreveu à tia Albertine, pedindo-lhe emprestado a quantia devida ao administrador. A sra. de Montpleynet envioulhe o dinheiro na volta do correio, e Ruth viu-se incumbida de entregá-lo ao capataz das adegas. Foi nessa época que se deu uma violenta altercação entre Fayard e seu filho. Depois disso, Mathias decidiu oferecer-se como voluntário para trabalhar na Alemanha. Léa suplicoulhe que abandonasse tal projeto, argumentando que precisava dele ali e que tal coisa era um ato de traição à pátria.

- Não, você não precisa de mim objetou o rapaz com azedume. Afirma precisar, mas pensa apenas em Montillac. E eu quero lá saber de

Montillac!

- Não diga isso, Mathias! Você bebeu! - exclamou a moça.

- Sim, é verdade, bebi. Não sou como meu pai. É a você que eu quero, com ou sem terras. Mas cheguei à conclusão de que não me ama.

Não passa de uma cadela no cio; de vez em quando, precisa que lhe metam a coisa.

- Cale-se! Não seja vulgar.

- Se você soubesse como me é indiferente ser ou não vulgar! Nada mais importa para mim. Deste modo, aqui ou na Alemanha.

- Se quer ir embora de qualquer maneira, então por que não vai reunir-se ao general de Gaulle?

Quero lá saber! Quero lá saber do general de Gaulie, de Hitier ou de Pétain! Para mim são todos a mesma coisa militares! E eu não gosto de militares.

Eu lhe peço, Mathias, não me abandone.

- Por pouco a julgaria sincera. Vejam como chora! Então vai sentir falta do pobre Mathias? Do pobre Mathias e da sua grossa coisa.

- Cale-se!

Tinham-se encontrado no pequeno bosque de pinheiros perto da horta. Mathias fora procurar Léa para anunciar-lhe sua decisão. Bebera para ganhar coragem?

Num gesto brusco, o rapaz empurrou a amiga. fazendo-a cair por terra. Ela escorregou nas folhas. Com a queda, a saia ergueu-se, descobrindo-lhe as coxas brancas acima das meias de lã preta.

Mathias lançou-se sobre ela.

- Tudo o que lhe interessa, minha porca, é a minha coisa, uma coisa boa e grossa. Não chore mais que já vai tê-la - garantiu o rapaz.

- Largue-me! Você está fedendo a vinho.

O caso não é grave; não nos embota os sentidos.

Léa debatia-se sem sucesso; a embriaguez decuplicava a força do companheiro. As agulhas das árvores, aquecidas pelo sol brilhante da tarde de inverno, exalavam aquele mesmo perfume do tempo de suas brincadeiras infantis, quando ambos rolavam junto dos troncos dos pinheiros enormes. Essa evocação perturbou Léa de tal forma, que ela cessou de defender-se, oferecendo-se ao sexo que a procurava.

Mathias iludiu-se quanto a essa aparente sujeição.

- Não passa de uma porca - comentou ele.

Tratou-a com instintos animalescos, procurando magoá-la, castigá-la, por não amá-lo. Gritaram de prazer.

Durante quanto tempo choraram depois, ainda enlaçados, ridículos na sua seminudez e visíveis da horta? Por fim, o frio e o desconforto os trouxeram de volta à triste realidade. Ergueram-se sem dizer nada, compondo a roupa, sacudindo-a, para tirar a terra, e desemaranhando dos cabelos pedaços de folhagem de pinheiros. E, após uma troca de olhares que falavam de sua tristeza, partiram cada um para seu lado.

À noite, Mathias tomou o trem para Bordeaux, de onde seguiu para a Alemanha, no dia 3 de janeiro de 1942.

 

Capítulo 23

O cão dos Fayard acompanhara Léa num passeio. Fizeram uma pausa ao pé da cruz de Borde, que dominava a planície. O dia estava claro, cheio de sol. O vento vivo e frio enrubescia as feições da jovem. Protegida pelo amplo capote de pastor das Landes, ela fitava o espaço à sua frente, com os olhos perdidos no vazio. Em SaintMacaire, os sinos tocaram as vésperas. Era domingo. De repente, o cão levantou a cabeça em atitude de alerta e depois ergueu-se, rosnando.

Que foi, Courtaud?

O animal ladrou e correu para o caminho. "Deve ser um coelho ou um rato", pensou Léa, mergulhando de novo em devaneios sem objetivo.

Passados instantes, uma pedra rolou junto dela. Ergueu a cabeça e pôs-se em pé de um pulo.

- Tio Adrien!

- Filha!

Abraçaram-se, felizes.

- Ufa! Tinha esquecido como é abrupta a encosta para se chegar até aqui - disse o dominicano, deixando-se cair na grama com o peito arfando. - A não ser que seja da idade - acrescentou, arrumando as pregas do hábito.

- O que faz aqui, tio? Quando chegou? - perguntou a moça.

- Cheguei agora mesmo e vim procurá-la. Foi bom encontrá-la longe de casa, devido às coisas que tenho para lhe dizer.

- Laurent. .

- Não, não se trata de Laurent. Ele vai bem. . . pelo menos estava bem na última vez que o vi.

- Na última vez!? Então está na França? perguntou Léa, admirada.

- Está. Veio de Londres de avião e foi lançado de pára- quedas - informou o tio.

- Onde está ele agora:?

O dominicano não respondeu à pergunta.

- Camille já sabe?

- Acho que não. Ouça bem o que lhe digo, Léa. Sei que

Você prossegue na missão de carteiro entre as duas zonas e que sua bicicleta azul já é conhecida de todos aqueles que ainda conservam a esperança. Você demonstrou coragem e sangue-frio por diversas vezes. Vou agora incumbi-la de uma tarefa de extrema importância. Em breve serei descoberto, tenho de fugir para a zona livre. Preciso transmitir uma mensagem a Paris. Você irá em meu lugar.

- Eu?! - espantou-se Léa.

- Sim, você. Vai receber amanhã uma carta de sua tia Albertine, pedindo que a ajude a cuidar da irmã.

- Tia Lisa está doente?

- Não. Trata-se apenas de um estratagema; precisa de um motivo plausível para ir a Paris. Você sairá amanhã no trem da noite; vai viajar na segunda classe. Aqui está a passagem. Quando chegar, telefone da estação para suas tias. Cuidado com o que diz! Depois, pegue o metrô e siga diretamente para a Rue de l'Université, passando pela Rue de Bac.

- Mas...

- Eu sei; não é o caminho mais curto, mas é por onde terá de seguir. Ao chegar em casa, invente qualquer coisa que justifique a sua ida. O ideal seria que Lisa pudesse ficar uns dias de cama.

À tarde, dê umas voltas pelo bairro, faça algumas compras no Bon

Marché, vá ver as vitrinas. Na volta, passe diante da Livraria

Gallimard, no Boulevard Raspail. Conhece?

- Conheço.

- Muito bem. Entre na loja depois de observar a vitrina. Folheie, então, obras expostas sobre a mesa diante do caixa, percorra as prateleiras, parando diante dos livros cujos autores tenham nomes começados pela letra P, tal como Proiist. Pegue o segundo tomo da obra Em busca do tempo perdido. No interior do volume encontrará, então, um folheto das edições da NRF, sobre as novidades literárias. O prospecto será um pouco mais espesso do que habitualmente. Troque-o por este.

Léa pegou o papel verde-claro onde figuravam, impressos, vários títulos de livros.

- Este também é espesso - comentou.

- Pois é. Dentro dele está a mensagem que é imprescindível entregar. Depois da troca, volte a pôr o livro na prateleira. Pegue ao lado qualquer uma das obras publicadas pela Gallimard e vá ao caixa para pagá-la.

- É tudo?

- Não. Você deve estar na livraria às cinco horas em ponto e sair dez minutos mais tarde. Pode acontecer, por um ou outro motivo, que você não consiga substituir o folheto. Assim, volte no dia seguinte às onze horas. Se ocorrer de novo algum impedimento, vá até a Rue de l'Université, onde receberá outras instruções. Entendeu bem?

Entendi. Mas o que faço com o folheto? - interrogou a moça.

- Coloque-o dentro do livro que comprar. Se tudo correr bem, no dia seguinte vá ver o filme de Louis Daquin, Nous les gosses, no cinema dos Champs-Elysées, na sessão das duas horas. Instale-se na antepenúltima fila, o mais perto possível da passagem central. Um pouco antes de terminar a sessão, deixe o livro debaixo do assento e saia. Se houver algum obstáculo, proceda do mesmo modo na sessão das quatro horas. Dois dias depois, vá ao Museu Grévin, às três horas. Diante da tela que mostra a família real no Templo, será abordada por alguém que dirá: "Já não vamos ao bosque". Responda, então: "Os loureiros foram cortados". Em seguida, essa pessoa deixará cair um folheto do museu e você o apanhará. Ele lhe dirá: "Fique com ele; talvez lhe interesse". Agradeça e continue a visita ao museu, consultando o folheto de vez em quando - explicou Adrien Delmas.

- E depois?

- Depois, volte para casa. No dia seguinte, apanhe o trem para Limoges. Haverá verificação de documentos na estação de Vierzon.

Chegando a Limoges, deixe a mala no depósito das bagagens. Ao sair, tome o bonde e desça na Place Denis-Dussoubs. Há aí um cinema, o Olympia. Na esquina da praça com o Boulevard Victor-Hugo, fica uma livraria. Dirija-se à mulher gorda, de cerca de sessenta anos, envergando bata cinzenta, e pergunte-lhe se recebeu Os mistérios de Paris, de Eugène Sue. Ela responderá que tem apenas Os mistérios de Londres, de Paul Féval. Entregará a você, então, um exemplar dessa obra. Coloque entre as páginas o folheto do Museu Grévin. Depois devolva-lhe o livro, desculpando- se e dizendo não lhe interessar. À saída, dobre à direita na Rue Adrien-Dubouché e entre na Igreja de Saint-Michel-des-Lions, assim chamada devida aos dois leões de pedra deitados à entrada. Visite o templo e, de passagem, nada impede que reze um pouco. Quando sair, desça a Rue du Clocher, passando pelas Nouvelles Galeries e pelo Hôtel Central, situado na Place Jourdan. Contorne o largo e pegue a Avenue de la Gare. Serão mais ou menos cinco horas. Há um trem para Bordeaux às cinco e meia. Em Bordeaux, tio Luc estará à sua espera. Passe a noite em sua casa. Ele não sabe de nada; pensará que você esteve cuidando de sua tia. No dia seguinte, volte a Montillac e procure esquecer tudo o que aconteceu. Entendeu? - perguntou o tio.

- Acho que sim.

- Nesse caso, repita o que eu lhe disse ordenou o domi nicano.

Sem se enganar, Léa repetiu tudo o que deveria dizer e fazer.

- Em princípio, tudo deverá correr bem. Não se preocupe na passagem da linha de demarcação, pois seus documentos estão em ordem.

Não se assuste se houver outras verificações imprevistas. Caso aconteça algum problema grave em Paris, telefone a François favernier ou mande avisá-lo.

François Tavernier.

Sim, não se lembra dele? Você o conheceu no dia do noivado de Laurent e Camille.

- Mas confia nele?

- Depende para o quê. Certas pessoas acusam-no de colaboracionista; outras dizem-no agente do 2 Bureau. Que pensem aquilo que quiserem! Mas eu sei quando posso contar com ele. Por isso, telefone-lhe caso tenha qualquer aborrecimento - concluiu o dominicano.

Léa estremeceu.

- Está com frio? perguntou Adrien. Que estupidez a minha obrigá-la a permanecer aqui quieta! Levante-se. Pode ficar doente, e este não é um bom momento para adoecer.

Quando chegaram a Montillac, toda a família se encontrava reunida no salão, em frente à lareira, tomando chocolate e comendo um bolo enorme.

Parece que estamos em Bizâncio! - exclamou o dominicano.

- Graças a Françoise - comentou Bernadette Bouchardeau.

- Um dos seus doentes, em sinal de reconhecimento, ofereceu-lhe estas maravilhas.

Bebendo o chocolate em pequenos goles, Léa não pôde impedir- se de lançar à irmã uma olhadela inquieta. Deveria comunicar ao tio as suas suspeitas em relação a Françoise?

Tudo se passou como Adrien Delmas previra. Tomaram ambos o trem para Bordeaux. Depois, sem se virar, Léa, sozinha, subiu para o trem que a conduziria a Paris.

Felizes em rever a sobrinha, as senhoras de Montpleynet pouco estranharam o súbito aparecimento de Léa. A satisfação delas atingiu o auge quando a moça exibiu as guloseimas que levara consigo: um presunto, uma dúzia de ovos e um quilo de manteiga. Lisa, a glutona, tinha os olhos marejados de lágrimas e até a digna Albertine mostrou-se comovida. Quanto a Estelie, depôs um beijo em cada face da jovem, tratando-a por "boa senhorita", antes de transportar para a cozinha, com cuidados de avarento, aqueles tesouros.

Almoçaram uma sopa rala: algumas batatas e um pouco de presunto.

- Se não fosse por você, teríamos de nos contentar com este triste cardápio - observou Lisa de boca cheia, apontando a terrina.

- Não nos lastimemos, minha irmã - interveio Albertine.

- Conhecemos pessoas bem mais infelizes. Graças ao pouco dinheiro que nos resta, podemos ainda dar-nos ao luxo de comprar carne ou aves no mercado negro.

Lá isso é verdade. Mas nunca comemos bolos.

A frase infantil de Lisa fez Albertine e a sobrinha rirem.

Depois do almoço, Léa comunicou às tias que iria dar uma volta pelo bairro.

À saída do metrô, Léa não prestou atenção ao ambiente que a rodeava. Só ao chegar a Saint-Germain tomou consciência da quietude reinante: não havia carros pelas ruas. Só algumas bicicletas, bicicletas-táxis, raros pedestres e um Mercedes rutilante, dentro do qual dois oficiais alemães enlaçavam duas falsas loiras com casacos de peles. A jovem seguiu o veículo com os olhos, apertando contra o corpo, num gesto friorento, o casaco muito leve para aquela época do ano. Lamentou não ter vestido uma das calças de Claude, dadas por Camille. Achara-as pouco elegantes para Paris. Os raros transeuntes apressavam o passo, de rosto fechado e de cabeça baixa para melhor evitar as rajadas de vento glacial. Léa subiu rapidamente o Boulevard Raspail, mas diminuiu o passo ao chegar diante do Hotel Lutetia.

Nas fachadas dos edifícios, flutuavam bandeiras alemãs. Embora aquele não fosse para ela um espetáculo novo - Bordeaux também tinha marcas da ocupação -, Léa sentiu a garganta apertar-se. Ao percorrer a Rue de Babylone, o vento obrigou-a a vacilar. Estava quente dentro do Bon Marché. A maior parte das prateleiras achava-se vazia. "Faça algumas compras", recomendara o tio, dando-lhe dinheiro.

Não lhe agradaria mais, na verdade. Mas comprar o quê? Para quase tudo eram necessárias senhas. Na seção de papelaria, adquiriu alguns lápis de cor e um estojo de pintura; na de perfumaria, um frasco de água-de-colônia Chanel. Durante uma hora, vagueou pelas lojas, depois subiu ao salão de chá para tomar uma beberagem quente que de chá tinha apenas o nome. Por fim, soaram as quatro e meia.

Caminhando devagar, estaria às cinco na livraria. Na Gallimard, teve a sensação de que todos a observavam. Nunca imaginara ser tão difícil o simples gesto de retirar com naturalidade um livro de uma prateleira. E aquele jovem empregado que não cessava de fitá-la com olhares famintos de adolescente! Os títulos dos livros dançavam-lhe em frente dos olhos.

- Procura um bom livro?

Antes de responder, Léa empurrou para o respectivo lugar o segundo tomo da obra Em busca do tempo perdido.

- Você! - exclamou ela.

- Claro! Eu mesmo, em carne e osso. Não foi aqui que nos encontramos pela primeira vez?

- Raphaél! Parece que foi há tanto tempo! - observou Léa, estendendo-lhe a mão.

- Bom dia, bela bordelense. Que estranho! Sempre que nos vemos, sinto o mesmo aperto no coração, a mesma nostalgia. Ah, se eu fosse outro, minha doce amiga, como a amaria! - exclamou Raphaël, pegando-lhe os dedos e beijando-os de leve por diversas vezes.

- Você nunca muda? - disse a moça, retirando a mão.

- E por que motivo haveria de mudar? Não me disse uma vez que gostava de mim tal como sou, judeu e pederasta? - perguntou Mahl.

- isso! Fale em voz ainda mais alta! - disse a jovem, de mau humor.

Estou entre amigos. Aqui todos me conhecem. Não serei eu um escritor da casa? Pouco conhecido, é verdade, mas muito estimado.

Aquele jovem moreno que ali vê é um poço de sabedoria. Nada há que não tenha lido, até mesmo as minhas obras. E com apenas dezesseis anos! Não é incrível? - disse Mahl, irônico. Depois, dirigindo-se ao empregado, perguntou: - Como é o seu nome? Diga-me outra vez.

Jean-Jacques, senhor.

- Jean-Jacques, é isso. Encontrou o livro que lhe pedi?

- Ainda não. Mas é uma questão de dias.

- Quando o tiver, leve-o ao hotel onde estou, na Rue des Saints-Pères. Terei então oportunidade de lhe oferecer um porto velhíssimo e raríssimo - disse Mahl, beliscando a face do rapaz, que o fitou com uma expressão insolente e divertida. Depois, virando-se para Léa, Raphaél murmurou: - Viu aqueles olhos, minha amiga? Que chama! Desculpe, querida, se não lhe prestei toda a atenção que merece. Que faz em Paris? A última vez que a vi foi à porta de uma igreja em Bordeaux. A propósito, como vão os dominicanos dessa magnífica cidade?

Léa conseguiu conter um estremecimento e responder com maior secura do que seria de se desejar:

- Vão muito bem.

- Fico muito feliz em sabê-lo. Mas ainda não me disse o que faz aqui.

- Uma das minhas tias está doente e a outra cansada demais para cuidar dela. Assim, vim ajudá-las um pouco.

- Que boa menina! Hoje jantará comigo, não é mesmo? disse Raphael.

- Não é.

Ora, ora! Irei buscá-la às seis e meia. Janta-se muito cedo em Paris, atualmente. Diga-me novamente seu endereço.

- Rue de l'Université, número 65. Mas...

- Nem mais uma palavra. Agora que voltei a encontrá-la será minha. Fique bem bonita. Esta noite, vai conhecer a alta-roda.

Primeiramente, iremos jantar no La Tour d'Argent e depois a uma recepção onde você será a figura principal.

"Como hei de desembaraçar-me dele?", perguntava-se Léa. "Agora é tarde demais para trocar os folhetos."

- Pela amizade que tem por mim, aceite meu convite, peço- lhe - insistiu Mabel.

- Está bem. Vá então buscar-me daqui a pouco.

- Obrigado. Nem sabe o prazer que me dá.

"E se Mahl for espião?", repetia Léa mentalmente, enquanto se dirigia apressadamente para a Rue de l'Université. Não, não era possível!

Não a ajudara em Bordeaux? Contanto que no dia seguinte ninguém a incomodasse na livraria. . . Que vestir para o jantar? Léa furtou-se à futilidade de tal pensamento, já que fora incapaz de cumprir a missão que ali a levara. Maquinalmente, fez o inventário da roupa de que dispunha - nada com que pudesse apresentar-se no La Tour d'Argent.

- Nem pense nisso, Léa! Ir jantar com um cavalheiro que nem sequer conhecemos! - exclamou tia Albertine.

- Mas, tia, irá conhecê-lo daqui a pouco! Ele virá buscar-me.

- É possível. Mas não está certo.

- Tiazinha, eu lhe peço! Desde que saí daqui, é a primeira vez que tenho oportunidade de me divertir.

Albertine olhou com enorme ternura para sua sobrinha preferida. A pobre menina vivia uma juventude bem pouco alegre, era verdade.

Não lhe faria mal algum distrair-se um pouco.

- Tem um vestido elegante para usar?

- Infelizmente, não.

- Vou falar com Lisa e com Estelie e veremos se encontramos qualquer coisa. Graças a Deus não vendi minha raposa!

As duas irmãs começaram, então, a revolver os baús; descobriram alguns antigos vestidos de baile, dos quais o mais recente remontava aos anos 20.

- E isto? O que é isto? perguntou Léa, desdobrando uma saia de tule preta com aplicações de renda.

- Não sei. Talvez tenha pertencido a nossa mãe.

É muito bonita - elogiou Léa, vestindo-a por cima da roupa. - Vejam! Depois de passada a ferro, ficará perfeita. E este corpete?

- Não pode vestir tal coisa! Está completamente fora de moda.

- Ajude-me, Esteile, por favor. Vamos dar um jeito nesta roupa - decidiu a jovem.

E foi assim que Léa causou sensação ao surgir no La Tour d'Argent. Cobria-lhe o longo pescoço a gola alta de renda preta de um corpete de outros tempos, com mangas franzidas em volta dos pulsos. A saia rodada espalhava-se em torno da cadeira. Uma pluma preta enfeitava-lhe os cabelos presos, conferindo-lhe um ar de altivez. As mulheres elegantíssimas, muito pintadas e cobertas de jóias, observavam com inveja aquela jovem de tez pálida, onde mal se percebiam tênues vestígios de pó-de-arroz. Os olhos claros sobressaíam entre os cujos pintados. Também os homens observavam Léa, mas com sentimentos muito diferentes. Os que conheciam Raphaél Mahl e sua duvidosa reputação estranhavam o fato de uma jovem tão distinta assim se comprometer em sua companhia.

Léa sentiu-se envaidecida ao perceber todos os olhares voltados para ela. Felicitou-se por não dispor de um traje na moda; assim vestida sublinhava a diferença que sabia existir entre ela e as outras mulheres presentes. Foi essa também, aliás, a opinião de Raphaél, que a elogiou com a exuberância habitual.

- Bravo! Você é a mais bela. Veja como todos a olham, sobretudo as mulheres. Que engraçado! Onde desencantou esse traje, ao mesmo tempo severo e sexy, tal como dizem os americanos? As poucas mulheres de sociedade que aqui estão parecem cortesãs diante de você.

Obrigado por estar tão bela - disse Mahl. Depois, dirigindo-se ao encarregado dos vinhos, ordenou: - Traga-nos champanha. Um Dom

Pérignon de boa safra.

- Pois não, senhor.

- Festejemos condignamente nosso reencontro - propôs Mahl, virando-se para a companheira. - As suas tias são encantadoras. Pensei que uma delas estivesse doente.

- Está melhor - replicou Léa com precipitação.

- Fico contente em sabê-lo. Ah, eis o champanha! Devido à guerra, que nos priva de luz, você não poderá admirar os fundos da nave de Notre-Dame, o Sena e a ilha de São Luís. Mas prometo que a cozinha irá consolá-la da impossibilidade de contemplar o panorama. Está no mais antigo restaurante de Paris e um dos mais prestigiados - garantiu Mahl.

Léa olhou o seu acompanhante. Mudara muito desde o último encontro. Engordara, e o casaco do smoking enrugava em alguns pontos.

Tinha o rosto macilento das pessoas que se deitam tarde, parecia inquieto e fumava um cigarro atrás do outro.

- Dê-me um - pediu Léa.

- Pensei que não fumasse - disse ele, estendendo-lhe a cigarreira aberta.

Léa retirou um cigarro de filtro dourado, O maítre precipitou- se para acendê-lo.

- Obrigada! - agradeceu Léa, expelindo a fumaça.

- Gosta?

- De onde são estes cigarros? - perguntou. - Têm um gosto esquisito.

- São turcos. O empregado do Crillon fornece-os em pacotes. Posso arranjar-lhe, se estiver interessada.

- Agradecida, mas estão seguramente além de minhas possibilidades.

- Quem falou em dinheiro, minha amiga? Pagar-me-á mais tarde disse Mahl.

- Não, obrigada. Prefiro um bom par de sapatos.

- Não é problema; também posso obtê-lo. É só dizer o que quer: sapatos abertos? Botas? Sandálias? Forneço de tudo um pouco. Deseja zibelinas, lenços de cabeça, meias de seda, pulôveres de cashmere, casacos de pêlo de camelo? Tudo isso eu arranjo.

- E como é que faz para obter tais artigos? - quis saber a moça.

- Isso é segredo, minha bela amiga. Em geral, aos meus clientes pouco interessa saber a proveniência da mercadoria. Contentam-se em pagar e. . . adeus. E quanto menos se sabe acerca dessas coisas, melhor, pode crer.

O empregado serviu o champanha.

- Bebamos à sua beleza.

Léa inclinou a cabeça sem dar resposta e esvaziou a taça de um trago.

- Que é isso, minha querida, este vinho é para ser degustado! Não é limonada. Que quer comer?

- Marisco, muito marisco e esse pato ao molho pardo de que tanto se fala.

- Excelente escolha. Comerei a mesma coisa.

Pouco depois, chegava à mesa uma suntuosa travessa de ostras, ouriços-do-mar e mexilhões. Em seguida, comeram o famoso pato ao molho pardo, queijo de brie e uma enorme fatia de bolo de chocolate. Terminada a última garrafa, Léa recostou-se no espaldar da cadeira, diante dos olhares divertidos dos vizinhos de mesa.

- É a primeira vez, desde há alguns meses, que termino uma refeição sem continuar com fome - comentou ela.

- Espero que sim; comeu por quatro.

Isso é uma censura?

- Claro que não. Dá gosto vê-la comer. Você parece gozar. É delicioso - comentou Raphaél Mahl.

- Acha? - disse Léa, franzindo o rosto com descontentamento. - Estou com vergonha. Dê-me outro cigarro e explique-me quem é toda esta gente. Além dos alemães, é claro.

- Esta gente é a mesma de antes da guerra. Ver e ser visto sempre foi o lema da boa sociedade parisiense. É a fina flor, minha querida.

Acontece o mesmo no Maxim's, no Fouquet's, no Carrère, no Le Doyen e por toda parte onde se suponha que se deva estar.

- Não acredito.

- Veja aquelas duas mulheres ali, entre o oficial alemão com aspecto distinto e o homem bem-conservado de cabeleira grisalha.

- Parece Sacha Guitry.

- Parece, e é. A sua vizinha da direita é a grande pianista

Lucienne Delforge. Foi ela quem disse esta interessante frase: "Se me pedissem para definir o que é colaboração, eu diria: colaboração é Mozart em Paris".

- Não vejo qual a relação.

- Não vê porque lhe falta senso de humor - garantiu Mahl.

Depois, prosseguindo na apresentação dos presentes, continuou: A outra dama é Germaine Lubin, a maior especialista em Wagner.

Quanto ao oficial alemão, trata-se do tenente Rademacher, principal responsável pelos serviços de censura. Sem a sua concordância, nenhuma peça teatral ou espetáculo podem entrar em cena em

Paris. Na outra mesa, a que fica perto da janela, estão Albert

Bonnard, Bernard Grasset, Marcel e Elise Jouhandeau. Veja, lá adiante está Arletty. Depois de você, é a mulher mais bonita de todo o restaurante.

Nesse momento, aproximou-se deles um homem ainda jovem, de perfil agudo, mãos fortes e nervosas, com uma capa forrada de cetim vermelho negligentemente atirada sobre o smoking. Seguia-o um rapaz muito bonito, também de smoking.

- Você aqui, Raphaël! - exclamou o primeiro. - Fico content em ver que seus negócios parecem ter melhorado.

- Vão melhor, muito melhor. Estou numa boa fase. Léa, permita-me que lhe apresente um amigo muito querido - disse Mahl.

- O senhor Jean Cocteau.

- Jean Cocteau... Boa noite. Gostei muito do seu livro

Thomas l'imposteur.

- Obrigado. Não sabia que meu amigo Raphaél conhecesse pessoas tão encantadoras como você.

- Esta é Léa Delmas, que vive em Bordeaux.

- Ah, Bordeaux, Bordeaux! Que bela cidade! Em nenhum lugar do mundo, aliás, o tédio possui elegância tão aristocrática como lá. Até as vadiazinhas de Quinconces têm uma classe inegável. Deseja que a deixe em algum lugar? Um amigo teve a amabilidade de pôr à minha disposição o automóvel e o motorista.

- Ficaremos um pouco apertados.

- Ah, desculpe, meu amigo! Onde estou com a cabeça? Esta jovem deixou-me perturbado. Senhorita. . . perdoe-me, mas não fixei o seu nome.

Léa Delmas.

Srta. Delmas, apresento-lhe o mais notável bailarino parisiense. . . Mas que digo eu? O mais notável bailarino da Europa, o meu amigo

Serge Lifar.

O jovem, delgado e elegante dentro do seu smoking azul- escuro, inclinou-se secamente.

Aonde vão? perguntou o poeta.

- À casa do meu amigo Otto.

Que incrível coincidência! Nós também vamos. Seremos os últimos a chegar.

O motorista alemão abriu a porta do magnífico automóvel escuro. Léa recuou.

- Venha, minha cara amiga. Nada receie. Está em boas mãos, e o lugar aonde vamos é um dos mais disputados de Paris. Conheço algumas pessoas célebres capazes das maiores baixezas só para serem recebidas lá.

Léa sentou-se entre Raphaël e Jean Cocteau. Sempre com ar de descontentamento, o bailarino instalou-se junto do motorista.

Rodaram em silêncio ao longo dos cais desertos. Na noite clara e fria, a massa negra de Notre-Dame parecia proteger a cidade. A imagem fez Léa recordar-se da chegada a Paris na companhia do pai. Mas como parecia distante!

Tomaram a Rue des Saints-Pères e percorreram a Rue de Lille. Instantes depois, o veículo ultrapassou um amplo portal guardado por soldados alemães e parou diante da escadaria de uma residência particular.

Num gesto galante, Jean Cocteau ajudou a moça a descer do automóvel.

- Onde estamos? - perguntou ela.

- Na residência que Bonaparte ofereceu a Josefina.

Chegaram ao topo da escadaria. Os reposteiros da grande porta envidraçada sussurraram à passagem dos visitantes. Acolheu-os um jato de calor e uma onda de luz e de peifume. Criados uniformizados recolheram seus agasalhos. A contragosto, Léa viu-se privada de sua capa de raposa. Ofuscada, olhou em redor com um deslumbramento infantil, apenas empanado por uma pontinha de acanhamento, que em vão tentou disfarçar.

- Onde estamos? - perguntou de novo.

- Na embaixada da Alemanha.

Teve a sensação de receber um soco no estômago. Mas o seu gesto de recuo foi interrompido pelo pulso enérgico de Raphaël que a arrastou para os salões iluminados.

- Quero ir embora - afirmou ela.

- Não vai fazer-me tal coisa. Seja como for, agora é tarde demais; aí vem o embaixador.

Um belo homem ainda jovem, muito elegante no smoking que lhe dissimulava um começo de obesidade, parou junto ao grupo para cumprimentar Jean Cocteau.

- É com imenso prazer, caro amigo, que recebo em minha casa um poeta tão grande como você - disse o recém-chegado.

- Excelência.

- Vamos, apresente-me os seus amigos.

- Este é Serge Lif ar, Excelência, de quem já lhe falaram.

- Claro que sim. Adoro a maneira como dança.

- Excelência.

- O escritor e jornalista Raphaél Mahl.

- Conheço este senhor - disse o embaixador, seguindo em frente sem estender-lhe a mão. Um leve rubor surgiu na face de Raphaël, que esboçou uma saudação rígida.

- E quem é esta encantadora jovem? A futura intérprete de uma das suas futuras obras-primas?

- Permita-me que lhe apresente a srta. Léa Delmas. Léa, apresento-lhe Sua Excelência o sr. Otto Abetz, embaixador da Alemanha em Paris.

Léa não se atreveu a recusar a mão que o diplomata lhe estendia. Pegando-a familiarmente pelo braço, ele lhe disse num francês perfeito:

Venha cá, srta. Delmas. Quero apresentá-la à minha mulher. Também é francesa, e estou certo de que se entenderão muito bem.

A sra. Abetz dispensou a Léa um acolhimento encantador.

- Seu vestido é muito original, minha querida. Gostaria que me desse o endereço de seu costureiro - pediu ela.

Depois, sem esperar pela resposta, afastou-se para receber outros recém-chegados. Léa ficou sozinha no meio do salão, vendo o vaivém dos convidados elegantes e perfumados que passavam e tornavam a passar, rindo e tagarelando, sempre de copo nas mãos. Quase todos davam uma olhadela nessa jovem esguia, em seu estranho e longo vestido negro, que lhe sublinhava a palidez do rosto. Sob esses olhares, Léa permanecia ereta, felicitando-se porque o comprimento da saia lhe ocultava os velhos e feios sapatos pretos e dourados, que tinham sido de tia Lisa. Sem procurar esconder o interesse, observava as evoluções daquela multidão aparentemente alegre, descontraída, feliz por ali se encontrar, onde os luxuosos vestidos das mulheres e suas jóias eram uma nota clara em meio às roupas negras dos homens.

- Espantoso, não é? murmurou-lhe Raphaël Mahl ao ouvido.

O que é espantoso?

Toda essa gente fazendo a corte ao inimigo.

- E você, o que faz aqui?

- Eu! Eu sou apenas uma minhoca. Além do mais, como já lhe expliquei, aprecio vencedores.

- Não o serão para sempre, por certo.

- Fale mais baixo, minha querida recomendou Mahl, dando uma olhada inquieta em redor.

Pegou-lhe no braço e, falando-lhe ao ouvido, prosseguiu:

- Julga que as pessoas aqui presentes e outros iguais a eles não estão absolutamente convencidos da vitória do Grande Reich?

- Não obstante, na Rússia, as tropas alemãs perdem cada vez mais efetivos.

- Psiu! Quer que sejamos presos? Aí está um fato que você não devia saber e muito menos repetir. Quer um conselho? Ouça a Rádio

Paris em vez da Rádio Londres; não é tão perigoso.

Pararam diante do bufê, onde Léa engoliu cinco ou seis peiits lours, um atrás do outro.

- Olhando para você, estou vendo a mim quando só comia nos cocktails da Rue Gauche. O que eu devorei de canapês de salmão e de caviar! Alimentava-me por dois dias. Tome! Beba isto. Do contrário, ficará sufocada.

De um dos salões vizinhos, chegaram até eles os acordes de uma valsa.

- Vai começar o baile - observou Mahl. - Que pena ser tão péssimo dançarino! Gostaria muito de conduzi-la nos braços ao som de uma valsa vienense. Venha comigo visitar a casa. Vou lhe mostrar o toucador de Josefina.

Havia tanta gente apinhada no exíguo compartimento, que desistiram da visita. Foram sentar-se numa sala um tanto retirada, perto de uma mesa, sobre a qual havia um admirável vaso chinês, transformado em abajur. A claridade rosa-chá difundida por ele conferia à tez e à cabeleira de Léa um brilho muito especial. Passou por eles um indivíduo de estatura mediana e assaz corpulento.

- Oh, o meu caro editor em pessoa! - exclamou Mahl.

- Decididamente, o senhor está em toda parte - observou o recém-chegado. - Esta jovem veio com o senhor? Não quer apresentar-me?

- Léa, apresento-lhe o sr. Gaston Gallimard, famoso editor e notável apreciador de mulheres. A srta. Léa Delmas.

- Não faça caso do que ele diz - respondeu o editor, instalando-se junto da moça.

- Quer vir aqui por instantes, Gaston? O embaixador pergunta por você.

- Desculpe, srta. Delmas. Não se vá, eu já volto. Aqui estou eu, Marie!

- Não é Marie Bell?

- É. Mulher encantadora! Um serão multo literário, o de hoje. Além do nosso amigo Cocteau, estão aqui também Georges Duhamel, Jean Girardoux, Robert Brasillach, o belo Drieu La Rochelle, Pierre Benoit, numa grande conversa animada com o amigo Amo Breker...

- O escultor? - perguntou Léa, interrompendo a enumeração das personalidades presentes.

- Esse mesmo. Veio preparar a grande exposição que se realiza em maio. Veja, dois dos seus colegas - menos no talento -, Belmondo e

Despiaux, que vão juntar-se ao grupo. E, além, Jean Luchaire e Edwige Feuillère.

- Chega, Raphaél! Pare com essa ladainha! É muito deprimente.

- Dá-me a honra desta dança?

Léa ergueu os olhos.

- François! - exclamou, sem notar que gritara seu nome.

- François! - repetiu, pondo-se de pé de um salto.

- Léa...

Em pé, um em frente do outro, olhavam-se, incrédulos, sem se atteverem a tocar-se.

- Um local muito estranho para nos reencontrarmos - murmurou Tavernier. - Esquecera-me de como você é bela. Venha dançar.

Há muito que Léa não realizava um sonho tão agradável: valsar lentamente nos braços do homem a quem desejava e que claramente a desejava também. Que deliciosa sensação aquela, a de se deixar conduzir! Ah, não despertar, não abrir os olhos! Comprimiu-se mais contra o corpo de François. Esquecera o local onde se achava, esquecera as pessoas que a rodeavam, alemãs ou francesas, esquecera a missão de que o tio a incumbira, a guerra e até o próprio Laurent. Queria ser apenas uma mulher nos braços de um homem.

- Não posso censurá-lo por continuar dançando mesmo sem música, meu caro amigo disse Otto Abetz, pousando a mão no ombro de François Tavernier.

Este olhou-o sem o ver e, sem responder, arrastou Léa consigo.

- Só os franceses sabem amar assim suspirou o embaixador, seguindo o par com os olhos, com uma expressão de inveja.

No saguão, Raphaël aproximou-se de Léa.

- Vai embora? - perguntou.

- Vai, sim - antecipou-se Tavernier. A srta. Delmas está cansada e vou levá-la para casa.

- Mas...

- Boa noite.

- Boa noite, Raphaël - despediu-se Léa.

François Tavernier fé-la subir no Bugatti, estacionado no pátio da embaixada.

Não havia ninguém nas ruas sem iluminação. A Place de la Concorde assemelhava-se a um cenário cinematográfico. As árvores dos Champs-Elysées erguiam para o espaço os troncos sem folhas.

- Aonde vamos? - perguntou Léa.

- Não sei - respondeu Tavernier, parando o veículo junto à calçada.

Acendeu o isqueiro e passeou a chama diante do rosto de Léa, que deixava transparecer uma tensão insuportável.

Quando a luz se extinguiu, os dois corpos precipitaram-se um para o outro. Na boca de ambos, o gosto de sal e de sangue exacerbou-lhes o desejo.

Teriam feito amor ali mesmo, no carro, não fora o aparecimento de uma patrulha alemã. François Tavernier exibiu os documentos e os militares afastaram-se, pedindo desculpas.

- Está em casa de suas tias?

- Estou.

- Neste momento, estou hospedado muito perto de vocês, no Hotel du Pont-Royal. Quer ir até lá?

- Vamos.

- Suas tias devem estar preocupadíssimas, Léa. São cinco da madrugada.

- Estou tão bem aqui! protestou a moça. - Não tenho vontade de ir embora.

- Mas é necessário, minha querida.

- Sim. Tem razão.

Léa vestiu-se, meio adormecida.

"Que loucura!", dizia François Tavernier com seus botões.

- Estou pronta - informou a jovem.

- Deus queira que suas tias não a estejam esperando à porta. Será difícil explicar-lhes as olheiras e os cabelos desalinhados.

De fato, tenho todo o aspecto de quem acaba de sair da cama - concordou a moça, observando sua imagem em frente ao espelho.

Todos dormiam na Rue de l'Université. No patamar, François e Léa não conseguiam reunir forças suficientes para sair um dos braços do outro.

- Pensei tanto em você durante todos estes meses, meu amor! Vai me contar tudo o que lhe aconteceu.

- Estou com sono.

Vá dormir, minha querida. Virei buscá-la amanhã para jantar - disse François.

Após um último beijo, Léa fechou a porta e encaminhou-se para o quarto a passos de sonâmbula. Os dedos impacientavam-se sobre os colchetes da gola de renda. Tirou de sob os cobertores a camisola de inverno, enrolada à bolsa de água quente. Vestiu-a, tremendo de frio.

Os lençóis estavam quentes graças ao aquecedor de tia Lisa. Léa ainda não chegara com os pés ao fundo da cama e já adormecera.

- Ah, não! Apaguem a luz e fechem os cortinados - resmungou, refugiando-se debaixo dos cobertores.

- Mas, minha querida, ontem você nos disse que tinha compras para fazer de manhã. Achei que estava na hora de acordá-la afirmou tia Lisa.

Compras? De que falava a tia? Que compras? Ai, o folheto!

Léa jogou os lençóis e pulou da cama.

- Que horas são? - perguntou.

- Dez e meia, creio.

- Dez e meia! Meu Deus, vou chegar atrasada!

Precipitou-se para o banheiro, fez uma toalete rápida, calçou meias grossas, combinação de lã,. uma saia e um suéter.

- Não vai sair sem comer.

- Não tenho tempo. Onde está minha bolsa?

- Ali, em cima da cadeira. Que desordem, menina! - criticou a tia.

- Arrumarei tudo daqui a pouco.

O folheto. . . onde estaria o folheto? Ali estava ele! Que Susto lhe pregara!

- Beba ao menos um chá.

Para agradar à tia, Léa bebeu um gole.

- Agasalhe-se bem. A manhã está muito fria - avisou Albertine, entrando no quarto quando a sobrinha vestia o casaco e punha ao pescoço uma echarpe de lã vermelha.

Ajustou o gorro preto enquanto descia as escadas.

Só parou de correr alguns metros antes da livraria. Eram dez para as onze. Ainda sem fôlego, empurrou a porta.

À exceção dos três vendedores, a loja estava vazia. Um dos empregados saiu, outro desceu as escadas e só ficou o jovem moreno de olhar inteligente e cheio de curiosidade, ocupado no preenchimento de algumas fichas.

- Posso ajudá-la em alguma coisa? - perguntou o rapaz, erguendo a vista do trabalho.

- Não, muito obrigada. Estou vendo se descubro algo que me interesse.

Tal como na véspera, Léa parou em frente da prateleira contendo livros de autores cujos nomes começavam pela letra P.

Febril e preocupada na hora de entrar na loja, Léa sentiu-se de súbito calma e descontraída quando pegou o segundo tomo de Em busca do tempo perdido. Começou a folheá-lo. Lá estava o folheto. Maquinalmente, verificou-lhe a espessura e, num gesto sutil, fê-lo desaparecer no bolso do casaco. Continuando com o livro na mão, deu alguns passos, fingindo consultá-lo, O empregado prosseguia na sua tarefa de preencher fichas. Léa tirou da carteira o outro folheto e o colocou entre as páginas do volume. Com gestos naturais, sem se apressar, recolocou-o na prateleira.

Nenhum cliente aparecera.

Retirou então de cima da mesa um livro ostentando a célebre sigla NRF e leu as primeiras linhas:

"Com as cópias dos quarenta e dois alunos para corrigir guardadas na pasta de couro, Josserand imaginava-se o poeta Virgílio regressado dos Infernos pela porta principal do metrô em Clichy e, com uma candura engenhosa, admirou-se de ser restituído à luz do sol naquela curiosa terra, onde achava que teria muito a aprender".

Léa suspendeu a leitura e seus olhos encontraram os do empregado.

- É um livro excelente, Devia levá-lo - recomendou o jovem, aproximando-se da cliente.

- Está bem. Confio no seu critério. Ainda não Ii nada deste autor.

- Fez mal. Deve ler todas as obras de Marcel Aymé.

- Obrigada. Não me esquecerei de sua recomendação - disse a moça.

Pagou e saiu.

- Até logo, senhorita. Até breve.

Não chegara a aparecer nenhum cliente. Eram quase onze horas e um quarto.

Fazia ainda muito frio, apesar do sol de primavera. Ao passar em frente ao Hotel du Pont-Royal, assaltou-a bruscamente a lembrança da noite anterior. Ela enrubesceu.

"Tenho de refletir", repetia constantemente para si mesma, ainda ao empurrar a porta do quarto.

Um enorme maço de rosas brancas ocupava por completo toda a superfície da cômoda. Léa sorriu ao vê-las. Descalçou-se, estendeu-se na cama, cobriu-se com o edredom, fechou os olhos para logo os reabrir, ao ver o envelope sobre as flores.

Eram três e meia quando saiu do metrô na praça circular dos Champs-Elysées. Esforçou-se por não olhar para os painéis que envolviam o refúgio central onde um policial comandava o escasso trânsito.

A tarde estava bonita. Apesar do frio, muitos transeuntes passeavam pela avenida. Havia filas em frente dos cinemas. Nous les gosses era exibido no Normandie - Léa entrou na fila - Pareceu-lhe infindável o documentário sobre os campos de juventude.

Quanto às atualidades, mostravam apenas "os feitos dos gloriosos soldados alemães", multidões aclamando o marechal Pétain, a alegre partida dos jovens trabalhadores voluntários para a Alemanha, um casamento elegante em Vichy, a estréia de uma peça de Montherlant, Maurice Chevalier cantando na Alemanha para prisioneiros de guerra e a moda para a próxima primavera. A fita parecia interminável. Quando acabou, por fim, Léa fingiu que deixava cair uma luva e escondeu o livro debaixo do assento.

Ergueu-se e saiu sem olhar para trás.

Nos Champs-Elysées pareceu-lhe que todos a olhavam. A cada instante, esperava ouvir a ordem: "Siga-me, senhorita".

Talvez fosse engano seu, mas, em certo momento, teve a impressão de reconhecer o rapaz moreno da livraria. Fez um esforço para não correr.

O metrô estava lotado. Léa viu-se apertada entre um soldado alemão, que em vão se esforçava para não tocá-la, e uma moça gorda, cheirando a um perfume enjoativo. Mudou de vagão na Place de la Concorde, e a moça também.

Eram seis e meia quando abriu a porta da casa da Rue de l'Université. A primeira coisa que ouviu foram as gargalhadas de Lisa e depois o riso discreto de Albertine. Quem faria rir daquele modo as senhoras de Montpleynet? Entrou no toucador das tias, única divisão razoavelmente aquecida pelo fogão de lenha que fazia as vezes de aquecimento central. Instalado numa poltrona, François Tavernier estendia as mãos para o fogo, esfregando-as uma contra a outra. Levantou-se à entrada de Léa.

- Minha querida, por que não nos disse que havia encontrado o sr. Tavernier?! - exclamou Lisa.

- . . . e que combinou jantar com ele - acrescentou Albertine.

- Não tive tempo de lhes falar hoje de manhã - desculpou- se a sobrinha.

- Devia agradecer ao sr. Tavernier as flores tão maravilhosas!

- Ora, srta. Delmas, não tem importância. Esqueceu-se de que combinamos jantar?

- Não, claro que não. Desculpe, vou mudar de roupa.

- Não é preciso. Está muito bem assim. O lugar aonde vamos é bastante modesto. Modesto mas bom.

- Só preciso pentear os cabelos e serei toda sua - disse Léa.

Quinze minutos depois ela voltava. Trocara de roupa e pintara discretamente os olhos.

- Não a traga de volta muito tarde, meu caro senhor! Temos tanto medo, nos tempos de hoje!

- Boa noite, minha querida. E alimente-se bem - recomendou Lisa, com uma expressão gulosa.

Nada indicava tratar-se de um restaurante. Quando chegaram ao segundo andar do prédio burguês da Rue Saint-Jacques, François Tavernier bateu à porta utilizando um código sonoro discreto. A porta entreabriu-se e depois abriu-se completamente.

- Ah, é o sr. Tavernier!

- Bom dia, Marcel. Sempre em forma?

- Não posso me queixar. Chega em boa hora, sr. Tavernier. Recebi uma peça de vaca. A menos que prefira codorna ou frango.

- Deixo isso a seu critério. Sei que o jantar será excelente, como sempre, aliás.

- Que tal um chablis como aperitivo?

- Perfeito. Ponha-nos num canto tranqüilo.

- Não conheço nada mais tranqüilo do que um quarto de dormir - replicou o homem, sem se atrever a olhar para Léa.

- Muito bem. . . seja.

O local tinha o seu quê de pitoresco. Na casa de quatro cômodos, o casal Andrieu instalara um restaurante clandestino; funcionava com uma clientela de fregueses habituais que mantinham ciosamente secreta a morada. Os vizinhos mais próximos, a par de tal atividade, como é óbvio, eram amplamente recompensados por sua discrição.

Na sala de jantar de estilo familiar, a mesa redonda acomodava doze pessoas. O aparador estilo Henrique II, uma pequena mesa de serviço, algumas pinturas de má qualidade representando cenas campestres coladas sobre papel florido de cores desmaiadas, a lâmpada suspensa oferecendo uma luz fraca, a toalha em xadrez vermelho, pratos de porcelana branca e grossa, grandes copos e talheres desparelhados conferiam ao ambiente um toque de ingenuidade.

O ar de harmonia provinciana era dado pela sra. Andrieu, mulher corpulenta e jovial, que exibia em frente do fogão suas qualidades de alma e de cozinheira. Oriunda de Saint-Cirq-Lapopie, no Lot, conservava o caráter truculento dos habitantes daquela generosa terra, e sobretudo uma numerosa família que lhe enviava trufas, patês de fígado, aves de todas as espécies, frios em abundância, o maravilhôso vinho de Cahors, óleo de noz, as frutas mais bonitas, os mais frescos legumes, queijinhos de cabra deliciosos e até mesmo um pouco de tabaco cultivado às escondidas.

Como é óbvio, fora necessário estabelecer algumas cumplicidades para garantir as remessas regulares; "mas apenas de franceses", afirmava com orgulho o sr. Andrieu, se lhe perguntavam qual o milagre que lhe permitira, por exemplo, obter morangos num momento em que estes sequer constavam dos cardápios do Maxim's, do Le Doyen ou do Carrère.

No restaurante do casal Andrieu podia-se ter a certeza de nunca encontrar uniformes alemães. O grosso da clientela compunhase de prósperos aposentados, universitários, escritores, ricos comerciantes e de alguns artistas de renome. Por vezes, notavam-se entre os convivas certas figuras mais inquietantes e mulheres mais vistosas; mas as falas desinibidas da dona da casa logo desencorajavam essas práticas.

Antes da guerra, o casal possuíra, no 13 Arrondissement, um pequeno restaurante de pratos típicos do Quercy, freqüentado regularmente por François Tavernier. Logo marido e mulher sentiram algo mais do que mera simpatia por esse cliente simples e generoso. Mas, no final do ano anterior, uma bomba dera fim à sua prosperidade; perderam tudo de um dia para o outro.

Tavernier arranjou-lhes então a casa da Rue Saint-Jacques. Mobiliaram-na sem grandes despesas, adquirindo o necessário no Mercado das Pulgas. Tal como a maioria dos franceses, sentiram enorme alívio- ao anúncio do Armistício. Veriam regressar seu filho único. Marthe Andrieu bem depressa se apercebeu do partido que poderia tirar da presença dos familiares na província. Tal como sucedera antes da guerra, tios e primos tornaram-se de novo seus fornecedores. Graças a uma ou duas intervenções de François Tavernier, o restaurante clandestino funcionava às mil maravilhas há um ano.

Diante do sucesso, as mesas surgiram por todo lado: seis na sala, três no corredor e mesmo uma no quarto do casal Andrieu. Esta, porém, era especialmente reservada a pessoas amigas.

Iluminavam-na as velas de um candelabro de prata extremamente bonito. O par deste fora colocado sobre a cômoda, transformada em aparador. Sem dúvida por motivos de pudor, o leito dissimulava-se atrás de um biombo chinês, que destoava do restante da decoração.

Antes de instalar-se à mesa, Tavernier foi dar um beijo no neto do dono da casa, seu afilhado. Era um ritual ao qual não podia furtar-se, sob pena de ferir a sensibilidade daquela boa gente. Léa riu muito ao vê-lo com o bebê nos braços.

Não combina nada com você - comentou. - Não sabia que gostava de crianças.

Tavernier sorriu, enquanto o garoto lhe babava na camisa.

- Gosto muito - assegurou ele. - E você, não?

- Nem um pouco. São um empecilho e fazem muito barulho.

- Um dia há de mudar de opinião.

- Não creio - replicou Léa com secura.

François entregou o menino à mãe.

- Parabéns, Jeannette. O meu afilhado está cada vez mais bonito.

A mulher corou de prazer.

- Vou chamar meu marido para tomar nota do que desejam - disse ela.

Tavernier ajudou Léa a instalar-se. A chama vacilante das velas parecia animar os dragões do biombo chinês e dava ao rosto da jovem uma doçura logo desmentida por seus olhos. François contemplava-a em silêncio.

- Não olhe para mim dessa maneira - disse ela.

- Tantas vezes tentei imaginar-lhe o rosto durante todo esses meses.

O filho dos donos da casa entrou no quarto munido de uma garrafa.

- Aqui estou, sr. Tavernier' Desculpe a demora, mas temos muita gente para jantar.

- Boa noite, René. Como vai?

- Vou bem, sr. Tavernier. Para começar, que acha de um pouco de patê de fígado, presunto da terra e uns pedacinhos de ganso guarnecidos?

- Pode ser.

- A seguir, minha mãe poderá arranjar-lhes um fricassé de galinha com cogumelos, acompanhado de batatas sautées em gordura de ganso, uma saladinha temperada com óleo de noz e cogumelos. Depois me dirá se gostou ou não. Como sobremesa, mousse de chocolate.

- Isso, isso! - gritou Léa.

- Muito bem - anuiu Tavernier. - Traga-nos também uma garrafa de Cahors.

- Perfeitamente, sr. Tavernier. Prove este chablis - disse o rapaz, estendendo-lhe um copo.

- Hum... nada mau. . - nada mau.

- Nada mau, não é verdade?

René serviu Léa, acabou de encher o copo de François e depois desapareceu.

Durante alguns instantes, beberam em silêncio.

Conte-me o que lhe aconteceu - pediu Tavernier por fim. - Mas, antes disso, dê-me notícias da sra. d'Argilat.

- Vai bem. Tem um filho, a quem deu o nome de Charles.

- Isso não me admira da parte dela' - comentou Tavernier.

- E o marido?

- Fugiu por duas vezes, a segunda com êxito. Foi reunir-se ao general de Gaulle, em Londres.

Léa pronunciara a frase com orgulho e, ao mesmo tempo, como se lançasse um desafio ao interlocutor. Mas logo se arrependeu.

François lia em seu rosto o que se passava no seu íntimo.

Tavernier engoliu dois copos de vinho, um atrás do outro. Gostaria de adverti-la. Mas que poderia dizer? Não suportava o receio e a desconfiança que sabia existirem nela a seu respeito. Como fazê-la entender certas coisas?

- Léa...

A moça ergueu os olhos devagar.

- O que é?

- Laurent fez muito bem em ir juntar-se ao general de Gaulle. Isso demonstra muita coragem da parte dele. Mas você não deveria mencionar tal fato nem mesmo a mim.

- Sobretudo a você, não foi o que quis dizer?

Tavernier sorriu lassamente.

- Não. A mim pode dizer tudo, isso não terá conseqüências. Ontem, pelo contrário, fiquei bastante apreensivo quando a vi aparecer na companhia daquele traste do

Raphaél Mahl - objetou François.

- É um velho amigo meu. Por que o chama de traste? Seja como for, Raphaél Mahl convive com as mesmas pessoas que você.

- Apanhou-me. Quanto a esse ponto, você tem razão. Mas apenas quanto a isso. Ele é um traste por diversos motivos. E um deles é o seu apetite por dinheiro. Por dinheiro, não hesita em denunciar amigos à Gestapo.

- Não acredito.

- Se tornar a encontrar-se com ele, o que não aconselho, pergunte-lhe. Com a sua perversidade, reforçada por profundo masoquismo, não deixará de responder-lhe, por certo, e, sendo ele um homem conciso, irá fornecer-lhe também os detalhes.

- Não é possível! Seria demasiado ignóbil.

- Com ele, tudo é possível. Não recolheu uma criança judia.

- Ora, aí está! Como vê, não é assim tão mau como o pinta

- interrompeu Léa.

- . . . que devolveu ao orfanato depois de alguns meses por considerá-la sem inteligência? Roubou diversas pessoas que lhe confiaram os últimos recursos para fugirem para a zona livre. Faz contrabando de ouro, de divisas e de heroína. Foi preso duas vezes pela polícia parisiense. Em ambas, porém, as autoridades viram-se forçadas a soltá-lo.

Então, como se explica que seja recebido em salões e se publiquem os seus livros?

- Não é verdade que o recebam. Só o fazem pessoas como as que viu ontem à noite porque o utilizam, e também os grandes traficantes do mercado negro. Quanto às suas obras, foram publicadas antes da guerra. Evite-o, creia em mim. Emporcalha todos quantos dele se aproximam.

- Mas, em Bordeaux, avisou-me que meu tio...

Léa deixou a frase em suspenso e tomou um gole de vinho, procurando refrear a língua.

- Pode prosseguir no que ia dizer. Eu conheço as atividades de Adrien. Você, porém, é que não deveria estar a par delas asseverou Tavernier.

- Mas quem mencionou o meu tio Adrien? Que sabe a seu respeito?

- Nada. Passemos adiante. Continue. Que mais coisas admiráveis fez o seu amigo Mahl?

- Em Bordeaux, cedeu o lugar a bordo do Massilia ao pai de Sarah Mulstein.

- Isso é verdade, de fato. Ela me disse. Confesso que fiquei surpreso. Sarah é como você - também se mostra indulgente em relação a Mahl. Afirma que nem tudo é mau nele.

- Sarah continua em Paris?

- Continua. Não quer deixar a cidade. Diz que está farta de fugir.

Mas isso é uma loucura!

- Claro que é. Não me canso de lhe dizer sempre que a encontro. Mas algo se quebrou nela após a morte do pai.

Não sabia que o pai dela tinha morrido.

- Morreu em Argel. Foi preso pela polícia de Vichy - informou François.

- Por quê?

Por ser judeu e estrangeiro. Não suportou a detenção. Era já um velho cansado, vivia apenas para a música. Certa manhã, foi encontrado morto na cela.

- Você gostava muito dele?

- Gostava. Era um indivíduo notável. Com ele desapareceu parte do que de melhor existia na humanidade.

Jeannette surgiu, nesse instante, trazendo dois pratos copiosamente abastecidos.

- Bom apetite para o senhor e para a senhora.

Léa olhou o prato colocado à sua frente. Sentiu-se ligeiramente nauseada e passou a mão pela fronte.

- Sei o que sente, Léa, Léa. Mas, por agora, nada posso dizer- lhe. Para confiar em mim teria de amar-me cegamente, mas isso seria pedir-lhe demais. É ainda muito cedo para tanto. Vamos, coma. Comer transformou-se num deleite raro.

- Não para você, parece.

- Quer continuar com chablis ou passar ao Cahors?

- Cahors - decidiu Léa.

Tavernier ergueu-se, foi buscar um copo no aparador e serviu- lhe o vinho tinto.

Léa principiou a beliscar os alimentos, mas logo o patê de fígado delicioso e a bebida aveludada lhe restituíram o ótimo apetite.

Depois de limpar meticulosamente o prato com um naco de pão, seus olhos ficaram um pouco mais suaves.

- Você é como um animalzinho, Léa - comentou Tavernier.

- Basta alimentá-la e paparicá-la para fazê-la esquecer-se do presente.

- Não julgue que seja assim tão fácil - gaguejou Léa, de boca cheia.

Marthe Andrieu entrou no quarto limpando as mãos no avental branco. Seguia-a o filho, transportando uma travessa com uma tampa de prata. Com um gesto de orgulho, a cozinheira ergueu a tampa.

- Cheire isto, sr. Tavernier. Este cheirinho me perturba; faz com que toda a minha terra me venha à cabeça. Revejo minha pobre mãe diante da grande lareira da fazenda, fritando cornos-de-cheiro e outras espécies de cogumelos. Ninguém sabe prepará-los melhor do que ela.

- Exceto a senhora, minha boa Marthe.

- Oh, não, sr. Tavernier! Os que minha mãe preparava eram bem melhores.

François sorriu diante daquela ingênua manifestação de amor f ilial. Provou do prato, preparado tanto com perícia quanto com amor.

- Nunca comi nada tão magnífico, minha senhora - elogiou. Léa, limpando o queixo sujo de gordura.

A boa mulher endereçou-lhe um sorriso de contentamento e disse, mais para François do que para a jovem, assumindo um ar simultaneamente cúmplice e galhofeiro:

- É bom sinal quando uma moça bonita aprecia boa cozinha. . . Bem, agora tenho de deixá-los; os clientes me chamam.

Léa devorou o frango quase inteiro, as batatas e os cogumelos. Bebeu muito também. Entregue ao prazerda comida, esquecera as apreensões, aproveitando plenamente o presente. Não protestou quando as pernas do parceiro enlaçaram as suas sob a mesa, nem quando os dedos dele lhe acariciaram a parte interna dos pulsos.

Chegou a salada acompanhada de mais cogumelos. Léa devorou três deles, sob o olhar deliciado do companheiro. A segunda garrafa de Cahors já sofrera um sério desfalque.

Ao terminar a mousse de chocolate, pastosa e abundante, Léa considerava a vida uma beleza.

Por mais de uma vez, Tavernier tivera de conter-se para não lançar-se sobre a moça e arrastá-la para a cama escondida atrás do biombo. Léa fumava agora uma cigarrilha, recostada na cadeira que afastara da mesa, com as pernas cruzadas e um pouco erguidas, deixando ver a renda do saiote. De olhos semicerrados, saboreava sem restrições aquele momento de completo bemestar.

Pelas fendas das pálpebras, observava o homem que era seu amante. Apreciava a força que dele se desprendia e aquele olhar ao mesmo tempo límpido e sombrio, terno e duro, indulgente e desdenhoso. Olhava esse rosto de traços vincados, a boca tão bonita e tão sábia nos beijos. Estremeceu à lembrança da noite anterior. "Desejo-o", disse para si mesma.

- E se fizéssemos amor? - sugeriu em voz alta.

Tavernier sorriu. Esperava a proposta, é bem verdade, mas, com prudência, abstivera-se de tomar a iniciativa. Em sua carreira amorosa, encontrara poucas mulheres tão naturalmente dotadas para o amor. Léa amava com espontaneidade e com um paganismo alegre. que seguramente não herdara da mãe nem das freiras do Sacré Cur, de Bordeaux. Além disso, nunca demonstrara o mínimo receio da maternidade. Seria isso ignorância ou inconsciência?

A cama atrás do biombo era uma massa escura. François deitou Léa suavemente e, com ternura, beijou-lhe as pálpebras, os lábios e o pescoço. Passiva, ela o deixava agir. De repente, porém, enlaçou-o e mordeu-lhe a boca com violência.

- Faça-me sofrer - pediu. - Possua-me como em Montmorillon.

Com que alegria François violou então sua vítima aquiescente!

François pedira à sra. Andrieu que lhe arranjasse um cesto cheio das melhores conservas preparadas pela família. Entregou-o a

Léa, dizendo:

- Ofereça isto de minha parte a suas tias.

- Obrigada.

- Quando tornarei a vê-la?

- Não sei. Volto para casa dentro de dois dias.

- Tão cedo!

Sensibilizou-a o tom com que Tavernier pronunciara a frase. Respondeu em voz mais branda:

- O estado de saúde de meu pai, depois da morte de mamãe, não me permite deixá-lo sozinho durante muito tempo.

- Eu compreendo. Se vir seu tio Adrien, dê-lhe lembranças minhas.

Aquelas palavras trouxeram à memória de Léa a recomendação do dominicano: "Caso surja em Paris algum problema grave, telefone a François Tavernier ou mande avisá-lo". Mas qual o préstimo de alguém aparentemente em tão boas relações com os alemães?

- Não me esquecerei - garantiu Léa. - Tanto mais que ele me disse para recorrer a você em caso de necessidade.

- Seu tio fez bem - observou Tavernier com um sorriso de contentamento. - Diga-lhe ainda que nada se alterou.

- Dar-lhe-ei o seu recado. Obrigada pelo maravilhoso jantar e também por isto - disse Léa, exibindo o cesto. - Lisa vai ficar louca de satisfação.

Léa ficou de cama no dia seguinte, fechada no quarto, devido a uma crise hepática.

No outro dia, um tanto pálida e vacilante, deslocou-se ao Museu Grévin. Aí, tudo se passou como fora previsto. De volta à Rue de l'Université, aguardava-a Sarah Mulstein.

- François Tavernier informou-me que você estava de passagem por Paris - esclareceu ela, beijando a moça. - Tive vontade de voltar a vê-la.

Como Sarah mudara! Continuava bela, talvez mais bela ainda, mas parecia ter sofrido profunda transformação íntima, que lhe alterara por completo o modo de olhar e o rosto. Léa experimentou a estranha sensação de que outra pessoa totalmente diferente a habitava.

Como para confirmar tal impressão, Sarah disse:

- Mudei tanto nestes últimos tempos que não me reconheço.

- François contou-me o que aconteceu a seu pai.

- Não falemos nisso, está bem?

- E seu marido?

- Espero que, para o bem dele, esteja morto neste momento

- respondeu Sarah.

Léa sentiu na boca um gosto de bile.

- Depois de torturado, puseram-no num campo de concentração - explicou Sarah. - Não sei qual.

Permaneceu em silêncio durante muito tempo, um silêncio que Léa não teve coragem de interromper.

- François disse-me que você é amiga de Raphaël Mahl - prosseguiu Sarah momentos depois. - Eu também sou amiga dele, apesar de tudo quanto se diz a seu respeito. No entanto, tenha cuidado! É um indivíduo bem capaz de prejudicar aqueles que ama.

- Mas você continua a freqüentá-lo.

- No ponto a que cheguei, em que mais pode ele lesar-me? Dou-me com Raphaël porque me intriga e porque gostaria de descobrir de onde provêm a sua faceta de maldade e a sua lucidez. Não consigo entender aquela busca de autodestruição, o desprezo por si mesmo, o desejo de humilhar-se aliado ao cúmulo do orgulho. Mahl é capaz de praticar o bem sem motivo, apenas por divertimento, e, no instante seguinte, tornar esse ato derrisório como se quisesse punir-se pelo momento de bondade.

- Por que não sai da França, Sarah? - inquiriu a moça.

- Não sei. Gosto deste país e estou cansada de tanto fugir. Além disso, não quero ficar muito longe da Alemanha; contra toda a lógica, digo para mim mesma que meu marido pode vir a ser libertado.

- Pelo menos, passe para a zona livre.

- Isso, talvez. François quer que eu vá para a casa de uns amigos dele no Limousin.

- Para onde? Para Limoges?

- Não. Os tais amigos vivem em Eyinoutiers, uma cidadezinha não muito distante de lá.

- Irei a Limoges amanhã. Quer ir comigo? - sugeriu Léa.

- O que vai fazer em Limoges? - admirou-se Albertine.

Léa estava arrependida de sua imprudência, mas era tarde de mais para recuar. Improvisou uma história.

Papai tem um cliente que lhe deve dinheiro e encarregou- me de ir procurá-lo.

- Podia ter-nos falado no assunto.

- Perdoe-me, mas não me lembrei - desculpou-se a jovem. Depois, virando-se para Sarah, perguntou:

- Que diz da sugestão? Quer ir comigo?

- Por que não? Tanto faz estar aqui como em qualquer outro lugar.

O som da campainha da porta imobilizou as quatro mulheres. Daí a instantes, Tavernier surgia no toucador.

- Que susto nos pregou! - disse Sarah. - Pensei que fosse a Gestapo.

- É precisamente por causa dela que estou aqui. Não pode voltar para a casa dos Donati, Sarah. Eles acabam de ser presos comunicou o recém-chegado.

- Ah, não!...

- Tem de partir. Trouxe-lhe documentos e um salvo-conduto para ir para a zona livre.

- Mas. . . não posso partir desta maneira - objetou Sarah.

- Estou sem roupas... os meus livros...

- Eu sei, eu sei, Sarah. Mas não tem escolha. Hoje, durante a noite, não há trens para Limoges. O primeiro parte amanhã de manhã, às sete e trinta. Deve seguir nele. Em Limoges, há uma ligação ferroviária com Eymoutiers. É necessário, agora, encontrar- lhe um lugar onde passar a noite.

- A sra. Mulstein pode dormir aqui - ofereceu Albertine.

- Não é mesmo, Lisa?

- Claro - concordou a irmã. - Será um imenso prazer.

Françoes Tavernier fitou as duas velhas senhoras com um sorriso.

- É muita generosidade de sua parte. Mas sou obrigado a adverti-las de que pode ser perigoso.

- Não falemos nisso, meu caro senhor.

- Vou mandar fazer a cama - decidiu Lisa.

- Não vale a pena, minha senhora - objetou Sarah. - Dormirei com Léa, se acaso ela não se importar. Desta maneira, acordaremos com mais facilidade e não correremos o risco de perder o trem.

Léa vai a Limoges? - perguntou Tavernier, admirado.

- Vou. Antes de você chegar, estava propondo a Sarah que me acompanhasse.

- Fico mais tranqüilo sabendo que viajam em companhia uma da outra. O momento mais delicado é o do exame dos documentos na passagem da linha de demarcação. Para duas pessoas juntas, porém, torna-se mais fácil. Posso falar com você a sós um instante, Léa?

- Venha ao meu quarto.

Léa sentou-se na cama, enrolando-se no edredom.

- Não lhe perguntarei o que vai fazer em Limoges, pois calculo que não me dirá. Mas suplico-lhe que seja prudente. Quer prestarme um serviço?

- Se puder...

- Gostaria que acompanhasse Sarah até a casa de meus amigos em Eymoutiers. Ela fala muito bem o francês, mas receio que o seu sotaque intrigue tanto a polícia alemã como a francesa.

- Por que querem prendê-la?

- Porque estão prendendo todos os judeus estrangeiros. Concorda em fazer o que lhe peço?

- Concordo.

- Obrigado.

Ouviu-se novamente a campainha. Léa ergueu-se de um salto para atender. Raphaél Mahl, empurrando-a, entrou precipitadamente.

Onde está Sarah? perguntou.

Léa encostou-se à parede, surpresa. Pedia a Deus que Estelle, que acabara de chegar, não abrisse a boca.

- Mas a quem se refere, Raphaël?

- A Sarah Mulstein, claro.

- Não a vejo desde 1940 garantiu Léa. - Por que motivo veio aqui procurá-la?

- Ela gosta muito de você, e eu a informei de sua presença em Paris. Pensei que tivesse vindo visitá-la. Há duas horas que a procuro por toda parte.

- Mas por quê?

- Para dizer-lhe que não regresse para casa. A Gestapo está à espera dela.

Léa simulou surpresa, chamando a si todos os seus recursos de comediante:

- Oh, meu Deus!

Mahl deixou-se cair no banco do vestíbulo.

- Mas onde Sarah terá se metido? Não posso bancar o sentinela em frente da porta para preveni-la. Tenho já aborrecimentos de sobra.

- Pensei que estivesse nas melhores relações com esses senhores - ironizou Léa.

- Estou, enquanto lhes for útil. Mas, se, por exemplo, eles souberem que procuro tirar-lhes das garras a filha de Israel Lazare, serei enviado para um campo de concentração em seu lugar.

- Não pretende que o lastime. por certo, meu pobre Raphaél. Seja como for, são seus amigos.

- Tem razão - concordou ele, erguendo-se. - De fato, não devo lastimar-me; não mereço que ninguém o faça. Deixo-a para continuar a busca. Se, por acaso, estiver com Sarah, diga-lhe que não volte para casa. E você, minha querida, vai partir mesmo para o campo?

- Vou.

- Então, boa viagem. Pense em mim de tempos em tempos. Adeus - despediu-se Mahl.

- Até depois, Raphaél.

Com ar sonhador, Léa fechou a porta devagar e ficou ouvindo o som dos passos diminuindo à medida que Mahl descia as escadas e se afastava.

- Bravo! Foi formidável! - exclamou Tavernier, segurando a moça pelos ombros.

Como vê, Raphaël não é tão mau como você afirma.

- É possível. Mas desconfio bastante. Pode ter sido um estratagema.

- Não acredito. Tenho certeza de que foi sincero.

- Eu também - apoiou Sarah, saindo do toucador.

- Bem. . . bem. . . Seja como for, precisamos ser ainda mais prudentes. Amanhã uma pessoa virá buscá-las e as acompanhará à estação. Essa pessoa chegará às seis e meia e baterá à porta, dizendo: "O táxi está à espera". Trata-se de um indivíduo que possui uma bicicleta-táxi e a quem recorro de tempos em tempos. Trará suas passagens e ficará com vocês até a partida do trem. Agora tenho de ir embora. Prometa-me não se arriscar, Sarah.

- Farei o possível, François, prometo - asseverou ela, beijando-o. - Obrigada. Obrigada por tudo.

- Enquanto estiverem juntas, fique de olho em Léa - recomendou Tavernier em voz baixa.

- Está prometido.

No espírito de Léa reinava a maior confusão. Quem era, de fato, François Tavernier? E Raphaël Mahl? E mesmo Sarah

Muistem? O que representavam? E ela mesma, que escondia livros debaixo de cadeiras de cinemas, apanhava folhetos em museus e se preparava para tomar o trem para Limoges em companhia de uma judia procurada pela Gestapo, a fim de ir a uma certa livraria perguntar pelo Mistérios de Paris? Tudo aquilo lhe parecia loucura. Por que aceitara essa missão de seu tio Adrien?

Estava de tal forma absorvida naqueles pensamentos que a voz de François a sobressaltou:

- Não pense demais, Léa. Não existem respostas concretas para as suas questões. Tudo é ao mesmo tempo muito mais simples e muito mais complicado do que imagina. Até depois, garota. vou sentir sua falta. Pareceu a Léa que algo se rasgava em seu íntimo. Perplexa, comentou consigo mesma: "Será que estou sofrendo por separar-me dele?" Estendeu-lhe o rosto, irritada. O beijo que François lhe depôs foi tão leve que ela quase não o sentiu.

Era ainda noite fechada quando o homem da bicicleta bateu à porta.

 

Capítulo 24

Léa já era bem conhecida pelos funcionários alemães da linha divisória da região. Chamavam-na Das Mãdchen mit dem blauen

Fahrrad.

A moça da bicicleta azul. (N. da A.)

Quando voltava da zona livre com o cesto repleto de frutas no porta-bagagens - morangos, cerejas, pêssegos ou damascos -, nunca deixava de oferecer algumas aos soldados da guarda. Debaixo dos alimentos, ocultavam-se muitas vezes as cartas que fora buscar na posta-restante da agência de correios de Saint-Pierred'Aurillac.

- Não lhe faltam admiradores - comentava invariavelmente o velho funcionário dos correios.

Como medida suplementar de segurança, por vezes, Léa enrolava a correspondência e a introduzia no tubo do selim ou no guidão. Certo dia, um alemão, mais desconfiado do que os camaradas, ordenara:

Abra os sacos e a bolsa. Está passando correspondência.

Léa riu muito, apresentando-lhe a bolsa.

- Se eu quisesse passar a correspondência, eu a esconderia no selim e não na bolsa - respondeu.

- É, de fato, um bom lugar para escondê-la - concordou o homem, rindo também e restituindo-lhe a bolsa.

Léa sentiu medo e subiu na bicicleta com as pernas tremendo. Nesse dia, a encosta de Montaunoire parecera-lhe bem mais difícil do que habitualmente. Entretanto ela apreciava aquelas corridas pelos campos, pois lhe permitiam escapar ao ambiente de

Montillac, cada dia mais tenso devido ao problema mental de Pierre Delmas, à pressão progressivamente mais forte exercida por Fayard para venderem a propriedade, às queixas de Bernadette Bouchardeau a propósito do filho, à presença dos dois oficiais alemães, agora menos discreta, e sobretudo por causa de Françoise, de um humor contundente de há uns dois meses até então.

Ruth entregara a Léa todas as suas economias. Antes de chegar a tal extremo, a moça tentara diligenciar junto ao tio Luc, o parente rico da família. Mas o advogado, cujas idéias colaboracionistas não constituíam segredo para ninguém, aconselhara a sobrinha a vender a propriedade a Fayard, visto Pierre Delmas não estar em condições de ocupar-se dela e não ter filhos varões que o sucedessem.

- Mas tem a mim e a minhas irmãs - objetara Léa.

- Ora, mulheres. . .! Como se uma mulher fosse capaz de dirigir uma propriedade vinícola! Se, de fato, você quer conservar

Montillac, procure então um marido com competência para geri-la. Não deve ser difícil para uma moça bonita como você, mesmo sem dote.

Léa ficara pálida diante daquela humilhação, e insistira:

- Há as propriedades da mamãe na Martinica, tio. Poderemos vendê-las quando a guerra terminar.

- Isso é muito problemático, minha pobre garota. Quem lhe garante que não serão ocupadas pelos comunistas ou roubadas pelos negros? Agora, desculpe-me, mas tenho um encontro. Transmita saudações minhas a seu pai. Na semana que vem, darei uma pequena festa à noite, em homenagem a sua prima. Laure e Françoise também irão. E você, quer se juntar a nós?

- Não, muito obrigada, tio Luc. Não gosto das pessoas que freqüentam a sua casa.

- Que quer dizer com isso?

Sabe bem o que quero dizer, tio. Recebe o chefe da polícia de Bordeaux, os...

- Cale-se! Recebo quem eu quero. Mas constato que você sofreu a influência desse pobre Adrien, cujo superior ainda no outro dia comentava comigo: "Peço a Deus pelo nosso infeliz irmão, para que o faça regressar ao caminho do bem e descobrir onde reside o verdadeiro interesse da França". A meu ver, Adrien traiu o país e a Igreja. É uma terrível vergonha para a família saber que um dos seus membros se aliou a terroristas. Graças a Deus ninguém acredita que eu possa compartilhar dessas idéias funestas. Aliás, fiz saber aos meus amigos que, se esse traidor me aparecesse, não hesitaria em denunciá-lo. Para mim, meu irmão morreu.

- Seu patife!

Luc Delmas avançou para a sobrinha em atitude ameaçadora.

- Sabe com quem está falando?

- Também para mim o senhor morreu e cuspo em seu cadáver - vociferou Léa.

Juntando o gesto à palavra, cuspiu no rosto do tio.

Com o dinheiro entregue por Ruth, poderia fazer face às despesas da vindima.

No mês de julho, Laure regressou a Montillac; uma Laure despeitada que, após a discussão entre Léa e o tio, deixara de ser recebida em casa do parente. Passava os dias fechada no quarto ou em Langon, na companhia da filha de um notário, sua colega de pensionato.

Léa tentara com empenho reaproximar-se da irmã mais nova, a quem amava, mas ela esquivava-se sempre a qualquer contato. Por espírito de provocação, Laure passeava pelas vinhas acompanhada por Frederic Hanke, ria muito e assumia diante dele atitudes coquetes.

Esse mês de junho de 1942 assistiu igualmente ao regresso de Camilie e do pequeno Charles a Montillac; a Gestapo expulsara-os da propriedade de Roches-Blanches. A propriedade, tal como todos os outros bens de Laurent d'Argilat, denunciado como agente de Londres, tinha sido confiscada. Em Bordeaux, o tenente das SS, Friedrich-Wilhelm Dohse, interrogou Camille durante muito tempo, procurando arrancar-lhe o local de paradeiro do marido. Com a maior calma, a jovem respondeu não haver recebido dele outras notícias além das transmitidas pelos serviços oficiais. Dohse não se deixou iludir. Considerou preferível soltá-la, porém, pensando que, mais cedo ou mais tarde, Laurent d'Argilat tentaria juntar-se a ela ou fazer chegar às suas mãos qualquer mensagem.

Todas as semanas, nos correios de Saint-Pierre-d'Aurillac, Léa recebia carta de Sarah Mulstein, que, com humor, pintava sua existência em Limoges. Descrevia, com uma comicidade pungente, a cena do seu passeio pelas ruas da cidadezinha ostentando no vestido a estrela amarela, num gesto de solidariedade para com os judeus da zona ocupada, e as reações que tal atitude suscitara entre os habitantes:

"Não ficariam mais embaraçados se eu me tivesse exibido nua pelas ruas", escrevia ela. "A maioria das pessoas desviava a vista.

Apenas se apróximou de mim um velhote maneta, com um grande bigode grisalho, como é habitual ver-se nos camponeses da região, e com uma tarja de condecorações sobre o casaco de veludo. Tirando o enorme chapéu de feltro, disse em voz ríspida: "Sentir-me-ia muito mais orgulhoso de usar uma estrela como a sua em vez de toda esta quinquilharia ganha em Verdun' ."

Em outra carta, Sarah reprovava as medidas vexatórias promulgada contra os judeus:

"Depois de nos terem interditado a posse de receptores de rádio e de telefones, proíbem-me agora o acesso a restaurantes, cafés, teatros, cinemas, cabines telefônicas, piscinas, praias, museus, bibliotecas, praças-fortes, exposições, mercados e feiras, recintos desportivos e de campismo, pistas de corridas, parques, etc. Suponho que nos seja também vedado fazer amor com nãojudeus. Na verdade, os nazis pretendem uma só coisa: impedir-nos de respirar; temem que o ar por nós expelido venha a 'judaizar' a pura raça alemã.

Nas cartas, Sarah Muistein falava freqüentemente de François Tavernier, da amizade existente entre ambos, da total confiança nele depositada. Aprovava o fato de Léa querer conservar Montillac, aconselhando prudência nos contatos com Fayard.

No dia 27 de julho, chegou a última carta de Sarah. Léa parou à sombra de uma árvore e rasgou o envelope:

"Quando ler estas linhas estarei de regresso a Paris. Os acontecimentos dos últimos dias impedem-me de continuar escondida enquanto indivíduos do meu povo são levados para o matadouro. Como a censura funciona de modo perfeito, talvez não esteja a par daquilo que se passa. Eis os fatos, tal como me foram narrados por um amigo judeu e por sua companheira, ambos funcionários dos Assuntos Judaicos:

Na noite de quarta para quinta-feira, entre as três e as quatro da madrugada, policiais franceses bateram à porta de milhares de famílias judaicas estrangeiras, de todas as origens, e estas foram detidas. Algumas pessoas conseguiram fugir graças à cumplicidade de policiais piedosos ou corruptos, mas muito poucas, infelizmente. As outras, as que não escaparam, mulheres, crianças, velhos, homens e mesmo doentes, foram conduzidas com os seus míseros haveres, os haveres que as autorizaram a levar, em automóveis, os mais fracos, os outros a pé. À passagem deles, os parisienses desviavam a vista. Concentraram os presos no Velódromo de Inverno - sete mil, dos quais quatro mil e cinqüenta e um eram crianças! Outros seis mil foram levados para o campo de internamento de Drancy. A polícia francesa deteve treze mil pessoas apenas por serem judias! Segundo parece, as autoridades alemãs ficaram desiludidas, pois esperavam trinta e duas mil! . . . Para escapar a isso, muitos infelizes suicidaram-se.

Algumas mulheres, lembrando-se dos pogroms da infância, na Rússia e na Polônia, precipitaram-se de janelas juntamente com os filhos.

Não tinham sido feitos preparativos para receber esta multidão. Durante sete dias, as pessoas viveram debaixo de toldos e de coberturas de vidro aquecidas pelo sol, sem ventilação, em meio ao fedor cada vez mais intolerável. As latrinas, em número insuficiente, bem depressa se tornaram inutilizáveis. Os desgraçados patinavam num lodo imundo, e a urina escoava-se ao longo das bancadas. Ao medo, aliava-se a humilhação. Doentes morriam por falta de tratamento. Apenas dois médicos foram autorizados a entrar no Velódromo de Inverno, mas estes, apesar da presença de algumas enfermeiras da Cruz Vermelha, não podiam atender aos partos prematuros às disenterias, à escarlatina, etc., etc. Apenas uma dezena de prisioneiros conseguiu evadir-se. No domingo, dia 19 de julho, mil pessoas, homens na sua maioria, foram metidas em vagões de transporte de gado e enviadas para a Alemanha.

Sei a sorte que os espera. É tão horrível essa sorte, no entanto, que ninguém acredita quando falo dela, nem mesmo os meus amigos judeus. Não obstante essa incredulidade, alguns deles, tal como eu, leram o Meia Kampf e o Livro branco inglês, publicado na França em 1939, que revelam horríveis detalhes sobre o campo de concentração de Buchenwald e sobre o seu funcionamento; viram na leitura, apenas, um relato de ficção científica. Além disso, depositavam tanta confiança na França!

Por que motivo os franceses se tornaram cúmplices daquilo que ficará para sempre como uma das grandes vergonhas da humanidade? Por quê?

Até agora, sempre me senti uma livre cidadã do mundo, em conseqüência de minhas viagens, das línguas que falo, de minha cultura cosmopolita. Antes de todos esses acontecimentos, não era nem crente nem praticante. Hoje, porém, sou judia e apenas judia. Assim sendo, irei reunir-me ao meu povo, embora sabendo que vou ao encontro da morte. Aceito-a, no entanto. Se for possível arrancar alguns desses desgraçados ao aniquilamento, então lutarei por isso. Em tal caso, talvez apele para você. Sei que não me decepcionará.

Tenha cuidado, amiguinha - você é tão jovem ainda! Pense em mim algumas vezes, e à seu pensamento alimentará a minha coragem. Um beijo daquela que a ama.

Sarah".

Havia um post scriptum na última página.

"Junto a esta carta uma ignomínia publicada no jornal anti- semita Au Pilori, no dia 23 de julho de 1942. Isto é para que não esqueçamos nunca aquilo que ousam escrever os Rebatet, os Céline, os Chateaubriand, os Philippe Henriot, os Brasillach, etc.

Não se esqueça do meu amigo François Tavernier. Sei que a ama e julgo não estar enganada se disser que você o ama também, embora ainda não u saiba. Foi feita para ele tal como ele para você."

Léa deixou cair o recorte do jornal enviado pela amiga. Era apenas parte do artigo em questão, assinado por Jacques Bourreau:

"14 de julho de 1942. Uma maravilhosa notícia circula pelas ruas de Paris: as crônicas faladas transmitidas pelo rádio e pela televisão nacionais informam-nos que acaba de morrer o último judeu. Deste modo, findou assim essa raça abjeta cujo derradeiro representante vivia, desde o nascimento do antigo jardim zoológico do bosque de Vincennes, num covil a ele especialmente reservado e onde as nossas crianças podiam ir observá-lo a recrear-se num simulacro de liberdade, não para o deleite da vista mas sim para a edificação moral da juventude. Agora, está morto. No fundo, foi melhor assim. Pessoalmente, sempre temi que se evadisse. E sabe Deus o mal que pode causar um judeu em liberdade! Este exemplar ficara só, após a morte da companheira, que era estéril, felizmente. Com essa raça, porém, nunca se sabe. . . Vou ao jardim zoológico certificar-me da veracidade da notícia'.

Era maravilhosa aquela manhã de verão, quente mas não multo. No céu não se via uma única nuvem. Soprava leve aragem, e campos e vinhedos multiplicavam-se em tons de verde, desenhados em formas geométricas. Alguns prados estavam pontilhados pelas manchas claras dos rebanhos. Ao longe, o campanário e os telhados de uma aldeia completavam a harmonia suavemente côncava da paisagem.

Léa ergueu-se, deixando para depois a leitura da carta enviada por seu tio Adrien. Subiu de novo na bicicleta para levar a correspondência a Mouchac, a Verdelais e a Liloy.

De volta a Montillac, foi refugiar-se no quarto das crianças para ler a carta, O tio felicitava-a de novo pelo êxito da missão em

Paris e em Limoges. Pedia-lhe que ouvisse a Rádio Londres todas as noites, onde uma mensagem lhe indicaria quando encontrarse com ele em Toulouse. Devia ir buscar uma carta nos correios centrais, que a informaria do local do encontro. Partiria dois dias depois de escutar a mensagem, que era a seguinte: "As violetas florescem aos pés do calvário".

Léa acabava de queimar a mensagem quando Camille entrou no quarto sem bater à porta.

- Desculpe incomodá-la - disse -, mas tem alguma coisa para mim?

Não. Apenas uma carta do tio Adrien respondeu Léa, apontando a folha de papel queimando. - E também de Sarah Mulstein, que deixou Eymoutiers.

- Para onde foi ela?

- Para Paris.

- Paris! Está louca!

- Tome! Leia o que ela escreveu e logo compreenderá.

No dia 2 de agosto, Léa ouviu a mensagem transmitida pelo rádio. Durante sua ausência, Camille encarregou-se de passar a correspondência.

Nos correios centrais de Toulouse, Léa foi encontrar um bilhete lacônico dizendo-lhe para comparecer às cinco da tarde na Basílica de Saini-Sernin, depois de uma passagem por Notre-Dame du

Taur.

Fazia um calor sufocante. Léa sentia fome e sede; tomara apenas uma limonada morna no bar da estação de Matabiau. Havia pouca gente nas ruas Bayard e Rémusat, assim como na Place du Capitole. A igreja da Rue du Taur pareceu-lhe um oásis naquele deserto de tijolos aquecidos. Levou algum tempo para que ela acostumasse a vista à obscuridade. Aproximou-se do altar, junto do qual cintilava pequena luz vermelha. Ocorriam-lhe à mente retalhos de orações: "Pai Nosso que estais no céu. . . Av'-Maria cheia de graça. . . Deus Todo-Poderoso. . . que ressuscitaste dos vivos e dos mortos. . . Cordeiro de Deus. . . seja feita a vossa vontade. . . livrainos do mal.

Ajoelhou-se, colocando ao seu lado a pequena mala de couro que pertencera à mãe. Animava-a o desejo intenso de acreditar e de colocar-se sob a proteção do Senhor, mas experimentava apenas um profundo tédio. Só quatro horas! Entrou na igreja uma velha arrastando os pés. Parou diante de Léa, observando-a demoradamente. Depois afastou-se, resmungando:

- Não são trajes próprios para se estar numa igreja.

O calor estival fizera Léa esquecer o decote de seu curto vestido de algodão azul. Remexeu o conteúdo da maleta, procurando um lenço, que pôs na cabeça, e cujas pontas lhe cobriam um pouco os ombros. Assim, não atrairia as atenções.

Quatro horas e trinta minutos. Deixou a igreja e dirigiu-se para a Basílica de Saint-Sernin. O calor continuava e não havia a mais leve brisa. Sobre as pedras desiguais do passeio estreito, as solas de madeira produziam um ruído sonoro. De súbito, abriu-se ao seu lado um dos batentes do pesado portão de uma moradia do século XVI e dela saiu um homem. Ele a agarrou pelo braço e puxou-a para debaixo da passagem abobadada.

- Mas...

A mão dele impediu-a de prosseguir, tapando-lhe a boca.

- Cale-se! Você corre perigo - avisou o desconhecido.

Nesse instante, ouviu-se na Rue du Taur uma correria e vozes, muito próximas.

- Não podem mais escapar, esses patifes - disse alguém.

Não cante vitória. Esses malditos judeus são muito espertos

- respondeu outra voz masculina.

- Lá isso são. Mas o chefe é ainda mais esperto do que eles.

- Será verdade que alguns padres os apóiam?

- É o que se diz. Mas a mim ninguém tira da cabeça que são comunistas disfarçados de padres.

- O dominicano que prenderam ontem era um religioso, de fato.

Léa estremeceu contra o corpo do homem que continuava a segurá-la.

- Vamos ver - retrucou a outra voz. - Mas, mesmo sendo um padre verdadeiro, isso não o salvará. Vai arrepender-se de ter nascido. É preciso não se ter religião para ajudar os judeus.

Retiniu pela rua um apito prolongado.

- Vamos - disse um dos indivíduos.

Os dois homens partiram, correndo. Ouviram-se então gritos, pragas, disparos. Depois, fez-se silêncio.

De olhos fechados, Léa apoiou-se à porta.

- Venha - ordenou o desconhecido. - Vamos pelos subterrâneos.

- Diga-me, por favor, se foi meu tio a pessoa que eles prenderam.

- Não sei. Lécussan e seus homens prepararam ontem uma armadilha para alguns judeus e seus passadores. Havia entre eles um padre.

- Como era esse padre?

- Também desconheço. Venha. Daqui a pouco o bairro ficará cercado.

- Só mais uma pergunta. Como o senhor sabia que eu iria passar por aqui?

- Recebi ordens para protegê-la durante o percurso entre Notre-Dame du Taur e Saint-Sernin. Quando passei pela basílica, reconheci Lécussan e seus dois homens e pensei, então, que ali se encontravam por sua causa. Basta esta explicação? Quer vir agora?

- Está bem.

- Dê-me a sua mala - disse o homem, escondendo debaixo da axila a pistola que continuara a empunhar.

Entraram na casa por uma pequena porta e desceram alguns degraus que conduziam a uma outra. O desconhecido abriu-a com uma chave. Durante um tempo que a Léa pareceu interminável, percorreram um emaranhado de corredores com paredes meio desmoronadas, subiram e desceram degraus de piso irregular, passaram por abóbadas magníficas apenas entrevistas à luz da lanterna. Sem fôlego, Léa parou.

- Onde estamos? - perguntou.

- Sob o Capitólio - informou o guia. - Na zona antiga de Toulouse, existem diversos andares de subterrâneos, por vezes. Alguns têm má fama, pois funcionaram como câmaras de tortura nos tempos da Inquisição. Mas, no decorrer dos séculos, muitos deles serviram de refúgio. Eu e alguns camaradas escoramos, reparamos, desentulhamos e desobstruímos várias passagens, desde o início da guerra.

Em silêncio, caminharam ainda por mais algum tempo. Atingiram assim uma abertura baixa, onde tiveram de curvar-se, e desembocaram num salão imenso, construído em tijolo cor-de-rosa, com admiráveis arcos ogivais e iluminado por archotes enterrados na areia do chão. Léa imobilizou-se. Ergueu a vista para a abóbada em estilo gótico e rodou o corpo devagar, abarcando todo o perímetro da cobertura. Aparentemente, não existia ali qualquer outra passagem, exceto aquela por onde haviam entrado. As luzes oscilantes das tochas acentuavam o mistério e o esplendor do local.

Ao baixar os olhos, a jovem descobriu ao longo das paredes algumas mesas, caixotes e leitos de campanha, sobre os quais havia homens deitados, muitos deles bastante jovens e todos pobremente vestidos.

- Terminou o exame? - perguntou seu acompanhante.

- Que maravilha! - exclamou Léa.

Aproximou-se deles um indivíduo.

- Por que a trouxe aqui? - perguntou o recém-chegado ao guia.

- Achei que fazia bem, chefe. Não podia deixá-la cair nas mãos de Lécussan. Sabe o que ele faz às mulheres?

- Não se preocupe, Michel. Eu respondo por ela - interveio alguém.

Aquela voz.

- Se assume a responsabilidade.

- Sim. Assumo.

- Laurent!

Com as mãos comprimidas uma contra a outra sobre os lábios, maravilhada e incrédula, Léa via avançar em sua direção o homem amado. Mas como mudara!

- Sim, Léa, sou eu - disse Laurent.

- Laurent. . . - repetiu a moça.

Ele puxou-a para si, envolvendo-a com os braços.

Para Léa, deixara de existir qualquer outra coisa. Havia apenas aquele calor a nascer-lhe no corpo, o hálito que lhe acariciava o pescoço, a voz que murmurava seu nome. O encantamento só se quebrou quando o homem que atendia pelo nome de Michel disse:

- Por esta noite, pode ficar. Mas terá de partir amanhã.

Que importava a ela o amanhã? Só o agora contava, pois agora sabia que Laurent a amava, apesar da pergunta:

- Como estão Camilie e Charles?

- Vão bem. Como sabe, estão em Montillac desde que a Gestapo passou a controlar Roches-Bianches. Charles é um garoto bonito e se parece muito com você. E eu acho que gosta muito de mim - informou Léa.

- E quem não gostaria? Como poderei agradecer-lhe tudo o que tem feito por nós?

- Cale-se. O que é meu é seu também. Que isto seja dito de uma vez para sempre. Receio que isso lhe crie problemas.

Não teremos problemas enquanto o tenente Kramer estiver lá em casa.

- Como pode estar tão segura disso? Há tantas denúncias.

- Mas quem nos denunciaria? Todos nos conhecem e gostam de nós.

- Que confiança a sua! Camaradas nossos são diariamente denunciados por vizinhos e mesmo por amigos.

- Enquanto estivemos escondidos no prédio da Rue du Taur, ouvi um dos perseguidores dizer que prenderam um dominicano...

Não se preocupe. Não foi seu tio, mas um amigo dele, o padre Bon - garantiu Laurent.

- Mas não o terão prendido, há pouco, na basílica?

- Não prenderam ninguém. Não restam dúvidas, porém, de que houve denúncia.

Que deverei fazer agora?

- Neste momento, descansar.

- Estou com fome e com sede.

- Venha sentar-se aqui.

Laurent instalou Léa num caixote, em frente a uma mesa. Voltou pouco depois com uma grande embalagem de patê de fígado, um pão, um cesto com pêssegos, uma garrafa de vinho e dois copos. Léa atirou-se ao pão já cortado e aspirou a plenos pulmões o cheiro agradável que dele se desprendia.

- Como é que vocês fazem para arranjar um pão como este? - perguntou. - O que comemos lá em casa é escuro e pegajoso.

- Tivemos muita sorte quanto à alimentação. As camponesas que vendem na Place du Capitole abastecem-nos de carne, patê de fígado, legumes, queijo e frutas. Um velho padeiro de Caramen nos prepara o pão e um vinicultor dos arredores de Villemur envia- nos o vinho. Pagamos quando podemos. A organização não é rica. Quando formos em maior número, a falta de dinheiro irá criar problemas.

Que barulho é este?

- É a impressora. Publicamos grande parte da imprensa clandestina de Tarn, Garonne, Hérault e Aude, além de folhetos, cupons de alimentação falsos e também documentos falsos. Agora, estamos organizados.

- Mas isso é perigoso!

Agimos com muita prudência e quase não corremos perigo aqui.

- Mas vocês estão completamente encerrados! Parece que estão presos numa cadeia.

- Não creia nisso. O local está cheio de saídas ocultas, alçapões, subterrâneos e também masmorras. O subsolo de Toulouse é um verdadeiro queijo gruyère que alguns de nós conhecem desde a infância.

Mas, se conhecem, outros poderão conhecer igualmente - objetou Léa.

- É claro. Por essa razão, tapamos os acessos mais conhecidos e mais fáceis.

- E a entrada da Rue du Taur?

Ainda durante esta noite, vai haver um desabamento que a fechará.

Enquanto conversavam, Léa cortou uma enorme fatia de pão comendo-a com patê de carne.

- Que bom! - exclamou.

Nunca vi ninguém comer como você - observou Laurent.

- Parece que tudo em você, o corpo e o espírito, participa da refeição.

- E você, não participa? - perguntou a moça, de boca cheia.

A pergunta fez Laurent rir.

- Não, acho que não - respondeu.

- Faz mal. Ou, então, talvez faça bem nos tempos de hoje.

É como Camille, ela não come quase nada. "Não estou com fome"

- é detestável ouvir tal coisa quando se anda sempre com a barriga roncando.

Sorrindo, Léa estendeu o copo.

- Quero beber - pediu. - Façamos um brinde.

- Um brinde a quê?

A nós - respondeu a jovem, erguendo o copo.

- A nós e à vitória - acrescentou Laurent.

- E a mim? A mim ninguém oferece de beber? - perguntou o homem malvestido e sujo que se aproximara deles.

- Tio Adrien!

- Padre Delmas!

O dominicano riu muito diante das exclamações admiradas dos dois jovens.

- Boa noite, meus filhos - disse ele, sentando-se num caixote.

Léa estendeu ao tio um copo com vinho, que ele bebeu de um trago.

- Levei um dos maiores sustos de toda a minha vida quando vi a basílica cercada pela polícia. Nunca me perdoaria se você tivesse sido presa.

- Jacquet foi formidável. Conseguiu interceptá-la a tempo e trazê-la para cá.

Léa, sem conseguir desviar os olhos do tio, comentou;

- Seria incapaz de reconhecê-lo se o visse assim na rua. E teria fugido assustada.

- Então não gosta do meu disfarce? No entanto, é perfeito. Confundo-me com a massa dos miseráveis que pedem esmola no adro de Saint-Sernin.

Era verdade. Seria impossível reconhecer naquele mendigo sujo, de barba grisalha, calças deformadas, seguras por um barbante, chapéu esverdeado e amassado, os pés sem meias enfiados em sapatões incríveis, o pregador elegante, cujos sermões eram ouvidos pelos fiéis do mundo inteiro, o piedoso dominicano conhecido de todos os habitantes de Bordeaux.

Não sabia que tinha barba grisalha, tio Adrien - observou a jovem.

- Nem eu tampouco. Foi surpresa para mim. Nunca pensei que fosse tão velho!

O dominicano fez uma pausa e depois prosseguiu:

- Escute com atenção, Léa. Não posso permanecer muito tempo aqui; tenho de partir. Há um lançamento de pára-quedas esta noite. Eu lhe pedi que viesse por vários motivos. Fique, Laurent. Para você não é segredo - disse o religioso, vendo que o rapaz ia se retirar. Depois, dirigindo-se de novo à sobrinha, continuou: - Seja cada vez mais prudente. Vão reforçar a vigilância na passagem das linhas de demarcação. Quanto à correspondência, irá a Caudrot a partir de agora. O recebedor e a empregada dos correios são gente nossa. Você e Camille vão se revezar nessa tarefa, e irão juntas uma vez em cada cinco deslocações. Pode acontecer de existir também mensagens a serem entregues em mãos. Assim sendo, o sr. e a sra. Debray irão lhes transmitir as instruções. Se ouvir na Rádio Londres a seguinte frase: "Sylvie gosta de cogumelos de Paris", isso significa que não devem continuar a ir a Caudrot, porque já estão queimadas. Receberão jornais e folhetos pelo correio clandestino e é necessário distribuí-los. Trouxe uma mala resistente e não muito grande?

- Sim. É aquela - respondeu a moça, apontando-a.

- Muito bem. O material que vai transportar é perigoso. Se quiser, pode negar-se a fazê-lo. Se eu dispusesse de outra pessoa, aliás, não lhe pediria.

- De que se trata, tio?

De ir a Langon deixar no Oliver um posto emissor-receptor - informou Adrien.

- Mas o restaurante está sempre cheio de oficiais alemães - espantou-se Léa.

É o lugar ideal precisamente por isso. No dia seguinte ao da chegada. ponha o aparelho no cesto das compras e prenda-o ao porta-bagagens da bicicleta. Será dia de mercado. Vá de manhã cedo e compre o que puder: frutas, legumes e flores. Como que por acaso, vai encontrar o encarregado dos vinhos do Oliver, Cordeau, seu conhecido. Ele pedirá notícias de seu pai, dizendo também ter uma lembrança para a filha do seu velho amigo. Enquanto conversam, irão até o restaurante. Aí, Cordeau pegará o cesto e o levará com ele. Quando o restituir, estará já mais leve, embora pareça tão cheio quanto antes. Bem em evidência, Cordeau terá posto nele três vidros de pato em conserva e um de cogumelos.

Aceita?

- Já me dá água na boca. Pela conserva, seria capaz de fazer o que fosse - respondeu Léa, rindo.

Depois, agradeça a Cordeau e saia - prosseguiu o domini cano A dificuldade maior será na estação de Langon. O chefe da estação tem-se mostrado nosso simpatizante, mas receio deixá-lo a par do assunto.

Eu o conheço informou a jovem. - Levo-lhe muitas vezes cartas do filho. Sempre que me vê, age de modo a afastar os policiais e os funcionários da alfândega. Não haverá problemas, vai ver. É ele quem guarda minha bicicleta, e irá me ajudar a prender nela.

Então, acho que a coisa se arranjará. Que pensa disso, Laurent?

- Também acho que não vai haver problemas.

Mas não é Cordeau quem irá servir-se do posto emissor, não?

- Não. É um pianista lançado de pára-quedas ontem à noite e vindo de Londres.

- Um pianista?!

Sim, um pianista. É assim que chamamos aqueles que transmitem as mensagens.

- Onde está ele agora?

- Isso você não precisa saber. Cordeau será seu único contato. Previna-o, se quiser transmitir qualquer mensagem considerada importante. Ele fará que ela me chegue às mãos e lhe dirá o que fazer. Compreendeu bem? - perguntou o dominicano.

Compreendi.

- Se for presa, não banque a heroína. Procure fazer com que os interrogatórios se prolonguem o mais possível, a fim de dar-nos tempo para tomar providências.

- Tentarei.

- Outra coisa ainda: na clandestinidade, sou conhecido pelo nome de Albert Duval. Agora tenho de partir.

Adrien Delmas ergueu-se, mergulhando por instantes o olhar no da sobrinha.

- Não se preocupe, tio Adrien - disse ela, aninhando-se em seus braços. - Tudo correrá bem.

Que Deus a proteja, minha filha - disse o religioso, abençoando-a. Até logo, Laurent.

- Até logo, padre.

Após a partida de Adrien Delmas, os dois jovens permaneceram silenciosos durante muito tempo. Depois, a moça inclinou-se para Laurent e perguntou-lhe ao ouvido:

- Onde fica o banheiro?

- Já vai ver, embora não seja muito confortável. Leve esta lanterna. Depois da passagem, é o segundo corredor à direita. Vire de novo à direita e há uma sala: é ali. A pá serve para cobrir com areia, como fazem os gatos.

Quando Léa regressou, Laurent verificava a carga de sua pistola.

- Os subterrâneos são espantosos. Não quer me mostrar?

Laurent apossou-se de um archote e ambos tornaram a passar pela abertura.

- É a única saída da sala? - perguntou Léa.

- Não. Há outra. Mas só se utiliza como último recurso - explicou ele.

- Tanto melhor. Tenho a sensação de estar aprisionada. E você, não sente o mesmo?

- Habituamo-nos a esta vida. Mas passo pouco tempo aqui. Vamos por ali. Repare nas paredes.

- Que são todas estas inscrições?

- A sala funcionou como cadeia em diversas épocas.

Léa leu em voz alta:

- 1763, cinco anos já decorridos. 1848, eu te amo, Amélie. Viva o rei! Viva a morte!

Depois perguntou ao companheiro:

- Quem é esse Lécussan de quem falavam há pouco?

- Um antigo oficial da marinha, vindo da Haute Garonne. Foi para a Inglaterra na época do Armistício. Depois de Mers eiKébir, os ingleses prenderam-no e repatriaram-no para a França. É um bruto arrogante, violentamente antibritânico e anticomunista.

Mas isso é nada comparado a seu anti-semitismo fanático. Para lhe dar um exemplo: estudantes anti-semitas da Faculdade de

Medicina de Toulouse homenagearam-no, oferecendo-lhe uma estrela-de-davi feita de pele humana, retirada do cadáver de um judeu e cuidadosamente curtida.

- Que horror! - exclamou Léa.

- Quando bebe, Lécussan exibe-a com complacência, comentando: "É das nádegas". Foi essa bela personagem que Xavier Vallat nomeou diretor dos Assuntos Judaicos em Toulouse. Há um ano que se dedica à caça aos judeus e aos terroristas, utilizando para isso uma quadrilha de indivíduos tão abjetos quanto ele e que o mantêm faustosamente,

Caminharam em silêncio por mais algum tempo.

- Estes, pode-se dizer, são os meus domínios - esclareceu Laurent, afastando uma tapeçaria de cores meio apagadas. - Trouxe alguns livros, cobertores e um lampião de querosene. Refugio-me neste local quando tenho necessidade de estar só ou depois de uma operação arriscada.

Era uma das menores salas de todas as que tinham atravessado. O teto era apoiado numa cruz de duas ogivas e o chão estava atapetado de areia branca e macia. Em alguns pontos das paredes, sobre os tijolos cor-de-rosa, existiam vestígios de fogo. A um canto, estavam os pertences de Laurent. De repente, Léa ajoelhou-se em cima dos cobertores, olhando o amigo enquanto este enterrava no chão o cabo do archote. Laurent parecia ter ficado subitamente infeliz e constrangido.

- Venha para perto de mim - pediu Léa.

O rapaz balançou a cabeça num gesto negativo.

- Venha, eu lhe peço - insistiu ela.

Laurent avançou para Léa a contragosto. A moça puxou-o e ele caiu de joelhos ao seu lado.

- Desde que cheguei aqui só tenho esperado pelo momento de ficar a sós com você.

- Mas isso não deve acontecer - contradisse-a Laurent.

Por quê? Você me ama e eu o amo. Talvez amanhã esteja preso ou morto, e não suporto a idéia de não lhe pertencer por completo, de me restar apenas a lembrança de alguns beijos. Não .

não diga nada; só diria bobagens ou pior que isso, banalidades. O que sinto por você está além das convenções. Para mim tanto faz ser apenas sua amante. Quero que seja meu amante, já que não quis ser meu marido.

- Cale-se - disse Laurent.

- Por que motivo deveria calar-me? Não tenho vergonha de desejá-lo e de lhe dizer isso. A guerra alterou muitas coisas quanto ao comportamento das moças. Antes dela, talvez não me atrevesse a falar assim. Embora. . . não, na verdade, eu não teria sido muito diferente do que sou neste momento. Tal como hoje, teria confessado que o amo, que desejo fazer amor com você e que nada nem ninguém pode impedi-lo.

Léa despiu o vestido de algodão azul e, à exceção das calcinhas de algodão branco e de corte infantil, surgiu nua perante o companheiro.

Laurent não conseguia despregar os olhos do esplendor daquele corpo, dos seios que ansiavam pelas suas mãos. E como resistir aos dedos hábeis que lhe desabotoavam a camisa, logo se dirigindo ao cós das calças? Ergueu-se de um salto, recuando.

- Não devemos, Léa.

Mas a jovem, arrastando-se de joelhos, encaminhou-se para ele.

A claridade do archote, as abóbadas seculares, a areia sobre a qual a moça avançava, sem se apressar, como um animal a dirigir-se à presa, os cabelos desalinhados, os seios oscilando suavemente, os quadris arqueados, as coxas longas, transmitiam ao homem que a contemplava a sensação de ter recuado até a aurora dos tempos, quando a fêmea primitiva escolhia o companheiro.

Deixou de resistir quando as mãos nervosas e fortes o agarraram, capitulando também ao sentir-lhe a boca fechar-se sobre o sexo. Desejou que aquela carícia não acabasse mais. Apesar disso, ele a interrompeu.

- Não! - protestou Léa.

Mas o seu grito de revolta transformou-se em brado de vitória quando ele finalmente a penetrou.

A areia branca que aderira aos corpos imóveis dava-lhes o aspecto de estátuas. Léa foi a primeira a abrir os olhos. Virou a cabeça para o amante, olhando-o com um misto de ternura e de orgulho - pertencia-lhe, era dela! Pobre Camille! Quanto pesaria ela na balança diante do amor que a unia a Laurent? Nada poderia separá-los agora. Havia algo em Léa, no entanto, uma espécie de decepção, cujo motivo não compreendia. Nunca se entregara com tanto abandono. Não dera a Laurent apenas o corpo, mas também a alma. Não acontecera o mesmo em relação a François Tavernier e a Mathias Fayard. No caso de ambos, o seu corpo estivera bem presente, mas agora, com o homem amado, só o coração se satisfizera plenamente. Após a violência da primeira investida, Laurent mostrara-se doce e terno - doce demais e terno demais para aplacar-lhe o desejo. Desejara com ansiedade que o companheiro a tomasse de novo, que suas mãos lhe fizessem mal e bem ao mesmo tempo, que o seu sexo a varasse sem contemplações. Um repentino pudor, porém, impedira-a de manifestar-se.

Como Laurent era belo com os seus cabelos loiros, o rosto de linhas puras, a pele branca do tronco liso! De olhos fechados, assemelhava-se a uma criança. Nesse instante, ele reabriu-os e Léa sentiu-se transbordante de alegria.

- Perdoe, meu amor - murmurou Laurent, junto ao pescoço da moça.

Perdoar-lhe! Perdoar-lhe o quê? Que louco ele era!

Esticou-se sobre o corpo do rapaz e invadiu-a uma enorme felicidade. Os olhares de ambos encontraram-se então, perdendo-se um no outro. E foi nesse instante que Léa sentiu um prazer final que a convulsionou durante muito tempo.

Alguém chamou e o chamado fê-los regressar à realidade.

- Já vou - respondeu Laurent, afastando Léa com doçura.

A moça, porém, agarrou-se ao companheiro.

- Tenho de ir embora, meu amor - afirmou. - Quer dormir aqui? Não sentirá medo?

- Não. Mas tem de partir, de fato?

- Sim, tenho.

Vestiu-se às pressas. O traje dele fazia-o assemelhar-se a um trabalhador do campo - uma mistura de azul e de castanho-escuro e uma boina. Nada restava do rapaz elegante de 1939, com o qual Léa dera longos passeios pelos intermináveis caminhos das florestas das Landes.

- Você é bonito - disse ela.

Laurent riu e inclinou-se para Léa.

- Quero que saiba, querida, que nunca esquecerei o que se passou aqui, apesar da vergonha de ter abusado das circunstâncias e do seu afeto por mim.

- Mas... fui eu..

- Eu sei. Mas eu não devia, tanto por você como por Camille

- protestou Laurent.

- Mas você não a ama. Ama a mim.

- Sim, amo você, é verdade. Acho que não pode entender o que sinto por Camille. É ao mesmo tempo minha irmã, filha e esposa. Camilie é frágil e precisa de mim. E também sei que não posso viver sem ela. Não me olhe desse modo. Tenho procurado fazê-la entender que eu e Camille pertencemos à mesma raça, temos gostos idênticos, amamos os mesmos livros e a mesma maneira de viver.

- Já me disse isso. Mas eu mudarei, você verá. Passarei a gostar também daquilo de que você gosta, a ler os seus livros, a viver a seu modo- Serei ainda sua irmã, filha, mulher e amante. E mulher prendada, se isso lhe agradar. Sou capaz de tudo para conservá-lo

- asseverou Léa.

- Fique quieta. Você me assusta.

- Será que é covarde?

- Diante de você, sou.

- Mas eu não quero! Quero que seja forte, quero poder admirá-lo sempre.

- Procurarei não desiludi-la. Agora, descanse. Amanhã, precisa levantar cedo. Prometa que não cometerá imprudências.

- Prometo. Sou invulnerável agora! E você seja prudente também. Não o perdoarei se algo lhe acontecer.

Trocaram um só beijo, pondo nele, no entanto, tudo o que não sabiam exprimir em palavras. Já com a mão segurando a tapeçaria, Laurent parou, virou-se e disse, sem olhar para Léa:

- Não se esqueça de que lhe confiei Camille. Cuide dela. Posso contar com você, não é verdade?

A areia abafava o ruído dos passos. Que silêncio! Não se apercebera ainda a que era absoluto, "O silêncio do túmulo", zombou uma voz no íntimo de Léa.

Ela desapareceu sob os cobertores.

Quando vieram despertá-la, teve a impressão de que acabara de adormecer naquele instante e de que não conseguiria levantar-se, de tal forma sentia o corpo moído.

Jacquet, o rapaz que ali a levara, acompanhou-a até a estação, transportando-lhe a mala e um saco de viagem. Sem grande dificuldade, arranjou-lhe lugar num compartimento de terceira classe. Colocou a mala debaixo do assento e o saco na rede existente por cima dos bancos.

Tinham chegado adiantados e foram para o corredor fumar um cigarro. Léa adquirira o hábito de fumar já havia alguns meses, em parte por culpa de Françoise, que largava cigarros por todo lado, visto não ter dificuldade em obtê los.

- Não pus a mala na rede, com receio de que você não consiga tirá-la de lá. Se alguém a ajudasse, poderia achá-la pesada demais

- esclareceu Jacquet. - No saco, debaixo do queijo e do salsichão, há panfletos e o nosso jornal Libérer et Féderer. Faça-os circular pela região. Trata-se do exemplar do dia 23 de junho, onde publicamos a declaração do general de Gaulle. Se ainda não a leu, leia-a; isso lhe fará bem.

- Quer que me fuzilem?

- Seria uma lástima acontecer isso a uma moça tão bonita como você. Seguem neste trem dois dos nossos camaradas, que intervirão em caso de perigo. Se estiver na iminência de ser detida, abandone a bagagem. Os meus companheiros darão um jeito de se apoderar dela. Se for interrogada, responda que lhe roubaram as malas. Entendeu?

- Entendi.

Ouviu-se um apito.

Está na hora. Boa sorte.

Jacquet saltou com o trem já em marcha.

Debruçada na janela do vagão, Léa ficou acenando durante muito tempo.

- É triste deixar o namorado - comentou uma voz com sotaque germânico.

Léa virou-se, sentindo de súbito as pernas bambas,

Mas, todo sorrisos, o oficial alemão prosseguiu pelo corredor apinhado sem acrescentar mais nada. Com o coração batendo descompassadamente, a jovem entrou no compartimento e foi instalar- se em seu lugar.

- Langon! Linha de demarcação! Parada de quarenta e cinco minutos! Todos os passageiros desçam com as respectivas bagagens!

Léa deixou os companheiros de viagem passarem à sua frente. Como era pesada aquela mala! Ainda se Loriot, o chefe da estação, estivesse na plataforma. . . No degrau do vagão, tentava localizar um rosto conhecido por entre a turba que batia os pés de impaciência, com os documentos na mão, esperando que as autoridades os revistassem. De repente, viu surgir os funcionários alemães da alfândega que se preparavam para inspecionar os vagões vazios. Acompanhava-os um oficial.

- Tenente Hanke!

- Srta. Delmas! Que faz por aqui?

- Bom dia, tenente. Estava procurando alguém conhecido para ajudar-me a levar esta mala, que está muito pesada,

- Eu a ajudo ofereceu-se o oficial. - Realmente, está bastante pesada. Que tem dentro? Parece chumbo.

- Quase adivinhou. É um canhão desmontado.

Não brinque com uma coisa dessas. Todos os dias prendemos gente que leva artigos ilegais.

- E os livros estão nesse rol?

- Preciso que me diga quais, um dia destes.

Sempre conversando, chegaram à saída. Léa simulou fazer menção de dirigir-se ao local onde as autoridades revistavam os passageiros.

- Es ist nützlich, Fraulein, das Miidchen ist mit mir 1 - disse o tenente, dirigindo-se a uma das duas mulheres incumbidas de fazer a revista.

No átrio da estação, Loriot foi direto ao encontro deles.

- Bom dia, srta. Delmas. Vou buscar sua bicicleta. Bom dia, tenente - Bom dia, sr. Loriot. Agora, se me dá licença, srta. Delmas, tenho de voltar à plataforma. Ajude-a a transportar as bagagens

- disse o oficial, estendendo a mala ao ferroviário.

O tenente Hanke fizera enormes progressos no francês.

A bicicleta, desequilibrada pela mala e pelo saco, ameaçava tombar a todo instante. Sem fôlego, com o rosto em fogo, Léa desmontou e empurrou-a até a propriedade.

A primeira pessoa que a viu foi o pai. Pareceu-lhe muito agitado. Ela encostou a bicicleta na parede do celeiro, tentando normalizar a respiração.

- Patife! Canalha! Isabelle vai fazê-lo correr - vociferava Pierre Delmas.

- O que foi, papai?

- Onde está sua mãe? perguntou. - Preciso falar com ela imediatamente.

- Mas... papai...

Não há mas nem meio mas. Vá procurá-la. É muito importante o que tenho a lhe dizer.

Léa passou a mão pela fronte molhada de suor, de súbito avassalada pelo cansaço e pela tensão das últimas horas o pai reclamando a mulher morta, a mala pesada como chumbo, Laurent que se transformara em seu amante, o tenente Hanke ajudando-a a transportar a bagagem, as abóbadas góticas dos subterrâneos de Toulouse, o tio disfarçado de mendigo, a estrela-dedavi feita de pele de judeu... e Camille, que nesse momento se aproximava dela com os braços estendidos. . . Caiu aos pés de Pierre

Delmas.

Quando reabriu os olhos, estava com a cabeça apoiada nos joelhos de Ruth. Camille umedecia-lhe as têmporas com um guardanapo, embebendo-o, de vez em quando, na água da bacia que Laure segurava. Com os olhos esbugalhados pela angústia, o pai chorava, perguntando a Fayard:

- Diga-me, Fayard, a minha menina está morta? A mãe dela não me perdoaria.

- Não se preocupe, sr. Delmas - interveio Ruth. - é apenas o efeito do calor. Mas que idéia andar de bicicleta, sem chapéu, num dia como este!

- Não é nada, papai, fique tranqüilo. Cuide dele, Laure, por favor.

O mal-estar de Léa durara apenas alguns instantes. Auxiliada por Camille, ergueu-se com facilidade.

Lamento muito o susto que lhes preguei. Ruth tem razão; foi o calor. Onde estão a mala e o saco?

- Fayard transportou-os para casa.

- Depressa. Vamos procurá-los.

Foram encontrá-lo na cozinha.

- Não sei o que traz nesta mala. srta. Léa. mas está pesada. Vou levá-la para o seu quarto.

- Não, deixe. Eu mesma o farei.

- Mas está pesada demais.

Léa não se atreveu a insistir, receando despertar suspeitas. Seguiu Fayard até o quarto das crianças.

- Obrigada, Fayard. Muito obrigada.

- Não tem de quê, senhorita.

Camille e Ruth apareceram. A governanta trazia um copo.

- Beba isto - ordenou. - Vai sentir-se melhor.

Léa engoliu sem protestar.

- Agora deite-se e descanse.

Mas...

- Não discuta. Deve ser insolação.

- Não se preocupe, Ruth - disse Camille. - Eu cuido dela. ´ É preferível ir ver como está o sr. Delmas.

Léa estendeu-se sobre as almofadas e cerrou as pálpebras para não ver Camilie.

- Não durmo desde que você partiu, de tão preocupada. Mal adormecia, via você e Laurent em perigo de vida. Foi horrível!

Sempre falando, Camille descalçou a amiga, começando a acariciar-lhe as pernas com doçura. Léa sentia vontade de gritar.

Ergueu-se.

- Estive com Laurent em Toulouse comunicou.

Camille endireitou-se.

- Que sorte a sua! - exclamou ela. Como está Laurent? Que lhe disse?

Apoderou-se de Léa uma tentação diabólica. E se contasse tudo a Camilie? Se lhe confessasse que se amavam, que haviam se tornado amantes? Mas algo no rosto tenso e cansado de Camilie a impediu de concretizar tal desejo.

Está bem respondeu. - Incumbiu-me de dizer-lhe que pensa muito em você e em Charles e que não se preocupe.

Como se isso fosse possível!

- Também estive com tio Adrien. Confiou-me uma tarefa e deu-me novas ordens quanto ao correio.

- Posso ajudá-la nessa tarefa?

- Não.

- Seu pai me preocupa. Não é a mesma pessoa desde ontem à noite; profere injúrias e ameaças. Tentei conversar com ele, saber qual o motivo, mas repetia apenas: "Ah, o que Isabelle há de dizer!" Em dado momento, pensei que tivesse discutido com

Fayard, coisa que, infelizmente, acontece com bastante freqüência. Mas ele afirmou que a última desavença entre ambos datava da semana passada. Ruth não sabe de nada, nem sua tia Bernadette. Quanto a Françoise, está de serviço há três dias. Apenas

Laure parece a par de tudo; recusa-se, porém, a dizer o que aconteceu e fecha-se no quarto, onde a ouço chorar.

- Vou falar com ela - decidiu Léa.

Descanse um pouco primeiro.

- Não. Pressinto que se trata de um problema grave. Receio por papai.

Léa procurou a irmã por toda a casa, sem descobri-la.

Só a viu à hora do jantar. Estava com os olhos vermelhos de chorar. Ninguém tinha apetite. Durante toda a refeição, Léa não perdeu de vista o pai. Pierre Delmas, porém, mostrava-se mais calmo. Tal calma, no entanto, parecia ainda mais inquietante do que a agitação da tarde. Terminado o jantar, Léa pegou a irmã pelo braço, levando-a consigo.

- Vamos dar uma volta - disse. - Preciso lhe falar.

Laure esboçou um gesto de recuo, mas depois resignou-se. Desceram até o terraço. O vale estava imóvel sob a luz do sol ainda muito quente. Sentaram-se no pequeno muro à sombra das glicínias.

- Que aconteceu para que papai esteja assim tão agitado? - perguntou.

Laure abaixou a cabeça e duas lágrimas foram cair em suas mãos pousadas nos joelhos.

- Não chore, irmãzinha. Conte-me o que aconteceu - insistiu Léa.

Soluçando, Laure lançou-se nos braços da irmã mais velha.

- Sou incapaz de contá-lo. Sobretudo a você.

- Mas por que sobretudo a mim?

- Porque não pode compreender.

Compreender o quê?

Os soluços redobraram.

- Fale, peço-lhe. Pense em papai.

- Oh, papai! Isso não é o mais grave.

Que quereria dizer aquilo? Aborrecida, Léa sacudiu a irmã. Que quer dizer com isso? Que há de mais grave ainda?

perguntou.

- Françoise... - balbuciou Laure.

- Françoise?

Françoise e Otto.

- Françoise e Otto? Explique-se. Não entendo.

- Querem se casar.

- Casar..

- Sim. O capitão fez ontem o pedido a papai.

- Ah, estou entendendo! E papai recusou, como é óbvio.

Eu não disse? Tinha certeza. . . Sabia que não compreenderia e que Françoise não teria a mínima chance de contar com seu apoio. Eu lhe disse, mas ela afirmou: "Você está enganada.

Léa tem experiência e sabe o que é o amor". Respondi que não era verdade, que você não sabia; que se ela queria conselho e auxílio, deveria pedi-los a Camille.

A violência de Laure a surpreendeu.

- Exceto Montillac, você não gosta de nada nem de ninguém. O pobre Mathias compreendeu-o perfeitamente e por isso foi embora.

- Deixe Mathias em paz, está bem? Estamos falando de Françoise e de seus nojentos amores com um alemão.

- Também quanto a isso eu tinha certeza. Você se orienta apenas pelo seu general de Gaulle e pelos terroristas que nos envia de

Londres para sabotarem linhas telefônicas, explodirem trens e assassinarem pessoas inocentes.

- Assassinarem pessoas inocentes! Como se atreve a chamar inocente ao inimigo que ocupa nosso país, um inimigo que nos faz passar fome, que nos deporta e nos mata? Sem esses "inocentes", nossa mãe ainda estaria viva, papai não teria enlouquecido e tio Adrien e Laurent não teriam sido forçados a se esconder.

São eles que estão errados. São rebeldes.

- Rebeldes. . . ! São rebeldes os que lutam pela libertação da França?

- Isso são apenas palavras, palavras ocas. E o marechal Pétain quem encarna a honra da França.

- Cale-se! Você não passa de uma tola ignorante. O seu marechal é cúmplice de Hitler.

- Não é verdade. Ele ofereceu a sua própria vida à França

- replicou Laure.

- Belo presente! O país precisa é de um exército bem equipado e de um chefe que continue o combate.

- Está insultando um velho.

- E daí? A velhice será desculpa para ele se portar como um canalha? Acho, pelo contrário, que duplica a gravidade do caso o fato de se servir do prestígio pessoal obtido na Guerra de 1914-1918 para nos obrigar a aceitar a vergonha do Armistício.

- Sem esse Armistício, centenas de milhares de pessoas seriam mortas em bombardeios, tal como mamãe.

Ao pronunciar a palavra "mamãe", Laure recomeçou a chorar. Léa tomou-lhe a cabeça e a apoiou em seu ombro.

- Talvez tenha razão. Já não sei mais nada. Que teria feito mamãe nessas circunstâncias?

Abatidas, elas permaneceram sentadas na mureta, de cabeça baixa e com as pernas pendentes.

- Não a choca o fato de Françoise pretender casar-se com um alemão, Laure?

- Um pouco - admitiu. - Mas eles se amam.

Se assim é, que esperem pelo fim da guerra.

Isso não é possível.

Não é possível por quê?

Porque Françoise está grávida.

Ah, não!

- É verdade.

Léa pôs-se em pé de um salto. Ao longe, a linha negra das Landes barrava o horizonte. Subia do Garonne uma leve neblina, que se estendia sobre Langon em direção às nascentes de Maile.

- Pobre Françoise! murmurou Léa.

Laure ouviu o desabafo da irmã e pediu:

- Ajude-a, Léa. Fale com papai; ele sempre a escuta.

Não creio que o faça neste caso. Está muito longe de nós, atualmente.

Mas tente, eu lhe peço. Tente.

Ainda se Françoise estivesse aqui! Conversaria com ela e saberia ao certo o que pretende fazer.

- Fale com papai. Se ele não consentir, Françoise vai se matar.

- Não diga um absurdo desses.

- Não é absurdo. Juro que Françoise está desesperada - asseverou Laure.

- Prometo fazer o que puder. Agora deixe-me. Preciso refletir. Vá chamar Camilie.

- Está bem - disse Laure.

Depois, após um instante de hesitação, beijou a irmã na face e disse:

- Obrigada, Léa.

Instantes depois, aparecia Camilie. Léa a pôs a par dos acontecimentos.

- Sinto-me culpada. Nada fizemos - observou.

- E que poderíamos nós fazer?

- Tê-la rodeado de mais carinho, ter insistido em que nos fizesse confidências.

Eu conheço Françoise, isso não teria alterado as coisas. Vou ao mercado de Langon amanhã. Depois, irei encontrá-la no hospital e, conforme o que me disser, falarei ou não com papai. Esta noite estou cansada demais. Boa noite, Camilie.

Boa noite, querida.

- Aqui está, srta. Léa. Depois me dirá se é ou não boa esta conserva - disse Cordeau, restituindo à moça o cesto das compras.

- Muito obrigada. Papai vai ficar contente. É ele o guloso.

- Transmita-lhe meus cumprimentos e diga-lhe que gostaria de vê-lo um dia desses.

- Direi, sim. Muito obrigada mais uma vez. Até logo, sr.

Cordeau.

Léa saiu do restaurante levando o grande cesto coberto por um pano de listras vermelhas. Junto da bicicleta, que ficara na rua, encostada à parede, havia um soldado alemão.

- Não é aconselhável deixar assim ao abandono uma bicicleta tão bonita, senhorita - observou ele. - Tenha cuidado, pois há muitos ladrões por aí.

- Obrigada - agradeceu Léa.

Suas mãos tremiam ao atar o cesto ao porta-bagagens, auxiliada pelo solícito militar.

Pedalando, encaminhou-se para o hospital.

No pátio, estavam estacionados diversas ambulâncias e veículos militares. Dirigiu-se à secretária, pedindo para falar com a irmã.

Informaram-lhe que Françoise estava no edifício ao fundo, no serviço de emergências.

Voltou a subir na bicicleta. A primeira pessoa que encontrou foi o capitão Kramer. O oficial saudou-a rigidamente.

- Bom dia, srta. Delmas. Ainda bem que a vejo para apresentar-lhe minhas despedidas.

- Despedidas?!

- Sim. Estou de partida urgente para Paris, onde vou permanecer. Viajo dentro de uma hora. Meu ordenança irá se ocupar de meus pertences. Apresente meus respeitos à sra. d'Argilat, por favor. uma mulher admirável! Não desejaria que o amor pela pátria a levasse a cometer imprudências. Diga ao senhor seu pai que para mim foi uma honra conhecê-lo. Espero igualmente que ele volte atrás em suas prevenções. Cumprimentos também a Laure, à dedicada Ruth e à senhora sua tia.

Não está se esquecendo de ninguém?

- Acabo de me despedir de Françoise. Vai precisar de todo o seu afeto. Poderei contar com a senhorita?

Ele também! Que mania aquela a dos homens de lhe confiarem as mulheres e as amantes.

- Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Mas não depende apenas de mim.

- Fico-lhe agradecido. Françoise não tem a sua força. Possui uma natureza influenciável e terna. Não deve julgá-la. Gostaria de tê-la conhecido melhor, srta. Delmas, mas sempre se furtou a qualquer contato. Enrendo-a, porém. Em seu lugar, teria feito a mesma coisa. Mas saiba que amo a França e a considero um grande país, do mesmo nível da Alemanha. No futuro, estas duas belas nações fundir-se-ão numa só e darão a paz ao mundo. Por isso devemos unir-nos.

Léa mal o ouvia, O pior é que ele era sincero.

- Não acha? - insistiu o capitão.

- Talvez acreditasse se não ocupassem nosso país e se não perseguissem os que não pensam como os senhores. Adeus, capitão Kramer - concluiu Léa.

De cesto na mão, entrou na ampla sala de descanso das enfermeiras, que se encontravam reunidas ao fundo do compartimento.

Léa adiantou-se.

Rodeada pelas colegas, Françoise chorava, sentada em frente de uma mesa, com a cabeça entre as mãos e os cotovelos apoiàdos no tampo.

- Que deseja? - perguntou uma das enfermeiras à recém- chegada.

- Quero falar com minha irmã, Françoise Delmas.

- Está aqui. Ficaremos agradecidas se conseguir acalmá-la - disse a mulher.

- Podem nos deixar a sós?

- Claro. Vamos, senhoritas. São horas de voltar ao trabalho. A srta. Delmas vai cuidar da irmã.

Quando todas desapareceram, Léa sentou-se junto a Françoise, que continuava imóvel, na mesma posição.

- Venha, Françoise. Vamos para casa.

Dissera as palavras certas, Os ombros da pobre enamorada cessaram de tremer e uma mão tímida procurou a sua e a apertou.

- Não posso. Que dirá papai? protestou Françoise.

Aquela voz de criança desamparada comoveu Léa mais do que poderia supor.

- Não se inquiete. Eu cuido disso. Agora, venha.

Ajudou a irmã a levantar-se.

- Tenho de mudar de roupa.

- Onde estão as suas coisas?

- Ali, no armário.

Léa abriu-o e retirou o vestido de raiom com florzinhas, a bolsa e os sapatos de salto.

Françoise acabara de se vestir quando apareceu a enfermeira- chefe:

- Descanse, minha filha. Não venha trabalhar amanhã - disse ela.

- Muito obrigada, minha senhora.

As duas irmãs percorreram os três quilômetros entre Langon e Montillac sem dizer nada. Tal como na véspera, Léa desceu da bicicleta na subida, mas Françoise continuou a pedalar com esforço. "Podia esperar por mim", pensou Léa.

Na cozinha, Ruth e Camille terminavam os preparativos para o almoço.

- Não viram Françoise? - perguntou Léa ao chegar.

- Sim. Disse que ia subir e deitar-se respondeu a governanta; estava fritando batatas.

- Vejam só o que trago aqui para acompanhar as batatas! - exclamou Léa.

- Pato em conserva! - gritaram as duas mulheres em uníssono.

- Presente de Cordeau.

- De Cordeau?! - admirou-se Ruth. - Não é seu hábito ser assim tão generoso.

- Vamos consolar-nos com isto. Papai é que ficará contente.

- Por que motivo ficarei contente, minha filha? - perguntou Pierre Delmas, entrando na cozinha.

Léa sentiu o estômago embrulhado ao olhar o pai. Habitualmente tão cuidadoso com seu aspecto pessoal, Pierre Delmas não se barbeara, e a fralda da camisa suja e rasgada saía-lhe da calça cheia de nódoas e de terra. Como ele mudara desde a véspera! Já não tinha aquele olhar do dia anterior e parecia lúcido, mas desesperado.

"Deve ter compreendido, por fim, que mamãe morreu", pensou Léa.

Conteve o desejo de abraçá-lo, de confortá-lo, de garantir-lhe não ser verdade - a mãe iria aparecer de um momento para outro com o seu cesto de flores no braço, protegida do sol pelo grande chapéu de palha. Foi tal a intensidade daquela recordação, que

Léa virou a cabeça para a porta à espera de que a mãe surgisse realmente. Percebeu então que, bem no íntimo, também ela negara a morte de Isabelle e, só agora, no instante em que o pai aceitava por fim o fato, ela mesma se separava da mãe até a eternidade.

O vidro de conserva escapou-lhe das mãos e foi estilhaçar-se nos ladrilhos com um grande barulho que os sobressaltou.

- Que desastrada, minha querida! - observou Pierre Delmas, agachando-se para apanhar os pedaços de vidro.

- Eu faço isso, sr. Delmas. Eu apanho - disse a governanta.

Léa deixou correr as lágrimas sem conseguir retê-las. O pai notou.

- Vamos, não tem importância, minha filha. Lavam-se os pedaços e faz-se de conta que nada aconteceu. Venha assoar-se como quando era pequena.

Sim, ser de novo pequena! Sentar-se em seus joelhos, aninhar- se sob seu casaco, como que escondida, assoar-se no lenço do pai, sentir OS braços fortes fecharem-se sobre o seu corpo e aspirar o odor familiar do tabaco, da adega, do couro e dos cavalos, misturado, por vezes, ao perfume da mãe.

Papai...

- Pronto.., pronto.. . acabou, minha menina. Estou aqui com você.

Era verdade: o pai ali estava, de volta entre os vivos.

Mas para assistir a que dramas e por quanto tempo?

Todos eles fizeram as honras ao pato em conserva, escrupulosamente limpo por Ruth dos pedaços de vidro, exceto Françoise, que não saíra do quarto.

Antes de almoçar, Pierre Delmas barbeara-se e mudara de roupa. No decorrer da refeição, a família pôde constatar que voltara a ser ele mesmo.

 

Capítulo 25

Dias depois, fiel à promessa feita, Léa procurou conversar com o pai no decurso de um dos habituais passeios entre os vinhedos, logo depois do jantar. Mas, mal pronunciara as primeiras palavras, Pierre Delmas interrompeu a filha:

- Não quero mais ouvir falar desse casamento contra a natureza. Você se esquece com muita facilidade de que os alemães são nossos inimigos, que ocupam o território francês e que o capitão Kramer traiu as mais elementares regras da hospitalidade.

- Mas, papai, eles se amam.

- Se acaso se amam de verdade, que aguardem o fim do conflito. Neste momento, recuso-me a consentir numa união que também sua mãe desaprovaria.

- Françoise tem.

- Nem mais uma palavra. Esse assunto me deixa doente. E eu já estou muito cansado.

Pierre Delmas sentou-se num dos marcos existentes à beira do caminho.

- É mesmo necessário que vá amanhã a Bordeaux? - perguntou Léa ao pai.

- Absolutamente necessário. Tenho de tratar com Luc a maneira de desfazer a promessa de venda que assinei para Fayard.

- A promessa de venda?! Ora, papai, como pôde fazer tal coisa?

- Não sei. Desde a morte de sua pobre mãe que Fayard vem me assediando com pedidos de dinheiro para compra de mais material. Por fim, quando constatou as nossas dificuldades financeiras, propôs-me a compra da propriedade. Da primeira vez que me falou no assunto, readquiri um pouco de lucidez e respondi-lhe que o despediria se voltasse a insistir.

- Mas por que motivo não me disse nada?

- Você bem viu que eu não estava em meu juízo perfeito. Isabelle desaparecera e eu a imaginava ainda uma criança.

- Mas, papai, é graças a mim que Montillac ainda existe. Fiz com que esta terra e esta gente andassem para a frente, vigiei

Fayard e os trabalhadores, consegui alimentar a todos com os legumes da horta que eu própria cultivei, pus o encarregado no seu lugar e, agora, você vem me dizer.

Não conseguiu terminar a frase. Pierre Delmas tomou nas suas as mãos da filha e beijou-as com ternura.

- Tudo isso eu sei, minha querida. Ruth e Camille falaram- me de sua coragem. E é por isso mesmo que quero anular a promessa de venda e necessito dos conselhos de um advogado.

- Não confie em tio Luc. Ele colabora com os alemães garantiu Léa.

- Não acredito. Sempre foi adepto de Maurras, ferrenho partidário de uma direita enérgica, feroz anti-semita e anticomunista.

Mas daí a colaborar com os alemães.

- Se tio Adrien estivesse aqui, ele o convenceria do que afirmo.

- Luc e Adrien nunca suportaram um ao outro - contrapôs Pierre Delmas. -- Já em crianças se situavam em campos diametralmente opostos. Sempre foram ambos bons cristãos, embora ignorassem o perdão das ofensas. As coisas compuseram-se um pouco quando Adrien entrou para a ordem, não obstante Luc ter afirmado que a decisão tomada era uma forma de meter o lobo no rebanho, Os êxitos de seu tio como pregador lisonjearam a vaidade de Luc. Mas a Guerra Civil da Espanha e o apoio de

Adrien aos republicanos espanhóis, as idéias por ele manifestadas no púlpito da catedral de Bordeaux, denunciando a atitude da

Igreja e do governo, reavivaram uma antipatia muito próxima do ódio. Camilie disse-me que Adrien mantinha contatos com

Londres e que se refugiara na zona livre. E isso não deve ser do agrado de Luc.

Tio Luc garantiu-me que, se soubesse do paradeiro do tio Adrien, o denunciaria.

- Não posso crer. Disse-o com certeza num momento de cólera. Luc tem muitos defeitos, mas não é nenhum judas.

- Gostaria muito que o senhor tivesse razão.

Em Bordeaux, espero também ter notícias de Adrien. Escrevi a seu superior, anunciando-lhe a minha visita. Marquei igualmente encontro com o notário.

- Vou com você. Ficarei mais sossegada.

Como quiser, minha querida. Agora, deixe-me. Preciso ficar só.

Ao dirigir-se a casa, rosada pelo sol poente, Léa se dizia, tentando não pensar no dia seguinte, que seria necessário que chovesse, pois o solo estava ressequido: algumas folhas haviam começado mesmo a amarelar. Sem se deter, inclinou-se, apanhando do chão um punhado de terra. "Amanhã direi a Fayard que mande limpar este terreno. Está cheio de ervas daninhas", disse Léa para si. Contornou o pequeno bosque e atingiu o terraço. A luz da tarde conferia ao vale, em certos pontos, um relevo que lhe acentuava a beleza. Aquela paisagem provocava-lhe invariavelmente um sentimento de júbilo. Françoise aguardava-a à sombra das árvores, sentada na relva e encolhida sobre si mesma. Léa instalou-se ao lado da irmã, que ergueu a vista. Seu rosto inspirava piedade.

Falou com papai? - perguntou.

- Tentei, mas ele recusou-se a ouvir-me. Hei de encontrar uma saída, porém. Prometo.

Não a ouvirá. Que vai ser de mim?

- Podia...

Léa hesitou, jogando o punhado de terra de uma mão para outra. Depois prosseguiu:

- Pode ir a Cadillac, ao dr. Girard. Dizem.

- Que horror! - exclamou Françoise, interrompendo a irmã.

Como se atreve a propor semelhante coisa? Queremos este filho, tanto eu como Otto. Preferiria morrer a.

- Então deixe de choramingar e diga você mesma a papai que está grávida.

- Não! Não seria capaz de confessar-lhe tal coisa. Vou-me embora. Vou ao encontro de Otto. Talvez isso obrigue papai a ceder disse Françoise.

- Não faça tal coisa. Ele vai ficar muito triste. Pense no que já sofreu com a morte de mamãe.

- E eu! Sabe, porventura, o que sofro?

- Desculpe, mas para mim você não é digna de lástima. Enoja-me o que fez.

- E você? E você com Mathias? E com outros, sem dúvida?

Léa protestou:

- Não eram alemães, mas sim dos nossos.

- Isso é muito fácil de dizer. Serei eu culpada de haver guerra entre os dois países?

- Ele não se portou bem.

- Mas Otto me ama.

Léa encolheu os ombros. Françoise prosseguiu:

- Conheço uma porção de moças que têm namorados alemães. A prima Corinne está noiva do comandante Strukell. O tio Luc hesitou um pouco em dar consentimento, mas a visita do pai do comandante, grande dignitário nazista e pessoa chegada a

Hitier, vindo propositalmente da Alemanha para pedir a mão de Corinne, lisonjeou de tal modo o tio que ele acabou por concordar. Além disso, a família do noivo é muito rica e pertence à velha nobreza da magistratura - tudo quanto o tio aprecia.

Corinne teve muita sorte. Se mamãe fosse viva, conversaria com ela, que me teria compreendido e auxiliado.

- Podia falar com Ruth.

- Não me atrevi.

- E tomou Laure por confidente! Uma criança. Não pensou que poderia chocá-la com tais revelações?

- Claro que não. Ela nada tem contra os alemães e fez-me bem desabafar com uma pessoa que não era hostil.

Com a cabeça descaída sobre o peito, ambas permaneceram em silêncio durante muito tempo.

Gostaria tanto de ajudá-la! - disse Léa, por fim.

Eu sei. E estou grata por isso, Léa. Sinto-me menos mal desde que você ficou sabendo. Embora não tenhamos a mesma opinião sobre a maioria das coisas, sei que posso confiar em você

- disse Françoise, beijando a irmã.

- Amanhã vou acompanhar papai a Bordeaux. Ele vai à casa de tio Luc, e talvez a notícia do noivado de Corinne o faça mudar de idéia. Prometo tentar conversar com ele de novo. Mas você deve me prometer que não fará nada que possa magoá-lo.

Prometo, sim - assegurou Françoise, limpando as mãos no vestido.

Léa regressou a Montilac na companhia de um homem abatido. Segundo Luc Delmas, era impossível a anulação da promessa de venda, visto ter sido feita mediante a entrega de elevada indenização que Pierre Delmas não poderia de nenhuma forma pagar. O notário mostrara-se igualmente pessimista quanto às propriedades do ultramar e sua evehtual venda.

A visita ao convento dos dominicanos da Rue de Saint-Genès representara também dura provação para Pierre Delmas. O superior não lhe ocultara o que pensava de Adrien: considerava-o terrorista, traidor e apóstata. Segundo dissera, achara-se no dever de informar a sede, em Paris, esperando que esta comunicasse a Roma os atos desse irmão desencaminhado. Garantiu não saber onde Adrien se encontrava nem desejar sabê-lo. Por suas atitudes, o dominicano, segundo ele, desligara-se da comunidade católica. Era indigno de pertencer à Ordem de São Domingos e não passava de um ex-padre. Orava por ele diariamente, pedindo a Deus que reconduzisse ao bom caminho aquela ovelha perdida. Léa deixara o convento, enojada. A notícia do noivado de

Corinne fora recebida por Pierre Delmas com desprezo e indiferença. As palavras de Luc arrancaram- no por momentos de tal atitude:

- Devia aceitar o casamento de Françoise com o capitão Kramer. É de tão boa família como meu futuro genro.

Pierre Delmas levantara-se nesse instante para retirar-se, respondendo simplesmente:

- Não falemos mais nesse assunto. Até logo.

Françoise não saberia dizer quantas vezes percorrera a centena de metros que separava a casa da estrada, enquanto esperava a chegada do pai e da irmã. Dez? Vinte vezes? A hora do último trem vindo de Bordeaux já se passara há muito. Já há muito tempo deveria ter surgido no cimo da encosta, em frente da entrada da propriedade, a charrete de Chombas, que fazia serviço de táxi entre Langon e Verdelais. "E se resolveram dormir em Bordeaux?", pensou Françoise. Não agüentaria outra noite de insônia e de incerteza. Desde que Otto partira, nunca sofrera tanto com sua ausência. E já suportara tanta coisa por causa daquele amor! Desprezo por parte dos colegas do hospital, do pai e de Léa, a piedade de Camilie, os ares trocistas de Fayard, a vergonha dos encontros clandestinos, o medo de ser descoberta... Tudo aquilo era duro demais. Mostrara-se audaciosa enquanto o amante estivera junto dela, mas agora, sem ele, não passava de uma garota tímida.

Sobressaltou-a o som das rodas da charrete. Como criança apanhada em falta, Françoise escondeu-se atrás do tronco de um dos plátanos enormes que bordejavam a aléia. Ao avistar o pai, compreendeu que estava tudo perdido. Pierre Delmas descia do veículo amparado por Léa e começou a caminhar com passos pesados e hesitantes e a cabeça baixa. Françoise apoiou a testa na casca do plátano; notou a carreira atarefada de duas formigas e reviu-se, bem pequena ainda, escondendo-se atrás daquela mesma árvore para surpreender o pai em sua volta do trabalho ou de algum passeio. Recordou-se da alegria que sentia ao ouvi-lo:

- Hum... aqui cheira a carne humana. Acho que há uma menina escondida não muito longe. Vou procurá-la para comê-la .

Não, papai! Isso não, papai! - gritava ela então, saindo do esconderijo e lançando-se em seus braços estendidos.

Tudo aquilo terminara agora. . . Amanhã ou depois de amanhã, o mais tardar, partiria.

No dia seguinte, Léa foi a Caudrot, em busca da correspondência. Havia uma carta na estação dos correios, para ser enviada a La

Réole, para a casa dos Debray. Encontrou-os agitados e inquietos.

- Poderá ir esta noite ou amanhã a Bordeaux? - perguntou a sra. Debray a Léa.

- Não sei. Estive lá ontem com meu pai. Preciso arranjar um pretexto.

Então, arranje-o. Dele dependem as vidas de muitas pessoas de uma das organizações. Vá ao número 34 do Cours de Verdun, ao escritório de seguros de André Grand-Clément. Diga-lhe que o patê de fígado de Léon, das Landes, não é de boa qualidade. Ele responderá que já sabe e que ele mesmo e a mulher ficaram intoxicados depois de o comerem. Então, informe-o de que foi até lá por causa da apólice de seguro que seu pai deseja fazer. Grand-Clément vai mandá-la entrar no escritório; entregue-lhe, então, estes papéis. São contratos de seguro falsos, onde ele achará as nossas informações. Depois de alguns instantes, diga-lhe que não se sente bem e quer tomar um pouco de ar. Grand-Clément irá acompanhá-la. Uma vez na rua, informe-o de que o comissário Poinsot anda no seu encalço e que se ainda não o prendeu foi por conselho do tenente Dohse das ss, que sem dúvida, conseguiu infiltrações na organização e só espera dispor de elementos completos para dar o golpe. Diga-lhe ainda que não hesite em prevenir certas pessoas para se porem a salvo. Compreendeu bem? - perguntou a sra. Debray.

Léa repetiu as instruções.

- Perfeito. Quanto mais cedo for a Bordeaux, melhor.

- Tentarei apanhar o trem das dezoito horas. Esse Dohse não é o oficial que interrogou Camilie?

- Ele mesmo. É um indivíduo inteligente e temível, com faro de cão policial; nunca desiste de uma pista. É possível que alguém continue a espionar Camilie por ordem dele. Seja muito prudente. Aliás, para maior segurança, um dos nossos amigos irá guiá-la na travessia da linha de demarcação, através do Bois de la Font de Loup.

- Mas eu sou conhecida dos alemães de Saint-Pierre, e se não me virem voltar, vão estranhar - protestou a moça.

- Se lhe fizerem perguntas quando tornar a passar a linha, diga-lhes que a atravessou em Saint-Laurent-du-Bois, onde foi visitar uma amiga - recomendou a sra. Debray. - Farei com que se lembrem da sua estada em Saint-Laurent.

- Assim está bem.

- Devo ter-me enganado a seu respeito - observou a sra. Debray com um sorriso, depositando um beijo no rosto da jovem.

Talvez, minha senhora. Mas será tão importante? - respondeu Léa.

- Para mim, é. Recebemos ontem notícias de seu tio, que nos incumbiu de anunciar à sua tia Bernadette Bouchardeau que o filho Lucien está com ele.

- Oh, que bom! Gosto muito desse primo e receei que algo tivesse lhe acontecido. Tio Adrien disse mais alguma coisa?

Não - garantiu a sra. Debray. - Bem, está na hora de partir. Passe por Labarthe, onde o ferreiro a espera. Ele a conhece e a ajudará a atravessar a linha de demarcação sem problemas. Faça exatamente o que ele lhe indicar e tudo correrá bem. Ele irá com você até Saint-Martin-de-Grave. Depois disso, você já conhece o caminho. Até logo, minha filha. Que Deus a abençoe.

- Até logo, sra. Debray.

Marido e mulher ficaram a vê-la afastar-se na bicicleta azul, perguntando a si mesmos se teriam o direito de arriscar a vida daquela moça tão bonita e tão estranha.

Quando Léa e o passador chegaram à mata de Manchot, ele lhe fez sinal para que se camuflasse o melhor possível juntamente com a bicicleta. Ele mesmo escondeu a sua sob as samambaias. Através de bosques e de vinhedos, atingiram, por fim, a Estrada Federal 672, que delimitava a fronteira entre a zona livre e a zona ocupada. No lugar designado por Maison-Neuve, a estrada estava deserta. O ferreiro chamou Léa com um gesto amplo, e atravessaram a linha sem obstáculos. Montaram ambos na bicicleta de Léa, prosseguindo até Saint-Martin-de-Grave. Depois separaram-se na encruzilhada do Moulin. Em Mouchar, um pneu esvaziou-se e Léa, cheia de raiva, viu-se obrigada a fazer a pé o percurso restante.

Camille brincava com o filho no prado diante da casa. O menino correu em direção a Léa, rindo, de braços estendidos. A moça atirou a bicicleta ao chão e pegou a criança.

- Bom dia, Charlie. Bom dia, meu queridinho. Ai, está me machucando!

O menino apertava-a com toda a força de seus bracinhos. Sorridente, Camille avançou para eles.

- Charles gosta muito de você - comentou. - E eu deveria estar louca de ciúmes.

Envolvia-os num olhar cheio de amor e de tal modo confiante, que Léa se sentiu pouco à vontade.

- Promete que se me acontecer qualquer coisa cuidará dele como se fosse seu filho? - pediu Camille, tornando-se subitamente séria.

- Não diga tolices. Por que razão haveria de lhe acontecer alguma coisa?

- Nunca se sabe. Prometa, eu lhe peço.

Não só se via forçada a proteger a mãe a pedido do pai, como também o filho, a pedido da mãe! E a ela, quem a protegeria?

Encolhendo os ombros, Léa respondeu:

- Prometo. Cuidarei dele como se fosse meu filho.

- Obrigada, Léa. Como foi com a correspondência?

- Tudo bem, mas tenho de ir a Bordeaux. Você poderá inventar um pretexto para Ruth e papai?

- Não se preocupe. Hei de achá-lo.

- Vou mudar de roupa. Empreste-me sua bicicleta. A minha está com o pneu murcho.

- Empresto, claro.

- E diga a tia Bernadette que Lucien está bem e se encontra junto de tio Adrien.

- Que boa notícia! Vou correndo lhe contar.

Ao descer do quarto, chegou aos ouvidos de Léa um som de vozes vindas do escritório do pai. Seu primeiro impulso foi o de entrar. Mas, depois, viu que não teria tempo de apanhar o trem das dezoito horas. Deixou Montillac apreensiva, imaginando sem dificuldade as palavras que Pierre Delmas e Fayard trocavam naquele momento.

Confiou a bicicleta de Camille ao chefe da estação. Tal como habitualmente, passou sem tropeço pelas revistas, policiais e alfandegários.

No compartimento do vagão viajavam apenas duas camponesas. Léa acalmou-se. Perguntava-se onde haveria de passar a noite.

Estava fora de cogitação a casa de tio Luc Delmas. Enfim, decidiria à chegada. Era uma boa notícia o fato de Lucien se encontrar junto ao tio. Talvez Laurent também estivesse com eles. Sentia saudades dele. Tal como senpre acontecia ao evocálo, a imagem de François Tavernier veio interpor-se em seu espírito. Recordou-se das últimas palavras da carta de Sarah Mulstein: "Foi feita para ele tal como ele para você". Que ridículo! Fora feita para Laurent e para mais ninguém. E Françoise, para quem seria? Pobre dela, se de fato amava aquele alemão! Lastimava-a, pois iria sofrer bastante. Que destino a esperaria com um filho nos braços? Era absolutamente necessário convencer o pai a consentir em seu casamento com Otto.

O trem entrou na estação de Bordeaux.

Era ainda uma boa estirada desde Saint-Jean até o Cours de Verdun. Seguiu pelo cais até Quinconces. Por diversas vezes foi abordada por soldados alemães. Procuravam reter aquela bonita moça de vestido curto de algodão branco e cujas sandálias de sola de madeira martelavam as pedras do chão. Alguns deles ofereceram- se mesmo para transportar a maleta de vime, contendo os documentos entregues pelo casal Debray. Nunca um percurso lhe parecera tão longo.

Eram cerca de oito horas da noite quando chegou ao Cours de Verdun. A porta só se abriu após o terceiro toque de campainha. O homem que surgiu no limiar correspondia à descrição fornecida pela sra. Debray. - É o sr. Grand-Clément? - perguntou Léa.

O homem aquiesceu com um gesto de cabeça.

- Boa noite, sr. Grand-Clément. Venho informar-lhe que o patê de fígado de Léon, das Landes, não é de boa qualidade.

Eu sei. Infelizmente, minha mulher e eu ficamos intoxicados depois de comê-lo.

- Gostaria de consultá-lo sobre uma apólice de seguro para meu pai.

- Queira entrar em meu escritório, por favor.

Léa entregou-lhe os papéis, falou que queria tomar um pouco de ar e, uma vez na rua, transmitiu-lhe o recado.

- Agradeça aos nossos amigos esta preciosa informação. Tentarei prevenir os nossos - asseverou o sr. Grand-Clément.

- Tem algo para eles?

- Não. Por agora não. Não se preocupe, senhorita, farei o que for preciso quanto ao seguro de seu pai - rematou GrandClément em tom bem audível.

Perto deles, passavam nesse momento dois homens, aparentemente dois tranqüilos transeuntes aproveitando a doçura da tarde.

- Vá embora - recomendou Grand-Clément. - São policiais do comissário Poinsot.

Léa seguiu em frente, chegando à Place de Tourny. Interrompeu aí a caminhada por algum tempo. Aonde ir? Além de tio Luc, não conhecia mais ninguém em Bordeaux. Desceu as alamedas de Tourny, quase desertas, com a impressão de estar sendo seguida. Chegou assim à Place du Grand Théâtre. Havia mais gente no local, sobretudo militares. Parou em frente da banca de jornais. La Petite Gironde. . . aquele nome de jornal parecia querer dizer-lhe algo. La Petite Gironde... Raphaël Mahl... Le Chapon Pin.. . o diretor... Richard Chapon! Deu um suspiro de alívio. Sabia agora aonde dirigir-se: à Rue de Cheverus.

Soavam nove horas na Catedral de Saint-André quando chegou à sede do jornal. Apareceu o guarda que a atendera na primeira visita.

- O jornal está fechado - informou. Queria falar com o sr. Chapon.

- Não está. Volte amanhã.

- Peço-lhe. . . tenho absoluta necessidade de lhe falar - insistiu Léa, encaminhando-se para a porta que sabia ser a do gabinete do diretor.

Esta abriu-se antes que a jovem tocasse na maçaneta. No mesmo instante, dois homens irromperam pelo saguão.

- Meus senhores, meus senhores, o jornal está fechado! - gritou o guarda, postando-se em frente deles para impedi-los de avançar.

Léa reconheceu os transeuntes do Cours de Verdun. Um dos indivíduos empurrou-a com brutalidade, prosseguindo o avanço.

- Que significa isto, meus senhores? - perguntou Richard Chapon, surgindo no limiar da porta.

- Queremos falar com esta senhorita.

O diretor do La Petite Gironde virou-se para a moça, perguntando:

- Conhece estes senhores?

Léa abanou a cabeça em sinal negativo.

- Nesse caso, peço-lhes que saiam daqui.

- Infelizmente seremos obrigados a levá-la conosco para interrogatório - anunciou aquele que parecia ser o chefe, exibindo um cartão que Richard Chapon examinou com atenção.

- Eu respondo pela srta. Delmas. É minha amiga. Além disso, seu tio, Luc Delmas, é uma pessoa importante na cidade.

- Isso não nos diz respeito. O comissário Poinsot deu-nos ordens, e nós a cumprimos.

- É quase noite. Não podem adiar para amanhã o interrogatório? - perguntou Chapon.

- Lastimo, mas tem de ir conosco agora.

- Muito bem. Nesse caso, vou acompanhá-la. Avise o advogado Delmas de que estou com a sobrinha dele, Dufour.

Não escapou aos jornalistas o gesto de contrariedade dos dois policiais ao ouvirem aquelas palavras.

- Que está esperando, Dufour? Telefone ao advogado Delmas

- tornou a ordenar Chapon.

Só deixou o edifício depois de certificar-se da presença do tio de Léa no outro extremo da linha.

Em frente da porta estava estacionado um Citroén e seu motorista os aguardava. Léa e Richard Chapon sentaram-se no banco de trás, acompanhados por um dos agentes.

Rodaram em silêncio durante alguns momentos pelo emaranhado de ruas sombrias.

- Mas não é este o caminho para o comissariado de Poinsot

- estranhou Richard Chapon.

- Vamos à Avenue du Maréchal-Pétain.

- Ao número 224?

- Sim. Foi para lá que o comissário Poinsot nos ordenou que conduzíssemos a srta. Delmas.

Léa notou o ar preocupado do companheiro.

- Qual é o problema? - perguntou ela em voz baixa.

Chapon não respondeu.

Léa refletia rapidamente: não trazia consigo nada de comprometedor, os documentos estavam em ordem e era plausível a visita a Grand-Clément. Distendeu um pouco os nervos, confortada pela presença de Richard Chapon.

Era tão densa a escuridão que Léa não conseguiu distinguir o prédio no qual a forçaram a entrar. Perto da porta, encontraram um soldado alemão que escrevia, sentado a uma escrivaninha. Ergueu a cabeça à chegada do grupo e perguntou em francês:

- O que é?

- Para o tenente Dohse.

- Muito bem. Vou avisá-lo.

Que significa isto? - perguntou Richard Chapon. - Pensei que fosse o comissário Poinsot quem quisesse falar com a srta. Delmas.

- O tenente Dohse também quer falar com ela.

O soldado voltou.

No fundo do corredor, fizeram-nos entrar em uma sala com duas portas almofadadas de couro preto.

Esperava-os em pé um indivíduo muito alto, de cabelos escuros, com cerca de trinta anos de idade.

- Deixem-nos - ordenou ele, dirigindo-se aos dois policiais. Os homens saíram.

Boa noite, meu caro sr. Chapon. Que aconteceu para que também esteja aqui?

- Não tenho nenhum prazer nisso, pode crer. Preferia estar na cama. Acompanho esta minha amiga, a srta. Delmas, que seus homens disseram querer levar à presença do comissário Poinsot - respondeu Chapon.

- Exato; espero-o de um momento para outro. O pobre comissário anda de tal maneira assoberbado de trabalho que às vezes lhe dou uma ajuda. Mas sentem-se, peço-lhes.

Depois de uma pausa, Dohse prosseguiu:

- Ë então sobrinha do célebre advogado! Meus cumprimentos; eis uma pessoa que sabe cumprir o dever! Uma das suas primas não está prestes a se casar com um dos nossos mais brilhantes oficiais? Nada melhor para concretizar a união entre os dois países, não lhe parece? Estou certo de que também a senhorita é boa patriota, não é verdade?

- Evidentemente - concordou Léa, sorrindo, apesar do medo que crescia nela.

- Não duvido. Há muitas jovens como você entre as suas compatriotas. São um precioso auxílio na caça aos terroristas felizmente pouco numerosos - que procuram semear a confusão no país. Mas sentimo-nos recompensados conseguindo manter a ordem e proporcionando sossego aos cidadãos. Foi à casa do sr. GrandClément, sem dúvida, para tratar de assuntos de família.

- Isso mesmo. Meu pai pretende rever algumas apólices de seguro.

- Por certo, ontem, não teve tempo para ocupar-se do assunto ele mesmo - insistiu Dohse.

Instintivamente, Léa reagiu como devia:

- O senhor manda que nos vigiem para saber que meu pai esteve em Bordeaux, ontem?

- Vigiar é uma palavra forte demais. Temos nas estações certo número de agentes nossos que nos assinalam os movimentos de determinadas pessoas.

- Mas por que de meu pai?

- Ele não é irmão do padre Adrien Delmas, que suspeitamos estar a soldo de Londres?

- Também meu tio Luc é irmão de meu pai e, aparentemente, os senhores não exercem qualquer vigilância sobre ele.

Richard Chapon fingiu um ataque de tosse para dissimular um sorriso.

- Seu tio Luc tem-nos dado as máximas garantias de devotamento à Alemanha.

- Não duvido - Léa não pôde impedir-se de responder.

A campainha do telefone retiniu. Dohse atendeu.

- Sim, muito bem. Mandem-nos entrar - ordenou.

Decorridos alguns segundos, entrava no gabinete o comissário Poinsot, acompanhado pelo advogado Delmas. O tenente das ss acolheu este último com uma atitude deferente; ao policial, dispensou apenas notória condescendência.

- Pode crer, doutor, que lastimo muito tê-lo incomodado, O comissário Poinsot explicou-lhe, sem dúvida, que interrogamos sua sobrinha apenas na seqüência de um inquérito de rotina.

- De fato, explicou. Mas acho inadmissível que isso aconteça a um membro de minha família. Como pode supor que esta criança se interesse por outras coisas além de vestidos e de chapéus? - perguntou Luc Delmas.

- Infelizmente, doutor, as moças de hoje mudaram bastante

- comentou o comissário.

- Não as de minha família, sr. Poinsot - volveu o advogado com secura.

- Desculpe-me se não o cumprimentei, Chapon. Mas por que também se encontra aqui?

- Não podia permitir que a srta. Delmas viesse sozinha com policiais desconhecidos.

- Fico-lhe muito grato. Mas por que foi ela procurá-lo nesse começo de noite? - perguntou o comissário.

- Não tive oportunidade de lhe perguntar. Seus homens não me deram tempo.

- Que foi fazer no jornal do sr. Chapon, senhorita?

Léa refletia com rapidez acerca da resposta a dar, uma resposta satisfatória.

- Fui pedir-lhe emprego - afirmou.

- Emprego?! - disseram Luc Delmas e o comissário Poinsot ao mesmo tempo.

- Sim, emprego. O sr. Chapon disse-me certa vez que poderia contar com ele se acaso tivesse necessidade de qualquer coisa. E como preciso trabalhar.

- Mas por quê? - perguntou o tio, admirado.

- Para ajudar papai.

Os quatro homens entreolharam-se.

- Sei das dificuldades financeiras de seu pai, mas acho que seu salário pouco adiantaria. Seja como for, eu lhe dou os parabéns pela iniciativa.

- Sensibiliza-me muito a sua confiança, Léa - disse Chapon.

- Talvez dentro de algum tempo eu possa oferecer-lhe algo.

- Bem, meus senhores, julgo estarem satisfeitos com as respostas de minha sobrinha - rematou Luc Delmas. Já se faz tarde e, amanhã bem cedo, terei um julgamento no tribunal. Vamos, Léa, os seus primos a esperam. Quer que o deixe em algum lugar,

Poinsot?

- Obrigado, doutor, mas tenho ainda duas ou três coisas para tratar com o tenente. E, mais uma vez, desculpe o contratempo.

Até logo, srta. Delmas. Até logo, sr. Chapon.

O tenente das ss, Friedrich-Wilhelm Dohse, inclinou-se com uma saudação de despedida.

- Até logo, srta. Delmas. Cuidado com as pessoas com quem se relaciona - advertiu ele.

Sem responder, Léa despediu-se esboçando um aceno de cabeça e deixou o gabinete do oficial, seguida de Richard Chapon e de

Luc Delmas.

Quando entraram no automóvel do advogado, o diretor do La Petite Gironde observou:

- O doutor tem sorte em poder andar ainda de automóvel. Há muito que não tenho um.

Luc Delmas não respondeu. Richard Chapon prosseguiu:

- Escapamos de boa! Sem a sua presença, as coisas não teriam se passado assim.

- Mas por quê, se Léa não era culpada de nada? - disse Luc Delmas, admirado.

- Com essa gente, as pessoas têm sempre alguma culpa.

O tio de Léa não discutiu.

- Quer que o deixe no jornal? - perguntou.

- Sim, se isso não o incomoda.

Não trocaram mais palavras até chegarem à Rue de Cheverus.

- Até logo, Léa. Pode contar comigo - assegurou Richard Chapon ao despedir-se.

- Até logo, sr. Chapon. E obrigada por tudo.

Tio e sobrinha permaneceram silenciosos até a residência de Luc Delmas.

Ao entrarem em casa, o advogado disse a Léa:

- Não faça barulho. Venha a meu escritório.

Chegara o tão temido momento das explicações.

Léa entrou no gabinete do tio. As paredes achavam-se revestidas de livros de encadernações severas. Durante alguns instantes, o tio andou de cá para lá na sala, com as mãos atrás das costas. Por fim, parou em frente da jovem, que se mantivera de pé.

- Que fique tudo bem esclarecido entre nós - começou ele.

- Fui buscá-la apenas para evitar um escândalo que poderia refletir-se em nós. Como ovelha negra da família, já chega seu tio

Adrien. Para seu bem, espero que o tenente Dohse e o comissário Poinsot tenham engolido a comédia de má qualidade que você representou com Richard Chapon.

Apesar do ódio e do desprezo que o tio lhe inspirava, Léa sentiu que deveria convencê-lo também da sua inocência.

- Mas, tio, não foi nenhuma comédia! - garantiu a moça.

- É verdade que ando à procura de trabalho. Já não nos resta nenhum tostão em casa.

Disse as frases com tamanha sinceridade que Luc Delmas pareceu abalado.

- E crê verdadeiramente que isso bastaria para salvar Montillac?

Léa não teve de se esforçar para que seus olhos se enchessem de lágrimas.

- Claro que não, mas ajudaria um pouco. A próxima colheita de uvas promete ser muito boa.

- Por que você se obstina em conservar aquela terra? - perguntou Luc Delmas num tom mais brando.

- O senhor também não é muito apegado à velha casa e aos pinheiros de Marcheprime, tio?

Pelo modo como Luc Delmas a olhou, Léa compreendeu que acabara de tocar a corda sensível. Aquele homem, que sempre parecera a todos preocupado em aumentar sua fortuna, conservava com amor uma modesta casa de pastores rodeada de bosques, que herdara de sua ama-de-leite.

- Sim, compreendo rematou ele, renunciando à luta. - Agora venha deitar-se.

Léa teve um gesto de surpresa, e Luc Delmas comentou:

- Seja como for, não pensava que iria pô-la na rua, não?

Já bem tarde, sua prima Corinne, muito fresca, cuidadosamente penteada, envergando um vestido de seda vermelha e azul, foi acordá-la. Trazia a bandeja com o desjejum. Léa não pôde acreditar no que seus olhos viam: doce, pão branco, manteiga e maravilha das maravilhas! - um brioche e um croissant. Corinne sorriu diante da expressão extasiada de Léa.

- Não pense que é assim todos os dias - esclareceu ela. - Graças às relações de papai, não nos falta nada. Mas só temos croissants duas vezes por semana.

E, ao que parece, cheguei na data certa - comentou Léa. com a boca cheia.

- É verdade. Mas não coma tão depressa. Vai lhe fazer mal.

- Não pode entender o que sinto. É tão bom! E este café! Café de verdade! Como conseguem?

- Eu lhe dou um pacote. É de um cliente de papai, cujos cargueiros fazem as rotas da América do Sul, das Antilhas e não sei qual país. Sempre que um dos barcos chega, ele nos abastece de açúcar, café, chocolate e tecidos.

- Tecidos?!

- Sim. Os tecidos nos dão oportunidade de fazer trocas.

- Estou vendo que estão bem organizados. Atualmente, isso é necessário.

Corinne pronunciara a frase numa vozinha áspera de burguesa preocupada com o bom andamento de sua casa. "Dentro de alguns anos, será a cópia fiel da mãe", pensou Léa, lamentando antecipadamente seu noivo alemão.

- É muito tarde. Devia ter-me acordado mais cedo.

- Papai telefonou a Montillac para avisar que você está aqui

- informou Corinne.

- Agradeça-lhe por mim, depois. Pegarei o trem das quatro horas.

- Então não pode ficar até amanhã? Gostaria tanto que conhecesse meu noivo!

- Não é possível. Tenho de voltar sem falta. Fica para uma outra vez.

- Não vou insistir. Papai me disse que você estava com muitos problemas. Mas faço questão que me acompanhe à costureira.

Vou provar o vestido de casamento. Não pode me recusar isso.

Léa viu chegar com alívio a hora da partida do trem. Na mala, levava açúcar, café e três cortes de um belo tecido. Corinne fizera questão de acompanhá-la à plataforma de embarque.

Partiu sem rever Luc Delmas.

Ultrapassou a propriedade de Prioulette. Mais um esforço e chegaria em casa, agora livre da presença de alemães. Pôs-se a imaginar a alegria dos moradores de Montillac no instante em que abrisse a mala.

Sentadas em redor da mesa da cozinha, Camille, Laure, Bernadette Bouchardeau, Ruth e a velha Sidonie pareciam abatidas.

- Léa! - gritou Laure, lançando-se nos braços da irmã.

- Até que enfim, você chegou - suspirou Ruth, que continuava sentada, e estava com o rosto vincado.

- Que infelicidade! Que vergonha! - choramingava Bernadette, com o rosto inchado de tanto chorar.

- Pobre menina - murmurou Sidonie, com as mãos sobre o ventre.

nada.

Léa voltou-se para Camille, que havia se levantado, sem dizer

- Françoise foi embora.

- Embora?! Quando? Para onde?

- Ontem à noite, creio. Mas só descobrimos esta manhã. Deixou uma carta para seu pai e outra para você - informou a governanta.

- Onde está ela? - perguntou Léa.

Ruth tirou um envelope amarrotado do bolso do vestido e lhe entregou.

"Irmãzinha:

Vou encontrar Otto; sofro demais longe dele. Espero que me compreenda. Sei que causarei enorme desgosto a papai, mas conto com você para consolá-lo. Diga a Laure que a amo com ternura e que me perdoe o mau exemplo. Diga a Ruth que sentirei também muita saudade dela. Dê um beijo em tia Bernadette. Que Camille reze por mim; ela conhece meu sofrimento melhor do que todas vocês. Fale algumas vezes da pequena Françoise à boa Sidonie e tome um licor de cássis à minha saúde.

Deixo-lhe um pesado encargo. Mas você tem energia suficiente para suportar tudo. Aconteça o que acontecer, você enfrentará isso com orgulho e coragem. Nunca lhe dice, mas admirei-a muito quando você levou em frente a sobrevivência da casa e quando estragava as mãos extraindo da terra nosso alimento. As poucas coisas que eu levava e que melhoraram nosso cotidiano tinham um gosto amargo perto de seus legumes.

Uma outra coisa: sejam prudentes, você e Camille. Quero que saibam que diversas cartas anônimas chegaram às mãos de Otto, garantindo que vocês passavam correspondência da zona livre para a zona ocupada, conviviam com os terroristas e ajudavam ingleses a cruzarem a linha divisória. Otto rasgou essas cartas, mas seu sucesso pode muito bem dar atenção a novas denúncias. Devo acrescentar que aprovo o que vocês fazem. Isso pode parecer surpreendente, vindo de mim. Mas, se é verdade que amo um alemão, não o é menos que amo meu país.

Escreva-me para a posta-restante do 8 Arrondissement. Informarei quando tiver um endereço para correspondência. Vai me escrever, não é? Não pode me deixar sem notícias de papai.

Não me condene, minha querida. E perdoe-me por deixá-los desta maneira. Mas não tive coragem para despedir-me. Um beijo cheio de ternura."

Terminada a leitura da carta de Françoise, Léa sentou-se, com os lábios tremendo e o olhar distante.

- Françoise partiu para Paris - anunciou.

- Foi encontrar seu boche - resmungou Bernadette.

O olhar que Léa lançou à tia silenciou seus comentários. Depois, a preço de enorme esforço, a jovem conseguiu transmitir a cada uma as frases que lhes diziam respeito.

- Como papai reagiu? - perguntou Léa a Camille.

- A princípio, mostrou-se muito encolerizado. Em seguida, foi sentar-se no banco do caminho, abatido; ficava olhando para a estrada de tempos em tempos como se esperasse a volta de Françoise. Depois perguntou por você. Então seu tio Luc telefonou;

o telefonema foi bastante demorado. Não sei o que disseram. Após desligar, seu pai pegou o chapéu e a bengala e partiu em direção ao refúgio. Não voltamos a vê-lo desde então. Sidonie disse-nos que o viu no cemitério de Verdelais, rezando em frente da campa de sua mãe. Aproximou-se e falou-lhe. Mas ele olhou-a como se não a reconhecesse e fez-lhe sinal para se afastar.

Dava a impressão de ter perdido o juízo novamente.

- E depois?

- Depois Laure foi a Verdelais, mas ele já não estava lá - prosseguiu Camille.

- Procurei na igreja, em casa de pessoas conhecidas e voltei pelo refúgio, mas não o encontrei - explicou Laure.

- Temos de encontrá-lo antes que anoiteça - disse Léa. - Vai chover à noite, com certeza.

A tempestade desabou às oito da noite, no instante em que Léa voltava para casa. Ninguém conseguira descobrir vestígios de

Pierre Delmas. O dr. Blanchard, avisado do desaparecimento de seu velho amigo, apresentara-se em Montillac, assim que pudera.

Fayard esquadrinhara toda a vinha, com seu cão, e voltara encharcado, ao cair da noite. Regressaram também de mãos vazias alguns vizinhos que participavam das buscas. Todos se secavam na cozinha, em frente do fogo, trocando comentários e bebendo o vinho quente oferecido por Ruth. O pequeno Charles, muitíssimo excitado pelo movimento incomum, ia de uns para outros, chorando. Cerca de meia-noite, todos voltaram para suas casas, exceto o dr. Blanchard.

Léa recusou-se a ir para a cama. Voltou a partir para os campos nas primeiras horas da manhã. Percorreu todos os lugares onde o pai e ela costumavam passear nos seus tempos de criança, sem nenhum indício. Cansada, sentou-se na grama úmida, aos pés do cruzeiro de Borde. O céu cinzento, agitado por nuvens ainda mais sombrias, esmagava a paisagem. Ao longe, no entanto, na direção das Landes e do mar, abria-se no horizonte uma estreita faixa de claridade. "O tempo vai melhorar", disse Léa consigo, recostando-se à cruz e cochilando.

Despertou-a o frio. Afinal, o tempo não mudara; desaparecera até aquela claridade longínqua e o céu tornara-se francamente ameaçador. Começou a chover. Léa deichou a bicicleta e desceu a pé o caminho lamacento. Tal como na véspera à noite, a cozinha estava cheia de homens de roupas encharcadas. Estavam silenciosos. Silenciosos demais. Teria de ser sempre ali, naquele lugar, naquela cozinha quente e acolhedora, que lhe davam as notícias que mais temia? Olhou em volta - as cabeças estavam baixas e descobertas.

Feriu-lhe o coração uma dor terrível, subiu-lhe aos olhos uma torrente de lágrimas, que se represou sob as pálpebras. Fendeu-lhe a garganta um grito, um grito que não conseguiu transformar-se em som. Chamou então pelo pai com uma voz infantil.

O cadáver de Pierre Delmas fora descoberto pelo padre de Verdelais, enroscado num canto escuro de uma das capelas do refúgio, onde, sem dúvida, se abrigara da chuva. Seu coração cansado e roído de desgosto cessara de bater no meio da noite.

 

Capítulo 26

O sofrimento de Léa, mudo e sem lágrimas, inquietava Ruth e Camille.

Contemplou durante muito tempo o cadáver estendido que o dr. Blanchard fizera transportar para o divã do escritório, Foi ela quem alinhou sobre a fronte gelada uma mecha de cabelos grisalhos, observando com uma espécie de indiferença aquilo que ali estava e que outrora fora o pai. Quem era aquele velhinho ressequido e de mãos frágeis cujo corpo sem vida jazia ali? O pai era alto e forte. Quando a abraçava, Léia sentia-se protegida contra todas as vicissitudes do mundo; nada de mau poderia lhe acontecer. A mão dela desaparecia por completo dentro da do pai, uma mão cálida, envolvente, tranqüilizadora. Caminhar ao seu lado por entre as vinhas era partir em aventura, à conquista do universo. Pierre Delmas falava-lhe da terra, tal como Isabeile lhe falava de Deus. Para o pai, a terra e Deus confundiam-se na mesma e única verdade. Em Léa, apenas sobrevivera a fé na terra;

essa nunca a traíra nem a abandonara. Quando toda a família sentira fome, essa mesma terra recompensara profusamente o seu labor. Tal como a filha, também, antes, Pierre Delmas extraíra a subsistência dos familiares do solo generoso de Montillac.

Ambos pertenciam à mesma raça. Ali, diante daqueles tristes despojos, Léa soube então que a imagem do pai, em pé, no meio dos seus vinhedos, iria perdurar para sempre.

Com imensa calma, instruiu Ruth e tia Bernadette em relação ao funeral. Telefonou a Luc Delmas e a Albertine e Lise de

Montpleynet, pedindo-lhes que transmitissem a notícia a Françoise, caso estivessem com ela.

Encarregou Camilie de avisar amigos e vizinhos e de falar com o pároco de Verdelais.

Depois, subiu ao quarto para trocar de roupa. Tornou a descer envergando um desses aventais pretos usados pelas mulheres idosas, de fácil aquisição nos mercados. Retirou do porta-chapéus do vestíbulo o chapéu de palha, cujas fitas atou debaixo do queixo - o sol havia voltado.

- Vai sair? - perguntou Ruth.

- Sim. Tenho de ir a La Réole.

- Num momento como este...? - estranhou a governanta.

- Sim.

Camille avançou para ela, perguntando:

- Não quer que vá com você?

- Não, obrigada. Você faz falta aqui. Vou ao correio e informar os Debray sobre o que aconteceu em Bordeaux. Vou lhes pedir também que entrem em contato com o tio Adrien.

Léa afastou-se em sua bicicleta azul.

Todas as pessoas que puderam - parentes, amigos ou vizinhos

- vieram juntar-se ao desgosto dos moradores de Montillac. Apesar do risco de serem presos, compareceram também Laurent d'Argilat e Adrien Delmas, este último envergando seu longo hábito branco. Acompanhava-os Lucien Bouchardeau, para grande alegria da mãe. Faltou apenas Françoise. Quando as duas tias, vestidas de luto fechado, comunicaram à sobrinha, na manhã da partida para Bordeaux, que iam ao funeral do pai e lhe disseram esperar que as acompanhasse, Françoise respondera que nada no mundo a faria ir, pois não queria ver-se acusada da morte dele. Desfizera-se em lágrimas.

Adrien fez questão de oficiar a missa, assistido por Luc e por Laurent; durante a cerimônia, os três homens esqueceram-se de tudo quanto os separava.

O tenente Dohse e o comissário Poinsot foram avisados pelos espiões da presença, em Verdelais, de dois terroristas muito procurados. Preparavam-se para proceder à detenção quando lhes chegou de Paris ordem para não atuarem: Luc Delmas exigira do futuro genro, o comandante Strukell, que obtivesse do pai a garantia de não agirem enquanto ele mesmo estivesse em

Montillac.

Sentada na primeira fila com as mulheres da família, Léa, por detrás do véu de luto, deixava-se embalar pelas vozes monótonas dos meninos do coro da basílica. Censurava-se a alegria sentida ao ver Laurent, alegria que a fizera esquecer, por instantes, a dor da perda do pai. Na véspera, quando Laurent a tomara nos braços e a apertara contra si durante longos instantes, experimentara profundo sentimento de paz e de felicidade. Comparecera ali por amor a ela, arriscando a vida. Léa estava tão segura, tão cheia desse amor, que sequer sentiu ciúmes ao vê-lo subir as escadas com Camille para se deitarem. Quando se recolheu ao quarto, adormeceu imediatamente num sono sem sonhos. E, na manhã seguinte, nem o rosto resplandecente de Camille conseguiu ofuscar essa tranqüilidade.

Pouco a pouco, Léa tomava consciência de que nada mais a retinha em Montillac. Para que lutar pela conservação de uma terra da qual seu próprio pai se distanciara? Laure aspirava apenas a viver na cidade. Além disso, a venda da propriedade iria lhes permitir comprar uma casa em Bordeaux ou em Paris e viver folgadamente durante alguns anos. Havia também outra hipótese: arrendar as vinhas e manter a casa. Iria se aconselhar com o tio dominicano e com Laurent. Françoise teria de dar igualmente sua opinião sobre o assunto; era a mais velha e atingira a maioridade um mês antes. Resolvido esse problema, nada a impediria de juntar-se a Laurent na luta que ele travava. Viveria ao seu lado, compartilhando os mesmos perigos, os mesmos combates. Incapaz de rezar, Léa erguia- se, ajoelhava-se e sentava-se maquinalmente, acompanhando os movimentos da assistência.

De súbito, sem nenhum motivo aparente, o coração da jovem começou a bater com mais força. Sentiu uma onda de calor envolver-lhe a nuca e os ombros. Assaltou-a o desejo irresistível de virar- se para trás. Voltou-se, então. Lá ao fundo, junto ao pilar, na sombra. . - Teve a estúpida sensação de que o coração lhe escapava do peito. Desviou a vista, obrigando-se a fixá-la no altar. Depois voltou-se de novo bruscamente. Não era um fantasma; lá estava, de fato, François Tavernier em carne e osso, olhando em sua direção. Por que sentia, de repente, que os seios a incomodavam? Por que aquele arrepio no interior do ventre?

Camille, sentada junto dela, colocou-lhe a mão no braço, Léa libertou-se com um movimento de contrariedade. Baixou a cabeça e fechou as pálpebras, tentando assim conter o tumulto que tomava todo o seu ser. Com extraordinária rapidez, desfilavam em seu cérebro as imagens dos momentos mais intensos, mais loucos, mais deliciosos e mais impudicos vividos com os três homens que tinham sido seus amantes. Tentava em vão repelir essas lembranças, vergonhosas, chocada pela indecência dos pensamentos diante dos restos mortais do pai. - - A cerimônia chegara ao fim.

Depois pareceu-lhe interminável aquele costume cansativo da apresentação de condolências. Nas alamedas do pequeno cemitério, muito íngremes e esburacadas, o cortejo dos acompanhantes dispersava-se agora sob um sol que feria a vista. Léa sentia o suor correndo-lhe pelas costas, colando à sua pele o vestido de grossa seda preta. Sua cabeça girava. Teve vontade de deixar-se cair dentro da cova aberta e de deitar-se em cima da urna de madeira clara de carvalho. Devia ser fresco sob a terra.

Vacilou. Reteve-a um braço firme. Era agradável sentir a força que se desprendia daquela mão, passando para ela. Fechando os olhos, deixou-se conduzir, apoiada ao homem. Percebeu à sua volta um movimento de inquietação e o murmúrio de palavras ansiosas enquanto a arrastavam para a sombra das árvores do caminho. Repousou a cabeça no ombro sobre o qual sabia poder amparar-se sem receio.

Que doçura a dele ao lhe tirar o chapéu que a incomodava, ao erguer-lhe os cabelos molhados de suor na raiz, ao desabotoar-lhe os três primeiros botões do vestido! Teria acompanhado aquele homem se ele lhe dissesse: "Levo-a comigo".

- Em que está pensando, Léa?

- Em partir - respondeu a jovem, endireitando-se.

François Tavernier fitou-a como se quisesse desvendar tudo quanto ela sentia nesse instante.

- Por que partir?

- Coisas demais me fazem lembrar daqueles que já não estão mais aqui.

- Deixe que o tempo resolva por si, Léa. Também eu conto que ele me ajude a cumprir a minha própria tarefa.

- Que tarefa?

- É ainda muito cedo para falar dela.

Camille, Adrien e Ruth aproximaram-se.

- Vamos voltar, Léa. Vem conosco? - perguntou Camille.

Depois voltou-se para François Tavernier e beijou-o, dizendo:

- Fiquei muito feliz por tornar a vê-lo, sr. Tavernier.

- Também eu, sra. d'Argilat. Bom dia, padre.

- Bom dia, Tavernier. Obrigado por ter vindo. Como soube?

- perguntou Adrien Delmas.

- Pelas senhoras de Montpleynet. Não pensei que estivesse aqui. Nem o sr. d'Argilat.

- Ambos devemos às relações de meu irmão Luc Delmas a circunstância de ainda não termos sido presos. Mas será muito imprudente nos demorarmos aqui. Partiremos à noite.

- Já! - exclamou Léa.

- Corremos perigo ficando mais tempo. Vamos voltar a Montillac, onde terei uma conversa com tio Luc e com Fayard, a fim de discutirmos a maneira de proteger seus direitos - explicou o dominicano.

Laurent veio ao encontro do grupo e apertou a mão de François Tavernier.

- Sinto-me feliz em poder agradecer-lhe tudo o que fez por minha mulher, Tavernier - disse Laurent. - Sou seu devedor para sempre.

- Nada de exageros. Você teria feito a mesma coisa.

- Sem dúvida. Mas isso não me impede de estar reconhecido.

François Tavernier cumprimentou Laurent, não sem certa ironia - segundo pareceu a Léa. Depois, virando-se para a moça, perguntou:

- Permite que a acompanhe?

- Se quiser.

Apoiada ao braço de François, Léa desceu os degraus até a praça da igreja, onde estavam estacionados os automóveis e as charretes

Instalou-se no Citroén de Tavernier, juntamente com Adrien, Camilie e Laurent.

Em Montillac, esperava-os um lanche servido no pátio, à sombra das tílias. Léa, preocupada com outros assuntos, deixou que

Camille, a irmã, Ruth e as tias se incumbissem dos convidados. De copo na mão, desceu até o terraço.

Dois homens seguiram com os olhos a silhueta esguia, vestida de preto, que se distanciava pelo relvado. Um deles, François

Tavernier, logo desviou o olhar, aproximando-se do dominicano.

- Não se importa de me servir de cicerone numa visita às adegas, padre Delmas?

- Com todo o prazer. Mas olhe que são bem modestas se comparadas às dos grandes produtores da região.

Os dois homens afastaram-se em direção à porta baixa que dava para o pátio.

- Estaremos à vontade aqui? - perguntou François Tavernier em voz baixa. - Preciso lhe falar.

Em pé, apoiada à mureta do terraço, Léa seguia com os olhos a progressão à distância de um trem que atravessava o Garonne.

- Camille está preocupada com você, vendo-a sozinha - observou-lhe Laurent com ternura.

Foi ela quem o mandou? - perguntou Léa, virando-se. - Preferia que você tivesse me procurado por iniciativa própria. Não tem nada para me dizér?

- De que serviria isso? É preferível esquecer.

- Por que razão haveria eu de esquecer? Não sinto vergonha. Amo-o, e você também me ama - respondeu Léa, pegando em seu braço e o arrastando para o bosquezinho, longe das vistas no pátio.

- Lamento muito o que aconteceu - garantiu Laurent. - Agi mal em relação a você e em relação a Camille. Não compreendo como fui capaz de.

- Foi capaz porque, tal como eu, você queria. E também porque me ama, embora se proíba. Você me ama, está ouvindo? Você me ama.

Léa sacudia Laurent ao mesmo tempo que pronunciava essas palavras. Os cabelos presos num rolo sobre a nuca caíram-lhe pelos ombros, conferindo-lhe aquele aspecto selvagem e fogoso ao qual Laurent tinha tanta dificuldade de resistir. Cativavam-no os olhos cheios de fulgor, atraía-o a boca entreaberta. Os braços dela enlaçavam-no, o corpo colava-se ao seu, esfregando-se nele com frenesi.

Abandonando a luta desigual, Laurent baixou os lábios, oferecendo-se.

Léa saboreava a vitória, tentando prolongar a emoção.

De repente, pareceu-lhe ouvir um ruído de passos no saibro da alameda. Sem querer, o seu corpo se retesou, e Laurent afastou-a bruscamente. François Tavernier surgia na curva do caminho.

- Ah, está aí, Laurent! Sua mulher o está chamando.

- Obrigado - balbuciou Laurent, corando como uma criança em falta.

Léa e Tavernier olharam-no afastar-se em grandes passadas.

- Decididamente, você tem de estar sempre onde não é chamado - censurou-o Léa.

- Lamento muito, minha querida amiga, pode crer. Lamento muito ter interrompido tão terno idílio - respondeu François, insolente. - Mas eu me pergunto o que uma moça como você pode achar num homem como ele.

Você está se repetindo. Que tem a dizer dele? Laurent é uma pessoa impecável.

- É perfeito. Ninguém mais perfeito do que ele. Mas que quer? Não a vejo em companhia de um homem perfeito.

- Possivelmente, vê-me, de preferência, na companhia de alguém como você.

- De certo modo, sim. Você e eu somos muito semelhantes. Temos um curioso sentido da honra, o qual pode levar-nos a atos de coragem absurdos e a achar honesto aquilo que nos convém. Tal como eu, também você é capaz de tudo para obter o que quer. O desejo, em si, será sempre mais forte do que a inteligência e a sua prudência instintiva. Você quer tudo, Léa, e de imediato. É uma criança mimada que não hesita em apossar-se de brinquedo alheio, no caso, o marido de outra mulher. Não obstante, uma vez em sua posse, esse brinquedo lhe parecerá menos sedutor.

- Não é verdade - protestou Léa.

- Claro que é. Seria mais fácil deixar que lhe arrancassem a língua, porém, do que admitir tal coisa. Mas que importância tem o caso, afinal? Não interessa que você pense que ama o sr. d'Argilat. Isso passa.

- Não passará nunca!

François Tavernier fez com a mão um gesto insolente e desenvolto, prosseguindo: - É preferível falarmos de coisas mais agradáveis. Devia passar algum tempo em Paris para arejar as idéias. Suas tias ficariam contentes em recebê-la.

- Não estou com vontade de ir a Paris. E tenho de ficar aqui para regularizar os assuntos de meu pai.

- Seria tosquiada como um cordeirinho. Propus à sua família os préstimos do meu advogado, o dr. Roberr. É um homem honesto e competente.

- E por que eu aceitaria sua ajuda?

- Porque estou lhe pedindo - disse François Tavernier em tom subitamente mais suave.

Andando, haviam chegado ao final da propriedade pelo caminho que, num plano inferior, margeava o terraço.

- Vamos voltar - disse Tavernier.

- Não. Não quero ver toda aquela gente. Quero estar só.

- Nesse caso, vou deixá-la.

- Não, não me referia a você - respondeu a moça, acomodando-se em seu braço. Andemos um pouco. Vamos até a Gerbette.

François fitou-a com espanto. Quantas contradições naquela criança vestida de luto!

- A Gerbette?

- É o casebre aonde ia brincar quando era garota. Está agora meio soterrado e é bem fresco. Guardamos lá a alfafa para os coelhos e as ferramentas velhas. Há muito tempo que não vou lá.

Desceram por entre os vinhedos em declive e chegaram junto de uma cobertura de telhas ao nível do chão. Contornaram o casebre. Uma ladeira meio obstruída por ervas e por silvas conduzia à porta fechada. Com um empurrão, Tavernier fez saltar a fechadura enferrujada. Metade do exíguo compartimento de terra era ocupada por feno. Das vigas, pendiam enormes teias de aranha.

- Não tem um aspecto muito bonito. E na minha lembrança era muito maior - constatou Léa.

François despiu o casaco e colocou-o sobre a palha.

- Deitemo-nos um pouco. Acho encantador este local - ironizou ele.

- Não zombe. Vinha esconder-me aqui quando Ruth queria ministrar-me suas lições de alemão. Há uma cavidade por detrás da manjedoura que ali está. Ah, como nos divertíamos!

Você não passa de uma criança - afirmou Tavernier, indo sentar-se junto de Léa.

De infantil, a expressão da jovem tornou-se provocante. Deitada, com as mãos sob a nuca, ela olhava François com as pálpebras semicerradas, arqueando os quadris e alteando os seios.

Tavernier observava-a com ar divertido.

- Deixe de coquetismo comigo - admoestou ele. - Do contrário, deixarei também de portar-me como seu irmão mais velho.

- Mas não é assim que você me aprecia?

- Assim e também de todas as outras maneiras.

- Não o estou reconhecendo! Você é sempre tão ajuizado!

- Não me agrada servir de prêmio de consolação - observou Tavernier.

- Que quer dizer com isso?

- Sabe muito bem.

- E se agradar a mim? Pensei que fôssemos iguais. Não me deseja?

De um salto, Tavernier estava sobre ela, levantando-lhe a saia e tocando-lhe em cheio o sexo, com a mão em concha.

- Putinha, não sou...

Não pôde terminar a frase. Léa, pendurada em seu pescoço, esmagava os lábios contra os dele.

- Gostaria de fumar um cigarro - disse Léa.

- Não é prudente - respondeu François Tavernier, tirando do bolso o maço de cigarros americanos.

Fumaram em silêncio, ambos nus, com as pernas enlaçadas e os corpos suados, a que aderiam pedaços de palha. Dentro da cabana, era quase noite.

- Vão ficar preocupados - disse François.

Sem responder, Léa ergueu-se, enfiou o vestido de luto, enrolou as calcinhas e as meias, escondendo-as sob uma pedra, sacudiu os cabelos e saiu com os sapatos na mão.

Sem se voltar, começou a subida para Montillac. François Tavernier só conseguiu alcançá-la já a meio caminho. Chegaram em silêncio ao terraço. Camille estava sentada sob as glicínias. Levantou-se assim que avistou Léa e correu para abraçá-la.

- Onde estava? - perguntou.

- Nada de mau poderia me acontecer na companhia de nosso amigo - replicou a jovem.

Camille deu-lhe um largo sorriso.

- Laurent e seu tio Adrien já foram embora. Ficaram tristes por não se despedirem de você.

Léa esboçou um gesto fatalista. Voltada para a planície, apoiando as mãos na pedra quente da balaustrada do terraço, olhava o disco vermelho do sol desaparecer por detrás da colina de Verdelais.

Não respondeu ao adeus de Tavernier nem ao chamado de Camilie para que entrasse em casa. Minutos depois, ouviu o barulho de um motor de carro; então, tudo ficou de novo em silêncio.

Uma brisa suave, vinda do mar, ondulava seus cabelos, enquanto surgiam as primeiras estrelas. Léa deslizou de joelhos contra a parede, confundindo-se com a massa escura, e lentamente deixou correr as primeiras lágrimas após a morte do pai.

 

Este romance tem continuidade no livro "Vontade de Viver" da mesma autora.

 

                                                                                            Régine Deforges

 

 

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Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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