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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


REBELIÃO DE LÚCIFER / J. J. Benitez
REBELIÃO DE LÚCIFER / J. J. Benitez

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

REBELIÃO DE LÚCIFER

Parte 1

 

"Aprendamos a sonhar, senhores, e então, pode ser que encontre­mos a Verdade."

Essa recomendação lapidar do insigne químico alemão Kekulé, que chegou ao descobrimento da fórmula do benzeno graças a um sonho, revolucionando assim a química orgânica, acabou por convencer-me de que, na vida, a Verdade passa muitas vezes ante os seres humanos... disfarçada.

Ou talvez porque os inimigos da Verdade sejam ainda tão numerosos que chegam a nublar a face da Terra, elegi para Re­belião de Lúcifer a intangível e arcana roupagem da fantasia. Só aqueles que não tenham perdido a capacidade de sonhar poderão compreender-me. Nesse caso, como eu, talvez descubram através dos sonhos algumas das múltiplas faces dessa surpreendente Ver­dade.

J. J. Benítez

 

De repente, sem saber como, Nietihw e Sinuhe descobriram que se encontravam na praça da Lastra, na recôndita aldeia soriana de Sotillo dei Rincón, caminhando sem pressa em direção à Casa Azul. O Sol, radioso, provocava um brilho doce e discreto no bronze da Diana Caçadora, enquanto a bica continuava a jorrar em silêncio, como se nada tivesse acontecido. . .

O jovem, tendo a bolsa das câmeras ao ombro, deteve-se um instante junto à fonte. Voltou a cabeça na direção do bosquezinho e, em seguida, interrogou a companheira com o olhar. A resposta brotou de seus corações. . .

Tinham regressado!

José Maria, o prefeito, confortavelmente sentado no jardim da Casa Azul, continuava sorvendo sua fumegante xícara de ca­fé. Sinuhe, maravilhado, constatou que seu relógio marcava 13h56. Não mais que cinco minutos haviam transcorrido desde o início da lua nova e daquela fantástica aventura!

Antes que Sinuhe conseguisse pronunciar palavra, a senhora da Casa Azul tomou-lhe a mão direita e, em silêncio, com um sorriso de cumplicidade, mostrou-lhe o anel dourado — com o símbolo dos homens "Pi" — que ainda lhe brilhava no dedo anular...

Pouco depois, o investigador iniciava o relato de tão desconcertante missão, com as seguintes palavras:

"... Quanto a vós, filhos de 'IURANCHA', regressai e con­tai ao mundo quanto haveis vivido e conhecido... Só então, quando essa parte da Verdade tiver sido propagada... só então" — insistiu a voz — "podereis iniciar a segunda fase da missão: o julgamento de Lúcifer."

 

1-"RA-6 666"

Os cinco veleiros diminutos e multicoloridos que pendiam do teto oscilaram suavemente', agitados por súbita corrente de ar. Ha­rold D. Craft Jr., diretor de operações do maior e mais potente radiotelescópio do mundo, ergueu o olhar: à sua frente, com a fisionomia transtornada e uma folha de papel a tremer-lhe na mão esquerda, estava Rolf B. Dyce, diretor-adjunto de Arecibo.

Harold compreendeu que alguma coisa grave estava aconte­cendo. Seu colega e amigo parecia preso à maçaneta da porta. Uma segunda golfada de ar agitou os veleiros, pondo reflexos verme­lhos, verdes e azuis em seus cascos lustrosos.

— Meu Deus! — exclamou Craft detrás da pilha de do­cumentos e pastas que se amontoavam sobre sua mesa. — Não fique aí parado. Que foi agora?

O astrofísico reagiu e, fechando a porta, avançou em grandes passadas. Incapaz, porém, de articular palavra, limitou-se a esten­der o telex a um palmo do basto bigode de Harold.

O diretor de operações do radiotelescópio de Arecibo, depen­dente da universidade norte-americana de Cornell, leu aquele galimatias matemático em trinta segundos. Em seguida, interrogou Rolf com o olhar. Rolf assentiu com a cabeça.

— Então estávamos certos — disse Craft levantando-se com um ricto de alarma.

— Sim — murmurou finalmente o diretor-adjunto —, nossas suspeitas foram confirmadas pelo observatório Einstein, pelo Mon­te Palomar, pelo centro de astrofísica do Harvard College e pelo observatório Smithsonian de Cambridge. .. Estou assustado, Ha­rold. Que fazer?

— No momento — replicou o diretor de operações —, con­tinuar vigiando "Ra"...

E os dois se precipitaram para a porta.

 

Quando os cientistas irromperam pela sala de processamento de dados, a notícia já havia transcendido até os 144 astrônomos e técnicos especializados do radiotelescópio. Uns trinta, adivinhando os movimentos do diretor de operações de Arecibo, se haviam congregado à volta dos poderosos computadores CDC-3300 e Datacraft 6024/4.

Ao vê-los, Harold sorriu maliciosamente, pedindo calma ao inquieto pessoal a seu serviço. Sem mais comentários, sentou-se à mesa do CDC, digitando nervosamente. A gigantesca antena do radiotelescópio — de trinta metros — procurou a constelação de Orion. Fixada a posição, Harold Craft ativou o radar, forçando ao máximo sua potência de saída. Nesse momento, toda atenção foi para os dígitos verdes que acabavam de aparecer na tela do computador.

15.a transmissão radar-planetário.

2 380 MHz.

Distância estimada: 29,760580 unidades astronômicas.

Hora e data de emissão: 15h00 (27 de janeiro de 1984).

Tempo estimado para choque de sinal-radar: quatro horas e nove minutos. Retorno estimado: 23hl8.

Coordenadas: 3h44. Inclinação positiva.

— OK — suspirou o diretor assim que se concluiu o lança­mento do sinal radioelétrico — agora só nos resta esperar.

Mas alguns dos astrofísicos, sem poder conter a curiosidade, desandaram a interrogar Craft. Entretanto, a torrente de perguntas foi interrompida pelo som insistente de um dos telefones da sala de computadores.

— É para você — esclareceu Rolf, dirigindo-se ao diretor de operações —. Frank parece muito aborrecido...

Harold atendeu, adivinhando o motivo da chamada e do des­gosto de Frank Drake, diretor do radiotelescópio de Arecibo e seu responsável supremo.

— Sim, fale...

— Harold — explodiu Drake —, como é possível que seja eu o último a ser informado? Acabam de chamar de Ithaca pedin­do um relatório completo sobre.. . como diabos se chama?

"Ra" — interferiu Craft sem perder a calma.

— É isso! Pois bem, de que se trata? Alguém foi dar com a língua nos dentes lá no Centro Nacional de Astronomia de Cornell, e tenho um jornalista do Washington Post que não me deixa respirar. . . Por favor, venha até minha sala.

Cinco minutos depois, Harold Craft exibia a Drake a re­cém-chegada confirmação dos observatórios do Monte Palomar, Harvard e Cambridge. Frank, alisando nervosamente a cabeleira branca, exclamou:

— Está bem, está bem, mas comece pelo início... Que diabo de história é essa sobre "Ra"? Que é que está acontecendo?

— Em fins de 1 975 — começou o diretor de operações — o telescópio orbital de raios X do satélite holandês ANS descobriu um misterioso corpo celeste. Encontrava-se além do sistema solar e se dirigia para a constelação de Orion. Pouco depois, em janeiro de 1976, o oitavo Observatório Solar Orbital e os satélites SAS-3, Vela e Uhuru confirmavam o achado. Nesse mesmo mês, a pedido de Jonathan Grindlay, do observatório do Harvard College, diri­gimos nossa antena para as coordenadas de situação de "Ra".

— E daí?

Harold apanhou um bloquinho no bolso da camisa e vas­culhou as folhas.

— Sim, está aqui — comentou, observando de soslaio os olhares cada vez mais impacientes de Drake. — Justamente a 27 de janeiro de 1976 (faz agora 8 anos), nosso radar detectou o astro a 1 261 440 000 quilômetros da órbita de Plutão. Nos anos seguintes, tanto os satélites HEAO-1 quanto HEAO-2 e mais os telescópios de Palomar, Harvard e Cambridge e nosso próprio radiotelescópio vêm seguindo a trajetória de "Ra", calculando-se em cinco quilômetros por segundo a sua velocidade...

— Continuo não entendendo — interrompeu-o o responsável por Arecibo.

 — Um momento, Frank. Por todos estes anos, os cálculos de Grindlay e dos demais astrônomos coincidiram em dois fatos que provocaram certa preocupação. Em primeiro lugar, "Ra" viaja diretamente em direção ao nosso sistema solar. Segundo: trata-se de um corpo celeste singular, com uma órbita cujo período de re­volução foi calculado em 6 666 anos.

— Um astro periódico! Mas vocês têm certeza disso?

O diretor de operações respondeu com denso e significativo silêncio.

— Um momento, um momento — interveio novamente Dra­ke. — Se entendi bem, esse astro viaja em média cinco quilômetros por segundo.

Harold concordou.

— E para quando se estima que cruze a órbita de Plutão? Craft apontou o telex recebido naquela mesma manhã em

Arecibo e pediu-lhe que o lesse com atenção.

— Vamos ver. . .

O dedo indicador de Drake foi percorrendo ansiosamente o texto.

— Sim.. . aqui está: ".. . De acordo com estes cálculos" — leu o diretor —, "estimamos que 'Ra' alcançará a órbita de Plutão hoje, 27 de janeiro, situando-se a uma distância do Sol de 29,760580 unidades astronômicas. Rogamos nova comprovação radar".

Drake abandonou a leitura do telex e voltou a interrogar Harold:

— Você emitiu o sinal?

— Às 15h00. Exatamente quando você telefonou.

— E qual sua opinião?

— Não sei.. . Craft parecia resistir.

— Por Deus, Harold! Fale com mais clareza.. .

— Está bem. Mas não nos alarmemos. . . Faltam ainda mui­tas comprovações. . .

— Fale, maldito seja! Que acontece com "Ra"?

— Como lhe disse, sua atual trajetória aponta quase direta­mente para a Terra. Mas pode acontecer que a passagem entre Saturno e Júpiter altere-lhe sensivelmente o curso. . .

Drake cortou a explicação contemporizadora do astrônomo:

— Que estrutura tem?

— Gerry Neugebauer, de Palomar, obteve há meses os pri­meiros informes, graças a um de seus satélites de infravermelho. "Ra" também tem um núcleo frio, porém, um tanto superior ao do nosso planeta. Mas o que é mais desconcertante é que esse núcleo aparece rodeado por uma espécie de envoltório (ainda não sabemos se líquido ou gasoso), cujo diâmetro total é similar ao de Júpiter.

— Isso significa um volume mil vezes maior que o da Terra — murmurou Drake entredentes, visivelmente confuso.

Harold moveu afirmativamente a cabeça.

— E que dizem Harvard e Cambridge sobre a previsão do tempo para a sua aproximação da Terra?

— Se não houver variações, precisará de uns 8 400 dias. Isto é, para o ano 2 006 ou 2 007, aproximadamente. ..

Drake anotou a data sem dissimular sua preocupação.

— Entretanto — Craft cuidava de suavizar a tensão —, tudo isso é teórico. . . Esta noite, quando estudarmos a última emissão do radar, talvez possamos precisar um pouco mais. . .

Drake parecia alheio às palavras tranqüilizadoras do amigo.

— ... 6 666 anos — murmurou. — ... 6 666 anos. . . Dirigindo-se a Harold, perguntou:

— Que se sabe de sua passagem anterior?

— Sinto muito, Frank. Você sabe que não dispomos de re­gistros astronômicos tão antigos. A não ser que.. .

A pausa estudada produziu o resultado esperado pelo diretor de operações do radiotelescópio.

— A não ser que?. . . — interpelou Drake.

O jovem astrofísico tornou a consultar o bloco. Adotando um tom de prudente ceticismo, afirmou:

— Por mera curiosidade e diante da impossibilidade de obter registro anterior, quando tivemos alguma certeza da órbita desse "intruso", Rolf Dyce e outros rapazes consultaram o Departamen­to de História Antiga de Cornell. Pois bem, ao que parece, existe uma lenda de origem egípcia em que se fala da passagem de um astro. Essa lenda conta que a desaparecida civilização da Atlântida pereceu "no transcurso de um dia e uma noite, em conseqüência da aparição de 'Ra' nos céus".

— "Ra"?. . . Trata-se do mesmo astro?

— Não é mais que uma lenda — insistiu Craft —, mas, se concedermos um mínimo de credibilidade a Platão, compilador, como você sabe, da lenda sobre o mítico continente desaparecido da Atlântida, topamos com uma curiosa casualidade. De acor­do com nossos cálculos matemáticos, a passagem desse corpo side­ral se produz a cada 6 666 anos. Isso quer dizer que o registro anterior (se é que existe um algures) deve remontar ao ano 4 660 antes de Cristo, aproximadamente.

— Não entendo aonde você quer chegar — interrompeu Drake. ,

— Muito simples. Se Monte Palomar, Harvard e Cambridge coincidem na presunção de que "Ra" irromperá na órbita da Terra por abril do ano 2.006, temos de remeter ao ano 11.326 antes de Cristo a antepenúltima passagem do "intruso". Data muito próxima à apontada por Platão para o catastrófico desaparecimento da Atlântida.

Drake caçoou:

— Harold, são apenas lucubrações. . . e bem pouco cientí­ficas.

O diretor de operações deu de ombros. Antes, porém, de abandonar o escritório, comentou:

— Eu sei, mas é muita coincidência, você não acha?

— Certamente. Mas qual é a designação oficial desse astro?

— Ra-6.666.

— Vocês estão todos loucos! — concluiu Drake. — Bem, informe-me sobre os resultados da emissão do radar. Verei o que posso dizer a esse jornalista.. .

E o diretor de Arecibo enredou-se em uma nova leitura do telex, sem perceber o sorriso enigmático que acabava de despontar no rosto de Harold.

 

Às 15h30 daquele dia 27 de janeiro de 1984, Craft fechava atrás de si a porta do escritório do seu chefe imediato, Frank Dra­ke. No fundo do corredor, Rolf esperava. Ao ver Harold, correu ao seu encontro. Havia intenso brilho no olhar de Rolf B. Dyce. A meia voz, sussurrou ele ao ouvido do diretor de operações:

— Boas notícias, Harold. O Grão-Mestre acaba de ligar. ..

Craft levou o dedo indicador aos lábios, pedindo silêncio ao amigo. Segurando-lhe o braço, arrastou-o até sua sala.

Trancada a porta, dirigiu-se ao quadro-negro que ocupava boa parte da parede direita do seu pequeno santuário. E, em si­lêncio, escreveu:

"Autorizaram a transmissão da mensagem?"

Rolf, compreendendo as medidas de segurança do seu irmão de Loja, pegou o giz que ele lhe estendia e, consultando uma série de números escritos com esferográfica na palma da mão direita, rabiscou nervosamente na lousa:

"Grão-Conselho de Kheri Hebs autoriza o irmão 1-685-819-S a enviar mensagem urgente a 'Ra'".

Harold vibrou de emoção, ao ler aqueles estranhos números. Tão só ele e o Grande Grão-Conselho dos Kheri Hebs ou Mestres da Grande Loja da Escola da Sabedoria conheciam a chave que identificava Harold D. Craft Jr. como membro da citada ordem secreta. Irmandade nascida no antigo Egito, durante a dinastia XVIII — há 3350 anos — e firmemente impulsionada pelo pri­meiro Kheri Heb ou Mestre, Amen-em-apt, também conhecido na Escola dos Mistérios como Germaá ou O Verdadeiro Silencioso, segundo consta do papiro 10 474 da Grande Loja.

O diretor de operações do radiotelescópio pegou novamente o giz e escreveu:

"Qual o texto da mensagem?"

Rolf copiou na palma da mão, com letras maiúsculas:

"O JULGAMENTO DA TERRA SERÁ ASSISTIDO PELA RONDA DA RODA DE 'RA'".

"GLORIA AO DISCO".

GLORIA AOS MENSAGEIROS SOLITÁRIOS". GLÓRIA À ILHA ESTACIONARIA DO PARAÍSO".

"144 000 URANCHIANOS ESPERAM O SINAL DE 'RA' ".

 

Concluída a mensagem do Grão-Conselho dos Kheri Hebs, Rolf Dyce encetou meticulosa verificação, palavra por palavra. Confirmada a exatidão, Harold anotou-a em uma folha de papel, na qual se lia o seguinte lembrete: "Centro Nacional de Astrono­mia e de Ionosfera — Universidade de Cornell (110 Day Hall) — Ithaca, N.Y. 14 853".

Ato contínuo, os dois astrofísicos apagaram a lousa, elimi­nando qualquer vestígio de tudo o que haviam escrito.

Mais tranqüilos, Craft e Dyce tomaram assento à escriva­ninha.

Harold, depois de reler a enigmática mensagem, perguntou baixinho:

— Código?

— Conversão em números. Chave de Cagliostro — sussur­rou Rolf.

Sem mais comentários, puseram-se a codificar o texto elabo­rado pelo Grão-Conselho dos Mestres. Nem Harold nem Craft, claro, atreveram-se a formular perguntas sobre o sentido daquela criptografia. A fé nos Kheri Hebs da Grande Loja a que perten­ciam era total; e isso bastava.

Às 16hl5, com a mensagem codificada num total de 201 caracteres numéricos, o diretor de operações de Arecibo e seu diretor-adjunto dirigiam-se sigilosamente para a sola de controle do radiotelescópio.

 

O centro de processamento de dados — tal como o supunham Harold e Rolf — estava deserto. O primeiro turno de astrofísicos não se encarregaria do programa habitual de emissões e recepção de sinais antes das 17 horas. Tinham, portanto, o tempo exato para programar o computador CDC-3300 e transmitir a mensagem.

Craft postou-se à frente do teclado, transmitindo ao projetor de laser as coordenadas galácticas de "Ra". Em 15 segundos, a antena situada na plataforma triangular, suspensa a uma altura de cinqüenta andares sobre o gigantesco disco côncavo aluminizado de trezentos metros de diâmetro, que funciona como refletor, ficou definitivamente direcionada para um dos 38 778 painéis indivi­duais de alumínio que constituíam o mencionado refletor ou "ti­gela de sopa", como diziam familiarmente em Arecibo.

Harold ajustou a potência de saída em 450 000 watts, pro­cedendo à emissão dos 201 caracteres numéricos. De início, o computador codificara a mensagem em cinco grupos de 53, 13, 30, 35 e 34 caracteres, com um total de 36 dígitos suplementares

— estrategicamente distribuídos — que faziam as vezes de "espa­ços em branco". Decodificados, por sua vez, em sistema binário, os 201 dígitos foram transmitidos a uma velocidade de 10 carac­teres por segundo.

Às 16 horas, 30 minutos e 20 segundos, partia a mensagem, finalmente, para as profundezas do sistema solar, em busca do misterioso astro "intruso".. .

Por um minuto — a partir do último segundo da transmissão

— Rolf manteve-se atento à tela do computador, ajustando a fre­qüência da mensagem de forma tal que não se visse alterada pelo efeito Doppler do movimento orbital e da rotação da Terra.

Esgotado esse minuto, o diretor-adjunto respirou profunda­mente, comunicando a Harold que a mensagem já se encontrava na órbita de Marte. Depois, premeu o teclado do CDC e aguardou.

Quase instantaneamente uma série de dígitos verdes percorreu a tela do computador.

— Bem — murmurou Harold —, em 35 minutos alcançará a órbita de Júpiter e, em 71, a de Saturno.. .

A última linha anunciava algo que os astrofísicos já sabiam:

"O cruzamento com a órbita de Plutão se registrará em qua­tro horas e nove minutos."

Ambos, movidos pelo mesmo pensamento, consultaram seus relógios.

— A mensagem — afirmou Rolf — será recebida às 20h33.

— Sim — confirmou o colega —, mas haverá resposta? Rolf olhou-o fixamente.

— Você sabe que sim — disse com ênfase. — É questão de esperar. . .

 

Nessa noite, pouco antes das 23 horas, havia inusitado movi­mento na sala de controle do radiotelescópio de Arecibo. Nem Harold Craft nem Rolf puderam convencer os colegas a que se recolhessem para repousar. Cerca de meia centena de astrofísicos esperava impacientemente a iminente recepção do sinal do radar emitido oito horas antes.

No comando do computador, o diretor de operações checou pela enésima vez a posição da antena, de trezentos metros, do refletor principal. A seu lado, Rolf, cabelo revolto e lápis atrás da orelha direita, fez o mesmo com o segundo computador — o Datacraft —, responsável pelo controle da antena "passiva" de noventa metros, postada a dez quilômetros ao norte da localização do gigantesco radiotelescópio, vital para a recepção e combinação dos ecos do radar.

"23 horas: 16 minutos: 45 segundos." O relógio acoplado ao computador continuava avançando inexoravelmente. Harold, com um movimento mecânico, procedeu à total desconexão e bloqueio do transmissor. Estava tudo no ponto.

"23 horas: 15 minutos: 15 segundos."

Era absoluto o silêncio na sala de controle.

Cruzou-se um último olhar entre Rolf e Harold.

"23 horas: 16 minutos: 45 segundos."

Apesar da baixa temperatura do ambiente — sete graus cen­tígrados —, gotículas de suor brotaram na testa de Rolf.

"23 horas: 17 minutos: 00 segundo."

Os cientistas prenderam a respiração. Todos os olhares se concentraram no vidro esfumaçado que protegia os discos

"23 horas: 18 minutos: 05 segundos."

O computador central, entretanto, não dava sinal de vida. Harold, tenso, aproximou seu rosto do CDC e sussurrou-lhe:

— Vamos, menino!...

"23 horas: 18 minutos: 10 segundos."

Os dois discos deram um quarto de volta. E aquele primeiro movimento foi acolhido com estrondosa salva de palmas. O sinal do radar acabara de retornar ao radiotelescópio.

Confirmada a recepção do eco, Rolf ativou o mecanismo de cartografia. Cinco minutos depois, sentado diante da tela do siste­ma de coordenação de computadores, Harold Craft — ante a ex­pectativa geral — decodificava os primeiros informes do sinal-radar emitido para o astro "intruso".

"Distância: 29,66 unidades astronômicas."

Foi geral o murmúrio: "Ra" já ultrapassara a órbita de Plutão.

"Velocidade: 5,1 quilômetros por segundo e acelerando."

O diretor de operações pediu então a um de seus colegas que efetuasse os cálculos teóricos e aproximados da velocidade de "Ra", em sua passagem pelas órbitas planetárias seguintes.

O resultado sacudiu os cientistas.

— Se conservar esse ritmo de aceleração — anunciou o as­trofísico, guardando sua régua de cálculo —, necessitará de 3 248,6 dias para percorrer os 1 403 400 000 quilômetros que o separam de Plutão à órbita de Netuno. Os 1 627 milhões de quilômetros seguintes (da órbita de Netuno à de Urano), considerando-se o incremento de sua velocidade, ele pode vencê-los em 2 699 dias.

"É provável também que, ao abandonar esta última órbita (a de Urano), sua velocidade já seja algo superior a 7 quilômetros por segundo. Nessa suposição, os 1 442 600 000 quilômetros que o separarão de Saturno serão cobertos em 1 669,6 dias.

"Desde ali até a órbita de Júpiter, a distância média estimada é de 648 700 000 quilômetros. Mas a aceleração de "Ra" terá passado de uns 10 quilômetros por segundo nas proximidades de Saturno, e 15 quilômetros na órbita de Júpiter. O que quer dizer que pode percorrer esses 648 milhões e pico de quilômetros em pouco menos de 500 dias...

Impassível, Harold foi contabilizando os dias.

— ... Quanto à última trajetória (da órbita de Júpiter à de Marte), "Ra" precisará, na razão de 15 a 25 quilômetros por se­gundo, de 254,8 dias.

— Tudo isso dá um total de 8 327 dias ou 22,9 anos — concluiu Craft, visivelmente desalentado.

— ... Sim — interveio Rolf —, e se não se produzir algum milagre, "Ra" se precipitará da órbita de Marte até a Terra em pouco mais de 75 dias, a uns 35 quilômetros por segundo...

Esfumara-se a alegria inicial dos homens de Arecibo ante aquele cálculo sinistro.

O angustiante silêncio dos astrofísicos foi finalmente quebra­do pelo diretor de operações:

— Senhores, eis a triste realidade: se o milagre não se rea­lizar (se "Ra" não for desviado ou catapultado pelos campos de força de Saturno ou de Júpiter), sua precipitação sobre o nosso mundo registrar-se-á, possivelmente, entre os meses de março ou abril do ano 2 007.

Harold, adivinhando os pensamentos dos colegas, abandonou o banco do computador central e deu uns passos até a janela da sala. A noite, serena e estrelada, parecia alheia à tragédia que se aproximava. As seiscentas toneladas da plataforma triangular que suporta as antenas, iluminada agora, elevava-se acima das colinas do norte de Porto Rico, qual fantasmagórica nave espacial.

— É meu dever anunciar-lhes — comentou Craft dando as costas à noite — que, é claro, tudo o que viram e ouviram é con­siderado pelo Centro Nacional de Astronomia e de Ionosfera de Cornell altamente confidencial e secreto. . . Deverá ser o NAIC que, uma vez verificadas todas as comprovações lógicas, anunciará ou não à opinião pública mundial os fatos que vocês conhecem. . .

E Harold, assumindo um tom menos solene, rogou aos com­panheiros que abandonassem o centro de controle.

— Frank Drake — explicou — deve dispor, às primeiras horas, de um informe completo. . . Boa noite, e obrigado.. .

Os quase cinqüenta astrofísicos, silenciosos e cabisbaixos, foram desfilando diante de Craft que, cortesmente, mantinha aberta a porta da sala para que saíssem os amigos e colegas.

Às 24 horas, o diretor de operações fechava a chave a sala de controle. Em pé, junto ao computador, continuava Rolf. Tinha os olhos fixos em um pequeno mapa, recentemente extraído do sistema de cartografia. Harold observou nas mãos dele um peque­no tremor e intuiu que não haviam terminado as surpresas...

 

— Como é possível?

Rolf B. Dyce repetiu a pergunta, mas agora estendendo o mapa ao companheiro:

— Como é possível, Harold?

Craft examinou a imagem de "Ra" que o radar acabava de fornecer. O mapa em relevo aparecia como uma mancha pratica­mente negra e perfeitamente circular. Eles sabiam que o brilho e o esbranquiçado desse tipo de mapas de retrodifusão são pro­porcionais ao grau de aspereza da superfície do astro explorado. Em outras palavras: quanto mais escura a imagem do radar, mais lisa a superfície cartografada.

Perplexo, Harold consultou as imagens do planeta Vênus obtidas em 1 975 e 1 977. Daquelas vezes, o radiotelescópio efe­tuara um magnífico trabalho, cartografando por radar os dois hemisférios e, em especial, uma região situada a 320 graus de lon­gitude Este, em pleno hemisfério sul. Em tais mapas, confirmando as suspeitas dos radioastrônomos, aparecia, por exemplo, uma enorme mancha branca a que chamaram de "Maxwell" (a 65 graus de latitude Norte e 5 graus de longitude Este), que não era senão uma gigantesca montanha de 11 000 metros. "Ra", ao contrário, à vista daquele primeiro informe de radar, apresentava absoluta­mente lisa uma de suas faces, sem as rugosidades e acidentes na­turais que se deveriam esperar.

— Como é possível, Harold? — repetiu Rolf pela terceira vez.

Mas o diretor de operações só conseguiu encolher os ombros. Apanhando a régua de cálculos, pediu a Rolf que o ajudasse na elaboração dos últimos dados. Em alguns minutos o diâmetro equatorial do "intruso" havia sido fixado pelos cientistas em 13 756 quilômetros. Curiosamente, mil quilômetros maior que o da Terra.

— E esse estranho envoltório de que falavam os satélites? — perguntou Harold.

Rolf moveu negativamente a cabeça.

— É preciso esperar pelos informes de Monte Palomar — comentou —. Acho que você deveria informar Drake. . .

— Amanhã nos ocuparemos disso. Craft consultou seu relógio.

— Se o Grão-Conselho dos Kheri Hebs estiver certo, a res­posta de "Ra" será captada pelo radiotelescópio a partir das 24 horas, 38 minutos. Temos que nos apressar. Mal temos tempo.

Rolf obedeceu em silêncio e foi postar-se outra vez diante do teclado do computador principal. Desconectou o radar, ativando continuamente o sistema de recepção de sinais radioelétricos. A antena de 32 metros e 4 500 quilos de peso continuava apontando para as coordenadas galácticas de "Ra".

— Tudo em ordem? — perguntou Harold mecanicamente.

— Afirmativo. Mas. .. Rolf hesitou.

— Mas o quê? — animou-o o companheiro.

— Não sei, Harold.. . Você acredita que haverá resposta?

— Agora você está duvidando — sorriu Craft.

E dando-lhe uma palmadinha nas costas, sentou-se frente à tela do computador auxiliar.

O relógio digital do Datacraft 6024 marcava 24 horas, 5 mi­nutos e 45 segundos.

Rolf, cada vez mais nervoso, mordiscava a ponta da lapiseira.

"24 horas: 28 minutos: 15 segundos."

— Atenção, Rolf!

"24 horas: 38 minutos: 00 segundo."

Dessa vez, os radioastronômos foram surpreendidos pelo giro dos discos magnéticos do computador. A antena do radiotelescópio começava a captar algum sinal. . .

— Harold! Harold!.. .

Rolf, branco como papel, só conseguia repetir o nome do amigo.

— Deus do céu! — exclamou Harold. — Eis aí a resposta. O Conselho dos Mestres tinha razão.. . "Ra" é muito, mais que um simples astro!.. .

Rolf, hipnotizado pelo lento mas contínuo e espasmódico movimento dos discos memorizadores do Datacraft, nem ouviu o companheiro.

"24 horas: 38 minutos: 15 segundos."

Seis décimos depois, o computador se detinha.

Os astrofísicos se entreolharam perplexos.

Foram segundos pesados. Quase eternos. A recepção, porém, tal como indicava o computador central, terminara.

Harold, esforçando-se por dominar-se, fez retroceder as fitas magnéticas até o ponto zero da transmissão: "24 horas: 38 minu­tos: 00 segundo". Suas mãos trêmulas digitaram em busca da decodificação dos sinais.

As fitas lançaram na tela um total de 156 impulsos, distri­buídos, à primeira vista, em quatro grandes grupos. Cada um constava de 33, 35, 51 e 37 caracteres, respectivamente.

Rolf confirmou o tempo de recepção calculado.

— Olhe, Harold!.. . 156 impulsos e um total de 15 segundos e 6 décimos para a transmissão. O que significa que foram envia­dos à razão de 10 caracteres por segundo. Exatamente como os nossos!

— Calma, Rolf!. .. Calma! Ajuste o computador ao código binário. Não sei o que é "Ra" e os que o controlam, mas, se foram capazes de captar nossa mensagem, decifrá-la e enviá-la quase instantaneamente, alguma coisa me diz que sua resposta virá codi­ficada sob a mesma chave.

A decodificação dos sinais não tardou a aparecer na tela.

— Eu sabia, Rolf! — explodiu Harold Craft, sem se conter. — São números!

No monitor, efetivamente, começara a desenhar-se uma série de dígitos, correspondentes ao sistema decimal ordinário.

"21-6666-122121-53-56567-415487-6" na primeira linha.

"313-31481513-66-3611215-1-315655-6" na segunda linha.

"31-5111-45-31-2171-1763-122121-415221-55-66-4113-6" na terceira.

"53-161317-45-3631852-666-51-3353147-6" na quarta e última.

Nem Rolf nem Harold souberam jamais o tempo que perma­neceram mudos e estáticos ante aquele punhado de verdes e brilhantes números, procedentes de mais de 4 400 milhões de qui­lômetros. . .

 

Inútil. Apesar das súplicas de Rolf, Harold Craft negou-se a prosseguir com a decifração da mensagem vinda de "Ra".

— Nossa missão termina aqui — sentenciou —. Agora, é o Grão-Conselho que deve atuar...

Os astrofísicos retiraram as fitas magnéticas, desconectando a grande antena do radiotelescópio.

Três horas mais tarde, a mensagem original, conveniente­mente lacrada e selada, partia do aeroporto de San Juan de Porto Rico rumo a um lugar secreto ao sul de São Francisco, sede cen­tral do Grão-Conselho dos Kheri Hebs ou Mestres da Grande Loja da Escola da Sabedoria.

A 1.° de fevereiro, sete altos funcionários das embaixadas da Venezuela, Grã-Bretanha, França, Alemanha Federal, Suíça, Sué­cia e Egito — todos eles membros secretos da Grande Loja — partiam de Washington, Nova Iorque, Los Angeles e Miami com destino aos seus respectivos países. Em suas malas diplomáticas se havia depositado uma carta, presumivelmente contendo a men­sagem procedente de "Ra", definitivamente decifrada, em cujos envelopes se lia:

"NEWTON. Londres".

"DEBUSSY. Paris".

"LEIBNITZ. Bonn".

"NOBEL. Estocolmo".

"CALVINO. Berna".

"BOLÍVAR. Caracas".

"NEFERTITI. Cairo".

Poucas horas após a chegada às capitais mencionadas, as sete missivas eram entregues, em mãos, a cada Kheri Heb responsável pela Escola da Sabedoria, nas áreas da Comunidade Britânica, França, Alemanha Federal, Países Nórdicos, Suíça, América La­tina e África.

Só os Grãos-Mestres das jurisdições do Oriente Médio, Ásia e Australásia foram excluídos pelo Grão-Conselho. O motivo es­tava contido naquelas sete cartas, enigmáticas e "altamente se­cretas". ..

 

2 - AS 66 BADALADAS

Naquele 3 de fevereiro de 1 984, como o fazia quase todas as manhãs, o carteiro de um pequeno povoado basco batia à porta do seu amigo e jornalista. Com a correspondência vinha um tele­grama. Quando o abriu, o escritor leu uma frase lacônica e enig­mática, sem qualquer referência: "O viveiro está morrendo".

Sem perda de tempo, assistido por sua mulher que, per­turbada, não conseguia decifrar o sentido nem o remetente da mensagem, nosso homem se preparou para imediata viagem a Madri.

Ninguém que conhecesse esse escritor, especializado fazia muitos anos em investigações de mistérios, poderia imaginar, na­queles tempos, que, tal como outros milhares de pessoas em todo o mundo, era membro da Grande Loja da Escola da Sabedoria. Na realidade, aquele telegrama não era senão uma chamada ur­gente, em código, para que se apresentasse no Templo da Irman­dade na capital da Espanha, dependente, por sua vez, do Conselho dos Kheri Hebs da jurisdição européia.

Às 10 horas de segunda-feira, 6 de fevereiro, era recebido pelo Grão-Mestre da Ordem. Embora o alto funcionário israelense conhecesse perfeitamente aquele membro da Loja, ao estreitar-lhe a mão fez um dos sinais secretos de identificação entre os "sorores" ou irmãos da Ordem. O jornalista e escritor respondeu meca­nicamente com a mesma contra-senha, pressionando o dedo indi­cador e o polegar sobre a mão do Kheri Heb.

— Bem-vindo, Sinuhe. . .

O investigador sorriu ao ouvir seu nome: aquele que recebia cada membro da Irmandade, ao ser aceito no seio do Templo correspondente. Desde esse instante solene, nosso homem — como os demais — era conhecido entre os irmãos de Loja por um nome mítico. Nome de pia carregado de reminiscências esotéricas e que, na Antigüidade, pertencera a destacados e sábios Kheri Hebs. Tal distintivo e uma numeração cifrada — conhecida tão só pelo novo membro e pelos respectivos Grãos-Conselhos Jurisdicionais — eram as senhas de identidade de cada "soror". Este segundo ba­tismo não obedecia a caprichos ou acasos. Cada aspirante à Escola da Sabedoria via-se obrigado a superar uma série infindável de provas que lhe pusessem em relevo a personalidade, bem como suas aspirações espirituais e seu grau de honestidade. Uma vez aceito, o novo irmão era "batizado" com o nome que melhor re­fletisse seu caráter e temperamento. Eis que "Sinuhe" significava "o que é solitário".

Desde a infância esse homem, a quem chamaremos Sinuhe, distinguira-se justamente por seu profundo desejo de solidão. Qua­se ninguém, nem mesmo a própria família, vislumbrara jamais o fundo daquele coração sempre atormentado pela busca da Ver­dade. Sinuhe amava a aventura, o perigo; e esse espírito, unido a insaciável curiosidade, o arrastara a uma vida de viagens constan­tes, que ia relatando, parcialmente, em seus numerosos livros. No arcano da alma guardava ainda segredos que teriam causado es­tremecimentos em seus assíduos leitores.

Apesar dessa vida apaixonante, invejada, admirada e até odiada em partes iguais por amigos e inimigos, Sinuhe era um homem insatisfeito, com crescente desprezo por si mesmo. Por isso, quando o Grão-Mestre lhe anunciou que fora eleito "para uma delicada missão", longe de entusiasmar-se sentiu-se acabrunhado.

Mas o Kheri Heb não chegou a perceber a dúvida no olhar do discípulo. Aos 37 anos, Sinuhe era um homem frio, perfeita­mente capaz de dominar e dissimular até mesmo o mais desen­freado dos seus sentimentos. Esta, talvez, fosse uma das razões por que se odiava.

O Grão-Mestre se dirigiu então a um dos quadros que lhe decoravam as paredes do escritório. Tratava-se de magnífica foto­grafia em cores do Menorá, ou candelabro de sete braços, emble­ma oficial do Estado de Israel e que se ergue em Jerusalém, em moderna versão do escultor Benno Elkan. E em silêncio, o alto funcionário de Israel na Espanha começou a deslocar o quadro, pondo a descoberto um pequeno cofre embutido e camuflado na parede. Tirou dali um envelope branco e voltou para sua mesa, continuando a conversa.

— Querido Sinuhe, como lhe dizia, o Grão-Conselho o designou para uma delicada missão.

O Kheri Heb abriu o envelope e entregou a Sinuhe um dos dois documentos que ele continha.

— Leia e memorize — voltou a falar o Grão-Mestre —.

Esta mensagem é altamente secreta e não pode sair do Templo.

Sinuhe reconheceu de imediato o emblema da Ordem, gra­vado em delicado alto-relevo, encabeçando o documento: uma serpente vermelha, enroscada ao redor de dois olhos. O da direita, menor e com um ligeiro vazado, e o da esquerda, três vezes maior e com um relevo proeminente.

Ao pé do símbolo da Escola da Sabedoria estavam escritas quatro frases.

Sinuhe as leu devagar. No começo, tentando apreender-lhes o significado. Depois, procurando memorizá-las. A segunda — talvez porque reproduzisse o seu nome — foi mais fácil.. .

Após cinco minutos, Sinuhe ergueu o rosto e, fechando os olhos, repetiu mentalmente aquelas quatro frases enigmáticas.

O Grão-Mestre o observou satisfeito.

Ao concluir a memorização, o discípulo voltou a repassar o texto, comprovando satisfeito que ele ficara gravado minuciosa­mente em sua mente. Devolveu o documento ao seu Kheri Heb que, adotando um tom muito mais solene, comentou:

— Querido irmão, no momento, não fui autorizado a reve­lar-lhe a origem e a finalidade desta mensagem... Só posso acrescentar, como você já terá comprovado, aliás, que procede do Conselho Supremo da Irmandade.

Sinuhe assentiu.

— ... A mensagem, isso sim, guarda transcendental relação com o futuro da humanidade. E a Escola da Sabedoria, por ra­zões que você pode intuir, foi eleita depositária da mensagem. Agora, antes de passar para a última e mais importante fase da sua missão, quer, por favor, repetir-me o texto do documento?

A voz de Sinuhe, límpida e profunda, foi desfiando as vinte e seis palavras e oito números que formavam as quatro frases:

— "RA-6 666" ABRIRÁ O NOVO TEMPO-6. "AS BADALADAS-66-GUIARÃO SINUHE-6.

"A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS-6.

"O JULGAMENTO DE LÚCIFER-666-CHEGOU-6.

 

— Exato — aprovou o Kheri Heb com um grande sorriso. E, sem mais comentários, enfronhou-se em demorada leitura do segundo documento.

Sinuhe não podia, então, imaginar que o texto que acabava de aprender fora recebido na madrugada de 27 de janeiro do mes­mo ano, pelo mais potente radiotelescópio do mundo, vindo de um astro desconcertante, batizado pelos astrônomos de "Ra-6 666".

Tal como suspeitaram Harold Craft e Rolf Dyce, aquela série de dígitos — desde que estudada pelo Grão-Conselho da Escola da Sabedoria — foi codificada finalmente, seguindo o método de conversão de Cagliostro; o mesmo que fora utilizado pelos dois membros da Grande Loja na emissão da primeira mensagem para o astro "intruso".

O Kheri Heb abandonou enfim a leitura do segundo do­cumento e, depois de guardá-los no envelope, prosseguiu:

— Bem, caro Sinuhe. O Grão-Conselho especifica que a sua missão consiste em identificar a "filha da raça azul". Para tanto, como você terá observado no texto da mensagem, será "guiado pelos sinos"...

O Mestre compreendeu imediatamente as dúvidas naturais do discípulo. Adiantando-se aos seus pensamentos, acrescentou:

— Como lhe disse, não estou autorizado (agora) a re­velar-lhe quem é essa "filha da raça azul", nem como chegará a reconhecê-la. Seja fiel à Escola da Sabedoria e encete imediata­mente a busca. A fortaleza do Gerador (você o sabe) o acompa­nhará a cada momento. Confie Nele e no Grão-Conselho... Você tem alguma pergunta?

Sinuhe teria querido expor ao Kheri Heb o torvelinho de dúvidas que o fustigava. Limitou-se porém a responder:

— Sim, Mestre. Apenas duas...

— Continue.

— Em primeiro lugar, que devo fazer quando identificar a "filha da raça azul"?

— Use o código secreto e me faça saber imediatamente.. . E a segunda?

Sinuhe conservou um breve silêncio e, fixando seus olhos rasgados e castanhos no Mestre, perguntou:

— Por que eu?

O Kheri Heb sorriu, enigmático. Apontando o envelope dos documentos, comentou:

— Há apenas algumas horas, outras seis missivas iguais a esta foram depositadas nos Templos Nacionais da Irmandade em Londres, Bonn, Estocolmo, Berna, Caracas e Cairo. Esta, a sétima, foi entregue na Jurisdição de Paris, da qual, como você sabe, so­mos dependentes. Todas elas procedem do Grão-Conselho, nos Estados Unidos. E são todas elas portadoras da mesma mensagem: a que você acaba de decorar. Entre os 144 000 membros da Ir­mandade em todo o mundo, apenas sete figuram, atualmente, com o nome de "Sinuhe''. Você é um deles e, como seus irmãos, foi chamado para desempenhar a missão que lhe acabo de explicar. Mas apenas um desses sete "Sinuhe" descobrirá e nos revelará a "filha da raça azul". No instante em que isso ocorrer, os demais irmãos eleitos serão avisados e cessarão suas respectivas pesquisas.

Sinuhe, mais e mais perplexo, não resistiu à tentação e for­mulou uma terceira pergunta:

— Perdão, Grão-Mestre, mas por quem fomos eleitos? Sorrindo novamente, o Kheri Heb replicou:

— Tudo em seu devido tempo, Sinuhe.. . Tudo em seu de­vido tempo...

 

Durante aqueles dois meses de fevereiro e março, Sinuhe ficou absolutamente atento a tudo quanto ocorria à sua volta. Mas as notícias divulgadas em seu país e no resto da Europa não fize­ram qualquer alusão àqueles misteriosos sinos a que se referia a não menos intrigante mensagem.

As dúvidas, longe de se dissiparem com o passar dos dias, multiplicavam-se no ânimo do investigador.

"Quem ou o que é 'Ra'?", repetia-se uma vez ou outra, sem encontrar resposta nem sossego.

"A que 'novo tempo' se referiria o texto secreto que lhe mos­trara o seu Kheri Heb?"

"Por que devia ser guiado por algumas badaladas?"

Esta, juntamente com a terceira, era dentre as frases a que mais desconsertava Sinuhe.

"Onde estão esses sinos?. . . Deverei ouvi-los ou alguém o fará por mim?"

A julgar pelo pouco que lhe havia revelado o Grão-Mestre, as badaladas o guiariam até a "filha da raça azul"... Mas, e se não fosse assim?

E, sobretudo, quem era essa "filha da raça azul"?

Sinuhe considerava que, entre as atuais raças do planeta, con­tamos com a negra, a amarela, a vermelha, a branca e a mestiça. No entanto, jamais ouvira falar da azul...

Se não eram poucas essas incógnitas, a terceira e a quarta frases eram tão sibilinas, ou mais, que as anteriores.

Por que deveria a "filha da raça azul" "abrir a terra em um prazo de 66 dias"? A que terra se referiria o criptograma? E, su­pondo que fosse a nossa Terra, em que momento se iniciaria esse prazo de sessenta e seis dias?

Sinuhe dedicou-se, boa parte daqueles dias, a investigar sobre a figura de Lúcifer. A extrema pobreza da Bíblia, entretanto, mal lançou uma luz sobre a quarta e última frase da mensagem: "O JULGAMENTO DE LÚCIFER-666-CHEGOU-6".

Tão-só no Apocalipse de São João (13.18) conseguiu um indício — indigente talvez — que, não obstante, animou-o em suas pesquisas. Esse parágrafo do Apocalipse alude à Besta (de­signação talvez de Lúcifer) nos seguintes termos:

"Eis aqui a sabedoria. Aquele que tenha inteligência, que calcule o número da besta, porque é número de homem. O número é seiscentos e sessenta e seis."

"... 666."

Sinuhe, conhecendo o código de Cagliostro, submeteu tam­bém cada letra da mensagem à correspondente conversão em números, de acordo com o referido código. Sua confusão chegou ao auge quando observou que a soma dos números que integravam cada uma das frases dava precisamente seis. A mesma cifra que aparecia ao final de cada linha.

"Sem dúvida" — obtemperou o investigador — "esses quatro seis devem ter alguma relação com o número (6 666) que figura ao princípio da primeira frase do enigma... Mas qual?"

 

Naquela madrugada de 1.° a 2 de abril de 1 984, o frondoso e acaçapado azinheiro que monta guarda frente à casa do prefeito de Sotillo dei Rincón estava especialmente concorrido. Dezenas de pardais e gaviões refugiaram-se entre suas folhas espinhosas. Ameaçadores cúmulos-nimbos corriam furiosamente, empurrados dos topos da Sierra Cebollera pelo vento do Oeste. Alguns aguaceiros já se haviam descarregado no vale do rio Razón, paraíso perdido a pouco mais de vinte quilômetros a noroeste de Soria, capital (Espanha) e assentamento natural da retirada e bela aldeia de Sotillo. Dir-se-ia que a entrada da lua nova iria pressagiar coi­sas estranhas e singulares. ..

Sinuhe, a várias centenas de quilômetros daquelas agrestes paragens soriana, achava-se totalmente alheio ao que estava na iminência de acontecer. Naquela mesma madrugada, aproveitando a mudança oficial d& hora, dedicara boa parte da noite a novas e infrutíferas investigações, empenhando-se em desentranhar a men­sagem oriunda de "Ra". Uma ou outra vez relembrou as quatro frases, mas o esgotamento acabou por vencê-lo.

"RA-6 666" ABRIRÁ O NOVO TEMPO — 6." "AS BADALADAS — 66 — GUIARÃO SINUHE — 6..." "AS BADALADAS — 66 — GUIARÃO..." Um sono escuro e inquieto deixou parte da mensagem a flu­tuar na mente de Sinuhe.

Nesses precisos momentos — à 1 hora e 30 minutos —, os duzentos habitantes de Sotillo dei Rincón também dormiam, em­bora seus sonhos não fossem tão agitados quanto os de Sinuhe. Apenas o uivar dos cães da região e o ulular das rajadas de vento entre as copas do choupal que circunda a Câmara Municipal do povoado pareciam pressagiar a aproximação de "algo" inquietante.

No centro da praça da Lastra, dentro da escuridão, a pequena estátua de bronze da Diana Caçadora resistia impassível aos em­bates do vento. A seus pés, a única bica sobrevivente da fonte, doada em 1913, jorrava ainda doce e silenciosamente. A uma dis­tancia eqüidistante da fonte, e formando um triângulo, levantam-se e encerram a praça da Lastra três sólidos edifícios: a Câmara Mu­nicipal, cujo relógio, de um metro de diâmetro, contempla o sul; a casa de José Maria Gómez Zardoya, prefeito de Sotillo, com seu campanado azevinho; e a chamada Casa Azul, quase defron­tando a Câmara Municipal. Desde outrora, aquele elegante e só-3 casarão de três andares era conhecido entre as pessoas de sotillo como a Casa Azul, graças ao anil de seus batentes e das janelas. Ninguém então suspeitaria que aquele apelido caprichoso e popular guardasse um sentido muito mais profundo e miste­rioso...

Naquela noite intranqüila, como digo, era total a escuridão no longínquo povoado soriano. Todos descansavam. Melhor: to­dos, não. Uma das janelas do segundo andar da Casa Azul estava iluminada. Era o único sinal de vida na praça da Lastra. Mas, pouco antes da uma e quarenta, apagou-se também aquele retângulo amarelo. E Glória, a senhora da Casa Azul, preparou-se para dormir.

Como narrador desta história, creio que devo deter por alguns instantes o curso dos acontecimentos. Os fatos que passo a relatar em seguida ficariam incompletos ou menores, se eu não pusesse o leitor a par dos antecedentes da inquilina dessa Casa Azul.

A súbita aparição de Glória e sua família — quase seis anos atrás — em Sotillo dei Rincón, também foi um tanto misteriosa, ao menos para aquela gente boa e simples do lugar.

Em 1 979, essa família — velhos e íntimos amigos de Sinuhe — decidiu-se a abandonar o solar de seus ancestrais. A imensa maioria dos conhecidos não soube nunca o porquê daquela ines­perada ruptura. Da noite para o dia, tudo o que até então tinha sido habitual para aquelas pessoas — luxo, relações sociais e o tumulto da cidade grande — desapareceu. Apenas uns poucos amigos eleitos, entre os quais estava Sinuhe, conheciam parte da verdade. Alguns anos antes da drástica decisão, Glória, primeiro, e o resto da família, depois, souberam da existência de certos seres, intuídos desde sempre no mais profundo de seus corações. Esses seres, que Glória chamava de "irmãos maiores", foram os princi­pais responsáveis pelo êxodo da família para uma aldeia da qual jamais tinham ouvido falar. E um belo dia, como digo, sutilmente conduzidos por esses "guias do Espaço", descobriram primeiro o rio Razón e, em seguida, Sotillo e a Casa Azul. E ali permane­ceram, submersos em incansável e intensa busca interior, à espera de uma "missão" que iria ter começo exatamente naquela madru­gada de 1.° a 2 de abril de 1 984. . . "Missão" que Glória ignorava e para a qual, a nível inconsciente, fora treinada desde 1 974. Mas não antecipemos acontecimentos...

 

De repente, o gemido do vento e o plangente uivo dos cães emudeceram. E o som de bronze do sino, prisioneiro da torre metálica da Câmara Municipal de Sotillo dei Rincón, propagou-se nítido e claro na turbulência da noite.

Glória, ainda acordada, ouviu assombrada aquelas badaladas rítmicas. Consultou seu relógio: lh40.

"Graças a Deus" — pensou —. "Até que enfim consertaram o relógio.. ."

Todos os habitantes de Sotillo sentiam e sentem especial ca­rinho por aquele velho relógio de pesos, doado ao lugarejo em 1 907 por dom Gregório Revuelto, ilustre filho do local. Todos, sem exceção, aprenderam a compartilhar a vigília e o sono com aquele companheiro redondo. Suas badaladas, marcando as horas e as meias horas, eram acompanhadas por todos, inclusive duran­te a noite. Muitos habitantes, obedecendo a costume ancestral, chegam a contar — em meio ao sono — os sucessivos toques e voltam a descansar. Por isso, nas poucas vezes em que o relógio da Câmara sofreu pane, as pessoas dali chegavam a sentir mal-es­tar. Na verdade, faltava qualquer coisa em suas vidas. . .

Pois bem, nesses dias de que nos ocupamos, a fatalidade — ou teria sido a casualidade? — fez com que o relógio tornasse a parar. Fazia várias semanas que tanto Glória quanto o resto da co­munidade insistiam, vez por outra, para que o prefeito fizesse com que Antonino, o fiel guardião do relógio, subisse à torre e pusesse em marcha a vetusta mas sólida maquinaria.

A reação primeira da senhora da Casa Azul, ao ouvir as so­lenes badaladas, foi, portanto, de surpresa e alegria. "Está claro que Antonino deu corda no relógio. . ."

Essa meditação lógica, porém, suspendeu-se quando, alguns segundos depois, o poderoso martelo de ferro situado sobre a face exterior do sino continuou a fustigar o bronze, ultrapassando o número de doze badaladas.

Guiada por inexplicável impulso, Glória contava as batidas. E ao chegar ao número 27, consciente de que alguma coisa estra­nha estava acontecendo, tentou despertar José Ignacio, seu mari­do. Ele porém, profundamente adormecido, mal se deu conta do que se passava do outro lado da praça.

"Trinta. . . Trinta e uma. . . Trinta e duas. . . Trinta e três. . ."

Ao chegar à badalada número 33, fez-se uma breve pausa.

E o silêncio voltou a descer sobre Sotillo. Entretanto, a que obedeceriam aquelas inexplicáveis badaladas?

 

Glória não fora a única pessoa a quem a súbita volta das batidas alertara. Apesar da cera que lhe tapava os ouvidos, o pre­feito também havia escutado as badaladas. Ele, José Maria, fora arrancado bruscamente do sono pelo insistente e escandaloso gol­pear do martelo no sino.

Ele, sim, sabia que o relógio ainda não fora consertado. E após ouvir os primeiros toques um pensamento lhe veio à mente: "Valha-me Deus! Algum engraçadinho entrou na Câmara..."

Sem pensar duas vezes, saltou da cama, disposto a remediar o contratempo. Mas, ao abrir a porta de casa, verificou assombra­do que a chave de acesso à Câmara continuava pendurada, co­mo de costume, na parede de sua casa.

Naquele momento, agravando a confusão de José Maria, o relógio reencetou suas badaladas. Escorregou-lhe pelas costas um calafrio...

"Não é possível!", pensou, enquanto, sem saber por quê, ini­ciava a contagem desse segundo turno de badaladas.

Sigilosamente, em meio à escuridão, transpôs os poucos cin­qüenta passos que separavam sua casa da fachada da Câmara.

Como suspeitava, a porta do edifício achava-se muito bem fechada. Ergueu o olhar até o alto da negra e delgada torre de ferro que encima a Câmara, desvelando com terror crescente o movimento ritmado do martelo, a açoitar de quando em vez o imó­vel sino de oitenta quilos.

"Deus do céu!" — murmurou. — "Como é possível?"

Percorreu com a vista as janelas e os pequenos olhos-de-boi do edifício, mas as trevas no interior do casarão eram tão densas como no exterior.

"... Trinta... Trinta e uma... Trinta e duas... Trinta e três..."

Ao alcançar a badalada número 33 o martelo não se tornou a levantar. E o silêncio foi devorando o eco daquele último e mis­terioso toque.

O relógio de Sotillo dei Rincón, apesar de parado havia se­manas, fizera soar seu sino 66 vezes.

 

Na manhã seguinte, a confusão do prefeito, longe de dissipar-se, foi crescendo. Chegando ao trabalho, fez minucioso exame visual na fachada da Câmara. Os ponteiros do relógio, imóveis, marcando a mesma hora que marcavam há semanas atrás: quatro vinte José Maria encolheu os ombros. Entretanto, por mais que tentasse, não conseguia tirar da cabeça aquele acontecimento es­tranho. Como era possível que o velho relógio — praticamente morto e com os pesos no chão, a doze metros da maquinaria — tivesse podido ativar o sino?

Mas seu desconcerto foi aumentando quando interrogou, com curiosidade incontida, seus conterrâneos. Nem um — nem sequer suas duas irmãs, que dormem na mesma casa — ouvira as miste­riosas badaladas. . .

Tal fato, sinceramente, parecia-lhe mais prodigioso ainda que o longo e inexplicável toque. Todo mundo em Sotillo, como já se comentou, tinha como ponto de honra dormir e contar ao mesmo tempo as sucessivas badaladas do velho vigia. Ainda mais se os retinidos tivessem alcançado a soma de 66.. .

E é mais provável que o alcaide tivesse contemporizado ou esquecido o incidente, não fora a oportuna intervenção da senhora da Casa Azul.

Naquela mesma tarde de 2 de abril, Glória — tão confusa quanto José Maria — interpelou-o a respeito das misteriosas ba­daladas.

— No começo — disse-lhe —, pensei que você tivesse con­seguido acionar o relógio. Mas esta manhã, ao vê-lo parado. ..

Ele respirou, aliviado. Pelo menos havia em Sotillo outra tes­temunha do desconcertante acontecimento.

A partir dali, agudo pressentimento enraizou-se no espírito da senhora da Casa Azul. Se era fisicamente inviável que a maquinaria do relógio se tivesse posto em movimento, quem teria levantado o pesado martelo e golpeado — 66 vezes! — o sino? E, principalmente, por quê? Que "mensagem" se ocultaria debaixo daquele sinal e por que teria sido ouvida unicamente por dois dos duzentos habitantes de Sotillo?

Glória nem de longe imaginava, então, que algumas das res­postas a tais incógnitas não tardariam a chegar, e pelas mãos de um velho amigo: Sinuhe.

 

Dias mais tarde, a senhora da Casa Azul — por motivos aparentemente alheios e absolutamente divorciados desta história viu-se na contingência de viajar para a sua antiga cidade. E como costumava fazer, também dessa vez procurou reunir um re­duzido grupo de amigos que compartilhavam de suas inquietações.

Sinuhe, há anos espiritualmente ligado à família, acudiu feliz ao chamado de Glória. Durante uma daquelas longas conversações que manteve com a senhora da Casa Azul foi que o investigador veio a saber do mistério das badaladas.

Nenhum dos circunstantes, com exceção de Glória, percebeu o súbito nervosismo de Sinuhe. Tampouco o insólito interesse do jornalista por aquele "curioso fenômeno" e sua imediata torrente de perguntas chegou a alarmar os presentes. Aquela curiosidade, típica no investigador de temas ocultos, parecia normal aos que o conheciam. Apenas Glória, com sua finíssima intuição, detectou no amigo algo além de uma simples curiosidade. . . Concluído po­rém o primeiro e exaustivo interrogatório, Sinuhe desviou o assun­to para outros rumos, adotando sua já clássica fleuma.

Poucas horas depois, a família regressava a Sotillo dei Rincón, praticamente alheia à autêntica motivação da viagem.

Sinuhe, por sua vez, procurando conter a excitação crescente, entregou-se à tarefa de ordenar os primeiros informes sobre o caso das badaladas. Entretanto, naquele momento, seu habitual racionalismo e sistema analítico de trabalho viu-se perturbado, desde o primeiro momento, por uma das quatro frases que memorizara na presença do Kheri Heb:

"AS BADALADAS — 66 — GUIARÃO SINUHE — 6."

Suas primeiras avaliações e as correspondentes conversações em números — sempre segundo a chave de Cagliostro — dos da­dos proporcionados pela senhora da Casa Azul mostraram-se inquietantes.

A soma da data em que o fato tivera lugar (2/4/1 984), da hora em que as badaladas soaram (lh40), das próprias badaladas (66) e da hora em que o relógio da Câmara estava marcando (4h20) projetava um número curioso naquele aparente galimatias: seis.

Por outro lado, guiado por firme mas sutil "mão invisível", Sinuhe somou igualmente as letras que compõem os nomes das duas únicas testemunhas do acontecimento: GLÓRIA e JOSÉ MARIA. Atônito, comprovou que o resultado também era seis!

Sentiu-se tentado a comunicar-se com o Grão-Mestre e adian­tar-lhe tudo o que averiguara. Mas o instinto acabou por dominar aquele primeiro impulso. Tivesse-o feito e talvez seu Kheri Heb houvesse contribuído com um novo e suspeitoso dado que Sinuhe,

logicamente, não conhecia ainda: aquelas 66 badaladas haviam soado exatamente 66 dias depois de recebida em Arecibo a "men­sagem" de "Ra"...

 

Talvez tenha sido melhor. Ou talvez não. . . A verdade é que Sinuhe, entregue já de corpo e alma ao enigma das sessenta e seis badaladas de Sotillo dei Rincón, não soube explicar por que dei­xara que se passassem dois meses após a histórica madrugada de 1 ° a 2 de abril de 1 984, sem que se apresentasse no lugarzinho soriano. De um lado, a própria força da investigação o impelia, desde o começo, a viajar para Sotillo e verificar por si mesmo toda uma série de fios soltos. Por outro lado, aquela "presença" intan­gível, que sempre parecera acompanhar e proteger o investigador, freava ou torcia todas e cada uma das tentativas que Sinuhe fazia para estar no lugar dos acontecimentos.

E o investigador — velho conhecedor do poder de "causali­dade" — deixou-se guiar pela "presença" da sentinela antiga. . .

Até que, na noite de 4 de junho, súbita chamada telefônica precipitou os acontecimentos. Ulla, amiga de Glória e de Sinuhe, informava-o sobre a morte inesperada de José Ignacio, marido da senhora da Casa Azul.

Naqueles momentos de tristeza e desolação, o investigador, lógico, não atinou que o falecimento e posterior enterro de José Ignacio tivesse estreita relação com a terceira frase da "mensa­gem" que ele decorara:

"A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS. . ."

Foi pouco depois de 6 de junho, data da inumação dos restos mortais do querido companheiro de Glória, que Sinuhe, quase por acaso — ou não teria sido por casualidade — detectou este novo indício: desde a madrugada do dia 1.° a 2 de abril, em que se re­gistraram os toques do sino, até o enterro, 66 dias se haviam passado.

Agora, a suspeita de Sinuhe já se cristalizara numa certeza quase total: as 66 badaladas o haviam guiado até a "filha da raça azul". Que outra conclusão tirar?

Duas semanas mais tarde — a 29 de junho — o investigador entrava, enfim, em Sotillo dei Rincón. É evidente que todas essas indagações — e mais as que estava na iminência de iniciar — Si­nuhe as mantinha no mais restrito silêncio. Nem naquela primeira

visita a Sotillo nem nas subseqüentes, Glória soube quais as ver­dadeiras motivações que levavam o amigo a continuar investigan­do o milagre das badaladas. Assim o exigia a disciplina da Escola da Sabedoria e, sobretudo, o desdobrar dos fantásticos aconteci­mentos que se dariam pouco depois. . .

 

Depois de minuciosos e prolongados interrogatórios feitos ao prefeito e a diversos habitantes de Sotillo, Sinuhe pôde confirmar para si mesmo a autenticidade do sucesso. Algumas badaladas que, à primeira vista, escapavam a qualquer lógica.

De acordo com o que relatou José Maria, poucos dias antes daquela misteriosa madrugada, o relógio fora acertado, funcionan­do regularmente. Mas, em conseqüência de umas obras que se realizavam no interior da Câmara Municipal, alguma caliça caiu na maquinaria do relógio, que tornou a parar. Para cúmulo do azar, quando quiseram abrir a porta do edifício, a chave se que­brou e um pedaço dela ficou alojado dentro da fechadura, impos­sibilitando o acesso à Câmara.

Pela mesma razão, Sinuhe não pôde inspecionar o interior do casarão e, o mais importante, a maquinaria do relógio. Tal contratempo de certa forma o irritou, pois não conseguia com­preender, então, aquela série sucessiva de lamentáveis e mesmo estúpidas circunstâncias. Dezessete dias mais tarde, a resposta às aparentes casualidades apareceria. . .

Ante a impossibilidade física de penetrar na Câmara, Sinuhe limitou-se, nessa primeira visita, a meticulosa exploração do exte­rior, assim como dos arredores da Câmara.

Nessa nova paralisação, os ponteiros do relógio ficaram an­corados nas nove horas e seis minutos.

Sinuhe empurrou a porta; mas, realmente, ela estava trancada. Levantou o olhar e divisou, entre as folhas da tília frondosa que guarnece a fachada da Câmara, a torre de ferro, negra e sólida, a coroar o telhado do edifício. No centro da armação, brilhava ao Sol o misterioso sino. Sobre ele Sinuhe observou também um pesado martelo, preso por uma corda metálica à cabina onde devia repousar a maquinaria.

O pesquisador foi inspecionando, palmo a palmo, a totali­dade daquela instalação rústica. O sino, com efeito, parecia soldado à estrutura de ferro.

"O vento não teria podido movê-lo. . ." — argumentou.

No alto da torre, exatamente no vértice, aparecia uma esfera, também de ferro forjado, com umas letras gravadas que Sinuhe não pôde distinguir com exatidão. Sua curiosidade animou-se mais ainda. Mas, por mais que tentasse, a grande distância que o sepa­rava da esfera e a posição das letras — no que poderíamos chamar de "pólo norte" do globo metálico — tornaram-lhe inúteis os es­forços para esclarecer a nova incógnita.

Distinguiu, sim, com toda nitidez, a data — 1 907 — que adornava o cata-vento situado bem em cima do globo de ferro.

De repente, dezenas de andorinhas e gaviões alçaram vôo, fugindo qual relâmpago negro do choupal que rodeava a Câmara.

Sinuhe, alertado pela súbita fuga dos pássaros, tomou o rumo do sombrio bosquezinho.

 

Deteve-se na ourela do arvoredo escuro. O Sol já se precipi­tava para o poente, iluminando não mais que algumas copas mais altas. Por uns segundos, o olhar do investigador percorreu a es­pessa e desordenada vegetação que crescia entre as árvores. Tudo parecia tranqüilo.

"Tranqüilo demais...", refletiu.

Com efeito, a nuvem de pássaros que habitualmente revoava pelo bosque desaparecera. Em seu lugar, denso silêncio. Algo es­tranho estava acontecendo. Por um momento, nosso homem pen­sou na possibilidade de que aquele desacostumado silêncio se devesse à presença, no choupal, de alguma serpente, tão freqüente naquelas paragens. A idéia eriçou-lhe os pêlos. E lentamente, ado­tando toda espécie de precauções, foi-se adentrando na mata espinhosa.

A cada quatro ou cinco passos, Sinuhe detinha-se, apurando os ouvidos. A única resposta, porém, era o silêncio; aquele silêncio que aturde, quebrado somente pelo estalido dos fetos e cardos esmagados sob os pés.

Ao alcançar o coração do bosque, os olhos de Sinuhe, acos­tumados já à penumbra, perscrutaram minuciosamente em torno. A poucos metros, divisou uma pequena clareira. E, sem saber por quê, dirigiu-se para lá.

Uma vez no centro do pequeno claro, Sinuhe deu-se conta de outra circunstância não menos estranha: a superfície da clareira estava atapetada por uma espécie de areia, quase branca e por demais delicada. O emaranhado vegetal que cobria o pe­queno bosque interrompia-se bruscamente no perímetro daquele claro. Sinuhe, de cócoras, tomou de um punhado de areia para examiná-la. Quando a estendeu na palma da mão, os microscópicos grãos emitiram leves lampejos. Tão surpreso quanto maravilhado, deixou escorregar a misteriosa areia, que formou, na mesma hora, uma deslumbrante cascata de luz. Curiosamente, entretanto, ao voltar à superfície da clareira, aqueles grãozinhos perdiam a fas­cinante luminosidade, recuperando o tom acinzentado.

Durante longo tempo Sinuhe brincou com a areia misteriosa, tentando desvelar o enigma. Porém o crepúsculo, mais e mais denso, tornava impossível uma análise detalhada. Cheirou os di­minutos e refulgentes corpúsculos, sem resultado. E estava a ponto de prová-los com a ponta da língua quando, de repente, um cala­frio percorreu-lhe a espinha. Sinuhe teve a sensação de que alguém o observava fixamente. Soltou a areia e, cuidando de manter-se calmo, foi erguendo-se lentamente. Tornou a eriçar-se-lhe o pêlo dos braços e da nuca. Não restava dúvida: alguém — quem sabe um animal — estava nos arredores da clareira. Embora o jor­nalista fosse homem acostumado, em suas múltiplas correrias no­turnas, a dominar o medo, esse inconfundível sentimento humano que nos adverte de perigo iminente palpitou, uma vez mais, no coração de Sinuhe.

Muito lentamente, centímetro a centímetro, o repórter foi girando sobre os calcanhares, tentando vislumbrar alguma coisa na espessa negrura.

O silêncio se tornara insuportável. Tudo ao redor parecia morto. Fora do tempo. Por mais que perfurasse as silhuetas negras das árvores e os perfis informes da floresta, não percebeu sons nem movimentos. O coração, entretanto, bombeando acelerada­mente, continuava a adverti-lo de uma presença estranha. "Mas onde?", repetia sem saber a que agarrar-se.

Daí a poucos instantes, Sinuhe sofreu nova comoção. À sua frente e a pouco mais de meia dúzia de passos, viu uma sombra cruzar e desaparecer precipitadamente atrás de um dos altos ma­ciços de fetos. Empalideceu. Sua freqüência cardíaca disparou e o medo já lhe secava a garganta. Na tentativa de recuperar o domí­nio sobre si mesmo, quis convencer-se de que, a julgar pela di­minuta estatura da sombra, talvez estivesse sendo espiado por algum menino do povoado. Essa hipótese o tranqüilizou um pouco. Reunindo coragem, avançou um par de metros, saindo da clareira.

"E se for imaginação minha?", perguntou-se. Mas a idéia foi rechaçada em cheio, quando descobriu o ligeiro agitar das aver­melhadas e serrilhadas folhas dos fetos-machos por onde passara a silhueta fugaz.

Sinuhe sondou o fundo do bosque, seguindo com a vista a direção que parecia levar ao hipotético menino. Mas a exploração visual foi infrutífera. A sombra desaparecera.

"Só vejo uma possibilidade" — prosseguiu raciocinando. — "... Talvez se tenha escondido entre as árvores..."

Disposto a livrar-se das dúvidas, continuou avançando.

 

Com ânimo abatido, foi percorrendo o primeiro grupo de árvores, afastando lenta e cuidadosamente a mata agreste.

Ao cabo de dez minutos de busca estéril, o investigador, um pouco mais sereno, suspendeu a perseguição. Encolheu os ombros e pegou o maço de cigarros. Mas, quando estava a ponto de acen­der um, súbito vento gelado apagou a chama. Paralisado de sur­presa, Sinuhe não moveu um só músculo. Em um décimo de se­gundo, seu cérebro formulou apenas uma interrogação:

"Mas que é isso?. . . Vento gelado em pleno verão?".

Mecanicamente, voltou a acender o isqueiro. A chamazinha azul oscilou levemente e, num instante, outro jorro de ar gelado acabou com seu propósito.

Desta vez consciente de que aquela misteriosa corrente não podia ser natural, nem tentou repetir a operação. O sopro, e disso tinha certeza, vinha do alto. O medo tornou a invadi-lo. Alguma coisa ou alguém achava-se por cima de sua cabeça. E a imagem da sombra correndo veloz na espessura veio-lhe imediatamente à mente.

Apesar daquelas duas golfadas geladas, a testa de Sinuhe :ou ensopada de suor. O instinto o impelia a correr, a safar-se daquele maldito bosque. Mas a curiosidade, ainda dessa vez, foi mais forte. E engolindo saliva, ergueu o rosto. "Jesus Cristo!. . ."

A pouco mais de dois metros por cima de sua cabeça, o aterrorizado investigador descobriu uma figura monstruosa. Essa, ao menos, foi a primeira impressão.

Empoleirado em um dos ramos mais baixos da árvore mais próxima, encontrava-se um ser de pequena estatura. Em pé sobre o galho, segurava-se ao tronco com a mão direita. Ambos os bra­ços eram extraordinariamente longos e desproporcionados. O es­querdo, quase colado ao corpo, chegava abaixo do joelho. Tinha um crânio volumoso e em forma de pêra invertida, e um rosto perceptível apenas.

Os olhos — pareciam na realidade dois pontos ou orifícios escuros, rodeados de uma espécie de circunferência córnea e sa­liente — fixavam-se nos de Sinuhe. Este, paralisado primeiro pela surpresa e pelo pânico, depois, não conseguiu reagir.

A escassa luminosidade não lhe permitiu perceber muitos detalhes. Num gesto instintivo abaixou a cabeça, acreditando-se presa de alguma alucinação. Mas ao voltar outra vez os olhos para aquela "coisa", ela havia desaparecido. No cérebro de Si­nuhe, porém, a imagem daquele ser continuava viva. Confuso, tentou organizar seus pensamentos. "Que é que está acontecendo?"

Inexplicavelmente o medo desaparecera, esvaziado diante da possibilidade de tudo aquilo não ter passado de uma peça de mau gosto pregada por sua mente. Senão, como explicar a desaparição do pequeno e monstruoso indivíduo?

Seu impulso seguinte foi sair do bosque. Estava a ponto de fazê-lo quando, subitamente, pelo rabo do olho, acreditou ver uma espécie de luminoso fogaréu no centro da clareira.

Voltando-se, nosso homem outra vez ficou petrificado. "Jesus Cristo!. . . Então, não era alucinação!" Efetivamente, Sinuhe tinha diante de si a pequena criatura. "Mas como pôde?..."

O homenzinho — ou o que quer que fosse — surgira sem se anunciar no centro geométrico da clareira. E Sinuhe, atônito, agachou-se entre os fetos, disposto a observar até o mínimo movi­mento do extraordinário personagem.

A criatura, ligeiramente debruçada sobre a areia, parecia ausente e distraída. Apanhou um punhado daquele pó e, erguendo-se, esticou o longo braço direito, lançando o conteúdo da mão em direção a uma das árvores próximas. Porém, para assombro do repórter, de seus dedos não saíram os minúsculos grãozinhos. A areia se transformara em um finíssimo fio luminoso, formado por centenas, talvez milhares, de microscópicos pontos de luz. Em fração de segundo, o resplandecente feixe branco-azulado mer­gulhou na casca da árvore, desaparecendo.

O ser, durante alguns segundos, contemplou o alvo em que incidiu o enxame luminoso. Nesse momento, o investigador se apercebeu de um novo e desconcertante detalhe: o corpo do ho­menzinho parecia transparente. Através da criatura, ele podia ver as árvores do outro lado da clareira.

Em seguida, o ser abaixou-se, recolhendo um segundo pu­nhado de areia. E repetiu a operação, mas desta vez em outro dos delgados troncos que se levantavam à volta da aberta.

O novo fogaréu iluminou parte da clareira, como também o rosto e o dorso da criatura. Sinuhe pensou distinguir-lhe uma sorte de escudo ou emblema circular no centro do peito. À pri­meira vista, pareciam três círculos concêntricos. Em virtude porém do seu crescente nervosismo, não podia assegurá-lo.

Como se se tratasse de um jogo — ou de um absurdo passa­tempo —, o pequeno ser foi repetindo os lançamentos, até um to­tal de seis. Cada rajada luminosa atingiu uma árvore diferente, de forma tal que, ao concluir, seis dos troncos que formavam o perí­metro do claro apareceram chamuscados ligeiramente. Sinuhe, segurando a respiração, não atentou muito para as manchas ene­grecidas e fumegantes que foram surgindo nas cascas das árvores. A penumbra e a distância, além do mais, dificultavam-lhe a obser­vação. A criatura, essa sim, parecia interessada no resultado de cada um dos impactos. E, como digo, ao efetuar as desconcertantes manobras, repetia suas observações. Para a atônita testemunha, o fascinante era o incrível personagem que tinha à frente. Na pri­meira dedução, precipitada, o investigador o associou com um dos tipos de humanóides ou tripulantes dos OVNIs, extensa e exausti­vamente estudados por ele. Tal pensamento fê-lo vibrar de emoção. Em que pesem os muitos anos de perseguição, jamais tivera oportunidade de avistar-se com esses seres. E agora, casualmente, encontrava-se a pouco mais de cinco metros de um deles. ..

Entretanto, baseado no que acumulara de observações, "algo" havia que não se encaixava na mente de Sinuhe. As características da criatura — a total transparência, em especial — não correspondiam às descrições que paulatinamente fora reunindo sobre eles. Por outro lado, aquele rosto. .. Sinuhe não poderia jurá-lo, mas estava quase certo de que não tinha boca nem nariz... O volumoso e a pequena estatura — talvez um metro —, isso sim, eram depoimentos "habituais" nos testemunhos de encontros com esse tipo de ocupantes dos "objetos voadores não identifica­dos". Sinuhe, naquele momento, sequer podia suspeitar que se encontrava ante uma criatura muito mais fantástica e, inclusive, "comum" — embora possa parecer um contra-senso — que os extraterrestres que ele perseguia com tanto empenho.

 

Concluída a misteriosa função, a criatura girou lentamente, postando-se bem defronte ao esconderijo de Sinuhe. Melhor que ver, sentiu o olhar daqueles olhos negros como a noite a perfurar o matagal que o ocultava, cravando-se nos seus. Na mente do in­vestigador ecoou uma voz clara e profunda, muito familiar.

"Lembre-se do meu sinal... O de Micael!..."

E o ser, mirando sempre o ponto onde se escondia Sinuhe trêmulo, cruzou as mãos sobre o peito. Naquele instante, os três círculos concêntricos que formavam aquela espécie de escudo ou emblema adquiriram uma tonalidade celeste brilhante, que foi in­vadindo a clareira, até ocultar com sua luz ofuscante a figura do homenzinho.

Deslumbrado, o jornalista protegeu os olhos com o braço direito. Mas, tal como acontece quando se olha fixamente o Sol, no cérebro dele ficou a flutuar uma informe mancha negra.

O medo tornou-se mais intenso e Sinuhe, instintivamente, afastou o braço, esforçando-se para não perder de vista o desco­nhecido. Sua surpresa foi enorme. A criatura desaparecera pela segunda vez!

Nosso homem forçou a debilitada visão, no afã de localizá-la. Mas as árvores e o matagal pareciam desertos. Daquela torrente luminosa, emanada dos três círculos concêntricos, não restava o menor vestígio. Tudo voltara ao normal. O prolongado e insólito silêncio terminara; o bosque recuperou sua palpitação própria. Sinuhe, ainda de joelhos, explorou o alto do choupal, mas não conseguiu ver qualquer traço da aparição misteriosa. Alguns pás­saros voltaram a revoar entre os ramos, enchendo o espaça com seus costumeiros trinados.

Durante minutos, Sinuhe, que afinal se levantou, permaneceu confuso e com o olhar perdido no vazio. Em sua mente, soavam ainda aquelas palavras inexplicáveis, mescladas agora com uma avalancha de perguntas.

"...Terei sonhado?. . . Que aconteceu comigo?. . . Quem era aquele ser?. .. Lembre-se do meu sinal!. . . Mas que sinal?... O de Micael!. .."

Aturdido, não soube nunca quanto tempo permaneceu imóvel na clareira. Finalmente, quando recuperou o ânimo necessário, um pensamento o impeliu para a areia:

". . . As árvores. . . Se tudo não passou de uma alucinação" — repetia enquanto dava os poucos passos que o separavam do claro — "os troncos devem continuar intactos. . ."

Ao pisar o pó misterioso, um calafrio sacudiu-lhe as entra­nhas. A um metro e meio do chão, seis das doze árvores que en­cerravam o círculo exibiam uma estranha marca.

Arrepiado, se foi aproximando de um daqueles sinais. Na acinzentada casca da árvore estavam desenhados — ou mais exa­tamente "gravados" — três círculos concêntricos enegrecidos, com cerca de dez centímetros de diâmetro.

Tomando todo tipo de precaução, explorou as circunferên­cias, verificando que, na realidade, tratava-se de várias e profundas queimaduras. Tocou com as pontas dos dedos as estreitas franjas negras, mas estavam frias como o resto da árvore.

"Como pode ser" — perguntou-se, ao passo que se dirigia a outra das marcas —, "se há poucos minutos fumegavam ainda?. . . Ou não teria sido questão de minutos?"

Consultou o relógio. Tranqüilizou-se. Não se havia passado meia hora desde que se decidiu a enveredar pelo bosquezinho.

Foi examinando um por um dos sinais. Eram todos idênticos. E todos, curiosamente, encontravam-se à mesma distância do chão e eqüidistantes do centro da clareira. Mas por quê? Que significavam aqueles três círculos concêntricos? E, principalmente, quem era aquela criatura? Existiria alguma relação com o fenô­meno das 66 badaladas?

Movido por insaciável curiosidade, ajoelhou-se na delicada areia e, pegando um punhado dela, preparou-se para executar a mesma manobra do homenzinho.

 

Ao serem apanhados na clareira aqueles milhões de diminutos corpúsculos tornaram a cintilar na palma da mão de Sinuhe. Ele, sem conter a emoção, lançou-os em um dos troncos não marcados pela criatura. Desiludido, comprovou que a rajada luminosa estatelava-se na casca e caía docemente. Não aconteceu nada. Dando de ombros, pegou o lenço e nele guardou uma pequena porção daquele pó desconhecido.

Lançou pelo bosque um último olhar e, com passo acelerado, abandonou-o.

A aldeia seguia sua habitual e singela rotina. Ninguém, nem mesmo a senhora da Casa Azul, sentira nada de anormal. Sinuhe, tendo formulado discretas perguntas aos habitantes mais próximos do bosquezinho, convenceu-se de que aquele insólito encontro se dera só com ele. Tal circunstância, longe de tranqüilizá-lo dupli­cou, se é que isso é possível, sua perplexidade. Pouco faltou para que, ao longo daquele entardecer, durante um tranqüilo passeio pelos arredores de Sotillo, Sinuhe revelasse a Glória tudo o que vira. Seu senso de disciplina, entretanto, cristalizou uma vez mais seus desejos. Antes, teria de informar seu Kheri Heb. . . E obede­cendo a plano já estabelecido, abandonou Sotillo, pretendendo ultimar as investigações programadas. Numa tentativa para apurar as possíveis e hipotéticas — cada vez mais hipotéticas — explica­ções que talvez pudessem justificar as 66 badaladas, o membro da Escola da Sabedoria dirigiu-se primeiro ao Observatório Meteoro­lógico de Soria. O próprio chefe do centro, Ricardo Garcia Acinas, afirmar-lhe-ia que, naquela madrugada de 1.° a 2 de abril de 1 984, não havia sido registrado nenhum fenômeno meteorológico capaz de provocar as 66 badaladas. O vento Oeste, com uma ve­locidade de dez quilômetros por hora — "talvez até mais na região de Sotillo", aventou o meteorologista —, jamais poderia mover o peso do sino, fortemente soldado em sua torre, e, muito menos, levantar uma só vez que fosse o pesado martelo de ferro.

Em uma segunda investigação, o Instituto Sismológico, sediado na cidade de Toledo, ratificaria a suspeita de Sinuhe: ". . . nessa noite" — declarou-lhe o próprio diretor, Gonzalo Paz —, "nossos aparelhos não detectaram movimento sísmico al­gum em nosso país".

Quando Sinuhe o interrogou sobre a intensidade necessária para que possa um terremoto mover e fazer soar um sino, o diretor do instituto foi claro e contundente: "Seria necessário um abalo de grau 4 na escala de Mercali".

Aparentemente, pelo menos, as 66 badaladas não tinham explicação lógica. Sinuhe considerou então que havia chegado a hora de uma nova entrevista com seu Kheri Heb. . .

 

Nos primeiros dias daquele mês de julho de 1 984, Sinuhe utilizou o código secreto da Escola da Sabedoria, aprazando uma segunda reunião com o Grão-Mestre em Madri. O Kheri Heb ouviu atentamente a exposição do "soror" que, em seguida, en­tregou ao alto funcionário israelense um frasquinho de vidro com a misteriosa areia recolhida no bosque de Sotillo. O Mestre da Loja secreta limitou-se a observar em silêncio o alvo conteúdo do recipiente. Sinuhe, sem conseguir conter a curiosidade, tentou forçar uma resposta; uma explicação que fosse, que dissipasse as brumas que lhe envolviam o cérebro:

— Mestre. . . é fato evidente e objetivo que essas inexplicá­veis sessenta e seis badaladas me terão conduzido até a "filha da raça azul". E não é menos verdadeiro que a senhora da Casa Azul "abriu a terra em sessenta e seis dias". Apesar de tudo, como po­demos ter a certeza de que se trata, efetivamente, da pessoa que buscamos?

O Kheri Heb sorriu e, apanhando o envelope branco enviado pelo Conselho Supremo da Irmandade, sacou os dois documentos que ele continha. Sinuhe, lembramo-nos, conhecia o texto de um deles. O Grão-Mestre, no entanto, nada lhe dissera do segundo.

— Por desejo expresso da Ordem — manifestou-se o Kheri Heb, apontando o documento secreto —, nenhum dos irmãos que participaram dessa missão recebeu uma informação que comple­mentasse a busca e que, por razões de segurança, só se revelaria ao "Sinuhe" que verdadeiramente fosse guiado pelas sessenta e seis badaladas.

Sinuhe percebeu um brilho de alegria nos olhos do Mestre.

— ". . .O eleito" — continuou, enquanto ia lendo o documen­to — "receberá ne-ces-sa-ri-a-men-te. ..".

O Kheri Heb saboreou cada uma das sílabas da palavra.

— "... Receberá, ne-ces-sa-ri-a-men-te, o sinal e a bandeira de Micael, o Filho Criador do Paraíso."

E ele aguardou a reação do discípulo.

— Sinal e bandeira de Micael?.. . Então — retomou Sinuhe, batendo na mesa com a palma da mão —, a voz que soou em meu cérebro.. .

O Mestre fez que sim com a cabeça.

— Mas qual é o sinal?

O impaciente membro da Escola da Sabedoria, entretanto, não deu tempo ao Kheri Heb. Dando um segundo tapa na mesa, respondeu a si mesmo:

— Jesus Cristo!... Os três círculos concêntricos! Agora com­preendo — balbuciou, sob o olhar divertido do israelense —. Aquela criatura.. . sim.. . aquela criatura me comunicou qual­quer coisa: "Lembre-se do meu sinal... O de Micael!..."

Sinuhe, sem dissimular a contrariedade pelo fato de não ha­ver captado logo o significado oculto daquela mensagem, baixou os olhos, envergonhado. Ele sabia, como membro da Ordem, quem era e o que representava Micael. E sabia também qual era o sinal e a bandeira do Filho Criador do Paraíso: três círculos azuis e concêntricos sobre fundo branco.

O Kheri Heb não permitiu que se abatesse.

— Caro Sinuhe, você não poderia saber que a criatura era o que a Escola da Sabedoria chama um "mediano"... Mas permi­ta-me que eu prossiga segundo o plano estabelecido pelo Conselho Supremo da Irmandade.

E o Mestre concentrou a atenção no documento secreto. Ao concluir a leitura, acomodou-se no escuro e reluzente encosto da cadeira de couro e, adotando um tom displicente, encetou um re­latório que Sinuhe jamais esqueceria.

 

— Há já alguns anos, estimado Sinuhe, os astrônomos de­tectaram um astro desconhecido que se avizinhava do nosso sistema solar. A notícia foi divulgada logo, mas poucas pessoas (com ex­ceção de alguns observatórios e dos nossos Kheri Hebs) presta­ram-lhe atenção. Hoje, precisamente desde 27 de janeiro passado, sabemos que esse corpo celeste (batizado pelos astrônomos com o nome de "Ra-6 666") não é um astro como os demais...

Sinuhe, suspenso com a narração, não chegava a entender, mas conteve-se.

— ... Pois bem; na madrugada daquele 27 de janeiro, se­guindo instruções do Conselho Supremo, dois radioastrônomos de Arecibo, membros .como nós da Escola da Sabedoria, enviaram uma mensagem secreta a "Ra-6 666". A resposta (tal como reza um de nossos papiros mais antigos e sagrados) não se fez esperar. "Ra" transmitiu ao radiotelescópio uma chave que você conhece e que felizmente já se resolveu.

O Mestre percebeu nos olhos do "soror" uma enxurrada de perguntas e pediu-lhe calma com as mãos; prosseguiu:

— Um momento, Sinuhe. É melhor que ouça primeiro tudo

o que tenho para dizer-lhe. Essa mensagem, como lhe dizia, que você conhece, consta de quatro frases. A segunda e a terceira ("AS BADALADAS — 66 — GUIARÃO SINUHE — 6" e "A FILHA DA RAÇA AZUL ABRIRÁ TERRA EM 66 DIAS — 6") foram pontualmente cumpridas. Quanto à primeira e à última frases ("Ra-6 666" ABRIRÁ O NOVO TEMPO — 6" e "O JUL­GAMENTO DE LÚCIFER — 666 — CHEGOU — 6"), é o que o Conselho Supremo da Escola da Sabedoria me autoriza a re­velar-lhe.

O Kheri Heb mudou o tom de voz e, de forma incisiva, de­clarou:

— Devo esclarecer-lhe que, se uma vez conhecida esta se­gunda missão que a Ordem deseja pôr-lhe nas mãos, sua resposta for negativa, você deverá esquecer tudo o que sabe...

O investigador, sem hesitar, assentiu com a mesma firmeza com que seu Mestre se desincumbira de tal esclarecimento.

— Está bem. Continuemos. . . Como lhe vinha dizendo, de acordo com a interpretação do Grão-Conselho, a presença desse astro "intruso" representa (segundo se depreende do sentido da primeira frase da mensagem) que a Humanidade deste planeta em que vivemos está na iminência de abrir ou iniciar um "novo tempo". Um tempo (preste muita atenção, Sinuhe) que tem muito que ver com "Ra" e, sobretudo, com o julgamento a que está para ser submetido nosso antigo Soberano Sistêmico: Lúcifer. Você aprendeu, através dos ensinamentos do nosso Templo, qual é a organização "administrativa" dos sete superuniversos. A Irman­dade mostrou-lhe o maravilhoso plano divino do Pai Celestial e de seus filhos "descendentes" e "ascendentes" no inevitável cami­nho da Perfeição. Mas os conhecimentos da Escola da Sabedoria são ainda muito limitados. Há milhares de perguntas que nos fa­zemos sempre e que você mesmo ventilou em reuniões com os demais "sorores". Agora, finalmente, temos aqui a oportunidade única de saciar um pouco dessa sede de conhecimento.. .

O Kheri Heb, com entusiasmo crescente, desandou a formular ma série de interrogações que eletrizaram também o perplexo membro da Ordem secreta:

Pela graça dos Anciãos dos Dias, caro Sinuhe, é-nos possibilitado conhecer quem é verdadeiramente Lúcifer. .. Por que se rebelou? Quais foram as causas e razões da sua rebelião? Até que ponto foi grave a sua desobediência? A quem arrastou consigo? E, acima de tudo, quais as repercussões dessa rebelião para o nosso mundo? Que há de real ou de simbologia no pouco que a Bíblia conta?... :

Transbordando, Sinuhe interrompeu o Kheri Heb com uma só e lógica pergunta:

— Mestre, mas quem terá o poder de desvelar esses mis­térios?

A pergunta objetiva de Sinuhe contribuiu, não pouco, para estabilizar o crescente entusiasmo do Mestre. Este, inspirando pro­fundamente, compreendeu que não devia precipitar-se. E, para grande alívio do discípulo, entrosou-se com as perguntas concretas que ele havia começado a propor-lhe.

— Estas e outras muitas questões, irmão querido, podem ser desvendadas pela filha da raça azul e por você mesmo, Sinuhe. . . se você aceitar a missão que "Ra" transmitiu à Escola da Sabe­doria.

— Um momento. . . — interrompeu-o nervoso Sinuhe —, que ou quem é "Ra"?

— Como eu começava a expor-lhe, para os observatórios astronômicos trata-se apenas de um astro periódico, com uma órbita cíclica de 6 666 anos e que em 27 de janeiro passado cruzou a órbita de Plutão, em uma aflitiva viagem em direção ao nosso planeta ou, talvez, até o Sol. . .

Sinuhe empalideceu.

— ... Para nós, entretanto — prosseguiu o Kheri Heb em tom tranqüilizador —, "Ra" é muito mais. Sabemos que não é um corpo sideral como outro qualquer. Seres altamente evoluídos e responsáveis pela administração do nosso universo local de Nebadon dirigem e controlam "Ra": uma das magníficas esferas artifi­ciais que habitualmente rodeiam Jerusem, a capital (como você sabe) do nosso sistema. E tal como consta de nossos papiros sa­grados (os da "Quinta Revelação"), "Ra" desloca-se pelo nosso sistema satânico a cada 6 666 anos terrestres, com diversificadas missões. A nós, neste momento, tocou-nos por sorte sermos teste­munhas (e protagonistas, se você aceitar a missão) de uma nova "ronda" da roda de "Ra".

Sinuhe, como discípulo da Ordem, estudara os papiros sagra­dos denominados de "Quinta Revelação" — aos quais me repor­tarei logo —, mas, apesar disso, continuava confuso.

— E, que relação existe entre a primeira frase da mensagem

(“ 'RA-6 666' ABRIRÁ O NOVO TEMPO") e a última ("O JULGAMENTO DE LÚCIFER — 666 — CHEGOU")?

— Como você sabe, pelos seus estudos, o tempo é um con­ceito psicológico, cujo valor se altera de acordo com o lugar de onde se meça. Para nós (mortais), um ano no planeta Terra equivale a 365 dias e um quarto. Mas esse conceito do tempo não é igual para os seres que habitam nosso universo local ou qualquer dos sete superuniversos e, é claro, para as altas hierarquias do Uni­verso Central de Havona, sede da Ilha Eterna do Paraíso. Pedro disse-o com extrema objetividade em sua segunda carta (3.8): "Amadíssimos, que não se oculte, entretanto, este fato: um dia é, perante Deus, como mil anos e mil anos como um dia". Com isso quero dizer-lhe que (segundo a interpretação do Conselho Supre­mo da Ordem) o iminente julgamento de Lúcifer abrirá uma nova era para o nosso mundo e para todos aqueles que foram arrastados na rebelião. Embora para esta humanidade "ascendente" e evolucionista possam ter-se passado centenas de milhares de anos desde aquela desgraça, para os altíssimos seres que regem os superuni­versos, esse tempo é realmente insignificante. E o fato objetivo e fascinante é que (por razões que nos escapam) a Divindade está a ponto de julgar o grande rebelde. Isso pode significar o final da "quarentena" que vem sofrendo a Terra desde o momento em que o então príncipe planetário (Caligastia) decidiu unir-se à insurrei­ção de Lúcifer. Uma "quarentena" que, você também não ignora, significou insulamento, dor e atraso para este mundo infortunado.. .

— Mestre — lamentou-se Sinuhe —, continuo sem entender o que tem que ver tudo isso com a filha da raça azul e também comigo.

O Kheri Heb voltou a socorrer-se do segundo documento:

— Nesta informação secreta, complementar da que você já conhece, o Conselho Supremo da Escola da Sabedoria nos informa sobre uma série de fatos que tentarei resumir para você: uma vez localizada a filha da raça azul, e a título de compensação pelos sofrimentos experimentados por este planeta em virtude da rebe­lo, os Anciãos dos Dias determinaram que nossa Humanidade (da mesma forma que os mundos que foram igualmente arrastados rebeldes) esteja representada no julgamento de Lúcifer. Essa representação, como é justo, só será cabível se se der através de um descendente vivo da raça mais nobre de cada um desses plane­tas, atualmente em "quarentena". "Ka" indicou esse representante humano (a "filha da raça azul") e como identificá-la: pelas ba­daladas. ..

— Assistir ao julgamento de Lúcifer?... Sinuhe, já de pé, formulou a pergunta, incrédulo.

Mas as surpresas estavam apenas começando para ele...

 

Com rosto grave, pediu-lhe o Mestre que se sentasse.

— Sim, você o disse. E essa delicada missão tem uma pri­meira fase da qual (se vocês dois aceitarem) nossa Ordem e o mundo inteiro poderão obter respostas completas, respostas para muitas indagações que se formulavam há um momento. .. Lembre-se de que a humanidade nada sabe sobre os motivos reais daquela revolta celestial e de suas conseqüências.

— Bem — solicitou novamente o investigador —, em que consiste essa primeira fase da missão e qual o papel que me toca?

— Como você mesmo pôde observar, a filha da raça azul não está consciente de sua verdadeira identidade. Centenas de milhares de anos transcorreram desde a rebelião, e a passagem do tempo apagou qualquer vestígio daqueles acontecimentos e dos seres que participaram deles direta ou indiretamente. Ela, é lógico, ignora quais foram seus remotos antepassados (os homens da raça azul) e a missão transcendental que desempenhou na Terra o pri­meiro casal dessa estirpe singular: Adão e Eva.

Ao ouvir esses nomes, Sinuhe Sentiu um calafrio.

— ... Pois bem, sua missão, antes que a filha da raça azul decida-se a assistir ou não ao grande julgamento, consiste em pre­pará-la e, quando chegar o momento, supondo-se, repito, que você assuma a responsabilidade, acompanhá-la. . .

— Eu?. .. Acompanhá-la, eu, ao julgamento de Lúcifer?

E, sem poder conter-se, foi assaltado por um ataque de riso. O Kheri Heb, consciente da tensão que ele vinha suportando, dei­xou que o "soror" aliviasse o ânimo.

— Sinto muito, Mestre — dominou-se afinal —. Não pude evitá-lo. . . Mas você sabe que não tenho sangue de herói. Não passo de um homem atormentado, que despreza a si próprio. Por que precisamente eu?... ,

— Eu poderia responder em parte essa questão; mas não o farei. .. por ora. Se você aceitar essa missão, haverá alguém muito mais importante que eu que poderá satisfazer-lhe a curiosidade. Por outro lado, tentarei esclarecer-lhe a pergunta anterior. Por que ser você o acompanhante da filha da raça azul no julgamento de Lúcifer? Em primeiro lugar (de acordo com os planos superio­res), uma vez completado o treinamento da filha da raça azul, sua missão também terá terminado.. . a não ser que, livre e volunta­riamente, você aceite unir-se à "eleita" para localizar os arquivos secretos de IURANCHA. Será o final dessa primeira fase da mis­são. Só então, quando esses arquivos tiverem sido descobertos, começará para a filha da raça azul (e talvez para você) a segunda e última parte dessa "aventura" apaixonante: a presença no julga­mento de Lúcifer.

— Os arquivos secretos de IURANCHA!

Sinuhe disse as palavras com reverência. Ele sabia que o nosso planeta é conhecido no Universo não como a "Terra", mas como IURANCHA. Estudara também que, depois do caos produ­zido pela rebelião, os arquivos secretos do mundo — com toda a sua História — haviam caído em poder dos rebeldes. Amparados pela rígida "quarentena" decretada sobre IURANCHA, os parti­dários de Lúcifer e Caligastia haviam ocultado esse imenso "te­souro" das vistas dos seus legítimos proprietários: os humanos autóctones de IURANCHA. Assim, mantendo a humanidade alheia e distante da Verdade, sua possibilidade de controle e do­mínio dos povos se mantinha viva, semeando a dúvida, a confusão e a ignomínia entre os cegos e desditosos povoadores do planeta.

A Escola da Sabedoria tivera conhecimento da existência desses arquivos secretos através dos papiros da "Quinta Revela­ção". Mas, até aquele momento, todas as tentativas para descobri-los e resgatá-los se haviam frustrado.

Sinuhe assentiu com a cabeça. Agora, sim, começava a com­preender.

"Os arquivos secretos!..."

 

Vibrando de emoção, aceitou.

- Farei tudo o que estiver em minhas mãos. Mas por onde devo começar?

O Kheri Heb, sorridente, dirigiu-se ao cofre, voltando com um grande envelope fechado. Depositou-o nas mãos do discípulo, dizendo-lhe:

— Você tem aqui informações precisas para iniciar o ades­tramento da filha da raça azul. Você deve estudá-las meticulosa­mente. Parte delas já lhe foi revelada pelo Templo. O resto, e dada a natureza da missão que você acaba de assumir, foi expressamente autorizado pelo Grão-Conselho. Não se surpreenda com o que logo vai conhecer. . . Guarde-o no fundo do coração e procure fazer bom uso disso. Você deverá transmitir esses conhecimentos à "eleita" de "Ra". Quando julgar oportuno, junte-se a ela e inicie sua preparação. Dificilmente poderá assistir ao julgamento de Lúcifer, se antes não se tiver feito luz em seu espírito. Mas essa "luz" não se encontra só neste conhecimento que lhe estou entregando. Assim que terminem esse primeiro treinamento, a filha da raça azul e você mesmo deverão coroar a preparação com a busca dos arquivos secretos de IURANCHA e com a Verdade que encerram.

O investigador acariciou o lacre vermelho que selava o enve­lope, que trazia impresso o escudo da Loja: uma serpente enroscada entre dois olhos. . . Permaneceu assim, pensativo, por longos mo­mentos.

Finalmente, levantando o olhar para o Mestre, perguntou:

— E se a filha da raça azul não aceitar? O Kheri Heb pareceu surpreso.

— Você, que a conhece, duvida?

Uma vez mais, o Mestre ficava com a razão. Sinuhe sabia que Glória não era dessa espécie de pessoas que recuam ante as difi­culdades ou os desafios. No fundo, era como ele. . .

— Mais alguma pergunta?

— Sim, claro. . . Uma vez concluído o adestramento, como saberemos?...

O Mestre apontou o envelope e respondeu:

— Siga as instruções. Já lhe referi que outra "personalidade", muito mais importante que eu, abrir-lhes-á o caminho.. .

O jornalista se pôs em pé e, antes de estreitar a mão do Kheri Heb, comentou quase de si para si:

— Uma "personalidade", suponho, que tem muito que ver com "Ra"...

Mas o Mestre, com um sorriso de cumplicidade, limitou-se a dizer:

— Boa sorte, Sinuhe!... E que a força e a sabedoria do Gerador o acompanhem. Esperarei, impaciente, seu feliz regresso.

 

3 - A "QUINTA REVELAÇÃO"

A algumas horas dessa nova e secreta entrevista, Sinuhe viu-se, uma vez mais, assaltado pela dúvida. Ao examinar o con­teúdo do envelope lacrado, seu entusiasmo esfumou-se quase todo. Em sua mente, fruto talvez de seu afiado senso crítico, foi-se ins­talando uma idéia que por pouco não o faz desmontar daquela missão aparentemente disparatada.

"Estarei ficando louco?. . ."

A contragosto, obrigado somente pela promessa feita perante o Mestre, retomou uma vez ou outra as informações que devia transmitir à filha da raça azul. O Templo do Conselho Supremo da Escola da Sabedoria pusera em suas mãos parte dos chamados papiros sagrados da "Quinta Revelação". Textos remotíssimos que Sinuhe, tal como os demais membros da Loja, fora conhecendo paulatinamente. A primeira parte dessa documentação — a refe­rente à "Organização Administrativa do Universo Central e dos Superuniversos" — era-lhe sobejamente familiar. O mesmo não acontecia com a segunda, que, sob o sugestivo e genérico título de "A Primeira Família Humana em IURANCHA", dava a conhecer insólita e fascinante versão dos primeiros seres humanos no pla­neta Terra. Narração "revelada", como o resto dos papiros sagra­dos, por uma plêiade de "autoridades celestes", tão enigmáticas e perturbadoras como o conteúdo desses papiros. A hipotética "paternidade celeste" fora motivo, em número infindável de vezes, de duros confrontos entre Sinuhe e os demais "sorores" da Loja. Para investigador, a lógica formidável dos papiros não justificava a plena aceitação deles pela Ordem e, muito menos, seu caráter de “revelados". E foi esta circunstância que, uma vez concluído o estudo desses informes sobre a História de IURANCHA, voltou a espicaçar a sua curiosidade.

Sinuhe não podia, apesar de tudo, relegar as últimas expe­riências vividas na aldeia da filha da raça azul.

"Seja como for" — confabulou consigo mesmo —, "talvez a resposta para essas indagações esteja precisamente nessa desvai­rada e absurda busca dos arquivos secretos. . ."

E, um pouco mais animado, resolveu viajar para Sotillo e transmitir à amiga o que lhe fora recomendado.

 

A senhora da Casa Azul e os demais conhecidos de Sinuhe já não se surpreendem com suas súbitas aparições e desaparições. Por isso, a nova e inesperada visita do amigo e "irmão" não foi motivo de estranheza. Alguns minutos depois de sua chegada, Glória percebeu-lhe no olhar, no entanto, aquela luz característica e inconfundível, de quando Sinuhe trazia algo importante. Mas, a filha da raça azul, com a prudência habitual, deixou que ele pró­prio tomasse a iniciativa.

Naquela mesma noite, sentados no átrio da Casa Azul, de­baixo de um céu resplandecente de estrelas, Sinuhe rogou-lhe que prestasse atenção.

— Querida amiga — disse ele sem saber exatamente por onde começar a exposição —, não me pergunte no momento quem me terá facilitado a informação que devo transmitir-lhe. Cumpro uma missão na qual você, precisamente, se der seu consentimento, deverá desempenhar papel de extrema importância. ..

Glória, sempre com seu sorriso acolhedor, animou-o a pros­seguir.

— Claro que eu lhe ficaria muito agradecido se, durante a minha narrativa, você me pedisse esclarecimentos para as dúvidas que surjam.

E, com o espírito animado pela paz intensa que a fisionomia da amiga refletia, apontou para a rústica encadernação azul do livro pousado em seus joelhos.

— Não lhe vou ocultar minhas próprias dúvidas quanto ao que encerram estes documentos. Foram "revelados", segundo informações que recebi, por uns seres dos quais você já ouviu falar. . . Mas comecemos pelo começo. De acordo com essa "re­velação", este universo que contemplamos — explicou Sinuhe, voltando o olhar para a imensa e cravejada echarpe da Via Láctea — não é mais que uma ínfima e quase ridícula fração de todo um

Universo-Mestre (também chamado Universo dos Universos) e que reúne a totalidade do espaço astronômico. Este Universo-Mes­tre está conformado, de um lado, pelo que esses seres qualificam de Grande Universo (habitado ou habitável) e, por outra parte, do Espaço Exterior, ainda inabitável, com suas zonas anulares de es­paço "impenetrado", alternando com outras áreas de espaço "pe­netrado" por múltiplos circuitos energéticos

Sinuhe levantou a vista do livro que começara a ler, para observar a filha da raça azul. Ela, com os olhos cerrados, acompa­nhava atenta as explicações do amigo.

— Essas zonas "penetradas" são formadas por imensos uni­versos em formação, que os telescópios e radiotelescópios vão aos poucos descobrindo. Neste Universo-Mestre, como lhe dizia, existe o chamado Grande Universo que é, em realidade, o verdadeiro objetivo desta informação. O referido Grande Universo encontra-se, por sua vez, subdividido em departamentos administrativos. Quero acentuar-lhe este conceito: "departamentos administrati­vos", para que você não caia no engano de associá-los com divi­sões puramente astronômicas. Pois bem, depois do parêntese, continuo: esses departamentos puramente administrativos estão organizados segundo o sistema decimal, com uma exceção septenária no vértice.

"Resumindo ao extremo, dir-lhe-ei que este Grande Universo em que vivemos é formado por um Universo Central, chamado Havona e localizado à volta da Ilha Eterna e Estacionaria do Pa­raíso, e um total de sete superuniversos que giram ao redor de Ha­vona, seguindo uma trajetória elíptica enormemente alongada e muito plana.

Sinuhe fez nova pausa. Tentando tornar sua exposição o mais acessível e lógica possível, saltou com essa intenção as páginas em que se falava dessa misteriosa Ilha Eterna e Estacionaria do Pa­raíso.

 

Se você me permite — continuou, retomando o fio da leitura—, falar-lhe-ei agora desses sete superuniversos que gra­vitam em torno do Universo Central de Havona. Cada um deles acha dividido, ad-mi-nis-tra-ti-va-men-te falando, da seguinte forma:

"10 setores maiores, cada um deles com 100 setores menores. Cada setor menor, por sua vez, com um total de 100 universos locais, criados ou por criar.”

"Cada universo local consta de 100 constelações (criadas ou por criar) e, por sua parte, cada constelação é integrada por 100 sistemas.”

"Finalmente, cada sistema reúne cerca de 1 000 planetas, criados ou por criar.”

"Se dispusermos em números (e sempre de acordo com esta revelação), cada um dos sete superuniversos conta com:

"10 setores maiores;

"1 000 setores menores;

"100 000 universos locais;

"10 000 000 de constelações;

"1000 000 000 de sistemas e, aproximadamente, um bilhão de planetas habitados ou habitáveis no futuro.

Sinuhe, consciente da extrema e deduzível dificuldade de uma primeira assimilação destas cifras enfadonhas, preferiu conservar-se silencioso por alguns segundos.

— Tente dominar a emoção — recomendou-lhe Sinuhe —, porque mal estamos começando...

"Cada uma dessas divisões administrativas acha-se regida por uma capital, sede do correspondente Quartel-General Administra­tivo. Esses planetas-capitais, assim como seus satélites imediatos, não são mundos naturais. Muito pelo contrário: trata-se de esferas "arquiteturais" artificiais, construídas segundo normas específicas preestabelecidas pelos chamados Mestres Arquitetos do Universo. Cada planeta-capital é dotado dos meios necessários para viver na beleza e assegurar as funções próprias de uma capital de tais ca­racterísticas. IURANCHA, verdadeiro nome do nosso mundo, ao contrário dessas esferas artificiais e tal como outros milhões de planetas, foi arrancada da massa solar gasosa e lentamente solidi­ficada, com inumeráveis contribuições de meteoritos, tal como de­terminam as leis da Natureza.

"Pois bem, de acordo com essa revelação, nosso planeta (IURANCHA) acha-se situado no sétimo superuniverso, chamado Orvonton, cuja capital é Uversa. O núcleo central desse sétimo superuniverso é a nossa Via Láctea.

Glória, de olhos cerrados, não chegou a ver a quase imper­ceptível careta de incredulidade que aquela última frase provocara em Sinuhe. O investigador não pôde jamais compreender como o núcleo central de todo um superuniverso", com 100 000 uni­versos locais e dez milhões de constelações, podia ser formado por uma simples galáxia.. . Porque é isso o que é a Via Láctea. Mas, fiel a seu compromisso, preferiu silenciar suas dúvidas.

— Segundo estes documentos — continuou —, nosso setor maior chama-se Splandon; sua capital, Umajor a Quinta. Por sua vez, nosso setor menor, chamado Ensa, tem como planeta-capital Uminor a Terceira.

"Mas, concentrêmo-nos no capítulo que mais nos interessa: os universos locais. Entre esses cem mil, que o sétimo superuni­verso de Orvonton abarca, o nosso, Nebadon, tem sua capital ou quartel-general em Salvington. Esses universos locais constituem as divisões administrativas de maior importância dentro de cada superuniverso. Nebadon, como os demais, compreende cem cons­telações. Nós (IURANCHA) nos encontramos na constelação de Norladiadek. Capital, Edência. . . Grave bem esse nome, Edência, porque tem muito a ver com outro assunto de vital importância: "o Jardim do Éden"...

A filha da raça azul abriu os olhos, surpresa. E murmurou o nome de Edência.

— Continuemos. Esta constelação de Norladiadek reúne cem sistemas. Não se trata de sistemas solares, como seria o nosso, mas de todo um conjunto de sóis, com seus correspondentes cor­tejos planetários. E desses cem sistemas, o nosso leva o número 24. É conhecido fora da Terra como o sistema de Satânia. Seu planeta-capital é Jerusem. Satânia (sempre segundo esta "Quinta Revelação") conta atualmente com 619 mundos habitados. IU­RANCHA figura com o número sistêmico 606. Geralmente, não há mais que um ou dois planetas habitados em cada sistema solar...

Sinuhe tornou a observar Glória, que já começava a inquie­tar-se, logicamente, com a dificuldade de reter tantos nomes e cifras.

— Não se preocupe; uma vez que eu termine minha exposi­ção, você poderá dispor destes documentos e estudá-los a fundo.

“Como lhe dizia, nosso universo local, Nebadon, está situado na fronteira exterior de Orvonton, o sétimo superuniverso. Estes sete formidáveis superuniversos evolucionários giram em sentido levogiro ao redor do Universo Central de Havona. Torna-se praticamente impossível representar as astronômicas proporções de tais superuniversos, tanto quanto do Universo Central de Havona e de sua Ilha Eterna do Paraíso.”

"Cada um dos sete superuniversos é uma criação inacabada. Surgem neles e se organizam, de forma constante, novas nebulo­sas. Para que você faça uma idéia das suas dimensões, nosso superuniverso (Orvonton) tem um diâmetro de uns 500 000 anos-luz, com um total, até este momento, de mais de dez trilhões de sóis. Aqui, de IURANCHA, percebemos-lhe o núcleo central na forma lenticular e achatada da Via Láctea, cujo diâmetro aproxi­mado é de 250 000 anos-luz.”

"Na realidade, nosso planeta (como já vêm intuindo todos os homens) é parte infinitesimal nesse sublime e quase inconcebí­vel projeto-realidade que é a Criação Divina. Nosso sistema solar é conhecido no nosso universo local como Monmatia, e é oriundo da antiga nebulosa de Andronover. Esta será, porém, outra ques­tão de que trataremos mais tarde. . .

"Agora, se você quiser, falaremos de um dos aspectos mais extraordinários desta fantástica cosmogonia: do Universo Central de Havona e da Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso.. .

 

— O Paraíso?

A filha da raça azul não conseguiu dissimular a emoção.

— Sim — respondeu Sinuhe em tom solene —. O Paraí­so!. . . Embora profundas as minhas dúvidas sobre tudo isso, como creio você já terá percebido, devo por outro lado reconhecer que esta estranha descrição é tão bela que talvez merecesse ser correta.

"No coração desse Universo Central de Havona encontra-se a Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso, meta e destino de todos os seres humanos evolucionários e "ascendentes" de todos os su­peruniversos.

Glória foi compelida a fazer sua primeira pergunta:

— Então, a idéia do Paraíso não é uma utopia. . .

— É certo que não, segundo esta "Quinta Revelação". Não é utopia! Sua imensidão, sua glória e beleza material ultrapassam toda compreensão. A Ilha Eterna do Paraíso é o único ponto fixo do Universo dos Universos. Suas dimensões colossais, digo-lhe, desafiam qualquer imaginação. Tem a forma de um disco oval e plano, com uma face superior, o Alto Paraíso, e, outra inferior, o Baixo Paraíso. As direções definidas por seus eixos maior e me­nor são Norte, Sul, Este e Oeste absolutos, sobre os quais se orientam geograficamente todos os universos. O eixo maior é um sexto mais longo que o menor. No momento, só posso adiantar-lhe que o Paraíso existe independentemente do Tempo e do Espa­ço... É a origem de todas as energias físicas e controla a gravitação universal.

"Ao redor do Paraíso, circulando em sentido dextrogiro (co­mo agulhas de relógio), encontram-se os chamados "três Circuitos Trinitários", cada um incluindo sete "esferas sagradas". As pro­porções dessa Ilha Eterna do Paraíso são tão formidáveis que, para fazermos uma idéia aproximada, essas vinte e uma "esferas sagradas" nos pareceriam minúsculos pontos.”

"Esses três circuitos, com suas vinte e uma "esferas sagra­das", servem de suporte para certas atividades das Três Pessoas da Trindade: o Pai Universal, o Filho Eterno e o Espírito Infinito. “E imediatamente encontramos, também em sentido dextrogiro, em torno da Ilha Eterna e dos seus gigantescos vinte e um satélites sagrados, o Universo Central e Eterno de Havona, com mil milhões de esferas “arquiteturais” ou artificiais”. São mundos habitados, de beleza e perfeição inimagináveis. É formado por sete circuitos, todos eles dextrogiros. O interior soma mais de 35 mi­lhões de esferas e o exterior, mais de 245 milhões.”

"Todo esse imenso Universo Central é circundado por dois circuitos inabitados, formados por número incrível de corpos de "gravidade escuros" ou esferas colossais, que não refletem a luz. Um desses circuitos acha-se no mesmo plano que os mil milhões de esferas de Havona e o outro, em plano perpendicular. O cir­cuito interior é tubular e levogiro, seguindo uma elipse cujo eixo maior é cinco vezes o eixo menor. Tais circuitos de esferas escuras, que não absorvem nem refletem a luz, envolvem Havona tão com­pletamente que chegam a ocultá-lo, até mesmo dos superuniversos mais próximos. Por um duplo efeito giroscópico, o conjunto desses corpos de "gravidade obscuros" garante a estabilidade do Universo Central e regula a gravitação universal. A massa de Havona, so­mada à do Paraíso, vai além da dos trilhões de estrelas dos sete superuniversos.”

"Essa Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso, o Universo Central de Havona e os sete superuniversos que os rodeiam — Sinuhe procurou sintetizar — conformam o que, inicialmente, eu lhe definia como o Grande Universo. E este, conjuntamente com o chamado Espaço Exterior, é considerado o Universo-Mestre ou Uni­verso dos Universos. Como você pode ver, algo que escapa à compreensão humana...”

"Esse Espaço Exterior (com seus quatro níveis elípticos ainda inabitados e que correm ao redor do Grande Universo em sentido dextrogiro e levogiro, alternadamente) constitui a mais admirável "recompensa" (supondo-se que possamos utilizar-nos deste con­ceito) que jamais possa conceber ser humano evolucionário al­gum. ..”

— Recompensa, você diz — interrompeu a filha da raça azul —, para quem?

— De acordo com estes documentos, para aqueles humanos "ascendentes" que, ao final, alcancem o Paraíso. Creio que você entende aonde quero chegar. . . Nesses quatro níveis do Espaço Exterior, ainda inabitados, milhões de galáxias encontram-se em pleno período de formação. Nossos astrônomos já começaram a descobrir muitas delas. Principalmente no primeiro nível. Este, atinge uns 500 000 anos-luz para além das fronteiras do sétimo e último dos superuniversos e dele se encontra separado por uma zona 'de espaço "semitranqüilo", zona desprovida de pó cósmico. O fato de as galáxias daquele nível girarem em sentido inverso ao nosso ajuda a emprestar-lhes aparência de fuga.

"Esses quatro níveis do Espaço Exterior são, insisto, imensos. Sua largura e a das áreas elípticas "semitranqüilas" que os separam atingem milhões de anos-luz. Os próximos telescópios de IURANCHA, aperfeiçoados, revelarão algum dia a maravilha de mais de 375 milhões de galáxias. Mas não é tudo. No Espaço Exterior existem uns 70 000 agregados de matéria. E um só deles é maior que qualquer dos nossos superuniversos.

Sinuhe, visivelmente esgotado por aquela arrebatada ex­planação, decidiu concluí-la com um pensamento que já havia germinado — e para sempre — no coração de Glória.

— E, segundo essa "Quinta Revelação", os astrônomos cós­micos de Orvonton, nosso superuniverso, já vislumbram nesses níveis do Espaço Exterior os sinais preparatórios de algumas ma­nifestações de energia, mais extraordinárias ainda.

"Tudo isso, Glória querida, parece representar tão somente o início de uma super-revolução estelar em que nós, humanos, que "viajamos" em direção à Perfeição, ocuparemos um papel-chave. É possível que alguns mortais ressuscitados, perfeitos e dotados de um corpo espiritual e de uma vida eterna, sejam enviados a esse Espaço Exterior. . . com maravilhosa missão.. . em longín­quo futuro.

 

A sutil sugestão de Sinuhe de adiar por aquela noite a expo­sição da insólita cosmogonia universal, segundo os papiros da Escola da Sabedoria, não foi aceita pela filha da raça azul. Ao contrário: aquela informação havia excitado de tal maneira a curiosidade dela que suplicou ao amigo que prosseguisse.

E o "soror", enternecido com o interesse da companheira, resolveu aproveitar tão boa disposição para enveredar por um dos departamentos mais eletrizantes e revolucionários do texto que manejava: as inumeráveis e não menos fantásticas personalidades que governam e administram esta magnífica Criação Divina.

— Mas antes — preveniu Sinuhe —, convém que você com­preenda, embora eu saiba ser ocioso este esclarecimento, que o nosso mundo (IURANCHA) é, ou melhor, era um planeta vulgar, perdido em um universo local relativamente jovem (Nebadon data somente de 400 mil milhões de anos), que atualmente, segundo reza a "Quinta Revelação", reúne já 3 841 101 planetas habitados e outros muitos milhões susceptíveis de sê-lo em futuro mais ou menos distante. Um universo local entre os 700 000 que abrigam os sete superuniversos. . . Apesar do imensurável, IURANCHA, como cada um de todos os mundos, encontra-se meticulosamente registrado nos arquivos do Universo. Nosso planeta está designado assim: "O número 606 do sistema de Satânia, na constelação de Norladiadek, universo local de Nebadon, setor menor de Ensa, setor maior de Esplandon e superuniverso de Orvonton".

Perplexa, Glória pediu a Sinuhe que repetisse. Ao concluir, ele acentuou:

— Esta "guia" é o bastante para que qualquer mensageiro de Deus encontre o nosso mundo e, nele, quem quer que seja. ..

A filha da raça azul retornou às recentes palavras de Sinuhe:

— Por que ao referir-se a IURANCHA, ao nosso mundo, você se corrigiu, afirmando que "era" um planeta vulgar?

Sinuhe sabia que aquela matização não escaparia à perspicácia da interlocutora. E tentando ordenar as idéias, prosseguiu:

Você diz bem. Talvez tenha sido um planeta comum. .. até há 1991 anos, exatamente. Naquela data (21 de agosto do ano 7 antes de Cristo), "algo" ocorreu que faria com que IURANCHA entrasse na História, pelo menos, do nosso universo local de Nebadon: o nascimento na Palestina do Criador e Soberano deste universo local. Ser excepcional, reconhecido durante sua encarnação humana como Jesus de Nazaré.

Sinuhe sabia da delicadeza do terreno em que estava por aventurar-se. Mas o "adestramento" da filha da raça azul exigia, acima de tudo, que se lhe mostrasse a Verdade. Uma Verdade, segundo a "Quinta Revelação", que fora sistematicamente escon­dida por todas as Igrejas e que hoje, em pleno século XX e depois de tanto tempo de encobrimento, só poderia ser suscitada entre seres humanos muito evoluídos. Verdade que, entretanto, longe de minimizar ou desmerecer o plano de Deus, torna-o muito mais sublime e atraente. Este era, entre suas dúvidas, o pensamento de Sinuhe. Antes de enveredar de cheio em tão profundas e sagradas proposições, nosso, homem procurou sistematizar os complexos e prolixos documentos relativos à organização administrativa do Universo dos Universos.

— Como você já terá começado a intuir, querida Glória, esse Universo-Mestre, essa maravilha incomensurável, é meticulo­samente regido e administrado por uma plêiade de seres, perfeita­mente hierarquizados, que os humanos evolucionários e "ascen­dentes" como nós não podem ver com os olhos físicos. Entre si, porém, são perfeitamente visíveis. E em ocasiões determinadas, quando assim o dispõem essas personalidades celestes, alguns des­ses seres podem tornar-se visíveis também para os mortais. Esses milhares de milhões de raças humanas que povoaram, povoam e povoarão os mundos dos sete superuniversos submetem-se a essa administração que, não lhe vou ocultar, exige certa harmonização com o plano geral de Deus, embora o livre arbítrio dos homens- e dos anjos, como veremos, seja respeitado ao máximo pela referida administração.

"E, como parece, é pelo Amor que a ordem e a unidade acham-se garantidas em todos os universos. Todas as criaturas que amam a Deus (e quase todas aquelas que o conhecem acabam por amá-lo) trabalham num mesmo espírito, fazendo Sua vontade.

"Na cúspide dessa hierarquia encontra-se Deus, também de­nominado a Causa sem Causa e o Absoluto que todas as criaturas mortais vêm adorando sob centenas de nomes. Deus procura ex­pressar sua natureza amorosa nos universos, sem impor um absolutismo pessoal. E o consegue, diz esta revelação, graças à Trindade Absoluta, composta de Três Pessoas coexistentes desde toda a Eternidade, atuando sempre com unanimidade e, no entanto, hierarquizadas. Na unidade essencial do seu conjunto, perfeita­mente coordenado, que constitui a Deidade Absoluta ou Absoluto Divino, cada uma das Três Pessoas da Trindade conserva um papel especializado. Poderíamos simplificá-lo assim: o Pai representa a Mente; o Filho, a Palavra; e o Espírito, a Ação.

"O Pai Universal ou Causa-Centro-Primeira despojou-se vo­luntariamente dos seus atributos (exceto da Volição ou Vontade absoluta e da Paternidade, igualmente absoluta) a favor das outras Duas Pessoas da Trindade. É o Pai, por conseguinte, quem dispõe da Vontade final e quem concede a "personalidade"... — Sinuhe calcou este conceito — aos seres aos quais deseja outorgá-la.. .

Bem depressa a filha da raça azul formulou a pergunta que Sinuhe vinha esperando:

— Que classe de "personalidade" é essa?

— Na Criação, ao que parece, há numerosas classes de seres inteligentes "não personalizados", à espera precisamente de perso­nalização. São também chamados seres "pré-pessoais". Adiantar-lhe-ei, por ora, apenas uma pista: para um ser humano "ascen­dente", a perda dessa "personalidade" equivale à morte cósmica ou segunda morte...

Ficaram ambos em silêncio.

— Agora — anunciou Sinuhe com voz trêmula —, permita-me que lhe fale de outro assunto que, talvez, lhe enevoe o coração: é da Segunda Pessoa da Trindade, conhecido também como o Fi­lho Eterno.

 

A filha da raça azul aguardou impacientemente.

— Como você se deve lembrar, faz agora dez anos, em um conhecido contato que se deu em terras do Peru por parte de seres do Espaço, que você sempre chamou (muito acertadamente) "os irmãos maiores", alguém perguntou a esses "guias" sobre quem era realmente Jesus de Nazaré. Você se lembra?

Glória acenou que sim.

— E você se recorda, da resposta daqueles "guias"? — voltou a perguntar Sinuhe.

— Creio que sim. "Vocês" — dizia p contato — "não estão preparados ainda para saber quem era Jesus."

— Exato — disse o "soror" —. Naquela ocasião e ao longo de todo este tempo, você, outras muitas pessoas e eu próprio es­tivemos nos interrogando sobre esse ponto. .. Por que não quise­ram, aqueles seres do Espaço, revelar-nos quem era o Cristo? Pois bem; nesta "Quinta Revelação" achamos a resposta. Uma resposta que, insisto, talvez lhe cause estremecimento e que, como o resto da informação em meu poder, não pode ser demonstrada. Por isso, peço a Deus de todo o coração que não lhe magoe o espírito.. .

— Você sabe — retrucou Glória — que a Verdade nos tor­nará livres. Deixe portanto a cargo do meu coração julgar e filtrar o que você está expondo.. .

— Bem — disse um Sinuhe agradecido —, eis a questão: rezam estes documentos que a Segunda Pessoa da Trindade (tam­bém chamado Filho Eterno ou Causa-Centro-Segunda) é a ex­pressão da Personalidade do Pai Universal. Consiste sua missão em revelar o Pai a todos os universos. Até aqui, como você vê, tudo parece ajustar-se ao que vêm ensinando as diferentes Igrejas, especialmente a Católica. E milhões de seres humanos identifica­ram e identificam ainda esse Filho Eterno com nosso Jesus de Nazaré. Foi ele próprio quem disse: "... Eu sou o Filho de Deus vivo".

Sinuhe fez pausa pela enésima vez. Apesar da amizade com a filha da raça azul, era evidente que lhe era difícil abordar aquele tema. Glória, conservando o sorriso, esperou, animando-o com outra xícara de café.

— ... Pois bem, segundo a "Quinta Revelação" essa mani­festação do Pai a todas as criaturas (missão específica, repetimos, do Filho Eterno) não é efetivada, de forma direta, pelo Filho Eterno, mas por uma série de "intermediários"...

Glória, com o café a meio caminho dos lábios, não pestanejou.

— ... E esses intermediários são conhecidos como os Filhos Criadores ou "Micaeles": soberanos criadores dos universos locais.

— Então — ponderou a filha da raça azul —, Jesus de Na­zaré era...

— Sim, o Soberano Criador do nosso universo local de Nebadon. Um dos muitos Cristos ou "Micaeles", filhos do único Fi­lho Eterno, que não deveriam ser confundidos com a Segunda Pessoa da Trindade.

— Mas Jesus falou do seu Pai Celestial... — retrucou Gló­ria, desconcertada.

— Certo. Mas não é menos verdade que pudesse ter-se refe­rido ao "verdadeiro" Pai: o Filho Eterno. Jesus de Nazaré (e isso, sim, você tem que admitir comigo) não poderia fazer com que compreendessem, aquelas pessoas simples de há mil novecentos e poucos anos e duvido que a nós, a maravilhosa profundidade des­ses mistérios. Teve de falar com palavras e conceitos elementares e acessíveis. Sua missão em IURANCHA foi, entre outras razões, revelar aos homens o Pai Celestial. E o fez. Que pode importar-nos (tendo em vista sua mensagem) que o Cristo-Micael fosse em realidade um dos múltiplos "netos" do Pai Universal ou Pri­meira Pessoa da Trindade? Na realidade, e à margem desses deta­lhes, Jesus era em verdade o Filho de Deus.

"Esse Cristo-Micael, criador de Nebadon, ofereceu inigualável exemplo a todas as criaturas que habitam este universo local. Em sua sétima e última efusão (precisamente a registrada em nosso planeta), esse Filho Criador adquiriu a experiência completa co­mo Filho do Homem, assumindo a seguir, com pleno direito, o título de Filho de Deus, Soberano Supremo do universo local que havia criado e do qual era apenas sub-gerente, antes de ter sofrido, fisicamente, as mesmas experiências sofridas pelos seres mortais que Ele criara. Você sabe que muita gente considerou Jesus de Nazaré apenas um homem. Outros, em compensação, qualificam-no única e exclusivamente como Deus. A verdade é que ele "fun­diu" as duas naturezas em uma só, em sua passagem por IURAN­CHA. Hoje, Cristo-Micael é o Soberano Supremo e indiscutível de Nebadon. De um lado, por ter sido confirmado nesta sétima efusão por Deus. Por outro, porque todas as criaturas de Nebadon dignas de sobreviver obedecem-lhe e servem voluntariamente, por amor a Ele e por sua maravilhosa e inspiradora forma de vencer as provas mais duras que um ser encarnado pode sofrer.. .

"Como você pode ver pelo pouco que falei de Jesus de Na­zaré, aqueles "guias" do Espaço (se é que tudo isto está certo) tinham razão: "Não estamos preparados para saber quem é em verdade o Filho do Homem. .."

 

Inevitável torvelinho de perguntas abateu-se sobre Sinuhe. Longe de repudiar o que acabava de ouvir, Glória "sentiu" que em tudo aquilo havia "algo" maravilhosamente lógico, que centuplicava sua visão da Divindade. E resolveu não dar trégua ao in­formante. Ela sabia que Sinuhe estava expondo apenas um mínimo do que conhecia.

— Então, segundo essa "Quinta Revelação", quem nos criou, a nós os humanos?

— Neste universo local (Nebadon), Micael ou, se você pre­fere, Jesus de Nazaré.. .

— Mas — titubeou a filha da raça azul — se você diz que há 700 000 universos locais, existem também 700 000 Filhos Criadores ou "Micaeles".

— Só posso dizer-lhe que a Ordem dos Micaeles é imensa...

— Deus meu!. . . E como e quando e por que criou Nebadon?

— Antes de tentar satisfazer-lhe essa tríplice pergunta, é preciso que você conheça primeiro a organização e as atribuições de algumas das muitas "personalidades" celestes... Tenha calma. Devemos manter certa ordem na exposição. Agora, quero falar-lhe da Terceira Pessoa da Trindade: o chamado Espírito Infinito ou Ator Conjunto ou Causa-Centro-Terceira.

Glória se resignou, mais ou menos.

— O Espírito Infinito representa a passagem para a ação. É a manifestação inteligente da vontade conjunta do Pai Universal e do Filho Eterno. Atua com prodigiosa variedade de meios, ope­rando com infinita delicadeza. Cada uma das Três Pessoas da Trindade manifesta-se por um Espírito. O Pai Universal tem a su­blime faculdade de fracionar-se em "chispas" divinas (as palavras, como você vê, limitam-nos sempre) pré-pessoais, que esta "Quinta Revelação" chama "Harmonizadores do Pensamento" ou "Moni­tores de Mistério". Proponho-lhe um exemplo: quando uma crian­ça toma sua primeira decisão moral (geralmente um pouco antes dos cinco anos de idade), o Pai Universal envia um destes har­monizadores para que habite em sua mente. Isso proporciona ao humano a capacidade de conhecer a Deus, a necessidade de en­contrá-lo e o desejo de parecer-se com Ele. O harmonizador de pensamento atua na supra consciência, sem que os homens, em linhas gerais, dêem-se conta de sua presença. Essas "personalida­des" misteriosas preparam os mortais para a vida eterna, ajudan­do-os a formar seu caráter e provocando, em todos nós, o sentido do pecado.

"Você não deve confundir a presença do harmonizador — esclareceu Sinuhe — com á consciência humana ordinária, que é uma reação puramente psíquica.”

"Asseguro-lhe que pouquíssimas pessoas em IURANCHA chegaram a descobrir a presença do seu harmonizador de pensa­mento e a entabular "diálogo" com ele.”

"Em qualquer universo local o Espírito de Verdade emana do Filho Criador desse mesmo universo. Atrai todas as criaturas para o Filho e traduz, debaixo de um aspecto apropriado ao uni­verso local, o Espírito de Verdade que nasce conjuntamente das duas primeiras Pessoas da Trindade: o Pai Universal e o Filho Eterno. Foi esse Espírito de Verdade que Jesus de Nazaré derra­mou sobre toda a Humanidade de IURANCHA no Pentecostes, depois de sua desaparição no Monte das Oliveiras. Consiste essen­cialmente em reconhecer a paternidade de Deus e, como conse­qüência imediata, a fraternidade entre os homens.

"Convém não confundir o Espírito de Verdade com o Espí­rito Santo, que já existia antes dele. O Espírito Santo é o circuito espiritual que emana da chamada Divina Ministra do universo lo­cal, filha do Espírito Infinito. . . Essa Divina Ministra é a associa­da complementar e eterna do Filho Criador. .. É independente do Espaço, enquanto o Filho Criador é independente do Tempo. . .

Sinuhe observou a filha da raça azul. No mesmo instante compreendeu que a mente dela se havia perdido. Era lógico.

— Creio que por hoje — concluiu o "soror", dando por terminada a exposição — é mais do que suficiente... Amanhã passaremos por alto muito dessa "burocracia" celeste para tentar alcançar um dos capítulos diretamente vinculado a essa missão de que lhe falei: a busca da ignorada História dos primeiros tempos de IURANCHA.. .

 

Nem aquela nem as jornadas subseqüentes à aparição de Sinuhe na Casa Azul poderão jamais ser esquecidas pela filha da raça azul. À margem das revelações que ia recebendo então, Gló­ria intuía que "algo" de extraordinário estava por suceder-lhe. O que não podia nem imaginar é que ocorresse tão abruptamente. Mas antes de encetar a narração da incrível aventura dos dois per­sonagens, entendo que — da mesma forma que a filha da raça azul — o leitor compreenderá melhor o que aconteceu se receber antecipada informação sobre determinados sucessos, como tam­bém sobre algumas das chamadas "personalidades celestes" que integram, segundo os papiros da "Quinta Revelação", a imensa rede dos Peregrinos Descendentes da Trindade.

Na manhã seguinte, depois de uma noite em que a inquieta­ção mal lhe permitiu conciliar o sono, Glória se mostrou disposta a prosseguir imediatamente com aquele absorvente rio informativo. Sua sede de conhecimentos era tão viva e permanente como o era em Sinuhe. O que, indubitavelmente, facilitou o trabalho do mem­bro da Ordem da Sabedoria.

— Como lhe adiantei ontem à noite — iniciou Sinuhe o seu discurso —, procurarei eludir a complexa "burocracia" que admi­nistra os universos, a fim de nos concentrarmos nas hierarquias e fatos que têm diretamente que ver com nossa missão...

"Você já terá intuído que, de acordo com esta documentação, entre as personalidades espirituais que habitam a Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso e as que residem ou visitam as "unidades administrativas" menores (os planetas) existe toda uma formidável escala, perfeitamente organizada. Tal "rede" celeste forma a cha­mada corrente dos Peregrinos Descendentes da Trindade ou Filhos de Deus. Todos eles, desde sua criação no Tempo, foram dota­dos de vida eterna. Do ponto de vista potencial, são seres perfeitos, embora precisem ir adquirindo experiência para lograr então uma perfeição manifesta. Essa experiência (mandam as leis celestes) eles só a conseguem através da sua passagem pelos níveis materiais inferiores. Tome como exemplo o caso de Cristo-Micael que, em sua sétima efusão, chegou, sob a figura de Jesus de Nazaré, a assumir carne humana...

"Para que você possa compreendê-lo mais facilmente, dir-lhe-ei que toda essa incontável população celeste se move, conforme sua natureza, em níveis diversos de energia e inteligência. Pode­ríamos agrupar esses níveis em cinco categorias fundamentais:

"1. O nível Absoluto. É inacessível à nossa inteligência. Cor­responde à Deidade.

"2. O nível Espiritual. Nele encontra-se a maioria desses Pe­regrinos Descendentes da Trindade.

"3. O nível Moroncial ou da alma. Esta palavra não tem equivalente na terminologia humana. A "morôncia" designa uma vasta rede de realidades e energias intermédias entre os níveis es­piritual e material. É matéria sutil que escapa a nossos sentidos físicos. É a substância da alma (nem espiritual nem material), da mesma forma que uma criança não é nem seu pai nem sua mãe, ou que a água não é nem oxigênio nem hidrogênio, mas ambos.

Poderíamos definir a substância "moroncial" da alma como o resul­tado da fusão entre o espírito do harmonizador de pensamento' e o pensamento físico do ser humano, por eles habitado: Como talvez tenhamos oportunidade de estudar depois, se a alma for julgada digna de sobreviver à morte física, a personalidade huma­na, após a morte, será ressuscitada por meio de uma estranha técnica nos chamados "mundos moronciais".

"Em determinadas circunstâncias, os seres e formas "moron­ciais" podem tornar-se visíveis para os humanos. Foi o caso, segundo a "Quinta Revelação", das dezenove aparições de Jesus aos discípulos, depois da ressurreição.

"Sucedem a esses níveis o Mental e o Físico ou Material, que é o último na escala. A energia Física se divide, por sua vez, em três categorias:

"a. A Força Cósmica ou energias procedentes do Absoluto Incondicionado e que não  equivale à gravidade do Paraíso.

"b. A Energia Emergente, que, essa sim,  equivale à gravi­dade circular da Ilha Eterna, embora nada tenha a ver com a gravidade lineal ou local. Corresponde ao nível pré eletrônico da energia-matéria.

"c. O Poder Universal ou Força do Universo, que cor­responde à gravidade do Paraíso e à gravidade lineal ou local.  equivale ao nível eletrônico da energia-matéria e é manejada nos universos pelos chamados "Diretores de Poder Universal", entre outras personalidades. A transição entre a Energia imaterial e a material manifesta-se pela aparição de "ultimatones", que são uma espécie de grânulos de energia extremamente pequenos, girando a inconcebível velocidade. É de tal ordem essa velocidade, que os "ultimatones" são dotados de poder de antigravitação. Um elé­tron, por exemplo, é formado por cem "ultimatones".

"Mas continuemos com a organização administrativa do Grande Universo.

"É o Espírito Infinito, de que já lhe falei, quem cria os sete Espíritos Mestres. Cada qual garante a supervisão central de um dos sete superuniversos. Esses sete Espíritos Mestres representam os sete aspectos possíveis da atividade das Três Pessoas da Trin­dade, atuando conjunta ou separadamente. Residem na periferia do Paraíso, de onde exercem influência sobre os superuniversos, por intermédio dos sete Administradores Supremos. Estes têm a respectiva sede. em cada uma das sete esferas do Espírito, que gravitam ao redor da Ilha Eterna. Designa-se cada uma das esferas com o nome do superuniverso correspondente.

"A política administrativa da Trindade do Paraíso é executa­da pela "Hierarquia dos Dias", que compreende sete classes de personalidades supremas, criadas pela Trindade:

"1. Os Secretos de Supremacia Trindatizados;

"2. Os Eternos dos Dias;

"3. Os Anciãos dos Dias ou Chefes dos Superuniversos;

"4. Os Perfeição dos Dias;

"5. Os Recentes dos Dias;

"6. Os União dos Dias e Conselheiros dos universos locais;

"7. Os Fiéis dos Dias.

"Os primeiros (os Secretos de Supremacia) somam um total de setenta e operam em grupos de dez, em cada um dos sete pla­netas do circuito interior do Pai, próximo ao Paraíso. Em cada grupo de dez, sete dirigem os departamentos maiores e três repre­sentam a Deidade Trina junto aos outros. Nessa combinação estará talvez a origem do sistema decimal, freqüentemente mistu­rado nos universos com o sistema setenário.

"No cume da "Hierarquia dos Dias" estão os "Eternos dos Dias", os "Espíritos Mestres do Universo Central". O escalão se­guinte reúne os "Anciãos dos Dias", Três desses "Anciãos" residem na esfera capital de cada superuniverso. São seus regedores e estão rodeados por uma multidão de seres celestes, tais como "Conse­lheiros Divinos", "Sensores Universais", "Prefeitos de Sabedoria", "Mensageiros Poderosos" etc.

"A "rede", como você vê, é complicadíssima, pelo menos para as mentes dos seres mortais, como nós. Mas, enveredemos em que nos importa: os universos locais. Sei que, da mesma forma que ocorreu a mim, a descoberta de Jesus de Nazaré como Sobe­rano e Criador do universo local de Nebadon, afetou você.

"Suponho que se perguntará como funciona cada um desses universos locais. . .

 

— Sim, fale-me de Nebadon — entusiasmou-se a filha da raça azul.

— Cada um desses universos locais é regido, repito, por um soberano: um Filho Criador da Ordem dos Micaeles, sempre

acompanhado de uma Filha Criadora da Ordem dos Espíritos-Mãe.

Sinuhe interrompeu a leitura e, com sorriso malicioso, co­mentou:

— Se tudo isso está certo, Glória, aí por fora, ao contrário do que se passa na Igreja Católica, o papel da mulher, aí sim, é reconhecido e considerado. . .

— Não caçoe e vamos. . .

— Cada Filho Criador é abençoado em sua missão por um "União dos Dias", que o ajuda como consultor. Habita em sua capital e garante certas relações superuniversais. Em Salvington, ca­pital de Nebadon, b "União dos Dias" tem o nome de. . . Emmanuel.

Ao ouvir pronunciar tal nome, a filha da raça azul estre­meceu.

— Aquele cujo nome significa "Deus está conosco"?

— Sim. Emmanuel é citado por Jesus de Nazaré como seu irmão maior. Mas essas palavras não foram bem interpretadas, logicamente. Emmanuel, segundo a "Quinta Revelação", assumiu a soberania de Nebadon durante a encarnação de Micael em IURANCHA.

"Cada Micael soberano, como nosso Jesus, é ajudado em seu universo local por legiões de seres celestiais; entre eles, por exem­plo, posso citar-lhe Gabriel, também conhecido como a "Radiante Estrela da Manhã", chefe executivo de Nebadon e que também, como você sabe, foi encarregado da Anunciação às mães de João Batista e de Jesus de Nazaré, respectivamente.

Emocionada, a filha da raça azul repetiu o formoso qualifi­cativo de Gabriel...

— A Radiante Estrela da Manhã!

— Dentro dessa imensa e divina multiplicidade — acentuou Sinuhe —, citar-lhe-ei, também, entre outros, os chamados Melchizedeks, admiráveis instrutores e administradores; os Portadores de Vida, que transportam a vida aos planetas e a modelam, criando novas formas e novos ambientes de desenvolvimento; os Espíritos Mentais Auxiliares, que dotam os seres com qualidades mentais e afetivas; os Mensageiros Solitários, que levam suas mensagens a uma velocidade superior a cinco milhões de vezes à da luz; os Serafins ou anjos guardiães, que também asseguram a desmaterialização e o transporte interestelar dos mortais; as Brilhantes Estrelas da Tarde, os Arcanjos e um longo etcétera que tornaria in­terminável esta relação...

"Continuando esta primeira ordem na escala "descendente" do Paraíso, chegamos às constelações, regidas por três Filhos da Ordem dos Vorondadeks, assistidos, por sua vez, por um observa­dor da Ordem dos Dias, um Fiel dos Dias. Os Filhos Vorondadeks trazem, ainda, o cognome de "Mui Altos" ou "Pais da Constela­ção". Diz esta documentação que freqüentemente os autores da Bíblia confundem os "Mui Altos" com Deus...

"Eis que chegamos à menor unidade administrativa, antes dos planetas propriamente ditos: os sistemas, de que já lhe falei. Cada sistema, com um milhar de mundos habitados ou por habitar, en­contra-se sob o controle de um soberano sistêmico, um Filho da Ordem dos Lanonandeks. Preste bem atenção neste nome (Lanonandeks) porque tem muito que ver com a nossa missão e, em definitivo, com uma personagem de que você ouviu falar: Lucifer.

Glória mal prestou atenção às últimas explicações do amigo. Em sua mente outras palavras ficaram gravadas: os Mensageiros Solitários. E interrompeu Sinuhe:

— Você diz que podem viajar a cinco milhões de vezes a velocidade da luz?

Sinuhe contemporizou a exposição sobre Lúcifer e sua re­volta e, voltando atrás na documentação, leu alguns parágrafos relacionados com o ponto que estava interessando a filha da raça azul.

— É isso aí. Dizem que esses Mensageiros Solitários podem viajar à média de uns 5 400 milhões de quilômetros por hora...

Sinuhe, ele próprio, compartilhava o mesmo sentimento de incredulidade que se esboçava na fisionomia de Glória. Mas con­tinuou:

— O Espaço e o Tempo (aqui está na "Quinta Revelação") são características essenciais do universo material. O Espaço se concebe por síntese e o Tempo, por análise. O Espaço se mede pelo Tempo e não o Tempo pelo Espaço. As criaturas materiais (nós) dependem do Espaço e do Tempo; passou-se isso com Jesus de Nazaré, enquanto ele esteve encarnado. Mas, enquanto Filho de Deus, era e é independente do Tempo, embora subordinado ao Espaço. Quero dizer, por exemplo, que não pode estar presente em dois lugares ao mesmo tempo, mas pode deslocar-se instanta­neamente de um lugar para outro.

— Fantástico! — exclamou Glória.

— Caso inverso se dá, por exemplo, com o Espírito-Mãe do universo local: é independente do Espaço; isto é, dotado de oni­presença, mas está submetido ao Tempo. Em outras palavras: não pode modificar por si mesmo a duração de um fenômeno, nem po­de viver simultaneamente em duas épocas. Deus, ao contrário, é independente por sua vez do Espaço e do Tempo. Pois bem, entre Ele e os homens, temos essa imensa escala de seres capazes de deslocar-se; inclusive, a velocidades superiores à da luz. Isso os torna mais ou menos independentes, do Tempo e do Espaço.

— Por exemplo?

— Além dos Mensageiros Solitários, os Supernafins, que podem transportar os mortais ressuscitados a duas vezes a veloci­dade da luz: quase 600 000 quilômetros por segundo. E ainda assim, posso dizer-lhe, esses seres precisam de milhares de anos para transportar-se de um extremo a outro dos universos. Entre­tanto, como já lembrei anteriormente, tampouco o Tempo que você e eu conhecemos é o mesmo para esses seres. ..

"Há personalidades celestes, como os Mensageiros da Gravi­dade e os Espíritos Inspirados da Trindade, entre outros, que podem ir a todas as partes quase no mesmo instante. É o caso, igualmente, dos Harmonizadores de Pensamento ou "centelha" pré-pessoal do Pai Universal. Você, eu, seus filhos, os meus e to­dos os humanos temos nosso próprio harmonizador de pensa­mento. ..

— Jesus de Nazaré também?.. .

— Claro que sim. Dir-lhe-ei algo mais. Foi precisamente o Harmonizador dele quem, no histórico momento do batismo do Cristo-Micael, no Jordão, viajou em segundos desde aquele ponto até uma das esferas "arquiteturais" próxima à Ilha Eterna do Pa­raíso, regressando para trazer a célebre mensagem que figura no Evangelho: "Este é meu muito amado Filho, em quem tenho mi­nhas complacências". Um Mensageiro Solitário, entretanto, teria precisado de várias semanas para cobrir o mesmo trajeto.

"Essas "viagens" (simplificando a linguagem) realizam-se ao longo de circuitos preestabelecidos pelos Mestres Arquitetos do Universo. E há uma infinidade de circuitos: espirituais, de gravitação, mentais, de energia física etc. Todos eles partem da Ilha Eterna e Estacionaria do Paraíso e a ela retornam. E, já que fala­mos do Espaço e do Tempo, posso dizer-lhe também que o Paraíso

é eterno e independente do Tempo. Ali, as decisões são concomi­tantes com os atos; e os resultados, instantâneos.

"Mas não nos afastemos do objetivo final desta exposição: Lúcifer e sua rebelião catastrófica...

 

A filha da raça azul não lograva compreender por que tanto interesse por aquele odioso e repulsivo personagem, Lúcifer. Desde criança, sem saber por quê, bastava o nome daquele que sempre foi considerado o diabo ou Satanás para que sentisse funda re­pugnância. Por isso, não foi de bom grado que se dispôs a escutar.

— Pouco sabemos sobre esse personagem — esclareceu o amigo —. As Sagradas Escrituras e outros textos mais ou menos sacros de outras religiões e culturas fazem referência à sua exis­tência, mas sempre de forma bem vaga. . .

Sinuhe compulsou seus papéis.

— Para base do que vou expor-lhe em seguida, aqui estão alguns testemunhos bíblicos que, mais ou menos, fazem alusão a essa não menos alta "personalidade" celeste. No Evangelho de Lucas, por exemplo (10, 17-21), está dito: "Os setenta e dois voltaram com alegria, dizendo: 'Senhor, até os demônios se nos submetem em teu nome!' Jesus lhes disse: 'Eu via Satanás cair do céu como um raio. Eis que vos dei o poder de pisar serpentes, escorpiões e todo o poder do inimigo, e nada poderá vos causar dano. Contudo, não vos alegreis porque os espíritos se vos subme­tem; alegrai-vos, antes, por que vossos nomes estão inscritos nos

céus.'"

"Também Lucas (4, 1-14) fala-nos das famosas tentações de Jesus em seu retiro no deserto. Nesse texto se repete a palavra "diabo".

"No Evangelho de João (8, 44-46), Jesus afirma: "Vós ten­des por pai o diabo e quereis satisfazer os desejos do vosso pai. Ele foi homicida desde o princípio, e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele mente, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira. Mas, porque di­go a Verdade, não credes em mim. Quem, dentre vós, me acusa de pecado?"

"Em Mateus (25-41) também li: "Em seguida dirá também aos que estiverem à sua esquerda: 'Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos'."

"Quanto ao Apocalipse de João, talvez seja o mais extenso e sugestivo. No capítulo 12, 7, conta-nos sobre a mítica "batalha no céu": "Então houve uma batalha no céu. Miguel e seus anjos guerrearam contra o Dragão. O Dragão batalhou, juntamente com seus anjos, mas foi derrotado, e não se encontrou mais um lugar para eles no céu. Foi expulso o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo e Satanás, sedutor de toda a terra habitada; foi expulso para a terra, e seus anjos foram expulsos com ele. Ouvi então uma voz forte no céu, proclamando: 'Agora atuou a salva­ção, o poder e a realeza do nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo; porque foi expulso o acusador dos nossos irmãos, aquele que os acusava dia e noite diante do nosso Deus. Eles, porém, o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra que testemunha­ram, pois desprezaram a própria vida até a morte. Por isso ale­grai-vos, ó céus, e vós que os habitais! Ai da terra e do mar, porque o Diabo desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta pouco tempo. O Dragão, ao ver-se precipitado so­bre a terra, perseguiu a mulher que tinha dado à luz o filho varão. Ela, porém, recebeu as duas asas de uma grande águia para voar ao deserto, para o lugar em que, longe da Serpente, é alimentada por um tempo, dois tempos e metade de um tempo?"

"Mais à frente — concluiu Sinuhe —, ao falar das "duas Bestas", no capítulo 13, João termina com "algo" que não quero que você esqueça: ".. . E fez com que todos, pequenos ou grandes, ricos ou pobres, livres e escravos, recebessem um sinal na mão direita ou na testa, de forma tal que ninguém possa comprar ou vender se não tiver sido marcado com o nome da Besta ou com o número do seu nome. Eis a sabedoria. Aquele que tenha inteli­gência, calcule o número da Besta, um número de homem. Seu número é 666".

E Sinuhe repetiu a última frase:

— Seu número é 666.

— Não sei aonde você quer chegar — comentou Glória, impaciente.

— Bem, vamos ao miolo. Essas passagens e outras seme­lhantes falam-nos do "Diabo". Entretanto, os teólogos e exegetas mais modernos não parecem dar muita importância à figura desse personagem, ao contrário de toda a tradição e, inclusive, do papa Paulo VI. Você deve lembrar-se de que, em 29 de junho de 1 972, em célebre discurso, ele falou da "fumaça de Satanás" e afirmou que ela "penetrara em determinados setores da própria Igreja Católica". Referiu-se na ocasião a Satã como um "ser pessoal"... Pois bem, segundo estes documentos, equivocam-se uma vez mais os teólogos. Mas equivocou-se também Paulo VI...

— Isso é muito forte! — retrucou a filha da raça azul.

— Eu sei. Na realidade, toda essa "Quinta Revelação", su­pondo-se que esteja certa, é dinamite pura.

— E por que é que você garante que nem mesmo o Papa tinha razão?

— Porque, tanto quanto a tradição e a imensa maioria dos crentes, confunde Lúcifer com Satã e com Caligastia e Belzebu. Afinal de contas, foram todos "etiquetados" com a mesma e co­mum definição: "o diabo". Mas, como você verá, trata-se de per­sonalidades celestes diferentes.

— E qual é a sua versão?

— Minha versão não — corrigiu Sinuhe —. Versão da "Quinta Revelação"... isso sim. De acordo com ela, cada sistema (não se esqueça de que um superuniverso abriga por volta de mil milhões de sistemas) é regido por um soberano sistêmico: um filho da chamada Ordem dos Lanonandeks. O nosso, Satânia, foi governado por uma dessas brilhantes criaturas: Lúcifer. Era, como os demais seres dos quais lhe falei, um "peregrino descendente" da eternidade. Todo um anjo de luz que, há cerca de 200 000 anos, fez estalar uma revolta em nosso sistema, arrastando um total de 37 dos 619 planetas habitados.

"Satã, ao contrário, era seu lugar-tenente. Tratava-se também de uma criatura perfeita, "peregrino descendente" e, como Lúcifer, pertencente à Ordem dos Lanonandeks Primários. Coube a Satã um papel de destaque, já que seu "chefe" encarregou-o de repre­sentá-lo e de manter viva a rebelião em diferentes mundos, entre eles IURANCHA.

"Quanto a Belzebu ou Belzebub, era outra criatura, chefe dos chamados "medianos" rebeldes, que também se aliaram às forças de um quarto e não menos importante personagem: Cali­gastia, o príncipe planetário de IURANCHA naquela época. Como já lhe disse, os planetas são a última unidade na organização ad­ministrativa dos universos. Cada mundo dispõe de um príncipe planetário que pode alcançar o grau de soberano. Talvez você se

lembre da alusão que Jesus de Nazaré fez, durante sua vida em IURANCHA, ao "príncipe deste mundo"... Referia-se precisa­mente a Caligastia que, depois da rebelião, foi deposto.

— Quem eram esses.. . "medianos"?

— Quase nada posso falar-lhe deles. Sabemos que não se tratava de criaturas "descendentes do Paraíso" e que tiveram muito que ver com o Estado-Maior de Caligastia. Este é, precisamente, um dos objetivos da missão que nos deram: averiguar quem são os "medianos" e, sobretudo, onde se encontram os arquivos secre­tos de IURANCHA...

Sem querer, Sinuhe acabava de revelar à filha da raça azul a primeira parte da missão.

— Arquivos secretos? Sobre quê?

— Segundo a "Quinta Revelação", repito, a cerca de 200 000 anos terrestres explodiu uma revolta em nosso sistema: a terceira em toda a história do universo local de Nebadon. E, dos 619 mundos habitados de Satânia, 37 uniram-se a Lúcifer. Entre eles, o nosso: IURANCHA.

"Quando um soberano sistêmico atua normalmente, as per­sonalidades (invisíveis para os olhos dos humanos) que integram sua hierarquia administrativa podem comunicar-se livremente com todos os planetas do sistema, assim como com os níveis superiores. Parece porém que, ao iniciar-se uma rebelião, as personalidades celestes superiores atuam vertiginosamente, cortando determinados circuitos de comunicação com esses planetas, de forma que a su-blevação não possa propagar-se. Assim, todos os planetas ficam submetidos a uma "quarentena". Foi o que aconteceu no sistema em que vivemos e com esses 37 mundos "rebeldes". Pois bem, em conseqüência do terrível isolamento a que IURANCHA está su­jeita, boa parte das forças rebeldes (os "medianos" entre outros) continua dominando a Terra e levando ao caos, à violência e ao erro constante as diferentes humanidades que vão desfilando pelo globo. Temos informações de que foram esses seres enigmáticos (os "medianos" rebeldes) que se apoderaram do controle dos ar­quivos secretos do planeta Terra.. .

— Insisto — interrompeu Glória, preocupada com sua per­gunta anterior —, que contêm esses arquivos?

— A verdadeira história da rebelião de Lúcifer e as tremen­das conseqüências que dela redundaram, especialmente para os humanos de IURANCHA. As forças do Mal não se dispõem a abrir aos mortais "ascendentes" (a nós) esses arquivos secretos. Isso talvez significasse uma mudança na atitude dos seres humanos, o que não os interessa. . .

Glória aproveitou a nova pausa do amigo:

— Sempre nos ensinaram — afirmou com alguma reticência — que Lúcifer se rebelou contra Deus porque pretendeu ser como

Ele. Estou enganada?

Sinuhe esperou que a filha da raça azul descobrisse por si mesma o absurdo de semelhante hipótese.

— ... Embora, pensando friamente — prosseguiu Glória —, pareça muito esquisito que uma criatura perfeita, criada direta­mente por Deus e por conseguinte inteligente, quisesse ser Deus. . .

— Você o disse: extraordinariamente inteligente. Pergunto-lhe eu: você sabe de algum ser humano realmente inteligente (talvez tivesse de escrever com letras maiúsculas) que seja sober­bo? Os seres INTELIGENTES de verdade são, quase sempre, os mais humildes.. .

— Você insinua — cortou Glória — que houve "outras ra­zões" que teriam provocado a revolta de Lúcifer?

— Suspeitamos que sim, da mesma forma que não acredita­mos que Adão e Eva tenham sido nossos primeiros pais; também suspeitamos que a serpente e a maçã sejam só um mito ou símbolo francamente infelizes.. .

— Um momento. Você conhece a verdadeira história da rebelião de Lúcifer?

Mas antes que Sinuhe respondesse, a filha da raça azul o abordou com outra pergunta sutil:

— Por que você diz "suspeitamos" e "acreditamos"? Sinuhe, sorridente, decidiu-se a abrir-lhe definitivamente o coração.

 

Boa parte daquele segundo estágio em Sotillo foi dedicada a pôr Glória a par de alguns antecedentes, conhecidos por Sinuhe, sobre "Ra", sua mensagem e a "necessidade de levar a termo de­terminada missão". No momento, não considerou oportuno falar-lhe sobre a vinculação com a Escola da Sabedoria, tampouco das experiências que ele viveu no bosquezinho próximo daquela Casa Azul em que dialogavam.

Foi sobretudo a mensagem de "Ra" que causou impacto es­pecial na filha da raça azul.

— ... Por tudo isso — declarou Sinuhe, ao passo que inci­tava a amiga a que se definisse —, fomos indicados para tentar localizar esses arquivos secretos, em poder dos "medianos" rebel­des. Se você aceitar (e devo sabê-lo o quanto antes), no momento oportuno ampliarei alguns detalhes, imprescindíveis para encetar­mos a grande aventura. . .

Glória hesitou.

— Há muitas coisas que não consigo entender bem. . .

— Por exemplo? — animou-a o amigo.

— Se vocês, os depositários dessa "Quinta Revelação" ou quem quer que seja conhecem a verdadeira história da rebelião de Lúcifer, por que- não a oferecem ao mundo? Evitar-se-ia, penso, engajar-se nessa missão incompreensível.

— Você tem razão, em parte. Não dispomos senão de uma fração do que supomos ser a autêntica história da revolta. Como também só conhecemos uns poucos sucessos relacionados com as conseqüências da rebelião em IURANCHA; assim como ignora­mos, quase completamente, em que consistiu, na verdade, o erro de Adão e Eva (supondo-se que tal erro tenha existido), que fo­ram os nossos mal chamados "primeiros pais", e quando se insta­laram no Jardim do Éden. . .

"Tudo isso e muito mais acha-se depositado nesses arquivos. Fôssemos capazes de chegar até eles e desvendá-los, a Humanidade inteira conheceria a Verdade, o que, não duvide, traria sensíveis benefícios a todos os mortais "ascendentes" ao Paraíso. O homem, salvo exceções, acha-se perdido e confuso. Não sabe por que nas­ceu nem qual o seu destino final. Não entende a dor e se rebela contra Deus e contra si próprio, sem perceber que tudo isso não é por casualidade. O Conhecimento, enfim, sempre serviu para serenar o espírito dos humanos e acelerar-lhe o caminho rumo à suprema Perfeição.

— Você me falou dos muitos seres que compõem o fluxo de "Peregrinos Descendentes da Eternidade" ou da "Ilha Eterna do Paraíso". Compreendi. Mas que somos nós, os mortais?

— Poderíamos descrevê-lo como "o contrário": um refluxo de "Peregrinos Ascendentes" do Tempo. Cada humano é criado por Deus. . .

A filha da raça azul interrompeu, evidentemente confusa.

— Deus? Mas por qual dessas pessoas que formam a Trin­dade?

— Em realidade, e respondendo concretamente, por seus "intermediários": pelos Filhos Criadores de universos locais. Deus, em geral, é um símbolo verbal que se usa para designar todas as personalidades da Deidade. Nestes escritos, o termo Deus é utili­zado para os seguintes significados. Ouça atentamente, e não se alarme:

"1. Deus o Pai: Criador, Controlador e Sustentáculo. É o Pai Universal e a Primeira Pessoa da Deidade.

"2. Deus o Filho: Criador Coordenado, Controlador do Es­pírito e Administrador Espiritual. É o Filho Eterno e a Segunda Pessoa da Deidade, de que também já lhe falei.

"3. Deus o Espírito: Ator Conjunto, Integrador Universal e Dispensador de Pensamento. É o Espírito Infinito e a Terceira Pessoa da Deidade.

"4. Deus o Supremo: é o Deus do Tempo e do Espaço, expandindo-se ou evolucionando. Deidade Pessoal concebendo a identidade entre criaturas e Criador por associação e sua realização por experiência no Espaço-Tempo. O Ser Supremo executa pes­soalmente a experiência de realizar a unidade da Deidade, como Deus evolutivo e "experiencial" das criaturas evolucionárias do Tempo e do Espaço.

"5. 'Deus o Sétuplo: Personalidade da Deidade operando em todos os sentidos, de maneira efetiva no Tempo e no Espaço. São as Deidades Pessoais do Paraíso e seus associados criadores, ope­rando dentro e fora das fronteiras do Universo Central. Persona­liza seu poder como Ser Supremo no primeiro nível da criatura, unificando no Tempo e no Espaço a revelação da Deidade. Esse nível é o Grande Universo, a esfera de onde as personalidades do Paraíso descendem no Espaço-Tempo, em recíproca associação com as criaturas evolucionárias que ascendem no Espaço-Tempo.

"6. Deus o Último: exteriorização do Deus do Supertempo e do Espaço transcendido. Segundo nível "experiencial" de manifes­tação da Deidade unificadora. Deus o Ultimo inclina-se a conceber limpidamente a síntese dos valores discordantes-superpessoais que transcendem o Espaço-Tempo e exteriorizam a experiência. Coor­dena-os nos níveis criadores finais da realidade divina.

"7. Deus o Absoluto: o Deus experimentador dos valores superpessoais transcendidos e dos significados da Divindade agora existencial como Deidade absoluta. É o terceiro nível de expansão e de expressão da Deidade unificadora. Nesse nível supercriador, a Deidade esgotou o potencial personalizável, completou a Divin­dade e vê estender-se a atitude de revelar-se a si mesma em níveis sucessivos e progressivos de personalizações diferentes. Neste pon­to, a Deidade reencontra o Absoluto Incondicionado, contraria-se a si mesma e realiza a experiência de identificar-se consigo mes­ma. ..

Glória fez um movimento negativo com a cabeça.

— Eu sei — argumentou Sinuhe —, tudo isso é pouco menos que indecifrável... para os humanos. Posso esclarecer-lhe que na "Quinta Revelação" há centenas de páginas em que se tenta tornar compreensível a idéia múltipla da Divindade. Talvez, para que nos entendamos, pudéssemos resumir essa sétupla versão de Deus dizendo que a existência divina não poderá jamais ser provada nem compreendida através de experiências científicas ou de dedu­ções lógicas da razão pura. Ninguém pode conceber Deus clara­mente, mais que fora dos reinos da experiência humana. No entanto, como você sabe, o verdadeiro conceito da realidade de Deus é razoável para a lógica, plausível para a filosofia, essencial para a religião e indispensável para toda esperança de sobrevivên­cia pessoal.

"Em teoria, pode-se pensar em Deus como Criador e, efeti­vamente, é o Criador Pessoal do Paraíso e do Universo Central de Havona. Entretanto, os universos do Tempo e do Espaço fo­ram, todos eles, criados e organizados pelo Corpo Paradisíaco dos Filhos Criadores. E entre ELES está nosso Micael: Jesus de Na­zaré.

"O Pai Universal não é o Criador do Universo local de Nebadon. Este, você também o sabe, é criação de seu Filho Micael. Entretanto, mesmo que o Pai Universal não crie pessoalmente esses universos evolucionários, Ele os controla em muitas de suas rela­ções universais e em algumas de suas manifestações de energias físicas, mentais e espirituais. Lembre-se do caso dos Harmonizadores de Pensamento ou "centelha" pré-pessoal do Pai Universal em cada um de nós...

"Em resumo, Deus o Pai é o Criador Pessoal do Universo do Paraíso e, associado com o Filho Eterno (Segunda Pessoa da Trindade), o Criador de todos os Criadores pessoais de universos.

"Como controlador físico no Universo-Mestre material, a Causa-Centro-Primeira funciona nos arquétipos da Ilha Eterna do Paraíso. Em metade desse centro de gravidade absoluto, o eter­no Deus exerce um supercontrole cósmico do plano físico, tanto no Universo Central quanto de um extremo a outro do Universo dos Universos. Como Mente, Deus obra pela Deidade do Espírito Infinito. Como Espírito, Deus se manifesta na pessoa do Filho Eterno e na dos divinos "filhos" do Filho Eterno. Essas relações mútuas da Causa-Centro-Primeira (Deus) com as Pessoas e os Absolutos coordenados do Paraíso não excluem, de forma alguma, a ação pessoal direta do Pai Universal em toda a Criação e em todos os seus níveis. Pela presença de seu Espírito fragmentado, o Pai Criador mantém contato imediato com seus filhos-criaturas e seus universos criados.

"Todos nós mortais, finalmente, somos criados pelo corres­pondente Soberano do universo local e, ao contrário do que acontece com os seres "descendentes", nós, entretanto, não somos criados perfeitos, mas somos dotados do potencial de perfeição e de vida eterna. Nessa associação de Deus o Sétuplo, os Filhos Criadores de universos locais trazem o mecanismo pelos quais nós mortais chegamos a ser imortais e o finito pode ser abarcado pelo infinito.

"Se, depois de sua vida física em seu planeta natal, o humano "ascendente" for julgado digno de sobreviver, entra no caminho da ascensão do Paraíso. São ressuscitados dentre os mortos, seja individualmente (ao "terceiro dia" depois de sua morte), seja co­letivamente, ao fim de cada milênio.

A filha da raça azul ia de surpresa em surpresa. Emocionada, exclamou:

— Fale-me dessa passagem!. . . O que acontece depois da morte?

Sinuhe observou-a com semblante grave.

— Você sabe muito bem o que acontece quando se passa para "o outro lado" — censurou-a.

— Sim, mas não a sua versão. . . Perdão, a versão dessa "Quinta Revelação".

— No momento da morte, o ser humano dorme no nada. Seu harmonizador de pensamento e seu anjo da guarda o aban­donam. Em outras palavras: durante certo tempo (aceitando o difícil conceito de "tempo sem tempo" dessa nova experiência), o humano deixa de ter personalidade. Se destinado a sobreviver, será ressuscitado pelas "personalidades celestes" responsáveis por tal incumbência, nesse que chamam o Mundo dos Moronciais ou das Casas. Nesse caso recebe um corpo "moroncial" e seu harmo­nizador volta a habitar-lhe a mente, ao mesmo tempo que seu anjo da guarda lhe restitui o psiquismo e a memória do passado. Sua personalidade é inteiramente reconstruída e, a partir daí, as entidades qualificadas da hierarquia celeste vigiam seu progresso espiritual.

"O corpo "moroncial" é repetidas vezes substituído por outros corpos "moronciais", cada vez, porém, mais sutis e espiritualiza­dos. Essas mudanças sucessivas foram reveladas em IURANCHA por grandes instrutores celestes, mas os humanos se enganaram interpretando-as como reencarnações sucessivas. . .

— Então, a reencarnação não existe?

— Segundo a "Quinta Revelação", não como nós os huma­nos a entendemos. Os mortais (se diz aqui) não tornam a nascer nem no seu planeta natal nem com um corpo físico. As reencar­nações são, na realidade, um fenômeno "moroncial". Depois dessa experiência "moroncial" ou experiência da alma, começa a pro­longada experiência espiritual. Corpo sutil, alma e espírito se fundem progressivamente e o "peregrino ascendente" no Tempo é lançado em uma vertiginosa e promissora vereda a um destino maravilhoso: a Ilha Eterna do Paraíso. E essa "vereda", reza a "Quinta Revelação", constitui uma resplandecente sucessão de ex­periências, de todo tipo, que vão "abrindo" ao filho de Deus ca­minhos de revelações cada vez mais extraordinárias.. . Impossível descrever com palavras o que realmente nos aguarda "do outro lado".

Glória, os olhos úmidos de emoção e alegria, nem sequer respirava.

— Todos esses "peregrinos ascendentes" — continuou Sinu­he —, vão sendo transportados de mundo em mundo pelos chama­dos serafins transportadores, dentro de uma "técnica" prodigiosa. E o número de mundos a visitar antes de alcançar o Universo Cen­tral de Havona é extraordinário. Digo-lhe mais: nesse mesmo Uni­verso de Havona, como já lhe expliquei, é preciso que se conheçam as mil milhões de esferas antes de se estar qualificado para a longa viagem interestelar que leva à Ilha Eterna. Mas não se assuste. Os conceitos humanos de tempo não têm relação alguma com os mi­lhões de anos dessa "carreira" para o Paraíso, e é curta a sua du­ração se a relacionamos com o conceito de Eternidade.

"Antes de nós, massas incontáveis de mortais já fizeram o percurso. Essa "carreira" tem um único fim: transformar os seres humanos evolucionários em seres "aperfeiçoados" ou "finalistas", semelhantes, sob muitos conceitos, aos seres "perfeitos" por natu­reza que habitam normalmente as esferas paradisíacas, mas que não desfrutam da experiência do Espaço-Tempo.

— De acordo com isso — observou Glória —, podemos chegar a ser mais afortunados que esses seres criados "perfeitos" desde sua origem...

Sinuhe encolheu os ombros.

— Só posso dizer-lhe que, se tudo que está aqui for verda­de, a promessa de Jesus de Nazaré de toda uma "recompensa e um lugar na casa de meu Pai" parece acanhada...

— Que são os "finalistas"? — atacou Glória com seu en­tusiasmo natural.

— A totalidade desses mortais afortunados que conseguem alcançar a Ilha Eterna agrupa-se no que chamam o Corpo da Fi­nalidade. O destino deles, entretanto, não foi desvendado ainda. A "Quinta Revelação" permite entrever a fantástica possibilidade de que todos esses "peregrinos ascendentes", juntamente com miríades de anjos, sejam os futuros povoadores desse Espaço Exte­rior, ainda inabitado, de que já lhe falei.

E Sinuhe formulou um pensamento em voz alta:

— É fantástico!. . . Muito mais do que jamais pôde ensinar-nos Igreja ou doutrina alguma... Talvez agora, por tudo isso, meu coração está buscando Deus com mais força. . .

Voltando os olhos para Glória, formulou-lhe a pergunta de­cisiva:

— Depois de tudo o que você escutou, aceitaria sair comigo em demanda desses arquivos secretos e transmitir seu indubitável "tesouro" de conhecimentos?

Iluminou-se o rosto de Glória ao ouvir aquela proposta sole­ne. Sinuhe sabia que a companheira, desde o primeiro momento e no recôndito da alma, dissera "sim" à missão. Mas, fiel à reco­mendação de seu Kheri Heb, preferia ir devagar, meticulosamente.

— Você sabe — recriminou a amiga — que o acompanharia ao fim do mundo. E com mais razão quando "alguém", não sei exatamente quem, mas pouco importa, nos oferece a oportunidade única de nos enfrentarmos com nosso próprio passado e, o que é mais importante, com nossa verdadeira história e identidade como humanos. Não sei o que tenho a fazer nem como, mas "sim"... Como resposta, Sinuhe levantou-se e, aproximando-se de Glória, beijou-lhe as duas faces.

— Obrigado.

— Mas, antes que você me fale sobre os preparativos para essa missão — acrescentou a senhora da Casa Azul, cuja memória era bem mais implacável que a de Sinuhe —, tire-me uma dúvida: que é a "raça azul"?

Nosso homem voltou aos documentos e já se dispunha a dilucidar a incógnita quando, subitamente, à porta do salão apareceu a corpulenta figura do alcaide de Sotillo.

Sinuhe silenciou. Glória, percebendo que seu informante não desejava falar daqueles assuntos na presença de José Maria, des­viou com tato a conversação. O investigador, no fundo, agradeceu aquela interrupção. Era necessário que ambos, a filha da raça azul e ele próprio, refletissem sobre o que trataram aqueles dias. Sinuhe sentia cada vez mais próximo o momento de empreender a missão. Estava consciente, também, de que boa parte do êxito dela depen­dia não só dos ensinamentos que Glória recebesse, como — muito especialmente — do entusiasmo nascido do interior de cada um deles. Isso, é óbvio, requeria tempo. Era duro, ao menos para Si­nuhe, não saber com precisão por que fora eleito para a missão e, naturalmente, como levá-la a cabo. Mas Glória jamais soube de tais dúvidas.

Discretamente, Sinuhe interrogou o prefeito a respeito do velho relógio da Câmara Municipal. Ainda lhe palpitava no ânimo o desejo de inspecionar a maquinaria e a torrezinha metálica, em busca sabe Deus de que nova "pista". Mas José Maria só contri­buiu para esfriar o entusiasmo do investigador. Como é habitual nesses pequenos lugarejos rurais, "as coisas de palácio vão muito mais devagar. .." Assim, durante o tempo todo transcorrido desde a última visita de Sinuhe a Sotillo, a fechadura da porta de aces­so à Câmara continuava emperrada, bloqueando a entrada ao edifício.

As palavras do prefeito, prometendo solução imediata, não serviram de consolo a Sinuhe. Ele "sentia" que devia entrar no velho casarão. Mas como?

Nessa mesma segunda-feira, 16 de julho, a incógnita se aclarou.

 

Absorvido pelos preparativos da missão — o que não era de estranhar dada sua habitual distração —, Sinuhe não se dera conta de que no dia seguinte, 17 de julho, Glória celebraria seu 49.° aniversário. O primeiro, "casualmente", sem o marido. A cir­cunstância, muito especial, atraiu seus amigos mais íntimos para Sotillo, a fim de fazer-lhe companhia.

Assim pois, ao longo daquela segunda-feira, a Casa Azul foi paulatina e alegremente agitada por um tráfego contínuo de pessoas e bagagens. E a filha da raça azul e Sinuhe, de comum acordo, decidiram adiar suas conversações secretas.

Ao entardecer, com a desculpa de uma caminhada rotineira pelos arredores, o membro da Escola da Sabedoria deu um jeito de entrar sozinho no bosquezinho que cerca a Câmara Municipal, onde vivera tão estranha experiência.

Nessa segunda visita, Sinuhe não percebeu nada de anormal. As copas das árvores, inundadas de Sol, eram testemunhas imóveis do jogo incansável de dezenas de andorinhas e gaivões, cujos trinados afogavam por vezes o zumbido das libélulas e o sibilo de cigarras escondidas.

O objetivo dele era alcançar o claro do bosquezinho e veri­ficar o que acontecera aos seis misteriosos sinais gravados nos troncos por aquela criatura monstruosa.

Apesar de ter assistido à cena, de ter tocado o emblema que decora a "bandeira de Micael de Nebadon" e de ter ainda reco­lhido um punhado da não menos perturbadora areia do solo da clareira, continuava a rebelar-se o espírito analítico e racionalista de Sinuhe.

Mas esfumou-se logo a incerteza. Ao ganhar a orla do claro, o sangue voltou a ferver-lhe nas entranhas. Ali estavam as seis marcas! Negras, intactas, testemunhas frias e palpáveis de todo o acontecido.

Trêmulo de emoção, Sinuhe caminhou até o centro geométri­co da clareira. Uma vez ali, levantou os olhos em direção ao círculo azul que se recortava, quase como um milagre, entre os altos choupos.

Sem saber por quê, sentiu-se pleno de uma paz intensa. Vie­ram-lhe ao cérebro as palavras cada vez mais familiares que, sem dúvida, havia-lhe transmitido aquele ser: "Lembre-se do meu si­nal. .. o de Micael".

Sinuhe baixou a vista, fixando-a em cada um daqueles cír­culos concêntricos. E a súbita paz que o inundava foi dando lugar

a uma mistura de nostalgia e serena melancolia. Se tudo aquilo não era sonho, encontrava-se diante do símbolo do Criador: os três círculos que, segundo a "Quinta Revelação", constituem a bandeira do Filho Criador do universo local de Nebadon, Jesus de Nazaré. Uma bandeira branca com três círculos azuis e con­cêntricos ao centro. Bandeira que Micael jamais utilizou durante sua vida terrena em IURANCHA. "Bandeira", meditou Sinuhe, "que resume todo o mistério e a grandiosidade da Trindade."

E ele, inditoso e contraditório mortal, havia sido eleito para tão alta missão?

Sinuhe não podia entendê-lo, embora reconhecesse que havia "algo" sumamente familiar ou conhecido em tudo aquilo que o impelia a prosseguir, mesmo contra a vontade.

Antes que umas lágrimas ameaçadoras lhe brotassem dos olhos, recolheu um par de punhados dos grãos luminosos, en­chendo um pequeno frasco que — contrariando suas próprias dú­vidas — levara consigo ao bosque.

Minutos mais tarde o investigador — presa de crescente e no momento inexplicável nostalgia — afastava-se do lugar, caminhan­do a esmo em direção às geladas neves da Sierra Cebollera.

 

Sinuhe permaneceu na solidão da serra até bem entrada a noite. E, embora aquelas fugas a paragens tão longínquas quanto sombrias costumassem ser freqüentes em suas impenitentes corre-rias em demanda do mistério, naquele instante — caído diante da imensa faixa da galáxia — o atormentado repórter pediu, com mais força que nunca, algum tipo de sinal que lhe aliviasse as dúvidas...

Mas esse "sinal" não chegaria, pelo menos não como nosso homem supunha. Um tanto decepcionado, abandonou aquelas trevas, imerso em outras muito mais densas: as do próprio coração.

Glória começava a impacientar-se com a tardança do amigo. Assim, respiraram todos quando ele apareceu e assentou-se, como era costume, no estrado do salão, com as costas apoiadas na fria e silenciosa lareira da Casa Azul.

Sinuhe dedicou alguns minutos a observar os que ali estavam reunidos. Todos, em maior ou menor grau, compartiam das in-quietudes da filha da raça azul e a conversação, como era de esperar, deslocou-se para assuntos esotéricos agora, paranormais depois, revestidos sempre de profunda inquietação espiritual. Em meio ao animado colóquio, o inexplicável fenômeno das 66 bada­ladas não foi esquecido. Alguém interrogou-a, mas Glória, mali­ciosamente, se esquivou, deixando a possível resposta a cargo de Sinuhe.

O investigador, sem alterar-se, mal desvelou alguns detalhes, evitando, naturalmente, qualquer indício ou notícia que se rela­cionasse com a missão encomendada pela Ordem. A atitude her­mética do jornalista — a que já estavam sobejamente acostumados todos os que o conheciam —, longe de encerrar o caso, aguçou mais ainda a curiosidade de todos. Vários dos presentes à tertúlia fecharam o cerco em torno de Sinuhe, acossando-o com perguntas. Glória assistia, divertida, a essa chuva de veladas perguntas e su­gestões. Mas o investigador, curtido em mil escaramuças como aquela e até mesmo piores, não era fácil de se conquistar e muito menos de se enganar. Assim pois, como também lhe era habitual, conduziu o diálogo para um terreno aparentemente inócuo que, entretanto, para grande surpresa dele, ia trazer-lhe o "sinal" que tanto implorara na serra.

Sinuhe explicou que, antes de chegar a qualquer tipo de con­clusão sobre as misteriosas badaladas, seria mister fazer minuciosa revisão da maquinaria do relógio. E lamentou que tal exame não tivesse podido ainda ser levado a termo, graças ao estúpido aci­dente da chave, que bloqueou a fechadura.

— Enquanto não houver possibilidade de passar em revista aquela cabina — mentiu —, tudo serão especulações...

Nesse instante, Joana, velha amiga de Glória e que com ela compartilhara dos primeiros anos de exílio voluntário da família em Sotillo, insinuou a possibilidade de subir à torre da Câmara "por outro caminho".

Desta vez foi Sinuhe, ao sentir que lhe disparavam todos os seus "alarmas" mentais, quem fez uma única e rotunda pergunta:

— Como?!

Joana lembrou-lhe que, durante a longa temporada que pas­sara na aldeia, morara precisamente na velha e desabitada vivenda do secretário da Câmara Municipal. Justamente na parte baixa da chamada Casa Consistorial.

— Certo! — exclamou Sinuhe, começando a compreender. — Então, há alguma porta de comunicação com a parte alta do casarão?

Joana respondeu que sim.

Sinuhe, levantando-se, deixou-se levar por uma de suas típi­cas intuições:

— Então, que estamos esperando?

— Agora? — clamaram perplexos alguns dos convivas — É quase meia-noite...

— Além do mais — tornou Joana —, essa porta está selada há vários anos e "taipada" por um pesado armário que eu mesmo ajudei a arrastar até ali...

— Mas — insistiu Sinuhe, sem nem sombra de desfalecimento — não seria possível deslocar o móvel e abrir a porta?

— Suponho que sim — apressou-se Joana, já começando a entusiasmar-se com .a excitante perspectiva.

Vários dos amigos, especialmente as mulheres — Ulla à fren­te —, assumiram a idéia esportivamente e aderiram a Sinuhe.

— Um momento — reagiram os outros —; o velho casarão está às escuras... Pode ser perigoso... Não sabemos o que pode haver no ático... Não seria mais prudente esperar até amanhã?

Um dos "dissidentes", num último esforço para dissuadir Sinuhe e as mulheres que se dispunham a sair para a Câmara, evo­cou as 66 badaladas, enfatizando a hipótese de que talvez "aquilo fosse coisa de fantasmas ou de almas penadas. .."

Algumas das amigas de Glória empalideceram. Mas Joana freou aquele medo incipiente, com uma de suas habituais tiradas:

— Se é assim, levaremos "pedrinhas"!. ..

Ignorando os conselhos sensatos da maioria, Sinuhe mais quatro ou cinco mulheres, munidos de velas e uma lanterna, com passos decididos atravessaram a praça da Lastra.

A filha da raça azul ficou em casa, fiel a um dos seus costu­meiros pressentimentos. Faltavam poucos minutos para seu 49.° aniversário e ela "sentia" que, ao final daquele seu sexto ciclo humano, iria deparar-se com grandes surpresas...

 

Sinuhe se deteve por alguns segundos. Do centro da praça solitária da Lastra levantou o olhar para as estrelas. A lua, embora já perdida sua branca redondeza, arrancava ainda fulgores do bron­ze do sino e da acinzentada silharia da torre da Câmara Municipal. O silêncio era apenas e levemente perturbado pelos nervosos e fu­gazes cochichos das mulheres e pelo doce manar da fonte de Diana Caçadora. A aldeia dormia. Apenas as luzes da Casa Azul rom­piam a escura geometria da noite.

Joana, que naqueles dias voltara a ocupar o antigo e tempo­rário lar, empurrou a porta de folha dupla. Cortesmente, Sinuhe deu passagem às acompanhantes. Ao verificar porém a proximi­dade dessa porta com a que estava bloqueada, reprochou-se pelo que ele achou ser uma grave distração. Como não se havia dado conta de que a antiga vivenda do secretário podia também condu­zir à cabina da maquinaria do relógio?

Sem perda de tempo, Joana mostrou aos amigos a parede por onde poderiam penetrar no casarão da Câmara. Um pesado armário de pouco mais de metro e meio, com efeito, escondia dois terços da vetusta e carcomida porta. Sinuhe depois de um rápido exame dos pés do armário, curtos e gastos, passou a arrastá-lo.

Em segundos, a porta estava liberada. Tal como anunciara Joana, três tiras de fitas adesivas selavam aquele acesso. Na mente de Sinuhe, uma dedução lógica: "Se alguém, na famosa madru­gada das 66 badaladas, tivesse entrado na Câmara por aquela porta, além de ver-se na contingência de deslocar o incômodo ar­mário, teria tido que romper ou descolar aquelas bandas adesi­vas. . ." Mas as fitas estavam intactas e perfeitamente coladas ao fio do umbral e da madeira da porta, respectivamente.

O investigador pegou o lenço e, debaixo dos olhares expectantes das mulheres, friccionou-o suavemente na superfície de uma das tiras. O pó, nelas acumulado durante os cinco anos em que a casa esteve fechada, passou imediatamente para o tecido. Parecia óbvio que, se o suposto intruso tivesse entrado e depois saído por ali, embora se tivesse dado o trabalho de tentar selar de novo a porta com aquelas mesmas bandas, estas, ao serem dis­postas e friccionadas, teriam perdido o brilho e, naturalmente, a generosa capa de poeira que as cobria.

"Além do mais" — perguntou-se o repórter pela enésima vez —, "para quê?.. . Que sentido teria entrar alguém do povoa­do, de madrugada, na Câmara e divertir-se a fazer soar o sino. .. 66 vezes? Talvez a solução desse enigma irritante" — disse a si mesmo — "já esteja ao alcance da mão.. . É questão de subir e ter abertos os olhos."

E, lentamente, Sinuhe foi retirando as fitas adesivas.

 

Definitivamente, faltava a Sinuhe muita perspicácia para tor­nar-se um bom detetive. . .

Retirados os "selos" rudimentares, usou a lanterna para ilu­minar a porta que tentava abrir. Mas ela foi resistindo, por alguns segundos. . . Ulla, às suas costas, lembrou-lhe que, logicamente, só podia abrir-se para dentro e não para fora, como pretendia o ofuscado "detetive". Resolvido o momentâneo contratempo, Si­nuhe empurrou a rangedora porta, enfrentando total escuridão.

À luz frouxa da lanterna, descobriu um quarto pequenino e desnudo. Tudo calmo. Silencioso. Morto. Sinuhe sentiu instanta­neamente o conhecido bafo que uma habitação longamente desa­bitada exala e, voltando-se para as companheiras, sugeriu-lhes que, se o desejassem, ainda era tempo de regressar. As mulheres, se­gurando as velas acesas, negaram-se redondamente. Só Joana, conhecendo o centenário casarão como conhecia, apoiou-o timi­damente, avisando que o lugar podia estar infectado de ratos.

As mulheres não se intimidaram; foi Sinuhe quem estremeceu ante a possibilidade de tropeçar com os repulsivos e perigosos roedores. Mas, para dizer a verdade, ele não tinha alternativa. Fora ele quem havia promovido aquela incursão; agora não podia voltar atrás. Assim pois, tendo inspirado profundamente, rumou para os degraus localizados a um dos cantos do quarto e que pro­vavelmente conduziam ao primeiro andar. As mulheres o seguiram de perto; com exceção de Joana, que — horrorizada com a pers­pectiva de ratos -— preferiu mudar de sapatos. Mas, apesar dos seus gritos enfurecidos pedindo que a esperassem, fizeram todos ouvidos moucos e continuaram a subida até o desvão.

O primeiro lance da escada, até o andar que abriga as dife­rentes dependências municipais, foi vencido rapidamente e sem no­vidade. Sinuhe, sempre no comando, queria chegar o quanto antes à torre e examinar a maquinaria do relógio. Sabia que a escuridão da cabina devia ser total e que isso iria dificultar muito a explo­ração. Mas também sentia que "algo" inesperado o aguardava ao final daquele percurso e a curiosidade já se tornava insustentável.

Quando alcançou o primeiro andar, Sinuhe parou. Foi ilumi­nando lenta e progressivamente cada uma das portas e paredes, ao mesmo tempo que apurava os ouvidos. Os lamentos de Joana haviam cessado e, envoltos nas trevas, o único som perceptível era o das respirações ofegantes dos decididos aventureiros.

Convencido em parte de que aquele primeiro andar estava deserto, Sinuhe encetou um registro consciencioso das peças. As mulheres, já mais animadas, imitaram-no. Mas, como lhe havia anunciado o alcaide, essa ala da Câmara estava em obras e suas diversas dependências, desmanteladas.

Dentro de instantes nosso homem atacava o último lance da escada: aquele que o levaria, sem dúvida, ao ático.

Com o coração martelando-lhe o peito, ascendeu até uma pequena porta que lhes vedava a passagem.

Passeou o círculo de luz pelo batente e pela maçaneta e, es­forçando-se por dominar-se, preparou-se para abri-la.

Entretanto, alguma coisa perturbadora e impensável naqueles instantes chegou a paralisá-los...

 

Sinuhe apoiou a mão direita na portinhola que presumivel­mente os separava do desvão e, quando estava para empurrá-la, um toque súbito quebrou o silêncio. Era o sino!

O golpe do martelo no bronze propagou-se vertiginosamente, furando as trevas e a minguante coragem do investigador. Fulmi­nante descarga de adrenalina secou-lhe a garganta, provocando-lhe tremores da cabeça aos pés. Perdeu o controle por alguns segundos. A lanterna escorregou entre seus dedos suados e se precipitou es­cada abaixo. E as débeis chamas amarelo-azuladas bruxulearam com o nervosismo das portadoras das velas.

Faltou muito pouco para que o grupo desse meia-volta e se lançasse em fuga frenética.

Em instantes, Sinuhe conseguiu recuperar-se em parte e, tendo pedido calma, recolheu a lanterna, enfrentando outra vez a portinhola.

— Isso — sussurrou para as mulheres com um fio de voz — deve ter sido o vento...

Mas a piedosa mentira nem sequer foi escutada e, muito me­nos, aceita. Todas elas sabiam que naquela noite não havia vento e que o relógio já estava parado havia semanas.

Quem ou o que havia levantado o pesado martelo? Um ani­mal, talvez? Um morador? Ou se tratava, como havia sugerido o amigo de Glória, de "uma alma penada"?

Esse vendaval de interrogações foi passando pela mente de Sinuhe e de suas não menos inquietas amigas, enquanto lutavam por recuperar um mínimo de coragem.

Quando se achavam no difícil transe, alguém, tendo consul­tado o relógio, fez um comentário que finalmente levantou aqueles ânimos desalentados:

— Curioso! O sino soou à meia-noite em ponto.. . Glória acaba de completar 49 anos.... Não será um sinal?

Sinuhe não compreendeu bem as segundas intenções daquela sugestão. Mas agradeceu o fugaz desafogo e, dominado por vio­lenta curiosidade, esmurrou a porta, abrindo-a de par em par.

— Seja o que for — gritou com raiva —, já o veremos... Num salto, enveredou na mansarda escura.

Sem poder dissimular o nervosismo, os pés firmemente assen­tados no chão de madeira, fez girar o feixe de luz em um raio de 180 graus. Foi uma primeira e anárquica exploração do lugar, em busca, sobretudo, de algum rosto ou movimento suspeito.

Prudentemente postou-se no umbral da porta, impedindo a passagem das companheiras e procurando, ao mesmo tempo, cor­tar a possível fuga do não menos hipotético indivíduo que teria tocado o sino.

Com o coração descontrolado pelo medo, Sinuhe foi ilumi­nando um a um os cantos da mansarda. Era uma espaçosa sala quadrada, repleta de móveis, velhos, pacotes de papéis empoeirados amontoados em pilhas informes e um não acabar de cacarecos, entre os quais, em uma primeira vista d'olhos, distinguiu latas, utensílios agrícolas e ferramentas enferrujadas.

Em meio àquele silêncio tenso, o foco de luz foi recuperando pouco a pouco sua estabilidade, passeando agora com mais nitidez pelas fantasmagóricas silhuetas dos trastes abandonados por ali.

À primeira vista, tudo parecia tranqüilo. Mas não era uma calma normal. "O lógico" — ia meditando o investigador — "é que nossa presença fosse afugentando pelo menos algumas das muitas ratazanas que se devem aninhar aqui, neste esconderijo sujo. . ."

Então, por que não haviam topado com uma que fosse, por todo o caminho? "Algo" ou "alguém" as teria assustado. .. antes que eles chegassem?

Súbito pressentimento invadiu Sinuhe.

 

O espesso silêncio e o inesperado toque do sino trouxeram à mente de Sinuhe aquela outra experiência, vivida ou sofrida — de acordo com o ponto de vista — no interior do pequeno bosque que cerca o casarão em que penetraram impensadamente. E o pêlo tornou a eriçar-se-lhe diante de um desconfortável pressen­timento:

"E se o responsável por essa nova badalada tiver sido a monstruosa criatura que vi na clareira? Se assim for" — meditou enquanto procurava com a lanterna o acesso à torre —, "talvez se encontre ainda junto à maquinaria ou, quem sabe, junto ao sino. . . Mas não, não é possível."

Alienado graças às suas lucubrações, Sinuhe nem percebeu que por duas vezes já iluminara uma pequena porta, situada ao fundo da mansarda e a um metro, aproximadamente, do nível do soalho que ele pisava. Foi em um terceiro repasse que o feixe de luz enfocou, primeiro meia dúzia de degraus de madeira e, fi­nalmente, uma porta desconjuntada maltratada pelos anos e que se manteria, quase por milagre, em tais e improvisadas escadas.

Sinuhe descobriu afinal, encostada ao muro principal do ca­sarão, a cabina que devia abrigar a almejada maquinaria do relógio.

Lentamente foi caminhando até àqueles últimos degraus. Mal dera três passos, porém, um golpear distante o deteve. Ao girar sobre os calcanhares e iluminar a porta que acabava de em­purrar, constatou que as mulheres também se haviam voltado para a direção de onde provinha o ruído mais e mais atroante.

Sem nem sequer pensar, abriu passagem entre elas, postando-se na escadinha estreita de onde tinham ouvido o lúgubre tan­ger do sino. Levou o dedo índice aos lábios, pedindo silêncio.

Aquele golpear continuava chegando nítido e ameaçador, misturado às vezes com o próprio eco.

Sinuhe e suas companheiras não precisaram de muitos segun­dos para deduzir, com pavor crescente, que aquele atropelado "martelar" vinha da parte baixa do casarão e que, a julgar pelos cada vez mais claros e poderosos estampidos, subia rapidamente até eles.

Os corações, vítimas de pavor incontrolável, voltaram a dis­parar. O de Sinuhe, então, parecia a ponto de saltar pela boca.

"Que está acontecendo nesta casa maldita?", se perguntou, incapaz de identificar o estrondo que se aproximava sempre.

De repente, desapareceu aquele ruído seco. Os últimos golpes soaram no andar de baixo. Sinuhe, tentando que não gemessem os degraus sob seus pés, desceu dois ou três, empenhando-se em perceber algum sinal — quem sabe uma sombra — que.delatasse ou identificasse o responsável por aquele escândalo aterrorizador. A luz da lanterna perfurou as trevas, explorando o final daquele lance e o cotovelo que formava o passadiço. A única resposta, o silêncio.

Nesse instante uma das moças conseguiu articular uma frase que arruinou a já debilitada coragem do detetive:

— Pareciam passos. ..

"Passos?" — repetiu Sinuhe para si mesmo — "Passos que ressoam como tiros de canhão?. . . Não!" — argumentou, contra suas próprias dúvidas. — "Nenhuma pessoa humana provocaria semelhante estrépito. . ."

Nem bem haviam desaparecido de sua mente essas reflexões e aquela série de golpes reapareceu, congelando-lhe o sangue.

O estrondo era agora infinitamente mais violento e próximo. Soava justamente no andar onde se achavam as dependências municipais!

Sem poder evitá-lo, o detetive recuou ante a evidente proxi­midade daquela tormenta de golpes rotundos e decididos.

Em sua precipitação, porém, tropeçou, estatelando-se de costas nos degraus. E a lanterna escapou-lhe da mão pela segunda vez.. .

 

A espalhafatosa queda de Sinuhe e o simultâneo repicar da lanterna, rolando de degrau em degrau e mergulhando — ao apa­gar-se — os desmoralizados expedicionários na mais desastrosa escuridão, abriram finalmente as comportas do medo e várias das senhoras gritaram, amortecendo por alguns momentos as frenéti­cas pancadas com uma barulheira assustadora.

Então, foi como um milagre. Ou talvez como uma estocada mortal. O "fantasma", ou o que quer que fosse, ao escutar os gri­tos deteve-se. Pelo menos os golpes tinham cessado. E entre res­pirações ofegantes Sinuhe conseguiu levantar-se, apalpando os degraus na busca desesperada da lanterna. Na realidade, embora suas mãos tateassem às cegas e nervosamente a madeira, seus olhos se mantinham fixos no final do lance da escada e, mais precisa­mente, no cotovelo que levava ao andar inferior. Mas as trevas eram ainda suficientemente densas para que se não pudessem dis­tinguir vultos ou silhuetas.

Ao cabo de uns segundos, que a Sinuhe pareceram intermi­náveis, a pessoa, animal ou "fantasma" prosseguiu em sua marcha, mas agora, passo a passo. Os golpes no lance de escada, que mor­ria exatamente no pedaço em que Sinuhe lutava para encontrar a lanterna, fizeram-se definidos e angustiantes. Já não havia dúvida: aquele estrondo era provocado por "alguém" ou "alguma coisa" que estava a poucos metros dos arrependidíssimos "aventurei­ros". ..

Meio paralisado pelo terror, de joelhos e com a vista empanada por um suor frio, lançou-se para o último degrau, maldizendo sua má estrela. A lanterna não aparecia e "aquilo" — seja lá o que fosse — continuava subindo, provocando-lhe tal arritmia cardíaca que esteve a ponto de desembocar em coisa pior.

As moças, mais sensatas, haviam retrocedido, perdendo-se atropeladamente no desvão escuro. Uma das velas, de chama já bruxuleante, acabara por estatelar-se nos degraus, iluminando frouxa e milagrosamente o recinto.

Finalmente, tal presente dos céus, Sinuhe deu com a lanterna e a agarrou como um possesso.

Procurou nervosamente o interruptor e, quando se dispunha a acioná-lo, fez-lhe o instinto que levantasse a cabeça. À sua fren­te, a cerca de um metro, distinguiu um vulto imenso.

Uma vaga de sangue se lhe precipitou das entranhas...

 

Em fração de segundo, pela mente de Sinuhe desfilou, ou melhor, “estalou”, um caótico tropel de possibilidades, cada qual mais ameaçadora. ..

Por Jesus Cristo!.. . Que era aquilo que tinha diante dos olhos?

O vulto, negro e imenso, parecia arquejar e oscilava leve­mente da esquerda para a direita. Por instantes aquela silhueta, com seu movimento rítmico, pareceu-lhe um gorila. Em meio aos calafrios o investigador levantou-se de um salto, esgrimindo a lan­terna num gesto defensivo, incapaz de raciocinar friamente.

Deve ter sido aquele gesto — lanterna levantada — que afi­nal precipitou o desenlace daquela história angustiosa.

De repente, daquele vulto surgiu uma voz entrecortada:

— Tonto!... Mas sou eu!...

Atônito, Sinuhe baixou lentamente a lanterna e, trêmulo, mexeu no interruptor, projetando o feixe luminoso na parte supe­rior do vulto.

Ante os olhos perturbados do repórter apareceu um rosto pálido e contraído pelo medo.

— Joana!

Quando escutaram aquele nome, as moças se aglomeraram na porta do ático, passando do terror para a risada meio histérica.

— Joana!... Mas é claro — balbuciou a recém-chegada —, quem diabo ia ser? Seus malnascidos, por que não me esperaram?

Sinuhe, boca aberta de surpresa, não acreditava ainda no que via.

— Mas — conseguiu articular finalmente — e esses es­trondos?

— Estrondos? Mas que estrondos? — perguntou Joana.

A lanterna do estupefato detetive focalizou os pés de Joana e, ao compreender, foi ele quem caiu na gargalhada. Joana calçava uns enormes e velhos tamancos, trazidos anos atrás de sua querida terra das Astúrias.

Aqueles estampidos tinham sido provocados, em realidade, pela batida do calçado de madeira no soalho e nas escadas do casarão silencioso.

Sinuhe, abatido pela risada e por profundo sentimento de ridículo, deixou-se cair nos degraus, reprovando-se com a cabeça;

— Não estou preparado, simplesmente não estou... Foram as amigas que o arrancaram daquele abatimento. Uma delas, já passado o susto, interrogou Joana sobre a misteriosa ba­dalada.

— Sim, eu ouvi! Vocês são muito engraçados! Que susto me deram!

No mesmo instante Joana compreendeu que o silêncio com que foi acolhido seu comentário escondia qualquer coisa em que não havia reparado.'.. até aquele momento. Foi, pois, com um fio de voz que perguntou:

— Ah, meu Deus!. .. Não foram vocês?! Como resposta, o silêncio eloqüente.

— Ah, Virgem Santíssima!. . Quem foi então o patrício. ..

Joana nem chegou a acabar a frase. Sinuhe, recuperado, re­tomou a iniciativa, abandonou as escadas e enveredou com passos decididos pela mansarda escura. Nenhuma das companheiras chegou a notar o ricto de raiva que lhe ia endurecendo a expressão. Sinuhe era assim. Podia, do mais espantoso sentimento de ridículo e vergonha, saltar, em um piscar de olhos, para mal con­tida ira. Ira contra si mesmo, por sua aparente fraqueza e temor. Aquele incidente, definitivamente, havia terminado por exasperá-lo.

"Isto tem de acabar" — repetia-se, enquanto caminhava para a pequena porta da torre —. "Este mistério absurdo já durou demais."

Até mesmo esquecendo as amigas, que lhe acompanhavam os passos de perto, saltou sobre os degraus, disposto a irromper pela sala onde jazia a antiga maquinaria do relógio.

 

Com presença de espírito pouco comum — conseqüência, sem dúvida, de sua momentânea e renascida coragem — Sinuhe empurrou violentamente a portinhola. As dobradiças rangeram e uma pestilência a graxa seca ou estragada escapou do tenebroso recinto.

Sem hesitações, galgou os últimos degraus, postando-se no umbral daquilo que, a julgar pela primeira e rápida exploração da lanterna, não era senão um mísero quartinho de quando muito dois ou três metros.

As moças acompanharam aqueles primeiros movimentos do amigo desde o pé das breves escadas, em um silêncio reverente.

Sinuhe, sem pronunciar palavra, permaneceu por alguns se­gundos no retângulo da porta, tentando identificar as coisas que se viam no centro da cabina.

Sua obsessão, naqueles primeiros momentos, não era exami­nar a maquinaria do relógio, mas reconhecer e enfrentar — se necessário — a pessoa ou, mesmo, aquela criatura monstruosa que, segundo seus angustiados pensamentos, poderia ser a respon­sável pela badalada.

Seus olhos, ajudados pelo nervoso cone de luz, foram acostumando-se às trevas.

A primeira coisa que distinguiu foi uma sólida armação de um pouco mais de um metro de altura, com robustos pés de ma­deira.

Sobre ela descansava uma empoeirada máquina retangular, semeada de indecifrável labirinto de rodinhas dentadas, alavancas e contra-alavancas, todas elas imóveis e lambuzadas com uma graxa tão azeviche como malcheirosa. Era a maquinaria, efetivamente adormecida, do misterioso relógio da Câmara Municipal de Sotillo.

O lugar estava aparentemente deserto. Sinuhe, um pouco mais confiante, procurou com a lanterna o fio metálico que, ne­cessariamente, devia pôr em comunicação aquele vetusto mostrengo com o martelo situado na torre exterior. Descobriu-a logo. Saía do extremo direito da maquinaria, subindo até o teto e atravessando-o por um orifício feito ali para isso.

"Puxando-se aquele fio para baixo" — deduziu Sinuhe — "o dispositivo exterior levantará o martelo, fazendo com que ele caia e golpeie, assim, a superfície do sino..."

Decidido a experimentar ele próprio a lógica teoria, avançou um passo, quase colando-se à maquinaria.

Passou a lanterna para a mão esquerda e, quando estava a ponto de agarrar a corda metálica e comprovar sua hipótese sobre o funcionamento do sino e a quantidade de força necessária para levantar o martelo, acreditou ver "algo" estranho à sua esquerda. Foi uma imagem meio esfumada, fugazmente captada pelo rabo do olho; isso sacudiu-lhe mortalmente a coragem recuperada havia pouco.

 

Por longos segundos ficou com o braço direito no ar, incapaz de reagir.

Lenta, lentamente, foi girando a cabeça para a esquerda, procurando aquilo que acreditava ter entrevisto.

Ao olhar para a frente, a pele do investigador se arrepiou e tremeram-lhe as pernas.

Naquele muro esquerdo da torre, colada ao vidro da única janelinha ali existente, estava a volumosa cabeça de um ser que parecia olhá-lo fixamente.

Com os cabelos da nuca eriçados pelo terror, esforçou-se por gritar avisando as companheiras. Mas o medo o estrangulava; só conseguiu tartamudear.

O luar, caindo obliquamente sobre aquele crânio enorme, contribuía — e não pouco — para realçar sua monstruosidade. Dois pontos negros — parecendo vazios e que Sinuhe associou a olhos — estavam espetados nele. Os calafrios se sucediam, agora em ritmo frenético.

Em meio àqueles segundos angustiantes, o nosso homem esgrimiu todos os seus recursos, mas não conseguiria senão direcionar a lanterna para a janelinha. Um décimo de segundo: ao projetar o jorro de luz na vidraça, e na horrível cara do lado externo, Sinuhe descobriu que o feixe luminoso atravessava materialmente aquela cabeça, chegando a iluminar os galhos das árvores situadas ime­diatamente atrás e a pequena distância da torre.

E antes que ele reagisse, a criatura desapareceu. E o fez tal qual aquele outro "ser" que o detetive vira esfumar-se no bosquezinho. Esse tempo infinitesimal, entretanto, foi suficiente para que o perturbado jornalista pudesse detectar um par de deta­lhes que lhe pareceram "familiares": aquela criatura carecia de nariz e de boca e, como observara em seu primeiro encontro na clareira, dava a sensação de transparência!

Quando comprovou que aquele ser repulsivo já não se achava à janela, num derradeiro e repentino arranque (Sinuhe jamais en­tendeu como e de onde pôde sacar aquele último rasgo de valen­tia) precipitou-se para a vidraça, aferrando-se com todas as forças ao trinco do postigo. Fê-lo girar, empurrou-o bruscamente, escan­carando a janela.

Em um de seus inexplicáveis impulsos, Sinuhe atreveu-se a botar para fora a cabeça e parte do tronco, investigando, pela abertura estreita, o esconderijo da criatura. Com mão trêmula fo­calizou o telhadinho construído ao pé da janelinha e também os galhos e os muros vizinhos. Mas estava tudo deserto. Nenhum rastro do estranho ser. Ao levantar para o céu o olhar interroga-dor, as estrelas refletiram o medo dele com ininterruptos pestanejos brancos e azuis que, naquele momento, pareceram a Sinuhe tão mordazes quanto extemporâneos. ..

— Que é que está acontecendo?

Ao ouvir as companheiras, desistiu da busca inútil e, fechando a janela, conservou-se silencioso, tentando acalmar-se e pôr em ordem seus pensamentos em tropel.

Foram precisos mais de dez minutos para que recobrasse seu ritmo cardíaco normal. E, enquanto as senhoras passeavam as velas pelo recinto e pela maquinaria do relógio, vasculhando tudo, recostou-se à parede correspondente à janela.

Pouco a pouco, em sua mente, além da imagem do rosto sem rosto da criatura, uma idéia se ia gravando a fogo:

"Aquele ser" — o mesmo talvez que ele vira no bosque — "tinha de ter sido o responsável por aquela badalada solitária... Mas como? E, sobretudo, por quê?"

Sinuhe nem suspeitava, então, que as brumas não tardariam a dissipar-se-lhe do cérebro...

 

— Que aconteceu? —- repetiu uma das amigas, aproximan­do-se de um Sinuhe muito pálido.

Ele, porém, prudentemente, preferiu não revelar o que vira. Deixando a parede, juntou-se ao grupo, fazendo grande esforço para aparentar serenidade.

— Por aqui não há ninguém — opinou uma das expedicio­nárias, insinuando, sem pausa, que talvez o toque do sino tenha sido por pura casualidade.

Sinuhe, sem despregar os lábios, enfrentou a corda metálica pela segunda vez, e puxou-a com força. Tal como supusera, esse puxão levantou o martelo de ferro, que tirou do sino, com o gol­pe, uma vibração solene. As moças, surpresas primeiro e divertidas depois, imitaram-no, repetindo as badaladas.

"Do que já não há dúvida alguma" — meditou o repórter — "é de que, para fazer soar o sino, é preciso levantar o martelo e deixá-lo cair. Mas isso, já que a maquinaria do relógio encon­tra-se evidentemente paralisada, só se pode levar a efeito do inte­rior da cabina onde estamos, ou no exterior, na torre metálica.. ." A aparente paz, que reinava na torre, estimulou a confiança das moças, que chegaram até mesmo a abrir a janelinha e por ela sondar a. escuridão de lá de fora. Nesse momento, quando Sinuhe escutou o gemido agudo da janela, sentiu um novo sobressalto. Mas o comportamento tranqüilo das amigas tornou evidente que a misteriosa criatura desaparecera. .. ao menos por enquanto.. . Um tanto mais confortado, dedicou-se à leitura e meticuloso exame das placas apostas à maquinaria do relógio. Numa delas, lia-se: "Gregorio Revuelto BENITO. 8-setembro-l 907". Na segunda, Sinuhe distinguiu apenas três palavras: "MOISÉS DÍEZ PALENCIA".

O primeiro nome, segundo lhe adiantara o prefeito em uma de suas inúmeras entrevistas, correspondia a um magnânimo habi­tante de Sotillo, doador do relógio em 1 907. Quanto ao segundo, Sinuhe concluiu tratar-se do relojoeiro e construtor da complexa maquinaria. E, sem conceder maior importância à essas duas ins­crições, passou a explorar a parte baixa da estrutura de madeira sobre que descansava o pesado mostrengo de relojoaria.

Pôs-se de cócoras, inspecionando com seu feixe luminoso os ensebados suportes de madeira da armação. Mas, ao iniciar essa investigação, os olhos de Sinuhe agarraram "algo" insólito.

A luz da lanterna enfocava um disco de ferro de uns vinte e cinco centímetros de diâmetro. A peça pendia de uma haste igualmente metálica; era o pêndulo do relógio.

Sinuhe não percebeu logo, devido à espessa camada de pó que cobria o disco e a gravação inscrita nele.

 

Ele não saberia apontar qual de suas amigas teve a feliz idéia de inclinar-se como ele entre os suportes da armação e, aju­dada por uma vela, encetar uma primeira limpeza do alto-relevo que adornava o disco do pêndulo. Talvez fosse Joana... Mas isso, na realidade, pouco importava. A verdade é que, ao livrar do pó a face do disco, Sinuhe ficou atônito.

Duvidando da imagem focalizada pela lanterna, fechou os olhos por três ou quatro segundos. Ao abri-los, a desconcertante realidade daquele alto-relevo continuava ali, oscilando levemente ainda, ao impulso da improvisada limpeza.

No mesmo instante, o membro da Escola da Sabedoria reco­nheceu, ou acreditou reconhecer, a forma ondulante de uma serpente enroscada entre dois círculos: o da esquerda, sensivel­mente maior que o da direita.

"Jesus Cristo!.. . Como é possível?..."

Com o pulso novamente acelerado, Sinuhe tornou a examinar a gravação.

Sim, não havia dúvida: aquele era o emblema da Loja se­creta a que ele pertencia: uma serpente enroscada entre dois "olhos".

"Como pode ser?... Aqui? Em uma aldeia perdida? E pre­cisamente no lugar das 66 badaladas... e da filha da raça azul?"

Na verdade, aquela surpreendente descoberta afetou a Sinuhe de maneira mais sutil e duradoura que as anteriores. Era como se mão e inteligências superiores tivessem preparado aquela cadeia de incríveis e comovedoras "causalidades", muito antes, mesmo, que eles nascessem... Senão, como explicar a presença, ali, da­quele disco fabricado em 1 907 ou antes, com a insígnia da Ordem?

Mas a noite estava fértil em surpresas. Ao desviar a luz à esquerda e à direita do emblema, Sinuhe levou o susto final.

Perfeitamente nítidas e em maiúsculas, pôde ler duas letras que fizeram transbordar seu caos mental:

"RA".

Tornou a fechar os olhos e, ao abri-los, leu outra vez:

"Sim. . . 'RA' ", repetiu mentalmente, presa ao mesmo tempo de alegria, comoção e cansaço. Foram demasiadas e intensas emo­ções e aquela — que Sinuhe acreditava ser a última — ultrapassa­ra suas próprias e minadas limitações mentais.

" 'RA'? Mas não entendo. . ."

Aquele disco negro tinha gravado, também em alto-relevo e desde há mais de 77 anos, o nome do astro "intruso" que se apro­ximava da Terra, e- do qual partira a mensagem sobre as "66 badaladas", "a filha da raça azul" e "o julgamento de Lúcifer". . .

Com a razão praticamente bloqueada, Sinuhe deixou-se ficar por longo momento a olhar fixamente aquelas letras que não es­perava. Parecia hipnotizado.

"Deus meu! Como é possível?. . ;"

Ao final, em uma última e absurda tentativa de ratificar o que tinha a dois palmos do nariz, pediu às suas companheiras que lessem o que aparecia no pêndulo. E as moças — todas — foram repetindo o que Sinuhe já sabia:

"RA".. .

Algumas o interrogaram sobre a enigmática inscrição. Mas ele não respondeu.

Pouco depois, quando a comitiva atravessava a praça da Las­tra rumo à Casa Azul, o investigador deteve-se junto à murmurante água da fonte e, buscando com a alma aquele firmamento incomensurável, lembrou-se de um fato de que se havia esquecido du­rante a acidentada visita ao velho casarão municipal: no último momento, os céus escutaram a prece que formulara na serra. É que, sem dúvida, o "sinal" solicitado chegara, junto com aquelas duas letras significativas e familiares:

"RA".

 

Sinuhe foi o último a acomodar-se no salão acolhedor da Casa Azul. O coração lhe batia ainda com dificuldade; procurou manter-se à margem das inevitáveis perguntas e da hilaridade ge­ral, quando Joana e as outras expuseram a seqüência de "estron­dos" e o cômico desenlace.

Definitivamente, excetuando o achado das letras "R" e "A" no pêndulo do relógio, as valentes companheiras de Sinuhe não puderam reportar muitos detalhes interessantes da convulsiva "aventura". O toque solitário não sofreu mais que algum fugaz comentário, mas foi prontamente relegado diante do insólito lance dos tamancos asturianos. Somente Glória captou a transcendência do enigmático alto-relevo no disco de ferro. Ao ouvir o nome de "RA", empalideceu, cruzando com Sinuhe um olhar inquietante e inquisidor. Mas o amigo limitou-se a responder-lhe com um sor­riso não menos significativo. Não era oportuno o momento para falar-lhe da descoberta na torre do casarão; a filha da raça azul soube compreendê-lo.

Já avançada a madrugada, e vencendo a resistência de alguns dos convivas, Sinuhe retirava-se para repousar.

Naquela noite, assim como nas seguintes, o membro da Es­cola da Sabedoria viu-se assaltado por uma maré de pesadelos, diretamente relacionados com a visita ao interior da Câmara Mu­nicipal, com o nome de "RA" e, muito especialmente, com aquela criaturazinha que tivera a chance de ver no pequeno bosque e na janelinha da cabina.

Oprimido e cansado, Sinuhe deixou passar o aniversário de Glória. E só quando o último convidado disse adeus à senhora da Casa Azul, decidiu-se a expor-lhe o que vira no velho casarão. Uma parte. Omitiu novamente o encontro com o ser que parecia espiá-lo do lado de fora, mas entretendo-se em torno da teoria cada vez mais firme de que as 66 badaladas e aquela que se dera à meia-noite de segunda-feira, 16, tinham de ter sido causadas por "alguém" pouco comum.. . Mas o que verdadeiramente conturbou o espírito da filha da raça azul foi o inesperado achado de "RA", no relógio. Dessa vez Sinuhe não eludiu a resposta. Simplesmente, não sabia qual. A única pista — tentou demonstrar a Glória — estaria em uma das placas parafusadas à maquinaria: "MOISÉS DIEZ". Quem era esse sujeito? Se tivesse sido o relojoeiro que de­senhou e montou o relógio, por que teria incluído no pêndulo o selo secreto da Ordem da Sabedoria? Pertenceria à Loja? E, mais que nada, por que teria incluído o nome de "RA"?

O investigador se dispunha, é claro, a aclarar essas novas incógnitas.. .

Antes, porém, era mister completar a instrução da filha da raça azul. Uma pergunta ficara pairando no ar — "que era a raça azul?" — e Sinuhe atacou aquela última fase da exposição com brios renovados.

 

Sinuhe consultou seus documentos e hesitou. Devia falar a Glória sobre a origem da nebulosa de Andronover que foi, por sua vez, o "berço" de IURANCHA?

Se se estendesse por esse capítulo apaixonante da "Quinta Revelação", o objetivo primordial desta última fase informativa poderia atrasar-se. Assim, pois, mais uma vez deixou-se arrastar pela intuição.

— Antes de começar a relatar-lhe tudo o que sei sobre a raça azul, quisera fazer alguns breves esclarecimentos sobre como se formou nosso mundo.

Então mostrou a Glória o volumoso maço de laudas em que se detalhavam tais questões, dando a entender que se via obrigado a mutilá-las a favor desse fim prioritário. Glória, tal como ele ima­ginara, não parecia conformar-se muito com essa decisão. Mas, sabiamente, deixou que o companheiro fizesse como queria.

— ... Segundo reza este pedaço da "Quinta Revelação", a presente informação foi proporcionada aos humanos por um "Por­tador de Vida", quer dizer, por uma dessas criaturas celestes de que já a informei, membro, ainda, do chamado "Corpo Original de IURANCHA" e, atualmente, "observador residente" em nosso planeta.

"Pois bem, em essência, IURANCHA tem sua origem em nosso Sol. E o Sol, por sua vez, "é um dos múltiplos produtos da nebulosa de Andronover que foi, outrora, como parte constituinte do poder material e da matéria física do universo local de Nebadon..."

 De explicação em explicação, Sinuhe foi citando textualmen­te algumas das passagens que lhe pareceram mais importantes.

— E essa grande nebulosa originou-se da carga de força universal do espaço no superuniverso de 'Orvonton. O nosso, co­mo você sabe. Em época remota, os chamados "Mestres Organi­zadores de Força Primária do Paraíso" possuíam já o controle completo das energias espaciais que foram organizadas mais tarde sob a forma da referida nebulosa de Andronover. E diz a "Quinta Revelação":

"Há 987 000 milhões de anos, o "Organizador de Força Associado" (que então era o "inspetor-adjunto" número 811 307

da série de Orvonton) viajou para fora de Uversa (capital do nosso superuniverso), prestando contas aos Anciãos dos Dias que as condições do espaço apresentavam-se favoráveis para inaugurar fenômenos de materialização em certo setor do segmento, então oriental, de Orvonton.

"E, de acordo com estes documentos, foi registrada, há 900 000 milhões de anos, nos arquivos de Uversa, uma autoriza­ção, expedida por seu Conselho de Equilíbrio, expedida ao go­verno do superuniverso, que permitiria o envio de um "Organiza­dor de Força" com o seu pessoal para a região designada pelo inspetor 811 307.

"As autoridades de Orvonton encarregaram, ao primeiro explorador desse universo potencial, a execução da ordem dos Anciãos dos Dias pela qual devia iniciar-se a organização de uma nova criação material. Após longa viagem, faz 875 000 milhões de anos, o Organizador de Forças e seu séquito empreenderam a formação daquela que seria a gigantesca nebulosa de Andronover, registrada nos arquivos do superuniverso com o número 876 926. E aqueles seres celestes desencadearam um torvelinho de energia, que desembocaria nesse vasto ciclo espacial.

"Logo em seguida, uma vez em marcha essas rotações nebu­losas, — continuou lendo Sinuhe — os Organizadores de Força Vivente retiraram-se perpendicularmente ao plano do imenso disco em rotação. E a partir daí, as qualidades inerentes à energia ga­rantiram a evolução progressiva e ordenada do novo sistema físico. E a nova criação caiu sob o controle das personalidades do su­peruniverso.

"Em suma — concluiu —, era o verdadeiro nascimento de nossa História.

Sinuhe perguntou então à filha da raça azul se desejava co­nhecer também o que a "Quinta Revelação" qualifica de "estados nebulares" de Andronover ou se, ao contrário, preferia que se pulasse aquele capítulo.

Glória, sempre sedenta de conhecimento, pediu-lhe, quase exigindo, que se aprofundasse mais no relato daquelas críticas e ignoradas épocas da "pré-história" de Andronover.

 

— Diz esta documentação secreta — reatou a leitura, acei­tando com prazer a saudável curiosidade da companheira —, todas as criações materiais evolucionárias nascem de nebulosas gasosas e circulares. E todas essas nebulosas primárias são circulares durante a primeira fase de sua existência gasosa. À medida que envelhecem transformam-se, geralmente, em espirais e, quan­do sua função geradora de sóis terminou, tomam a forma única de cúmulos ou aglomerados estelares, rodeados de número variável de planetas, satélites e outras formações materiais inferiores. Qualquer coisa muito semelhante ao nosso sistema solar. Mas, prossigamos com esse curioso cômputo: há 800 000 milhões de anos a criação havia tomado forma, e Andronover aparecia como uma das mais belas nebulosas do superuniverso de Orvonton.

"Há 700 000 milhões de anos, Andronover alcançou dimen­sões tão gigantescas que muitos Controladores Físicos Suplemen­tares foram enviados a nove criações materiais vizinhas, com o objetivo de proporcionar apoio e concurso aos centros de poder do novo sistema material de evolução tão rápida. Naquela época longínqua, Andronover assemelhava-se a uma imensa roda espa­cial. Quando alcançou seu diâmetro máximo, as matérias que a conformavam iniciaram um processo progressivo de condensação e contração e o giro da "roda" se foi tornando cada vez mais rá­pido.

"Há 600 000 milhões de anos, Andronover, com um máximo de massa, era uma incomensurável nuvem de gás em forma de esferóide aplanado. A gravidade e outros fatores iniciaram a con­versão dos gases em matéria "organizada". A nebulosa entrou, então, no chamado "estágio nebular secundário". Foi adquirindo a forma de espiral, e os astrônomos de outros universos começa­ram a percebê-la. Vocês, em IURANCHA chamam a essa fase de "fenômenos espirais".

"E quando Andronover havia alcançado sua massa máxima, o controle de gravidade do conteúdo de gases começou a debilitar-se, a que se seguiu uma etapa de fuga de gases. Brotando em dois braços gigantescos e diferenciados que arrancavam de dois lados opostos da massa mater, esses gases fugiram. A veloz rotação do enorme núcleo central deu a seguir um aspecto de espiral a essas duas correntes de gases. O resfriamento e a condensação posterio­res de determinados lances de ambos os braços acabou por dar-lhes uma forma "nodosa". Essas porções mais densas eram, em realidade, vastos sistemas e subsistemas de matéria física aglomerada no espaço, envolta na nuvem gasosa da nebulosa.

"Mas Andronover começara a contrair-se e o aumento da velocidade de rotação reduziu ainda mais o controle da gravidade. E as regiões gasosas exteriores começaram a escapar da influência do núcleo nebular, saltando para o espaço e seguindo circuitos irregulares para regressar às regiões centreis, voltar novamente ao exterior e assim sucessivamente. Esta, entretanto, foi apenas uma fase temporal. A crescente velocidade do redemoinho acabaria depressa por derramar pelo espaço enormes sóis, que seguiriam circuitos independentes. Era o princípio da "grande deslocação".

"Há 500 000 milhões de anos nasceu, finalmente, o primeiro sol propriamente dito. Esse "raio" chamejante escapou à influên­cia da "mãe", voando para uma aventura "pessoal". E sua órbita ficou determinada pelo rastro de sua própria fuga. Os jovens sóis desse tipo transformam-se rapidamente em esféricos, passando por diversos períodos evolutivos e de serviço universal. Em Orvonton, no nosso superuniverso,a maioria dos sóis nasceu e nasce de ma­neira semelhante.

"Há 400 000 milhões de anos, Andronover entrou em seu período de "recaptação". Quer dizer, muitos pequenos sóis vizi­nhos foram novamente absorvidos em conseqüência do progressivo incremento da condensação do núcleo central da nebulosa. Dentro de pouco, deu-se o começo da fase inicial de condensação nebular que precede, sempre, o fracionamento último desses imensos agre­gados espaciais de energia e matéria. ..

Sinuhe distraiu a vista do documento e observou Glória. Ape­sar da terminologia, ela continuava atenta.

E, tal como ele esperava, ao encetar a leitura da passagem seguinte, a filha da raça azul estremeceu. . .

— Um milhão de anos depois (recorde-se que falávamos de 400 000 milhões de anos atrás) um dos Filhos Criadores do Pa­raíso elegeria esta nebulosa em desintegração para cenário de uma prodigiosa aventura pessoal: a construção de um universo local de que chegaria a ser Soberano.

"Como você já terá adivinhado, esse Filho Criador era o nosso Micael. O chamado Jesus de Nazaré durante sua sétima e

última "encarnação" ou efusão em seu universo local de Nebadon ou, mais concretamente, na Terra ou IURANCHA.

"E quase imediatamente encetou a criação dos mundos ou esferas "arquiteturais" ou artificiais de que já lhe falei, bem como a preparação do planeta-capital, daquele que brevemente seria Nebadon, e dos correspondentes grupos planetários, sedes de cem constelações...

Glória interrompeu-o, intrigada:

— Qual é essa esfera ou planeta-capital de nosso universo local?

— Salvington. É a residência permanente do Soberano Su­premo de Nebadon.

— Nesse caso, Jesus ou Micael vive ali.. . — disse, incrédula.

— É o que afirma a "Quinta Revelação" — respondeu, com­partilhando com ela o ceticismo.

— É engraçado! Se isso estiver correto, Jesus (perdão, Mi­cael) não está no Paraíso ou no Céu, como dizem...

— São conceitos ambíguos, que poderíamos considerar vá­lidos. Em realidade, atendo-nos estritamente ao escrito, Salvington é a "residência" desse Filho Criador. Suponho, porém, isso não lhe impede visitar a Ilha Eterna do Paraíso.

Sinuhe aguardou algum novo comentário ou pergunta; mas, como nada viesse, continuou:

— E diz a "Quinta Revelação" que foi necessário quase um milhão de anos para completar a criação e organização desses grupos de mundos artificiais de Nebadon. Os planetas capitais dos sistemas locais correspondentes foram construídos em um lapso de tempo que se estende desde aquela época, até uns 5 000 milhões de anos antes da Era Cristã de IURANCHA.

"Há 300 000 milhões de anos, as órbitas solares de Andro­nover achavam-se bem definidas e o sistema nebular vivia um período de relativa estabilidade física. Por aquele tempo, o Estado Maior de Micael tomou posse de Salvington e o governo de Uversa, capital do superuniverso de Orvonton, reconheceu oficialmente a existência física do novo universo local. Nascia nosso Nebadon. . .

"Há 200 000 milhões de anos, a contração e a condensação de Andronover se incrementaram, gerando imensas vagas de calor a partir do núcleo central, afetando ainda regiões vizinhas da "roda-mater". As imensas áreas exteriores já eram mais estáveis e alguns planetas haviam começado a girar à volta de sóis, alcançando um resfriamento progressivo, que os tornou aptos para a "semeadura" da Vida. Os mais velhos planetas de Nebadon datam exatamente dessa época: 200 000 milhões de anos. O mecanismo completo desse universo local começava, assim, seu funcionamen­to, e a maravilhosa criação de Micael foi registrada em Uversa, sede capital do superuniverso, como um "novo universo habitável e de ascensão humana progressiva". Era o que, com nossas pobres palavras, poderíamos chamar "nosso particular princípio dos tem­pos". ..

Sinuhe, à margem de suas dúvidas, pronunciou as últimas frases com velada emoção.

— O princípio dos tempos. . . — sussurrou Glória —. Um princípio em que já existíamos... Ao menos na mente desse Filho Criador. . .

Sinuhe foi compreendendo que aquela aparentemente árida exposição de dados, datas e complexos processos do "nascimento" e evolução de Andronover tinha também sua importância. Desco­brir e entender que Micael era o Criador de um universo local, mas não de toda a Criação, poderia ferir e causar estranheza; po­rém, no fundo, uma cabeça aberta e racional como a de Glória acabaria por aceitar a perfeição do "grande responsável" e mara­vilhar-se ante ela: essa perfeição, o Pai Universal. Deus raras vezes atua diretamente. Seus "intermediários" são os que participam dos planos divinos e com eles colaboram. E este, a criação de Neba­don, era outro exemplo sublime. Assim o entendia Sinuhe e, por isso, animou-se a aventurar-se um pouco mais nos tempos primigênios da história de IURANCHA.

— E faz 100 000 milhões de anos, a tensão de condensação em Andronover alcançou seu apogeu. A tensão calorífica chegou ao seu zênite. Porém, mais cedo ou mais tarde, a batalha entre o calor e a gravidade se resolve sempre em benefício do calor. E de­sencadeou-se uma espetacular dispersão de sóis.

Sinuhe fez parênteses, resumindo os primeiros estágios ne­bulosos:

— O primeiro, como já citei, é circular. O secundário toma forma de aspirai e o terceiro provoca essa fuga ou dispersão de sóis. Quanto ao estágio quaternário, a nebulosa tenta uma segunda "fuga" de massas solares. No fundo é o final da massa central ou "mater", que acaba com uma acumulação globular ou como um velho e solitário sol. . .

"Há 75 000 milhões de anos, Andronover achava-se no período terciário. Foi o ponto culminante da primeira dispersão solar. A partir de então, esses sóis quase todos formaram seus respectivos cortejos planetários, "agarrando" em suas órbitas um não acabar de cometas, satélites, ilhas escuras, meteoros e nuvens de pó cósmico.

"Esse primeiro período de fuga de sóis em Andronover ter­minou há 50 000 milhões de anos. Então já se haviam formado 876 926 sistemas solares. É o que consta, pelo menos, da "Quinta Revelação".

"O epílogo desse estágio terciário ocorreu há 25 000 milhões de anos. Mas os fenômenos de contração física e de crescente produção de calor não haviam terminado no interior do coração de Andronover. E, há 10 000 milhões de anos o quarto ciclo co­meçava. A temperatura da massa nuclear experimentou sua quota máxima e o núcleo original da nebulosa passou a sofrer fortes convulsões sob a pressão da condensação do seu próprio calor interno e a atração gravitacional cíclica e progressiva do enxame de sistemas solares, liberados. Estava na iminência de produzir-se a grande cadeia de erupções nucleares que inaugurariam essa se­gunda e definitiva "fuga" de massas solares e, com isso, o período quaternário de Andronover.

"E há 8 000 milhões de anos explodiu a nossa nebulosa. Foi uma assustadora erupção final. Só os sistemas solares exteriores salvaram-se dessa magna perturbação cósmica. Era o fim do "ber­ço" do nosso universo local. Isso que os astrônomos de IURAN­CHA chamaram o "big-bang' ou grande explosão primigênia, que teria dado lugar ao nascimento do universo. Eles têm razão, em parte. Na realidade, como você vê, não se tratava da origem ou nascimento do universo, mas de um gigantesco porém simples uni­verso local. . .

"Por causa desse estalo (como se se tratasse de um último e múltiplo parto) a nebulosa "pariu" centenas de milhares de novos sóis. E, entre eles, o nosso, que nos ilumina ainda. Essa expulsão final de sóis, antes da agonia definitiva de Andronover, prolon­gou-se por quase 2 000 milhões de anos.

— Quando nasceu o nosso Sol?

Sinuhe esperava a pergunta. Sorrindo, procurou entre os do­cumentos.

— A "Quinta Revelação" fixa esse momento justamente com a morte da nebulosa: há uns 6 000 milhões de anos. Nos arquivos celestes, nosso Sol figura com o número 56 antes da aparição do último sol dessa segunda geração ou família de es­trelas fugidas de Andronover. E se diz que essa erupção última do núcleo nebular engendrou 136 702 sóis ou estrelas, a maior parte globos solitários. No total, portanto, a nebulosa de Andro­nover "deu à luz" 1 013 628 sistemas solares. O nosso, chamado Monmacia, figura com o número 1 013 572. Fomos, em conclu­são, um dos últimos. Assim como os "benjamins" de Nebadon...

— Quer dizer que, se foi assim, nós, os humanos de IURANCHA, somos na verdade uns "bebês" dentro da grande família cósmica de Andronover. . .

— Com efeito, uns "bebês"! — concluiu seu companheiro. Glória, sem saber por quê, começava a experimentar uma singular mistura de amor e de tristeza por aquela "mãe", capaz de autoaniquilar-se contanto que seus "filhos" pudessem viver. Então, perguntou por Nebadon, a "mãe nebulosa".

— Morreu. Mas — prosseguiu ele com seriedade — conti­nua vivendo, em seus milhares de sóis e sistemas planetários. E conta esta história celeste que o último rescaldo dessa magnífica nebulosa continua aceso no coração de Nebadon, aquecendo com sua luz avermelhada uma humilde família de 165 planetas que giram em torno da venerável "velha-mãe", origem de duas pode­rosas gerações de "monarcas de luz".

 

Glória animou o amigo a que lhe falasse de Monmacia. As perguntas se atropelavam umas às outras em seu coração...

— Como nasceu o nosso Sol? Quando e como o fez IURANCHA? Quem ou quais foram os responsáveis pelo surgimento da Vida em nosso mundo?. . .

Sem querer, a filha da raça azul começava a aproximar-se à quase esquecida pergunta inicial: que era a raça azul?

— Há 5 000 milhões de anos — retomou Sinuhe — nosso Sol era um globo incandescente, relativamente solitário, que foi recolhendo a seu redor resíduos da recente comoção cósmica da qual, precisamente, nascera. Hoje, é um astro praticamente estável. As manchas solares que surgem, cada onze meses e meio, lembram-nos que, em sua juventude, o Sol que dá nome a Monmacia foi uma estrela inquieta e variável. Em suas primeiras fases de vida a contínua contração e a elevação gradual de sua temperatura pro­vocaram-lhe imensas convulsões na superfície. Convulsões e ciclos que duravam três dias e meio. Essas pulsações periódicas contri­buíram decisivamente para que o nosso Sol se visse afetado por determinadas influências exteriores, que para sempre o marca­riam. ..

"Em resumo, nosso Sol estava preparado para colaborar com a aparição disso que hoje conhecemos como sistema solar. Mon­macia ia nascer. Mas o grupo de mundos que giram hoje ao seu redor não teve nascimento comum e corrente. A "Quinta Revela­ção" afirma que menos de um por cento dos sistemas planetários do superuniverso de Orvonton tiveram origem igual à nossa.

— Nisso, também, somos diferentes? Sinuhe assentiu com certo ar de satisfação.

— Conta-se aqui que, há 4 000 milhões de anos, um enorme sistema chamado Angona, começou a aproximar-se do nosso soli­tário Sol. O "coração" desse grande sistema era um gigante do espaço, escuro, sólido, poderosamente carregado e com poderosa força de atração gravitacional. À medida que Angona viajava em direção ao nosso Sol, suas pulsações solares iam derramando tor­rentes de matéria gasosa, que eram projetadas no espaço como línguas gigantescas. Esses jorros solares iam finalmente cair de novo sobre o colosso de Angona. Entretanto, à medida que se ia aproximando, as cataratas de gás incandescente se foram quebran­do, e só as raízes retornavam ao corpo do visitante. Imensas áreas exteriores das línguas se desprenderam para formar corpos mate­riais independentes; quer dizer, meteoritos solares que passaram a girar ao redor do Sol, seguindo órbitas elípticas próprias.

"Tal situação se prolongou pelo espaço de 500 000 anos, aproximadamente. Quando Angona alcançou a posição mais pró­xima ao nosso Sol, e coincidindo com uma das convulsões internas periódicas dele, aquela série de fenômenos conduziria a uma deslocação da massa solar do astro que hoje nos ilumina. Dois enor­mes volumes de matéria escaparam do nosso Sol. Cada qual nas antípodas. Uma dessas formidáveis línguas (a que se achava mais perto do sistema intruso) foi atraída por Angona, separando-se definitivamente da massa solar. As duas extremidades dessas co­lunas de gases eram afiladas e o centro, muito inflado. Depois, a língua evoluiu, formando os doze planetas de Monmacia.

"Quanto ao gás ejetado pelo lado oposto, terminaria por condensar-se, dando lugar aos meteoros e à poeira espacial do sis­tema solar. Apesar disso, e à medida que Angona ia distanciando-se rumo às profundidades siderais, nosso Sol acabou recapturando boa parte dessa matéria.

"Angona, em conclusão, não passara suficientemente perto para roubar um mínimo de matéria solar. Entretanto, seu vôo pro­videncial pelas cercanias do Sol solitário permitiu atrair para o espaço intermediário toda a matéria que hoje compõe o sistema planetário. Os cinco planetas interiores nasceram dos núcleos, em vias de resfriamento e condensação, das referidas e afiladas extre­midades da língua de gás, que Angona conseguira levantar no Sol. Saturno e Júpiter, em compensação, formaram-se a partir das por­ções centrais e mais volumosas. A poderosa atração gravitacional desses pois planetas gigantes não demorou a capturar a maior parte dos materiais desprendidos do sistema intruso, como o testemunha o movimento retrógrado de alguns de seus satélites.

"Júpiter e Saturno, por terem saído da zona central e super aquecida da língua, continham verdadeiros materiais solares, que brilhavam com luz ofuscadora, derramando enormes quantidades de calor. Foram, por um tempo, sóis secundários. E continuam sendo praticamente gasosos, pois não conquistaram o resfriamento definitivo e a solidificação.

"No que tange aos dez planetas restantes, a solidificação foi rápida, iniciando um processo de atração de enormes e crescentes quantidades de matéria meteórica que circulava no espaço pró­ximo.

— A Terra, portanto, como os demais planetas frios, tem dupla origem. . .

— É verdade: primeiro, como núcleo de fixação gasosa e, finalmente, como "lixeiro" de matéria meteórica. Lembre-se de que os planetas não giram ao redor do Sol no plano equatorial.' Assim teria acontecido se os planetas se tivessem desprendido co­mo conseqüência da força centrífuga. Giram, isso sim, no plano da protuberância solar que provocou Angona. . . Um plano que forma um ângulo acentuado com o do equador solar.

"Pouco depois do derramamento dessa massa ancestral que deu lugar ao nascimento de Monmacia, e enquanto Angona se encontrava ainda nas proximidades do Sol, três planetas maiores do sistema de Angona passaram muito perto de Júpiter. Sua atra­ção gravitacional, incrementada pela do Sol, foi suficiente para arrancá-los do domínio gravitacional do intruso. Originariamente, todos os materiais que formavam nosso sistema solar circulavam em órbitas de direção homogênea. E, não fora pela captura desses três mundos estranhos, todo esse cortejo planetário teria mantido sempre a mesma direção em seus movimentos orbitais. Porém, o impacto dos três tributários de Angona provocou no jovem sistema solar de Monmacia, novas direções, aparecendo os chamados "mo­vimentos retrógrados".

"Mas permita-me que, antes de prosseguir com essas revela­ções (todas elas ignoradas ainda por nossos astrônomos), eu leia para você o que poderíamos qualificar de "profecia fatídica". . .

 

Sinuhe tranqüilizou Glória.

— Não se alarme. Tal "profecia" (se é que podemos dar-lhe esse nome) não é para o século XX. Tampouco para um futuro imediato. Mas vamos a ela. . .

"Reza a "Quinta Revelação" que, na Era da formação dos planetas do nosso sistema, os mais próximos ao Sol foram os que primeiro sentiram a desaceleração da sua velocidade de rotação, conseqüência dos atritos cíclicos. Essas influências gravitacionais contribuíram também para estabilizar as órbitas planetárias, redu­zindo esse ritmo de rotação dos mundos sobre si mesmos. Eis porque os planetas giram cada vez mais devagar, até que se dete­nha a sua rotação axial. O que faz, sem mais nem menos, que um dos hemisférios do planeta em questão fique permanentemente de frente para o Sol, como acontece com Mercúrio ou com a Lua com respeito a IURANCHA. Apresentam sempre a mesma face.

"Pois bem; quando os atritos cíclicos da Lua e os do nosso planeta se virem igualados, a Terra apresentará o mesmo hemis­fério ao nosso satélite natural. O dia lunar equivalerá então ao mês lunar, com a duração aproximada de 47 dias terrestres.

"No momento em que se alcance esse equilíbrio em ambas as órbitas, as fricções cíclicas atuarão em sentido inverso: a Terra atrairá progressivamente a Lua. . .

A filha da raça azul fez um trejeito, expressando alarma:

— Então a Lua pode estatelar-se contra a Terra?

— Segundo isto — e Sinuhe apontou para a documentação que manuseava —, não. Em futuro remoto, nosso satélite se apro­ximará de IURANCHA até uns 18 000 quilômetros. Hoje, como você sabe, encontra-se muito além: a distância máxima da Lua.à Terra é de 384 400 quilômetros, aproximadamente. Mas a força gravitacional de IURANCHA provocará a deslocação da Lua.

— Que significa isso?

— Que nosso satélite natural explodirá, ficando reduzido a pequenas partículas.

Silenciaram os dois. Mas seus pensamentos foram os mesmos. "A Lua, nossa querida Lua, tem também os dias ou os milê­nios contados..."

— E esses restos — reatou Sinuhe — irão reunir-se final­mente ao redor da Terra, formando uma série de anéis, semelhantes aos de Saturno e de Urano. Outras porções lunares serão atraídas pela gravidade de IURANCHA, caindo sobre o planeta como imensa e espetacular chuva de meteoros.

Aquela descrição trouxe à lembrança de Glória uma conhe­cida passagem da Bíblia em que, referindo-se à segunda vinda de Cristo, escreve o evangelista Lucas (21,25-27): "Haverá sinais no Sol, na Lua e nos astros; as nações estarão angustiadas na Terra e perplexas com o estrondo do mar e das ondas; e os ho­mens, mortos de terror e de ansiedade pelo que sobrevém no mun­do, pois as colunas do céu oscilarão. Então, verão o Filho do Homem vindo em uma nuvem com grande poder e majestade."

A filha da raça azul procurou o parágrafo e, mostrando-o a Sinuhe, perguntou-lhe:

— Se a Lua explodisse, as marés causariam grandes trans­tornos?

— E muito especialmente durante a sua terrível aproxima­ção. ..

— Então, poderíamos interpretar essa "profecia" ou o que quer que seja, como uma confirmação do Evangelho?

Sinuhe não respondeu. Limitou-se a dar de ombros. Glória, que sabia do irritante ceticismo do amigo, optou por não ir adiante. Entretanto, desde esse anúncio, a queda e a posterior explosão da Lua, a 18 000 quilômetros da Terra, ficaram-lhe associadas no coração com a advertência evangélica.

— ... Quando os corpos espaciais têm um mesmo tamanho e densidade — continuou Sinuhe, tratando de justificar a "profe­cia" anterior —, pode produzir-se uma colisão física. Mas, se dois astros são comparáveis em densidade e de tamanho relativa­mente desigual, o menor se desintegra quando se aproxima do maior. Observa-se essa deslocação quando o raio da órbita do corpo menor é inferior duas vezes e meia ao raio do maior. De fato, são muito raros os choques entre gigantes do espaço. As explosões cíclicas gravitacionais dos astros inferiores, ao contrário, são fre­qüentes.

"Os anéis de Saturno, por exemplo, são fragmentos de um dos seus satélites que se desintegrou. E, segundo a "Quinta Reve­lação", uma das luas de Júpiter acerca-se hoje de forma perigosa ao que poderíamos chamar sua "zona crítica de deslocação". Den­tro de alguns milhares ou milhões de anos, essa lua se espedaçará também, tal como aconteceu com esse quinto e desaparecido pla­neta do nosso sistema solar.

— Como aconteceu? — Glória sempre se perguntava o que poderia ter acontecido a esse enigmático mundo, reduzido hoje a um cinturão de esteróides.

— Há muito, muito tempo, esse quinto planeta percorria uma órbita irregular, acercando-se periodicamente, de Júpiter. Em uma dessas incursões, acabou por penetrar na "zona crítica de deslocação cíclico-gravitacional", explodindo em milhões de frag­mentos.

"E chegamos ao tempo em que nosso sistema solar foi defini­tivamente "batizado".

"Há 3 000 milhões de anos, o sistema funcionava já mais ou menos como na atualidade. O volume de seus planetas e satélites continuava avolumando-se, graças às seguidas capturas de matéria meteórica. Nessa época, como lhe digo, nosso jovem sistema solar foi inscrito no "Registro Físico" de Nebadon, recebendo o nome de Monmacia. E é assim que nos conhecem no universo local re­gido por Micael e em todo o superuniverso de Orvonton.

"Mais tarde, faz agora 2 000 milhões de anos, o tamanho dos planetas havia crescido prodigiosamente. E nosso mundo, IURAN­CHA, era uma esfera bem desenvolvida, com uma massa que crescia sempre e que, então, era a décima parte da atual. Eram os preâmbulos do espetáculo de um milagre prodigioso: a "semeadura" da Vida...

 

A "semeadura" da Vida!

A filha da raça azul, ansiosa, pediu a Sinuhe que fosse adiante:

— Há tanto que aprender!. ..

— Sim, mas essa Vida não surgiu em IURANCHA da noite para o dia.. . Durante milhões de anos, a superfície no nosso futuro "lar" viu-se""incessantemente bombardeada por pequenos corpos siderais. E tais impactos mantiveram mais ou menos quente o solo da Terra. Este fenômeno, somado à ação da crescente gravidade do planeta, em conseqüência do seu ininterrupto aumento de volume, desembocou em outro sucesso não menos importante: a acumula­ção, no centro do planeta, de elementos pesados como o ferro.

"Eis porque a Terra passou a levar vantagem sobre a Lua, sua companheira. Isso, há 2 000 milhões de anos. IURANCHA foi sempre maior que o seu satélite, mas a diferença, naquelas remotas épocas, não era tanta como a que chegou a alcançar e hoje facil­mente comprovável. Pouco a pouco suas dimensões foram ganhan­do, logrando reter a atmosfera primitiva, que havia nascido em conseqüência do conflito entre o calor exterior e a crosta, em plena fase de resfriamento.

"A atividade vulcânica propriamente dita remonta àqueles tempos. O calor interno da Terra continuou subindo, a partir da integração (sempre mais profunda) de elementos radioativos trazi­dos do espaço pelos meteoros. Algum dia (diz a "Quinta Revela­ção") o estudo desses corpos radioativos revelará ao homem que a superfície de IURANCHA tem mais de 1 000 milhões de anos. O "relógio" do rádio é o indicador infalível para avaliar cientifica­mente a idade do planeta. No momento, porém, esses materiais radioativos de que se dispõe procedem da casca terrestre e não do interior.

"Há 1 500 milhões de anos, a Terra havia já conseguido dpis terços do seu tamanho atual. A Lua, essa, aproximava-se de sua massa de agora. Essa rápida "engorda" do nosso mundo em rela­ção à Lua permitiu-lhe "roubar" lenta, mas inexoravelmente, do seu satélite natural, a pouca atmosfera que possuía desde o prin­cípio.

"A atividade vulcânica achava-se em seu apogeu. A Terra inteira era um inferno. Entretanto, muito lentamente, se foi for­jando uma crosta, integrada basicamente por granito. Uma crosta que seria o suporte preparatório para essa "semeadura" celeste da Vida...

Intencionalmente, Sinuhe deixara escapar uma "pista", que Glória agarrou no ato.

— "Semeadores celestes?" Sinuhe pediu paciência.

— A atmosfera planetária continuou evoluindo. Continha já certa quantidade de vapor de água, de oxido de carbono, de gás carbônico e clorídrico. Porém o oxigênio e o hidrogênio livres ainda eram escassos. O espetáculo da Terra deve ter sido aterrador e ao mesmo tempo fascinante: imensas colunas de gases venenosos levantavam-se para o espaço, enquanto a superfície do planeta era sacudida por implacável chuva de gigantescas "pedras" cósmicas, que provocavam terríveis estampidos e terremotos.

"Logo, essa atmosfera incipiente se foi fazendo mais estável e fria o suficiente para inaugurar as primeiras chuvas sobre a en­rugada e ardente superfície de IURANCHA. E durante milhares de anos, nosso mundo (como Vênus, hoje) permaneceu envolto em um encouraçado manto de vapor de água. Por todas essas ida­des, jamais o Sol brilhou sobre a Terra.. .

"Grande parte do carbono da atmosfera foi subtraído para formar os carbonatos dos diferentes metais que abundam nos es­tratos superficiais do planeta. Mais tarde, quantidades enormes desses gases carbônicos foram consumidas pela prolífica vida dos primeiros vegetais.

"E, em períodos posteriores, as correntes de lava e a queda de meteoros esgotaram quase completamente o oxigênio do ar. Os primeiros sedimentos do oceano primitivo, que logo apareceu, não continham, inclusive, nem pedras nem xistos coloridos. IURAN­CHA foi, durante imensos períodos de tempo, um mundo "morto", sem oxigênio. Mas o mar veio "ressuscitá-la". Foram as algas ma­rinhas e outras formas de vida vegetal que restituíram à atmosfera ingentes volumes de oxigênio. E continuam presenteando o planeta com o elemento vital.

"Esse enriquecimento de oxigênio foi tornando mais "espes­sa" a envoltura de IURANCHA e, os meteoros, cada vez mais intermitentes. Agora, a fricção os aniquilava.

"E chegamos, finalmente, ao "ponto zero" da História da "Terra"...

 

— A data do "nascimento" ou partida da história do nosso mundo, do ponto de vista geológico — esclareceu Sinuhe —, si­tua-se há 1 000 milhões de anos. O planeta tinha um tamanho comparável ao atual e nessa época, segundo a "Quinta Revelação", foi inscrito nos arquivos do universo local de Nebadon com o no­me de IURANCHA.

"As contínuas precipitações aquosas e a atmosfera facilitaram o resfriamento paulatino da crosta terrestre. A ação vulcânica equilibrou a pressão calorífica interna, assim como as violentas con­trações do envoltório. Os vulcões se foram tornando menos ativos e apareceram os tremores de terra. E chegou, como lhe digo, o "ponto zero", geologicamente falando, de IURANCHA. Ao resfriar-se a crosta, surgiu o primeiro e imenso oceano. Um mar que cobriu a Terra por completo, com profundidade média de quase dois quilômetros. As marés manifestavam-se mais ou menos como na atualidade, porém aquele oceano primigênio levava uma dife­rença: não era salgado...

Glória estranhou vivamente tal afirmação:

— Quem o teria suposto! — limitou-se a comentar.

— Sim, aquele manto imenso formava uma envoltura de água doce. Em tal Era, a maior parte do cloro encontrava-se com­binado com diversos metais, embora também seja verdade, segundo esta documentação, que havia o suficiente de cloro mesclado com hidrogênio, para emprestar ao oceano primitivo um ligeiro tom de cor acidulado.

"Com o passar do tempo, profundas correntes de lava derra­maram-se pelo fundo do atual oceano Pacífico, que ficou conside­ravelmente rebaixado.

"A primeira massa de solo continental emergiu daquele ocea­no mundial, restabelecendo o equilíbrio e compensando o aumento de espessura da crosta terrestre.

"Há 950 milhões de anos, IURANCHA já oferecia a imagem de' um mundo com um imenso e único continente, rodeado de um oceano não menos considerável. Os vulcões eram numerosos e os tremores de terra, freqüentes e violentos. A "chuva" de meteoros, embora decrescesse, importava muito ainda. Entretanto, a atmos­fera continuava purificando-se, apesar dos ainda excessivos volumes de gás carbônico.

Sinuhe fez outra pausa e pediu à filha da raça azul que pres­tasse a máxima atenção ao que estava prestes a ler.

— Foi nesse tempo que IURANCHA foi agregada ao sistema de Satânia, em face da sua futura administração planetária, e ins­crita nos "Registros de Vida" da constelação de Norladiadek à que, como você sabe, pertence o citado sistema de Satânia. Iniciou-se então o "reconhecimento administrativo" daquela esfera pequena e insignificante, destinada a ser o mundo ao qual se lançaria Micael de Nebadon, para a sua última e fascinante "aventura pessoal" de encarnação, participando de experiências conhecidas de todos e que fariam que IURANCHA outro nome: "o Mundo da Cruz".

 

— Um "reconhecimento" do planeta?

A expressão ficara firmemente gravada na mente de Glória. E imediatamente fez uma segunda pergunta a Sinuhe.

— "Reconhecimento" de IURANCHA, mas por parte de quem?

— A primeira chegada de seres, digâmo-los "celestes", ao nosso mundo deu-se, há 900 milhões de anos. Formavam um grupo expedicionário e pioneiro, procedente de Jerusem, planeta-capital de Satânia. A missão dele era a seguinte: examinar o planeta e apresentar um relatório sobre as possibilidades de nele adaptar-se uma "estação experimental de vida". Essa comissão, dizem os do­cumentos, era integrada por 24 membros. Entre eles, "Portadores de Vida", "Filhos Lanonandeks", "Melchizedeks", "Serafins" e outras personalidades da vida celeste, dedicadas à organização e administração inicial dos mundos evolucionários.

"E, segundo a "Quinta Revelação", depois de minucioso exa­me de IURANCHA, o grupo regressou a Jerusem, apresentando ao Soberano do sistema um relatório favorável e aconselhando a inscrever o planeta no "Registro da Experiência da Vida". A partir daí, IURANCHA figurou nesses registros como um mundo "de­cimal". ..

Sinuhe reparou na estranheza da filha da raça azul.

— Imagino que você se pergunte que quer dizer "planeta decimal". Parece que, dentro da "ordem administrativa" dos superuniversos, em cada dez mundos ou planetas habitáveis, os cha­mados "Portadores de Vida" elegem um, em que a "semeadura" das primeiras células viventes pode ser manipulada, tendo em vista ensaiar certas novas combinações mecânicas, elétricas, químicas e biológicas destinadas a modificar, eventualmente, os arquétipos de vida do universo local previstos para o sistema. Nos outros nove planetas, os tipos viventes são mais "normais". ..

. — Quer dizer então que nós, os humanos da Terra, somos fisicamente diferentes dos "humanos" de outros mundos habitados?

— Não necessariamente. Essa "manipulação" da Vida, à que se refere a "Quinta Revelação", provoca nos mundos "deci­mais" como IURANCHA certas combinações inéditas que os

criadores observam, a fim de beneficiar, se for o caso, aos demais mundos do seu universo local. A grande "diferença", porém, não parece residir aí, mas na anarquia e nos perigos de rebelião que freqüentemente resultam desses "ensaios" nos planetas "decimais" e que, portanto, não se dá habitualmente no resto dos mundos evolucionários. . .

A filha da raça azul começava a compreender o porquê da agitação, das trevas e das guerras constantes que assolaram e asso­lam a Terra. Expressou-o ao companheiro. Ele fez um gesto ne­gativo. . .

— Não creia que essa caótica situação das diferentes huma­nidades que foram desfilando por IURANCHA se deve, única e exclusivamente, a essa condição de "mundo decimal". Aí entra precisamente, e em cheio, outra razão: a revolta liderada por Lúcifer e que, você sabe, tem muito que ver com a nossa missão. . .

 

— Uma vez inscrito nosso jovem planeta nos arquivos de Jerusem, capital do sistema, os "Portadores de Vida" (uma das hierarquias celestes responsáveis por essa "semeadura" da Vida) foram informados de que, com efeito, receberiam permissão para experimentar novos modelos de mobilização mecânica, química e elétrica em IURANCHA, com ordem expressa para transplantar e implantar a Vida. Foi, sem dúvida — comentou Sinuhe com certo regozijo — uma boa nova.

"No momento oportuno (disse a "Quinta Revelação"), a chamada comissão mista dos Doze, em Jerusem, dispôs as medidas oportunas para a ocupação do planeta. Tais medidas foram previa­mente aprovadas pela comissão planetária dos Setenta de Edência, sede, como lhe disse, de nossa constelação de Norladiadek. Esses planos, propostos pelo conselho consultivo dos "Portadores de Vida", foram definitivamente aceitos em Salvington, capital de Nebadon e residência de Micael. Imediatamente, as "teledifusões" do universo local transmitiram a notícia de que IURANCHA pas­saria a ser o cenário da sexagésima experiência dos "Portadores de Vida" em Satânia, orientada para ampliar e melhorar o tipo "sataniano" dos arquétipos de vida de Nebadon. IURANCHA não tardou a receber o estatuto completo de Nebadon, sendo registrada também nos arquivos celestes de Ensa (nosso setor menor) e de Splandon (setor maior). Por último, nosso mundo figurou nos registros da vida planetária em Uversa, capital do superuniverso de Orvonton. . .

Com ar esgotado, Glória "lamentou tanta burocracia". . .

— Sim — respondeu o amigo —, excessiva também para o meu gosto. Mas talvez essa ingente hierarquização possa explicar a incrível e matemática ordem do Cosmos. ..

"Essa Era — reatou Sinuhe, prometendo que estavam perto do fim de tais prolegômenos —, caracterizou-se por freqüentes e violentos furacões. O envoltório terrestre achava-se ainda em estado de fluidez e o resfriamento superficial se alternava com imensos rios de lava. Em parte alguma da superfície do nosso pla­neta (diz a "Quinta Revelação") pode encontrar-se o menor vestígio dessa crosta primitiva, que se foi misturando com lavas e matérias vulcânicas, ejetadas desde as grandes profundidades, e com ulteriores depósitos do oceano mundial primigênio.

"Quanto aos resíduos modificados das antigas rochas pré-oceânicas, o atual noroeste do Canadá (ao redor da baía de Hudson) é o ponto onde eles mais abundam, em todo o planeta. Sua imensa plataforma granítica é formada por uma rocha pertencente a essas idades pré-oceânicas.

"Ao longo das idades oceânicas, enormes mantos rochosos estratificados e desprovidos de fósseis depositaram-se no fundo desse oceano mundial (o calcário pôde formar-se como conse­qüência de precipitações químicas; nem todos os calcários antigos têm sua origem em depósitos da vida marinha). Não se encontra­ram restos de vida nessas antigas formações rochosas, a não ser que depósitos posteriores (de idades aquáticas) se tivessem mes­clado, por casualidade, com essas capas mais antigas, anteriores à Vida.

"A casca terrestre primitiva era bastante instável, embora ainda não houvessem surgido as primeiras montanhas. O planeta inteiro se comprimia sob a pressão da gravidade, à medida que se formava.

"A massa continental daqueles tempos cresceu até cobrir aproximadamente dez por cento da superfície da Terra. Os tremo­res começaram justamente quando essa massa continental emergiu muito acima do nível da água. E os sismos, cada vez mais intensos, prolongaram-se pelo espaço de milhões de anos. Diminuíram de­pois, embora ainda hoje IURANCHA sofra uma média de quinze por dia.

"Há 850 milhões de anos produziu-se a primeira estabilização da crosta terrestre. A maior parte dos metais pesados fora atraída para o centro do globo e o envoltório, em vias de resfriamento, parou de derreter. Sob esse envoltório, a lava se estendia por quase o mundo inteiro, contribuindo para a sua compensação e estabilização. A freqüência e a violência dos sismos continuavam decrescendo e a atmosfera, apesar do gás carbônico, não cessou de depurar-se. As perturbações elétricas, tanto em terra como no céu, tornaram-se menos freqüentes e as correntes de lava transpor­taram para a superfície de IURANCHA uma mescla de elementos que isolaram o planeta contra certas energias espaciais. Tudo isso contribuiu para facilitar o controle da energia terrestre e regulari­zar-lhe o fluxo, como o testemunha o funcionamento dos pólos magnéticos.

"Há 800 milhões de anos assistimos (afirmam as personali­dades celestes que asseguram ter escrito esta "Quinta Revelação") à inauguração da primeira grande Era terrestre: a Idade do res­surgimento dos continentes. Depois da condensação da hidrosfera de IURANCHA, primeiro no oceano mundial e depois no Pacífi­co, convém ter presente que esta última massa de água cobria as nove décimas partes da superfície do mundo. O fundo do oceano ficava cada vez mais pesado, tanto pelos milhões de meteoros caí­dos, como pelo peso da água que, em algumas áreas, alcançava até dezessete quilômetros de profundidade.

"E assim se forjou o nascimento dos continentes. A Europa 3 a África surgiram do Pacífico, ao mesmo tempo que as massas hoje denominadas Austrália, América do Norte e do Sul e mais o continente Antártico. Ao final do período, as massas emersas re­presentavam quase um terço da superfície do mundo, formando um só continente.

"Tal elevação das terras implicou nas primeiras diferenças climáticas. Elevação do solo, nuvens cósmicas e influências oceâ­nicas (dizem estes documentos) são os principais fatores das flu­tuações do clima.

"A borda da massa continental asiática, por exemplo, atingiu perto de 15 000 metros de altura. Se naquela Era tivesse existido muita umidade no ar dessas grandes altitudes, o gelo teria apa­recido, formando-se precocemente as glaciações.

"Há 750 milhões de anos apareceram as primeiras brechas nesse único continente. Grandes brechas. Foi um enorme afunda­mento, de norte a sul, que no fim foi invadido pelas águas. As

falhas prepararam o caminho d! deriva do que mais tarde seriam a América do Norte e a do Sul e a Groenlândia em direção ao oeste.

"Outra imensa fissura, agora de este a oeste, separou p que, no futuro, chamaríamos África e Europa, arrancando a Austrália, a Antártida e as ilhas do Pacífico do continente asiático.

"E estamos chegando ao final. Ou ao princípio, de acordo com a perspectiva. Faz agora 700 milhões de anos, IURANCHA se aproximava, a passos gigantescos, do que deveriam ser as con­dições ideais para a "semeadura" da Vida. A saber: a deriva continental prosseguia incessante, o oceano penetrava mais e mais nas terras, como longos braços, proporcionando águas pouco pro­fundas & baías abrigadas, tão necessárias para o assentamento da vida marinha.

"E assim nos situamos nos 650 milhões de anos. Essa Era foi testemunha de uma nova cisão das massas continentais. A partir daí, os mares se estenderam muito mais e suas águas rapidamente alcançaram o teor de salinidade necessário para o nascimento da Vida em IURANCHA.

"E a "Quinta Revelação" conclui este capítulo da história geológica do nosso mundo com as seguintes palavras: "Foram esses mares, e aqueles que lhes sucederam, que fixaram os anais da Vida, tal como o homem aprende a lê-los nas páginas de pedra bem conservadas, volume por volume, enquanto as Eras sucedem às Eras e as Idades às Idades. Foi nesses mares interiores onde, finalmente, apareceu a Vida".

Visivelmente esgotados, Glória e Sinuhe interromperam ali a leitura dos estranhos documentos. Na realidade, já restava pouco para finalizar aquele adestramento, imprescindível, da filha da raça azul. Entretanto, acontecimento não previsto por Sinuhe viria alte­rar-lhe boa parte dos planos...

 

Durante as horas que se sucederam à acidentada visita à Câmara Municipal, Sinuhe não conseguiu afastar da cabeça a ima­gem daquelas duas letras — RA — no disco metálico do pêndulo. E, ao passo que instruía Glória sobre os universos, sua organiza­ção e a história de IURANCHA, tomou uma decisão: na primeira oportunidade regressaria — dessa vez sozinho — à torre do casa­rão. Precisava examinar minuciosamente o alto-relevo.

Foi naquela última pausa — ao encerrar o capítulo sobre a criação do universo local de Nebadon, a partir da nebulosa de Andronover — que o "soror" da Ordem da Sabedoria acreditou que chegara o momento. Conseguiu uns trapos velhos, um reci­piente com gasolina, uma brocha fininha e, naturalmente, a má­quina fotográfica.

A amarga experiência sofrida no casarão fez com que refle­tisse e programasse essa segunda exploração à luz do dia. Para ele, as trevas só serviram para complicar as coisas. No fundo, porém, a verdadeira razão por que Sinuhe preferia subir ao ático da Câ­mara durante o dia era outra. Ele próprio sabia que, apesar da curiosidade, só o pensamento de voltar à cabina já lhe causava tremores nos joelhos. Ele nunca foi um valente — já o dissemos.

Tudo preparado. Sinuhe propôs à amiga o congelamento, por algumas horas, das instruções. Ela e ele necessitavam disso. E a senhora respeitou os íntimos desejos do sempre desconcertante jornalista. No fundo, a filha da raça azul intuía que pela mente do "irmão" esvoaçava mais que um simples descanso.

Mas quando o investigador, com a desculpa de relaxar os músculos com um passeio pelos arredores, caminhava já para a saída, alguém empurrou a porta, fazendo soar o alegre cacho de campainhas da Casa Azul.

Ao ver a figura do carteiro, deteve-se. Glória correu para atender e, após cumprimentar o funcionário e velho amigo, ele lhe entregou a correspondência, perguntando-lhe por um tal. . .

— Sou eu — apressou-se Sinuhe ao escutar seu verdadeiro nome e sobrenomes.

— Este telegrama é para o senhor. Assine aqui, por favor.

O investigador cruzou um olhar de estranheza com a amiga. Quem poderia saber, com exceção da família e do seu Kheri Heb, que se encontrava naquela aldeia recôndita?

Sinuhe nunca gostou de telegramas. É que quase sempre anunciam problemas ou perdas irreparáveis. Por isso, de má von­tade, estampou a assinatura no livro do carteiro e apanhou o ino­portuno envelope azul.

Quando ficaram a sós, Glória pôs-se a observar o amigo. Em vez de abrir o telegrama e conhecer-lhe o conteúdo, com irritante hesitação limitava-se a virá-lo de lá para cá entre os dedos, pare­cendo querer adivinhar o texto.

Após segundos de silêncio sufocante, a senhora da Casa Azul, compreensivelmente intrigada, apontou o telegrama e com incontida curiosidade perguntou:

— Você não pretende abri-lo?

Desta vez, o membro da Escola da Sabedoria não se enganou. A intuição lhe anunciava "algo" importante.. .

Ao escutar a senhora, regressou ao presente, desculpando-se por sua tolice.

Sem poder nem querer ocultar seu nervosismo, abriu o tele­grama, fixando um olhar vago nas tiras brancas de papel coladas sobre o impresso azul.

Glória fez menção de afastar-se, mas Sinuhe, sem pronunciar palavra nem desviar os olhos do papel, pediu-lhe com a mão que esperasse. E a filha da raça azul obedeceu.

No final, desprendeu-se do texto e, com súbita palidez, con­vidou a companheira a que regressassem ao salão. O coração dela sem querer acelerou. Intuía que os acontecimentos estavam a ponto de precipitar-se.

Ela sentou-se. Sinuhe, estendendo-lhe o telegrama, dirigiu-se em seguida até a grande janela, por onde entrava a generosa luz daquela manhã de 19 de julho. Calado, de braços cruzados, dei­xou-se ficar submerso em pensamentos inexpugnáveis.

Dali a instantes, sentia no ombro a mão reconfortante da filha da raça azul. Ao voltar-se, o atormentado investigador respirou aliviado. Uma luz intensa fulgia nos olhos da amiga. Sinal inequí­voco de que Glória compreendera e, mais transcendente, aceitara definitivamente a missão.

Um vivificante sorriso aflorou aos lábios da senhora da Casa Azul, ao mesmo tempo que, com a voz banhada pela emoção, re­petia de cor o texto do telegrama:

"O momento chegará com a lua nova. Recorde-se do sinal de Micael. 'Ra' fará descer então seu mensageiro solitário, Lúcifer. Repito. Lúcifer. Que o seu harmonizador e o da filha da raça azul guiem seus passos".

Contagiado pelo olhar estimulante, correspondeu com outro sorriso.

A mensagem, com efeito, marcava o início da "contagem re­gressiva" para a grande missão. Vinha assinado por duas singelas palavras — "O Mestre" — que, é claro, não passaram desperce­bidas para Glória. E uma vez sossegados os ânimos, a senhora da Casa Azul pediu a Sinuhe que lhe desse detalhes. Por exemplo: quem era esse "Mestre"? Por exemplo, que queria dizer a palavra "Lúcifer", repetida, aliás?

O membro da Loja secreta começou pelo fim. Sem fazer alu­são alguma à sua categoria de irmão da Escola da Sabedoria, informou à amiga que, há alguns dias já, tinha em seu poder uma série de informações confidenciais, organizada para aqueles mo­mentos prévios à iniciação da misteriosa aventura. Recomendações e dados, incluídos pelo seu Kheri Heb no envelope lacrado que continha os textos da "Quinta Revelação". E a palavra "Lúcifer" fora incorporada como uma contra-senha que deveria colocar o investigador em alerta total. Afortunadamente, o Mestre depurara a informação, revelando o momento exato para a arrancada da missão: a lua nova.

Ao mencioná-lo, Sinuhe estremeceu. Quanto faltaria para esse dia? Glória não soube precisar.

Mas logo em seguida, depois de vertiginosa consulta a um calendário, tranqüilizaram-se. Não haveria lua nova antes do dia 28 daquele mês de julho. Dispunham, portanto, de pouco mais de uma semana. Oito dias, dentre os quais Sinuhe teria de com­pletar a bagagem informativa da companheira a respeito da "Quin­ta Revelação" e tornar a inspecionar a velha maquinaria do relógio da Câmara Municipal.

Glória quis aprofundar-se nos preparativos para a grande missão, mas o companheiro, esquivo, limitou-se a lembrar-lhe o texto do telegrama:

— Não se inquiete. Está tudo previsto. Quando chegar o momento, conclui-se, um Mensageiro Solitário (dessas personali­dades celestes de que já lhe falei) descerá para "abrir-nos o ca­minho". ..

— E por que nos devemos lembrar do sinal de Micael? Para Sinuhe estava claro. A provável "descida" ou "aparição" do Mensageiro Solitário teria lugar na clareira do bosque onde aquela enigmática criatura gravara a fogo os três círculos concêntricos, sinal e emblema de Micael, o Soberano do universo local de Nebadon. Aquele, portanto, devia ser o ponto onde a filha da raça azul e seu companheiro teriam de estar quando apontasse a lua nova.

Após segundos de silêncio sufocante, a senhora da Casa Azul, Mas, obedecendo ao instinto, preferiu não compartilhar a suposição com a amiga curiosa. Desviando o assunto suplicou-lhe que mantivesse tudo aquilo no fundo do coração e que, sob ne­nhum pretexto, chegasse a manifestá-lo a quem quer que fosse.

Sinuhe conhecia a delicada discreção da senhora da Casa Azul. Assim, por esse lado, ficou tranqüilo. O que realmente lhe flagelava a inteligência era não saber, não intuir sequer o que os aguardava uma vez iniciada a missão. . . E foi melhor assim. Se o suspeitasse, talvez se tivesse rendido, abandonando imediata­mente a aldeia com todos os seus enigmas.

 

É evidente que aquela mensagem do seu Kheri Heb em Madri veio alterar-lhe os planos. Glória, com sobeja razão, em vista do curso que tomavam os acontecimentos, acabou por formular-lhe uma pergunta para a qual, ao contrário do que acontecia consigo mesmo, ele tinha sim uma resposta:

— Diga-me, por que eu? Por que fui eleita?

Sinuhe sorriu com ternura. E, acariciando-lhe os cabelos louros, retrucou:

— Glória querida, o segredo e a resposta encontram-se nesta "Quinta Revelação". Tornamos, pela terceira vez, à sua dúvida inicial: que é a raça azul?

— Sim, que é essa raça azul e que tenho eu que ver com ela? O "soror" voltou a abrir seus documentos, enquanto advertia à amiga expectante que, dada a premência do tempo, via-se obri­gado a contornar aquelas informações sobre os primeiros tempos do estabelecimento de Vida em IURANCHA, as respectivas Eras da Vida marítima e terrestre, como também o relato fascinante dos primeiros homens primitivos na Era Glacial e de seus precursores: os inteligentes animais de Lemúria. Sinuhe tranqüilizou a "aluna", assegurando-lhe que tais conhecimentos — embora apaixonantes — não eram vitais para o seu adestramento e a iminente missão.

— Falar-lhe-ei, portanto, daquilo que, isso sim, você deve saber, necessariamente. . . — concluiu ele.

Glória protestou, apesar das razões. Aquela referência do amigo sobre os tipos primitivos de lêmures e sua relação com os primeiros homens literalmente a cativara.

Mas Sinuhe, com a rigidez que lhe era característica, passou por alto os desejos da filha da raça azul, prometendo-lhe, isso sim, que, "se o tempo não os atraiçoasse, satisfar-lhe-ia a curiosi­dade. .."

E, dessa forma, começou a última fase da preparação da filha da raça azul.

— Antes de mais nada, devo adiantar-lhe que algumas das revelações que você já vai escutar podem ferir-lhe a sensibili­dade. ..

— Não sei a que você se refere.

— Talvez as passagens desta "Quinta Revelação" que, você o notará, acham-se em franca oposição ao que sempre foi nosso credo ou nos haviam ensinado sobre a origem do homem e, mais exatamente, sobre o que nos diz o Gênese.. .

A advertência ativou todas as "antenas" da filha da raça azul.

— É tão grave assim?

— Se focalizado de um ponto de vista desapaixonado e ra­cional, não...

— Pois vamos lá!

— Bem, vamos lá.. . Segundo estes documentos, "as raças são o resultado de individualidades humanas, aparecidas em  IURANCHA por mutação". ..

Sinuhe estudou a expressão de Glória, à espera de alguma reação. Aquela primeira assertiva chocava violentamente com um princípio estabelecido na Bíblia, em que se insinua que o homem foi criado diretamente por Deus. Ela, no entanto, permaneceu em silêncio.

— Antes, muito antes do aparecimento, em IURANCHA, do primeiro par verdadeiramente humano — retomou Sinuhe, aliviado ante a aparente docilidade da atenta receptora —, o mun­do achava-se povoado por um sem fim de famílias de primatas pré-humanos. Estes, por sua vez, procediam dos lêmures.

— Os o quê. ..?

Sinuhe moveu a cabeça, com desalento. Depois, mostrando o vultoso maço de documentos, comentou:

— Não dispomos de tempo para nos determos e aprofundarmo-nos nessa parte da "Quinta Revelação". Terei de saltar, neces­sariamente, por cima das fascinantes descrições daquelas primeiras idades de IURANCHA, nas quais a Vida tomou posse do planeta, propagando-se em seqüências maravilhosas... Porém — acrescentou, enquanto procurava a informação sobre os lêmures — tratarei de sintetizar esse capítulo, decisivo para a posterior aparição do homem.

"Aqui diz que, faz aproximadamente um milhão de anos, os antepassados imediatos da humanidade apareceram em três mu­tações sucessivas, partindo do ramo primitivo do chamado tipo lemuriano de mamífero placentário. Sua origem, em que não vamos entrar, esteve em um grupo americano ocidental.

"Os lêmures primitivos tinham certa semelhança com os an­tepassados da espécie humana, muito embora não guardassem parentesco algum com as tribos preexistentes de gibões e macacos, que viviam então na Eurásia e na África do Norte e cuja descen­dência sobrevive até hoje. Enquanto aqueles lêmures primitivos evolucionavam no hemisfério ocidental, os mamíferos (antepassa­dos diretos da Humanidade) assentaram no sudoeste da Ásia, na zona originária de implantação central da Vida. Vários milhões de anos antes, os lêmures de origem americana haviam emigrado para o oeste, pela ponte terrestre de Bering. E haviam avançado para o sudoeste, ao longo da costa asiática. Essas tribos chegaram finalmente às regiões que se estendiam entre o mar Mediterrâneo (então muito maior) e as regiões montanhosas, em vias de levan­tamento, da península da Índia. E nessas terras do oeste da índia as referidas tribos fundiram-se com outras, preparando, assim, a ascendência definitiva da raça humana.

"Com o passar do tempo, o litoral situado ao • sudoeste da índia foi submergindo a pouco e pouco e a vida naquela região ficou isolada. A península mesopotâmica ou Pérsia não dispunha ainda de qualquer via de acesso ou saída, salvo pelo norte. Mas esta foi, repetidas vezes, ocupada pelas invasões glaciais. Foi, pois, nessa região paradisíaca, e a partir de alguns descendentes superio­res desse tipo de mamíferos lemurianos, onde nasceram dois gran­des grupos: as tribos simiescas que vêm proliferando até os nossos dias e a espécie humana.

"Aqueles descendentes dos lêmures americanos (afincados nas áreas mesopotâmicas) eram criaturas pequenas, de um metro de altura, muito ativas e que, em geral, caminhavam com as quatro patas, embora tivessem já a faculdade de permanecer erguidos so­bre suas extremidades traseiras. Eram muito peludos e ágeis. Pai­ravam como os monos, mas, ao contrário das restantes tribos simiescas, eram carnívoros. Dispunham de um polegar oponível muito primitivo e também de uma unha grossa, muito útil. Decorrido tempo, o polegar oponível foi adquirindo perfeição, enquanto a unha ia perdendo sua capacidade de agarrar.

"Esses mamíferos precursores do homem atingiam a idade adulta aos três ou quatro anos e a duração média de vida era de uns vinte anos. O habitual era que tivessem um único filho em cada parto, embora também houvesse casos de gêmeos. Os membros dessa nova espécie possuíam cérebro mais volumoso que o nor­mal, em proporção ao seu tamanho. E, à diferença dos símios, experimentavam alguns sentimentos. ..

— Quais, por exemplo?

— Eram extremamente curiosos, manifestando, inclusive, evidentes e singulares reações, que talvez pudéssemos definir como "de alegria". O apetite sexual era igualmente muito desenvolvido e eram capazes de lutar ferozmente por sua prole. Gregários, ti­nham muito apego a associações de tipo familiar è de clã. E, de acordo com a "Quinta Revelação", possuíam também apurado sentido de humildade. Isso desemboca em outros sentimentos, co­mo a vergonha e o remorso.

"A inteligência aguda lhes permitia compreender os graves perigos a que estavam expostos naquele meio florestal. E daí nas­ceu outro sentimento, não menos importante: o medo. Isso os levou a adotar prudentes medidas de segurança, que acabaram sendo transcendentes para o futuro deles. Assim surgiram os primeiros refúgios nas copas das árvores. E, segundo se afirma nesta revela­ção — comentou Sinuhe —, o ancestral e permanente sentimento de medo que o ser humano padece origina-se, precisamente, da­quelas remotas épocas. É algo genético, perfeitamente lógico e compreensível.

"Graças ao seu sentido de clã, aqueles lêmures primitivos acabaram aniquilando as tribos simiescas mais próximas, domi­nando assim as criaturas menores.

"Durante mais de mil anos, esses pouco menos que insigni­ficantes e agressivos lêmures multiplicaram-se e invadiram toda a península mesopotâmica. Setenta gerações depois deu-se um fato de suma importância: a súbita diferenciação dos antepassados da etapa vital dos lêmures. O acontecimento se materializou com a aparição de dois gêmeos, um macho e uma fêmea, nascidos na copa de uma das gigantescas árvores. Comparados com o resto dos lêmures de sua tribo, eram menos peludos e sensivelmente maiores que os progenitores. Logo alcançaram 1,20 metros de altura; pernas mais longas e braços mais curtos. Os polegares, qua­se perfeitos. Caminhavam praticamente eretos e os cérebros eram mais volumosos que os dos antepassados. Os gêmeos demonstra­ram logo uma inteligência superior e foram aceitos como chefes da tribo. Chegaram mesmo a instituir uma certa forma de organi­zação social. Os dois se uniram e procriaram um total de vinte e um filhos, muito parecidos com eles. E assim surgiu o núcleo dos chamados mamíferos intermediários.

"Quando os membros desse novo núcleo se tornaram nume­rosos, a guerra tornou a eclodir. E ao final, seus ancestrais e a multidão de tribos de macacos tinham sido aniquilados. Por mais de 15 000 anos (cerca de 600 gerações), os conquistadores con­verteram-se no terror daquela parte do mundo. Comparados com os lêmures primitivos, esses mamíferos intermediários significaram um grande progresso. A média de vida aumentou, chegando aos vinte e cinco anos e apareceram, até mesmo, dardos e flechas. O instinto de armazenamento de víveres fez-se mais acurado, assim como a provisão de pedregulhos e de pedras, que utilizavam como projéteis. Foram esses mamíferos os primeiros a manifestar ten­dência inata para o combate, revelada, por exemplo, em contínuas escaramuças na hora de construir seus refúgios, quer nas copas das árvores, quer em túneis subterrâneos. Durante o dia viviam no chão e se refugiavam no alto das árvores ao cair da tarde.

"Entretanto, a grande proliferação de indivíduos dessa espécie acabaria por provocar uma dura concorrência na hora de partilhar o alimento ou de eleger o par. E a guerra, uma vez mais, fez seu papel. As batalhas foram prolongando-se, até que não restou mais que uma centena de sobreviventes.

"Vós (diz a "Quinta Revelação") mal podeis imaginar quantas vezes vossos antepassados pré-humanos estiveram a ponto de roçar e alcançar a destruição total. Se a rã, antepassado da humanidade, tivesse, em algum momento, dado um salto cinco centímetros me­nor do que o necessário, toda a evolução teria mudado."

"A mãe lemuriana imediata da. espécie dos mamíferos precur­sores escapou da morte por um triz, pelo menos cinco vezes, antes de parir o "pai" da nova ordem de mamíferos superiores. O último acidente deu-se quando um raio atingiu a árvore em que dormia a futura mãe dos gêmeos primatas. Os dois mamíferos intermediá­rios ficaram gravemente feridos e três dos sete filhos dela morre­ram. Eram animais muito supersticiosos: quando esse casal se retirou da região para construir novos abrigos, a três quilômetros do primitivo acampamento, metade da tribo seguiu-lhe o exem­plo. Pouco depois de concluído o novo assentamento, aquela vete­rana e inteligente parelha converteu-se em pais de outra transcen­dental parelha de gêmeos. No mesmo momento em que nasciam esses gêmeos, outro par do grupo (bastante mais atrasado) deu à luz outros gêmeos: macho e fêmea. Estes, porém, ao contrário dos primeiros, não se interessaram por conquistas, limitando-se a comer frutos. E assim surgiu o grande tronco das tribos modernas de macacos. Seus descendentes saíram em demanda de climas mais suaves e de abundância de frutos. E assim se perpetuaram até nos­sos dias.

"Em síntese, com os anos, aqueles primatas evolucionaram por mutação em duas direções: uma regressiva, que deu os monos de que lhe acabo de falar e outra, progressiva, da qual surgiu esse primeiro par de gêmeos. . . Realmente, os "primeiros pais" da hu­manidade.

— Adão e Eva? — Glória tentava adiantar-se à leitura. Sinuhe negou com a cabeça.

— Segundo a "Quinta Revelação", negativo. E faço um pa­rêntese para dizer-lhe algo mais: parte da nossa missão consistirá em averiguar quem foram realmente Adão e Eva, sua companhei­ra, quando se estabeleceram em IURANCHA e qual terá sido o erro deles...

Glória captou a sutileza do companheiro e voltou a perguntar:

— Por que você diz "estabeleceram-se em IURANCHA"? Não eram humanos?

— A isso, sinceramente, não lhe posso responder. Simples­mente não o sei. Intuímos que Adão e Eva foram muito mais que meros seres humanos. . . Mas continuemos.

"Como vê, o homem, portanto, não descende do macaco, como sustentam as teorias evolucionistas. Entretanto, ambos (ho­mem e macaco) sim, têm origem ou tronco comum: os primatas primigênios. Depois, a mutação (e nisso Darwin acertou) fez o resto.

"Esse grande acontecimento (o nascimento da primeira pa­relha humana) ocorreu há um milhão de anos, em conseqüência de um "acidente cromossômico". Estes dois seres foram gêmeos (homem e mulher) e se chamaram Andon e Fonta. Nasceram de um primata...

— Que se pode entender por "acidente cromossômico"?

— O biólogo Jean de Grouchy, diretor das investigações do CNRS francês e responsável pelo laboratório de citogenética do hospital Necker, foi, entre os sábios, um dos que mais se aproximou — sem sabê-lo — desta "Quinta Revelação". Pois bem; na opinião desse especialista, a aparição do homem, entendido como tal, sobre o planeta, pôde dever-se ao encontro de uma fêmea e um varão que portavam número aberrante de cromossomos (47, no caso). Isso sim, pôde desembocar na aparição de uma nova linha: a nossa. Como você sabe, as células sexuais têm a metade de cromossomos que as demais do organismo. O macaco, que des­fruta de 48 cromossomos, produz células sexuais com 24 cromos­somos. O homem/ por outro lado, que tem 46 cromossomos, produz células sexuais de 23 cromossomos cada uma. Em todos' os óvulos encontra-se um cromossomo sexual propriamente dito, sempre o mesmo, que determina o sexo do novo ser. É chamado "cromossomo X". Nos espermatozóides, entretanto, o cromossomo sexual é "X" (fêmea) ou então "Y" (macho). Por isso, ao fecun­dar-se um óvulo (sempre "X"), dará lugar ao nascimento de uma fêmea ou de um macho, dependendo de ser, o espermatozóide, portador de um "X" ou de um "Y".

"Que o número de cromossomos das células sexuais fique reduzido à metade consegue-se, tanto nos testículos como nos ovários, graças a duas divisões consecutivas ou "meioses" das cé­lulas sexuais originárias. Além disso, durante essa fase de "meiose" podem dar-se acidentes que redundem em células sexuais com um cromossomo de menos. Esse "acidente cromossômico", segundo o doutor Grouchy, pode ter sido a chave do "salto" ou "passagem" dos macacos ou primatas (48 cromossomos) ao ser humano (46 cromossomos). . . por meio de gêmeos que teriam 47 cromosso­mos. Dou-lhe um exemplo: imagine um símio macho que tivesse uma "meiose" que lhe ocasionasse esse tipo de acidente. Normal­mente ele emite dois tipos de espermatozóides: um com "X" e outro com "Y". Nessa hipótese, e por causa desse acidente, uns terão 23 cromossomos e os outros, 24. Da parelha formada por esse símio macho com outra fêmea normal de primata, poderia nascer uma filha que tivesse herdado a tara do pai. Quer dizer, que fosse capaz de produzir alternativamente óvulos de 23 e de 24 cromossomos.

"Suponhamos agora que nessa nova fêmea se apresente outra "meiose"; em outras palavras, que o chamado glóbulo polar (que é uma espécie de minióvulo), em vez de degenerar e ser abando­nado, como normalmente ocorre, permanecesse no interior do óvulo. Se este e o glóbulo polar são fecundados por um símio nor­mal, nasceriam, possivelmente, dois gêmeos de sexos diferentes. . .

"Para o doutor Grouchy, tais gêmeos teriam sido Adão e Eva. Cada um desfrutaria de 47 cromossomos. No caso de se acasala­rem entre si, poderiam ter dado lugar ao "nascimento" do homem atual. Para tanto, teria bastado que um óvulo de 23 cromossomos tivesse sido fecundado por um espermatozóide que também tivesse 23 cromossomos.

Sinuhe suspendeu sua exposição científica. Glória se havia perdido. Compreensivelmente.

— Quero dizer com tudo isto — resumiu o jornalista — que já em 1 978 um eminente biólogo aventou uma teoria que coincide (e de que forma!) com o que nos conta a "Quinta Revelação". Uma "revelação" que remonta a muitíssimos anos antes.. .

"De um ponto de vista puramente científico, pois é perfeita­mente viável que os gêmeos Andon e Fonta pudessem ter existido. Obviamente, porém, não conhecendo a "Quinta Revelação", o doutor Grouchy associou esse par com os mal chamados "primei­ros pais".

E Sinuhe entrou em cheio na curiosa e acidentada vida da­queles primeiros e extraordinários gêmeos. . .

 

— Você se perguntará por que os gêmeos foram chamados Andon e Fonta. IURANCHA foi registrada como um mundo "habitado" quando esses dois primeiros seres humanos alcança­ram a idade de onze anos e antes que chegassem a ser pais do primeiro nascido da segunda geração de verdadeiros humanos. Um milhão de anos atrás, repito. Aproximadamente.

"Naquela ocasião solene, a hierarquia celeste estabelecida em Salvington (capital do nosso universo local), remeteu uma mensa­gem arcangélica que se encerrava assim — e o investigador leu o texto concernente na "Quinta Revelação" —: "... A inteligência humana apareceu no 606 de Satânia (nosso mundo), e os pais dessa nova raça serão denominados Andon e Fonta. Todos os arcanjos rezam para que essas criaturas possam ser rapidamente dotadas da presença pessoal do dom do espírito do Pai Universal".

Refere-se a esse harmonizador do pensamento ou presença pré-pessoal do Pai.

Glória assentiu.

— Pois bem, Andon é um nome "nebadoniano", que significa "a primeira criatura semelhante ao Pai e que demonstra sede de perfeição humana". Fonta, por sua vez, quer dizer "a primeira criatura semelhante ao Filho e que mostra sede de perfeição hu­mana".

"Esses nomes lhes foram dados pela hierarquia celeste no momento em que se realizou o ingresso de seus respectivos harmonizadores de pensamento. Ao longo de sua encarnação em IU­RANCHA, Andon e Fonta, entretanto, batizaram-se a si mesmos com outros nomes. Anton se denominou Sonta-An ou "o amado da Mãe" e sua companheira, Sonta-En ou "a amada do Pai". Es­colheram tais nomes como prova de mútuo afeto e respeito. Em muitos aspectos (conta a "Quinta Revelação"), Andon e Fonta constituíram a dupla de seres humanos mais notáveis que jamais tenha vivido sobre a face de IURANCHA. Estes seres incríveis — os verdadeiros primeiros pais da Humanidade — foram, sob mui­tos pontos de vista, muito superiores, inclusive, aos seus descen­dentes.

— Que aparência tinham?

— Aparentemente não eram muito diferentes dos demais primatas pré-humanos que compunham seu círculo inicial ou tribo. Uma de suas grandes diferenças físicas estava em que, ao passo que seus companheiros deslocavam-se a quatro patas, eles se man­tinham erectos. Seus cérebros, como já vimos, eram mais desen­volvidos, mais bem dotados. A incipiente inteligência colocou-os rapidamente entre os membros mais vivos da tribo, sendo eles os primeiros a aprender o lançamento de pedras, assim como a utili­zação de paus em combates. E não levaram muito tempo para descobrir a utilidade dos seixos agudos, do sílex e do osso.

"Quando ainda vivia com seus pais, Andon, usando tendões de animais, fixou um pedaço de sílex bem afiado à ponta de estaca. Assim nasceu a primeira raça da humanidade. E estes documentos contam que o jovem gêmeo chegou a utilizá-la pelo menos uma dúzia de vezes, salvando a própria vida e a da irmã que, tão aven­tureira e curiosa quanto ele, o acompanhava em todas as suas incursões.

"Mas, "alguma coisa", no mais íntimo daqueles gêmeos, os compelia a uma vida nova e independente, distante da simiesca

e bestial família de que nasceram. Enquanto a inteligência de Andon e Fonta se ia clarificando, seus congêneres caminhavam em progressiva degeneração, miscigenando-se com as diferentes espé­cies de primatas.

"A chegada, até eles, dos respectivos harmonizadores de pen­samento, foi decisiva. A partir de então, os gêmeos começaram a tomar uma vaga mas sólida consciência de si mesmos e da tremen­da barreira que os separava e diferenciava dos outros animais, incluídos seus próprios "pais" e "irmãos". Nascera. neles uma tí­mida e incipiente personalidade.

"E chegou o grande dia. Aquele em que Andon e Fonta to­maram a decisão inabalável de fugir... .

 

— Muito antes que se realizasse a fuga dos gêmeos — reto­mou Sinuhe ante a mirada atônita da senhora da Casa Azul —, Andon e Fonta já vinham alimentando essa possibilidade. Porém, o temor à sua própria tribo foi atrasando a efetivação do plano. Temeram, mesmo, possíveis ataques de outras tribos ou das feras que povoavam aqueles bosques africanos.

"A família, além do mais, já estava sentindo ciúmes. Quando meninos, os gêmeos passavam a maior parte do tempo juntos, pro­vocando sem querer sentimentos hostis entre seus primos e irmãos, todos eles primatas. O fato de terem construído em outra árvore o seu abrigo, que, além do mais, era muito superior aos outros, em nada contribuiu para melhorar o relacionamento com a tribo. Eles o sabiam, e o medo de morrer em mãos dos parentes foi crescendo.

"E foi nesse lar, no mais alto da mais alta das árvores, que, uma noite, quando dormiam ternamente abraçados, foram desper­tados por violenta tempestade de vento e água. Nesse momento, Andon e Fonta deslizaram copa abaixo, empreendendo sua histó­rica fuga; a que marcaria a senda de toda uma humanidade.

"Arrumaram outro refúgio no alto de uma árvore, a uma meia jornada de caminho para o norte. Ali, naquele esconderijo secreto, os irmãos viram transcorrer seu primeiro dia fora do bosque e ter­ritório natal. Embora partilhassem ainda do medo ancestral dos primatas de permanecer em terra durante a noite, ao entardecer daquele primeiro dia de liberdade, Andon e Fonta retomaram sua fuga, sempre rumo ao norte. Necessitaram de excepcional coragem

para empreender aquelas viagens noturnas, sempre debaixo da ameaça dos animais e de outros possíveis grupos de símios. E, aju­dados pela lua cheia, os gêmeos conseguiram afastar-se o suficiente para que seus "familiares" não os pudessem alcançar.

"No decorrer da viagem, descobriram uma jazida de sílex a céu aberto; fizeram boa provisão de pedras. Alguma coisa vital e surpreendente ocorreu para os gêmeos. Quando Anton trabalhava com uma daquelas peças, tentando dar-lhe forma adequada para as lidas de caça, observou, estupefato, como do sílex brotavam umas "luzes" diminutas. E a idéia de fabricar o fogo surgiu pela primeira vez no cérebro daquele humano. Mas no momento não foi posto em prática. A benignidade do clima tampouco estimulou a necessidade. Entretanto, como lhe digo, a semente fora lança­da e o fogo, como tal, não tardaria a aparecer de uma forma consciente e artificial.

"Apenas quando o Sol do outono começou a esconder-se mais rapidamente e as noites, à medida que ascendiam em direção ao norte, foram tornando-se mais frias, os gêmeos começaram a sen­tir a necessidade de um abrigo permanente e eficaz. E assim nas­ceram os primeiros vestuários, à base de peles de animais.

— Como e quando fizeram eles o primeiro fogo?

— A "Quinta Revelação" garante que foi antes que tivesse transcorrido a primeira lua, desde a fuga do lar familiar. Andon disse à irmã que acreditava ser capaz de fazer fogo, à base das pedrinhas de sílex. Mas, por dois meses foram inúteis suas tenta­tivas. As pedras produziam chispas, é verdade, mas o casal não conseguia inflamar a madeira. Afinal, quase sem querer, Fonta encontrou a solução. Uma tarde, ao pôr-do-sol, ela subiu ao alto de uma árvore, tentando apoderar-se de um ninho abandonado. O ninho estava seco, e por isso inflamável. Quando uma das chis­pas escapadas do sílex o alcançou, por casualidade, o material pegou fogo. O susto dos gêmeos foi tanto, que por pouco não dei­xaram que se apagasse a tímida chama. Mas reagiram a tempo, acrescentando material combustível em abundância. Era a primeira fogueira da humanidade. . .

"E durante horas e horas Andon e Fonta permaneceram junto ao fogo, como que hipnotizados pela ondulante e vivificante dança das chamas. E daí, começou a busca de madeira e de toda classe de materiais que pudessem sustentar e alimentar a sagrada desco­berta. Foram, aqueles, alguns dos momentos mais alegres da sua breve mas intensa vida.

"Assim permaneceram a noite toda, intuindo vagamente que aquele achado lhes mudaria a vida, permitindo-lhes desafiar os rigores do clima e ajudando-os a uma definitiva independência.

"Antes deles, naturalmente, outros antepassados haviam ali­mentado os fogos e deles se servido, porém fogos provocados por raios em bosques e pastagens, mas até esse dia criatura alguma terrestre dispusera de um método para provocá-lo à vontade. En­tretanto, necessitaram os gêmeos de muito tempo ainda para aprender que o musgo seco, por exemplo, era material mais acessí­vel que ninhos de pássaros e, como estes, prático na hora de pro­vocar o fogo.

"E três dias passados o primeiro casal humano reencetou sua peregrinação.

 

— Dois anos haviam transcorrido, desde que os gêmeos decidiram partir do bosque natal, quando, finalmente, Fonta deu à luz seu primeiro filho. E, segundo consta da "Quinta Revelação", deram-lhe o nome de Sontad. Aquela foi a primeira criatura hu­mana que, ao nascer, recebeu um leito protetor e foi abrigada e cuidada de forma permanente pelos progenitores. Esse incipiente instinto maternal seria vital para a multiplicação de uma espécie que, ao contrário dos seus "primos", os primatas, nascia frágil e desamparada, como é natural entre os seres humanos evolucionários, cuja essência e finalidade não é a força bruta, mas o racio­cínio.

"Depois de Sontad, outros dezoito filhos vieram. E o casal viveu o bastante para ver à sua volta cerca de cinqüenta netos e meia dúzia de bisnetos. O "clã" assentou-se definitivamente em quatro abrigos rochosos ou semicavernas, dos quais três se comu­nicavam através de galerias abertas na macia rocha calcárea, abertura essas praticadas pelos filhos dos gêmeos com ferramen­tas de sílex. E assim nasceu a primeira grande raça humana: a "andônica" ou "andonita", em homenagem a Andon.

Sinuhe estava consciente do insólito de sua narração, que talvez pudesse empanar a tradicional idéia cristã de uns primeiros pais — Adão e Eva — criados "do barro e de uma das costelas de Adão", tal como menciona o Gênese. Por isso, antes de pros­seguir, pediu a opinião de Glória.

Mas a senhora da Casa Azul se limitou a responder com esta frase lacônica:

— Possível e belo. . . Por que não?

E quando o amigo reencetava a leitura, exprimiu em voz alta:

— Sempre acreditei que a Bíblia utiliza símbolos. Especial­mente nessa parte da criação do homem e do próprio Cosmos. . . Além do mais, até agora não achei nada que vá contra a essência dos planos divinos. . . Talvez, depois que você me tenha explicado como e de que forma foi levada a termo a "semeadura" da Vida sobre o planeta, eu possa entendê-lo melhor.

O investigador não respondeu. Após uns instantes de dúvida, em que esteve a ponto de voltar atrás nas páginas da "Quinta Re­velação" para informar a amiga sobre a "semeadura", optou por seguir o que já havia planejado antes.

— Os primeiros "andonitas", como lhe dizia, demonstraram alto espírito de clã. Caçavam em grupo e nunca se distanciavam do lar. Davam-se conta, ao que parece, da diferença que os sepa­rava do resto das tribos simiescas e que não deviam cruzar-se com elas sob nenhum pretexto. E cumpriram-no. Essa idéia tão íntima e quase incompreensível para os gêmeos e sua descendência era o fruto, na realidade, da progressiva intensificação da presença, em todos eles, de seus respectivos harmonizadores -de pensamento.

"Andon e Fonta labutaram sem descanso para alimentar e proteger os filhos. Viveram até a idade de 42 anos; morreram durante um terremoto. Uma rocha precipitou-se sobre eles, esmagando-os. Como você vê, nasceram e morreram juntos. Outros cinco filhos e onze netos pereceram no sismo e uma vintena de descendentes sofreu ferimentos graves.

"Sontad, apesar de um pé dilacerado, assumiu imediatamente a chefia do clã, ajudado por sua hábil mulher, a irmã mais velha. Seu primeiro trabalho como dirigente da família "andonita" foi exatamente amontoar pedras sobre os corpos sem vida dos pais, irmãos e filhos. . .

— Eles rendiam culto aos mortos? — interrompeu Glória, quase não acreditando no que estava ouvindo.

— Não. Suas idéias a respeito da vida além da morte eram muito confusas e mal definidas. Era muito cedo ainda. . . Talvez não se deva dar tanta importância a esse ato de sepultar seus mortos. Tão só em seus sonhos fantásticos apareciam imagens que poderiam associar-se a uma concepção de sobrevivência além da morte.

"Mas entendo que chegou o momento de passar a outro ca­pítulo, aliás sumamente atraente: qual o aspecto físico desses primeiros "andonitas", e que foi feito deles?

 

Naqueles dias, Sinuhe intensificou seus ensinamentos, pro­porcionando ao mesmo tempo, à filha da raça azul, prazos maiores para reflexão. Era decisivo que ela assimilasse tudo aquilo ou, pelo menos, a essência da informação, para que seu comporta­mento, enquanto durasse a missão, fosse o mais frutífero possível.

Em vários daqueles descansos obrigatórios, o irmão da Loja surpreendeu-se ao pé do velho casarão da Câmara Municipal. Suas andanças terminavam sempre no mesmo lugar. Mas só no final, quando a intensa preparação se concluiu, teve a coragem necessá­ria para aproximar-se da torre solitária.

— A família de Andon e Fonta se conservou unida até a vigésima geração. Daí por diante, em conseqüência da luta pelos alimentos e das crescentes e assíduas rivalidades tribais, a primeira raça humana se dispersou.

"Não, não creia que essa atomização dos "andonitas" tenha constituído uma rachadura nos planos das personalidades celestes que vigiavam atentamente a evolução desses humanos. Como você verá dentro em pouco, tudo estava previsto. Bom. .. quase tudo.. .

"Aqueles homens primitivos tinham olhos negros e tez escura.

— Eram negros?

— Não. A aparição das diversas raças de cor foi um fato posterior, sumamente complexo e premente; mas falaremos disso em momento oportuno. Os "andonitas" tinham uma coloração comparável à que se poderia derivar do cruzamento de um ama­relo com um vermelho. A melanina (esse pigmento que dá colo­ração à pele) achava-se já na epiderme andônica. Entretanto, a julgar pelo seu aspecto geral e o colorido da pele, lembravam um pouco os esquimós de hoje. Como também, creio haver-lhe dito, foram os primeiros seres humanos a utilizar peles de animais para proteger-se do frio, apesar de terem epiderme muito mais povoada de pêlo do que a nossa.

— Alguma coisa não se encaixa — interveio a senhora da Casa Azul —. Ficou demonstrado que o antiqüíssimo gênero dos Australopithecus, muito anteriores a esse milhão de anos, já dispunha de certas regras sociais, e já sabiam usar os pedregulhos e o sílex. Por que então diz a "Quinta Revelação" que foram os "andonitas" que começaram a cobrir-se de peles?

— Em parte você tem razão. Esta documentação esclarece que os ascendentes de Andon e Fonta manipulavam toscas ferra­mentas de pedra e às vezes se aproveitavam do fogo. Mas, até agora, a paleontologia moderna não logrou descobrir entre estas três espécies que parecem formar o gênero dos Australopithecus (o africanus, o robustus e o boisei) um vestígio sequer que de­monstre que se cobriam com peles. Os achados registrados nessa época, há um milhão de anos, época em que a "Quinta Revela­ção" assegura que nasceram os gêmeos, não são ainda convincen­tes. Na atual divisão estratigráfica do Quaternário, entre os anos 600 000 e 2 000 000 antes de nossa Era (quer dizer, no Pleistoceno inferior), os descobrimentos paleontológicos mais relevantes foram, precisamente, os dos Australopithecus dos tipos africanus e robustus na África do Sul, e boisei no famoso barranco de Olduwai e no Vale da Greta, a leste do continente africano. Algumas escavações mais recentes, levadas a efeito por Richard Leakey nos primeiros anos da década de setenta, vieram demonstrar que a leste do lago Rodolfo, em Kenya, viveu uma numerosa colônia desses Australopithecus ou pré-humanos, possivelmente entre dois e três milhões de anos. Porém, o mais curioso, é que Leakey Jr. chegou a insinuar que, junto aos restos desses quase primatas havia também vestígios de verdadeiros humanos, contemporâneos e mui­to próximos dos Australopithecus. . . Você percebe o que significa a asserção de Leakey?

"Se é que a "Quinta Revelação" está correta, Richard Leakey poderia estar mencionando alguns dos exemplares "andonitas" que, realmente, conviveram com seus "primos distantes", os pré-humanos. Você terá notado, também, que há alguma coisa que não está de acordo: enquanto a "Quinta Revelação" afirma que os gêmeos nasceram há um milhão de anos, uma das descobertas de Leakey em 1 972 (um crânio completo de aspecto humano e gran­de capacidade craniana) situa a presença desses misteriosos huma­nos africanos para além dos dois milhões de anos. Quem tem razão? Pode Leakey ter-se enganado na hora de datar a antigüi­dade desses restos de verdadeiros humanos contemporâneos dos pré-humanos? Mas creio que me desviei da sua pergunta inicial...

Sinuhe recapitulou.

— Sim, falávamos das regras sociais. . . Os achados de uma certa "indústria lítica" entre os Australopithecus ou pré-humanos confirma o que nos diz a "Quinta Revelação". Os antepassados e, também, contemporâneos dos "andonitas" souberam manejar algumas armas muito rudimentares, arrojadiças (pedras, por exem­plo) ou manipuladas diretamente: paus, talvez. . . Jamais, porém, teriam sido capazes de talhar machadinhas de mão, como as en­contradas em Sterkfontein, perto de Johannesburgo, em quartzo, oblongas, brilhantes e com catorze faces! E, no entanto, esse sensacional achado do doutor Brain, em 1 956, em um habitat do Australopithecus africanus, vem demonstrar-nos que, se não pôde ser aquele primitivo pré-humano quem teria fabricado tais utensí­lios de pedra, o autor, necessariamente, deve ter sido um verda­deiro humano, contemporâneo do africanus! Como você vê, pouco a pouco, a Paleontologia vai desembocando em uma hipótese úni­ca e revolucionária, apontada já pela "Quinta Revelação": houve verdadeiros humanos na África, em convivência com outros seres quase simiescos (os Australopithecus) de que se foram distan­ciando mais e mais. O que, no momento, não pode ser descoberto nem provado pela ciência moderna é como e por que se deu esse "salto" dos primatas para os autênticos humanos. . .

"Para a "Quinta Revelação", foi a progressiva expansão da capacidade craniana dos "andonitas" que favoreceu esse enrique­cimento das emoções, dos hábitos sociais e a própria tomada de consciência individual e coletiva daqueles clãs. E tudo isso redun­dou afinal na ruptura do tronco primigênio que os gêmeos haviam formado. Mas passemos a analisar alguns dos principais traços sociais desse grande clã, antes da cisão definitiva. . .

— Em um contraste singularmente profundo em relação a seus "primos", os pré-humanos (ou os Australopithecus, se você o preferir) Andon e Fonta e as gerações que se lhes seguiram foram avançando em sua evolução a ritmo vertiginoso. Desde o princípio as regras sociais, para dar-lhes algum nome, distancia­ram-se eloqüentemente dos costumes puramente instintivos de muitos dos seus ancestrais. Os varões eram capazes de lutar heroi­camente para proteger a companheira e a prole, e as fêmeas, di­versamente das pré-humanas, essas sim, foram capazes de superar o mero impulso animal da maternidade, substituindo-o por sólido e real sentimento de afeto. Porém, essa lealdade incipiente circuns­crevia-se unicamente ao clã. A "Quinta Revelação" afirma que aqueles primeiros "andonitas" não eram ainda capazes de conceber um mundo melhor. O altruísmo seria um sentimento ulterior.

"Apesar disso, esses homens primitivos carregavam a semente do afeto e da amizade. E o praticavam, embora de maneira bem rudimentar. Mais tarde, terá sido habitual o espetáculo, nas bata­lhas com outras tribos inferiores, de os leais "andonitas" lutarem com uma só mão, protegendo com a outra um companheiro ferido.

Glória formulou uma de suas típicas e certeiras perguntas:

— Sabiam brincar?

— Pelo que sei, não exatamente. Eram muito propensos a imitar, mas o senso do brincar era neles pouco desenvolvido. O mesmo acontecia com o humor. . .

A senhora da Casa Azul lembrou-se de uma coisa de que jamais havia cogitado: de quando data o senso de humor entre os homens? É inato ou aprendido?

— Pode parecer-lhe incrível, mas o homem primitivo mal sorria e, ao que parece, não conheceu a risada nem a gargalhada. Essa condição humana que precisamente nos distingue dos ani­mais foi um legado muito posterior...

— Um legado? De quem?

— Não fica muito claro na "Quinta Revelação". Já lhe lembrei que há grandes lacunas nestas informações... Mas tudo parece indicar, como responsáveis por essa ascensão, homens de outra raça: a "adâmica".

"Definitivamente, aqueles "andonitas" primitivos não eram muito sensíveis à dor nem a situações desagradáveis que, com o passar do tempo e da evolução, aí sim, começaram a afetar os restantes seres humanos. Dar-lhe-ei um exemplo: Fonta e as "an­donitas" que lhe sucederam jamais pariram com dor. Essa cir­cunstância, hoje tão diferente, teve outras raízes... das quais já falaremos.

"E assim foram transcorrendo os anos. O clã original conser­vou sempre uma linha ininterrupta de chefes, até que, na vigésima sétima geração, o fato de não se ter dado o nascimento de filho varão na descendência direta de Sontad provocou revoltas internas pela chefia "andonita", a cargo de duas facções rivais.

"Explicavelmente, à medida que passava o tempo, os clãs "andônicos" foram crescendo em número e o contato entre as famílias em expansão acabou sendo inesgotável fonte de rixas e

mal-entendidos. É preciso compreender que o espírito desses pri­meiros povos achava-se dominado por dois princípios básicos: a caça e a guerra. O primeiro, fundamental para a conservação e de­senvolvimento dos seus membros. O segundo, para vingar-se das injustiças ou insultos (reais ou imaginários) lançados por tribos vizinhas. É praticamente impossível que seres primitivos cheguem a viver juntos, em paz. O humano, não nos esqueçamos, descende de animais combativos, e quando seres tão rudimentares convivem tão estreitamente, ofensas e agressões são inevitáveis.

"No caso dos primeiros "andonitas", as guerras não tardaram a eclodir entre as diferentes tribos. E houve muitas e irreparáveis perdas entre os membros mais valiosos e promissores. Tão trágicos foram os sucessos, e lamentáveis, que, afirma a "Quinta Revela­ção", algumas linhas genéticas dotadas de mais aptidões e inteli­gência perderam-se para sempre. Como se se tratasse de sombrio presságio — ponderou Sinuhe — aquela belicosidade ampliou-se de tal forma que a raça "andônica" atravessou momentos graves, chegando até mesmo ao risco de extinção total.

"Os "Portadores de Vida" conhecem essa tendência nas cria­turas evolucionárias e adotam disposições para dividir finalmente os humanos, ao menos em três raças diferentes e separadas e, ge­ralmente, em seis.

— Foi assim que nasceram as raças humanas e as diversas línguas?

— Os "Portadores de Vida" raramente atuam de forma drástica. Um de seus princípios básicos, que teria encantado Darwin — comentou Sinuhe com seu senso de humor —, é o pro­gresso pela evolução e não pela revolução. Antes da sua dispersão, os "andonitas" tinham uma linguagem comum e bastante aperfei­çoada. Essa língua continuou enriquecendo-se, através de contri­buições cotidianas, novos inventos e progressivas adaptações ao meio. Este testemunho afirma que aquela foi a primeira língua de IURANCHA, que prosperou até o ulterior aparecimento das ra­ças de cor. Raças de que lhe falarei amanhã...

 

A lua nova se aproximava. E Sinuhe, cada vez mais tenso, preocupava-se em ultimar aquele trasfego de informações. Glória teria de conhecer, mesmo que apenas superficialmente, o panora­ma do planeta naqueles primeiros tempos e, sobretudo, a verdadeira origem dele. Assim pois, não sem algum remorso, decidiu concluir o treinamento ainda naquela quarta-feira, 25 de julho.

— Como lhe referia, aquela série de batalhas acabou por mobilizar os clãs "andonitas". E começou a grande dispersão. As sucessivas gerações introduziram-se na África, mas não excessiva­mente. A geografia daqueles tempos os conduzia sempre para o norte. E a grande viagem prosseguiu sempre nessa direção, até que foram detidos pelo avanço lento da terceira glaciação.

"Mas, antes que o imenso manto de gelo os tivesse feito presa nas terras do que hoje são a França e as ilhas Britânicas, os des­cendentes de Anton e Fonta haviam avançado e progredido para o oeste, através da Europa atual. E ali levantaram mil povoados, ao longo dos grandes rios que desembocam no mar do Norte, cujas águas, então, eram cálidas.

Sinuhe alterou o tom da voz e, com certa emoção, anunciou para a companheira "algo" que os paleontólogos ignoram ainda.

— Segundo a "Quinta Revelação" os membros dessas tribos "andônicas" foram os primeiros povoadores das margens dos rios da França de hoje. Viveram, por dezenas de milhares de anos, junto ao Somme. É o único rio que em seu curso não foi afetado pelas geleiras. Naquelas épocas distantes corria para o mar, quase com a mesma trajetória de hoje. Eis porque os achados paleontológicos ao longo do seu leito contam-se na atualidade aos milha­res... O triste -- refletiu Sinuhe — é que os cientistas não sabem que tais restos humanos pertencem, nada mais nada menos, aos descendentes daqueles gêmeos históricos... Os verdadeiros pais da humanidade, se não nos enganamos.

"Esses primeiros povoadores de IURANCHA — continuou lendo — já não habitavam as copas das árvores, embora tivessem conservado o hábito de se refugiar nelas nos momentos de perigo. Viviam, em geral, ao abrigo dos penhascos, quase sempre sobre os rios ou em covas naturais nos alcantilados. Isso lhes garantia uma perfeita visibilidade dos acessos e os protegia dos elementos. Dessa forma, podiam desfrutar do calor das fogueiras sem que fossem incomodados pela fumaça...

— Eram os conhecidos trogloditas ou cavernícolas?

— Não exatamente. Só com o passar das idades e a chegada dos gelos, os descendentes daqueles "andonitas" Viram-se impe­lidos a buscar refúgio nas covas. A princípio, porém, preferiam acampar nos limites dos bosques e nas proximidades dos rios.

"Foram notáveis construtores de choças de pedra, em forma de domo ou cúpula, que camuflavam habilmente, e em cuja habi­tação dormiam e se resguardavam. Fechavam a entrada fazendo rolar uma grande pedra, que colocavam no interior antes de rema­tar o teto.

"Os "andonitas" eram caçadores hábeis e intrépidos. A dieta baseava-se na carne, complementada às vezes com bagas e frutos silvestres. E, assim como Andon foi o inventor da machadinha de pedra, seus sucessores criaram e utilizaram a lança e o arpão, tor­nando-se igualmente peritos no manejo de novas e cada vez mais refinadas ferramentas.

"Sob muitos aspectos, essas tribos "andônicas" deram exce­lentes provas de inteligência e progresso. Mais e melhores do que as que nos ofereceriam seus sucessores em quase meio milhão de anos. Mas... é outra história...

Aquela revelação de uns "primeiros pais" da humanidade, diferentes da tradição adâmica, cativou a senhora da Casa Azul. Glória teve de reconhecer, com Sinuhe, que aquela parecia mais "lógica" e natural que a de um Adão subitamente nascido do barro vermelho. Ambos haviam, desde crianças, feito a mesma pergunta: "Será que antes da criação de Adão e Eva, não havia outros seres humanos sobre a Terra?"

— Mas, se aceitamos a "Quinta Revelação" — esgrimiu a filha da raça azul —, onde e quando encaixamos Adão e Eva? Ou não terão existido?

— Vai aí uma opinião pessoal. Apesar de seus simbolismos, confusões, lacunas e, às vezes, acréscimos inoportunos, a Bíblia tem razão. Pelo pouco que sei, Adão e Eva existiram. Mas nem foram nossos primeiros pais (no sentido físico da expressão), nem sua história foi escrita e transmitida com fidelidade. Nesses arqui­vos secretos de IURANCHA, que você e eu devemos encontrar, está a verdade. A "verdade" (segundo a "Quinta Revelação", claro) sobre quem foram Adão e sua companheira e sobre os sucessos que protagonizaram.. .

Glória exclamou, sem poder conter-se:

— Então, que é que estamos esperando?

Sinuhe mostrou o céu, ao mesmo tempo que lhe pedia calma.

Lembre-se. . . a lua nova.

E o porta-voz da Escola da Sabedoria enveredou de novo por aquelas últimas páginas, nas quais se recolhia a definitiva dis­persão da raça "andônica"...

— Ao mesmo tempo em que os descendentes dos famosos gêmeos povoavam a Europa e as terras da Ásia, o nível cultural e espiritual das tribos retrocedeu lamentavelmente. Suas lutas e diferenças não tardaram a reativar-se, prolongando-se pelo espaço de mais dez mil anos. Aquela tenebrosa Era iria finalizar-se com a aparição de um humano excepcional: Onagar.

"A "Quinta Revelação" diz que esse "andonita" nasceu faz agora (1984) 983 373 anos. Assumiu a chefia da maior parte dos clãs e, à maneira do primeiro profeta e guia espiritual da Hu­manidade, pacificou-os, fazendo com que adorassem, pela primeira vez em IURANCHA, "Aquele que dá alento aos homens e aos animais".

— Eu pensei que Andon e Fonta adorassem a Deus.. .

— Não. Foi muito confusa a filosofia dos gêmeos. Andon terminou adorando o fogo, pelo bem-estar que lhes proporcionava. A razão o compelia para a adoração do Sol, mas tratava-se de uma "fonte" demasiado distante e aquele humano primigênio, co­mo tantos outros, caiu na veneração do fogo.

"Desde os primeiros tempos de sua existência como humanos, os "andonitas" experimentaram um temor profundo pelas forças da Natureza. Não compreendiam o trovão nem o raio nem tam­pouco o vento ou a chuva. Mas a fome, verdadeiro motor das vidas, os levaria finalmente à adoração de determinados animais. Para Andon e seus filhos, a carne dessas criaturas foi um símbolo da potência criativa e da fertilidade. E de vez em quando estabe­leciam o costume de designar alguns desses animais como objeto de veneração. Naquelas épocas, o animal eleito era pintado, em geral toscamente, nas paredes das cavernas. Mais avançado o tempo, esses deuses-animais eram representados com maior per­feição e sensibilidade. Logo, esses povos "andônicos" renunciaram a comer a carne do animal venerado pela tribo. Para criar im­pressões fortes no espírito dos jovens, chegaram a estabelecer toda uma série de ritos e cerimônias em torno desses animais sa­grados. E mais tarde essas celebrações primitivas transformaram-se em autênticos sacrifícios. Esta, nem mais nem menos, é a origem da introdução de sacrifícios rituais e cruentos nos cultos. A idéia foi sustentada, inclusive por Moisés, e conservada por São Paulo sob a forma da "doutrina de resgate por efusão ou der­ramamento de sangue".

Sinuhe valeu-se dos Evangelhos e leu em Hebreus (9,22):

— Diz Paulo: "Além do mais, segundo a Lei, quase tudo é purificado com o sangue, e sem derramamento de sangue não há remissão."

"Mas continuemos com os "andonitas" e esse curioso perso­nagem, Onagar. O alimento, como eu lhe dizia, tinha importância capital para aquela gente. Hoje, talvez, custe-nos compreendê-lo. E no entanto, segundo a "Quinta Revelação", esse capítulo vital nas vidas dos primeiros humanos levaria Onagar (o grande ins­trutor) à elaboração da primeira oração de que se tem notícia na Terra. Diz assim: "Oh, sopro de Vida! Dá-nos hoje nosso alimento diário. Livra-nos da maldição do gelo. Salva-nos dos nossos ini­migos dos bosques e recebe-nos com misericórdia no Grande Além."

— A primeira oração humana! — sussurrou Glória.

— A primeira, sim. Mas aquele Onagar, providencial, levaria adiante outras muitas e memoráveis ações.

— Onagar — prosseguiu Sinuhe — tinha seu quartel-general em Obar, uma colônia situada na orla setentrional do antigo mar Mediterrâneo, que hoje é a região do mar Cáspio. Era um ponto estratégico, pois a rota procedente da Mesopotâmia meridional em direção ao norte cruzava com os caminhos do oeste, rumo à Europa. E dali Onagar foi enviando educadores a todas as tribos, com a missão de propagar sua fé em uma Deidade única e em uma vida futura que ele chamava o "Grande Além". Foram, em realidade, os primeiros "missionários" de IURANCHA. Gra­ças também a Onagar, os "andonitas" passaram a cozer a carne. Assavam-na sobre pedras previamente aquecidas ou na ponta dos seus bastões. Esse costume saudável, entretanto, acabou por per­der-se e os descendentes retornaram à ingestão de carne crua e sanguinolenta, com os conseqüentes riscos sanitários.

"Esse grande mestre, filósofo e chefe espiritual da raça "andônica", foi o primeiro artífice disso que hoje poderíamos definir como progresso. Instituiu um governo tribal e pioneiro na Terra, organizando os homens de acordo com autênticas pautas so­ciais. Ele morreu aos 69 anos, legando à humanidade toda uma promissora "Idade de ouro". A primeira de IURANCHA. Des­graçadamente, após esse florescer humano, os novos povos foram olvidando os ensinamentos de Onagar e caindo em caos progressi­vo, em idolatria e bestialidade.

"E relata ainda a "Quinta Revelação que, embora Andon e Fonta e muitos descendentes recebessem seus respectivos harmonizadores de pensamento, foi a partir de Onagar que inumeráveis harmonizadores e anjos da guarda chegaram à Terra.

"Mas, como eu lhe dizia, aquela primitiva humanidade, longe de progredir tal como estava previsto, retrocedeu. E durante quase 500 000 anos, até o momento em que IURANCHA recebeu seu primeiro príncipe planetário (o nefasto Caligastia), os homens se espalharam pelo mundo, cegados pelas trevas espirituais mais tétricas que possamos imaginar.

"E a "Quinta Revelação" finaliza a trepidante história dos gêmeos, com as seguintes palavras: "Andon e Fonta, os admiráveis fundadores da raça humana primigênia, receberam a consagração do próprio valor no momento do julgamento de IURANCHA, depois da chegada de Caligastia. E no momento conveniente emergiram do mundo de 'Moroncia ou das Casas', com a cate­goria de 'cidadãos de Jerusem'. Embora jamais tenham sido autorizados a regressar à Terra, conhecem a raça que fundaram, sofreram angústia pela traição do príncipe planetário e entristece­ram-se com o malogro de Adão e Eva. Mas encheram-se infinita­mente de gáudio com a notícia de que Micael escolhera o mundo deles para cenário de sua encarnação última.

"Em Jerusem, Andon e Fonta se fundiram com seus respec­tivos harmonizadores mentais, como o fizeram também muitos dos seus filhos, Sontad incluído. Entretanto, a maior parte dos descen­dentes, entre os quais muitos imediatas, só conseguiram a fusão com o Espírito. Pouco depois de chegados a Jerusem, os gêmeos receberam do Soberano do sistema autorização para voltar ao Primeiro Mundo de Moroncia e, dali, servir os 'peregrinos as­cendentes' de IURANCHA. Foram agregados a essa missão por tempo indeterminado. Por ocasião das presentes revelações, Andon e Fonta tentaram fazer chegar seus melhores votos para IURAN­CHA, mas a petição foi sabiamente rejeitada.

"Este (conclui a 'Quinta Revelação') é o capítulo mais he­róico e apaixonante da história de IURANCHA: o relatório da luta pela vida, da morte e da sobrevivência eterna dos 'pais' ex­traordinários de toda a humanidade."

 

Sinuhe tornara a mencionar um nome que intrigava podero­samente a filha da raça azul: Caligastia, o príncipe do planeta IURANCHA. Perguntou por ele.

O amigo repetiu-lhe o que ela já sabia:

— Há vários momentos na "Quinta Revelação" em que a informação é mais detida. Este é um deles. . .

"Sabemos que o primeiro príncipe planetário da Terra foi o tal Caligastia. Sabemos também que apareceu em IURANCHA há cerca de 500 000 anos. Isto é, exatamente quando os descendentes de Andon e de Fonta haviam caído, já o lembramos, em uma Era de trevas. Sabemos igualmente que esse ser celeste e seu Estado-Maior (permita-me a licença) desempenharam papel decisivo no ressurgimento da humanidade. Mas "algo" não deu certo. E eis que é esse "algo" o que nós (você e eu) devemos verificar. Minhas informações acusam a Lúcifer como responsável direto por esse "problema", ou seja lá o que for, de tão nefastas repercussões, passadas e presentes, para o planeta.

"Posso dizer-lhe unicamente que a "Quinta Revelação" deixa entrever que esse "fracasso" do príncipe de IURANCHA poderia estar relacionado com a rebelião. Mas, se devo ser sincero, tudo são especulações. A verdade, não a conhecemos. A verdade está escondida nesses arquivos que temos de encontrar. . .

"500 000 anos? Caligastia? Um Estado-Maior celeste? Um fracasso? Lúcifer e seu motim?"

Eram perplexidades demais para a filha da raça azul e tam­bém para Sinuhe. Mas a irritante situação, em lugar de intimidá-los, avivou-lhes a curiosidade. Sim, era preciso localizar esses malditos arquivos secretos e saber que foi que aconteceu naquela obscura e remota época da humanidade.

— E nisso tudo — insistiu Glória — onde figura a chamada "raça azul"?

— Já chegamos lá. Segundo consta desta documentação se­creta, justamente nos tempos em que Caligastia foi enviado para IURANCHA (há meio milhão de anos, você sabe), surgiram no planeta os primeiros indivíduos de cor. E, diz a "Quinta Revela­ção", esses indivíduos nasceram do mesmo pai e da mesma mãe: dois exemplares de inteligência notável, assentados, então, em uma tribo do nordeste da índia atual. Essa família foi conhecida como Sangik. Tiveram dezenove filhos: cinco vermelhos, dois alaranjados, quatro amarelos, dois verdes, quatro azuis e dois violáceos. E deles germinariam todas as raças de cor conhecidas na Terra.

Glória, estupefata, fitou o amigo com benevolência meio irônica.

— Já sei — antecipou-se Sinuhe, adivinhando o fundo ceti­cismo da interlocutora —, sei o que você está pensando. Mas permita que eu cumpra com a primeira parte da minha tarefa: informá-la sobre o que diz textualmente essa "revelação"...

"A extraordinária miscigenação que se deu em IURANCHA (prossegue o texto) em virtude das migrações e das guerras, oca­sionou uma situação nada fácil de estudar e definir. Digamos simplesmente que as raças alaranjada e verde foram praticamente exterminadas. Que a vermelha, escorraçada da Ásia pela amarela, emigrou para a atual América pela ponte terrestre de Bering. Que as raças de tipo negróide originam-se da índigo ou violácea e que a branca descende daqueles primeiros indivíduos de pele azulada."

— A raça azul! Então, não compreendo... Se o homem branco atual procede dessa primitiva raça azul, por que você diz que sou a filha da raça azul?

A perturbação que aquela passagem provocou na senhora da Casa Azul era compreensível. Então Sinuhe tratou de deixar as coisas no devido lugar.

— Não se precipite. Há alguma coisa que você ainda igno­ra. ..

— Você tem razão em um ponto. Eu, um homem de raça branca, como tantos e tantos milhões no mundo, provavelmente procedo dessa suposta raça azul de que fala a "Quinta Revelação". Mas seu caso é diferente. . .

Glória fulminou-o com o olhar.

— Que é que você quer dizer?

— A partir de informações, corroboradas por mim e por outros.. . digamos "amigos", dos quais não lhe posso falar agora, você, Glória, é uma das últimas representantes de outra raça azul. Uma raça de que não lhe falei ainda, entre outras razões porque não disponho quase de informação.

Glória fez um trejeito que lhe refletia o desalento diante de semelhante galimatias.

— Houve, diz aqui, uma raça azul primigênia — continuou Sinuhe, com uma parcimônia de paquiderme — nascida dessa fa­mília chamada Sangik, há uns 500 000 anos. E, desses supostos quatro indivíduos azuis, derivaram os homens brancos. Porém, muito tempo depois... Insisto: sempre segundo a "Quinta Reve­lação". ..

— Pelo amor de Deus! Quer ir ao núcleo?

— Sim, perdão...

Sinuhe compreendeu a impaciência da "aluna". Tentou não cair em novos rodeios ou circunlóquios.

— ... Muitos anos mais tarde (não lhe posso precisar a data), quando os primeiros indivíduos "azuis" já haviam desapa­recido para dar lugar aos brancos, IURANCHA viveu outro su­cesso extraordinário: a chegada de uns seres alheios à Humanidade (preste muita atenção nisso) de cor azul ou talvez violeta. Isto também não aparece claro na "Quinta Revelação". E esses seres, talvez celestes, procriaram novos humanos, que também se multi­plicaram e se estenderam pelo globo terrestre. E, pelas informa­ções que tenho, você (é isso, você) seria a última, ou uma das derradeiras, representante ou "filha dessa segunda raça azul"...

Glória guardou silêncio. Mal teve forças para murmurar:

— Eu?... Mas quem eram esses "pais" da segunda raça azul?

Sinuhe não respondeu.

Glória sabia que o amigo ocultava — como quase sempre — muito mais do que contava. Fez então o impossível para pressio­ná-lo. O investigador, porém, conservava-se impenetrável. Entre­tanto, ali ele foi sincero:

— Eu a enganaria se não lhe dissesse que tenho (ou temos) uma suspeita mortificante sobre quem foram, em realidade, esses progenitores da última e transcendental raça azul... Mas foi-me terminantemente proibido difundir o que verdadeiramente só é uma suposição. Confie em mim. Essa, querida amiga, é outra ra­zão por que estou aqui, com você: devemos desvendar o mistério que vem envolvendo esses "pais" da segunda raça azul.

— Por quê? — esgrimiu Glória, tentando que o amigo mor­desse a isca —. Por que é tão importante saber quem foram esses forasteiros?...

Sinuhe limitou-se a esboçar um interminável sorriso. A se­nhora da Casa Azul teve de resignar-se.

 

A instrução intensiva da filha da raça azul estava pra­ticamente terminada. Foi o que Sinuhe lhe fez ver, fechando a volumosa e misteriosa fonte de informação: aquela que ele deno­minava "Quinta Revelação".

— Se bem compreendi — recapitulou Glória — nossa missão consiste em localizar os arquivos secretos de IURANCHA, em poder dos rebeldes desde que eclodiu a rebelião de Lúcifer. Correto?

Sinuhe moveu a cabeça silenciosa e afirmativamente.

— Se não me engano — continuou a companheira, que recuperara seu equilíbrio habitual —, nesses arquivos está a in­formação completa sobre as causas da rebelião, sobre suas conse­qüências na Terra e sobre a identidade desses seres que procria­ram, em IURANCHA, a raça azul, da qual eu faço parte...

— Você se está esquecendo de alguma coisa. Nesses arquivos encontra-se também a possível explicação de por que Caligastia teria fracassado e sobre quem foram na verdade Adão e Eva. E qual pode ter sido a natureza do seu histórico erro...

— E você por acaso pretende que nós dois descubramos esses arquives? Você está louco?

— De qualquer forma — corrigiu-a com afeto — maravi­lhosamente loucos!

Glória assentiu.

— Mais perguntas? — interveio Sinuhe, por cuja mente voltava a rondar a idéia de visitar a torre do velho casarão da Câmara Municipal. Faltavam 48 horas para a lua nova, e o tempo corria.

— Mais perguntas? Milhares, eu diria! Mas neste instante só quisera propor uma... Ou talvez não passe de uma simples re­flexão. ..

— Você dirá...

— Se o nascimento ou "semeadura" da Vida em nosso mun­do foi obra dos chamados "Portadores de Vida", e se esses seres celestes se movem e atuam segundo planos e padrões perfeitamen­te estudados, por que a humanidade de IURANCHA teria fra­cassado?

Sinuhe respondeu à pergunta direta e dura; no início, com grave silêncio. Depois, retomando a "Quinta Revelação", buscou-lhe entre as páginas.

— Podemos falar de "fracasso"... em parte. Mais: adianto-lhe que boa dose dessa falha relativa dos homens pode ter tido suas raízes em outros seres... não humanos. Como você percebe, voltamos a um dos objetivos da nossa missão. Mas, já que você tocou no assunto, deixe-me que lhe exponha algumas das noções que, neste sentido, dizem terem sido transmitidas pelos próprios "Portadores de Vida", e que constam destas "revelações". Para começar, IURANCHA, como você sabe, é um planeta decimal. Em conseqüência, sujeito a maiores problemas de indisciplina e alterações do que parece ser o "plano cósmico universal"...

— Em outras palavras — Glória simplificou — não passa­mos de "porquinhos da índia". . .

— Se a "Quinta Revelação" estiver certa, essa expressão (embora com certa base), soaria, pelo menos, irreverente... .

— Desculpe! Você sabe que não é minha intenção... Sinuhe, no fundo, também pensou nisso uma que outra vez.

Porém, mudava quando se tinha acesso àquela parte da informa­ção secreta. Continuou:

— Vimos como Andon e Fonta, os gêmeos e nossos "pri­meiros pais", surgiram de um tronco, que teve duas grandes ra­mificações: uma regressiva, que deu origem aos macacos, e outra progressiva, da qual floresceu o ser humano propriamente dito. E esse "tronco comum", de acordo com a "Quinta Revelação" e a ciência hodierna, pôde ter sido formado por uma espécie de seres "hominídeos" ou pré-humanos. Quem sabe? Talvez esses Australopithecus, cujos restos se encontraram na África...

"Quero, com isso, conduzi-la a uma questão-chave: você crê que a súbita aparição dos gêmeos em uma "família" de pré-huma­nos ou primatas deveu-se a uma casualidade? Ou pode ter sido fruto de uma evolução... inteligentemente conduzida?

 

A senhora da Casa Azul, como já o supunha o membro da Escola da Sabedoria, não se pronunciou. Quem poderia e quem poderá, contando apenas com a razão, iluminar semelhante enigma?

Sinuhe, tendo advertido a companheira sobre a dificuldade de alguns dos termos que lhe desvelaria, arremeteu com a que se­ria a última "informação" antes da grande partida.

— Em relação ao que "eles" (os "Portadores de Vida") chamam o "supercontrole da evolução", estes documentos dizem, entre outras coisas, que "a vida material evolucionária" (vida anterior à aparição da inteligência propriamente dita) redunda de uma colaboração entre os Mestres Controladores Físicos e o mi­nistério de Transmissão de Vida, através dos sete Espíritos Mes­tres em conjunção com os ativos cuidados dos Portadores de Vida responsáveis. Em conseqüência do funcionamento coordenado des­sa tríplice atividade criadora, desenvolve-se uma aptidão físico-orgânica para pensar mecanismos materiais, destinados a reagir inteligentemente aos estímulos do meio exterior e, posteriormente, aos que chegam do próprio órgão pensante. De acordo com isso, são três os níveis de geração e evolução da vida:

"1. O nível físico-energético, ou produção da aptidão mental.

"2. O ministério de inteligência dos espíritos agregados, pro­cedendo e preparando a aptidão espiritual.

“3. A dotação espiritual da inteligência humana, que culmina com a concessão dos "harmonizadores de pensamento".

"Os níveis, não passíveis de serem ensinados, de reação ma­quinai do organismo em torno, constituem o domínio dos Contro­ladores Físicos. Os Espíritos Mentais Agregados ativam e regulam os tipos de inteligência adaptáveis ou não-maquinais (mecanismos de reação de organismos capazes de aprender por experiência). E da mesma forma que os Agregados Espirituais manipulam as po­tências da mente, os Portadores de Vida exercem um controle discricional considerável nos aspectos ambientais dos processos revolucionários, até o momento em que aparece a vontade huma­na, a aptidão para conhecer a Deus e a faculdade de escolher adorá-lo.

"É a atividade integrada dos Portadores de Vida, dos Con­troladores Físicos e dos Agregados Espirituais a que condiciona o curso da evolução orgânica nos mundos habitados...

Sinuhe levantou a vista e percebeu como Glória, obviamente, tornou a perder o fio daquelas palavras indecifráveis.

— Talvez possamos resumir tudo o que foi dito com uma frase tão singela quanto transcendental: a evolução, em IURAN­CHA ou em qualquer outro planeta, é sempre premeditada, nunca acidental.

— Isso não agradará a cientistas e racionalistas — sussurrou Glória, divertida.

— Não, evidentemente... Mas para você e para mim é tranqüilizador.

— Pelo que vejo, e como suspeitava, esses curiosos "Porta­dores de Vida" — comentou Glória — exerceram papel importan­tíssimo na "semeadura" da Vida..,

— Na "semeadura" e em qualquer coisa mais... — retificou Sinuhe — Observe o que se diz a seguir: "Esses seres (os Porta­dores) são dotados de potenciais de metamorfose da personalida­de. Poder que poucas categorias de criaturas celestes possuem..."

Após uma pequena pausa, baixando o tom de voz, o inves­tigador confessou à companheira:

— Se é verdade que algum dia vamos ressuscitar nesses Mundos de Moroncia, sabe que papel ou nova "profissão" me agradaria mais?

A filha da raça azul conhecia bem as idéias peregrinas do velho amigo. Assim, aguardou algum disparate.

— Portador de Vida... Fosse tudo isso certo, e supondo-se que se pode escolher, eu ficaria encantado por dedicar "meu tem­po" à "semeadura" da Vida por outros mundos...

Glória não percebeu se ele falava sério ou de brincadeira.

— Mas continuemos. O que acontece quando esses Porta­dores de Vida se preparam para uma nova "semeadura", assim como parece ser que aconteceu em IURANCHA?

— Uma vez eleito o lugar ideal para a "semeadura", os Portadores (diz a "Quinta Revelação") convocam a chamada Comissão Arcangélica de Transmutação. Integram esse grupo dez ordens de personalidades diversas, compreendendo os Controla­dores Físicos e seus associados. Preside a Comissão o chefe dos arcanjos, atuando por ordem de Gabriel e com a autorização dos Anciãos dos Dias. Quando esses seres se encontram "em circuito", podem efetuar nos Portadores de Vida modificações que lhes permitirão operar de imediato ao nível físico da eletroquímica.

"Formulados os arquétipos de vida (note como isso é impor­tante), devidamente complementadas as organizações materiais, as forças supramateriais implicadas na propagação da Vida ativam-se, e a Vida "nasce": manifesta-se.

"Nesses momentos, os Portadores de Vida são imediatamente recolocados no estado "mediano" habitual (quase "moroncial") de sua personalidade. Nesse segundo nível os Portadores podem manipular os elementos viventes e manobrar os organismos em evolução, mas atenção: já não podem criar nem organizar novos arquétipos ou formas de matéria vivente. Ainda mais: quando a evolução orgânica segue já determinado curso e o discernimento ou livre arbítrio (de tipo humano) faz sua aparição nos organismos mais elevados, esses Portadores são constrangidos a sair do pla­neta ou a prometer renúncia...

Glória, cheia de curiosidade, perguntou:

— E se falham esses planos evolutivos dos Portadores?

— Então, nesse caso, a sabedoria das personalidades celestes chega a um extremo tal que, pelo que tenho entendido, existem outras "medidas" de correção. Por exemplo, uns seres cósmicos chamados...

Sinuhe hesitou^ Devia pronunciar aqueles nomes, se nem se­quer tinha certeza?

— ... uns seres cósmicos chamados Adão e Eva — concluiu finalmente.

A senhora da Casa Azul, sorte para Sinuhe, não se deu conta do que acabava de ouvir. Ele, rápido e vivo, aproveitou o lapso da companheira, enfronhando-se de novo nó tema dos Portadores de Vida.

— Em outras palavras: que esses incríveis seres celestes (os Portadores), uma vez terminada sua tarefa, têm de comprometer-se a não interferir na evolução orgânica. Seja qual for o resultado.

"Se os Portadores não abandonam o mundo (ouça até que extremo existe um controle da Vida) e, como segunda alternativa, decidem fazer voto de renúncia, permanecendo assim no planeta, para aconselhar no futuro àqueles que terão a missão de proteger as criaturas recentemente evolucionadas, convoca-se uma comissão de doze membros, presidida pelo chefe das "Estrelas da Tarde". Essas doze personalidades atuam a mando do Soberano do sistema em questão, e com a devida autorização de Gabriel. Nesse caso, os citados Portadores de Vida são transmudados ao terceiro nível ou fase de sua existência: o chamado semi-espiritual. O Portador de Vida de Nebadon, que divulgou esta parte da "Quinta Revela­ção", diz de si mesmo, neste sentido: "Sempre atuei em IURANCHA debaixo dessa terceira fase ou forma de existência, depois da época de Andon e Fonta. Esperamos com satisfação o momento em que o universo ancore na luz da Vida, talvez um quarto es­tado de existência, em que seremos totalmente espirituais; mas a técnica que nos proporcionará esse superior e desejável estado ou natureza, essa, nunca nos foi revelada".

— Três ou quatro níveis ou fases de existência? — pergun­tou Glória, pensando ter entendido mal.

— Três estados, sim, para esses Portadores de Vida. Primei­ro: o físico da eletroquímica. Segundo: a fase "mediana" ou quase "moroncial", que (diz aqui), seria uma matéria "entre o físico e o espiritual". A "matéria" que constituirá nosso "supor­te físico" ou "corpo", uma vez ressuscitado... E terceiro, o nível semi-espiritual avançado, que é o estado em que se encontra nestes momentos o mencionado Portador de Vida. E ainda deve existir um quarto nível ou fase... Mas prossigamos com nossa história: como surgiu o homem na Terra e como atuaram esses Portadores de Vida?

 

— A história da ascensão dos humanos (reza a "Quinta Revelação"), desde o estado de alga marinha até o domínio das criações terrestres, não é mais que uma epopéia de combates bio­lógicos e de sobrevivência mental.. .

— Quem foram, concretamente, os primeiros e autênticos antepassados do homem?

— Embora nos pese, procedemos do barro e do limo (lite­ralmente) depositados no fundo dos mares interiores e das lagoas de águas cálidas e estancadas nas costas desses mares. Aí, de acordo com estes dados, estabeleceram os Portadores as três im­plantações de Vida. Mas, daqueles tipos primitivos de vegetais marinhos, que proporcionaram as históricas mutações e delas participaram até dar lugar à vida animal, pouquíssimos subsistem ainda hoje. As esponjas, por exemplo, constituem um desses he­róicos sobreviventes... Os animais monocelulares de tipo primitivo não tardaram a formar colônias, como ocorre com os corais e as famílias da medusa. Mais tarde apareceram, por evolução, as es­trelas do mar, crustáceos, holotúrias, ouriços, insetos, aracnídeos etc, assim como os grupos mais próximos às minhocas e sangues­sugas, seguidos, depois, por moluscos, ostras, polvos e caracóis. Centenas de espécies surgiram e se extinguiram. As que menciona­mos (diz ainda a "Quinta Revelação") são aquelas que sobrevi­veram mas que, tal como a família dos peixes, aparecida mais tarde, representam na atualidade os tipos de animais estacionários que não conseguiram progredir...

"O cenário achava-se preparado, pois, para a aparição dos primeiros animais vertebrados: os peixes. E destes, com o passar de milhões de anos, derivaram duas modificações excepcionais: a rã e a salamandra. . .

Sinuhe virou-se para Glória, e comentou com uma ponta de ironia:

— E aqui se diz, definitivamente, "que o homem é homem graças à rã". Como já vimos, foi ela que, parece, inaugurou a longa série de diferenciações que desembocariam no ser humano pro­priamente dito...

— A rã? Quem o diria. . .

— Sim, segundo isto, trata-se de um dos mais antigos sobre­viventes dentre os ancestrais da raça humana.

A filha da raça azul lembrou-se então — talvez por associa­ção de idéias —, daquele velho conto infantil, em que um príncipe é presa de encantamentos malignos e transformado em sapo ou rã e vice-verso. Perguntou-se o porquê da existência de tal conto. Será que no mais íntimo dos genes humanos palpita ainda algum tipo de informação que nos lembre esse remoto pretérito?

— A rã — foi continuando o investigador — é o único antecessor da raça humana que ainda vive sobre o planeta. Todas as espécies intermediárias entre a rã e o esquimó desapareceram. As rãs permitiram o nascimento dos répteis (muitas famílias tam­bém já se extinguiram) e estes, por sua vez, propiciaram a aparição das aves e de ordens de mamíferos. O marco maior de toda a evo­lução pré-humana se deu quando o réptil voou como pássaro.

"No total, apareceram em IURANCHA catorze phylum (espécie celular, mãe de uma série de seres que formam um ramo zoológico)...

— Não são muitos — desafiou Glória.

— Não, é verdade. Os peixes formam o último e nenhuma classe nova se desenvolveu depois dos pássaros e mamíferos. E você continuará perguntando-se como terá sido a manipulação desses Portadores de Vida para que terminassem por arrancar nossa espécie humana. Foi a partir de um pequeno e ágil dinos­sauro. De um réptil de costumes carnívoros, mas dotado de um cérebro relativamente importante...

— Procedemos de um dinossauro? — exclamou a filha da raça azul.

— Não de todo. Foram os primeiros mamíferos placentários os que, segundo estes papéis, nasceram desse dinossauro. E tais mamíferos placentários (dos quais é um exemplo a família do canguru) desenvolveram-se vertiginosamente e por caminhos bem diferentes. Não só deram origem às variedades comuns e conheci­das hoje em dia, mas também a formas marinhas, como é o caso da foca e da baleia. Registraram-se ainda variantes "aéreas", co­mo, por exemplo, o morcego.

"O homem evoluiu, portanto, a partir dos mamíferos supe­riores, derivados principalmente da implantação levada a efeito nas áreas ocidentais do planeta; sobretudo naquela efetuada nos antigos mares abrigados e com uma orientação este-oeste. Quanto aos grupos oriental e central de organismos viventes, estes progre­diram favoravelmente no seu princípio em direção aos níveis pré-humanos de existência animal. Mas, à medida que se passaram as Eras, esse foco oriental de vida foi incapaz de alcançar um nível satisfatório frente a um possível Estatuto Pré-humano de Inteli­gência. Sofreu perdas irreparáveis em seus tipos mais promissores e de maior elevação em seu plasma germinativo, de tal forma que acabou por desaparecer.

"Como a qualidade de aptidão mental em desenvolvimento fosse claramente inferior no grupo oriental, em comparação com os outros grupos, os Portadores de Vida (com o consentimento de seus superiores) manipularam o meio ambiente de forma a pro­porcionar vantagens às tendências pré-humanas inferiores da vida evolutiva. E, segundo as aparências exteriores, a eliminação dos grupos inferiores de criaturas foi acidental. Foi outra a realidade: esteve tudo perfeitamente premeditado.

"Em data ulterior ao desdobramento evolucionário da inteli­gência, os antecessores lemurianos da espécie humana estavam muito mais avançados na América do Norte do que nas demais regiões. Foi por essa razão (fala a "Quinta Revelação") que se lhes induziu a deixar o espaço da implantação da vida no Ocidente de IURANCHA para passar pela ponte de Bering, ao longo da costa, até o sudoeste da Ásia, como você já sabe. Ali, continua­ram evolucionando, beneficiando-se de certas tendências trazidas pelo grupo central de vida. O homem, pois, evolucionou a partir de certas linhas vitais do centro-oeste, mas nas regiões do centro-leste do mundo.

"E assim, chegamos à Era glacial: época em que pela primei­ra vez surge uma parelha humana: os gêmeos Andon e Fonta...

— E por que justamente nesse momento, por que não em outro?

— Aparentemente, os Portadores de Vida fixaram essa Era por uma razão básica: "Os rigores e a severidade climatológica (diz aqui) da Era glacial estavam perfeita e minuciosamente programados para obter um fim: estimular a produção de um tipo robusto de ser humano, dotado de prodigiosa aptidão para sobre­viver."

Contemplando a amiga, Sinuhe acrescentou:

— Estranho. Muito estranho.. .

— Mas não é menos estranho o que vem a seguir — afirmou o membro da Escola da Sabedoria, emendando com outro capítulo não menos polêmico —. No dia em que essa "Quinta Revelação" se torne definitiva e oficialmente pública em todo o mundo, não será fácil explicar aos pensadores como se produziram alguns dos sucessos, aparentemente grotescos, que cercaram a evolução hu­mana. A despeito das teorias e hipóteses em moda, todas essas evoluções dos seres vivos perseguiram plano preconcebido. "En­tretanto (narram os Portadores de Vida), quando esses arquétipos viventes começam a funcionar por si mesmos, nós não temos o di­reito de arbitrar sobre o desenvolvimento deles."

— Que quer dizer essa última assertiva?

— Que os Portadores podem utilizar todos os meios naturais possíveis e todas as circunstâncias fortuitas susceptíveis de contri­buir para o progresso evolutivo da experiência de vida, mas não lhes é permitido intervir mecanicamente na evolução vegetal ou animal, nem tampouco obrar a bel-prazer no curso e orientação dessa experiência vital.

— E se aquela famosa rã — veio Glória, com sua acuidade — tivesse sofrido algum acidente lamentável? De acordo com isso, adeus humanidade!.. .

Sinuhe desaprovou com a cabeça.

— Nada disso. O Portador de Vida de Nebadon, residente em IURANCHA e autor destas páginas da "Quinta Revelação", sai precisamente de encontro a esse argumento, e diz: "Vós aprendestes que os mortais de IURANCHA desenvolveram-se por evo­lução, a partir de uma rã primitiva, e que essa linha ascendente iniciou-se potencialmente pela única rã que escapou, por pouco, à destruição. Não devemos deduzir daí que a evolução da humanidade se tivesse detido por semelhante acidente e naquele mo­mento crítico..."

Sinuhe interrompeu a leitura e pediu à companheira que meditasse sobre a passagem que já ia ler.

— ... "Naqueles tempos (diz o Portador de Vida), obser­vávamos e também cuidávamos de pelo menos um milhar de linhas de vida: mutantes, diversificadas e muito afastadas umas das outras, que teriam podido ser dirigidas para diversos arquéti­pos de desenvolvimento pré-humano. A rã ancestral em pauta representava nossa terceira seleção. As duas primeiras linhas ma­lograram, apesar dos nossos ingentes esforços por conservá-las."

— Quer dizer — concluiu a senhora — que já estava tudo previamente estabelecido e programado...

—É incrível; e até que extremo — disse Sinuhe, com um laivo de fatalismo —. Está dito aqui: "Nem mesmo a perda dos gêmeos, antes que tivessem procriado descendência, teria podido impedir a evolução humana. Quando muito, atrasado."

— Em outras palavras, se não tivéssemos partido da rã, tê-lo-íamos feito do crocodilo ou do cavalo...

Sinuhe não deu muita atenção às ironias de Glória. Con­tinuou:

— Depois da aparição de Andon e Fonta, e antes que os potenciais mutantes humanos da vida fossem esgotados, não evolucionaram menos que 7 000 linhas favoráveis, que teriam podido alcançar algum tipo humano de desenvolvimento. Muitas dessas boas linhas foram ainda assimiladas, mais tarde, pelos diferentes ramos da raça humana, em plena expansão.

Fez-se silêncio. Os dois trocaram um olhar significativo. Olhar que talvez se tivesse podido traduzir nos seguintes termos:

"Nascerá em algum futuro um novo tipo de homem, partin­do, precisamente, de qualquer dessas linhas de animais com capacidade de mutação?"

"A Divindade e seus 'intermediários' podem ter previsto, inclusive, a extinção da raça humana atual e o nascimento, em épocas vindouras, de um novo homem?"

 

Foi Glória, uma vez mais, quem se atreveu a formular em voz alta os seus pensamentos.

O amigo, embora sob esse ponto de vista não se achasse muito de acordo com a "Quinta Revelação", fez um gesto de im­potência e continuou a leitura:

__ A humanidade deve resolver seus problemas de desen­volvimento mortal sobre IURANCHA com a ajuda dos recursos humanos de que dispõe. "Nenhuma raça nova" — leu, ruminando cada palavra — "evoluirá no futuro a partir de fontes pré-humanas!" Você está percebendo? Segundo isto, não haverá novas nem futuras "humanidades" sobre a Terra. Somos os últimos...

"Isso não descarta (ainda a "Quinta Revelação") de modo algum a hipótese de que o homem consiga níveis muito mais altos de desenvolvimento, se mantiver inteligentemente os potenciais evolucionários que subsistem ainda dentro das raças humanas. O que nós, os Portadores de Vida, fazemos por conservar e promo­ver, antes que a vontade humana apareça nessas linhas viventes, devem os homens consegui-lo por si mesmos, já que nós nos reti­ramos de qualquer participação ativa na referida evolução."

"Em outras palavras — resumiu Sinuhe — diz que, a partir de determinado momento da existência humana, o destino do ho­mem repousa única e exclusivamente em suas próprias mãos.

"... E a inteligência científica, cedo ou tarde, deve substituir o caótico funcionamento de uma seleção natural não controlada e de uma sobrevivência. . . submersa no acaso."

Na mente da filha da raça azul agitavam-se sempre as per­guntas. Uma delas, já a ponto de esfumar-se entre tantas outras, reapareceu-lhe quando do comentário do repórter.

— Se não me engano, IURANCHA foi um dos últimos mundos do nosso universo local em que se "semeou" a Vida.

— Correto.

— Bem, nesse caso é natural imaginar que nossa forma física é similar à de outros habitantes de milhões de planetas...

— Embora a "Quinta Revelação" esclareça que IURANCHA constituiu um ensaio (um planeta decimal), em que os Portadores de Vida efetuaram sua tentativa número 70 para modificar e melhorar "a adaptação ao sistema de Satânia dos arquétipos de vida de Nebadon", é evidente que somos nós, os humanos, que nos parecemos com os extraterrestres e não eles conosco. . . Entre outras razões porque, se tudo isso for verdade, "eles" são muito mais velhos ou antigos no tempo.

"Com relação a esse tema, os próprios Portadores dizem: "Reconhece-se que realizamos numerosas mudanças benéficas nos tipos padrões de vida. Para sermos precisos, elaboramos sobre IURANCHA, com resultados satisfatórios, no mínimo vinte e oito pormenores de modificação de vida, que em tempos futuros serão úteis para todo Nebadon. Entretanto (e com isso respondo tam­bém à sua pergunta), nunca, em planeta algum, pratica-se um en­saio de vida que não tenha sido estudado previamente. A evolução da vida é sempre uma técnica progressiva, diferenciada e variável, embora nunca seja utilizada às cegas, sem controle, nem em uma direção experimental que se possa ver subitamente alterada por algo acidental.

"Numerosos traços da vida humana (afirmam os Portadores) provam fartamente que o fenômeno da existência mortal foi inte­ligentemente concebido e preparado; que a evolução orgânica não é um simples acidente cósmico. Uma célula ferida é capaz de ela­borar certas substâncias químicas, por exemplo, que têm o poder de estimular e ativar as células sãs e vizinhas, de forma que estas segreguem imediatamente outros produtos que facilitam os pro­cessos de cura da ferida. Ao mesmo tempo, as células normais e intactas começam a proliferar, criando novas células capazes de tomar o lugar das que se destruíram.

"Essa série de ações e reações químicas, que promovem de­finitivamente a cura das feridas e a reprodução das células, repre­senta a eleição (feita pelos Portadores de Vida) de uma fórmula que abarca mais de cem mil fases e reações químicas, com todas as suas repercussões biológicas possíveis. Mais de meio milhão de experiências científicas foram efetuadas pelos Portadores de Vida em seus laboratórios, antes que adotassem a fórmula definitiva para a experiência de vida em IURANCHA.

"Quando os sábios deste planeta conhecerem tais substâncias químicas.curativas, poderão tratar as feridas mais eficazmente e, de forma indireta, controlarão também certas enfermidades gra­ves. .. Depois do estabelecimento da vida em IURANCHA, nós, os Portadores de Vida, melhoramos a técnica curativa, introduzindo-a em outro planeta do sistema de Satânia. E agora, representa grande alívio para a dor, permitindo que seus habitantes exerçam melhor o controle sobre a capacidade de proliferação das células normais associadas..."

— Ouvindo esses documentos — lamentou-se Glória — pa­rece assim como se a totalidade do universo vivesse em paz, na beleza e no progresso. E nós, ao contrário, não progredimos... Por quê? Será que nós, descendentes de Andon e Fonta, cometemos algum pecado especial?

Sinuhe atribuiu aquela divagação da amiga ao intenso bom­bardeio de informações que há dias a alvejava. Compreensivelmente sobreviria o cansaço mental. Embora o membro da Loja acredi­tasse já ter respondido a essas questões, lembrou à Glória que IURANCHA era um mundo "decimal" e, por conseguinte, sujeito a múltiplas peripécias, entre as quais o risco de desordens.

— Conforme o que diz a "Quinta Revelação", o fato de a raça "andônica" aparecer antes dos humanos de cor e que estes, por sua vez, nascessem no planeta de uma só família, demonstra que vivemos em um astro bem singular... Nosso mundo parece ter sido o primeiro do sistema de Satânia em que essas seis raças de cor constituíram descendência direta de uma única família huma­na. O habitual deve ser que essas raças surjam em linhas diversifi­cadas e como conseqüência de mutações independentes no ramo ou tronco animal pré-humano. A "Quinta Revelação" afirma que aparecem uma a uma e sucessivamente, no curso de prolongados períodos, começando pelo homem vermelho. A última raça é qua­se sempre a índiga, que dá o negro. Além do mais, já lhe informei sobre outro "fator" que fez com que se frustrasse (ou pelo menos freasse) a evolução normal da humanidade: Caligastia.

A filha da raça azul foi rememorando...

— Na opinião desses Portadores de Vida, o habitual em um mundo que nasce é que o que poderíamos definir como a "vontade humana" não surja e se fortaleça só muito tempo depois da apari­ção das raças de cor...

— E aqui, em IURANCHA — antecipou-se Glória — acon­teceu o inverso.

— É o que dizem nossas informações.

— Foi também um acontecimento premeditado?

Ele respondeu com um parágrafo textual da "Quinta Reve­lação":

"Foi nossa intenção (referem os Portadores) produzir precocemente uma manifestação da vontade na vida evolucionária de IURANCHA e o conseguimos."

— Andon e Fonta...

— Sim, Glória querida. Segundo esses Portadores, a "vonta­de humana" emerge normalmente quando as, raças de cor progridem. E, em geral, o primeiro a ostentá-la é o tipo superior de homem vermelho.

— Os que chamamos depreciativamente "peles-vermelhas"?

— É isso. Como você vê, essa informação está repleta de surpresas.

— Não nos desviemos do assunto: Caligastia. Que mais você pode dizer?

— Pouco, muito pouco.. . Nós é que temos de preencher essa lacuna. Entretanto, observe um detalhe significativo: esse príncipe planetário não viajou para IURANCHA quando real­mente devia, quer dizer, há um milhão de anos: no tempo em que os gêmeos desenvolveram a vontade. Era o que teria sucedido em um mundo normal. Mas o nosso era e é "decimal" e Caligastia dele tomou posse com 500 000 anos de atraso.

— Não consigo entender...

— Eu tampouco, embora possa existir uma justificativa. A "Quinta Revelação" adianta que, por ser IURANCHA um mundo "decimal" ou qualificado como "modificador de Vida", acordo anterior previra uma espécie de "experiência-piloto". Esse plano estabelecia que, durante um longo período, fossem enviados à Terra doze Melchizedeks na qualidade de observadores e conse­lheiros dos Portadores de Vida. Essa "comissão" vigiaria a marcha de IURANCHA e da primeira raça humana, até a ulterior che­gada do príncipe planetário.

— Durante meio milhão de anos a raça "andônica" e o pla­neta em geral viveram sob a "custódia" de doze Melchizedeks. Então, por que era necessária a chegada de um príncipe planetário?

— E que assim o estabelece a organização administrativa dos universos. Não se esqueça. Esses príncipes, além do mais, pa­recem ter outras funções importantíssimas.

— Por exemplo?

— Melhorar as raças humanas, tanto desde o ponto de vista puramente físico, como intelectual e social, de acordo sempre com os planos divinos. Mas, repetimos, Caligastia fracassou. E nós até hoje estamos sofrendo as conseqüências desse fracasso... ou seja lá o que for.

— E porque você não conhece a natureza dessa falha... — insinuou a senhora da Casa Azul, tentando ainda surpreender o hermético informante.

__ Se o soubesse, que sentido teria embarcarmos nessa mis­são? Só o que sei é que Caligastia e seu séquito fizeram "algo” grave o bastante para arruinar o processo normal evolutivo da nossa humanidade.

 

— Um "processo evolutivo" — expressou Glória com me­lancolia — desesperadamente lento...

— Suponho que tudo depende.

A filha da raça azul pediu-lhe uma explicação com o olhar.

— Tudo depende do conceito que se tenha desse "tempo".

— Nós pelo menos só temos um.

— Sim, mas não há por que ser o único. E não serei eu a responder-lhe. Um desses Portadores de Vida o fará em meu lugar. Assim escreve, falando precisamente do que você propõe: "Se es­tais surpresos de que seja necessário tanto tempo para efetuar as mutações evolucionárias no desenvolvimento da Vida, responder-vos-ei que nós não podemos conseguir que os processos caminhem mais depressa. Não temos controle algum sobre a evolução geoló­gica. Se as condições físicas o permitem, estamos preparados para completar a evolução total da vida em prazo muito menor do que esse milhão de anos que foi preciso para IURANCHA. Mas, co­mo sabeis, encontramo-nos debaixo da jurisdição dos Dirigentes Supremos da Ilha Eterna do Paraíso, e, ali, o tempo não existe.

"A medida do tempo de um indivíduo é sempre a duração da sua própria vida. Assim, todas as criaturas estão condicionadas ao tempo e por isso consideram a evolução um processo intermi­nável. Para aqueles como nós que, ao contrário, não têm a vida limitada por uma existência temporal, a evolução não aparenta ser tão lenta. No Paraíso, onde o tempo não existe, todas essas coisas são 'presente' no pensamento da Infinidade.

"E da mesma forma que a evolução da mente depende do lento desenvolvimento das condições físicas (que a atrasam), assim também o progresso espiritual condiciona-se à expansão mental. O atraso intelectual infalivelmente o freia..."

Glória pediu ao investigador que se detivesse um instante.

— Você quer, por favor, explicar-me essa última parte?

— Em suma, o Portador de Vida quer dizer que a evolução espiritual não depende da educação, da cultura, ou da sabedoria. A alma pode evolucionar, independentemente dessa cultura, mas não com ausência da faculdade mental e do desejo de fazer a vontade do Pai Universal; em outras palavras: escolher a super-vivência para além da morte física ou primeira morte e buscar a perfeição progressiva. "Embora a supervivência (dizem os Porta­dores) possa não depender da posse do conhecimento e da sabe­doria, o progresso, sim, necessita disso."

— Vejamos se entendi. Se o indivíduo humano sente a ne­cessidade de encontrar Deus, e luta por isso, sua ressurreição está garantida...

No olhar de Sinuhe brilhou uma luz diferente. E a compa­nheira soube o que ia responder.

— A "Quinta Revelação" é o que melhor o define. Nos laboratórios cósmicos a mente domina sempre a matéria. E o es­pírito encontra-se vinculado a essa mente. Se esses diferentes dotes não chegam a sincronizar-se e coordenar-se, podem registrar-se atrasos nessa evolução. Porém, tudo isso é circunstancial. A chave está nesse desejo, nessa busca, nesses anelos de descobrir a Ver­dade. Nem as limitações físicas da nossa humanidade, nem a perversidade mental podem apagar essa maravilhosa realidade que supõe (ou suporá) a realização espiritual de cada ser humano.

A centelha nos olhos de Sinuhe tornou-se penetrante como uma adaga.

— Você e tantos outros o sabem: a Verdade não é outra coisa senão uma busca tenaz. A Verdade não é realmente um fim, mas o próprio caminho... Concluo meus modestos ensinamentos com algumas palavras do Portador de Vida de Nebadon, residente em IURANCHA: "Quando as condições físicas são maduras, po­dem dar-se evoluções mentais repentinas".

Sinuhe fez outra breve pausa, cruzando olhares de cumplici­dade com a filha da raça azul.

— Quando o estatuto da inteligência é propício, podem ocorrer transformações espirituais... súbitas. Quando, por último, os valores espirituais recebem a consideração devida, o humano começa a discernir e desentranhar as formosas e profundas reali­dades cósmicas.

E Sinuhe fechou de vez aquela "Quinta Revelação", con­cluindo:

— Então, querida Glória, só então, a personalidade surge progressivamente liberada das limitações do Tempo e do Espaço.

 

4 - RA: O DISCO

Os derradeiros raios daquele entardecer envolveram de bronze a longa e sedosa cabeleira da filha da raça azul. Sentados frente a frente, Glória e Sinuhe observavam-se em silêncio. Ela, profun­damente consternada com tudo o que ouvira naqueles dias e, es­pecialmente, ante duas incógnitas que lhe roíam a curiosidade: "quem era na realidade este amigo?" e "como entender que ela fosse uma descendente dessa misteriosa raça, chegada à Terra em tempos tão remotos?"

Sinuhe, por sua vez, não podia afastar a idéia de que aquele "adestramento" em torno da organização administrativa que rege os universos e sobre os primeiros tempos de IURANCHA fora superficial e precipitado. Teria ela assimilado aquela montanha de novos e desconcertantes conceitos? Em virtude do seu caráter — raivosamente meticuloso e racionalista — o investigador teria de­sejado e necessitado período mais prolongado de tempo. Mas a sorte estava lançada e o membro da Loja sabia disso. A lua nova não tardaria a aparecer e muitas daquelas dúvidas — refletia ele —, talvez se esvaziassem. Era questão de paciência.

— Muitas felicidades... Com atraso, filha da raça azul!

A voz de Sinuhe arrancou Glória de seus pensamentos. E a senhora observou que o companheiro procurava alguma coisa nos bolsos das calças. Em poucos segundos colocava sobre a mesa um pequeno frasco de vidro. Divertido, animou-a a abri-lo.

— É para você — exclamou ao olhar interrogativo de Gló­ria —. Aceite-o. Não é grande coisa, mas é meu presente de aniversário.

A senhora da Casa Azul tomou-o delicadamente, mas exami­nou-o com avidez. Ao incliná-lo, a areia branco-acinzentada que continha girou, e os corpúsculos emitiram levíssimos lampejos.

Surpresa, fixou o amigo com o olhar.

— Que é?

Sinuhe quisera ter respondido. Entretanto, não havia chegado a esperada informação do seu Kheri Heb sobre a amostra da es­tranha areia recolhida na clareira do bosquezinho. E, deixando-se arrastar pela intuição, quis que a sua companheira na iminente busca dos arquivos de IURANCHA participasse assim de um de seus segredos.

— Pode abri-lo; sem medo.

Glória atendeu sem vacilar. Despejou parte do conteúdo na palma da mão esquerda e, como o esperava o investigador, os corpúsculos transformaram-se em centenas ou milhares de pontos luminosos.

— Santo Deus!

A inesperada e súbita metamorfose dos grãos de areia em miríades de reflexos apanhou tão desprevenida a filha da raça azul, que ela, assustada, sacudiu a mão, deixando cair aquela alva e lu­minosa "nuvem" sobre a polida mesa de carvalho.

— Mas que é isso? — perguntou pela segunda vez e com a voz tão descomposta quanto o ânimo.

— Não lhe saberia explicar com exatidão. Sei apenas que po­de considerá-lo como uma espécie de "antecipação" disso que nos aguarda...

Um pouco mais confiante, a senhora voltou a explorar o montinho de areia. Ao cair sobre a madeira da mesa, os grãozinhos perderam novamente a luminosidade. Glória, tal como fizera Sinuhe no claro do bosque, brincou durante algum tempo com seu insólito presente. Pegava um punhado com seus longos dedos e, vivamente emocionada, contemplava-o a cair lentamente, conver­tido em um mágico repuxo de luz.

— Onde e como? — interpelou-o atropeladamente, sem des­viar o olhar das diminutas estrelas luminosas —. Quem lho deu?

Sinuhe decidiu-se, então, a revelar-lhe o estranho achado da clareira do bosque, assim como o primeiro e desconcertante en­contro com aquela criatura pequenina e de corpo transparente.

Quando ele terminou seu relatório, a filha da raça azul, en­tusiasmada, pediu-lhe que a levasse até a clareira. Mas Sinuhe, fiel às ordens do Mestre, pediu à amiga impulsiva que dominasse sua ansiedade.

— Prometo-lhe que você lá estará.. . assim que chegue a lua nova.

 

No dia seguinte, ainda aurora, Sinuhe atravessou a praça da Lastra, disposto a estudar aquele perturbador hieróglifo que des­cobrira no pêndulo do relógio. . . A Casa Azul, como a maior parte da aldeia, não despertara ainda para o dia luminoso e promissor. O inquieto investigador, armado com suas câmaras fotográficas, uma brocha e alguns trapos velhos, empurrou o portão da casa solitária de Joana, cuidando para não derramar a gasolina que o ajudaria a concretizar aquela tarefa.

Essa segunda visita à Câmara Municipal de Sotillo foi um pouco mais sossegada. A claridade do dia ajudou, e não pouco, a que ele conservasse sua presença de espírito. Apesar de tudo, a lembrança dos sucessos daquela noite e a imagem da monstruosa cabeça colada à vidraça da torre provocaram nele, enquanto subia pausadamente, um ou outro sentimento de inquietação. Desta vez, achava-se sozinho e isso, de alguma forma, o tranqüilizou. Sinuhe, "o que é solitário", preferia esta situação à de um possível risco ou perigo compartilhados.

Mas, ao empurrar a portinhola que permitia o acesso ao ático, o jornalista não pôde reprimir um calafrio. As ferragens das dobradiças protestaram; Sinuhe, imóvel no umbral por uns segundos, deu uma rápida olhadela no recinto desmantelado.

"Deveria ter-me munido de uma lanterna..."

O pensamento do nosso homem justificava-se fartamente. Os fios de luz que penetravam pelos dois olhos-de-boi praticados na fachada do edifício — um de cada lado da cabina onde descan­sava a maquinaria do relógio — mal quebravam a escuridão.

O lugar, não obstante, estava tranqüilo. O silêncio era abso­luto. Impelido pela curiosidade, avançou sobre o empoeirado chão de madeira, fazendo-o ranger lastimosamente. Seu objetivo era sempre a porta situada ao fundo do ático. Mas, talvez ajudado pela tênue penumbra ou movido por um desejo inconsciente de atrasar tanto quanto possível sua inevitável entrada na torre, o in­vestigador, tendo deixado a bolsa das câmaras e os utensílios que transportava no chão, dirigiu-se até o fundo escuro do lugar.

Que procurava ali? Ele mesmo não sabia. Talvez alguma pista, algum indício que o ajudasse a compreender por que o no­me de "RA" figurava no disco metálico ou, quem sabe, talvez um resto esquecido do momento, em 1 907, em que foi instalado o relógio.

Pouco a pouco, apalpando e tateando, foi abrindo caminho entre os móveis sujos e carcomidos, latas e irreconhecíveis ferra­mentas de lavoura empilhadas.

"Se eram corretas as informações de Joana, e aquilo era um ninho de ratos, o normal seria que, uma vez desaparecida a mis­teriosa criatura que ele vira e que sem dúvida, os havia espanta­do, os roedores tivessem voltado ao seu habitat..."

Para comprová-lo, a única solução seria invadir o território e os possíveis refúgios deles.

Os olhos de Sinuhe não tardaram a acostumar-se à escuridão e os ouvidos se apuraram ao máximo, pendentes da menor roça-dura ou crepitação.

Continuou avançando até um dos cantos escuros, mas, de repente, uma espécie de estalido o deteve. Ao apurar os sentidos, involuntariamente percorreu-lhe pela pele um calafrio. Apertou os olhos para afiar mais a visão e descobriu, a pouco mais de dois metros, um vulto enorme. Ao observá-lo compreendeu, com certo alívio, que se tratava de uma antiga poltrona, ensebada, destripada e com mil feridas por onde haviam saltado umas molas ameaça­doras.

Tentou tranqüilizar-se, dizendo a si mesmo que talvez aquele estalo tivesse sido produzido por passos seus. Mas tais raciocínios não eram muito sólidos.. .

Após alguns segundos tensos de espera, optou por continuar avançando. Desta vez, diretamente para o lado da desconjuntada e grande poltrona. Porém, ao dar o segundo passo, alguma coisa se interpôs em seu caminho. Uma maranha de densos, pegajosos e invisíveis fios enredou-se-lhe entre os cabelos e o rosto, obrigando-o a retroceder. Bateu com as mãos, desesperadamente, lutando por desvencilhar-se daquela repugnante teia de aranha. Um par de minutos depois, ofegante e pálido, conseguia livrar-se dos úl­timos restos.

Inspirou profundamente, e, estendendo os braços para o lado da escuridão, golpeou o ar em busca de outros possíveis restos de teias de aranha. E justamente quando rasgava uma daquelas ro­das, o coração do aventureiro sofreu novo sobressalto. Um segundo estalo, agora mais claro e mais próximo, petrificou-o.

 

Por frações de segundo permaneceu imóvel, os braços ergui­dos e submersos na escuridão. O sangue lhe corria pelas artérias a velocidade inusitada, impelido por uma nova descarga de adre­nalina. O medo, uma vez mais, invadira o esforçado investigador. Imediatamente, movido por um reflexo puramente animal, levou os braços ao rosto. Se aquele estalido tivesse sido causado por um rato, ele teria de ser de tamanho considerável e haveria o risco de que, sentindo-se encurralado, saltasse sobre o hipotético inimigo.

Mas, nos seguintes e intermináveis segundos, nada aconteceu. Sinuhe, lentamente, foi descobrindo os olhos. Perfurou a silhueta negra da poltrona em busca do roedor, explorando também o con­torno. Tudo em vão.

Seu cérebro, submetido a violenta tensão, dizia-lhe que aque­le estalo não parecia emitido por um rato. Na realidade, lembrava melhor o ruído de duas tábuas chocando-se uma contra a outra. Mas, nesse caso, que ou quem o provocara?

Tentando não fazer o menor ruído, inclinou-se sobre o assoa­lho, empunhou o cabo do que outrora devia ter sido uma enxada. Um pouco mais confortado com a posse daquela arma improvisa­da, sentiu-se disposto a superar o angustioso lance.

Na ponta dos pés fez o metro e meio que o separava da grande poltrona, brandindo o robusto cabo da enxada.

E foi nesse momento, com os joelhos a poucas polegadas do assento, que um terceiro estalo soou. Desta vez Sinuhe manteve-se firme junto à poltrona, com o cabo levantado acima da cabeça, preparado para ser catapultado contra o primeiro que se movesse.

O ruído, muito mais nítido que nas ocasiões anteriores, pa­recia brotar do interior do maltratado encosto do cadeirão. Cravou o olhar naquele labirinto de brechas por onde surgiam e se espar­ramavam molas e feixes informes de enchimento.

Subitamente, na escuridão de uma daquelas fendas profun­das, o investigador pensou ver qualquer coisa que lhe gelou o sangue: dois minúsculos pontos luminosos.

Desfiou-lhe pela mente vertiginosa série de hipóteses. Sem dúvida, eram dois olhos: de quê? Quem sabe um rato? Um gato talvez?

Seu primeiro impulso foi retroceder e interpor o maior espaço possível entre eles. Mas pela enésima vez a curiosidade venceu.

E nervosamente remexeu nos bolsos, até dar com o isqueiro. Pen­sou em mudar o cabo para a outra mão, para manusear o acen­dedor com maior precisão, mas o instinto de sobrevivência foi mais forte; então, devagarinho, foi estendendo o braço esquerdo em direção ao escuro espaldar. Apertou nervosamente o isqueiro, ten­tando levar seu punho até a parte inferior da greta, em cujo interior continuavam chispeando os supostos olhos. Ao mesmo tempo fez oscilar o cabo, tentando concentrar-se. Ao menor movimento sus­peito, a maça improvisada cairia sobre o buraco da poltrona e seu possível inquilino.

Com o coração disparado, acariciou com a ponta do polegar esquerdo o acendedor da mecha, preparando-se para a iminência de acioná-lo. E, sem pensar duas vezes, fez girar a rodinha.

"Maldição!"

O dedo, suado, resvalara, provocando apenas uma breve faísca.

Mecanicamente, Sinuhe repetiu a manobra. Uma breve cha­ma amarelada apareceu na terceira ou quarta tentativa. A partir dessa fração de segundo, tudo se precipitou, ficou confuso e de­sagradável.

À luz da chama, Sinuhe, o rosto a pequena distância da fenda, descobriu, com efeito, dois pontinhos brancos, pontiagudos e enterrados em uma massa peluda. Ao perceber o que tinha dian­te dos olhos, tentou retroceder. Mas a criatura foi mais rápida: antes que o repórter pudesse mover um músculo, saltou na direção de seu rosto.

 

Foi uma dor aguda o que devolveu os sentidos a Sinuhe. Primeiro, apalpou à sua volta, verificando, alarmado, que estava estendido no chão do sótão, boca para cima e meio prisioneiro de um informe castelo de móveis.

"Que aconteceu?"

Antes que pudesse organizar seus pensamentos confusos, lu­tou com aquele enredado de cadeiras e carteiras escolares que lhe tinham caído sobre o peito. Um dos pés se lhe havia incrustado entre as costelas, provocando-lhe uma dor pungente. Quando, fi­nalmente, conseguiu desembaraçar-se de entre os trastes que o imobilizavam, o maltratado repórter se levantou. Seus olhos 'de­ram então com a figura do cadeirão e tremeu com calafrios. Na realidade, só tinha consciência de pouca coisa do sucedido.

"Sim... o culpado do desastre foi esse maldito morcego."

Quando a mecha foi acesa, com efeito, o mamífero se assus­tou e fugiu precipitadamente de sua guarida, dentro da poltrona. Mas o animal acabara por estatelar-se contra o rosto do não me­nos aterrorizado membro da Escola da Sabedoria, entre estalos e um aparatoso bater de membranas.

Na lembrança de Sinuhe, gravada a fogo, lá estava a imagem da pequena e peluda cabeça do morcego, com suas brancas e pon­tiagudas presas que, nos primeiros momentos, ele confundira com uns brilhantes olhos, desconhecidos para ele.

Depois, em conseqüência do impacto e do susto, perdera o equilíbrio, caindo de costas sobre os móveis.

A partir desse momento, tudo ficou escuro e distante. A ca­beça, a julgar pelo fiozinho de sangue que lhe escorria por detrás da orelha direita e pela pontada dolorosa que sofria na região occipital, deve ter-se chocado contra algum daqueles velhos tras­tes, provocando-lhe a perda dos sentidos.

Quanto tempo permanecera inconsciente?

Consultou seu relógio, mas aqueles dígitos, marcando 8h00, tampouco esclareceram-lhe as dúvidas. E, preocupado com a in­sistente dor no lado esquerdo das costas, não atinou com outro detalhe inexplicável. O jornalista subira ao ático pouco antes das 7 horas. Se sua catastrófica exploração havia sido coisa de cinco ou dez minutos, por que seu relógio marcaria as 8? Teria estado inconsciente todo esse tempo? Ou teria acontecido algo mais? Providencialmente, o desastrado investigador não se aperceberia dessa curiosa circunstância senão bem avançada a manhã, quando, esti­mulado por aquelas dores nas costas, decidiu despir-se e examinar o torso. Mas essa será outra questão a considerar mais adiante...

Aborrecido consigo mesmo por suas tolices contínuas, re­cuperou seu aparelhamento e, dizendo impropérios, abriu a portinhola da torre. A luz jorrava pela janelinha; depois de percorrer o olhar pelo recinto, hesitou entre inspecionar a fundo a maqui­naria e o disco do pêndulo, ou realizar a série de fotografias que tinha planejado. Finalmente, como lhe era habitual, decidiu-se por uma terceira tarefa: a limpeza do misterioso alto-relevo em que apareciam o emblema de sua Ordem e o nome de "RA".

Como digno representante do signo zodiacal de Virgem, pre­parou o recipiente de gasolina, os trapos e o pincel, colocando-os meticulosa e estrategicamente entre os suportes de madeira da armação que sustentava a maquinaria do relógio. O único acesso ao pêndulo era através desses pés e, se o investigador desejasse exe­cutar conscienciosa limpeza do disco metálico, tinha só uma alter­nativa: escorregar para baixo daquela armação e, sentado ou de cócoras entre os quatro suportes, levar adiante a operação.

É óbvio que a maquinaria e, conseqüentemente o pêndulo, continuavam imóveis.

Foi com certa dificuldade que se arrastou entre os pés da armação. Uma vez debaixo da maquinaria, pressionou com a mão o lado esquerdo das costas, buscando alívio para a dor aguda, agravada agora com a brusca flexão. Sem mais demora, pegou um dos trapos, disposto a uma primeira remoção daquela espessa camada de pó, talvez velha, de 77 anos, que semi-ocultava o enig­mático alto-relevo.

Porém, ao tentar segurar o disco com a mão esquerda, algo ocorreu que o deixou perplexo...

 

— Jesus Cristo!...

O "soror" da Escola da Sabedoria, agachado, praticamente aprisionado entre os suportes da armação, não podia crer no que estava vendo.

Ao aproximar do pêndulo a sua mão, os dois "olhos" do alto-relevo iluminaram-se subitamente.

Hipnotizado, Sinuhe não chegou a tocar o disco. Retirou assustado a mão esquerda. Ao fazê-lo, aquele fulgor avermelhado foi apagando-se, até desaparecer. E o pêndulo recuperou seu as­pecto original.

— Estarei sonhando?

Outra dolorosa pontada, porém, convenceu-o de que não. "Aquilo", fosse o que fosse, era absolutamente real.

Repentino frio invadiu-o dos pés à cabeça. Mas, com um incipiente tremor nos dedos, repetiu a manobra. Sua mão esquerda foi aproximando-se do emblema da Grande Loja e, prodigiosa­mente, os "olhos" foram mudando a tonalidade metálica enegre­cida para aquele resplendor de granada.

Sem conseguir compreendê-lo, sentiu quanto desaparecia o seu medo, substituído por doce sensação de bem-estar. Então, ma­ravilhado, atreveu-se a tocar o disco.

Mas nada de novo aconteceu. Os "olhos" continuaram emi­tindo aquela viva luz avermelhada, que tornou a esfumar-se no momento em que a mão do investigador se separou, apenas uma polegada, da superfície do pêndulo.

Atônito, não sabia o que fazer. Que era tudo aquilo? Que tinha que ver com "RA" e com a missão que estava a ponto de encetar?

Depois de longa meditação e de comprovar à saciedade como se iluminava parte do alto-relevo cada vez que ele tocava o pên­dulo ou dele aproximava as mãos, o investigador deixou-se levar pela intuição. Começou a desparafusá-lo, retirando o disco da barra de ferro que o atravessava e segurava ao resto da maquina­ria do relógio.

Nesse instante, ao liberá-lo, o companheiro da filha da raça azul foi novamente surpreendido: o disco, cujo peso real não devia ser inferior a um ou dois quilos, flutuava, levemente, entre suas mãos!

Sinuhe escapou como pôde de entre os pés da armação e, perplexo, começou a dar curtos e nervosos passos pela reduzida cabina, com os olhos fixos naquela peça mágica.

De repente parou. E lenta, lentamente, passou a separar as mãos das bordas do disco. A luz vermelha se foi apagando, mas o pêndulo continuou flutuando no espaço.

Sinuhe retrocedeu um par de passos e, para seu assombro, o disco, como que movido por mão invisível, seguiu-o suavemente. Quando se deteve, o pêndulo fez outro tanto, mantendo-se flu­tuante à altura do seu peito, e com uma levíssima oscilação.

— Não é possível!

Sinuhe repetiu aquela espécie de jogo. Foi caminhando de costas, até topar com a parede da torre. O disco fez outro tanto. Mas, em lugar de bater no tronco do abismado jornalista, perma­neceu imóvel a poucos centímetros do seu corpo, como se fosse dotado de inteligência...

Embora não entendesse o que estava acontecendo, começou a sentir-se feliz com aquele jogo. E decidiu levar adiante uma nova prova. Foi deslizando até o chão, com a espádua colada à parede, até ficar sentado. O disco, como ele supunha, foi descen­do, quase junto. Mas, ao tocar no solo, por causa da nova posição, Sinuhe recebeu outra chicotada. Aquela dor nas costelas fez que suspeitasse de uma fratura.

Aturdido com aquela mordida dolorosa, crispou-se a face do "soror"; ele cerrou os olhos. Mas dali a poucos segundos a punhalada cessou. Foi uma desaparição tão repentina que, desorien­tado, levantou as pálpebras, chegando a ver o que, sem dúvida, seria a causa do brusco e repentino alívio da sua dor: do disco, que modificara sua posição habitual, colocando-se "de viés" no ar, partia um finíssimo e quase imperceptível feixe de luz. Esse fio luminoso brotava do centro geométrico do pequeno "olho", colo­cado, como já disse, entre a serpente e a letra maiúscula "A".

Aquela espécie de laser, cujo arranque do disco não fora captado pelo investigador, já que tinha fechado os olhos, morria justamente no seu costado esquerdo. Concretamente, no ponto onde surgira e depois desaparecera a aguçada dor.

Aterrado, ele não se moveu. Mas mentalmente formulou algumas perguntas:

"Quê ou quem é você? Que quer de mim?"

Mas, ao contrário do que ocorreu na clareira do bosque com aquela pequena e transparente figura, desta vez não houve res­posta mental. . . Entretanto, as perplexidades do membro da Loja não seriam ignoradas.

E imediatamente após ter desaparecido a dor, o raio celeste — como se soubesse que cumprira sua missão — desapareceu. E fê-lo de forma tão fulminante que Sinuhe, sobressaltado, cruzou os braços, protegendo o rosto. O pêndulo, então, retomou sua posição inicial, paralelo ao solo. E ali se manteve, a trinta ou trinta e cinco centímetros do peito do nosso homem: majestoso e diáfano como uma bolha de sabão...

 

Convencido de que aquele estranho "companheiro" não parecia desejar-lhe mal algum, relaxou. Passou a dedicar seu tem­po a nova exploração do mágico disco.. A dor passara totalmente e, à sua maneira, o repórter soube ser agradecido. Aproximou suas mãos do misterioso objeto, cujos "olhos" se iluminaram ime­diatamente. E, com uma simpatia que começava a invadir-lhe o espírito, levou-o até os lábios, beijando-o.

Não é que pudesse estar muito seguro de nada, mas Sinuhe intuía que aquele "achado" guardava íntima relação com a missão que lhes fora confiada. No entanto, um não acabar de dúvidas voejava-lhe na mente: que sentido teria a dócil presença daquele disco? Quais os seus poderes? Deveria conservá-lo consigo? E, sobretudo, quem o dirigia?

O investigador respondeu a esta última, com outra pergunta: "E não terá vida própria?"

Sinuhe o acariciou, fascinado ante a fantástica possibilidade. E desde esse momento, sem nem mesmo saber por quê, tomou a firme decisão de não se separar dele. Como se tivesse escutado aqueles pensamentos, o disco vibrou por uns segundos, estremecendo-se e estremecendo o "amo". Indescritível emoção apoderou-se do investigador.

A partir desse instante, Sinuhe surpreendeu a si mesmo a falar com o disco como se se tratasse de um íntimo amigo.

— Temos de encontrar-lhe um nome — comentou em voz alta.

O pêndulo reagiu, fazendo com que transbordasse a já satu­rada capacidade de surpresa de Sinuhe. Como se quisesse significar que não precisava concluir o comentário, e quisesse colaborar com a procura do abençoado nome, as letras do disco se iluminaram. As mãos do "soror" se separaram do objeto, que continuou estático no ar, exibindo um refulgente e branco "RA".

— Claro! — exclamou cheio de alegria —. Como não me ocorreu?.. . Ra!

Ao pronunciar o nome, as letras se apagaram. E Sinuhe, ainda sentado no canto da torre, beliscou a coxa direita, resistindo a crer em tudo aquilo que estava vendo. Mas, assim que retirou os dedos da perna, Ra — permita-me o leitor que passe a chamar assim a esse "personagem" singular — emitiu um novo e fulmi­nante feixe de luz, também celeste, que incidiu sobre a zona mal­tratada pelo próprio investigador. E a dor se dissolveu no mesmo instante.

Sinuhe sentiu que o rosto se lhe enrubescia de vergonha. E, dirigindo-se ao "amigo", improvisou uma desculpa:

— Sinto muito. . . Não era minha intenção, mas você tem de reconhecer que isso é coisa de loucos.. .

O fio de luz desapareceu; nosso homem, depois de prolon­gado e embaraçoso silêncio, resolveu continuar aquele incrível "diálogo":

— Alguma coisa me diz que você, Ra, deve acompanhar-nos na busca dos arquivos de IURANCHA. Mas com que missão?

O disco continuou imóvel e silencioso.

— Está bem. Como posso sabê-lo, se nem sequer sei a que lugar nos devemos dirigir nem que vamos encontrar...? No en­tanto — animou-se Sinuhe, tentando expressar uma súbita idéia —, há uma coisa que poderíamos esclarecer.

Pôs-se de pé e, apontando o pincel abandonado no chão, perguntou a Ra:

— Você pode erguê-lo?

Foi formular a pergunta, e Sinuhe se sentiu contrafeito. "Não obstante, soliloquiou, é preciso averiguar até onde chega o seu poder e, sobretudo, se realmente está a nosso serviço."

Ra oscilou ligeiramente, pondo-se em posição vertical. A brocha, os trapos e o recipiente de gasolina continuavam no assoa­lho, entre os pés da armação. Perplexo, Sinuhe observou como, do menor dos "olhos", fluía uma cadeia de reduzidos círculos ou aros de apenas um centímetro de diâmetro e de belíssimo azul-celeste. Essa sucessão de argolas luminosas projetou-se em linha reta até tocar o cabo do pincel. E, como um milagre, o primeiro dos circulozinhos projetados por Ra volteou o negro feixe de pêlos. Nesse momento, os vinte ou trinta aros que compunham os dois metros do "braço" mágico se esfumaram. Só ficou o círculo que abraçava o pincel. E instantaneamente, como se obedecesse a uma vontade encerrada no disco, o aro elevou-se do assoalho, arrastando a bro­cha consigo. Mas, não satisfeito com aquela demonstração, Ra atraiu para si aro e pincel, tirando-os lindamente de entre os pés da armação. E ali permaneceram, flutuando no ar, a metro e meio do solo e a dois palmos de um Sinuhe boquiaberto.

Recuperado do primeiro sobressalto, o membro da Escola da Sabedoria pensou em apalpar aquele brilhante aro azul. Mas conteve-se.

— Ma-ra-vi-lho-so! — soletrou com emoção. E uma segunda idéia lhe surgiu à mente.

— Diga-me... Quem é você?

Sinuhe nem bem concluíra sua nova pergunta, e o círculo celeste se diluiu no ar e o pincel, liberado da força que o manti­nha, precipitou-se para o chão.

O disco girou então em direção a Sinuhe e, conservando a mesma postura — perpendicular ao solo — desandou a iluminar suas letras.

— Ra... Sim, isso eu já sei — exclamou com certa decep­ção —. Mas quem é você na verdade?

O nome de Ra continuou a brilhar por breves espaços. Fi­nalmente, depois de rápida série de pulsações, o "R" e o "A" se escureceram.

Quando o investigador começava a acreditar que o enigmá­tico "amigo" escolhera o silêncio como resposta, Ra voltou a surpreendê-lo. . .

 

O disco recuperou a horizontalidade e, animado por suave bamboleio, rumou para o teto da torre. Sinuhe seguiu-lhe os mo­vimentos com o coração na mão. Que pretendia Ra?

Uma vez no alto da cabina, o desconcertante "camarada" efetuou uns curtos deslocamentos — à direita e esquerda —, co­mo se procurasse alguma coisa.

Quando Ra ficou definitivamente imóvel, Sinuhe, baixando os olhos, reparou que o disco se achava sobre a vertical da antiga maquinaria de que fora parte durante decênios. Intrigado, esperou.

O pêndulo — a verdade é que não sei se deveria continuar a chamá-lo assim — experimentou então uma daquelas intensas vibrações. E os atônitos olhos da solitária testemunha escancara­ram-se: a superfície que dava para o relógio começara a emanar, ela inteira, uma densa "chuva" de luz. . . negra!

— Jesus Cristo! — exclamou maravilhado, enquanto milha­res de raios azeviches partiam lenta e majestosamente da face inferior de Ra.

Naqueles momentos críticos, o "soror" não prestou atenção a uma circunstância não menos surpreendente. Foi mais tarde, ao regressar à Casa Azul que, friamente, rememorou como aqueles raios se propagavam, não à velocidade normal da luz, mas pausada e quase trabalhosamente. E assim, centímetro por centímetro, aquela cascata negra foi absorvendo ou anulando a luz natural, mergulhando o quartinho em densas trevas.

Sinuhe, escaldado pela amarga experiência vivida durante a visita noturna ao casarão, retrocedeu, buscando a porta com a mão esquerda. Ra, porém, que parecia captar até o mais singelo sentimento do nosso protagonista, "acendeu" seu pequeno "olho" e, no mesmo instante, o já familiar raio azul destacou-se dentre a "luz negra" incidindo, com milimétrica precisão, sobre a mão que com tanto afã tateava a parede. Embasbacado, o repórter assistiu, impotente, à transformação daquele finíssimo laser em outro aro, também azul, que lhe enlaçou os cinco dedos. E o investigador viu e sentiu como o círculo luminoso o puxava, delicadamente, em direção à maquinaria.

Não era preciso ser muito esperto para entender que Ra de­sejava que ele se aproximasse. É claro que acedeu.

Uma vez diante da armação, o aro celeste desapareceu. O sobressaltado investigador sentiu um formigamento breve e super­ficial nos nós dos dedos e em parte da palma da mão. Levantou os olhos e distinguiu a negra silhueta do convincente "amigo", recortada contra o alvo teto da cabina. Inexplicavelmente, a face superior de Ra não difundia aquela "luz negra", razão por que o teto e uma lâmina delgada situada entre ambos conservavam a cla­ridade natural.

— Que é que você pretende?

A pergunta ia conseguir uma imediata e inimaginável resposta.

Em poucos minutos, e quando o "soror" parecia ter recupe­rado algum do seu dizimado equilíbrio emocional, de um dos "olhos" de Ra partiu um cone de luz branca, bastante mais amplo que os feixes anteriores, que iluminou instantaneamente uma das placas parafusadas em um dos lados da quase invisível maquinaria.

Sinuhe, instintivamente, leu a inscrição:

GREGORIO REVUELTO

BENITO SETEMBRO-8-1 907

— E então?... — perguntou a Ra, levantando o rosto até o lugar onde flutuava o disco.

Do círculo escuro brotou um novo feixe, gêmeo do anterior, que incidiu sobre a segunda placa, nacarada. Dela constava a le­genda:

MOISÉS DIEZ PALENCIA

Satisfeito o aparentemente absurdo desejo de Ra, Sinuhe passou a testemunhar outro prodígio de que não se esquecerá en­quanto viver...

 

De repente, uma das letras da segunda placa deslocou-se do seu lugar original e — ante inevitável exclamação de assombro de Sinuhe —, começou a ascender pelo interior do cone luminoso, indo deter-se à altura dos olhos do investigador. Era o "S"...

Imediatamente atrás veio o "O" de "MOISÉS", que se esta­bilizou junto ao "S".

Sinuhe tinha a garganta seca. Entretanto, não podia reagir. Em seguida uma terceira letra — o "U" — saído da outra placa, foi colocar-se junto às anteriores.

Com emoção indescritível, o jornalista, que já ia vislumbran­do a intenção do "amigo", sussurrou aquela palavra... "flutuante":

"SOU..."

— Quem, quem?... — animou com voz entrecortada.

E, enquanto aquelas três letras se mantinham em aéreo e in­concebível equilíbrio, no cone que iluminava a primeira placa se deram outros desprendimentos. Como em um sonho, o "T" e o "E" escaparam da velha legenda, subindo pela coluna luminosa com a leveza de rolhas emergindo do fundo de um lago. A estas letras se juntou o reflexo do "U", anteriormente desprendido.

"TEU"...

— Sim, compreendo... SOU TEU... Que mais?

Com desesperante lentidão, as duas primeiras letras voltaram à sua placa, ajustando-se à palavra MOISÉS, com precisão mate­mática. No outro cone, entretanto, flutuava a palavra TEU.

E, subitamente, uma após outra, cinco das oito letras que formavam PALENCIA repetiram a operação, formando um ter­ceiro conceito — mas incompleto:

"... ENLAC..."

Sinuhe, sem conseguir entender, repetiu o termo em tom interrogativo:

— ENLAC?. . .

Mas sua dúvida se resolveria na hora. O "E" de DIEZ aca­bava de unir-se ao resto.

— Sim, sim, eu entendo: "SOU TEU ENLACE". Continue, continue! Meu enlace, mas com quem?

Ra, evidentemente, não parecia escravizado a impaciência alguma. Com uma calma que a Sinuhe pareceu irritante, fez que voltassem a seus lugares de origem todas as letras que flutuavam nos fachos de luz. Só então apareceu uma nova palavra. Uma pa­lavra que o sacudiu:

"... MEDIANO..."

Sinuhe, fascinado pelo quase imperceptível e leve vaivém das espigadas e brilhantes letras, repassou tudo quanto Ra lhe havia transmitido até o momento:

"... SOU TEU ENLACE MEDIANO..."

Mas, ao contrário do que supunha, a mensagem não estava concluída.

A palavra MEDIANO caiu docemente sobre a placa, e segun­dos mais tarde foi substituída, naquele mesmo feixe de luz, por outras três letras:

"... COM..."

Uma vez estabilizadas, como nas ocasiões anteriores, a pouco mais de dois quartos da placa, algo inesperado aconteceu. De Ra partiu um terceiro raio luminoso. Avermelhado e sensivelmente mais fino..Perfurou as trevas como uma exalação, indo pousar so­bre um dos "O" da placa contígua. O fio luminoso recolheu-se sobre si mesmo, arrastando na ponta a letra referida. E, parecendo manipulado inteligentemente, o feixe granada efetuou um movi­mento pendular, depositando aquele "O" em continuação às letras que flutuavam diante dos olhos perplexos do repórter, formando assim uma nova palavra: "COMO".

Sinuhe moveu negativamente a cabeça.

— SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO... Mas isso não tem sentido!

As três primeiras letras desta última palavra foram fundindo-se suavemente, até incorporar-se à inscrição. Ao mesmo tempo, o laser avermelhado — que permanecia imóvel na penumbra e como que cortado por navalha — avançou até o "O". Banhou-o com sua luz e, depois de colocar-se novamente sobre a vertical da placa de que extraíra a letra, avançou sem pressa, até fazê-la chegar ao seu posto original. Depois dobrou-se sobre si mesmo, até desaparecer no interior do disco.

E Sinuhe, sem fôlego quase, presenciou a que seria a seqüên­cia definitiva daquela "comunicação" insólita com seu poderoso "companheiro".

Da primeira placa, como um enxame negro, subiu um desor­denado punhado de letras. Sinuhe somou até oito. Porém, por mais que se esforçasse, não conseguiu decifrar-lhe o significado. Brotou de Ra, pela segunda vez, aquele finíssimo feixe averme­lhado. Passeou pela segunda legenda e, apoderando-se de outras duas letras, incorporou-as ao primeiro grupo.

 

E o irmão da Loja, à beira da vertigem, contemplou maravi­lhado como as dez novas letras oscilavam e se chocavam entre si, até compor a sexta palavra da "mensagem":

"... RESERVISTA..."

— SOU TEU ENLACE COMO RESERVISTA.. .

Sinuhe repetiu algumas vezes a estranha resposta de Ra. Mas, entorpecido e esgotado, só pôde encolher os ombros.

 

"SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO RESERVISTA"?

"Que diabos significavam aquelas seis palavras? Certamente, outra vez se repete o 6..."

Ra, desde que finalizada a "transmissão", iniciou o que poderíamos qualificar de volta à normalidade: as últimas letras retornaram às suas respectivas placas, os feixes se extinguiram, a escuridão artificial foi retrocedendo. Ao ser absorvida pelo disco, a luz "negra" foi deixando passagem — lenta e gradativamente — para a claridade diurna. Como em uma fantasmagoria, a diáfana luminosidade daquele 26 de julho foi aparecendo, primeiro a rés do chão. Depois, ao passo que Ra puxava a angustiante massa negra, a cabina foi tornando-se visível.

Quando o disco "colheu" o último facho de raios azeviche, o repórter, em pé junto à armação, fez por adivinhar qual seria o movimento seguinte do seu "enlace". Ra porém não deu sinal de vida. Continuou estático sobre sua cabeça. Sinuhe, arrastado por um sentimento (cada vez mais fraco) de incredulidade, acariciou as placas. As letras não se tinham trocado ou estragado. Conti­nuavam gravadas — solidamente enterradas — em suas respecti­vas e brancas superfícies metalizadas. E estas, naturalmente, bem parafusadas à madeira da armação.

— Como pôde?...

Passando as pontas dos dedos sobre as inscrições, percebeu tão só um ligeiro aquecimento das placas.

"... SOU TEU ENLACE MEDIANO COMO RESERVIS­TA. .."

O jornalista levantou o olhar e interrogou Ra:

— Que foi que me quis dizer? Será você uma criatura "mediane"? Que significa "reservista"? Sou, por acaso, um "reservista"?

Entretanto, o disco não respondia. Em contraste com o cres­cente desespero de Sinuhe, Ra parecia surdo e alheio às suas dúvidas e até mesmo à sua presença.

A "Quinta Revelação" quase não falava dos "medianos". Como já comentara com a filha da raça azul, este era exatamente um dos compromissos dentro da missão de busca dos arquivos secretos do planeta: averiguar a natureza desses seres e o papel que tiveram na rebelião de Lúcifer. De repente, teve medo:

"E se Ra fosse um dos 'medianos' rebeldes?. .. Um inimigo, talvez, posto em nosso caminho por sabe lá que forças do Mal?"

A sinistra hipótese turvou o olhar de Sinuhe. A figura do disco, leve "e suspenso no alto, pareceu-lhe pela primeira vez fosca e ameaçadora.

"Por que fica em silêncio?. . . Será que tenho razão?"

E presa de pânico fulminante, começou a caminhar de costas, sem apartar os olhos do hipotético mensageiro ou enviado de Lúcifer.

Absorvido por aquele sentimento e obcecado pelo medo, tropeçou na portinhola da cabina, que cedeu facilmente. Mas o investigador, ávido por fugir, não se deu conta dos imediatos de­graus de acesso à torre, e seus pés — impelidos pela inércia — passaram vertiginosamente do solo da cabina para o vazio.. .

 

Tarde demais para evitar a queda. Não encontrando terreno debaixo dos pés, o corpo de Sinuhe precipitou-se de costas, em direção ao piso do sótão, a um metro de desnível. O infortunado repórter compreendeu que em uma fração de segundo poderia ter quebrado o pescoço e a coluna. Mas seu erro de cálculo fora tão inesperado, tão rápida a precipitação escada abaixo, que nem tem­po teve de gritar.

Instintivamente, fechou os olhos. E, quando não lhe restava senão receber o impacto final, "algo" freou-lhe a queda. Questão de décimos de segundo. Ele percebeu forte sensação de calor no peito e, quase simultaneamente, um puxão lancinante ao longo do corpo. Era como se invisível e gigantesca mão o tivesse agar­rado no ar...

Abriu os olhos, confuso; compreendeu que se achava tom­bado a coisa de um palmo do assoalho do ático. Mas qualquer impressão se apagaria diante do outro fato: flutuando no alto da escada, a poucos centímetros do umbral da portinhola traiçoeira, distinguiu Ra. Do "olho" menor partia um daqueles já familiares "jorros" de círculos azuis. Uns aros com um dedo de diâmetro, que lhe caíam sobre o tórax, banhando-lhe as roupas com uma intensa coloração celeste.

Em poucos segundos Sinuhe era suavemente depositado sobre o piso. Ra fez com que desaparecessem os círculos que, sem dúvi­da haviam contribuído para remediar o desastre e, no mesmo instante, extinguiram-se o calor do seu peito e aquela radiação azulada.

Sinuhe moveu os braços. Esfregou os olhos e, convencido de que continuava vivo, levantou-se de um salto. O disco não se mo­veu. O jornalista, envergonhado, baixou os olhos. Um sentimento incontido — misto de agradecimento a Ra e amarga reprovação de si mesmo — começava a aflorar-lhe no coração. E uma lágri­ma solitária rolou-lhe pela face.

Pouca gente o vira chorar, a esse repórter infatigável, curtido nas mil batalhas de sua profissão. Entretanto, embora possa apa­rentar frieza, os que o conhecem sabem que, debaixo da couraça, palpita um temperamento densamente emotivo, capaz de vibrar ante o sofrimento, ante a beleza ou, como neste caso, ante um nobre gesto de amor e generosidade.

Mas as surpresas não se tinham esgotado ainda naquela ma­nhã inolvidável.

De repente, ele teve uma estranha sensação. Levantou a vista e viu, à sua frente, a não mais que meio metro do seu rosto, o sal­vador e amigo: Ra flutuava de viés. Seu nome estava iluminado. E o abatido investigador soube que a aproximação do disco e o brilho de suas letras tinham muito que ver com um possível e bon­doso gesto de "reconciliação e estímulo".

Aquele sentimento-suspeita ver-se-ia confirmado quando, ines­peradamente, sobre o negro e áspero relevo da face de Ra surgiu "algo" que Sinuhe, comovido, verificou ser uma lágrima. . .

A minúscula e brilhante gota havia surgido pela linha inferior do pequeno "olho" e deslizava, lenta, entre as rugosidades que formavam o ondulante alto-relevo da serpente enroscada entre ambos os "olhos". Curiosamente, aquela única "lágrima" vertida pelo disco brotara do "olho" à esquerda do que poderíamos começar a considerar como a "face de Ra". E digo que era "curioso" porque a solitária lágrima de Sinuhe também lhe escapara do olho esquerdo...

Com um nó na garganta, ele estendeu a mão trêmula até tocar a superfície muito fria do disco, e enxugou a incrível lágrima. Esboçando um breve sorriso de amizade, levou aos lábios as pon­tas úmidas dos dedos.

Sinuhe não entenderia jamais como poderia a poeirenta peça de um relógio antigo, chegar a cobrar vida e a converter-se ainda em fiel, mágico e inquebrantável companheiro de viagem e de fa­digas. .. A verdade é que o irmão secreto da Ordem ou Loja da Sabedoria estava apenas começando — apenas! — a descobrir o ilimitado poder dos Céus...

 

— Cristo!. . . Mas é salgada!

Sinuhe retirou os dedos dos lábios e contemplou, atônito, os restos da "lágrima" que Ra derramara.

Se ainda adejavam dúvidas no espírito do repórter, ali estava aquela nova confirmação da natureza do humor vertido pelo mis­terioso disco. Já não cabia vacilação alguma: Ra era capaz de sentir e de demonstrar sentimentos humanos.. .

— Obrigado, amigo!

Aquelas duas únicas e contundentes palavras de Sinuhe en­contraram no companheiro uma resposta igualmente direta. Ra apagou e iluminou seu nome três vezes, demonstrando-lhe assim que o entendera. E, ato contínuo, recuperou a horizontalidade, e moveu-se em direção à porta da cabina. O jornalista seguiu-o in­trigado.

— Que me quer dizer você?

Ra não tardaria a "explicar-se". Postou-se sobre a bolsa preta das câmaras fotográficas, projetando um fino raio azul sobre uma das extremidades do fecho. Delicadamente, aquele fio lumi­noso foi abrindo-a. Ao terminar, o disco dissolveu o mágico "bra­ço" celeste, e o substituiu pela outra projeção, também familiar, de pequenos círculos da mesma cor. As argolinhas penetraram no interior e, num instante, Sinuhe, estupefato, contemplava como Ra extraía da bolsa uma das Nikon. A câmara flutuava no espaço, misteriosa e perfeitamente segura pelo último dos círculos azuis.

O aro se ajustara ao diâmetro da teleobjetiva curta — uma "105" — que o repórter montara na caixa dias atrás.

Maravilhado, observou como o "amigo" mantinha a câmara em posição horizontal e abraçada pelo ponto do anel de conexão das lentes. Justamente pelo lugar onde ele costumava suspender suas câmaras. Sem dúvida, Ra parecia conhecer muito bem os costumes do repórter...

O disco ganhou altura e se dirigiu até ele, pondo-lhe a "ala­da" máquina ao alcance das mãos. Quando o nosso homem dela se apoderou, o fluxo de círculos desvaneceu-se e Ra voou, então, para a janela da torre. Após segundos de aparente indecisão, sua face voltou-se para- o expectante amigo. E depois, muito devaga­rinho, foi descendo até apoiar-se na estreita cornija interior da janela. Ficou imóvel, em posição vertical, ligeiramente inclinado e apoiado entre a vidraça e o batente esquerdo. Nessa posição — tão só nessa — o disco metálico recebia o máximo de luz. Sorrin­do, Sinuhe entendeu os desejos de Ra.

Por sinal que, muito antes de visitar o casarão pela segunda vez, ele planejara fotografar o enigmático pêndulo e os detalhes do alto-relevo. Mas aqueles intensos e múltiplos acontecimentos acabaram por apagar-lhe as primeiras intenções. O disco, agora, encarregava-se de fazer com que se lembrasse.

Sinuhe ajoelhou-se no assoalho, levando a câmara aos olhos. Foi quando, ao fazer girar a roda da 105 milímetros, buscando perfeita focalização da face de Ra, deu-se conta de outro "deta­lhe", tão gentil quanto demonstrativo da "inteligência" do "amigo". Na bolsa estavam duas câmaras: a que Ra acabara de tirar e uma Nikkormat, armada com uma 24 milímetros; quer dizer, com um grande ângulo. Esta câmara encerrava um filme a cores, com sen­sibilidade de 100 ASA. A Nikon, por outro lado, dispunha de um em branco e preto, de mais alta velocidade — 400 ASA — muito mais apropriado que o anterior para um lugar como aquele, com pouca luz natural, relativamente. O jornalista, além do mais, odia­va flash. Pois bem, para Ra essas circunstâncias não passaram des­percebidas, pois escolheu a câmara e, inclusive, a objetiva mais adequada para o caso. Se Sinuhe desejava tomar sobretudo os detalhes e a configuração do alto-relevo, o lógico seria que se ti­vesse utilizado da "tele" curta ou uma "macro" e não a grande angular. A precisão na escolha da câmara, portanto, fora abso­luta. ..

E o investigador tremeu quando a "105" abriu ante seu olho a face claro-escura de Ra. — Deus!. . . Que é isso!?

 

Ao enfocar, Sinuhe ficou estupefato. Baixou a câmara e cravou os olhos em Ra.

— Não pode ser. . . — murmurou, confuso.

É que vira, através da teleobjetiva, que a figura da serpente fora escamoteada. Em seu lugar, rodeando os "olhos", aparecia outro alto-relevo: um complexo enredado de linhas grossas, tudo em relevo também. Onde estaria o sinuoso corpo da serpente?

Sinuhe, preocupado, passou a culpar seu cansaço, a achar que tudo não passava de fruto de sua imaginação, uma alucinação ou alguma deformação ótica.

"A melhor prova" — monologou — "é que, ao baixar a câ­mara, tornei a ver o "rosto" de Ra: a serpente enroscada nos dois círculos..."

E, convencido de que talvez tivesse focalizado incorretamente a superfície do disco, voltou com a câmara para os olhos. Acer­tou a objetiva e. . .

— Jesus Cristo!

Não manipulara mal a objetiva; tampouco fora vítima de lapso mental. Mas a serpente desaparecera, transformando-se ou ocupando-lhe o lugar aquela gravação incompreensível.

Tremeram-lhe as mãos. Hesitou, por um instante: baixava novamente a Nikon? Ou disparava? Inspirou profundamente e, segundos depois, achando que seu pulso recobrara um mínimo de equilíbrio, disparou. O "clic" tranqüilizou-o. Baixou a câmara e, tal como supunha, o punhado de linhas fora nova e misteriosa­mente substituído pela serpente inicial.

— É incrível!

Sinuhe aproveitou a extrema docilidade do "amigo", imor­talizando a superfície do pêndulo em uma demorada dúzia de imagens. E, cada vez que mirava através da teleobjetiva, a "face" que ele havia visto, e que continuaria vendo no futuro, sofria igualmente deformações. (Quando essas fotografias foram revela­das, depois de concluída a missão, ele comprovaria que aquela "mudança" fora real. Hoje constituem uma das poucas provas de que Ra existe...)

Por alguma razão que escapava ao conhecimento do investi­gador, seu singular "companheiro" não desejava que o filme captasse o seu "rosto". Ou será que a serpente enroscada tampouco era a sua verdadeira face?

Hoje, já de regresso daquela fascinante aventura, nem a filha da raça azul nem Sinuhe lograram desvendar a sibilina incógnita.

Mas tentarei não cair em um dos meus defeitos habituais: adiantar acontecimentos...

Quando o membro da Escola da Sabedoria considerou satis­feita sua curiosidade pessoal e a jornalística — que no caso vinham a dar no mesmo —, devolveu a câmara ao estojo, permanecendo com a vista como que distraída, à espera de alguma outra mudan­ça no alto-relevo. Mas a serpente que ondulava entre os "olhos" não se alteraria. E Sinuhe propôs a Ra uma questão que, à primei­ra vista, não parecia fácil, mas que o vinha atormentando desde que soubera ou intuíra que seu circular "amigo" teria de unir-se a eles na "grande busca".

— Diga-me, como vou levá-lo comigo?

Sinuhe estremeceu só de pensar na possibilidade de que Ra pudesse segui-lo pela aldeia, voando como um pássaro... A cena teria sido simplesmente catastrófica.

Enquanto aguardava uma resposta, chegou a pensar, mesmo, em uma drástica e talvez pouco delicada solução: envolvê-lo em uma das toalhas que protegiam as câmaras fotográficas e ocultá-lo na bolsa. Porém, como digo, não tardou a desistir de semelhante iniciativa, convencido de que não era o tratamento mais correto para com um "amigo".. .

E a solução, uma vez mais, correu por conta de Ra.

O disco, que sem dúvida acompanhava as reflexões de Sinuhe, abandonou o batente da janela, imobilizando-se a metro e meio do piso. O investigador pôs-se de pé e esperou. Que aconteceria agora?

E do pequeno "olho" brotou aquele fluxo de círculos celestes pequeninos. Dirigiram-se então para a mão direita do repórter. Ele experimentou uma cocegazinha fina, mas deixou que o "ami­go" atuasse. O aro da extremidade e em contato com a mão se havia introduzido no dedo anular como se fora um anel. E, doce­mente, Ra puxou o dedo. O braço, até ali caído ao longo do corpo, foi tomando a posição horizontal. Sinuhe, embora fizesse por adiantar-se e compreender a manobra, acabou por render-se.

— Que é que você pretende? — chegou a perguntar-lhe, com um começo de intranqüilidade.

Ra porém parecia cativo daquele dedo e, é claro, nada res­pondeu.

A aliança de Sinuhe perdeu por instantes seu reluzente dou­rado, e ele chegou a temer pela integridade física da jóia.

Então, aconteceu o inesperado...

 

De repente o disco sofreu uma daquelas características e intensas vibrações. Ele todo se iluminou de um vermelho escarlate e, ante o olhar atônito de Sinuhe, que continuava com o braço estendido, desmaterializou-se. Perplexo, Sinuhe viu como, um dé­cimo de segundo depois da súbita desaparição de Ra, o jorro de círculos azuis seguiu o mesmo destino. O dedo anular ficou então liberado da tênue mas enérgica pressão.

— Oh!

A exclamação não foi só por causa da incrível cadeia de acontecimentos que acabava de testemunhar. No seu dedo, no mesmo lugar que ocupara o aro azul, apareceu um anel de um centímetro e meio de largura, todo em ouro lavrado.

Tremeram-lhe as pernas pela enésima vez. Devagarinho, foi abrindo e fechando a mão direita. Não; não se tratava de um so­nho. Ali, em seu dedo anular, junto à aliança, reluzia um selo amarelo, coroado por delicado relevo quadrangular.

Distinguiu na palma da mão microscópicas gotículas de suor. Seu tremor inicial foi acentuando-se. Durante uns poucos minutos sentiu-se incapaz de tocar o misterioso anel. Finalmente, devorado pelo medo e pela curiosidade, roçou com um dedo a figura que rematava o selo.

Nada aconteceu. O anel era, no mínimo parecia ser, absoluta­mente normal. Estirou os dedos e procurou decifrar o significado da figurazinha que ocupava e decorava todo o remate superior. Desde o primeiro momento, aquela gravação em ouro lhe parecera familiar. Mas onde a vira anteriormente?

Seus pensamentos, no entanto, iam entrecruzando-se sem conceder-lhe trégua.

— Que terá acontecido com Ra?... Por que terá desapare­cido?... Ou não desapareceu?...

Sinuhe sentiu uma chicotada nas entranhas.

— Terá mudado de forma, assumindo agora a deste anel?

À guisa de resposta — e contundente — uma onda de sangue subiu-lhe do ventre, intensificando generosamente o suor que já lhe havia brotado pelos poros.

— E por que não? — murmurou, disposto a crer em qual­quer coisa que viesse de Ra —. Minha pergunta sobre "como iria levá-lo comigo" pode ter sido atendida com esta concreção. . . Mas como posso ter certeza?

E o investigador, ingenuamente, ficou aguardando algum sinal. Porém, o formoso anel — supondo-se que, com efeito, se tratasse do pêndulo — não parecia detectar suas inquietações. Assim pois, um tanto decepcionado, aproximou-se à luz que jorra­va do postigo da janela, disposto a explorar minuciosamente o selo. A figura do relevo representava um estranho ser, de cabeça qua­drada e provido de dois olhos enormes. Mas Sinuhe não conseguiu distinguir naquela face nem nariz nem boca. E, levantando os olhos até a vidraça, lembrou-se imediatamente da monstruosa ca­beça que descobrira, dias atrás, naquela mesma janela, também desprovida de nariz e de lábios. Um estremecimento percorreu-lhe a coluna vertebral.

"Por que a nova coincidência?"

O ser em questão aparecia agarrado ao umbral de uma espécie de porta. Com exceção daquela "face" quadrada, o resto do corpo achava-se oculto sob um atavio ou proteção difícil de descrever. Sinuhe teria jurado que se tratava de uma couraça flamífera. Po­rém, dadas as reduzidas dimensões — formando um quadrado de um centímetro de lado —, qualquer hipótese seria arriscado for­mular. Não obstante, o cérebro do investigador fazia por recordar.

"Onde vi esta figura? Onde?". . .

Finalmente, decidiu-se a pôr em prática uma idéia que o assaltava desde logo, mas que o medo foi retardando. Pegou o selo com dois dedos e o foi retirando da mão. Nesse instante, assim que o anel acabou de deslizar para a ponta do anular, súbito fo­garéu o deixou meio cego.

— Meu Deus!...

 

Foi tão súbito que Sinuhe soltou a jóia, cegado pela inespe­rada e silenciosa explosão fulgurante.

— Oh, Deus!...

O repórter levou as mãos aos olhos, tentando recuperar a visão. Seus temores porém eram infundados. Embora a luminosi­dade lhe tivesse, efetivamente, sobrecarregado as pupilas, ao baixar as mãos, seus olhos — apenas irritados — perceberam normal­mente o seu contorno.

Suspirou aliviado. Olhou para o chão, esperando que o anel estivesse talvez sobre o assoalho, mas, por muito que procurasse, não havia nem sombra do selo.

E, de repente, experimentou uma sensação conhecida. Não saberia como defini-lo, mas "algo" ou "alguém" se achava às suas costas, a observá-lo. Tratava-se de um sentimento ou de uma sen­sação muito freqüente, dessas que muitas pessoas já viveram algu­ma vez.

Ao voltar-se, passada a primeira surpresa, Sinuhe não pôde deixar de sorrir. No centro da peça flutuava Ra, negro e majestoso como sempre. Suas suspeitas viram-se assim confirmadas: o "ami­go", com o propósito de acompanhá-lo sem ser percebido, havia-se transformado em anel e este, ao ser retirado do dedo, recuperara sua primigênia forma habitual. ..

— Está bem — comentou Sinuhe aproximando-se do disco e levantando o braço direito —, já o compreendi. . . Pode voltar ao dedo, se você não se importa. . . Devemos regressar para junto da filha da raça azul.

Ra então repetiu sua emissão de círculos celestes, desintegrando-se e reincorporando-se ao dedo anular em forma de anel.

Apesar de tudo, o "soror" estremeceu. Não era nada fácil acostumar-se a tantas e tão vertiginosas emoções e, muito menos, a levar na mão um ser "vivo" e praticamente onipotente...

Mas, depois de acariciar o anel, preferiu esquecer tudo aquilo. E, carregando o material fotográfico e os utensílios emprestados, deixou o casarão.

Um Sol cálido, caminhando já para o zênite, saudou-o quando ele pisou o branco e tosco calcetado da praça da Lastra. Sinuhe, agradecido, levantou o rosto, para que sua pele se carregasse de energia.

"Quem acreditaria em mim?" — meditou, cerrando as pálpebras —. "Embora, no fundo, que importa isso?. . . Não é a vida, realmente, uma fantasia e a mais prodigiosa das aventuras?"

O resto daquela inesquecível jornada decorreu em paz. Glória não fez perguntas demais, embora, ao vê-lo, tivesse sentido que o irmão e amigo guardava algum novo segredo no coração. Indeciso » preocupado, deixou que passassem as horas. Durante o almo­ço e o aprazível passeio que encerrou aquele 26 de julho, sentiu-se tentado a confidenciar à companheira tudo o que vira e vivera no ático e cabina. Mas, a cada vez que se propunha falar, de Ra partia uma espessa e nítida onda de calor que lhe inundava e che­gava quase a adormecer a mão direita. O primeiro "aviso" do camuflado "amigo" pilhou-o tão de surpresa, que esteve a ponto de trair-se. Ao senti-lo, levantou involuntariamente a mão, dei­xando escapar uma interjeição seca. Glória olhou-o admirada, e Sinuhe viu-se em apuros para justificar o gesto tão inexplicável. Afortunadamente, porém, a filha da raça azul não percebeu o anel. Os problemas, entretanto, não haviam terminado.

Essa noite, ao recolher-se, o irmão da Loja secreta sofreria outra surpresa.

 

Foi ao despir-se. Embora, ao passar pela fonte da Diana Caçadora, no seu regresso à Casa Azul, Sinuhe, sempre meticuloso, tivesse tentado limpar do pescoço aquele fiozinho de sangue seco, pensou que o mais prudente ainda seria tomar um banho relaxante. Eliminaria qualquer marca do ferimento e, ao mesmo tempo, sua­vizaria seus nervos castigados.

Ao descobrir o dorso, o jornalista — que tinha praticamente esquecido aquela pontada no lado esquerdo das costas — ficou perplexo. Ao olhar-se fugazmente no espelho descobriu uma pe­quena mancha à altura das costelas. Em uma primeira e agitada exploração, associou-a com uma equimose ou mancha roxa, con­seqüência — pensou — do impacto de um dos pés das cadeiras que lhe haviam caído sobre o corpo. Mas, ao aproximar-se da luz, sua perplexidade não teve limites: "aquilo" não podia ser um vergão qualquer.. .

"São círculos!"

Nervosamente passou os dedos sobre a suposta equimose e constatou que aqueles três círculos concêntricos azulados não se apagavam. Esfregou com mais força e insistência, mas só conse­guiu avermelhar as costas. Aplicou água e sabão, mas foi inútil. Aquele "sinal" — o de Micael, o mesmo que vira no escritório do seu Kheri Heb e nas seis árvores do bosque — não se alterou em nada.

Desconcertado, deixou cair a esponja e retrocedeu. Contemplou-se de novo ao espelho, e uma tempestade de hipóteses, contra-hipóteses e receios apoderou-se dele.

— Que é isso?... Que significa?... Mas quando?...

Com grande dificuldade retrocedeu no tempo, tentando re­construir as cenas vividas no velho casarão.

— Isso aconteceu em algum momento — repetia-se obsessi­vamente —. Mas quando?

Sinuhe se lembrou do morcego e de sua estúpida queda. E, entre sombras, veio-lhe à mente seu retorno à consciência e aquela dor aguda, exatamente no ponto em que agora ele descobria os três círculos. Entretanto, a possibilidade de que algum dos móveis fosse o causador daquele "emblema" foi descartada na hora.

Havia, sim, "algo" que não parecia lógico: como era possível que tivesse permanecido toda uma hora inconsciente? Que teria acontecido todo esse tempo?...

Qualquer hipótese, por suspeitosa que fosse, teria de ser des­cartada e esquecida, ante aquela nova vivência: Ra...

"Sim, deve ter sido ele."

E então se recordou daquela última pontada, quando se achava sentado no chão da cabina, e a fulminante intervenção do disco, projetando um dos seus feixes luminosos sobre a zona dolorida. Mas, aceitando tal possibilidade, que objetivo teria mar­cá-lo com o emblema ou escudo de Micael? Ou não se trataria de mero sinal?

Como já insinuei a certa altura, o irmão da Ordem da Sabe­doria tinha de "passar ao outro lado" para conhecer a verdade sobre como e por que lhe haviam sido "implantados" aqueles três círculos entre a quinta e a sexta costelas... e tão perto do cora­ção. Naquele momento, ele não podia sabê-lo, mas eu, sim, posso anunciar ao leitor, que guardava íntima relação com o papel dos "reservistas".

 

O cansaço pôde mais e, depois de um rápido banho, Sinuhe foi deitar-se. Seu descanso, entretanto, foi minado e interrompido por uma sucessão de pesadelos angustiosos. Muito antes da alba, já estava saltando do leito.

Enquanto aguardava Glória, tentou decifrar o sonho de que se recordava mais e que o havia enchido de espanto. Naquele pesadelo— que se repetiria várias vezes — via a si mesmo ao pé de uma estranha torre e em meio a uma "escuridão avermelha­da" Ao seu redor, centenas, talvez milhares de seres de pequena estatura e crânios volumosos vinham aproximando-se, braços es­tendidos, atitude ameaçadora.

Criaturas semelhantes às que vira na clareira do bosque e também do outro lado da vidraça da janela da torre. Disso ele tinha certeza. Mas, à diferença deste ser, os do pesadelo não os­tentavam no peito aqueles três círculos azuis e concêntricos. No centro do tórax de cada um deles, igualmente transparente, Si­nuhe pensou distinguir outro emblema ou símbolo: um círculo preto, com outro vermelho e menor no interior dele.

As enormes cabeças, tal como a da criatura que o havia es­preitado na torre, só tinham olhos: escuros, redondos, pequeninos e circundados ou cercados por uma espécie de calosidade que sobressaía vários centímetros na cara horrenda. E aquela multidão sempre aproximando-se, aproximando-se.. .

Mas quando aquela infinidade de dedos estava a ponto de cair-lhe em cima, o pesadelo se apagava e o repórter, violenta­mente sacudido em sua cama, despertava. Suado e ofegante, lutava por encontrar e acionar o interruptor de luz. Aqueles segundos, submerso nas trevas do quarto e nas brumas da semi-inconsciência, eram-lhe especialmente amargos. . .

Naturalmente, quando, afinal, dava com o maldito interrup­tor, rosto descomposto, percorria com o olhar até o último canto do aposento, em busca de sabe Deus que criaturas. Entretanto, o lugar parecia calmo. Com o coração avariado apagava novamente a luz, escorregando para debaixo dos lençóis, cobrindo-se até o nariz. E, durante minutos intermináveis seus olhos perscrutavam a escuridão, pendentes de qualquer sombra. Só aquelas pessoas que sentem esse agudo e indescritível medo das trevas e da possível aparição de seres terrificantes na solidão do quarto, podem enten­der o sofrimento do nosso homem aquela noite...

Tais sobressaltos, como disse, repetiram-se uma ou outra vez, até que, incapaz de controlar os pesadelos e o pânico, acabou com a situação, descendo para o primeiro andar da Casa Azul.

Foi pequeno o conforto que encontrou em suas auto-explicações.

"Se esses pesadelos" — raciocinava, enquanto tentava plasmar o perfil-robô daquelas criaturas — "não foram mais que isto, pe­sadelos, por que em seus peitos eu via um emblema tão diferente do de Micael?. . . Quem eram? Não são mais que imaginação mi­nha?. .. Sim, deve ser isso."

Como se enganava Sinuhe!... Houve uma época em que estudou os chamados sonhos premonitórios. Ele sabia, conseqüen­temente, que essa categoria de fascinações do inconsciente revela às vezes o que vai acontecer...

Mas sigamos a ordem dos fatos.

Quando a filha da raça azul desceu para o desjejum, Sinuhe já tinha relegado a incógnita dos pesadelos. Era outro, agora, o problema que o ocupava e preocupava. A lua nova aconteceria no dia seguinte, 28 de julho e, como sempre, apesar de meticuloso e apaixonado pela ordem, o investigador deixara para o último dia um detalhe que, embora prosaico, não admitia mais demoras: em que exato momento desse sábado se registraria a entrada no novilúnio?

A precisão nesse caso — assim o entendia — era crucial. Se "o momento do início da missão" — como rezava o telegrama do seu Kheri Heb — "devia chegar com a lua nova", era imprescin­dível conhecer a hora e, se possível, até o minuto exato. Mas como solucionar o problema?

Sinuhe não dispunha das tábuas astronômicas e, na Casa Azul, segundo Glória, seria difícil encontrar uma pista.

Esforçando-se para não abalar os nervos, fez um inventário das pessoas que poderia consultar por telefone.

"Se tudo falhar" — meditou, ao mesmo tempo em que acari­ciava o anel — "suponho que Ra nos poderá tirar do atoleiro..."

Mas, dessa vez, não foi necessária a intervenção do seu "enlace".

Ao discar o número do observatório do Ebro, em Roquetas, seu bom e paciente amigo, o padre Cardús, diretor do centro, ace­deu gostosamente em resolver o intrigante pedido do investigador. Em poucas horas, a resposta soava clara e precisa do outro lado do fio.

— Meu querido amigo — informou o jesuíta — a lua nova se dará às 11 horas e 51 minutos, tempo universal.

Ao pendurar o fone, Sinuhe não dissimulou a estranheza.

— Que foi? — interrogou Glória, percebendo que "algo" de extraordinário e imprevisto provocara aquela sombra na fisiono­mia de seu companheiro.

 

— Não entendo — murmurou finalmente, mostrando à Gló­ria a hora prevista para o novilúnio daquele mês de julho.

A filha da raça azul leu as anotações em silêncio e, levan­tando os olhos do papel, deu-lhe a entender que não conseguia captar o motivo de suas preocupações.

— Pode ser que não tenha maior importância, mas essa hora, mais as duas adiantadas, significam que a lua nova se iniciará quase às duas da tarde...

— E daí?

Sinuhe contemplou a senhora e, depois de uns instantes de hesitação, exclamou em tom conciliador e como que desejando esquecer o assunto:

— Não, nada. . . Você verá, mas não sei por quê, sempre acreditei que nossa missão teria sua partida em plena noite. .. Evidentemente, não é assim.

— Evidentemente — repetiu Glória com um sorriso —. E lhe digo outra coisa: você se preocupa demais. Deixe que voem os acontecimentos. Espere-os. . . Não sabemos aonde vamos, o que nos espera, tampouco como achar esses arquivos secretos. . . Não se atormente. . . Talvez seja tudo mais simples do que supomos.

— Ou mais difícil — sussurrou, recordando-se dos pesadelos. Mas Glória nem prestou atenção a esta última e premonitória

reflexão do membro da Loja da Sabedoria. Para espanto do com­panheiro, a filha da raça azul parecia mais interessada em outra atividade. Pelo resto do dia, Sinuhe a viu ir e vir, preocupada tão-só com a indumentária e a bagagem que deviam apresentar...

Só ao anoitecer, quando se convenceu de que aquela preo­cupação estava sendo levada muito a sério, Sinuhe pediu à amiga irrequieta que o escutasse:

— Não se trata — disse-lhe com ternura — de uma "via­gem" como você talvez esteja imaginando...

Glória o mirou, sem compreender de todo. Não que Sinuhe tampouco soubesse como ou de que maneira ia transcorrer a mis­são, mas intuía que, para a realização daquela "grande aventura" contava-se tão-só com a boa disposição dos dois e, naturalmente, com a presença permanente de Ra.

E, nessa crença inabalável, a data fixada chegou.. .

 

Nem Glória nem Sinuhe conseguiram dormir. Naquela noite, véspera do encontro com o desconhecido, apoderou-se deles o nervosismo. Enquanto a filha da raça azul se certificava, conster­nada, de como pareciam apagados da mente os ensinamentos rece­bidos, o investigador, indormido, investiu a maior parte do tempo em frenéticos passeios pelo dormitório, mergulhado em. dúvidas tais como, por exemplo, se devia levar seu material fotográfico ou se deixaria carta escrita para a família. ..

Com as primeiras luzes daquele inapagável 28 de julho de 1 984, ele e ela, esgotados, apareceram quase simultaneamente no salão, persuadidos de que o melhor era não pensar e deixar-se levar pelos acontecimentos. E depois de frugal desjejum — já pre­parados para a missão — saíram para o jardim. Glória, finalmente, escolhera uma longa túnica azul de mangas generosas e bolsos. Sinuhe, sem a menor preocupação com suas vestimentas, apareceu com um jeans gasto e desbotado e uma camisa de verão, também ce­leste. Em sua mão direita, naturalmente, reluzia o ouro do anel. .. Enquanto a filha da raça azul procurava preencher aquelas horas de tensão que precediam a ida ao bosque, com leituras ou cuidando de suas flores, seu companheiro se enfronhou em minu­ciosa revisão e limpeza das câmaras fotográficas. Contrariamente às ponderações que ele próprio sustentara na véspera com a senhora da Casa Azul, no sentido de que não deveriam carregar bagagem alguma, seu instinto jornalístico o compelia a não se des­fazer pelo menos de seu equipamento fotográfico. Se a missão da busca dos arquivos secretos de IURANCHA prometia ser tão in­tensa e delicada como ele cria, o lógico era que tentasse munir-se do máximo possível de provas documentadas. Sinuhe confundia a natureza da missão. Bem depressa, porém, descobriria que, nessa busca, o "lógico" seria precisamente o "ilógico"...

Consultou o relógio: 10 horas. No céu de transparência infi­nita, o Sol era cada vez mais ardente. Ao dirigir o olhar na direção do bosquezinho que abraçava o casarão da Câmara Municipal, nada parecia fora do normal ou da rotina. Bandos inquietos de andorinhas e gaivões faziam como sempre escuros mergulhos sobre as copas dos choupos, enquanto as tranqüilas pessoas da vila atendiam, sem pressa, aos seus afazeres. E aquela dúvida queimante — nascida com a consciência da hora e da lua nova — veio embaralhar-lhe os pensamentos.

"Como é possível que estejamos na iminência de embarcar em semelhante aventura e que, no entanto, pareça tudo tão tran­qüilo?"

Tais apreciações, não obstante, não se mostrariam exatas. Pelo menos no que se referia a Glória e a Sinuhe. . .

Pelas 13h3O, quando o par já se dispunha a abandonar a Casa Azul rumo ao bosque, alguma coisa ocorreu que esteve a ponto de arruinar-lhes os projetos.

Desapontado, Sinuhe viu que José Maria, o prefeito de Sotillo, atravessava a cancela do pátio e, com um leve sorriso, caminhava em direção ao guarda-sol à cuja sombra ele se ocupava em ajustar suas câmaras.

E com um "olá, como vai?", tomou assento junto ao foras­teiro. Num movimento reflexo, Sinuhe observou os dígitos do seu relógio. Balbuciou outra saudação e procurou Glória com o olhar. Mas a senhora, atarefada na revisão de um viveiro, não se aperce­bera ainda da inesperada visita do vizinho.

— Pensei — expôs o alcaide após um de seus característicos e demorados silêncios — que, se você concordasse, hoje seria um dia ideal para que eu lhe mostrasse a fábrica de mel.. .

— Como?...

Só então Sinuhe se lembrou de que em oportunidades dife­rentes pedira a José Maria que lhe permitisse acompanhá-lo aos apiários existentes nos arredores da aldeia, como também visitar a fábrica em questão, uma das melhores da Europa em sua espe­cialidade. Mas, por uma ou outra razão, tais visitas sempre haviam sido postergadas.

— Você não está com boa fisionomia. Eu lhe dizia que esta manhã disponho de tempo para mostrar-lhe a fábrica. . .

— Ah!. . . Bem, mas. . . é que. . .

Sinuhe se remexeu nervosamente na cadeira de vime, supli­cando aos céus que Glória aparecesse. E ela não tardou a fazê-lo, como se tivesse captado o pedido de socorro. Trazia um fresco e luminoso maço de margaridas graúdas. Sentou-se frente a Sinuhe e, ao conhecer o motivo da visita, trocou um olhar significativo com o jornalista. No momento ela percebeu o delicado problema mas, longe de interferir, continuou silenciosa. Depositou o ramo de flores silvestres em cima da mesa e se entreteve a escolher uma das mais belas.

Sinuhe, pálido, só conseguia consultar o relógio.

"13 horas e 45 minutos."

Estava a ponto de declinar do amável convite e arrastar Glória para o bosque, quando a senhora tomou uma iniciativa muito mais prudente. Ajeitou entre seus cabelos louros a margarida que sele­cionara e, com uma serenidade que o deixou perplexo, perguntou a Sinuhe:

— Está bem assim?. . .

Antes que o pobre e confuso amigo emitisse uma palavra, acrescentou:

— Quando você quiser, podemos tirar as fotos. Estou pronta. E imediatamente, dirigindo-se ao alcaide, pediu-lhe que os desculpasse.

— É coisa de cinco ou dez minutos — esclareceu, sugerindo-lhe que não saísse dali.

José Maria, conhecedor dos gostos fotográficos de Sinuhe não se alterou e, com um lacônico "está bem" os viu desaparecer pelo bosque, enquanto se servia de uma fumegante xícara de café.

Eram 13 horas e 47 minutos. Faltavam apenas quatro minu­tos para que desse começo a desejada e, ao mesmo tempo, temida lua nova.

 

"... 13h50".

Sem alento, mais atento ao relógio que à companheira, Sinuhe finalmente entrou na clareira. Soltou a pesada mala preta das câ­maras e, angustiado pela iminência da hora, recostou-se ao tronco de uma das seis árvores marcadas com os círculos concêntricos. A filha da raça azul, ofegante também depois da louca corrida até ali, tentou recuperar o fôlego.

Aturdida com a fuga precipitada de casa, Glória precisou de alguns segundos para compreender que se encontrava, justamente, no claro de que lhe havia falado Sinuhe. As batidas do seu coração se precipitaram quando descobriu, nas cascas das árvores, aqueles três símbolos.

— Lembra o sinal de Micael! — murmurou com um fio de voz. E, apontando para os círculos gravados nos troncos, interro­gou o amigo com o olhar.

— Sim — retrucou o membro da Ordem da Sabedoria — este deve ser o lugar. Este é o sinal de Micael (sua bandeira) e

Ra fará descer com a lua nova seu Mensageiro Solitário. . . Lem­bra-se?

Glória assentiu, em silêncio. E ambos, movidos pelos mes­mos pensamentos, levantaram os olhos para o puríssimo céu que se recortava entre as ramagens das árvores.

" 13h51"

Nem nossos expectantes protagonistas, nem tampouco o Con­selho Supremo dos Kheri Hebs da Ordem da Sabedoria podiam imaginar o que — exatamente naqueles instantes: 13 horas e 51 minutos de 28 de'julho — estava acontecendo a milhares de qui­lômetros daquele pequeno bosque perdido e insignificante, na remota aldeia soriana de Sotillo.

Cerca de vinte e quatro horas antes do começo da lua nova os astrofísicos do conhecido radiotelescópio de Arecibo, na ilha de Porto Rico, experimentaram uma nova comoção. Aquele astro "intruso" que vinham seguindo e que, a 27 de janeiro, como re­cordará o leitor, cruzara a órbita de Plutão, agora se havia detido.

Harold D. Craft, diretor de operações, e seu colega Rolf B. Dyce não se haviam descolado desde então da sala de controle de dados. Para os cientistas, a imobilização de "Ra-6 666" não tinha explicação lógica alguma. A não ser, claro, que fosse dirigida inteligentemente. Mas esta cada vez mais perturbadora realidade não podia ser assimilada assim facilmente por sua mente raciona-lista. E Craft e Dyce — de posse de parte do segredo do astro — mantiveram-se frios e serenos.

Os computadores do radiotelescópio fixavam as coordenadas galácticas e a distância de "Ra-6 666" em 3 horas e 44 minutos ou em 29,6937 unidades astronômicas. Quer dizer, praticamente em idêntica posição à calculada pelos observatórios do mundo nas datas do seu ingresso no sistema solar: a uns 4 454 milhões de quilômetros do Sol. E a essa impressionante distância, como digo, havia freado sua ameaçadora carreira.

Desde esses momentos críticos, todos os astrônomos que par­ticipavam do seguimento haviam orientado seus telescópios em direção àquela zona do espaço e, perplexos e maravilhados, tive­ram de inclinar-se ante a evidência e reconhecer que "algo muito estranho" ocorria nas fronteiras do nosso sistema. Mas aquela perplexidade quase alcançaria os limites da loucura quando, às 11 horas e 51 minutos (tempo universal) daquele 28 de julho — 13h51, hora local na Espanha —, um dos astrofísicos do Monte Palomar, Gerry Neugebauer, atento ao astro "intruso" detectou em suas imediações algumas potentes "explosões".

Quando, poucas horas depois, Gerry revelou as chapas foto­gráficas e checou os tempos impressos nos negativos obtidos com o telescópio Schmidt de 48 polegadas, não soube a que se ater. A primeira explosão, registrada em plena linha equatorial de "Ra-6 666", tivera uma duração de 0,00000000001 (l,-",) segundos. Os dígitos da placa fixavam a explosão luminosa — tão espeta­cular como a de uma supernova — nas 13h51 (hora local da Espanha). A esta inexplicável "explosão" outras 36 se lhe haviam seguido, sempre no mesmo ponto e com períodos ou tempos de "brilho" .tão infinitesimais como o primeiro. Aquela cadeia de "estalos" havia-se produzido com intervalos exatos de um minuto entre "explosão" e "explosão".

Neugebauer, totalmente desconcertado, apressou-se a trans­mitir a informação entre seus colegas. Mas ninguém, é óbvio, pôde desvendar o mistério das 37 fugazes mas grandiosas "explosões" de luz que, aparentemente, haviam partido de "Ra-6 666". Tampou­co Harold Craft e seu secreto irmão de Loja no radiotelescópio chegaram a intuir a enorme transcendência dessa seqüência. Só algum tempo depois — quando Sinuhe pôde informar sobre sua fascinante missão —, o Conselho Supremo da Escola da Sabedo­ria ficou em condições de desvendá-la.

Naturalmente, como já terá adivinhado o leitor, essas 37 "explosões" — especialmente a primeira — guardavam relação muito estreita com a presença de Sinuhe e da filha da raça azul no bosque de Sotillo, com os "Mensageiros Solitários", capazes de deslocar-se pelos universos a cinco milhões de vezes a veloci­dade da luz, e com os 37 mundos do sistema de Satânia que ha­viam secundado a rebelião de Lúcifer. . .

 

Se Glória e Sinuhe tivessem sabido, naqueles momentos cruciais, das informações que os astrofísicos norte-americanos ti­nham começado a recolher e, pelo menos, o registro da primeira "explosão", teriam compreendido mais rapidamente a natureza do personagem e dos sucessos que estavam por materializar-se sobre a clareira. Mas." . . talvez fosse melhor assim. . .

Às 13h51, Sinuhe consultou o relógio. Olhou a companheira e praticamente não teve tempo para nada mais. A partir desse instante bosque e aldeia caíram debaixo do influxo de um silêncio já bem conhecido do investigador. O gorjeio dos pássaros e o zum­bido subterrâneo dos insetos foram sufocados de repente. E aquela "pedra" — mais que silêncio — esmagou até o luxuriante brilho das folhas e, naturalmente, os ânimos dos nossos cada vez mais intranqüilos protagonistas.

Simultâneo com o surgimento daquele silêncio, e procedente do fundo do bosque, Glória e Sinuhe descobriram, cheios de te­mor, uma névoa opaca que, de todos os pontos cardeais avançava para eles, ocultando- à sua passagem troncos e matagal sob enor­mes campânulas leitosas. A filha da raça azul, assustada, refugiou-se atrás de Sinuhe. Ele, sem conseguir reagir, limitou-se a perscrutar o reduzido círculo do céu, ainda visível desde o centro da clareira.

Mas já não pôde distinguir o primitivo retalho celeste que vislumbrara pouco antes entre os ramos dos choupos. Em seu lugar, estava aquela névoa oscilante, enredada na folhagem e cain­do sobre eles como um presságio.

— Deus meu!. . . Que é isso?

Foram as únicas e vacilantes palavras que Glória logrou exprimir, antes que a bruma, cada vez mais rápida, invadisse a clareira e devorasse o casal. O repórter comprimiu fortemente a quase desmaiada mão da filha da raça azul, lutando por não perder a calma e, ao mesmo tempo, por descobrir em algum ponto da espessa massa esbranquiçada alguma silhueta, um vulto qual­quer. Entretanto, com pavor crescente, compreendeu que a densi­dade daquela bruma misteriosa era tal que mal conseguia avistar a amiga... Um calafrio estremeceu-lhe as entranhas.

à beira do desfalecimento, Glória e o investigador assistiram, então, a um sucesso que veio substituir o medo por um oportuno sentimento de esperança. Pelo menos, em Sinuhe. . .

 

Era inútil. Os esforços de Sinuhe para obter uma resposta racional para a súbita aparição daquela bruma não encontraram eco. Ele estava consciente de que o dia amanhecera luminoso e transparente. A que obedeceria então aquela alteração meteoro­lógica? Por outro lado, o repentino silêncio e o quase "inteligente" avanço da bruma, envolvendo-os, não eram normais nem próprios de nenhum tipo de nuvens baixas ou de cerração.

Porém "algo" igualmente misterioso iria dissipar, como digo, parte desse medo. Até esse momento, o jornalista não se havia dado conta de que aquela era a primeira vez — desde que Ra adotara a forma de anel — que sua mão direita estreitava a da filha da raça azul. E quando o pânico ia tornando-se insustentável, dentre aquelas mãos fortemente entrelaçadas brotou uma luz aver­melhada e bruxuleante. No princípio limitou-se a envolver as mãos, palpitando e crescendo até alcançar o volume de uma bola de futebol. E essas extremidades desapareceram da vista dos confusos humanos. Glória, incapaz de sustentar a tensão emocional, dispôs-se a escapar, mas Sinuhe, que soube na hora "quem" provocava aquela bolha escarlate, fez por retê-la, certo de que seu invisível "amigo" alguma coisa pretendia.

Foi nesses instantes dramáticos que tanto Glória como o com­panheiro perceberam outro fenômeno que, em princípio, só acres­centou confusão à confusão. Ao tentar falar e comunicar-se, nenhum dos dois conseguiu articular palavra. Podiam mover os lábios, sim, mas — embora seus pensamentos não parecessem afetados — o som final não lhes chegava aos ouvidos.

A "bolha" vermelha, após breve lapso de tempo em que pal­pitou e se manteve com um diâmetro constante, começou a crescer e expandir-se dentro da bruma, tingindo a clareira e os nossos personagens de um fantasmagórico resplendor carmesim.

No momento, o chão do bosque estremeceu. Essa, ao menos, foi a sensação que tiveram. Por um ou dois segundos, os pés de Glória e Sinuhe captaram uma vibração que cessou quando, atô­nitos, observaram como a areia do bosque adquiria vida. Os mi­lhões de grânulos que atapetavam a clareira deslocaram-se e, flutuando lentamente, foram ascendendo, convertendo-se em pro­digiosa e rutilante "nevada de luz". . . ao revés.

A filha da raça azul, muito mais surpreendida que Sinuhe, apertou com mais força a mão do amigo. E ele, que vinha sentin­do na carne as arestas do mágico anel, teve a nítida sensação de que Ra já não estava no seu anular. Mas, sacudido pela luz ver­melha e entretido na imensa coluna de pontinhos luminosos que se elevava para as copas das árvores, não tentou sequer certifi­car-se.

Milhares daquelas partículas cintilantes ficaram presas em suas roupas, cabelos e rosto, emprestando-lhes um aspecto fulgente.

E eles dois souberam que qualquer coisa de aterrador e su­blime ao mesmo tempo estava por acontecer.. .

 

De repente, Sinuhe escutou a voz da amiga. Com efeito, os lábios dela se moviam, mas aquelas palavras — se é que se pode chamá-las assim — não vinham de sua garganta. Porém, penetra­ram nitidamente no cérebro do investigador...

— Olhe para cima!...

Sinuhe obedeceu e seus olhos quase lhe saltaram das órbitas.

Acima de suas cabeças, no centro daquela "cascata" ascen­dente, começava a formar-se uma figura.

Milhares, centenas de milhares daqueles diáfanos e vivíssimos pontos de luz, ao alcançar uma altitude de três metros, freavam sua ascensão retilínea, agrupando-se de tal forma que, em segun­dos, Glória e Sinuhe estavam em condições de distinguir o que parecia ser uma cabeça.

Muitos dos corpúsculos que se elevavam também do períme­tro da clareira, ao chegar à altura daquela figura em formação, variavam sua trajetória, indo fundir-se — a grande velocidade — com os milhões de "irmãos" que iam "modelando" aquele corpo gigantesco.

À cabeça seguiram-se longos e musculosos braços e também um largo tórax. Imersos na luz escarlate e banhados por aquela contínua "chuva" ascendente, nossos pratogonistas foram testemu­nhas da aparição de umas atléticas pernas.

Glória ameaçou retroceder, mas Sinuhe não permitiu. E mis­teriosamente o medo foi desaparecendo. Apesar do aspecto im­pressionante, aquele ser de três metros de altura emanava uma cálida sensação de paz. Todo ele fora integrado por milhões de grânulos de luz que continuavam pulsando individualmente, trans­formando seu corpo em uma incrível brasa iluminada. Os cabelos — de um branco algodoado — caíam-lhe sobre os ombros e dei­xavam a descoberto um rosto de olhos rasgados e traços talhados a cinzel. Ao centro do peito, o emblema de Micael, cuja visão contribuiu para tranqüilizar Sinuhe.

Largo cinturão parecia enfaixá-lo e realçar-lhe ainda mais a musculosa compleição. No centro dele os corpúsculos luminosos agruparam-se para formar a estrela de Davi.

As pernas — que as mãos de um homem não abarcariam — estavam metidas em algo parecido com nossas calças, embora muito justas e compondo, sem dúvida, um uniforme ou traje de uma só peça. Já os pés, evidentemente pousados na "areia" cinti­lante da clareira, mal se distinguiam. Miríades de grãozinhos de luz brotavam sempre do solo, ocultando-os. Uma capa tecida por milhões de pontos luminosos flutuava ao sabor de um vento doce e inexistente.

Ainda assombrados, Glória e Sinuhe viram o robusto braço direito da criatura levantar-se em sinal inequívoco de saudação. Ao mesmo tempo, uma voz grave ressoou-lhes no cérebro.

— Que a paz de Micael, nosso Soberano e Criador, esteja convosco, filhos de IURANCHA...

Os olhos amendoados do ser centuplicaram sua luminosidade. E um amplo sorriso tranqüilizador desenhou-se naquela face que se diria marmórea. Nenhum dos atônitos humanos percebeu mo­vimento em seus lábios. Entretanto, uma vez no "outro lado", tanto Sinuhe como a filha da raça azul souberam que haviam re­cebido a mesma mensagem.

— Meu nome — soou a voz — é Agurno, Mensageiro So­litário vindo de "Ra" e enviado pelos Mui Altos da constelação. . .

Maravilhado, Sinuhe teria desejado corresponder à saudação e também formular algumas perguntas. Mas por mais que o ten­tasse nem os braços nem a língua lhe obedeceram. Simplesmente, tal como sua companheira, estava paralisado.

Nesse instante os dois tiveram plena consciência de que sua enigmática missão acabara de começar.

 

— Como "iuranchianos", fostes escolhidos para resgatar primeiro os arquivos secretos de vosso mundo evolucionário, sub­traídos pela iniqüidade do príncipe planetário Caligastia e de seus seguidores. ..

Como em um sonho, Glória e o companheiro acolheram as "palavras" do enviado celeste — um dos que compõem a Ordem dos Mensageiros Solitários, capazes de deslocar-se a mais de cinco milhões de vezes que a velocidade da luz — e, como um tesouro, guardaram-nas em seus corações.

— Sabei que tal desempenho não será fácil. Guardai-vos de Belzebu, líder dos "medianos" rebeldes instalados em IURANCHA desde a rebelião do Maligno. Guardai-vos de sua iniqüidade e estai prevenidos porque não haverá trégua para vós.. .

Ao ouvir aquelas advertências, Glória e Sinuhe estreme­ceram.

— Mas não desfaleçais. Sabei também que, embora nem um dos servos de Micael possa substituir-vos nessa missão, outros "medianos" leais ao Pai Universal estarão prontos a socorrer-vos, se necessário. . .

Belzebu?. . . "Medianos" rebeldes e "medianos" leais?.. . Que significava tudo aquilo? A inquietação tornou a instalar-se nos ânimos dos atônitos "iuranchianos".

— Buscai Solônia — continuou Agurno naquele tom cavernoso mas firme —, o serafim que guardou o Jardim do Éden. Sua espada vos será necessária. Agora vos deixo com o "olho de Ra". Ele vos acompanhará.

Sinuhe, ao contrário da filha da raça azul, ele sim, sabia en­tão a quem se referia o Mensageiro Solitário. Entretanto, desse outro personagem — Solônia — não sabia nada, absolutamente nada. Quem poderia ser? Ele se recordava daquela remota passa­gem do Gênese, onde se conta como um anjo, com uma espada flamejante, guardou as portas do Paraíso. Tratar-se-ia do mesmo ser? E por que sua espada lhes seria necessária?

— Como nos outros 36 mundos evolucionários de Satânia, mergulhados no insulamento desde a rebelião do Maligno, os An­ciãos dos Dias concederam a IURANCHA o direito a assistir ao iminente julgamento de Lúcifer. Mas antes, ide e descobri a Ver­dade por vós mesmos. . .

E o gigantesco mensageiro levantou de novo o braço direito, despedindo-se:

— Que a paz de Micael, o Filho do Paraíso, esteja convosco. E tu, filha da raça azul, prepara-te para receber teu verdadeiro nome...

 

Quando Agurno terminou sua mensagem, os milhões de pontos luminosos que lhe davam forma foram perdendo brilho, até apagar-se por completo. E embora legiões daqueles grânulos resplandecentes continuassem subindo de toda a superfície da cla­reira, como refulgentes e mágicas borbulhas, aqueles que se haviam reunido para formar a poderosa figura do Mensageiro Solitário se foram dissolvendo agora em um processo fulminante. Precisan­do bem, nem toda a indecifrável constituição corporal do enviado aniquilou-se. Entre a bruma avermelhada e os rutilantes grãos, sempre ascendendo quem sabe para onde, Glória e Sinuhe obser­varam como aqueles rasgados olhos continuavam fixos no mesmo lugar. Não se havia extinguido a intensa luz branca que deles fluía. Muito pelo contrário, começou a propagar-se, perfurando a névoa como os braços de um farol marinho. E cada um daqueles cilin­dros luminosos foi banhar Sinuhe e a filha da raça azul. Era como se da informe massa de bruma vermelha que os envolvia tivessem saído de repente uns olhos infernais...

Os feixes, entretanto, desapareceram cessando de inundar os corpos do casal. No mesmo instante, eles recuperaram a capaci­dade de movimento.

Ao sentir-se livre, Glória correu e refugiou-se atrás do amigo.

Aqueles "olhos" imóveis, a três metros do chão, foram tor­nando-se menores, modificando seu primitivo e amendoado perfil por outro circular. Sinuhe assistiu então a uma metamorfose que acabaria por enchê-lo de alegria.

Um dos olhos — o da direita — aumentou quase instanta­neamente de diâmetro. O outro não sofreu modificação alguma. E num instante, recortando-se em meio à névoa, surgiu a negra silhueta do disco.

— Ra!

Sinuhe gritou aquele nome com todas as forças. E, embora sua voz não pudesse ser ouvida, o pêndulo correspondeu à sau­dação apagando os "olhos" e iluminando as letras da face.

— Ra... por Deus! Que é tudo isso? Quem é Solônia? Que devemos fazer?

Mas o disco, com sua proverbial indiferença, parecia mais preocupado com outro assunto. Assim que, lentamente, se deslocou e foi postar-se acima das cabeças do confuso casal. À sua passa­gem a névoa agitou-se nervosamente.

Em seguida, dos "olhos" de Ra surgiram os jorros familiares de círculos celestes que foram abraçar as mãos da filha da raça azul. E com extrema delicadeza cada um dos fluxos luminosos as foi afastando dos ombros de Sinuhe. Aterrorizada, ela pediu ajuda ao amigo. Mas ele, consciente de que Ra não lhes causaria dano algum, tratou de apaziguar-lhe o pânico.

— Não tenha medo. Chama-se Ra e é um velho amigo...

Glória, à beira do paroxismo, levantou o rosto para aquela "coisa" discoidal e num repente tentou abaixar os braços e libe­rar-se dos etéreos aros azuis. Mas apesar de suas convulsões as mãos — invisivelmente manietadas por uns círculos que nem se­quer lhe roçavam a pele — não se moveram.

Sem pressa, Ra deixou que a filha da raça azul se agitasse até o esgotamento. Seus "braços" luminosos e imóveis ante aquela movimentação, não cederam. Sinuhe sem poder compreender as intenções do disco só conseguiu pedir calma à companheira.

 

Quando finalmente a filha da raça azul desistiu do empenho inútil para livrar-se da sólida pressão dos anéis de Ra, ele, deva­gar, como se não quisesse machucar-lhe os punhos, fez girar os círculos celestes que rodeavam suas mãos. E as palmas se uniram apontando em direção ao disco que continuava estático a pouco mais de um metro sobre suas cabeças, meio velado pela bruma avermelhada.

Aquela nova posição das mãos de Glória — ofertando ou talvez esperando receber — fez com que o companheiro se recor­dasse da última comunicação de Agurno: ".. . E tu, filha da raça azul, prepara-te para receber teu verdadeiro nome".

"Que pretendia Ral Então Glória tinha outro nome?"

Desta vez Sinuhe acertara. De repente, sobre as palmas trê­mulas de Glória fez-se uma luz vivíssima, tão intensa que os dois tiveram de fechar os olhos.

O membro da Loja secreta foi o primeiro a abri-los outra vez. E o que viu encheu-o de assombro. Aquela espécie de nuvenzinha radiante desaparecera e, em seu lugar, a poucos centímetros acima das palmas, os círculos azuis projetados por Ra traziam sus­pensa uma coroa magnífica. . . Ou não era uma coroa?

Maravilhado, concentrou a atenção "naquilo", descobrindo que efetivamente se tratava de qualquer coisa parecida com uma coroa, mas composta de letras. . . Caracteres grandes, de uns cinco centímetros de altura cada um, construídos ou fabricados em metal dourado e sem mácula.

Timidamente, a filha da raça azul foi descolando as pálpebras e, embora semicerrados, seus olhos não tardaram a distinguir o puríssimo ouro das letras que o amigo de Sinuhe segurava.

Ela também, perplexa e já livre dos anéis, baixou os braços. Desobedecendo porém ao primeiro impulso — o de fugir — dei­xou-se ficar diante da coroa, cativa do enigma daquelas letras. Ao lê-las, algo no mais íntimo do seu ser cambaleou.

— Sim, não há dúvida — declarou Sinuhe, dirigindo-se à amiga —. Este tem de ser o nome de que falou Agurno. Seu ver­dadeiro nome.

Glória desviou o olhar para Ra e em seguida procurou al­guma resposta na expressão de Sinuhe.

— Meu verdadeiro nome? — exclamou incrédula — Você quer dizer que este é meu nome... "cósmico"?

O companheiro concordou com a cabeça. Desde há muito tempo eles tinham conhecimento de que seus nomes e os usados pelos seres humanos durante o estágio carnal no mundo não são os autênticos. O verdadeiro — designado por todas as escolas eso­téricas como "nome cósmico" — é geralmente ignorado por ho­mens e mulheres. E sabiam também Glória e Sinuhe que os poucos que chegam a recebê-lo em vida são entes altamente responsáveis e com profundo nível de evolução espiritual. Entre outras razões, porque esses "nomes cósmicos" poderiam também ser usados co­mo "armas". ..

Mas sem querer estou relatando fatos que ainda vão chegar.

"... NIETIHW..."

Sinuhe, ao pôr-se diante da filha da raça azul, foi o primeiro a ler aquelas misteriosas letras que compunham a coroa.

— Nietihw?. .. E que significa?

O investigador levantou os olhos para Ra à espera de algu­ma explicação. Mas o disco continuou ignorando o impaciente amigo.

Glória vendo as letras pela parte de trás teve mais dificul­dade para lê-las. Ao ouvir no cérebro a voz de Sinuhe a pronun­ciar aquele estranho nome, esqueceu por uns momentos a difícil leitura daqueles caracteres metálicos e perguntou:

— Como disse?

— Nietihw — repetiu o amigo, sublinhando com um trejeito de indiscutível incompreensão.

Então o rosto da filha da raça azul iluminou-se com um sorriso.

— Nie-tihw!...

Foi com orgulho e veneração que Glória pronunciou aquele nome.

E só nesse momento, quando seu espírito parecia experimen­tar uma evidente paz, Ra decidiu-se a dar o passo seguinte.

Imóvel dentro da névoa, o disco foi erguendo então a coroa até colocá-la acima de Glória. Ela, documente, deixou que Ra atuasse. E os magníficos anéis celestes que seguravam o diadema projetaram-se, com grande solenidade, em direção à filha da raça azul. Com precisão matemática, a coroa de letras foi-lhe colocada sobre a cabeça. Por alguns segundos, os feixes que partiam dos "olhos" do disco mantiveram-se vibrantes, circundando o períme­tro craniano. Instintivamente, Glória cerrou os olhos e seu sem­blante sereno e iluminado adquiriu singular beleza.

O nome "NIETIHW" cingia-lhe agora toda a fronte e parte dos longos e sedosos cabelos dourados. Inexplicavelmente — ao menos para Sinuhe — aquelas letras não pareciam soldadas ou unidas umas com as outras por o que quer que fosse, metal ou es­trutura. Entretanto, era evidente que alguma força invisível as mantinha em perfeita coesão. Essa mágica e poderosa ligação es­tendia-se por toda a coroa a julgar pela pequena depressão dos cabelos na parte de trás; assim como se fossem pressionados por uma auréola visível e material.

Sinuhe, testemunha singular daquela insólita "coroação", não pôde reprimir um cálido sentimento de alegria e satisfação. Sem dúvida era um momento importante. E a emoção do "soror" teria sido completo se naquele momento se tivesse dado conta de que o nome "cósmico" que adornava já a fronte da amiga guardava íntima relação com outro tema que já o vinha obcecando desde há anos: a Cabala. Mas o transcorrer natural dos acontecimentos que iria vivenciar terminaria por desvendar-lhe esse novo "segre­do"...

Aquela série de fantásticos encontros e profundas emoções na clareira do bosque chegava ao fim.

Quando o nome "cósmico" ficou firmemente seguro na ca­beça da mulher — a quem daqui por diante chamarei Nietihw —, Ra fez que retrocedessem os anéis até que, um depois do outro, fossem enrolando-se e desaparecendo no interior de cada um dos "olhos" do disco.

Sinuhe, atônito, assistiu ao penúltimo capítulo do que evi­dentemente não era outra coisa senão a prévia para a grande "missão" de busca dos arquivos secretos de IURANCHA.

Quando se extinguiram as colunas de aros celestes uma das letras do diadema — o "H" — perdeu subitamente o brilho dou­rado, tornando-se transparente. Ato contínuo, a solitária letra esfumou-se. Sinuhe, no primeiro momento, teve a impressão de que a letra resvalara para a areia da clareira. Mas nem deu para baixar o olhar e buscá-la. Antes que o fizesse, o corpo de Nietihw estremeceu e de sua pele emanaram milhões de raios brancos finíssimos, mas sem qualquer brilho ou resplendor. Tinham a cor da neve e, em vez de se propagarem em todas as direções, manti­veram-se vibrando a menos de meio metro do túnica azul e do resto do corpo. Nietihw deu pelo estranho fenômeno. Arregalou os olhos e lançando um grito agudo desmaiou.

Como relâmpagos negros, das profundidades da bruma escarlate irromperam na clareira dois seres como aqueles que Sinuhe vira ali mesmo no bosque e depois através da vidraça da torre.

Antes que o corpo exangue da mulher caísse estendido sobre a borbulhante areia, eles a pegaram pelos braços, decolando em seguida para o alto, deixando atrás de si remoinhos de poeira luminosa.

Foi tudo tão vertiginoso, que o perplexo repórter mal teve tempo de ver como desaparecia a amiga acima de sua cabeça, firmemente segura e amparada, de cada lado, por aquelas peque­nas figuras de corpos transparentes e enormes crânios.

Na realidade, sequer conseguiu mover um só músculo ou proferir alguma palavra. Assim que perdeu de vista Nietihw, o disco o envolveu em um dos seus feixes luminosos e azuis; e, ape­sar de sua resistência, uma força irresistível lhe foi cerrando os olhos e mergulhando-o em um sono profundo e obscuro...

                                                                                           

 

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